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VIRGEM IMPERIAL.

NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO NO IMPÉRIO ULTRAMARINO


PORTUGUÊS

Juliana Beatriz Almeida de Souza – UFRJ/Brasil

Da maternidade divina à gloriosa soberania

As referências à Maria no Novo Testamento são pouco numerosas ao contrário


do que se possa supor. Os evangelistas se referiram à Maria mais freqüentemente como
“mãe de Jesus”. Mas além de realçar o significado especial da sua maternidade, pois
nela “o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14), os evangelistas também perceberam aí outra
dimensão: ela é mãe daqueles que crêem em Jesus, dos que acolhem a palavra de Deus
na fé. Assim, sua grandeza não estava apenas na maternidade, mas na sua profunda fé
na Palavra e sua comunhão com o mistério de Cristo. Sua maternidade não se
engendraria apenas no nível da carne, mas por preparar seu Filho para os problemas da
humanidade. Sua atitude nas bodas de Caná, iniciou Jesus em seu caminho messiânico,
ao fazê-lo ver que não havia mais vinho. Jesus embora respondesse que ainda não era a
sua hora, atendera à mãe depois de ouvi-la dizer aos serventes: “Fazei tudo o que ele
vos disser” (Jo 2, 5). Maria aparecia como a primeira evangelizadora e a primeira a crer.
Ao final da vida de Jesus, Maria reaparece na narrativa dos evangelhos, embaixo
da cruz, quando Jesus se dirigira a ela e a João, indicando-lhe a sua nova casa: a
comunidade de amigos que formavam a família de Jesus sobre a terra. A partir dali,
Maria deveria se ocupar de todos os crentes. Para Pikaza, segundo esta passagem, a mãe
de Jesus tornava-se uma figura de importância para o Evangelho. Mais ainda: ela seria a
primeira crente, o que significa, para o autor, que na Igreja, “o cristão exemplar e
modelo de todos os crentes foi e segue sendo” a mãe de Jesus1.
Até o século V, segundo Frangioti, não havia ainda culto oficial à Maria. Aos
poucos, surgiram atos de veneração. Mas, para o autor, foi santo Agostinho quem
contribuiu definitivamente para fundar seu culto, em seu tratado Sobre a natureza e a
graça. Pouco depois, um sínodo em Alexandria, no ano de 430, aprovou oficialmente
sua veneração e devoção. Mas foi o III Concílio Ecumênico de Éfeso, em 431, que

1
PIKAZA, X. La mujer en las grandes religiones. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1991. (Colección
cristianismo y sociedad).p. 178.

1
apontou o lugar de Maria na Igreja católica2. Foi aprovado oficialmente nesse Concílio o
primeiro título afirmado como dogma3 em torno da sua figura: o de “Mãe de Deus”,
Theotókos4.
O Concílio defendeu a unicidade da pessoa de Cristo, condenando o
nestorianismo5 e aprovando o documento doutrinal mais importante sobre a maternidade
divina de Maria, segundo a recente crítica histórica, isto é, a Segunda Carta de Cirilo a
Nestório, também conhecida como Epistula dogmatica Cyrilli. Confirmando a
atribuição à Maria de mãe de Deus, a carta estabelecia doutrinariamente que as duas
naturezas - divina e humana - diferentes entre si, cada uma delas perfeita nas suas
características, convergiam para uma verdadeira unidade mediante misteriosa e inefável
convergência, constituindo um só Jesus Cristo. Na união que se formara em Jesus
permaneceram intactas as diferenças específicas de cada uma delas e a unidade entre
elas fora produzida no próprio útero materno, assim que o Verbo uniu a si a sua
natureza humana. A única pessoa existente em Jesus Cristo, nascida de Maria, fora a
pessoa divina e, por essa razão, a Virgem Maria poderia ser chamada propriamente
‘mãe de Deus’.
Vale ainda marcar que, a partir de Éfeso, com a proclamação solene da
legitimidade de Theotókos e seus conteúdos gloriosos implicados a Maria, fizeram com
que a maternidade divina passasse a constituir título único de soberania e de glória para
a Mãe do Filho de Deus, doravante representada como rainha e senhora por ser mãe do
Rei e Senhor. A situação sócio-política do império bizantino e o ambiente cultural, em

2
FRANGIOTTI, R.. História das heresias: séculos I – VII – conflitos ideológicos dentro do cristianismo.
São Paulo: Paulus, 1995. p. 123 – 124.
3
Dogma é a verdade contida na Escritura ou tradição que a Igreja oferece para a crença dos fiéis. NOVA
ENCICLOPÉDIA CATÓLICA. Rio de Janeiro: Ed. Rênes, 1969. v.12. p. 1143.
4
Segundo Jaroslav Pelikan, o título Theotókos “não possuía o significado simples de ‘Mãe de Deus’,
como é traduzido usualmente nas línguas ocidentais (Mater Dei em latim e, portanto, em todas as línguas
latinas; Mutter Gottes em alemão), mas o significado mais preciso e completo de ‘aquela que deu à luz
Deus’ (portanto, Bogorodica em russo, nas línguas derivadas do russo e outras línguas eslavas e, mais
raramente porém de modo mais preciso, Deipara em latim). Apesar de a história linguística do título
permanecer obscura, tudo leva a crer que esse foi um vocábulo cunhado pelo cristianismo e não, como se
poderia supor, a adaptação de um título originariamente atribuído a uma deusa pagã para servir a
propósitos cristãos”. PELIKAN, J.. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p.83 - 84.
5
Heresia de Nestório que afirmava a existência em Cristo de duas pessoas, uma pessoa divina, el logos, e
uma pessoa humana, Jesus, e, em conseqüência, negava a maternidade divina de Maria. PAREDES,
Javier (dir.) et alli. Diccionario de los papas y los concilios. Barcelona: Ariel, 1998. p. 655.

