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a munição compro depois

a munição compro depois carla diacov

editora cozinha experimental


rio de janeiro
2018
índice

apresentação - 9
por Yasmin Nigri

efetuar pagamento - 17
graças a deus entre nós - 19
lhufas vão bem com vinho turvo - 21
hojendia - 23
a porca - 25
delivery - 27
nós nas bolhas - 29
todo o amor do mundo - 31
você que chega da padaria - 33
o aniversário dos minutos - 35
apareceu no sabonete verde - 37
a cidade foi cercada - 39
como sempre ali na beira - 41
guidom - 43
constantemente - 45
soledade anda pelo cais - 47
um jeito de dizer o corpo sem a carcaça - 49
vou comprar um rifle - 51
o dia em que Frida cortou a própria orelha - 53
é como dormir com um pão - 55
uma cadeira um prego um cego - 57
senti uma pausa - 59
um título que não chega ao coração - 61
sobe a anágua - 63
quando menino meu menino - 65
então um gesto idoso - 67
há nela o guanumbiguaçu da velhice - 69
embora esta noite pouca - 71
esganadura - 73
Apresentação
por Yasmin Nigri

Creio que, assim como todo filme contém


uma resposta à pergunta: o que é cinema? Todo
livro de poesia contém uma resposta à pergunta:
o que é poesia? Carla Diacov nos responde a esta
pergunta na primeira estância do poema “um
título que não chega ao coração”:

a coisa dita noutra pose


uma arma que serve a outros propósitos
a mala descarrilhada da viagem

Ao deslocar os entes de seus lugares circuns-


critos a poeta converte um hortifrutigranjeiro em
uma surpreendente e imprevisível trama de afetos
que constituem um indivíduo. A última estrofe do
poema nos oferta um convite:

veja bem
como é desnecessária a bula para perder a cabeça
em
pleno safári íntimo

9
Para entrar neste livro, ou “safári íntimo”,
basta estar disposto a rasgar as bulas e perder
a cabeça. Seguindo as recomendações, leitora e
leitor estarão aptos a embarcar no amanhecer de
um mundo indócil e virulento.
O belíssimo poema de abertura “nós nas
bolhas” apresenta um indivíduo não capturado
pelas regras sociais e, por conseguinte, as disso-
nâncias entre um comportamento adulto e
civilizado e um comportamento “selvagem”. Carla
faz uso de uma série de imagens escatológicas
para retratar comportamentos socialmente into-
leráveis (ou mesmo patológicos) após o processo
de socialização e de entrada na linguagem.
Escrito em primeira pessoa o poema diz:

como um bebê
eu haveria de passar pelos dias
...
esperar que cresçam unhas nas pontas dos dedos
e arranhar as gengivas
brincar com as pernas no ar
dar nós nas bolhas de baba
morder o dedo do médico
não enxergar a tradução no que dizem

10
vomitar no teu ombro
me cagar de dez em dez minutos
chorar só um pouquinho
engolir moedas
não enxergar a tradução no que dançam e cantam
ter os sentimentos cercados de barras

Acordos e normas só podem ser estabelecidos


através de uma linguagem compartilhada. Nesse
contexto, a palavra “tradução”, empregada duas
vezes no poema, poderia ser substituída pela
palavra “significado”. O desfecho do poema,
após enumerar uma série de ações violentamente
reprimidas após a infância, é resolvido da
seguinte maneira:

como um poeta
eu haveria de passar pelos dias

Os dois últimos versos, estância separada


do restante do poema, apontam tanto para o
trato com a língua, uma definição bastante
conhecida do que é poesia, quanto para um
horizonte capaz de dar voz e expressão aos
desejos; não só isso, neste poema, ser poeta (no
gênero masculino) aponta para a possibilidade

