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A Psiquiatria do DSM

PÍLULAS PARA QUE TE QUERO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

REITOR

Angelo Roberto Antoniolli

VICE-REITOR

André Maurício Conceição de Souza

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

COORDENADORA DO PROGRAMA EDITORIAL

Messiluce da Rocha Hansen

COORDENADORA GRÁFICO DA EDITORA UFS

Ana Carolina Albuquerque de Morais


O CONSELHO EDITORIAL DA EDITORA UFS

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Dilton Cândido Santos Maynard Maria José Nascimento Soares
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PROJETO GRÁFICO/ EDITORAÇÃO ELETRÔNICA– Jeane de Santana

FOTOGRAFIA– André Teixeira

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Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

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Rogério Paes Henriques

A Psiquiatria do DSM
PÍLULAS PARA QUE TE QUERO

SÃO CRISTÓVÃO -SE


2015

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
Henriques, Rogério Paes
A Psiquiatria do DSM : pílulas para que te quero / Rogério Paes
Henriques. – São Cristóvão : Ed. UFS, 2015.
170 p.
H519p
ISBN 978-85-7822-462-2
Psiquiatria. 2. Doenças mentais – Diagnóstico. 3. Saúde mental. I. Título.
CDU 616.89

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Para Livia.

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I too believe that humanity will win in the long
run; I am only afraid that at the same time the
world will have turned into one huge hospital
where everyone is everybody else’s humane nurse.

(Goethe; apud Parens, 2013)

- São poucas as pessoas que não passam (...) pelo


que estou passando. Se lhe dizem, por exemplo,
que os seus rins funcionam mal ou que tem o co-
ração dilatado, e começam a tratá-lo, ou se lhe
chamarem de louco ou criminoso, em suma, se as
pessoas de repente passam a prestar atenção em
você, saiba que caiu num círculo enfeitiçado do
qual nunca mais sairá.

(Tchékhov, 1892/2005, p. 85)

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SUMÁRIO

13 PRÓLOGO
15 INTRODUÇÃO
25 PARTE 1 – A DINÂMICA DO CAMPO PSIQUIÁTRICO
25 1. Medicalização e Desmedicalização: aspectos conceituais
25 Breve Histórico da Medicalização
31 A Saúde como Ideal de Bem-Estar e a Medicalização
35 Desmedicalização: a contraofensiva democrática

38 2. “Medicalização” x “Desmedicalização” da Psiquia-


tria: do organicismo ao psicodinamismo
42 A Psiquatria Organicista Alemã

45 A Psiquiatria Organicista Francesa


49 A Psiquiatria Organicista Britânica
50 Emil Kraepelin e a Renovação do Organicismo em Psiquiatria
56 O Modelo Biopsicossocial de Adolf Meyer e o Declínio da Psiquiatria Orga-
nicista nos Estados Unidos

58 3. “Desmedicalização” x “Remedicalização” da Psiquia-


tria: do psicodinamismo ao biologicismo
58 A Ascensão da Psicanálise no Campo Psiquiátrico Norte-Americano
64 O Declínio da Psicanálise e a Emergência da Psiquiatria Biológica no
Campo Psiquiátrico Norte-Americano
67 O Objetivismo Médico e o Imperativo Categórico da Experimentação

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69 4. A “Remedicalização” da Psiquiatria: a vertente biológica
70 Psicofarmacologia: a base pouco evidente da psiquiatria biológica
71 Clorpromazina: a penicilina da alma?
73 A Clorpromazina na América do Norte
75 O Complexo Médico-Industrial
77 Lítio: a substância natural pouco rentável
78 A Imipramina e a Depressão Psicótica
79 O Mercado Consumidor dos Antidepressivos
82 A Amitriptilina e a Depressão Neurótica
84 Meprobamato: a era da psicofarmacologia cosmética
85 Benzodiazepinas: as “pílulas da tranquilidade”
86 Fluoxetina: a “pílula da felicidade”
88 O Efeito Prozac: transformando eus?
90 Psicofarmacologia: utopia ou distopia?

93 PARTE 2–O DSM–III E A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA:


RUMO À MEDICALIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA
93 1. Do DSM-I ao DSM-5
93 A Retomada da Importância do Diagnóstico Descritivo em Psiquiatria
95 Sintomas como Símbolos: as duas primeiras edições do DSM
98 O DSM-III: dos símbolos aos sinais ou de Freud a Kraepelin
102 O Fisicalismo e sua Nova Roupagem
107 Os Sucessores do DSM-III e o RCoD: APA versus NIMH

111 2. A Roupa Nova do Rei: a doxa empirista


111 O DSM-III e o Empirismo Baconiano
116 O DSM-III e suas Vestes Invisíveis

118 3. A Nova Nosografia e a Indústria Farmacêutica: a


mercantilização de doenças
119 O “Efeito Lucas”: semeando e cultivando doenças

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123 A Upjohn e a Difusão do Transtorno do Pânico
125 A Roche e a Difusão da Fobia Social
126 A Geigy e a Difusão do Transtorno Obsessivo-Compulsivo

129 Os Grupos de Apoio a Pacientes e a Socialização das Teses Biológicas

130 Os Laboratórios Farmacêuticos e a Classe Médica

132 4. A Medicalização do Social e a Expansão da Psiquiatria


ao Campo da Normalidade
135 A Personalidade Múltipla: classificando pessoas
139 A Medicalização da Vida Cotidiana
145 A Globalização do DSM e a Americanização da Psiquiatria

