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No poema I de Poemacto, o que mais nos chama atenção é o canto, que aparece
tantas vezes ao longo do poema. A palavra canto pode não se referir a uma canção
propriamente dita, mas também pode se tratar de uma glorificação, uma narração épica,
como na Ilíada, onde os capítulos são divididos por Cantos. Neste aspecto, cantar é
contar atos grandiosos, como a narração da ira de Aquiles, no primeiro Canto da Ilíada:
“Canta-me a cólera – ó deusa – funesta de Aquiles Pelida,...”2. O canto é a expressão
máxima do poeta. É o grito apaixonado ou de ódio, é botar para fora tudo o que se sente.
O canto é um louvor.
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Doutorando em Estudos Literários e Interculturais na Universidade de Macau
Tradutor Chinês-Português, Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, Graduado
e Licenciado em Letras - Português/Chinês pela mesma instituição.
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Homero. Tradução: Nunes, Carlos Alberto. Ilíada. Canto I, pag. 9
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Na 1ª estrofe, o eu-lírico se mostra muito perturbado e inquieto: “Deito-me,
levanto-me, penso que é enorme cantar,”. É como se algo estivesse retido dentro de si e
tivesse a necessidade de se livrar. Cantar é mostrar: “Uma vara canta branco. / Uma
cidade canta luzes.”. A vara se expressa pela sua cor, o branco; a cidade se mostra
através das suas luzes. Assim como a vara e a cidade, o eu-lírico também quer se
mostrar, mas algo o impede: “Penso agora que é profundo encontrar as mãos. /
Encontrar instrumentos dentro da angústia: / clavicórdios e liras ou alaúdes /
intencionados.”, por isso, procura algum meio para atingir seu objetivo. Nos próximos
quatro versos o motivo do eu-lírico é esclarecido: “Cantar rosáceas de pedra no
nevoeiro. / Cantar o sangrento nevoeiro. / O amor atravessado por um dardo / que
estremece o homem até as bases.”. É o amor frustrado que o sujeito poético quer
expressar, a paixão descontrolada que desnorteia o indivíduo, representada pelo
nevoeiro que sangra, pois nada é visto claramente quando se está completamente
apaixonado. O dardo que atravessa o amor é a ferida sentimental, algo que aconteceu de
errado e culminou na decepção amorosa. É o que faz o homem estremecer e o nevoeiro
sangrar.
O eu-lírico engrandece as coisas com sua palavra, pois seu simples ato de dizer
torna-as supervalorizadas: “As casas são fabulosas, quando digo: / casas. São fabulosas
/ as mulheres, se comovido digo: / as mulheres.”. E assim como as cortinas “faíscam
como relâmpagos.”, o eu-lírico canta “as mulheres incendiárias”. A palavra
“incendiária” pode ser uma alusão ao desejo, mulheres cheias de desejo. Esta estrofe é
completamente dionísica, pois, por causa do sentimento de solidão, o sujeito poético
entrega-se totalmente a boemia, embriagando-se e “cantando as mulheres incendiárias”.
Sem muita consciência, e sob o efeito do álcool: “Canta a bebida em mim.”, o canto é
totalmente verdadeiro, sincero: “Veridicamente, eu canto no mundo.”.
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No ato de desespero, o eu-lírico se entrega à sua loucura, ao copo e a bebida que
cantam em sua boca, e com uma atitude totalmente passiva, diz: “Que falem depressa.
Estendam-se / no meu pensamento.”. Ele parece aceitar completamente a influência da
bebida: “Mergulhem a voz na minha / treva como uma garganta.”. É o álcool que o dá
força para falar, que o dá voz. É interessante notarmos a inversão que o poeta faz das
imagens de “treva” e “garganta”. A voz é mergulhada na treva que é como uma
garganta, e não o contrário, que seria mais fácil supor. Este jogo com as imagens é
muito recorrente na poesia de Herberto Helder, pois somente com a linguagem, muitas
vezes, não se é capaz de alcançar o que realmente se queria dizer. Como diz Octavio
Paz no seu texto Imagem do livro Signos em Rotação: “A imagem diz o indizível: as
plumas leves são pedras pesadas. Há que retornar à linguagem para ver como a imagem
pode dizer o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de dizer.” (pag. 44). Esta
inversão de comparação intensificava o sentimento do sujeito poético, sua angústia é tão
grande bebe descontroladamente, pois sua garganta é como se fosse um buraco sem
fundo, mergulhado nas trevas, porém, a intensidade é tal, que o que o sujeito poético
tem não e uma garganta, mas sim uma treva que se parece com uma. A voz que é
mergulhada pela bebida é a lembrança da amada, que é a causa da embriaguês, do
desespero que o atormenta: “Porque eu tanto desejaria acordar / dentro da vossa voz
na minha boca.”. A idealização da amada é tanta que ela é comparada coma essência de
uma estrela: “Agora sei que as estrelas são habitadas. / Vossa existência dura e quente /
é a massa de uma estrela.”. A comparação com a estrela também pode demonstrar a
distância do eu-lírico em relação à amada, que se torna inalcançável. E a vontade do
sujeito poético é viver para esta estrela, nos arredores, mantendo-a sempre perto:
“Porque essa estrela canta no sítio / onde vai ser a minha vida.”. A amada é tão
importante que se torna a própria vida do eu-lírico.
Na quinta estrofe, o sujeito poético pede a sua amada que continue a queimar
suas noites em honra ao seu amor. Não importa a motivação da amada, o eu-lírico
continua a idealizá-la mesmo sem ser correspondido, pois “o amor é forte” e está acima
da rejeição, mas o amor também é loucura cujas todas as portas nos conduzem ao seu
interior. Eis o porquê do desespero do sujeito poético, da solidão e embriaguês, do canto
desesperado, pois é a loucura que o domina, o amor sem controle. Nos próximos versos
desta estrofe, cada coisa canta um objeto, e o cantar é a função destas coisas: “As
cadeiras cantam os que estão sentados. / Cantam os espelhos a mocidade / a adjectiva
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dos que se olham.”, e o sujeito poético, cegado pela loucura que é o amor, canta o
próprio amor, canta na sua loucura desesperada e cega: “Estou inquieto e cego. Canto.”
Mas quem canta o eu-lírico é a morte, pois a função da morte e fazer morrer. A morte
chama pelo eu-lírico. Tudo canta. O ponto alto da estrofe culmina no último verso, que
é o ato de cantar: “É um canto absoluto.”
Bibliografia
Helder, Herberto. In: Poesia Toda. Assirio & Alvim. 1ª Edição, 1996.