2
que se desenvolveu a sua veneração, contribuíram para a dimensão triunfal à
maternidade divina6.
A partir do século IX, aos poucos, Maria foi elevada à condição de mantenedora
da ordem, o que se tornou possível por ser ela uma figura organizadora do sistema
católico de representação, baseado em metáforas. Para Dominique Iogna-Prat,
paradoxalmente, Maria se reveste de múltiplas figuras e ocupa múltiplos espaços. A
Virgem tem, assim, posição chave, menos pelos seus intermináveis qualificativos do
que pela passagem de um a outro e, sobretudo, pelo seu deslocamento entre vários
atributos para atender a uma verdade figurada7. Talvez por isso Maria tenha se tornado,
ao longo dos séculos, a mediadora especial entre o Céu e a terra, entre Deus e os
homens, no mundo católico.
Segundo Daniel Russo, a iconografia mariana e sua inserção nos modelos de
representação da arte cristã devem ser sempre situadas no centro de uma história
político-religiosa intensa onde se mesclam, de maneira inextrincável, a defesa da fé, a
da ortodoxia, a consagração de uma legitimidade pela adoção de um modelo prestigioso
- o de Maria - e o reconhecimento simbólico de uma aura de poder. Nele a figura de
Maria ocuparia, para o autor, um lugar central. Por sua dignidade de mãe e seu papel de
mediadora, Maria se afirmou como uma personagem de síntese, desde os séculos II -
IV, de acordo com os comentários dos santos Padres8.
Mas nos muros e sarcófagos dos séculos III e IV, nos afrescos das catacumbas
desde o século II, ela ainda era uma figura sem transcendência. Só em meados do século
seguinte, nos mosaicos, no arco triunfal de Santa Maria Maggiore, construído pelo papa
Sixto III (432 - 440), mesma época, portanto, do Concílio de Éfeso, ela ganhou
definição augusta e traços imperiais9. Antes do Concílio, as efígies de Maria eram de
caráter descritivo, inspiradas pelos apócrifos. Depois dele, entretanto, a Virgem passou
gradativamente a ser apresentada cada vez mais como rainha, assentada no trono.

6
MEO, S.. Mãe de Deus. In: FIORES, S. de, MEO, S.. Dicionário de mariologia. São Paulo: Paulus,
1995. p. 786.
7
IOGNA-PRAT, Dominique. Le culte de la Vierge sous le règne de Charles le Chauve. In: IOGNA-
PRAT, Dominique, PALAZZO, Éric, RUSSO, Daniel. Marie. Le culte de la Virge dans la société
médiévale. Paris: Beauchesne, 1996. p. 94.
8
RUSSO, Daniel. Les représentations mariales dans l’art d’Occident au Moyen Âge. Essai sur la
formation d’une tradition iconographique. In: IOGNA-PRAT, Dominique, PALAZZO, Éric, RUSSO,
Daniel, op. cit., p. 175 - 176 e 181.
9
WARNER, Marina. Tú sola entre las mujeres: el mito y el culto de la Virgen María.. Madrid: Taurus
Humanidades, 1991. p. 152.

3
A bizantinização das representações de Maria resultou em um reforço de sua
imagem como rainha. Na iconografia mariana, de uma lado, em continuidade com o que
havia antes, Maria era interpretada como simbolizando a comunidade de crentes, de
fiéis; de outro lado, irrigada por uma configuração de motivos tomadas de empréstimo à
arte bizantina, sua representação se pôs cada vez mais a serviço de uma certa idéia de
soberania Reforçava-se, também, assim, uma Virgem reinante.
Gharib identificou cinco tipos básicos de ícone-retrato mariano: 1) a Hodigítria,
ou seja, a que guia, a condutora, a que mostra o caminho; 2) a Eleúsa que significa
terna, misericordiosa; 3) a orante que se subdivide em dois tipos principais: a
Angioritissa e a Blachernitissa que têm afinidades com um terceiro, o da Déesis; 4) a
Galaktotrofusa que significa lactante ou nutriz; 5) a Kyriotissa ou Rainha, também
denominada dominadora do mundo e representa Maria sentada em um trono, com veste
de basilissa, ou imperatriz. O autor diz que esse tipo triunfal, já esboçado nas
catacumbas na cena da adoração dos magos, se impôs depois do Concílio de Éfeso.
Depois das lutas iconoclastas, do século VIII em Bizâncio, o tipo chegou ao auge, sendo
reservada o lugar de honra nos nichos das absides centrais das igrejas à Virgem no
trono10. A Nicopeia, a que dá a vitória, é uma de suas variantes e foi assim chamada por
ser levada para os combates me tempos de guerra. Maria está sentada em um trono com
sua mão esquerda sobre as pernas do Menino, sentado no seu regaço, e a direita sobre o
ombro do Filho. Sua representação primitiva foi destruída com a proibição das imagens
promulgada em 726, por Leão, o Isáurico. A Nicopeia é a forma original das imagens da
Virgem românicas inspiradoras no Ocidente das Virgens de Majestade no período
românico.
De todo modo, Maria, espelhada em suas representações, foi se impondo, ao
longo da Idade Média, como a imagem da Igreja desse tempo, exprimindo o corpo de
uma santidade inviolável, investida de uma autoridade. Maria era a expressão visual de
uma fronteira que separava os cristãos dos não-cristãos, o fiel do restante da
comunidade11. Como mãe de Deus-Imperador se converteu em símbolo central e
vigoroso de poder que foi usado para reforçar a autoridade da Igreja. Desde o século VI,
quando os papas de Roma precisaram reafirmar suas posições frente à influência do
imperador bizantino em Constantinopla e face aos reis lombardos do norte da Itália, a