150 Materialismo Biológico Eliminativo

155 CONSIDERAÇÕES FINAIS


159 EPÍLOGO
163 REFERÊNCIAS

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PRÓLOGO

Este trabalho foi escrito originalmente como dissertação de


mestrado em Saúde Coletiva, defendida em 2003, no Instituto de
Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e, diante
do curto prazo acadêmico estabelecido para sua feitura, buscou
antes formular perguntas consistentes do que responder a falsos
problemas, refletindo os meus alcances e limites intelectuais daquela
época. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica cujo escopo se apoia
na antropologia médica e na sociologia do conhecimento, tendo sido
escrito por um psicólogo implicado com o campo da saúde mental,
interessando, portanto, todos aqueles que, direta ou indiretamente,
transitam nesse campo por um viés crítico. Resolvi abordar um
tema naquela ocasião ainda pouco debatido, a remedicalização
da psiquiatria, processo esse que, na contramão das políticas
públicas de atenção psicossocial e das correlatas ações assistenciais
ampliadas e transversais em saúde mental, ameaça sua consolidação,
atravancando sua implementação. Apesar deste trabalho ter recebido
alguns ajustes e acréscimos ocasionais desde a época de sua redação
referentes ao conteúdo, quanto à sua forma, decidi deixá-la a mais
próxima possível do texto entregue à banca de defesa1, mantendo
a minha argumentação original e a mesma sequência de ideias.
Tratam-se de inquietações que sentia naquele momento, oriundas
de minha experiência pregressa de dois anos (1997-1999) como
discente de um projeto de extensão em saúde mental no hoje extinto
Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho (Cariacica/ES)2, na ocasião
de minha graduação em Psicologia, na Universidade Federal do

1
Constituída por minha orientadora, Prof.ª Jane Russo, e pelos professores examinadores Benilton
Bezerra Júnior, Octavio Domont de Serpa Júnior e Ana Teresa Venâncio, aos quais agradeço as “boas
leituras” – apropriando-me da feliz expressão de Hillis Miller.
2
Sob a supervisão da Prof.ª Maria Cristina Lavrador, a quem devo o incentivo em meus primeiros
passos acadêmicos.

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Espírito Santo. Vez ou outra, tais inquietações ainda parasitam meu


pensamento, aparecendo à minha revelia autoral como acréscimos
em meus textos da atualidade, os quais não dizem mais respeito
somente à temática aqui desenvolvida. Pretendo, com a publicação
deste trabalho, expurgar tais parasitas com a “sublime elevação deste
objeto ao estatuto de Coisa”, podendo, não obstante, promover o
efeito contrário e incitar meus demônios latentes, ao se cutucar com
vara curta o recalcado.

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INTRODUÇÃO

Desde o surgimento da psiquiatria, no início do século XIX, uma


questão crucial se coloca: a questão de seu pertencimento à esfera
médica. Desde aquela época, a psiquiatria “sofre de tentações congê-
nitas”, em virtude do estatuto ontológico controverso de seu objeto:
as doenças da alma (Swain, 1994, p. 263).
Desde seu nascimento, a psiquiatria foi atravessada pelas ideias-for-
ça que caracterizaram a construção do homem moderno. Nesse sentido,
foi fortemente influenciada pelo pensamento dualista cartesiano, que
afirma a existência no ser humano de duas ordens ontológicas distintas
– mente, espírito (res cogitans) e corpo, matéria (res extensa).
Abordaremos, aqui, a psiquiatria em seu contexto social, isto é,
falaremos mais amplamente do campo psiquiátrico. Bourdieu (1983)
denomina “campo” o espaço social no qual os agentes se encontram
em posições fixadas a priori. O campo se define como o locus onde
se trava uma luta concorrencial entre os atores em torno de interes-
ses específicos que caracterizam a área em questão. Nesse sentido,
pode-se falar em “campo artístico” e “campo científico”, com suas dis-
putas em torno da legitimidade dos produtos artísticos e da autori-
dade científica, respectivamente; “(...) todo ator social age no interior
de um campo socialmente predeterminado” (Ortiz, 1983, p. 19), ou
seja, ninguém está “fora” do campo, na medida em que a exclusão de
um determinado campo implica necessariamente o pertencimento
a outro; ninguém está fora das relações de poder que configuram os
vários campos constituintes da teia social.
O campo se particulariza, pois, como um espaço onde se mani-
festam relações de poder, o que implica afirmar que ele se es-
trutura a partir da distribuição desigual de um quantum social
que determina a posição que um agente específico ocupa em

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seu seio. Bourdieu denomina esse quantum de “capital social”. A


estrutura do campo pode ser apreendida tomando-se como re-
ferência dois pólos opostos: o dos dominantes e dos dominados.
Os agentes que ocupam o primeiro pólo são justamente aqueles
que possuem um máximo de capital social; em contrapartida,
aqueles que se situam no pólo dominado se definem pela ausên-
cia ou pela raridade do capital social específico que determina o
espaço em questão (Ibid., p. 21).

