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« No princípio foi o mito. Assim como o grande Deus inspirava as almas dos índios, gregos e
germanos, ansiosos por se expressarem, também agora volta a inspirar diariamente a alma de cada
criança.
Eu não sabia ainda como se chamavam os lagos, las montanhas e as correntes da minha terra natal, mas
já contemplava, ensimesmado, a superfície das águas, de cor azul verdoso onde reverberava a de quando
em quando um raio temeroso de sol.“ 1
“La marche est le moyen analogique d’atteindre à cette simplicité du langage et de l’être.” 2
Caminhar agrega, nas suas díspares instâncias e funções, a dimensão lúdica, o enxuto
prazer de caminhar, promulgado enquanto dimensão artística. Por um lado, caminhar hoje
capacita à “construção” da paisagem, em velocidade lenta5, contrariando as caraterísticas do
contemporâneo. Implica, por outro lado, a acumulação dos sentidos capitais, subjacentes às
argumentações dos autores anteriormente citados, entre outros. Perspetiva-se, hoje, a
caminhada na aceção do artista que em pleno ato introspetivo, operacionaliza vidência
desconstrutiva (e edificativa), no contexto de uma estética qualificadora da vida humana na
cidade que o absorve.
O ato de caminhar ajusta-se à responsabilidade pessoal individuada, ao exercício comunitário
numa aceção societária. É decidido sob condições racionalizadoras e/ou define-se por razões,
mais estritamente instintivas ou pulsionais, assumindo caraterísticas exortadas por quem
interprende a caminhada. Ao evocar o ato de caminhar, este é localizado, quase de imediato a
uma visão idealizada, no seio da natureza, ainda que tal ato se desenhe amiúde em cenários
urbanos ou campestres díspares.
A Paisagem, com ou sem imagens deliberadas em obra ou palavra de autor, carrega e
aprisiona sempre alguma imagem de paisagem em modo pretérito imperfeito do subjuntivo:
se a paisagem tivesse imagem…se a viagem entrasse dentro da paisagem…se a memória
agarrasse a paisagem fluída, fugaz da viagem, se o pensamento quisesse imagem duradoira da
paisagem… Enunciam-se incertezas comuns; listam-se desejos; quase se afirmam
L’Harmattan
probabilidades singulares, manifestam- se sentimentos e razões; formulam-se convicções que
são, muito por certo, incredulidades; confessam-se dúvidas: eis os reinos do modo pretérito
imperfeito do subjuntivo.
A duração da caminhada, o ritmo desregulador da marcha (que acompanha o ritmo
cardíaco, tanto quanto o da alma) obriga ao estado de uma vivência distinta do que seja
“ficar”; é lentidão e quietude. O que o corpo diz de é e está (em devir e mudança?),
pertencendo de forma distendida a cada segmento de espaço onde se move, onde
normalmente, se respiraria em aceleração e trânsito. Todavia, a efemeridade resiste à demora
e à duração, esvaindo-se inexoravelmente numa pertença que se redime apenas caso o sujeito
seja capaz de se instaurar. O vento, as nuvens ou o céu parado em cor, enxotam o efémero,
celebrando-o pois se assumem os elementos primordiais (que estão e são na paisagem) como
matéria consubstanciada e identitária de sua natureza.
6
RUBEN A. (1992) O mundo à minha procura. vol.I, Lisboa: Assírio & Alvim, p.62
confluências de imaginário e real definem o humano, onde paisagem e natureza entrelaçam
vidas.
“Desenho a casa no meu caderno de apontamentos e, os meus olhos despedem-se do telhado
alemão, das vigas e fachadas alemãs, de muitas coisas íntimas e familiares. Uma vez mais sinto
um amor intensificado por tudo o pátrio, porque se trata de uma despedida. Amanhã amarei
outros telhados, outras cabanas. Não deixarei aquí o meu coração, como se diz nas cartas de
amor.”7
7
HESSE, H. (1978) p. 10
se revia no ato e na ação de teor performático. Por outro lado, a atuação surge conduzida por
seres invisíveis que se desprendem e alastram no ambiente dos caminhos, nos passeios, no
ateliê, instaurando suspensões do real.
…Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível 8
8
HATHERLY, A. (2007) “O que é o espaço?”, O Pavão Negro- Lisboa: Assírio & Alvim, p.37
9 PESSOA, F. (1942) “Hora Absurda”, Poesias. Lisboa:Ática (15ª ed. 1995), p. 21.
Não se trata de uma manifestação do intrínseco singular, não é uma afloração de um qualquer
dimensionamento interior, autognósico. Tampouco é apenas um silêncio, no que seja a aceção
mais logística ou pragmática do termo. Confunde-se, todavia, a ausência/suspensão de
realidade com a situação de silêncio extremo, compulsivo, radicado nos territórios do
imaginário, povoados por interpretações sobreponíveis, abraçando a consignação do silêncio.
Na realidade, os desenhos, as pinturas, as fotografias são sempre “mudas” e insonoras na
maioria dos casos. O que não significa ausência de conteúdos que sistematizem “conversas” ou
pensamentos que se “ouçam”. Os sinais, os símbolos, os ícones são calados mas não tácitos:
10 PAVESE, C. (1997) “Mania da solidão”, Trabalhar cansa. Lisboa: Ed. Cotovia, p.73
11 MAFFESOLI, M. (2016) La parole du silence, Paris: Les Éditions du Cerf, p.52
12 RILKE, R.M. (1978) “Le silence uni de l’hiver”, Verger – suivis d’autres poèmes français. Paris: Gallimard, p.71