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de circular à margem, instaurar outros arranjos,
criticar os modos de ser e pensar o mundo.
Na obra, as relações se estabelecem numa
espécie de jogo entre desejo e violência, que agem
tanto de fora pra dentro quanto de dentro pra
fora. É curioso notar que neste jogo há lugar para
a ternura e também o humor, não por acaso, o
livro é permeado de imagens inusitadas. O poema
“vou comprar um rifle” ilustra este jogo:

essa merda é porque eu não consigo te


dizer que quando você some e reaparece
eu tenho ganâncias de ser porco-espinho sem
espinhos
também isso quer dizer que não
sei fazer balanços dos meus relacionamentos
comprar
mais pão
a munição compro depois
ou peço para o vizinho da tua prima

Outro lugar constantemente colocado


em cheque é o da normatividade, ora sendo
escancarada ora sendo desafiada pelas imagens
inusitadas que Carla utiliza. A arte, lugar das
múltiplas elaborações e possibilidades, encerra

12
justamente a compreensão de que cada um
enxerga aquilo que suas experiências possibilitam,
e quanto menor é a relação reflexiva que o
sujeito estabelece com as suas experiências mais
empobrecido fica o olhar diante do mundo. No
poema “a porca”, a poeta e também desenhista se
refere a uma de suas pinturas feitas com sangue
menstrual:

quem vê o gato no
desenho menstruado
também vê minhas combinações
com o vermelho usado
vê uns ovos quebrados e
quem não vê o gato vê
o pentagrama subliminar
o bruxedo aplicado com severidade e negligência
quem vê viado sapatão no
gato de sangue
vê o vermelho nos meus olhos
...

Desse modo, Carla vai desequilibrando a


dicotomia entre racional e irracional, homem-
dominador-superior versus natureza-dominada-

13
subalterna. Ao entrarmos na trama tecida por
Carla é inevitável que as verdades deem lugar
ao espanto. Neste projeto fascinante podemos
vislumbrar uma espécie de retrato borrado,
permeado por brechas e lacunas, por onde
entrevemos a trajetória de autoafirmação da
poeta.

14
efetuar pagamento

o peso desse lápis


não é o peso da certeza
em algum momento da vida
vou ser muito mais parecida com minha mãe
mais do que já sou
serei muito mais parecida com meu pai em algum outro
momento
serei muito mais parecida com uma vizinha que tive
vera me acordava com deus aos berros
serei muito parecida com o padeiro
em algum passo mais largo que esse
em algum espirro mais breve
serei parecida com a megera flor que vejo no vaso
com a água cheia de larvas
em algum momento da trilha serei
mais aquela que quero ser hoje
uma que não precisa se alimentar
uma que não usa roupas
uma que não desperdiça os olhos
os ovos os ombros os vasos
o peso desse lápis não é mesmo o peso da certeza
minha mãe está fazendo chá de alguma coisa
meu pai está em algum lugar escondido de tudo
em todo momento
meu pai está
em algum memento meu pai será

17
muito mais parecido comigo
e já o peso do lápis confere o documento que segue
meu pai então
protocolado

18
graças a deus entre nós

dar nome ao prato


com o resto da tarde
espinha de peixe e
mosca inteira
dar nome
porque devemos chamá-lo
porque estava era um
de nós à mesa
e nele o resto de tudo que não
foi digerido
dar nome pois
que nomeado terá chances
de ser magoado culpado trincado
cúmplice
um prato
desde o começo era ele entre
nós e deitamos do tudo sobre o
ódio e sobre as alamedas vazias
que em chulo dialeto
fizemos dos nossos almoços de domingo
graças a deus
graças a deus entre nós
espinha de peixe e
mosca inteira
seu apelido

19
lhufas vão bem com vinho turvo

alguém diz que o dia é baldio


basta a vibração das palavras para
que um homenzinho
alimente o gato
corte os cabelos
acarinhe o pensamento sujo
de pássaros
basta a vibração
para
que o chão esteja
para que o chão receba o rosto e os joelhos
do corpo que cai com a visão
mandalas na radiação solar
basta o sol embutido nalgum sentido
do dia baldio para que
alguém comece a salgar a carne
lavar as folhas
alguém diz que o dia é baldio
alguém diz lhufas vão bem com vinho turvo
alguém com alguém passa 11 horas num
elevador entre o sexto e o sétimo piso
fazem um filho ou uma saída
o dia é baldio
alguém cai duro no sofá de bambu
alguém espera que o dia baldio acabe
então basta