A assimilação do dualismo cartesiano pela psiquiatria, sobre a


qual fizemos alusão acima, tornou possível uma polarização do cam-
po psiquiátrico em torno de duas grandes vertentes: organicista e
psicogenicista. A corrente organicista, representante do polo físico,
calcou-se nas ciências naturais, enquanto a corrente psicogenicista, re-
presentante do polo “moral” (entendendo-se esse termo datado como
sinônimo da expressão atual “psicossocial”) calcou-se nas ciências
humanas. Trata-se de duas perspectivas epistemológicas distintas de
produção do conhecimento, sendo que “conflitos epistemológicos são
sempre, inseparavelmente, conflitos políticos” (Bourdieu, 1983, p. 124).
Essa tensão inarredável entre duas grandes vertentes opostas
tornou-se constitutiva do campo psiquiátrico. Ao longo de toda a his-
tória da psiquiatria, o pêndulo sempre oscilou entre elas, ora se apro-
ximando das teorias organicistas e do polo físico – como a teoria da
degeneração de Morel e Magnan, o determinismo orgânico de Bayle
e sua doutrina da paralisia geral progressiva (PGP), a nosologia1 de
Kraepelin etc. –, ora numa aproximação com as teses psicogenicistas
e com o polo moral – como a escola alienista de Pinel e Esquirol, a
psiquiatria dinâmica, a psiquiatria democrática italiana etc.
Testemunha-se o distanciamento da psiquiatria contemporânea
da vertente dinâmica (polo moral, psicogênese) e a consequente
aproximação do paradigma médico (polo físico, organogênese). Tal

1
A nosologia (do grego nósos = doença; logos = palavra, vocábulo, discurso, doutrina) é a parte
da medicina ou o ramo da patologia que trata das enfermidades em geral e as classifica do pon-
to de vista explicativo (isto é, de sua etiopatogenia). Enquanto a nosografia as ordena desde o
aspecto meramente descritivo (graphos = descrição).

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remedicalização do campo psiquiátrico materializa-se na hegemonia


da psiquiatria remedicalizada – dita “biológica”. O termo “remedica-
lização” implica uma contraofensiva do objetivismo médico, a partir
da década de 1980, sobre as propostas de “desmedicalização” da psi-
quiatria empreendidas pelos movimentos reformistas sanitários nas
décadas de 1960 e 1970.
Na era da “desmedicalização”, os psiquiatras adeptos da Reforma
Psiquiátrica se distanciaram do modelo médico (pautado no meca-
nicismo, no biologismo, no individualismo, no especialismo, na ex-
clusão das práticas alternativas, na tecnificação do ato médico e na
ênfase na medicina curativa) e se misturaram aos profissionais não
médicos (psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais,
musicoterapeutas etc.) criando o campo da “saúde mental”, que tor-
nou muito mais fluidas as fronteiras entre os diversos saberes consti-
tuídos – o que originaria, no Brasil, a chamada “clínica ampliada”.
Atualmente, o modelo da Atenção Psicossocial que regula as
políticas públicas assistenciais em saúde mental do Sistema Único
de Saúde (SUS) no Brasil – herdeiro do movimento da Reforma Psi-
quiátrica – possui como avatares diretrizes desmedicalizadas, asso-
ciadas a valores democráticos, que implicam a ampliação da clínica
e a transversalização das práticas de cuidado, voltadas aos agencia-
mentos desejantes e à promoção dos direitos humanos.
Com isso, o movimento de remedicalização empreendido pela
psiquiatria contemporânea vai de encontro aos anseios do SUS no
que tange à desmedicalização da assistência. Há um evidente emba-
te de forças ou, nas palavras de Bourdieu, um “conflito político” entre
o campo psiquiátrico e o campo da saúde mental. Percebe-se que
o que é dominante no campo psiquiátrico (a medicalização) corres-
ponde exatamente ao que é dominado no campo da saúde mental
e vice-versa, sendo ambos os campos atualmente antíteses perfeitas
um do outro, o que gera conflitos permanentes entre eles.
A atual hegemonia da psiquiatria remedicalizada, ao menos a
hegemonia teórica, se torna evidente quando se observa os atuais

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manuais nosográficos (CID e DSM2), os quais acabam por servir de


base à conduta psiquiátrica, dado que o manual de psiquiatria de
Kaplan & Sadock (1993), que guia às novas gerações de psiquiatras, é
uma espécie de DSM ilustrado. A psiquiatria biológica pretensamente
alinhou-se ao paradigma da Medicina Baseada em Evidências a partir
da terceira edição do DSM (APA, 1980), cuja metodologia foi repeti-
da e aprimorada nas suas edições seguintes e, também, na décima
edição da CID. A intenção dos idealizadores do DSM-III foi elaborar
um manual supostamente “descritivo e ateórico”, cuja precisão no-
sográfica superasse a especulação nosológica, criando um consenso
mundial acerca dos diagnósticos psiquiátricos, a partir da redefinição
empírico-pragmática das entidades psicopatológicas.
O DSM-III adotou novos critérios estatísticos para a diagnose, cri-
ticando a metodologia de seus antecessores, e desconsiderou
(...) a existência de um Sujeito na causação dos transtornos mentais
(...) Nascido da psiquiatria universitária norte-americana, conheci-
da como escola de St. Louis, o DSM-III teria por modelo a respos-
ta padrão à administração de uma substancia química específica.
Este procedimento denominado critério operacional pretendia
preencher a ausência de signos patognomônicos e de exames de
laboratório em psiquiatria, e, ao medicalizá-la, a retiraria de uma in-
fluência filosófica a que estaria submetida (...) (Leite, 2001, p. 137).

Para a psiquiatria biológica, as disciplinas associadas às humani-


dades (fenomenologia, psicanálise, antropologia etc.) são tão indig-
nas de figurar numa nosografia científica quanto a metafísica clássica
o é para a filosofia kantiana.
A ascensão da vertente biológica no campo psiquiátrico vem
acarretando três tipos complementares de reducionismo: o primeiro,
epistemológico, é o surgimento de um materialismo eliminativo de

2
Décima edição da Classificação Internacional das Doenças (CID), elaborada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS, 1993), e quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos
Mentais (DSM, sigla do inglês: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), elaborado pela
American Psychiatric Association (APA, 2013).