10
GHARIB, G. Ícone. In: FIORES, S. de, MEO, S. (org.), op. cit., p. 582.
11
RUSSO, Daniel, op. cit., p. 183.

4
Virgem triunfante, como a Igreja sitiada o desejava ser, transformou-se em excelente
meio de propaganda e argumentação. Política e piedade interagiam e caminhavam
juntas. Quanto mais o papado conseguia o controle da cidade, mais venerava-se a Mãe
do Imperador do Céu, por quem a Igreja dominava crescentemente12.
Em meio à reforma gregoriana da Igreja, deu-se também uma crescente
associação entre a figura de Maria e o exercício do poder real/imperial: a sacralização
do poder, a legitimação da coroação, a proteção do império cristão e, por conseguinte,
da cristandade. Esse parece ser um fenômeno medieval bem datado, ou seja, na virada
da Alta para a Baixa Idade Média, entre os séculos IX e XII, coincidindo com o
processo de afirmação do poder pontifício na Europa e com a própria reforma da
Igreja13.
A Virgem, como mãe de Cristo, foi, assim, usada para legitimar e proteger o
império cristão acuado e rural da cristandade medieval. O alto clero dos tempos
carolíngios, no contexto da aliança entre Império e Papado, esforçou-se por entronizar a
Virgem Maria como modelo de rainha e mãe. Por outro lado, Daniel Russo aponta para
a conexão entre culto oficial, propaganda marial e luta contra os hereges, a exemplo dos
cátaros, e mesmo judeus, ressaltando a decoração marial nas catedrais francesas com
temas desse tipo. Fez-se de Maria um símbolo da luta contra os inimigos da Igreja e se
procurou mostrá-la como vitoriosa “na luta contra a Sinagoga”. Ressalta ainda a
sincronia entre esse crescente prestígio de Maria e as cruzadas, expansão medieval da
cristandade contra o infiel14.
Deve-se, entretanto, reforçar, a idéia de que a consolidação do retrato de Maria
com a mais bem-aventurada entre as mulheres deveu-se menos aos relatos bíblicos, quer
os do Antigo ou do Novo Testamento, do que à exaltação promovida por Roma através
da afirmação das doutrinas e dogmas em torno da sua figura. O modelo foi, portanto,
construído lentamente, a partir dos primeiros séculos cristãos e ganhou força na Idade
Média.
Decerto, o crescimento da mariologia, como pretendo demonstrar, fez parte de
um movimento maior de reação da Igreja Católica, como também o foi no contexto das
Reformas religiosas do século XVI. É, pois, nesse contexto de discursos em disputa e de

12
WARNER, Marina, op. cit., p. 153.
13
CORBERT, Patrick. Les impératrices ottoniennes et le modèle marial. In: IOGNA-PRAT, Dominique,
PALAZZO, Éric, RUSSO, Daniel, op. cit., p. 109-135.
14
RUSSO, Daniel, op. cit., p. 288 - 290.

5
tensões sociais que se insere o incremento da devoção mariana. Movimento que, se não
nasceu no século XVI, alcançou a partir de então um novo resplendor.

Afirmação do rosário

Desde o século XVI, com Pio V (1504 - 1572), os papas descreveram as origens
do rosário ligadas à aparição de Nossa Senhora a Domingos de Gusmão (1170 - 1221).
Muitas são as representações da cena: aos pés da Virgem, o religioso recebe o colar de
contas. Se hoje se tem clareza de que esse não foi efetivamente o início da devoção ao
rosário, segundo a tradição e conforme relataram seus biógrafos, Domingos de Gusmão,
durante a cruzada, iniciada pelo papa Inocêncio III, em 1208, inquietava-se com a
violência nos combates contra os albigenses, no sul da França, e aproveitava toda
oportunidade de entrar nas igrejas pelas quais passava. Em uma dessas ocasiões, na
igreja de Notre Dame de la Dreche, teria Nossa Senhora lhe aparecido para consolá-lo
da tristeza, dando-lhe a oração do rosário. A Virgem teria lhe instruído que tal oração
deveria ser oferecida como antídoto à heresia.
Ao longo dos séculos, ainda que não reconhecida oficialmente pela Igreja, tal
aparição foi aceita, assim como a atribuição ao santo da instituição do rosário. Segundo
os relatos sobre sua vida, são Domingos teria pregado em seus sermões a forma de
oração que se consagrou no rosário. A divisão em quinze temas sobre diferentes
acontecimentos da vida de Cristo permitia-lhe instruir os que ouviam seus sermões. Mas
o santo nunca teria citado de maneira específica a oração. A aparição da Virgem,
entretanto, conferia ao rosário um caráter sagrado que confirmava o amor especial da
Virgem pelo rosário e o tornava emblema do direito divino na batalha contra os
inimigos.
Alexandre VI (1492 - 1503), que dividiu o mundo descoberto e a descobrir entre
Portugal e Espanha, foi o primeiro Papa a mencionar o rosário, aprovando a prática que
cresceu rapidamente. Mas o momento chave na história da devoção ao rosário se daria
anos mais tarde. A 7 de março de 1571, dia da festa de são Domingos, o papa Pio V
assinou o acordo da Santa Liga, com o aceite da Espanha e Veneza, contra a dominação
turca. Dois anos antes, com a bula papal Consueverunt romani Pontifices, consagrou a
forma do rosário, identificando como arma poderosa. Mas foi em outubro daquele ano o
combate que marcaria a derrota turca. No dia 6 de outubro, ao entardecer, Pio V dirigiu
a reza do rosário no convento dominicano de Minerva, em Roma e na manhã do dia

6
seguinte, se iniciaria o combate entre a frota da Santa Liga, sob o comando de João de
Áustria, irmão de Felipe II, e a frota turca no golfo de Lepanto. Depois de muitas
baixas, a frota turca foi desbaratada, minando o poder otomano no Mediterrâneo15. Para
comemorar a derrota dos turcos na batalha de Lepanto, Pio V permitiu a festa de Nossa
Senhora da Vitória, em todas as igrejas que tivessem um altar do rosário. Segundo o
papa, a vitória teria se dado graças à intercessão da Virgem, em resposta aos rosários a
ela oferecidos. A festa, instituída pela bula Salvatoris Domini de 1572, deveria ser
celebrada todos os anos no primeiro sábado de outubro, dia da semana em que se dera a
batalha de Lepanto. A doutrina de Pio V pode ser resumida na afirmação da necessidade
da oração para superar as dificuldades de guerra e outras calamidades; do rosário
inventado por são Domingos ser um meio simples e ao alcance de todos; desse meio ter
se revelado de grande eficácia contra as heresias e os perigos para a fé; da
recomendação da recitação a todo o povo cristão16.
Em 1573, o Papa Gregório XIII (1572 - 1585) mudou o nome da festa, em
lembrança a Lepanto, para Nossa Senhora do Rosário, reforçando-o como arma da
vitória. Com a bula Monet Apostulus de 1573, instituiu a festa solene e a inseriu no
calendário litúrgico no primeiro domingo de outubro. Desse modo, desde a batalha de
Lepanto, a Virgem e sua oração particular, o rosário, foram continuamente associados
especialmente à luta católica contra os inimigos da sua fé. Segundo Marina Warner, a
vitória de Lepanto sobreviveu na tradição católica como a última cruzada heróica levada
a cabo para a instauração do Reino de Deus na terra17.
Vale ressaltar que para além das iniciativas pontifícias, há dois momentos no
século XV cruciais para se pensar a constituição da devoção ao rosário. O primeiro
deles é a obra de Alano de Rupe – De utilitate Psalteri Mariae – que sistematizou a
oração do rosário como ficou conhecida, em 1470. O outro personagem importante
nesse enredo foi T. Sprenger, dominicano, autor do Malleus Maleficarum – que fundou,
em 1475, a primeira confraria do Rosário, em Colónia, Alemanha.
Importa, aqui, marcar que a devoção ao rosário ganhou força no contexto da
Reforma católica, tendo sido ele invocado em suas políticas. A devoção ao rosário

