Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Introdução
As profundas transformações econômicas, políticas e sociais em curso no mundo
capitalista, particularmente aquelas que se acentuam desde a crise dos anos 70 do século
passado, incidiram de forma brutal nos modos de vida das classes trabalhadoras. Não foram
poucas as ofensivas do capital que afetaram as condições materiais de vida, a cultura, as
subjetividades e as ideologias de esquerda, produzindo um esgarçamento das identidades
classistas e uma tendência ao apagamento dos antagonismos que se expressavam nos distintos
projetos societários em disputa.
Nesta década da restauração da hegemonia burguesa (Braga, 1996) e das ideologias
da contrarreforma (Mota et ali, 2010), as estratégias de manutenção da ordem combinam a
modernização das formas com o transformismo das respostas às necessidades sócio históricas
das classes subalternas. Em outros termos, as classes dominantes potenciaram suas estratégias
de dominação, e, para atender as exigências que o grande capital necessitava como alternativa
de saída a sua crise, apropriou-se de inúmeras bandeiras de luta dos trabalhadores, dando
sentido e direção às suas reivindicações históricas.
Este movimento operou uma estratégia das mais exitosas dos dominantes e contou, na
América Latina, com as experiências de governos progressistas que foram eleitos a partir dos
1
Professora associada do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail para
contato: angelaufpe@yahoo.com.br
2
Professora titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail para
contato: bmota@elogica.com.br
anos 2000, os quais, de uma forma geral, a despeito dos discursos de enfrentamento ao
imperialismo e das pautas progressistas que abraçaram, acentuaram as políticas de
desregulamentação e flexibilização do mundo econômico e do trabalho, responderam às
necessidades do capital financeiro e se adequaram aos imperativos da nova divisão
internacional do trabalho.
É inquestionável que estes governantes também investiram no campo social, e, sob o
argumento das possibilidades de conciliar desenvolvimento econômico e desenvolvimento
social – sem romper com os fundamentos do capitalismo e seus novos padrões de acumulação
– realizaram mudanças que favoreceram expressivos segmentos das classes trabalhadoras nos
seus países. E assim, também puderam se legitimar e trazer para as suas hostes, intelectuais,
dirigentes sindicais e de movimentos sociais, que nas instituições como também nos
parlamentos os apoiaram nas mudanças fundamentais e na disseminação de ideias e de uma
cultura de enfrentamento da pobreza e das desigualdades pela via de mínimos sociais e
políticas sociais compensatórias, as chamadas políticas de transferência de renda.
Nestes países, o desenho desse modelo denominado neodesenvolvimentismo teve sua
base de sustentação naquilo que Castelo (ano) denominou como sendo o “social-liberalismo”,
conceitos que, na prática, não abandonavam os pilares fundamentais do capitalismo, mas
imprimiam uma face humana às problemáticas sociais urgentes nesses países. Como afirma
Katz:
A maioria das administrações reagiu de forma parecida frente à recessão global,
combinando iniciativas keynesianas de reativação com políticas austeras de
equilíbrio fiscal. Esta regulação estatal tem feito contrapeso à crise, mas não
apresenta um tom antiliberal definido (Katz, 2011,79).
3
Conferir em Harvey, 2014.
ambiental, dentre outros elementos, foram aprofundados e ampliados, exigindo-nos uma
permanente compreensão e análise dessas mudanças.
Os elementos contraditórios que emergiram da programática neoliberal e,
consequentemente, do projeto societário global que se pretende universalizar, mobilizou
correntes de pensamento em toda América Latina no sentido de elaboração e difusão de uma
posição crítica ao neoliberalismo. Todavia, a alternativa, patrocinada por grande parte dos
governos considerados progressistas, se faz mediante a proposta do neodesenvolvimentismo,
cuja máxima de tal pensamento e ideologia centra-se na defesa do crescimento econômico
com redução da pobreza, através das políticas compensatórias.
Sob essas condições, articula-se uma nova ofensiva ideológica dirigida à periferia do
capitalismo dependente, onde se reforçam valores e concepções relativas às possiblidades de
mobilidade social, ao aumento do consumo da nova classe média que emerge dessa etapa de
desenvolvimento, ao crescimento do emprego formal, às oportunidades de qualificação da
força de trabalho, dentre outros.
Os argumentos dos defensores dessa proposta social-liberal4 acreditam na reversão da
contrarreforma do estado, sob a miragem de que é possível mudar, por dentro e
negocialmente, a privatização do estado e ampliar sua intervenção pública através do
fortalecimento das políticas sociais, especialmente as de saúde, previdência e educação, sob o
argumento de que ainda estão em disputa as diretrizes das reformas neoliberais já
consolidadas.
Por outro lado, as conjunturas concretas em que se inserem tais proposições estão
inseridas na dinâmica capitalista mundial contemporânea, cujo contexto é de intensa
austeridade orçamentária, cortes nos gastos públicos, ampliação da acumulação por
despossessão, ondas de desqualificação profissional, consolidação do desemprego permanente
e aumento da desigualdade social.