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caráter biológico – que tende a substituir quaisquer teses psicopato-


lógicas não fisicalistas por outras estritamente fisicalistas; o segundo,
antropológico, é a medicalização de pessoas, e não de doentes – a
partir da mercantilização de doenças e do estreitamento cada vez
maior do campo da normalidade; por último, mas não menos impor-
tante, o terceiro tipo de reducionismo, étnico-cultural, implica a glo-
balização da psiquiatria norte-americana e a oportunista imposição
de sua etnopsiquiatria ao “resto” do mundo.
Epistemologicamente, a psiquiatria biológica, para além de um
mero atavismo organicista, pretende substituir o paradigma dualis-
ta clássico da cultura ocidental (mente-corpo), introduzindo em seu
lugar um monismo fisicalista de cunho redutivo-eliminativo3. Rumar-
-se-ia, assim, para a extinção da tensão constitutiva do campo psiqui-
átrico entre os polos físico e moral e, por conseguinte, entre as teses
organicista e psicogenicista. Apesar da evidente falta de evidências4,
haveria uma afirmação única e exclusiva do polo físico em detrimen-
to do polo moral no campo psiquiátrico. O pêndulo não mais oscila-
ria, como ocorreu ao longo da história, entre esses dois polos, pois
se pressupõe que toda experiência subjetiva humana seja passível
de ser substituída por seus correlatos biológicos. A partir de então, o
fisicalismo eliminativo imperaria absoluto em seu monopólio expli-
cativo acerca das formas de desrazão, tornadas síndromes ou trans-

3
Redução e eliminação são os dois extremos de um mesmo espectro referente à relação entre teorias.
Uma teoria pode ser reduzida por outra mais abrangente, havendo sobreposição entre ambas – seja
homogênea (como na redução da lei do movimento dos corpos terrestres, de Galileu, à física newto-
niana), seja heterogênea (como na redução da termodinâmica à mecânica estatística). É possível, tam-
bém, que uma teoria prévia seja eliminada, devido à sua falsidade, por outra mais abrangente; nesse
último caso, ao invés de redução, tem-se a eliminação (que demarca um corte, uma ruptura, uma
escansão entre duas teorias – como a substituição da mecânica aristotélica pela mecânica clássica).
Conforme Jurandir Freire Costa, a psiquiatria biológica pretende “(...) ser um discurso totalizante sobre
a ‘natureza do sujeito’. Neste caso, qualquer fisicalismo pode tornar-se reducionista e eliminativista.
Reducionista porque afirma que todo enunciado não fisicalista da vida mental pode ser desdobrado
em enunciados quantitativos e equiparado a leis nomológicas predizíveis e controláveis experimen-
talmente. Eliminativista porque afirma que todo enunciado mentalista sobre o psíquico, nas ciências
humanas ou na psicologia popular [folk psychology], pode ser substituído, sem perda de sentido e
eficácia instrumental, por enunciados fisicalistas” (In SERPA Jr., 1998, p. 12).
4
“Bilhões de dólares gastos em pesquisas falharam em produzir evidência convincente de que qualquer
transtorno mental seja uma entidade nosológica distinta com uma causa única” (Frances, 2013, p. 19).

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tornos específicos, a partir da eliminação de sua dimensão trágica,


demasiadamente humana.
O sociólogo francês Alain Ehrenberg (2009) alerta para os perigos
reducionistas/eliminativistas do “programa forte” das neurociências,
que, ao fundir neurociência e psiquiatria, identifica conhecimento de
si e conhecimento do cérebro (mente e cérebro), transformando o cé-
rebro em ator social e em objeto de identificação, e originando uma
“biologia da consciência ou do espírito”, que reduz o Ser ao cérebro.
Não à toa que neurocientistas contemporâneos, posando de sábios,
denunciam em best-sellers e/ou na mídia as pretensas falhas do pen-
samento filosófico dualista ocidental, propondo, em seu lugar, um mo-
nismo fisicalista eliminativo para as massas. O cérebro, na medida em
que é visualizado pelas neurociências e interpretado por neurocientis-
tas, é, concomitantemente, (re)descoberto por filósofos, antropólogos,
psicólogos5 e demais profissionais das ciências humanas, como objeto
de suas respectivas disciplinas. Ehrenberg associa a entronização das
neurociências ao ideal ortopédico da autonomia individual generaliza-
da, presente nas sociedades industriais contemporâneas:
As razões sociais do sucesso popular das neurociências estão
menos relacionadas a seus resultados científicos e práticos do
que ao estilo de resposta dada para os problemas formulados
pelo nosso ideal de autonomia individual generalizada. Elas per-
mitem, hoje, consolar quem – na realidade, a maioria de nós –
tem dificuldade de encarar o mundo de decisão e ação que se
edificou sobre as ruínas da sociedade de disciplina, aquela que

5
Saulo Araújo, em Psicologia e Neurociência, aborda criticamente os riscos da pretensa elimina-
ção da folk psychology, proposta por filósofos da mente anglicanos de tradição materialista, em
favor de uma teoria compatível com os avanços das neurociências. Apesar de ser simpatizante da
proposta fisicalista e de apostar em uma “ontologia predominantemente materialista da visão de
mundo científica”, que procura “no cérebro a extensão dos conceitos psicológicos” e que aposta
“na identidade entre eventos cerebrais e eventos mentais” (Araujo, 2003, p. 61), esse autor conclui
seu trabalho com uma ressalva antieliminativista: “(...) não temos o menor motivo para aceitar a
subordinação da psicologia à neurociência (...) Tendo em vista as atuais circunstâncias, a eliminação
das categorias da folk psychology e sua substituição por termos referentes apenas a eventos e pro-
cessos cerebrais representariam uma restrição injustificada e equivocada tanto do objeto quanto
do método da psicologia” (Ibid., p. 64).