15
VAIL, Anne. A história do rosário. São Paulo: Ed. Loyola, 1998. p. 81 – 86.
16
STAID, E. D.. Rosário. In: FIORES, S. de, MEO, S., op. cit., p. 1138.
17
WARNER, op. cit., p. 398.

7
cresceu quando a Igreja se sentia fraca e a apontava para uma disposição combativa, isto
é, de afirmação da cristandade romana contra os hereges e infiéis.
O método de oração proposto pelo rosário valorizava, ao lado da repetição das
ave-marias, a meditação, restabelecendo, a contemplação interior, nos quadros da
chamada devotio moderna. A Virgem e o rosário foram, portanto, armas da Igreja em
um tempo em que, cada vez mais, os católicos eram acusados de se apegarem somente à
exterioridade da fé e à compra de indulgências para alcançar a salvação. Mais do que
isso: a devoção à Virgem Maria servia como símbolo da identidade católica,
contrastando com as críticas protestantes ao seu culto e ao culto dos santos.
Pode-se entender que tenha sido o culto e a veneração de Maria, mantidos pela
Igreja católica, o tema que mais severas críticas despertara desde o início do movimento
de Reforma. Maria foi freqüentemente a imagem mais visível do que desagradava aos
reformadores: a veneração dos intercessores e a substituição da contemplação interior
pelos rituais, imagens e peregrinações. Maria era um espelho que refletia as causas e as
conseqüências da Reforma, revelando e exagerando, por muito tempo, as divisões entre
protestantes e católicos18.
A devoção ao rosário também foi alvo da crítica protestante. Lutero, em um
sermão de 1528, criticou a oração do rosário, considerando que não se poderia infligir
maior blasfêmia à Maria do que a daqueles que introduziram o rosário. Sua críticas
ficariam cada vez mais radicais até a década de 1540, quando, passou a admitir Maria
apenas como intercessora equiparável aos homens, valendo sua oração tanto quanto a de
qualquer cristão19.
Anne Vail, entretanto, aponta outra possível razão de crítica protestante à
devoção ao rosário. Segundo a autora, no século XV, os rosários tornaram-se objetos
comuns e sua crescente popularidade não estava ligada apenas às associações religiosas,
mas aos joalheiros que exploravam as variadas possibilidades de confecção com metais
e pedras preciosas. Tornaram-se, assim, em certa medida, objetos de ostentação, sendo,
portanto, desaprovados pelos luteranos exatamente em razão do descontrole no seu uso.
Na Inglaterra, a popularidade dos rosários adornados alimentou a nova indústria e
fabricantes de contas se instalaram em Londres em ruas que passaram a ser conhecidas

18
CUNNEEN, Sally. In search of Mary. The woman and the symbol. New York: Ballantine Books, 1996.
p.185.
19
GESTEIRA, M.. Reforma. In: FIORES, S. de, MEO, S. (org.). op. cit., p. 1130.

8
como travessa do pai-nosso e viela da ave-maria. Em Paris, havia três guildas de
fabricantes de contas, cada qual especializada em diferentes materiais. Com a crescente
ostentação criada em torno da confecção dos rosários, temeu-se pelo risco deles se
tornarem apenas objetos de interesse financeiro. “Os rosários, a princípio um ‘sinal
exterior’, introduziram-se na cultura da época, com papéis estranhos e variados, que iam
de parte essencial de um enxoval de casamento a símbolo de status como presente; por
fim, era usado de todas as maneiras possíveis, até como colar”20.
Vale pensar como tratou a questão das imagens o Concílio de Trento. O decreto
do Concílio sobre a questão rebatia as acusações dos reformadores, explicando os atos
de devoção prestados às imagens. Recomendava conservar nas igrejas as imagens de
Cristo, da Virgem, mãe de Deus, e de outros santos e a elas se devia dar a
correspondente honra e veneração. E esclarecia: não porque se cria que havia nelas
divindade, ou virtude alguma pela qual merecessem o culto, ou que se lhes devia pedir
alguma coisa, ou que se devia por a confiança nas imagens, “como faziam em outros
tempos os gentis”, colocando “sua esperança nos ídolos”, mas porque a honra que se
dava às imagens, referia-se aos originais representados por elas21.
O texto conciliar demonstrava ainda a preocupação em prevenir e combater os
abusos, ressaltando o papel dos bispos quer nessa contenção quer na transmissão da
importância das imagens para recordar ao povo os artigos da fé, os benefícios e dons
concedidos por Cristo e a exposição do exemplo dos santos, incentivando o amor a
Deus e a prática da piedade. Sobre a devoção à Virgem Maria, o Concílio limitou-se a
declarar a legitimidade do seu culto e, a propósito da universalidade do pecado original,
a declarar que a intenção do Concílio não era de incluir Maria nela22.
As imagens de Nossa Senhora do Rosário se difundiram nos séculos XVI e XVII
e se espalharam com a vitória de Lepanto, sendo uma única rosa na mão de Maria o
símbolo suficiente da invocação. Na Idade Média, a significação da rosa nas suas mãos
aludia à sua maternidade divina, significação praticamente perdida na época moderna.
Segundo J. Delumeau, a Igreja a partir do século XV se esforçou por expandir duas

20
VAIL, Anne, op. cit., p. 68.
21
CONCÍLIO DE TRENTO. De la invocación, veneración y reliquias de los santos y de las sagradas
imágenes.
22
A definição do dogma da Imaculada Conceição é bem posterior ao Concílio, só tendo sido fixada em
1854. KOEHLER, Th. História da mariologia, BESUTTI, G. Santuário. In: FIORES, S. de, MEO, S.
(org.). op. cit., p. 570. p. 1207.

