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REITOR
VICE-REITOR
A Psiquiatria do DSM
PÍLULAS PARA QUE TE QUERO
13 PRÓLOGO
15 INTRODUÇÃO
25 PARTE 1 – A DINÂMICA DO CAMPO PSIQUIÁTRICO
25 1. Medicalização e Desmedicalização: aspectos conceituais
25 Breve Histórico da Medicalização
31 A Saúde como Ideal de Bem-Estar e a Medicalização
35 Desmedicalização: a contraofensiva democrática
1
Constituída por minha orientadora, Prof.ª Jane Russo, e pelos professores examinadores Benilton
Bezerra Júnior, Octavio Domont de Serpa Júnior e Ana Teresa Venâncio, aos quais agradeço as “boas
leituras” – apropriando-me da feliz expressão de Hillis Miller.
2
Sob a supervisão da Prof.ª Maria Cristina Lavrador, a quem devo o incentivo em meus primeiros
passos acadêmicos.
1
A nosologia (do grego nósos = doença; logos = palavra, vocábulo, discurso, doutrina) é a parte
da medicina ou o ramo da patologia que trata das enfermidades em geral e as classifica do pon-
to de vista explicativo (isto é, de sua etiopatogenia). Enquanto a nosografia as ordena desde o
aspecto meramente descritivo (graphos = descrição).
2
Décima edição da Classificação Internacional das Doenças (CID), elaborada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS, 1993), e quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos
Mentais (DSM, sigla do inglês: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), elaborado pela
American Psychiatric Association (APA, 2013).
3
Redução e eliminação são os dois extremos de um mesmo espectro referente à relação entre teorias.
Uma teoria pode ser reduzida por outra mais abrangente, havendo sobreposição entre ambas – seja
homogênea (como na redução da lei do movimento dos corpos terrestres, de Galileu, à física newto-
niana), seja heterogênea (como na redução da termodinâmica à mecânica estatística). É possível, tam-
bém, que uma teoria prévia seja eliminada, devido à sua falsidade, por outra mais abrangente; nesse
último caso, ao invés de redução, tem-se a eliminação (que demarca um corte, uma ruptura, uma
escansão entre duas teorias – como a substituição da mecânica aristotélica pela mecânica clássica).
Conforme Jurandir Freire Costa, a psiquiatria biológica pretende “(...) ser um discurso totalizante sobre
a ‘natureza do sujeito’. Neste caso, qualquer fisicalismo pode tornar-se reducionista e eliminativista.
Reducionista porque afirma que todo enunciado não fisicalista da vida mental pode ser desdobrado
em enunciados quantitativos e equiparado a leis nomológicas predizíveis e controláveis experimen-
talmente. Eliminativista porque afirma que todo enunciado mentalista sobre o psíquico, nas ciências
humanas ou na psicologia popular [folk psychology], pode ser substituído, sem perda de sentido e
eficácia instrumental, por enunciados fisicalistas” (In SERPA Jr., 1998, p. 12).
4
“Bilhões de dólares gastos em pesquisas falharam em produzir evidência convincente de que qualquer
transtorno mental seja uma entidade nosológica distinta com uma causa única” (Frances, 2013, p. 19).
5
Saulo Araújo, em Psicologia e Neurociência, aborda criticamente os riscos da pretensa elimina-
ção da folk psychology, proposta por filósofos da mente anglicanos de tradição materialista, em
favor de uma teoria compatível com os avanços das neurociências. Apesar de ser simpatizante da
proposta fisicalista e de apostar em uma “ontologia predominantemente materialista da visão de
mundo científica”, que procura “no cérebro a extensão dos conceitos psicológicos” e que aposta
“na identidade entre eventos cerebrais e eventos mentais” (Araujo, 2003, p. 61), esse autor conclui
seu trabalho com uma ressalva antieliminativista: “(...) não temos o menor motivo para aceitar a
subordinação da psicologia à neurociência (...) Tendo em vista as atuais circunstâncias, a eliminação
das categorias da folk psychology e sua substituição por termos referentes apenas a eventos e pro-
cessos cerebrais representariam uma restrição injustificada e equivocada tanto do objeto quanto
do método da psicologia” (Ibid., p. 64).
6
Tal ideia aproxima-se da noção de “bioidentidade”, de Jurandir Freire Costa, O Vestígio e a Aura (2004).
7
Trata-se aqui da “novidade” fabricada pelas indústrias farmacêuticas e, portanto, falsa, advinda dos
chamados “medicamentos de imitação”, que constituem o seu principal negócio. Cf. Marcia Angell,
A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos (2007).
8
Na língua inglesa, a sutil distinção semântica entre disease e illness aponta para uma distinção con-
ceitual, respectivamente, entre doença concebida como entidade biológica universal e formas de
experiência e interpretação cultural dessa experiência que ocorre em indivíduos e grupos sociais.
De modo geral, as categorias psiquiátricas são illness, e não diseases. A opção do DSM pelo termo
dis-order (traduzido por “transtorno” ou “distúrbio”), dado seu prefixo, parece sugerir aí uma organi-
cidade, em sua pretensão velada de tomar as categorias psiquiátricas como dis-eases. Curioso que
em sua série aliterativa, a definição de mental disorder requer a presença de distress, disability, dys-
function, dyscontrol e/ou disadvantage – demarcando claramente uma visão deficitária de doença,
oriunda do saber biomédico, apesar da maquiagem semântica.