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conhecia o respeito à autoridade cuja perda é objeto de lamen-


tações cotidianas. Mas as neurociências suscitam também a es-
perança de que sejam dadas a todos técnicas de multiplicação
das capacidades cognitivas e de controle emocional, igualmen-
te indispensáveis a tal estilo de vida. É porque as neurociências
não são exteriores à ideia de “saúde mental”, elas são a sua ponta
científica e tecnológica. Os hábitos contraídos com o consumo
de medicamentos psicotrópicos, de drogas e substâncias do-
pantes, essas práticas neuroquímicas de usinagem de si, prepa-
ram o terreno largamente. A extensão das fronteiras de si que a
normatividade da autonomia (valorização da realização de si, da
ação individual, do self-ownership) recobre faz com que pareçam
reunidas as condições para que uma representação de si como
cérebro doente constitua uma referência semântica apropriada
(Ehrenberg, 2009, p. 202).

No que tange à psiquiatria, sua atual vertente biológica hege-


mônica é o braço direito do “programa forte” das neurociências.
De uma perspectiva antropológica, é justamente esse ideal
ortopédico da autonomia individual generalizada, do qual nos fala
Ehrenberg, que constitui a base (latente) do DSM. Ao extrair uma
etnopsicologia subjacente a esse manual, o antropólogo estaduni-
dense Atwood Gaines (1992) isola uma noção positiva idealizada do
eu: aquela de um “eu referencial”, autocontrolado, cujas questões
existenciais centrais se referem à autonomia, à individualização e ao
desenvolvimento/crescimento pessoal. Esse autor demonstra, assim,
que a psiquiatria biológica norte-americana é uma etnopsiquiatria
(na medida em que é porta-voz da tradição Protestante Germânica
do Norte Europeu e de sua concepção de eu) e não, como sustentam
seus idealizadores, produto de uma síntese científica supostamente
trans-histórica e transcultural.
As classificações do DSM são fenômenos culturais locais que es-
pelham uma determinada construção de “eus” (selves) ideais, em sua
empreitada discriminatória para com os Outros. Michel Foucault assi-
nala que o Outro se trata daquilo que para uma determinada cultura
lhe é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser excluído (para con-

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jurar-lhe o perigo interior) e encerrado ou, na versão contemporânea


da psiquiatria, medicalizado (para reduzir-lhe a alteridade) (Foucault,
1999, p. XXII). Os Outros, aqueles que destoam do ideal da autonomia
individual generalizada (isto é, a maior parcela da população mundial),
são construídos em termos puramente biológicos, sem, no entanto,
existirem concretamente, como ilustra o caso da criação da categoria
social “hispânicos” como uma nova “raça” nos Estados Unidos. Em
suma: “o processo classificatório cada vez mais classifica (categorias de)
pessoas, e não doenças” (Gaines, 1992, p. 19).
Dessa mesma perspectiva, o filósofo canadense Ian Hacking
(1986) propõe a noção de “invenção de pessoas” (making up people).
A ideia central do autor é que novos modelos identificatórios surgi-
riam pari passu com a construção social das doenças. Novas catego-
rias de pessoas (“aspies”, “múltiplos”, “hiperativos”, “ansiosos”, “distími-
cos”, “disfóricos”, “fóbicos”, “antissociais” etc.) surgiriam por intermédio
do processo de construção nosográfica e do enquadramento dessas
pessoas à racionalidade médica6. As indústrias farmacêuticas multi-
nacionais têm um importante papel na difusão dessas categorias no
imaginário social, já que elas visam a direcionar “novos” medicamen-
tos7 (ou redirecionar medicamentos antigos) para os novos transtor-
nos surgidos com as edições sucessivas do DSM, no intuito de am-
pliar o mercado consumidor de seus compostos químicos: “Foram-se
os tempos em que os laboratórios farmacêuticos anunciavam me-
dicamentos para tratar doenças. Agora frequentemente é o inverso.
Eles anunciam doenças para encaixar seus medicamentos” (Angell,
2007, p. 102). Essa redução do campo da normalidade e consequen-
te ampliação do campo do patológico, constatado pelo aumento do
número de transtornos ao longo das sucessivas edições do DSM, cul-
mina numa hipermedicalização do social sem precedentes. O patoló-
gico – bastante ampliado pelo fato de sua apreensão ter passado a se
dar nesse manual por intermédio de noções como as de “sofrimento”

6
Tal ideia aproxima-se da noção de “bioidentidade”, de Jurandir Freire Costa, O Vestígio e a Aura (2004).
7
Trata-se aqui da “novidade” fabricada pelas indústrias farmacêuticas e, portanto, falsa, advinda dos
chamados “medicamentos de imitação”, que constituem o seu principal negócio. Cf. Marcia Angell,
A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos (2007).