21
esperar para que a noite chegue
inculta
cabendo a tudo
o dia na noite com salada
sujeira de pássaros
lhufas um filho uma saída

22
hojendia

o mais suave do todo da brisa


entrava constantemente pela renda do vestido
ela pousava as mãos sobre os talheres
ela acontecia
como quando acontece
alguém morre de atropelamento
alguém morre com o coração atacado
ela cortava o filé vermelho
ela cortava
como quando corta o dia
faz duas noites inteiras
agora é bicho hojendia esfomeado
ela engole a vida em estado de hojendia
como quando engolia
cuida a casa como cuida a gula
dorme com a sede intacta
sonha com vida afiada
volta como volta a pluma preta no cru da penteadeira
o mais suave do todo da brisa desde
quando a renda

vez em quando o terno ciclo e acontece


quase todo o dia como quando corta o dia
plumando bocas em estado de hojendia no filé de
[mãe-da-lua

(onze noites inteiras)

23
a porca

quem vê o gato no
desenho menstruado
também vê minhas combinações
com o vermelho usado
vê uns ovos quebrados e
quem não vê o gato vê
o pentagrama subliminar
o bruxedo aplicado com severidade e negligência
quem vê viado sapatão no
gato de sangue
vê o vermelho nos meus olhos
noturnos aflitos gordos
vê os planetas intrometidos
nas minhas datas
minhas frases e fases intrometidas
nos palavrões
vê a música que minha avó
cantaria hoje vê meu pai
preocupado com a primeira vez
que deu gato em mim vê o gato
quem não vê
uns ovos inteiros desperdiçados
vê a filha que seria a filha com
o nome da avó da mãe dela
não vê o gato quem vê antecâmara
não vê o gato quem vê a porca

25
vê o gato quem fecha os olhos para
o azul vê o gato chinês em 1975
vê um museu e uma rodoviária vê
uma mosca o nome da freira o nome
do toureiro o nome da cantora o nome
da poltrona do marinheiro
que eu seria até o dia em que
deu gato pingado no jeans na escola
na blusa do uniforme amarrada na cintura
ou mais depressa
quem decifra o sorriso da sardinha
na goela do gato vê o marinheiro
a cantora a freira vê a poltrona
o toureiro injuriado na biografia da minha neta

26
delivery

o mendigo disse que hoje seria


o dia
disse que eu seria contemplada
disse que eu tinha cara de gente
que descama
eu disse todo mundo troca de pele
o mendigo limpou o nariz
disse que eu tenho cara
de gente que se reimplanta
você tem cara de gente que se mutila
você tem cara de gente que se masturba
você tem cara de gente que se deturpa cara
de gente que custa reflorescer
você tem cara de gente que muito se poda
nas piores temporadas
disse que hoje é o dia
serei contemplada
mas já?

27
nós nas bolhas

como um bebê
eu haveria de passar pelos dias
sentir cócegas nos ossos
não enxergar a tradução dos letreiros
subir as escadas pelos olhos dos outros
engatinhando para apanhar o frasco de aspirinas
os ansiolíticos
vomitar no álbum de lembranças que não são minhas
esperar que cresçam unhas nas pontas dos dedos
e arranhar as gengivas
brincar com as pernas no ar
dar nós nas bolhas de baba
morder o dedo do médico
não enxergar a tradução no que dizem
vomitar no teu ombro
me cagar de dez em dez minutos
chorar só um pouquinho
engolir moedas
não enxergar a tradução no que dançam e cantam
ter os sentimentos cercados de barras
e tomar um bom trago de vodca barata no fim da manhã
antes da papinha cheia de saliva da mamãe

como um poeta
eu haveria de passar pelos dias

29
todo o amor do mundo

tomar uma dose


uma direção
uma postura incômoda
uma dose da pior cachaça
olhar o azulejo trincado do bar
ver e não ver o mapa
ver e não ver a árvore antepassada
tomar outra poção
olhar o outro azulejo
um novo inteiro e branco e ver e não ver
tomar uma garrafa por culpa irmã
uma que possa me dizer que a porta do banheiro
faz portal para um manicômio em 1888
onde me esperam com todo o amor do mundo