9
Isso corresponde ao que Foucault define como biopoder: “aquilo que faz com que a vida e seus
mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de trans-
formação da vida humana” (1984, p. 134). O biopoder teria um dos seus pólos reguladores centrado
na população e outro centrado na “anatomopolítica do corpo humano” via tecnologias disciplinares.
Trata-se da invenção, no século XVIII, de “tecnologias positivas de poder”, surgidas a partir da substitui-
ção do modelo de intervenção sobre a lepra (segregacionista e marginalizador) pelo modelo da peste
(inclusivo e normalizador) – Cf. aula de 15 de janeiro de 1975, em Michel Foucault, Os Anormais (2001).
O biopoder é o operador primordial da vida nua (zoe), que apaga os traços da vida qualificada (bios) na
contemporaneidade, para usar as expressões de Giorgio Agamben, Homo Sacer (2002).
MEDICALIZAÇÃO BIOMEDICALIZAÇÃO
Controle Transformação
MEDICALIZAÇÃO BIOMEDICALIZAÇÃO
10
“Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of
disease or infirmity”. Documento disponível em: <http://www.who.int/governance/eb/who_constitu-
tion_en.pdf>. Acesso em 16 out. 2010. Na língua inglesa, disease (doença) indica a presença de uma
patologia de base, independentemente do estado sintomático ou assintomático do doente, que pode
manifestar ou não prejuízo visível/imediato; trata-se de um conceito mais amplo que infirmity (enfer-
midade), que é o estado sintomático provocado pela presença de uma patologia de base que implica
sofrimento/sintoma/fraqueza ou qualquer consequência negativa visivelmente percebida no enfermo.
11
Tal como no conceito de “biossociabilidade”, em Paul Rabinow, Antropologia da Razão (1999).
12
Disponível em: <http://www.social-sante.gouv.fr/actualite-presse,42/breves,2325/presentation-
du-3eme-plan-autisme,15797.html>. Acesso em 08 jun. 2013.
13
Acerca das formas alternativas de tratamento do autismo que põe em xeque o crescente mo-
nopólio terapêutico científico, vide o documentário: The Horse Boy, direção de Michel Orion Scott,
Estados Unidos, 2009, Cor/93 min. Ele narra a história real de um garoto autista norte-americano
que, após seu périplo por consultórios médicos e tratamentos científicos convencionais, que não
davam resultado, resolve, juntamente com seus pais, viajar à Mongólia e se submeter às curas xa-
mânicas das tribos nômades.
14
Ver:<http://www.dsm5.org/Documents/Autism%20Spectrum%20Disorder%20Fact%20Sheet.
pdf>. Acesso em 08 jun. 2013.
2. “Medicalização” x “Desmedicalização” da
Psiquiatria: do organicismo ao psicodinamismo
A partir do terceiro capítulo (“The First Biological Psychiatry”) do
livro de Edward Shorter (1997), pretendemos expor nesse item, os
15
O título do terceiro capítulo de seu livro já nos dá indícios de sua postura epistemológica. Ao cha-
mar, de modo anacrônico, a psiquiatria organicista do século XIX de “primeira psiquiatria biológica”,
Shorter procura por precursores nobres no passado, no intuito de legitimar a psiquiatria biológica
contemporânea – da qual ele é um admirador confesso –, inserindo-a, assim, numa linearidade
histórica que viria ilustrar o suposto progresso retilíneo da ciência positiva. Trata-se de uma pers-
pectiva historiográfica com a qual não compartilhamos.
16
A relação entre a psiquiatria e a gestão administrativa é indissociável na lógica do alienismo.
Conforme afirmou o alienista E. Renaudin, em 1845 (apud Castel, 1991, p. 151): “Tornando-nos ad-
ministradores nós nos tornamos, se posso me expressar assim, mais médicos.” Grosso modo, pode-
-se dizer que, para o alienismo, a terapêutica da loucura se resumia basicamente a uma boa gestão
administrativa do espaço asilar, que seria responsável pela criação de um ambiente artificial propí-
cio ao aparecimento da essência da loucura, a qual poderia, então, ser combatida pelo tratamento
moral, espécie de método pedagógico de reeducação centrado na autoridade do médico. Cabe
ressaltar que o modelo da Atenção Psicossocial atualmente em vigor enquanto política pública no
Brasil apregoa a indissociabilidade entre modos de atenção e modos de gestão, o que, por sua vez,
aponta para a indissociabilidade entre clínica e política.
17
Este é, na verdade, mais conhecido por ter sido o primeiro médico a tratar do grave surto de Da-
niel Paul Schreber (o louco célebre que teve seu livro de memórias analisado por Sigmund Freud),
surto esse desencadeado, segundo Lacan em “De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Pos-
sível das Psicoses” (1998d), pelo significante “fecundo” da expressão “sono fecundo/profundo” (aus-
giebigen Schlaf), enunciado por Flechsig na ocasião do desastroso reencontro com seu paciente.