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Rogério Paes Henriques 23

e “risco” – passa a ser a nova norma, a partir da qual se medem os


desvios, isto é, o saudável, cada vez mais raro. A consequência clíni-
ca no campo psiquiátrico é que, diante dessa “inflação diagnóstica”
(Frances, 2013) ou “nosologomania” (Ghaemi, 2009), o que é de fato
preocupante (como os notáveis agravos mentais) passa a não rece-
ber a devida atenção.
No que tange à dimensão étnico-cultural, em sua pretensão
universalista, o DSM-III e seus sucessores descrevem as perturba-
ções mentais como “síndromes”, isto é, como o conjunto de sinais e
sintomas associados com algum processo mórbido, que constituem
juntos o quadro de uma doença. Como “descrições da natureza”, as
síndromes permaneceriam constantes ao longo do tempo e do es-
paço, podendo, assim, ser identificadas por qualquer pesquisador,
gerando um consenso acerca da prática psiquiátrica (Prince & Tchen-
g-Laroche, 1987, p. 5). A nosso ver, trata-se de um grande equívoco
conceber as perturbações mentais como se fossem tipos naturais,
ou seja, fenômenos objetivos que existem independentemente dos
contextos sociais e de nossos esforços linguísticos de categorização
e de investigação – como sugere o DSM-III e seus sucessores, através
do eufemismo “transtorno”. As perturbações mentais não são doen-
ças naturais (diseases), mas sim formas de experiência e interpretação
cultural dessa experiência que ocorre em indivíduos e grupos sociais
(illness). Ao pretensamente construir uma nosografia científica, uni-
versalmente válida, a psiquiatria norte-americana, por intermédio
da influência política e econômica da American Psychiatric Associa-
tion, acaba por generalizar sua etnoclassificação das perturbações
mentais às demais culturas. Com efeito, o atual consenso mundial
em torno da metodologia do DSM resulta na universalização (leia-se:
americanização) da prática psiquiátrica biologicamente orientada e
seu corolário: a clínica medicamentosa, que, protocolarizada, ofusca
outras formas de entendimento e tratamento existentes.
Enfatizaremos neste trabalho, esses três tipos de reducionismo
advindos da remedicalização da psiquiatria, apresentando também
um amplo histórico desse fenômeno.

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24 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Este trabalho divide-se em duas partes, que podem ser lidas de


modo independente, cuja primeira apresenta as ferramentas concei-
tuais por nós utilizadas e um panorama histórico do fisicalismo em
psiquiatria, desde os seus primórdios, que nos remete à psiquiatria
organicista da segunda metade do século XIX, até a psiquiatria bio-
lógica contemporânea, que teve sua hegemonia no campo psiqui-
átrico ocidental consolidada na última década do século passado.
Pretendemos expor os três movimentos que se sucederam crono-
logicamente na história da psiquiatria, desde sua “medicalização”,
operacionalizada pela psiquiatria organicista oitocentista, passando
pela sua “desmedicalização” proporcionada pela psiquiatria dinâmica
e pelo movimento da Reforma Psiquiátrica, no pós-II Guerra Mundial,
até sua “remedicalização”, empreendida na contemporaneidade pela
psiquiatria biológica – sobretudo, com base na (controversa) eficácia
da psicofarmacoterapia moderna.
Na segunda parte, descreveremos as vicissitudes da nosografia
psiquiátrica norte-americana, a partir da série de seu manual oficial, o
DSM, que espelham a hegemonia da psiquiatria biológica no campo
psiquiátrico contemporâneo. Discutiremos os fundamentos da nova
metodologia proposta pela terceira edição do DSM, em 1980, associados
à doxa empirista. Apontaremos, também, o papel crucial do complexo
industrial farmacêutico na difusão da nova nosografia proposta pelo
DSM-III, ou seja, na “mercantilização da doença”. Assinalaremos, por
fim, algumas consequências da hegemonia do paradigma biológico
em psiquiatria, referentes aos três reducionismos aqui já aludidos e ao
processo mais amplo de medicalização da vida cotidiana.

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PARTE 1
A DINÂMICA DO CAMPO PSIQUIÁTRICO

1. Medicalização e Desmedicalização: aspectos


conceituais

Antes de adentrarmos o campo psiquiátrico propriamente dito,


faremos uma breve apresentação dos conceitos de “medicalização” e
“desmedicalização” com base em Conrad (1992), Nye (2003) e Clarke
et al. (2000) para fins de esclarecimento do modo como os enten-
demos e os utilizamos neste trabalho. Este tópico resume os argu-
mentos principais desses autores referentes aos conceitos citados,
mesclando-os, e não pretende esgotar o assunto, mas antes, servir-
-nos de ferramenta conceitual aos nossos propósitos.

Breve Histórico da Medicalização


Talcott Parsons, na década de 1950, foi provavelmente o primeiro au-
tor a conceitualizar a medicina como uma instituição de controle social,
especialmente o modo pelo qual a “função doente” poderia condicional-
mente legitimar que o desvio se denominasse “perturbação” (illness)8.

8
Na língua inglesa, a sutil distinção semântica entre disease e illness aponta para uma distinção con-
ceitual, respectivamente, entre doença concebida como entidade biológica universal e formas de
experiência e interpretação cultural dessa experiência que ocorre em indivíduos e grupos sociais.
De modo geral, as categorias psiquiátricas são illness, e não diseases. A opção do DSM pelo termo
dis-order (traduzido por “transtorno” ou “distúrbio”), dado seu prefixo, parece sugerir aí uma organi-
cidade, em sua pretensão velada de tomar as categorias psiquiátricas como dis-eases. Curioso que
em sua série aliterativa, a definição de mental disorder requer a presença de distress, disability, dys-
function, dyscontrol e/ou disadvantage – demarcando claramente uma visão deficitária de doença,
oriunda do saber biomédico, apesar da maquiagem semântica.