31
você que chega da padaria
e traz pão e salame e o queijo de nome impronunciável
você que diz todas as árvores do caminho
você que diz
com tanto carinho com toda propriedade
todos os fogos do caminho você
que toca a maçaneta aprisionando teu próprio rosto
você que põe a toalha com o bordado para baixo
canta a música inventada puxa meu braço e
minha dança torta você que
apanha a faca e os copinhos você

que não sabe o que eu fiz enquanto você chegava

33
o aniversário dos minutos

no fundo do raso do mar


está a cara verdadeira
o retrato é ancestral
é uma tomada de reconhecimento
é uma tomada de negação
o andamento é manso
ereto aberto
a cara não é triste ou alegre
é manifestante
é uma tomada de reconhecimento
é uma tomada de negação e reconhecimento
é a momentânea falência dos olhos
estou
e com os braços de espinhos volto a lavar o rosto a louça
fecho o mar porque o outro recipiente
à mesa não pode perceber o aniversário
dos minutos

35
apareceu no sabonete verde
a cara de uma senhora que não me é
estranha
anoto o evento no bafo da janela
saio do banho com o sabonete na mão direita
não me enxugo
agora tudo tanto
desde o registro aberto tudo não me é estranho
o sabonete está ali
opera mínimos milagres em seu nicho de toalha de rosto
sabonete
senhora
janela
mão
registro
milagres
nicho
toalha
ergui um forte entre minhas suspeitas

37
a cidade foi cercada
e vem a noite
e de milhares de leões
um
a cidade foi devastada
e de milhares de barrigas
uma
e vem a manhã
o mar arredou
há uma concha trincada
debaixo de tão pequeno pé
há séculos a cidade sangra pelos teu canais
porque a poeira
que sempre vaza os lençóis
assim desejou
a cidade foi inundada
também
pelos teus canais
agora a noite precisa ser mentida

tão pequenos os pés os ovos tão moles


tão perfeitos os talos
desfigurado o ombro
tão limpinhas as cuias a cidade o leão e o peixe

39
como sempre ali na beira

seduzir as sardinhas
como sempre ali na beira
ali na noite clara demais
ali na palestra da fogueira
desembrulhando as mãos vazias
espantada nada com as aves mortas
as aves mortas do dia
as orelhas envelhecendo junto do mundo natimorto
respirarespira ainda respirando natimorto ladrilho
[molhado
uns olhos fritos de viver jorradas as sardinhas
a carne solta do couro tudo com céu por cima
que aberração
seduzir sardinhas
cair no sono da areia fresca
pedir talheres ao chinês do sono
voltar e seduzir outras espécies
que aberração o fogo sempre metido na sedução
amanhecer com palitos do oriente entre os dedos
o peso da mão e a corrente
sede frutos com garras e
cinzas de um mês passado ontem
digna aberração
cercar de mar um beijo desesperado
seduzir girafas marinhas

41
guidom

essa bicicleta
que muito se assemelha a um vulcão em plena erupção
foi construída depois da finalidade do uso que se faria
[dessas rodas nela
essa bicicleta
que muito se assemelha a um balcão de estiramento
seria necessária depois da fundição dos nossos carinhos
depois da ideia bicicleta que arranquei da tua boca
esse clarinete
que muito se assemelha a um colóquio emburrado
foi destituído do cargo clarinete
logo após a desobediência sonar civilizada
estou a dizer-te
meu amor
com tanto cafuné nos conceitos
que eu não sei andar de bicicleta