18
Michel Foucault, em História da Sexualidade I, assinala que “(...) a posição singular da psicanálise no
fim do século XIX não seria bem compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativa-
mente ao grande sistema da degenerescência: ela retomou o projeto de uma tecnologia médica pró-
pria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de suas correlações com a hereditariedade e, portanto,
com todos os racismos e eugenismos. Pode-se muito bem fazer, agora, a revisão de tudo o que podia
existir de vontade normalizadora em Freud; pode-se, também, denunciar o papel desempenhado
há anos pela instituição psicanalítica; contudo, na grande família das tecnologias do sexo que recua
tanto na história do Ocidente cristão e dentre as que empreenderam, no século XIX, a medicação do
sexo, ela foi, até os anos 40, a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais
do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência” (Foucault, 1984, p. 112-113).
19
Autor de O Crime e a Loucura, de 1875, obra muito prestigiada inclusive no Brasil, Henry Maudsley é
citado por Lima Barreto em Diário do Hospício e também por Euclides da Cunha, no final de Os Sertões.
20
É ainda Bercherie (1989, p. 161-164) quem assinala as influências de outros autores sobre Kraepelin
nas primeiras edições de seu Tratado: a influência da análise psicológica de Wundt é notável na pri-
meira edição, de 1883, assim como nas segunda, de 1887, e terceira, de 1889, edições se percebe um
alinhamento com as ideias dos principais representantes da “escola de Illenau” – Krafft-Ebing e Schule.
3. “Desmedicalização” x “Remedicalização”da
Psiquiatria: do psicodinamismo ao biologicismo
21
Há uma compilação de textos essenciais de muitos dos autores da psiquiatria clássica citados neste traba-
lho, à qual remetemos o leitor interessado: Jacques Postel (org.). La psiquiatrie. Paris: Larousse, 1994.
22
Naquela época, esse diagnóstico era usado indiscriminadamente pelos psiquiatras norte-americanos,
ao ponto de Devereux (1973), posteriormente, designá-lo uma “psicose étnica” ligada aos Estados Uni-
dos. Podia-se, por exemplo, ser declarado “esquizofrênico” após três dias de um episódio de despersona-
lização vagamente alucinatório, além de existirem categorias controversas como “esquizofrenia aguda”.
23
Robert Castel, em A Gestão dos Riscos (1987), assinala que o surgimento destas psicoterapias alter-
nativas nas décadas de 1960 e 1970, agrupadas sob os rótulos “Movimento do Potencial Humano”
ou “Psicologia Humanista”, aponta para uma era pós-psicanalítica, na qual a psicanálise teria perdido
o monopólio da difusão da cultura psicológica no seio da sociedade.
existente nos Estados Unidos, essa era a gota d’água que faltava para
que a psicanálise norte-americana se desmedicalizasse e para que a
psiquiatria se remedicalizasse.
Vale lembrar, como assinala Serpa Jr. (1998, p. 242), que Chestnut
Lodge tinha um importante papel na psiquiatria norte-americana da-
quela época como uma instituição “alternativa”, que abraçava uma
proposta de “desmedicalização”, sendo um dos principais centros pro-
pagadores das psicoterapias orientadas psicanaliticamente. Esse caso
deixou uma forte impressão de que, em favor da “abordagem dos con-
flitos intrapsíquicos”, os adeptos da psicanálise relegavam a um segun-
do plano dimensões tão importantes quanto a diagnose e a análise
dos sintomas, na prática clínica. Supôs-se que o “erro” na condução do
tratamento do Dr. Osheroff deveu-se à falta de estudos controlados no
campo da psicoterapia psicanalítica e, a partir de então, a exigência de
padronizações nesse campo vem aumentando consideravelmente24.
Um relato de paciente que inclui uma experiência de tratamento em Chesnut Lodge encontra-se
24
em Hannah Green, Nunca lhe prometi um jardim de rosas, 3. ed, Rio de Janeiro, Imago, 1987.
4. A “Remedicalização” da Psiquiatria:
a vertente biológica
Baseamo-nos aqui no sétimo (“The Second Biological Psychia-
try”) e oitavo (“From Freud to Prozac”) capítulos do livro de Shorter
(1997) e no livro de Healy (2000), sobretudo o segundo (“The Disco-
very of Antidepressants”) e sexto (“The Luke Effect”) capítulos, como
referenciais teóricos principais deste capítulo.
25
Em O Seminário, Livro 7: a Ética da Psicanálise, de 1959-1960, Lacan (1988) assinala como pressuposto
ético fundamental do processo analítico que o analisando “não ceda em seu desejo”, exatamente o
oposto do que a psiquiatria biológica e a chamada “neuropsicanálise” propiciam ao nada querer saber
desse sujeito do desejo, implicado com seu sintoma.
26
Interessante notar que tais psiquiatras, embora biologicamente orientados e adeptos do polo
físico, mantinham diálogo aberto com os adeptos do outro polo. Enquanto Jean Delay dirigiu o
Hospital Psiquiátrico Sainte-Anne, Jacques Lacan e Raimu Henry Ey lecionaram nessa mesma ins-
tituição. Além disso, Lacan foi convidado por Delay para ministrar em Sainte-Anne a conferência
“Freud no Século”, em comemoração ao centenário de nascimento de Freud – trata-se da aula de
16 de maio de 1956 do Seminário, Livro 3: as Psicoses (Lacan, 2002); Lacan também dedicou um es-
crito ao livro de Delay sobre a “Juventude de André Gide” (Lacan, 1998c). Como vimos (“A Ascensão
da Psicanálise no Campo Psiquiátrico Norte-americano”, supra), o ambiente era completamente
diferente nos Estados Unidos, onde o campo psiquiátrico incorporou a psicanálise (em sua versão
ego psychology) de maneira fundamentalista, eliminando a interlocução com a vertente fisicalista.