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26 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Na década de 1970 o tema da medicalização adentrou o cam-


po das ciências sociais. Os primeiros autores a abordá-lo foram os
teóricos da Antipsiquiatria (D. Cooper, T. Szasz, R. Laing etc.) muito
embora sem utilizar o termo em si. Vários “estudos de caso” específi-
cos (hiperatividade em crianças, doença mental, abuso infantil, alco-
olismo como doença) foram publicados. Primeiramente apresentada
por Irving Zola, em 1972, que a descrevia como a extensão crescente
da jurisdição médica (de sua autoridade e de suas práticas) à vida das
pessoas, Ivan Illich usou o termo “medicalização da vida” em sua obra
A Expropriação da Saúde: Nêmesis da Medicina, de 1975, promovendo
assim sua operacionalização.
Existem duas definições recentes para o conceito de medicaliza-
ção: a definição soft de Paul Weindling, que a entende como extensão
da racionalidade médica a uma ampla gama de atividades sociais; a
definição hard de Thomas Szasz, que a concebe como conversão di-
reta de problemas sociais e morais em doenças (apud Nye, 2003).
Há, atualmente, um consenso entre os estudiosos do assunto de
que a medicalização resulta de problemas humanos – sejam com-
portamentos desviantes (loucura, homossexualidade, transexualida-
de, abuso de álcool e drogas, hiperatividade ou déficits de aprendi-
zagem em crianças, obesidade, anorexia, abuso infantil, compulsão
por jogos de azar etc.), outrora considerados problemas espirituais/
morais ou legais/criminais, sejam “processos da vida natural” (sexu-
alidade, parto, desenvolvimento infantil, síndrome pré-menstrual,
menopausa, envelhecimento e morte) – que vêm a ser designados
como problemas médicos, geralmente nos termos de “perturbações”
(illnesses) ou “transtornos” (disorders).
A medicalização opera fazendo problemas sociais (frequente-
mente associados ao corpo e que colocam dilemas morais) passarem
da competência da lei àquela da medicina, novo locus privilegiado
de controle social. As condutas desviantes são, cada vez mais, rotu-
ladas e tratadas pela medicina, cujo mandato social autoriza e legi-
tima a redefinição médica desses problemas sociais. Quanto mais as
premissas médicas tornam-se aceitas socialmente, mais diminuem o

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Rogério Paes Henriques 27

alcance das premissas concorrentes, e vice-versa. Conrad (1992) pro-


põe três níveis distintos de medicalização, aos quais correspondem
três tipos de controle social médico: (1) Nível conceitual: trata-se de
“ordenar” um problema usando-se um vocabulário ou modelo médi-
co, não envolvendo necessariamente condutas médicas diretas so-
bre esse problema. Exemplo: síndrome pré-menstrual, sobre a qual
o controle social médico praticamente se reduz ao plano ideológico.
(2) Nível institucional: instituições podem adotar uma abordagem
médica para tratar problemas organizacionais. Exemplo: programas
de combate ao fumo entre os colaboradores/funcionários da empre-
sa, screenings para detecção do uso de drogas e AIDS entre eles etc.
Nesse caso, os médicos atuam enquanto gestores colaboracionistas,
legitimando as condutas organizacionais realizadas por não médicos.
(3) Nível interacional: aqui, a medicalização é parte da relação médi-
co-paciente, quando um profissional médico diagnostica um proble-
ma qualquer como problema médico e adota uma conduta médica
correspondente. O controle social médico atua, então, no nível das
intervenções tecnocientíficas/biotecnológicas (exemplo: prescrições
farmacológicas para as transgressões comportamentais da infância/
adolescência ou para a disfunção sexual masculina em adultos, trata-
mentos cirúrgico e hormonal para a transexualidade, técnicas avan-
çadas de transplante e de reconstituição de tecidos etc.). Trata-se do
nível de medicalização mais frequente e do vetor por meio do qual
ela se expande na atualidade, sobretudo associado aos conceitos de
“risco” e “vulnerabilidade” – como veremos adiante.
A implicação direta dos médicos com a medicalização varia des-
de o pouco ou, mesmo, nenhum envolvimento direto no plano da
práxis, passando pelo médio envolvimento direto, até culminar no
ápice do envolvimento direto com o paciente, na ponta dos servi-
ços de saúde. Dessa forma, algumas condições são completamente
medicalizadas (morte, nascimento/parto), outras são parcialmente
medicalizadas (menopausa), e outras, ainda, são minimamente me-
dicalizadas (compulsão sexual, violência doméstica). São fatores que
influenciam os níveis da medicalização: disponibilidade de interven-
ções e tratamentos médicos, existência de definições/explicações
concorrentes (presença de grupos que desafiam a opinião médica

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28 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