43
constantemente
a xícara pergunta pelo céu
escrevo isso porque
confere-se
porque
ao se conferir
confere-se
quero mesmo é comover teus trígonos
tygertyger
constantemente o ponto de ônibus
é invadido por criaturas com muita
lã nos gestos ensopados
constantemente o edifício ao lado é
desmedido por pombas atiçadas
constantemente as xícaras também estão em
línguas em outros apartamentos constantemente
o céu faz falta no peso do corpo de cima
constantemente os tigres se
desafiam a viver como lésbicas
constantemente vibrantes e ensolaradas
tygertyger teus trígonostyger

45
soledade anda pelo cais
caminha as retas olhando os pés
segue as retas dos pés ao pássaro
pinta navios da cor do sexo pinta
penas da cor das cordas no cais
soledade chega devagar

navios se deixam enfileirar


meninas se permitem entrincheirar
ovos se deixam morrer em paz

soledade é feita às mãos

47
um jeito de dizer o corpo sem a carcaça
do outro cadáver uma maneira de calar o mundo sem
calar os golpes do mundo de fora do
mundo de dentro e um copo virado sobre a mesa
prendendo a barata sem prender o amor por ela
o amador a amadora o adorável verniz que não que nunca

diz-se cu sem que o cu esteja sem que o cu pulse junto


da fonte
escolhida a dedo para o cartaz da profissão

49
vou comprar um rifle

vou comprar um rifle


a munição compro depois
quero um rifle na parede
de frente para a cadeira de balanço
vou pedir para o vizinho da tua prima instalar ali
de frente para a cadeira de balanço
aos domingos vou me vestir de bijuterias
balançar a vida anotar qualquer coisa no
papel de pão olhar o
rifle e cantar uma dessas ladainhas católicas
veja você
essa merda é porque eu não consigo te
dizer que quando você some e reaparece
eu tenho ganâncias de ser porco-espinho sem espinhos
também isso quer dizer que não
sei fazer balanços dos meus relacionamentos

comprar
mais pão
a munição compro depois
ou peço para o vizinho da tua prima

51
o dia em que Frida cortou a própria orelha

ouvi ali que somos


fugitivos todos somos
fugitivos
a formiga foge o gato foge o pato
fugimos nós
ali gritam caçadores
também fugitivos
SOMOS TODOS UNS AMORES
o gato foge para a morte
e me escapam uns rifles e umas flechas degeneradas
e descobrimos mulheres desaparecidas

o jacaré foge a abelha foge a vespa


a gralha fode a gralha fode a gralha

53
é como dormir com um pão
sobre o olho direito
acorda-se
que faz o mundo
além de denunciar o homem e a porcelana
com o café já tão frio?
que faz o dia
além de facilitar a volúpia entre pombos da mesma
[tonalidade?
que traz o dia
além da oportunidade em estar à pia com a faca
com a cebola
com o mapa astral?
que traz o dia
além da narração inversa do passante cheio de sinônimos
[na boca?

55
uma cadeira um prego um cego um
monge e três maneiras de ler o acidente:
um monge dois pregos
o estofado um trapo de roupa íntima
ninguém sabe o sexo do pano
e mais uma maneira de ler
o acidente:
uma chaleira
que foi colocada na fogueira
sem que o sexo se fizesse percebido
a cor que pode ser sangue que pode ser merda
um nome apregoado sem que o pano:
uma planta um jarro e
qualquer maneira de deixar que o acidente seja:
meio chumaço de algodão doce
uma boneca sem os braços
uma poltrona sem uns baços
todo o estofado de todo o acidente e
todo o tempo na ponta do prego:
ninguém sabe falar o acidente sem
derramar o doce estofado:

57
senti uma pausa
na configuração do nome da flor
entre os teus dentes
sinto que isso revela
e que não importa o mistério revelado
importa o tiro no éter importa a pausa
a conotação do espinho o espanto suave
importa sentir a pausa
importa atravessar a mata proposta entre tuas orelhas
importa me debruçar na rocha final sem me fazer
[percebida
pela revelação