Atualmente, o fundamentalismo do campo psiquiátrico norte-americano persiste, porém, de for-
ma invertida, com a hegemonia da psiquiatria biológica.
27
Healy (2000, p. 181) assinala que a clorpromazina foi lançada na Europa com o nome comercial
Largactil. Acrônimo que refletia a percepção inicial sobre a droga de sua “ampla gama de ação” (em
inglês, “large range of action”). A ideia de que a clorpromazina era direcionada à esquizofrenia só se
desenvolveria depois, em parte, devido ao fato de que a maioria dos problemas clínicos psiquiátri-
cos que levavam alguém a ser internado nos Estados Unidos, durante as décadas de 1950 e 1960,
eram rotulados de esquizofrenia. Daí o interesse do laboratório em direcioná-la à “epidemia” de
esquizofrenia detectada na época. Numa analogia ao termo europeu, a clorpromazina foi lançada
no Brasil com o nome comercial Amplictil.
O Complexo Médico-Industrial
De fato, a indústria teve um papel fundamental no estabele-
cimento de uma rede organizacional internacional necessária ao
desenvolvimento da psicofarmacologia. Ela patrocinou estudos
pré-clínicos (realizados em animais) e clínicos (realizados em seres
humanos) que acabariam por formatar a nova ciência. Tais encontros
levaram à criação do Collegium Internationale Neuropsychopharma-
cologium (CINP) e, por conseguinte, ao surgimento de muitas socie-
dades nacionais de psicofarmacologia.
Vale ressaltar que a belicosidade do século XX criou uma atmos-
fera propícia à junção do capital privado e dos fundos públicos no
financiamento de pesquisas em farmacologia. Healy (2000, p. 15-28)
assinala o investimento por parte do governo norte-americano nos
laboratórios farmacêuticos instalados nos Estados Unidos, visando
a suprir o déficit de medicamentos importados durante as Guerras
Mundiais. Na I Grande Guerra, os laboratórios Abbott, Smith, Kline &
French, Parke-Davis, Eli Lilly e outros, que já estavam envolvidos no
desenvolvimento de antitoxinas e vacinas, foram beneficiados com
as verbas do governo federal e puderam ampliar suas bases de pes-
quisa. Durante a II Guerra Mundial, o “Escritório de Desenvolvimento
e Pesquisa Científica” dos Estados Unidos investiu em alguns labora-
tórios norte-americanos Merck, Squibb e Pfizer (todos ainda relativa-
mente pequenos na época). Como resultado desse investimento, a
Pfizer iniciaria a produção em escala industrial da penicilina. Nessa
mesma época, a parceria entre o governo federal e os laboratórios de
28
Sobre os olhares históricos nas décadas de 1920, 1950 e 2000 da depressão clínica, vide o filme:
As Horas (The Hours), direção de Stephen Daldry, Reino Unido/Estados Unidos, 2001, Cor/114 min.
29
Seu exemplo seria seguido pelas indústrias farmacêuticas produtoras dos compostos antidepres-
sivos IMAOs. Healy (2000, p. 185-187) aponta que, durante as décadas de 1960 e 1970, tais indústrias
bancaram extensas campanhas publicitárias no sentido de convencer a comunidade médica de
que seus compostos IMAOs eram eficazes no combate a algumas formas de “depressões atípicas”
associadas à ansiedade e aos estados fóbicos. Os fabricantes de IMAOs, numa estratégia de sobre-
vivência, resolveram investir na noção de “depressões atípicas” – que vinha sendo proposta por
eminentes psiquiatras daquela época –, no intuito de redirecionar seus compostos para essas no-
vas “doenças”, criando, assim, um novo nicho consumidor para eles. A partir de então, as indústrias
farmacêuticas vislumbraram uma possibilidade de, em adotando tal postura, repartir o mercado
dos “antidepressivos” com a imipramina.
30
Termo cunhado em 1990 pelo psiquiatra da Universidade de Brown, Peter Kramer, referindo-se à fluo-
xetina, novo antidepressivo sintetizado pela indústria farmacêutica Eli Lilly, chamado comercialmente
Prozac, que prometia ser a “pílula da felicidade” (vide tópico “Fluoxetina: a ‘pílula da felicidade’”, infra). Du-
mit (1997, p. 6) assinala que a era da “psicofarmacologia cosmética” inaugurou o consumo de psicofármacos
por pessoas “normais” que visavam tão somente o autoaprimoramento.
31
Agência estatal, criada pelo governo norte-americano em 1938, que controla a comercialização
de alimentos e remédios, objetivando assegurar a saúde dos seus cidadãos. Numa analogia com o
Brasil, a FDA teria uma função semelhante àquela desempenhada pela nossa Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa).
1. Do DSM–I ao DSM–5
O DSM-III: dos símbolos aos sinais ou de Freud a Kraepelin
No final dos anos 1960, Robert Spitzer, psiquiatra e ex-psica-
nalista, convertido em nosologista da Universidade de Colúmbia,
propunha um percurso completamente oposto ao que a nosografia
vinha tendo até então: ele pretendia tornar o diagnóstico psiquiátri-
co o mais descritivo possível. Dever-se-ia definir os critérios diagnós-
ticos apriorísticos que configuram uma dada doença, baseando-se
na descrição dos seus sintomas.