9
figurações de Maria que a Idade Média: a da Imaculada Conceição, da qual o pintor
espanhol Bartolomé Esteban Murillo (1617 – 1682), em 1678, foi responsável pela
representação que se consagrou, e a da Virgem apresentando o rosário a São
Domingos23.
A Virgem do Rosário foi representada de três formas principalmente. A primeira
delas apresenta a Virgem sentada sobre nuvens ou um rico trono, com o Menino Jesus
nos braços e entregando o rosário a São Domingos de joelhos, em atitude de adoração.
Nesse tipo, por vezes, o grupo representado se completa com a presença de santa
Catarina de Sena, considerada pelos dominicanos como segunda mãe da ordem24.

A Virgem entrega o rosário a são Domingos.


Bartolomé Esteban Murillo. Óleo sobre tela. Medidas: 207 X 162 cm. Palácio Arzobispal, Sevilha25.

23
DELUMEAU, J., COTTRET, Monique. Le catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: PUF, 1996. p.
311.
24
MARTÍN, Secundino. , o. p.. El rosario en el arte. 3ª ed. Pamplona: Editorial OPE, 1968. p. 13 – 14.
25
Todas as imagens forma reproduzidas a partir tiradas do livro: ITURGAIZ, Domingos, o. p.. La Virgen
Del Rosario y Santo domingo, en el arte. Madrid: EDIBESA, 2003.

10
A Virgem entrega o rosário a são Domingos e Santa Catarina de Sena.
Anônimo madrileno. Segunda metade do séc. XVI. Óleo sobre tela. Medidas: 102 X 87 cm. Mosteiro de
São Domingo o Real de Madrid.

A segunda forma seria com a Virgem sentada ou de pé com o Menino Jesus nos
braços, com a coroa e levando um cetro, além do rosário. E a a terceira forma, se
distinguiria pela ausência de coroa ou cetro26.

26
ibid.

11
A Virgem do Rosário.
Bartolomé Esteban Murillo. Óleo sobre tela. Medidas: 164 X 110 cm. Museu do Prado, Madrid.

Em todas as formas de representação da Virgem do Rosário, segundo S. Martín,


comumente se usou cores significativas dos mistérios contidos no rosário: os gozosos,
dolorosos e gloriosos. O véu branco sobre a cabeça caindo sobre os ombros e peito;
túnica vermelha e manto azul27.

27
ibid., p. 14.

12
Vale ainda destacar que o surgimento desses modelos de representação da
Virgem do Rosário não significou o fim de outras formas. O rosário continuou, por
exemplo, aparecendo na pintura com aspectos decorativos e lúdicos como no quadro de
Zurbarán.

A Virgem do Rosário.
Francisco de Zurbarán. Óleo sobre tela.Museu Provincial de Belas Artes, Sevilha.

Mas o que quero realmente marcar aqui é que a devoção à Virgem e a crença na
sua intercessão converteu-se, assim, no símbolo mais visível de luta contra toda
tendência reformista. Ao representar a mais arraigada e preferente prática piedosa da
tradição católica, pode se tornar exatamente estandarte contra-reformista28.
Frei Nicolau Dias, que conheceu Pio V, em 1571, exaltava a Virgem e a devoção
do Rosário como intercessora de todos e de todas as necessidades. O dominicano dizia
que assim como Deus escolheu Maria para mediante ela vir ao mundo, vestido da carne,
queria que mediante ela os homens fossem a Ele, vestidos de virtudes. Mediante à

28
O’GORMAN, Edmundo. Destierro de Sombras. Luz en el origen de la imagen y culto de Nuestra
Señora de Guadalupe del Tepeyac. 2a ed. México: UNAM, 1991. p. 121.

13
Senhora, o Filho de Deus descera à terra e os homens subiam ao céu29. A Virgem como
escada era intercessora dos pecadores e canal de graças. As repetidas edições do Livro
do Rosário de frei Nicolau Dias, no século XVI, sendo oito delas entre 1573 e 1583,
fizeram parte da campanha de divulgação da devoção ao rosário em Portugal.
Mas as críticas ao uso do rosário deviam encontrar correspondência em práticas
cotidianas dos fiéis. Padre Amaro de Roboredo, no século XVII, nas suas advertências
para bem rezar o rosário dizia que seu verdadeiro devoto se escusava de trazê-lo ao
pescoço e mão por brinco e de o andar bolindo com os lábios nas conversações. Devia,
ao contrário, buscar um lugar afastado do reboliço e de vozes, melhor que pudesse, e se
pôr de joelhos, se possível, se não de pé ou sentado, se doente ou se já ficara muitas
horas de joelhos em outra devoção, e desocupar da imaginação todos os negócios,
cuidados e criaturas e, “como quem entra no íntimo do coração, negociar a salvação
com Deus”. Segundo o padre, todos os autores, que ensinavam a rezar o rosário,
concordavam que era preciso juntar o coração com as palavras. Daí afirmar que mais
valia rezar pouco e sentido que muito e distraído30.
Desde a Antigüidade clássica se admirava a perfeição das formas geométricas e,
dentre elas, a esfera e o círculo eram consideradas as mais excelentes. A perfeição da
forma circular era atribuída à Alma do Mundo, manifestação no mundo sensível do
Bem invisível. Na cristandade, era a Virgem Maria que representaria essa articulação
visionária entre o mundo da corte celestial e o da queda do pecado. A Virgem, segundo
Gilbert Durand, possuía os três traços da platônica Alma do Mundo. A primeira
correspondência residia em ser Maria substância visionária, “sinal” profetizado por
Isaías e que exibia a assinatura do Criador e, como tal, tornou-se padrão histórico da
beleza para o Ocidente cristão. O segundo traço fundamental da Alma do Mundo era a
pluralidade que a constitui na medida que sua essência era a mediação entre mundos,
traço que se relacionaria com a extrema diversidade das representações e atribuições
marianas e os paradoxos constitutivos da sua personalidade. O terceiro caráter da Alma
do Mundo era o fato de que ela manifestava o agenciamento harmonioso da totalidade,
caráter esse presente nos título de Rainha e Mãe atribuídos à Maria. Na aproximação

29
DIAS, Nicolau, fr.. Livro do rosário de Nossa Senhora. (1573) ed. fac-similada. Lisboa: Biblioteca
Nacional, 1982. p. 43 – 45.
30
ROBOREDO, Amaro, pe. Socorro das almas do purgatório. Lisboa: Pedro Craesbeeck Impressor,
1627. p. 107 - 122.