59
um título que não chega ao coração
a coisa dita noutra pose
uma arma que serve a outros propósitos
a mala descarrilhada da viagem

a gente diz
perder a cabeça
como se fosse
água-viva
como se não
as letras do título
espalhadas no saguão do sanatorinho

veja bem é o título

veja bem
como é desnecessária a bula para perder a cabeça em
pleno safári íntimo

61
sobe a anágua

o trovão quebra o vento


mentira
o vento e o trovão quebram a duração
o trigo traduz o movimento errado com o propósito
ingênuo
mentira
dentro do pão a forma da boca que não tem língua
mentira
num trovão todos os coices da égua da noite
mentira
mentira tudo mentira
sai a duração o trovão
fica um coice
a língua
equilibra o vento
nunca o trigo jamais a tradução
mais mentira e volta o trovão

cai a luva

63
pro Rolim.

quando menino meu menino


pisou uma galinha morta
chorou três dias seguidos
pendia
o corpo pela janela azul
chorava mole
corrompia o azul sem saber do corromper
com choro tinha culpa sem saber que era de nada
culpado pendia da cadeira
os pés assassinos com pés de cadeira rija
corrompeu a cadeira
que nunca pisaria galinha
e assim
baby
pendi o pescoço na tua infância
roubei umas molezas dos teus culpados braços
matei com a minha aquela galinha

era ela ou eu sem esta fotografia

65
então um gesto idoso

ainda que a vitória perdida


nalgum canto a medalha
então agora pertencente à gaveta e às meias
recordasse a linha até aquele momento estranho

então uma declaração de guerra


e então um grito no fim da boca então
cheia de meias mordidas a bandeira da paz

então era isso de envelhecer entre o banheiro e a cômoda


então um gesto
de gesso
e uma guerra sem bocas nela

67
há nela o guanumbiguaçu da velhice
nela é puro
porque desaba na frente de tudo
quebra as asas no ferro dos sinos
sem pancada
digo
do aviso

a guerra sim a guerra


alguém sabe que não falo do fronte nem das barricadas

que época excêntrica


excêntrico falar de aves
com adesivos de adormecer omoplatas

justamente nas omoplatas


morar ruim é não ter corpo adequado ao fronte
pensar ruim é não ter capacidade de barricada entre os
sinos

praise the lord and pass the ammunition

à merda à merda
que gente besta que a gente é
justamente entre omoplatas

69
embora esta noite pouca
o corpo entre a faca e o boi
tão agressivo um rumor de filhote
tão sucessivo o couro da vaca com mesa por sobre
inda isto tanto
cantam ali
faz a mania moderna
sangrar a dizer até dormir com
amigos e fogueiras
um ou dois amores embora o corte entre as
pernas embora as pernas
supostas poucas asas

que absurdo
absurdas papilas
pouca crueldade
absurdo absurdo

71
esganadura

com a escuridão entre os dedões


dos pés
sentiu pela primeira vez
comunhão com o mundo
fez questão
ali mesmo
com escuridão entre os dedões
oblíqua questão de ser
um corpo
apesar da comunhão
um corpo com um pássaro atravessado
da ideia pássaro e da
religião pássaro
apesar de ser
envergadura
fez assim
asas com as mãos
pássaro sob os dedões
fome sede tonalidades fome e sede

73
Editora Cozinha Experimental

Editores Responsáveis
Marcelo Reis de Mello
Germano Alberto Patel Weiss

Revisão
Marcelo Reis de Mello

Projeto Gráfico
Germano Alberto Patel Weiss
Barateza Duran

Produção Gráfica
Oficina do Prelo

D537m

Diacov, Carla.

A munição compro depois / Carla Diacov. — Rio de


Janeiro: Cozinha Experimental, 2018.

76 p. ; 18 cm.

ISBN 978-85-919089-8-1

1. Poesia brasileira. 2. Poesia: século 21.

CDD: 869.1
Este livro foi composto em Adobe
Caslon Pro 11⁄14. Miolo impresso
em papel Pólen Bold 90g/m² e
capa impressa sobre cartão Cartão
Triplex 250g/m² pela gráfica Psi7,
São Paulo, para Editora
Cozinha Experimental.

Rio de Janeiro, inverno de 2018.

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