Spitzer não estava sozinho nesta empreitada. Outros pesqui-
sadores norte-americanos também tinham ideias afins às suas. Em
1948, Eli Robins, George Winokur e Samuel Guze formaram um nú-
cleo de estudos no Departamento de Psiquiatria da Universidade de
Washington, em St. Louis, com o objetivo de pesquisar disciplinas
marginais na época, tais como química cerebral, biologia e nosologia,
caminhando na contramão da onipresente psicanálise. Os membros
desse grupo de St. Louis ficaram conhecidos como os “neokraepe-
linianos”. Young (1997, p. 95-96) enumera as três ideias básicas do
método clínico-evolutivo de Kraepelin para a classificação psiquiá-
trica, que seriam seguidas pelos nosologistas norte-americanos res-
ponsáveis pela confecção do DSM-III:
1. As perturbações mentais são mais bem compreendidas por
analogia às doenças físicas. Segundo Kraepelin, o progresso
da medicina sobre as doenças infecciosas só foi possível após
os pesquisadores redirecionarem seu foco de estudos para as
causas específicas das síndromes específicas. O primeiro passo
histórico da medicina consistiu na classificação de diferentes
tipos de doenças.
32
Dentre eles, Allen Frances, que – no calor do surgimento da quinta edição do manual da APA, em maio
de 2013, que coincide com o momento no qual nosso trabalho recebeu seus últimos ajustes antes de sua
publicação – acabou de lançar seu livro Saving Normal (2013), uma espécie de manifesto contra-DSM, que
denuncia o seu desvio de rota científica e os consequentes excessos cometidos pela psiquiatria remedi-
calizada contemporânea. Naquela ocasião, Frances foi o responsável pela elaboração do capítulo sobre os
transtornos de personalidade e pela explicação da nova metodologia adotada pelo DSM-III.
33
A nosso ver, trata-se de uma decisão acertada, já que a medicalização do preconceito de “raça” não
o resolve, uma vez que seu combate deve se dar no campo político com ações voltadas ao exercício
da cidadania e à promoção dos direitos humanos, e não no campo médico com a individualização
do problema. Todavia, em sua justificativa, Robert Spitzer deu a seguinte definição psicopatológica
para o racismo: “No âmbito do DSM-III, deveríamos citar o racismo como bom exemplo de um estado
correspondente a um funcionamento psicológico não ótimo, que, em certas circunstâncias, fragiliza
a pessoa e conduz ao aparecimento de sintomas” (apud Roudinesco, 2000, p. 50).
34
Além da confiabilidade e da validade, um diagnóstico médico deve ser capaz de distinguir clara-
mente entre dois quadros clínicos diferentes, de detectar “falsos negativos” (pessoas que apresen-
tam a doença, porém não são identificadas como doentes) e de prevenir “falsos positivos” (pessoas
que não apresentam a doença, porém são indentificadas como doentes). Evidentemente, o DSM, a
despeito de sua mudança metodológica, não apresenta o rigor exigido de um sistema diagnóstico
pela epistemologia médica.
35
Disponível em: <http://www.nimh.nih.gov/about/director/2013/transforming-diagnosis.shtml>.
Acesso em 08 jun. 2013. Esse “algo melhor” (sic.) refere-se ao “Projeto Pesquisa em Domínio de Crité-
rios” (Research Domain Criteria Project - RDoC), criado pelo NIMH em 2009 – como veremos adiante.
Quais conflitos afetivos são mais importantes neste paciente. Conflitos relativos à sexuali-
dade. Dinâmica afetiva da família. Conflitos relativos à identidade psicossocial. Que tipo de
transferência o paciente estabelece com os profissionais da saúde. Que sentimentos contra-
transferenciais desperta nos profissionais que o tratam. Que mecanismos de defesa utiliza
preponderantemente. Qual o padrão relacional do paciente. Qual a estrutura psicopatológi-
ca do ponto de vista psicanalítico (estrutura neurótica: obsessiva, histérica, fóbica etc.; estru-
tura psicótica; estrutura “perversa”, “autista” etc.)
Como é o meio sociocultural atual do paciente (bairro de periferia, favela, morador de rua,
de uma instituição etc.). Como o paciente e seu meio cultural concebem e representam seu
transtorno. Quais as suas teorias etiológicas e de cura. Como é a identidade étnica e cultural
do paciente. Qual e como é sua religiosidade. Como o paciente e seu meio cultural enca-
ram o diagnóstico e o tratamento psiquiátrico “oficial”. O paciente é migrante, de área rural?
Como isso interfere no diagnóstico e terapêutica? Qual a “linguagem das emoções” que uti-
liza? Qual o impacto das mudanças socioculturais pelas quais o paciente passou sobre seu
transtorno mental?
Extraído de Dalgalarrondo (2000, p. 34)
Hill & Fortenberry (1992, p. 77) assinalam que uma amostra re-
presentativa dos psicólogos norte-americanos rejeitou o DSM-III e
sua revisão, concebendo-os como “(...) uma extensão não empírica
do ‘modelo médico’, enviesado por questões de gênero, não univer-
sal, dominado pela psiquiatria e impulsionado pelo reembolso das
seguradoras de saúde” .