14
entre Maria e a perfeição circular, inscreve-se o rosário, representação da coroa de
rosas, instrumento circular que se transformava em atributo fundamental de Maria31.
A virtude do rosário, do ponto de vista religioso, estava, em parte, na
simplicidade de sua estrutura, conduzindo o devoto ao centro do mistério cristão, aos
dados fundamentais da fé, através de orações bem conhecidas: o pai-nosso, a ave-maria
e o glória, uma doxologia à Santíssima Trindade. Mas o rosário representava ainda a
escola da contemplação porque habituava a olhar ora para um episódio, ora para outro
da vida de Jesus, em uma atitude que despertava alegria, sofrimento e exultação simples
e profunda. A contemplação, aqui, não era entendida como simples aplicação da
inteligência diante de determinado tema a refletir, mas como capacidade de olhar
amorosamente e reconhecidamente aquilo que cercava o católico em uma atitude de
escuta, abertura e assentimento. Por isso, a contemplação relacionava-se não só com a
mente, mas também com o coração. E os sentimentos vivenciados durante a oração se
interligavam como alimento dessas duas esferas humanas32.
No entanto, talvez seja outra a dimensão do rosário que o fez alcançar tamanha
importância no contexto das reformas e da expansão católica. O rosário podia ser um
método simples e de fácil aceitação para pregação e apresentação da fé. Era uma forma
privilegiada de pedagogia e catequese ao guiar não só o devoto, mas o que se queria
catequizar para assimilação dos mistérios e das verdades evangélicas. Representava,
entretanto, um tipo especial de pregação, pois solicitava o assentimento do devoto, tal
como o anúncio do anjo solicitou o sim de Maria. E podia favorecer uma íntima união
com a Virgem, pois com ela o devoto penetrava no mistério de Cristo e era convidado a
imitá-la; ela que, por sua vez, era imitadora de Cristo33.
O uso do rosário guardava similaridades com a arte devocional ao ajudar o
orante a pensar e agir como Maria fizera34. Assim, a oração do rosário era também uma
oportunidade para confrontar as atitudes cotidianas e corrigir os erros, purificando-se
conforme a vontade de Deus.
O desejo de uma experiência privada com Deus, a necessidade de fazer valer a
autoridade de Roma contra os hereges e o uso de uma prática religiosa como estandarte

31
DURAND, Gilbert. A fé do sapateiro. Brasília: Ed. UnB, 1995. p. 81 - 102.
32
STAID, E. D., op. cit., p. 1141.
33
ibid..
34
CUNNEEN, op. cit., p. 190.

15
de batalha combinaram-se, desse modo, no fomento da devoção ao rosário promovido
pela Igreja. A nova meditação estava desenhada para restabelecer um elemento de
contemplação interior na oração dos fiéis35. O colar da Virgem Maria ganhou contornos
e projeção quando a cristandade se dividia na Europa e a expansão católica conhecia
novos territórios. O esforço de missionação, a evangelização de povos não-europeus
assumiria papel decisivo no impulso da contra-reforma, fornecendo um novo
instrumental a partir das experiências, aliado ao reforço da doutrina no confronto com
outras religiões e a formulação de novos modos de pensar levados para a Europa. As
conquistas espirituais obtidas pela Igreja católica em outros continentes compensavam
em certa medida a contestação do seu poder na Europa pelo protestantismo. Como
escreveu J. Delumeau, da etapa defensiva face aos turcos, a Igreja romana passava à
ofensiva espiritual no universo pagão que se abria para ela36. As rosas da Senhora eram
espraiadas entre a velha cristandade e o além-mar.

Nossa Senhora do Rosário no império ultramarino português

Divulgada a devoção ao rosário na península ibérica, em Portugal, Nossa


Senhora do Rosário foi adotada como padroeira de vários grupos e em quase todas as
cidades criaram-se igrejas a ela dedicadas. Em Lisboa, o convento dominicano tornou-
se famoso por causa de uma imagem da Virgem à qual se atribuíam milagres. Logo
surgiram irmandades37 e, entre as dedicadas à Virgem, foi das mais importantes38.
Embora, originariamente, tenham sido os dominicanos os principais promotores
da devoção ao rosário, com a multiplicação das irmandades pelo além-mar, eles
perderam, senão a primazia, a exclusividade. Outras ordens também criaram irmandades
do rosário como os agostinhos, franciscanos e jesuítas.
Para pensar a promoção da devoção a Nossa Senhora do Rosário basearei meus
argumentos na análise da obra Santuário mariano de frei Agostinho de Santa Maria.

35
WARNER, op. cit., p. 393 - 394, 397.
36
DELUMEAU, COTTRET, op. cit., p. 140 - 141.
37
O termo irmandade tem o mesmo significado que congregação - instituto religioso cujos membros
vivem sob votos simples -, e é o nome dado a algumas associações de fiéis. Já confraria corresponde à
associação de fiéis, normalmente leigos, para a promoção de alguma obra de devoção, caridade ou de
instrução cristã. Como a historiografia, em geral, e mesmo certa documentação, parece usar tais palavras
como termos equivalentes, com o significado de associações de fiéis, não seguirei a diferenciação formal.
NOVA ENCICLOPÉDIA CATÓLICA, op. cit., p. 1135, 1164.
38
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. 2a ed. São Paulo: Companhia Nacional, 1978. p. 39.