No Brasil, os recentes cortes orçamentários promovidos pelos governos do período
Lula da Silva e Dilma Roussef tiveram fortes impactos nas promessas de fortalecimento das
políticas sociais e na geração de emprego. Em setores estratégicos da economia, responsáveis
por impulsionar o crescimento econômico, os reflexos das medidas de ajuste foram visíveis, a
exemplo do que ocorreu nos setores naval e da construção civil.
Os milhões de trabalhadores desempregados, atraídos pelo ideário de mudança nas
condições de vida e de ascensão social, agora engrossam a superpopulação relativa, diante de
4
Para um exame mais completo sobre essa discussão ver Castelo, 2013.
um processo de fratura econômica e política, sustentada pelo consentimento ativo, traço
marcante desses governos.
A configuração do Estado social-liberal nos termos de Castelo “muda apenas os
aspectos do neoliberalismo para preservar a sua essência” (Castelo, 2012, p. 122). Na
verdade, a despeito de todos os indicadores positivos que são ressaltados como resultado do
desempenho da economia, permaneceram intactos os pilares que dão sustentação à
reprodução ampliada do capital.
A superexploração da força trabalho e as constantes denúncias sobre as condições de
vida e de trabalho daqueles empregados no setor da construção civil - uma das maiores
alavancas dos programas governamentais -, por exemplo, são ilustrativas de que o rentismo e
a concentração de renda caminham a contrapelo das reais condições de desenvolvimento
social. Segundo Duménil e Lévy (2014) os altos salários situados nas faixas mais altas de
renda aliados à renda do capital se constituíram instrumentos fundamentais para concentração
de renda durante as décadas neoliberais. Ao mesmo tempo, os dados oficiais revelam que, em
2014, 97,5% dos empregos criados no mercado formal de trabalho pagam até 1,5 salário
mínimo (Biancchi; Braga, 2015).
A formação de uma cultura de adesão e de consentimento do trabalhador reforçou a
tese de orientação gramsciana, exposta em Americanismo e Fordismo, de que a hegemonia
nasce da fábrica, havendo apenas a necessidade de uma quantidade mínima de intermediários
para se irradiar a todo o conjunto da sociedade. A rigor, a experiência fordista, base material
da ideologia americanista, expõe uma das expressões históricas mais significativas da unidade
entre a esfera da produção e da reprodução social, cujas questões centrais permanecem válidas
e fundamentais para compreender a atual dinâmica da acumulação flexível do capital e da
contrarreforma do Estado das classes dominantes.
Em suma: o que fica evidente é a incorporação, pelas políticas sociais, de uma série de
iniciativas que nascem das necessidades imediatas da produção capitalista, mas transitam para
a esfera do Estado, como necessidades de “toda a sociedade”. Representativa deste processo é
a ampliação permanente do exercito de reserva e do precariado5, determinados pela redução
de postos de trabalho e/ou “multifuncionalização” de tarefas – uma tendência da produção
capitalista stricto sensu – cujos trabalhadores “sobrantes” e “precarizados” se tornaram alvo
das políticas ativas de trabalho e renda ou de programas de transferência de rendas, sem que
se visibilize a determinação social desta metamorfose que, ao promover o apagamento da
5
Nos termos de Braga, 2012.
responsabilidade da empresa capitalista, constitui-se em objeto de políticas sociais financiadas
por contribuintes-trabalhadores.
Essa metamorfose é mediada por processos diversos – desde algumas ações no âmbito
das políticas de assistência social, até o crescimento do marketing social-empresarial,
passando pela racionalização de práticas que oportunizaram as parcerias público-privadas. É
fato que essa migração das necessidades das empresas para a esfera pública, evidencia a
“atualização” das necessidades do grande capital sob a aparência do atendimento às
necessidades do trabalho que, tendencialmente, transformam-se em objetos de atuação de
políticas e instituições sem deixar à mostra a relação com as estruturas que as determinam.
Portanto, não supõem uma relação em que estão implicados complexos econômicos, políticos,
ideológicos, culturais, enquanto uma totalidade concreta, a despeito de atenderem
necessidades reais que afetam as classes trabalhadoras no seu cotidiano de vida e trabalho.
Em outros termos, o que identificamos nesse processo foi o fato de que se assumiu o
princípio de que Estado e capital não são incompatíveis: ao mesmo tempo em que as
exigências de acumulação capitalista foram atendidas e os conflitos de ordem distributiva
foram apaziguados e despolitizados, considerou-se este movimento como expressão e
sinônimo da vontade coletiva e de ampliação do Estado.
Referências Bibliográficas
BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2012.
BRAGA, Ruy; BIANCHI, Álvaro. Hegemonia e crise: noções básicas para entender a
situação brasileira. Blog Convergência, 31 de março de 2015, disponível em:
www.blogconvergência.org. Acessado em 25 de julho de 2015.
LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. Dicionário Gramsciano. São Paulo, Boitempo Editorial,
2016.
NETTO, José Paulo. Posfácio. In: Coutinho, Carlos Nelson. Estruturalismo e Miséria da
Razão. 2ª Ed. São Paulo, Expressão Popular, 2012.