36
Disponível em: <http://www.nimh.nih.gov/research-priorities/rdoc/nimh-research-domain-cri-
teria-rdoc.shtml>. Acesso em 08 jun. 2013.
37
Disponível em: <http://www.nimh.nih.gov/news/science-news/2013/dsm-5-and-rdoc-shared-
-interests.shtml>. Acesso em 08 jun. 2013.
38
Cabe ressaltar que o sofrimento era visto por autores da semiologia psiquiátrica clássica (incluindo
organicistas) como um sintoma das doenças mentais; contudo, no DSM, curiosamente, o sofrimen-
to (ou tão somente seu risco, o que configura um “problema de saúde”) passou a definir as doenças
mentais, o que obviamente as vem banalizando ao sabor das conveniências de mercado.
39
O modelo categorial é bidimensional e, dessa forma, ou a pessoa se inclui ou não à tipologia
proposta, dados os critérios rigorosos de inclusão/exclusão diagnóstica, não havendo sequer uma
terceira possibilidade (ou se é/está ou não se é/está doente, ambos os estados apresentando es-
sências diferentes). Já o enfoque dimensional, por se constituir num continuum que varia do normal
ao patológico, possui múltiplas possibilidades de nuances quantitativas, várias gradações, entre
tais estados (o normal e o patológico, aqui, possuem a mesma essência, sendo a diferença entre
ambos de grau).
40
Também chamado “mercantilização da doença” por Ray Moynihan, Iona Heath & David Henry, “Selling
Sickness: the pharmaceutical industry and disease mongering”, British Medical Journal, 324: 886-891, 2002.
41
Novamente aqui chamamos a atenção para a falsa “novidade” dos laboratórios advinda do lança-
mento no mercado de “medicamentos de imitação”, que constituem sua principal fonte de lucro. Cf.
Marcia Angell, A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos (2007).
42
Substância sedativa e tranquilizante que provocou deformações congênitas em fetos ao ser uti-
lizada por gestantes.
clínicos controlados para terem seu registro aprovado, deveriam ser di-
recionados para “doenças” (diseases) específicas, e não para “perturba-
ções” (illnesses). Tudo isso reforçou sobremaneira os modelos médico
e categorial, em detrimento dos modelos dimensionais das doenças
psiquiátricas. A vitória do modelo bacteriológico reforçou a noção de
que um determinado composto deve ser licenciado para uma indica-
ção específica (Healy, 2000, p. 27-28).
A maioria dos testes clínicos controlados (método duplo-cego),
patrocinados e conduzidos pelas indústrias farmacêuticas, estão
mais interessados em obter o registro dos seus compostos junto à
FDA, que em promover o desenvolvimento científico (Healy, 2000,
p. 103-104). Nesse sentido, as indústrias farmacêuticas interrompem
os testes com os medicamentos tão logo eles sejam aprovados para
comercialização pela FDA. Desse modo, os possíveis efeitos colate-
rais adversos, decorrentes do uso prolongado dos medicamentos, só
são descritos a posteriori pelos profissionais que os prescreveram (Va-
lenstein, 1998, p. 190). Assim mesmo, as indústrias farmacêuticas não
se dão por vencidas e fazem de tudo para desqualificar as informa-
ções clínicas desfavoráveis aos seus produtos, utilizando-se de mé-
todos espúrios43. Deduz-se, então, que os testes clínicos controlados,
da forma como eles são conduzidos pelas indústrias farmacêuticas,
não garantem a eficácia nem a segurança das drogas testadas (Ibid.,
p. 188-189). A partir da emenda de 1962, quando tais testes se torna-
ram obrigatórios nos Estados Unidos para a aprovação de qualquer
43
Para maiores detalhes, vide Elliot Valenstein, Blaming the Brain (1998, p. 190-199). Esse autor relata
os casos da sertralina (Zoloft), do Cordichin, do Redux, dos “bloqueadores dos canais de cálcio” e das
drogas de emagrecimento que compõe a dieta “fen-phen”, como exemplos emblemáticos da influ-
ência das indústrias farmacêuticas junto à comunidade científica, visando a proteger seus interesses
financeiros. Para o Dr. Andrew Herxheimer (apud Valenstein, 1998, p. 196), diretor da International So-
ciety of Drug Bulletins, seriam três os principais motivos pelos quais as informações precisas sobre as
drogas podem não alcançar a comunidade médica e o público em geral: em primeiro lugar, não
existe nenhum mecanismo para a coleta sistemática, análise e distribuição das informações sobre as
reações adversas às drogas, decorrentes de seu uso prolongado; em segundo lugar, as indústrias far-
macêuticas mostram-se reticentes em divulgar as informações sobre os efeitos colaterais adversos de
seus compostos; por último, trata-se de uma prática comum por parte de algumas indústrias farma-
cêuticas desacreditar e até mesmo suprimir as informações que lancem dúvidas quanto à segurança
e eficácia de seus medicamentos. Para tanto, elas exercem considerável pressão sobre os pesquisado-
res, editores de periódicos médicos, universidades e, até mesmo, sobre as agências governamentais.
44
Psiquiatra do Hospital Maudsley e um dos maiores expoentes mundiais da terapia comportamen-
tal, que, nos anos 1960, descreveu pela primeira vez a síndrome que viria a ser posteriormente
chamada “fobia social”.