16
Entre 1707 e 1723, Frei Agostinho de Santa Maria publicou a obra Santuário mariano
dividida em dez tomos. A obra se compõe de breve notícia de mais de 1700 santuários -
igrejas, capelas, ermidas, altares - dedicados à Nossa Senhora em Portugal e nos seus
domínios ultramarinos. O primeiro volume, publicado em 1707, refere-se às imagens de
Nossa Senhora veneradas na corte e na cidade de Lisboa. O segundo, também de 1707,
dedicado às imagens do arcebispado de Lisboa. O terceiro, de 1711, compreende
imagens veneradas nos bispados da Guarda, Lamego, Leiria e Portalegre, sufragâneos
do arcebispado de Lisboa, priorado do Crato e prelazia de Tomar. O quarto, de 1712,
refere-se ao arcebispado de Braga. O quinto, de 1716, apresenta imagens veneradas nos
bispados do Porto, Vizeu e Miranda. O sexto, de 1718, com as veneradas no
arcebispado de Évora e nos bispados do Algarve e Elvas, seus sufragâneos. O sétimo, de
1721, possuía caráter de suplemento das imagens de que não se tinha inteira notícia e
por isso deixara o frei de referir nos seis primeiros tomos. Com os oitavo, nono e
décimo volumes entra-se, finalmente, nos territórios do além-mar. O oitavo, de 1720,
refere-se aos santuários da “Índia Oriental e mais conquistas de Portugal”, Ásia insular,
África e Ilhas Filipinas; o nono, de 1722, compreendia as imagens “aparecidas no
arcebispado da Bahia e mais bispado de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Maranhão e
Grão-Pará”; e o décimo, de 1723, com as imagens veneradas em todo o bispado do Rio
de Janeiro e Minas e “em todas as ilhas do Oceano, estando incluídas aí, Cabo Verde,
São Thomé, Príncipe, Tenerife”.
Dos santuários marianos, arrolados por Agostinho de Santa Maria cerca de
67,4% estavam em Portugal e de 32,5%, em territórios ultramarinos. Dos santuários
ultramarinos, 59% localizavam-se na América portuguesa. Do total de imagens
veneradas no ultramar ainda, menos de 2%, tinham títulos originais, isto é, que não
apareciam referenciados nos volumes sobre os santuários em Portugal39. A Senhora de
muitos nomes e mais ainda faces ganhou muitas moradas ao redor do ultramar
português.
Eram muitas as invocações marianas. No entanto, vale notar as invocações que
eram mais presentes quer no Reino, quer nas suas conquistas. Imagens invocadas com o
título de Conceição podem ser contadas 133 vezes, sendo em 68 santuários em Portugal
e em 65 no ultramar. Em Portugal, somente no arcebispado de Braga, a invocação
Piedade aparece mais do que ela, analisando os números de cada livro da obra

39
Não estou considerando aqui a simples justaposição da referência geográfica local.

17
separadamente. O título Rosário é o que aparece em segundo com 127 santuários. No
entanto, enquanto há equilíbrio expressivo entre reino e ultramar em relação à
Conceição, no que toca ao Rosário ele aparece 55 vezes em Portugal e 72 ultramar. O
dado torna-se mais interessante, se notarmos que no livro 8, referente à “Índia Oriental e
mais conquistas de Portugal, Ásia insular, África e Ilhas Felipinas” não há referência à
Conceição. Por outro lado, é a incidência de santuários na América portuguesa da
Virgem da Conceição que aproxima os números dessa invocação no além-mar aos do
Rosário, pois na região ela aparece em 51 santuários e é o único espaço ultramarino
onde a invocação Rosário, constatada em 45 santuários, não supera a da Conceição.
Fiquemos agora com a descrição de frei Agostinho de Santa Maria quanto aos
santuários de Nossa Senhora do Rosário. No tomo 8 do seu Santuário, Frei Agostinho
de Santa Maria dava noticia de uma imagem na vila Ugulim, porto de Bengala, no
convento de eremitas de santo Agostinho. Em 1601, em Bengala, os dominicanos
construíram uma igreja que consagraram a Senhora do Rosário. No convento dos
agostinhos de Mascate, no reino de Ormuz, eles também guardavam uma imagem, mas,
em 1647, a praça foi assaltada e tomada pelos mulçumanos que mataram, entre outros,
os quatro religiosos que estavam no convento, jogando, em seguida a imagem no fogo.
Mas como o fogo não tocava a imagem, segundo a crônica, jogaram-na fora. Alguns
cristãos sobreviventes do ataque, então, pegaram a imagem, puseram-na em uma
pequena barca e escaparam para a cidade de Goa, onde foi colocada na igreja do
convento de Nossa Senhora da Graça. No convento de são Domingos de Goa, “cabeça
da congregação oriental”, a imagem estava colocada na capela da nave.
A segunda paróquia da cidade era também a ela dedicada. Na aldeia de Navelim,
em terras se Salsete, foram os jesuítas os responsáveis pela colocação da imagem para
os nativos. Na ilha de Salsete do Norte, na vila de Tana, outra imagem era assistida
pelos dominicanos. Na povoação de Gulli, em Bengala, outra igreja lhe estava dedicada.
Na cidade de Chaul, no convento dominicano de Nossa Senhora de Guadalupe, fundado
em 1556, uma capela estava a ela dedicada e nela instituíram uma irmandade. Diz frei
Agostinho que as “maravilhas que ali se obraram foi tudo por favor da Senhora do
Rosário e bastava só para se esperar o bom sucesso daquela empresa [de conquista
portuguesa] o levarem consigo o estandarte e bandeira da Senhora para caírem vencidos
todos os contrário”, pois era “Maria só um exército terrível e formidável”. Na igreja da
residência dominicana da ilha de Caranjá, a imagem foi colocada por volta dos anos de
1560. Outras quatro imagens colocadas por dominicanos fecham as quatorze relatadas