45
Essa categoria foi renomeada como “transtorno da ansiedade social” no DSM-5, refletindo assim
sua ampliação de um medo fóbico localizado a uma ansiedade inespecífica em situações sociais.
46
Este é também o nome comercial mais popular no Brasil para o componente clomipramina.
num formato injetável desde o início. Isso levaria a uma certa voga do
medicamento entre os centros especializados europeus, que o dire-
cionaram ao tratamento de casos difíceis de depressão. Importantes
figuras do campo psiquiátrico europeu, sobretudo do Reino Unido,
eram defensores entusiastas desta forma de tratamento.
O registro da clomipramina no Reino Unido esteve a cargo de
Georges Beaumont, após sua nomeação como diretor clínico da
Geigy-UK. Estava claro para Beaumont que a substância só obteria
sucesso no mercado caso se distinguisse um perfil específico para ela.
Seguindo os relatos de seus efeitos benéficos sobre o TOC e estados
de ansiedade severos, que foram feitos respectivamente por Jean
Guyotat, na França, e Juan Lopez-Ibor, na Espanha, a Geigy patrocinou
uma série de estudos nos quais a clomipramina (em suas formas oral e
intravenosa) foi testada em pacientes portadores do que se chamava
na época neurose de angústia – transtornos fóbicos e TOC. Num esforço
sistemático para registrar a clomipramina, Beaumont e colaboradores
criaram uma metodologia para se testar clinicamente os efeitos desta
droga sobre o TOC. Estes testes acabaram confirmando os achados de
Lopez-Ibor, muito embora eles não preenchessem os critérios rigorosos
dos estudos duplos-cegos. Por conseguinte, em 1975, a clomipramina
seria licenciada no Reino Unido para o tratamento farmacológico da
depressão e estados obsessivos e fóbicos associados.
Com o passar do tempo, as indústrias farmacêuticas vêm se tornando cada vez mais interessadas
47
48
Judith L. Rapoport, O Menino Que Não Conseguia Parar de Se Lavar: experiência e tratamento do
distúrbio obsessivo-compulsivo, Rio de Janeiro, Marques-Saraiva, 1990.
49
As Good as It Gets. Direção de James L. Brooks, Estados Unidos, 1997, Cor/138 min.
50
Os resultados da pesquisa realizada por Camargo Jr. (2003) com uma amostra de 24 professores
de clínica médica de duas eminentes faculdades de medicina localizadas no Rio de Janeiro en-
dossam essa afirmação contundente de Valenstein. Constatou-se que, no intuito de se manterem
sempre atualizados, os médicos entrevistados selecionam novos conhecimentos a serem adqui-
ridos de maneira “intuitiva, pragmática, orientada a resultados, por informação relevante (isto é,
potencialmente útil na prática), selecionada de fontes com suficiente credibilidade acadêmica e
submetida a um primado do conhecimento prático, experimental”.
51
Anualmente, estima-se que mais de U$ 12.3 bilhões sejam gastos pelas indústrias farmacêuticas
na promoção de drogas somente nos Estados Unidos, e que mais de U$ 5 mil sejam gastos para
influenciar os hábitos prescritivos de cada médico norte-americano. Trata-se de um investimento
com retorno garantido. Um estudo patrocinado por cinco grandes indústrias farmacêuticas cons-
tatou que os anúncios publicitários em periódicos médicos aumentam o número de novas prescri-
ções do medicamento anunciado (Valenstein, 1998, p. 197).
52
Conforme um artigo publicado no jornal New York Times, (apud Valenstein, 1998, p. 179-180), o
grupo de apoio a paciente chamado Children and Adults with Attention Deficit Disorder, recebeu a
“bagatela” de U$ 900 mil da indústria farmacêutica Ciba-Geigy (produtora do Ritalin), para se ex-
pandir e, por conseguinte, ampliar seu trabalho de “conscientização” das pessoas acerca da eficá-
cia do Ritalin sobre o transtorno do déficit de atenção/hiperatividade. Isto teria contribuído para
que sua prescrição atingisse tais cifras astronômicas. Sua vendagem aumentaria ainda mais, após
a Ciba-Geigy ter divulgado à comunidade médica que essa droga era eficaz não somente sobre o
transtorno do déficit de atenção/hiperatividade, mas também sobre a hiperatividade moderada.
53
Tradução para o português da expressão inglesa Culture-Bound Syndromes (CBS). Este termo foi
cunhado pelo psiquiatra chinês P. M. Yap, em 1967, no intuito de agrupar conceitualmente as sín-
dromes restritas a grupos ou culturas específicas numa rubrica geral (Prince & Tcheng-Laroche,
1987, p. 4). A expressão CBS passou a ser adotada no lugar de termos como “psicoses étnicas,
neuroses étnicas, psicoses histéricas, exóticas ou atípicas e síndromes reativas à cultura”. O DSM-IV
popularizou esta expressão a partir de sua inclusão no Apêndice I “Plano de Formulação Cultural
e Glossário para Síndromes Ligadas à Cultura” (Mateus, 1998). Já na CID-10, a expressão CBS não
é utilizada, embora seu conceito seja incorporado ao item F 48.8: “Outros transtornos neuróticos
especificados” (OMS, 1993, p. 169).
54
Ver: <http://www.dsm5.org/Documents/ADHD%20Fact%20Sheet.pdf>. Acesso em 08 jun. 2013.
55
Ver:<http://www.dsm5.org/Documents/Bereavement%20Exclusion%20Fact%20Sheet.pdf>.
Acesso em 08 jun. 2013. Curioso que, em um manual que se pretende científico, como o DSM-5, a
exceção feita ao luto para o diagnóstico da depressão tenha sido substituída por moções de caute-
la endereçadas aos diagnosticadores.
56
Nesse sentido, o DSM-5 alerta que o luto, entendido enquanto reação normal à perda (real, frisa esse
manual), pode ser vivenciado de forma patológica (como depressão) em pessoas previamente vulnerá-
veis; ou seja, a vulnerabilidade individual é inversamente proporcional à resiliência. Vide: <http://www.
dsm5.org/Documents/Bereavement%20Exclusion%20Fact%20Sheet.pdf>. Acesso em 08 jun. 2013.
57
Não nos admira que o gênio sarcástico de um autor como Richard P. Bentall tenha proposto, de
modo convincente (diga-se de passagem), a inclusão da felicidade no DSM, sob a alcunha “Trans-
torno Afetivo Maior do Tipo Amável” (Bentall, 1992).
58
Um estudo norte-americano, publicado em 2010, revelou que o grande público adere cada vez
mais a uma concepção exclusivamente neurobiológica das perturbações mentais – implícita na
noção de dis-order. Assim como uma extensa matéria do New York Times, surgida naquele mesmo
ano, com o sugestivo título “The Americanization of Mental Illness”, mostrou o quanto tal concep-
ção norte-americana de transtorno difunde-se com facilidade pelo “resto” do mundo – indício de
que ela não tem encontrado muitas resistências culturais (Gonon, 2011, p. 55).
59
A taijin kyofusho é uma síndrome psiquiátrica muito comum no Japão – acometendo de 7 a 36% dos
pacientes – e significa etimologicamente “medo de outras pessoas”. Caracteriza-se pelo medo persisten-
te e excessivo de ofender outras pessoas em situações sociais, devido às “deficiências imaginárias” (rubor
facial, contato visual direto indiscreto, expressão facial, deformidades, odor fétido emanado pelas axilas
e genitais, voz ou membros trêmulos, sensação de que se pensa em voz alta etc.). Para maiores informa-
ções sobre a taijin kyofusho, Cf. Kirmayer, The Place of Culture in Psychiatry Nosology (1991).
60
O termo latah tem sido usado como um rótulo genérico para incluir fenômenos similares em
muitas culturas, sobretudo na Malásia e Indonésia, cuja manifestação clínica inclui, segundo o vo-
cabulário biomédico: extrema sugestionabilidade, ecolalia, ecopraxia, coprolalia, obediência auto-
mática, tiques motores, pequenos saltos etc. Para maiores informações sobre a latah, Cf. Murphy,
Notes for a Theory on Latah (1976).
61
Isso se evidencia quando se considera o “campo AD” (os transtornos mentais decorrentes do uso
abusivo de álcool e outras drogas), no qual as políticas públicas sanitárias e os modelos de atenção
adotados dependem das circunstâncias locais e do contexto político e cultural de cada país. Dessa
forma, uma substância altamente controlada em um país pode estar disponível em outro país, sen-
do o padrão do que é considerado um uso normal e um uso desviante determinado culturalmente.
62
Justiça seja feita, aqui, uma aproximação e um distanciamento para com Allen Frances. Aproxima-
mo-nos quando, logo após sua defesa do pragmatismo utilitário, afirma ele serem os transtornos
mentais “não mais que (...) constructos falíveis e limitados [porém úteis] que buscam, mas nunca
encontram, a verdade” (Frances, 2013, p. 21). Distanciamo-nos quando, pouco adiante, esse mesmo
autor, recorrendo à epidemiologia, afirma que “Embora o comportamento ‘normal’ seja variável nas
culturas, os transtornos mentais específicos são bastante uniformes. (...) A mais fascinante questão
é por que ambos os sistemas diagnósticos [DSM e CID] ganharam tal aplicabilidade universal em
todas as raças e culturas do mundo. Claramente, nós, humanos, somos mais parecidos do que
somos diferentes, assemelhando-nos uns aos outros nas coisas que contam para a definição do
normal e do transtorno mental. (...) Em todos os sentidos, os humanos são parecidos o bastante”
(Ibid., p. 22-23). Em suma: embora admita a transitoriedade do conceito de transtorno mental em
sua captura sempre parcial da realidade (e, portanto, sua relatividade epistêmica ao constatar que,
para a ciência, a verdade nunca pode ser toda apreendida), Frances não abre mão de sua pretensa
universalidade conceitual (logo, de seu caráter transcultural – e colonialista?).
63
Com o intuito de introduzir os antidepressivos no país do Sol nascente, as indústrias farmacêuti-
cas venderam aos japoneses a ideia da depressão como a “gripe da alma”. Pelo visto, essa estratégia
sagaz de marketing deu certo.
64
Sobre esse último ponto, Cf.: F. Gonon, E. Bézard, T. Boraud et. al., “Misrepresentation of Neurosci-
ence Data Might Give Rise to Misleading Conclusions in the Media: The Case of Attention Deficit
Hyperactivity Disorder”, PLoS One, 6(1), 2011. Disponível em: <http://www.plosone.org/article/in-
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