18
por Agostinho de Santa Maria no volume 8 de sua obra: uma na igreja da residência na
fortaleza de Fete, em Monomotapa - Moçambique -, uma na capela do convento
iniciado em 1570 e a ela dedicado, outra na capela do convento em Manila e,
finalmente, uma em uma capela, com confraria, na fortaleza de Sena, em África40. Dos
quatorze santuários, oito eram, então, servidos por dominicano e, em dez relatos, o frei
explicita a ação de missionários que colocaram as imagens em seus respectivos altares.
Na América portuguesa, as irmandades do rosário não tardaram a se espalhar.
Julita Scarano, sem contestar que a irmandade do rosário tenha sido trazida pelos
jesuítas, acredita que poderia ter vindo com confrades saídos de Portugal, empenhados
em introduzir essa piedade41. Pela leitura da obra do frei Agostinho de Santa Maria,
percebe-se um grande contraste entre a ereção de santuários na América e nas porções
africanas e asiáticas portuguesas. Enquanto nessas, como já se demonstrou, a atuação
dos dominicanos e, ancilarmente de outras ordens, parece ter tido papel fundamental na
promoção das imagens, na América seria a iniciativa particular a cumprir papel decisivo
na construção de capelas, ermidas e altares. Dos 45 santuários, somente na descrição de
quatro há referência da participação de ordens. Por outro lado, em doze outros casos, há
menção a colonos que teriam mandado construir capelas, principalmente em suas
propriedades ou próximo a engenhos. Desses casos, oito dos referidos eram localizados
nas capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e do Sul, onde no total encontram-se treze
santuários dedicados à Virgem do Rosário42.
Sem distinções aos candidatos em um primeiro momento, os quadros das
irmandades puderam incrementar-se sem restrições. Mas aos poucos a noção de
exclusivismo confrarial foi se impondo e as confrarias do rosário na América
portuguesa alcançaram grande adesão no seio da população escrava, sendo muitas as
irmandades de negros fundadas ao longo do período colonial. Agostinho de Santa Maria
noticiou 28 santuários em que os pretos serviam, sendo 21 no arcebispado da Bahia,

40
SANTA MARIA, Agostinho de. Santuário Mariano [...]. Lisboa: Oficina de Antonio Pedroso Galvão,
1707 - 1723. p. 73 -376. v.8.
41
SCARANO, op. cit., p. 47.
42
No volume nono são anotados 147 santuários marianos na América, sendo 84 na capitania do Rio de
Janeiro, 40 na capitania de São Paulo, 13 na capitania de Minas Gerais, 5 na capitania do Espírito Santo, 4
nas capitanias do Sul, 1 na colônia do Sacramento. Segundo Eneas Martins Filho, a parte referente à
capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo contou com a colaboração do capucho frei
Miguel de São Francisco do Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, fornecendo informações.

19
região na qual o frei contou vinte e seis santuários do rosário43. Em vários dos que os
pretos participavam, informava-se que tinham sido eles a mandar fazer a imagem ou que
construíram a capela e que provinham os serviços necessários. Na maior parte desses
santuários, havia também uma confraria de pretos e, em seis casos diz-se que os
moradores vizinhos ou os “brancos” também tinham devoção à imagem, sendo que em
quatro santuários celebravam-se duas festas, em dias diferentes: uma promovida pelos
brancos e outra pelos negros. Vale ainda marcar que muito santuários, quer de
“brancos”, quer de “pretos”, não seguiam a data oficial da festa, isto é, o primeiro
domingo de outubro, determinado por Roma.
Para Caio Boschi, a multiplicação das irmandades do rosário tanto para brancos
quanto para negros facultava para esses últimos uma ampla absorção dos valores
culturais e espirituais europeus, ainda que tais espaços lhes trouxessem elementos
nodais da sua cultura44. Através das irmandades do rosário, os negros na América
portuguesa rearticularam suas crenças, reinterpretando os rituais de devotamento à
Virgem e ao seu colar de contas. Segundo Megale, os negros usavam o rosário
pendurado ao pescoço e, ao final do dia, reuniam-se em torno de um tirador de reza e
ouvia-se nas senzalas o sussurrar das ave-marias e pais-nossos45.
Não foi, entretanto, só na América que Nossa Senhora do Rosário foi
identificada como devoção de negros escravos. Na virada do século XVII para o XVIII,
a irmandade de Nossa Senhora do Rosário, instalada na igreja do mesmo nome, em
Luanda, congregava pretos forros e escravos.
A fundação das várias irmandades, não só do rosário, ao longo do disperso
império colonial português, faz pensar sobre o lugar central ocupado por essas
instituições no cotidiano religioso colonial. Em todos os quadrantes, elas preencheram
inúmeras necessidades de culto, mantiveram viva a chama do catolicismo, erigiram
igrejas, empreenderam obras pias, garantiram enterramentos cristãos, assistiram aos
necessitados, substituíram, enfim, em diversos aspectos, a débil estrutura eclesiástica
que os portugueses estabeleceram no ultramar. Mas é possível pensar também que a

43
Encontram-se 132 santuários no arcebispado da Bahia, 45 no bispado de Olinda - Recife; 8 no do
Maranhão e 9 no do Grão-Pará., totalizando 194 santuários relacionados no volume nono.
44
BOSCHI, Caio. A religiosidade laica. In: BETHENCOURT, Francisco, CHAUDHURI, Kirti.
BETHENCOURT, Francisco, CHAUDHURI, Kirti. História da Expansão Portuguesa. Navarra: Círculo
de Leitores, 1998. p. 428. v. 2.
45
MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. 5a ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p.
431.

20
estrutura mais frágil na América portuguesa do que nos territórios de conquista da Ásia
e, em certa medida, mesmo da África, abriram espaço para a iniciativa particular em
maior grau. Por outro lado, o largo número de santuários marianos dedicados à Nossa
Senhora da Conceição sugere forte indício que, no Brasil, houve maior penetração da
cultura portuguesa, isto é, que a incidência desses santuários dedicados à Conceição
podem servir de índice para contrapor a colonização portuguesa na América, de um
lado, e a construção de enclaves portugueses na África e na Ásia. Enclaves onde a
estrutura eclesiástica podia parecer, à primeira vista, mais sólida, embora a colonização
fosse muito menos densa.
Com base nesses dados, arriscaria afirmar que enquanto Nossa Senhora da
Conceição era a Senhora do Reino, Nossa Senhora do Rosário foi a da expansão, ou
mesmo do império. Nossa Senhora da Conceição fora chave no imaginário da fundação
de Portugal e sê-lo-ia mais ainda, no século XVII, no complicado processo de
Restauração, após mais de meio século de dominação filipina. E Nossa Senhora do
Rosário, por seu turno, se entronizaria no Índico, nas partes da África e na América
portuguesa, sobretudo entre naturais da terra e os negros, espalhando-se pelos sete
mares e transitando de alto a baixo na escala das sociedades.

21

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