como, por exemplo, do movimento feminista na definição dominan-


te e na conduta padrão adotada aos casos de violência contra a mu-
lher), cobertura pelas seguradoras de saúde (que abrangem somente
tratamentos para problemas “médicos”).
Dois aspectos contingenciais teriam favorecido a medicaliza-
ção nas sociedades ocidentais modernas: primeiro, com a seculari-
zação, a medicina tomou o lugar da religião enquanto ideologia e
instituição de controle social nessas sociedades – com o avanço da
racionalidade científica e tecnológica, muitas condições têm tido seu
estatuto ontológico transformado do pecado para a doença (Conrad,
1992, p. 213). Assim, a “ideologia ou moralidade da saúde” (do inglês
healthism ou do francês santé-isation) que recai, por exemplo, sobre
a obesidade e a sexualidade (sobretudo as práticas de promoção
de saúde invasivas, que desrespeitam os estilos de vida escolhidos),
assemelham-se muito à moral cristã, que concebe respectivamente
a “gula” e a “luxúria” como pecados capitais. Se na década de 1980 a
epidemia de AIDS foi encarada pela medicina ocidental de uma pers-
pectiva predominantemente moralizante, como o comprovam as
metáforas associadas ao castigo/punição construídas ao seu redor:
“peste ou câncer gay”, “grupo de risco” (Sontag, 2007), atualmente,
com seu maior controle epidemiológico (ao menos nos países mais
ricos) e sua disseminação indiscriminada por vários segmentos so-
ciais, essa perspectiva moralizante tende a amenizar-se. Contudo,
continua sendo um eficaz instrumento de controle social do ponto
de vista moral se alertar a população sobre os riscos de se contrair
doenças sexualmente transmissíveis em relações sexuais às cegas,
do que se lhe admoestar que é pecado trair o cônjuge ou se promis-
cuir. Dessa forma, os processos de medicalização em jogo a partir da
segunda metade do século XX substituíram a tradicional oposição
binária bem/mal por outra saudável/doente, como quadro cultural e
conceitual maior do Ocidente (Clarke et al., 2000, p. 12).
O segundo motivo para a atual amplitude da medicalização rela-
cionar-se-ia à criação de novas ofertas de serviços pela própria medi-
cina, cuja práxis, em função das transformações tecnológicas das úl-

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Rogério Paes Henriques 29

timas quatro décadas e o consequente controle das epidemias letais,


vem deslocando paulatinamente o seu enfoque da doença para a
saúde, do patológico para o normal – a medicina até então predo-
minantemente curativa e, quando muito, preventiva, vem se tornan-
do, a cada dia, mais preditiva (chamada “medicina da vigilância” por
Clarke et al., 2000, p. 26). Esta questão insere-se nas mudanças em
curso que apontam para a passagem da modernidade à modernida-
de tardia/avançada ou pós-modernidade. Nessa era aparentemente
“pós”, resgata-se a vocação intrínseca à medicina moderna, que surge
como medicina social na Idade Clássica (Foucault, 1979), cujos efeitos
de poder localizam-se na “normalização” da população, com uma pa-
nóplia de estratégias concentradas no saber, no controle e no bem-
-estar que visam ao gerenciamento dos processos vitais humanos9.
A novidade trazida pela medicina contemporânea nesse reencontro
com suas origens é seu foco não mais incidir apenas sobre o patoló-
gico (seja com ações curativas ou preventivas), mas, sobretudo, sobre
o “parapatológico”, isto é, sobre a categoria nebulosa “população de
risco” que se encontra em presumida situação de “vulnerabilidade so-
cial” suscetível às patologias – passa-se, assim, de uma prática de cura
a um controle da vida.
Os conceitos de “vulnerabilidade” e “risco” são os principais res-
ponsáveis pela expansão da medicalização na contemporaneidade.
Acrescentaríamos a “vigilância médica” como mais um nível de con-
trole social médico aos outros três acima descritos. Trata-se do que
os anglicanos denominam healthicization ou, em bom português,
“promoção da saúde”. Diferentemente da medicalização clássica, que
assimila a moral à medicina, propondo soluções médicas para pro-

9
Isso corresponde ao que Foucault define como biopoder: “aquilo que faz com que a vida e seus
mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de trans-
formação da vida humana” (1984, p. 134). O biopoder teria um dos seus pólos reguladores centrado
na população e outro centrado na “anatomopolítica do corpo humano” via tecnologias disciplinares.
Trata-se da invenção, no século XVIII, de “tecnologias positivas de poder”, surgidas a partir da substitui-
ção do modelo de intervenção sobre a lepra (segregacionista e marginalizador) pelo modelo da peste
(inclusivo e normalizador) – Cf. aula de 15 de janeiro de 1975, em Michel Foucault, Os Anormais (2001).
O biopoder é o operador primordial da vida nua (zoe), que apaga os traços da vida qualificada (bios) na
contemporaneidade, para usar as expressões de Giorgio Agamben, Homo Sacer (2002).

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blemas morais, a promoção da saúde define a saúde como a nova


moral, promovendo estilos de vida desejáveis segundo a ideologia
ou moralidade da saúde. Trata-se do que alguns autores denominam
de “higiomania”, que descreve a obsessão com a higidez na atualida-
de. A nosso ver, a promoção da saúde é um aggiornamento da me-
dicalização clássica, à luz da contemporaneidade. Sugere-se o termo
“biomedicalização” como referência a tal aggiornamento, propondo-
-se o seguinte quadro explicativo:

MEDICALIZAÇÃO BIOMEDICALIZAÇÃO

Controle Transformação

Expansão da jurisdição médica a no- Transformação das infraestruturas da biomedicina,


vos domínios baseadas nas tecnociências

Paradigma operatório: definição,diag- Paradigma operatório: definição, diagnóstico e tra-


nóstico e classificação das doenças tamento dos riscos (avaliação, vigilância e triagem)
(detectar, classificar e tratar)
Organização dos serviços dominada Organização dominada por um managed care sys-
pelos médicos tem, via tecnoserviços

Os prontuários dos pacientes são Doença digitalizada, amplamente distribuída. Tra-


locais e impressos em papéis (a fo- tamento e armazenamento da informação médica
tocópia e o aparelho de fax foram as e dos dados da seguradora de saúde
maiores inovações)

Controle profissional sobre a produ- Heterogeneidade dos modos de produção da infor-


ção e a distribuição do saber médico mação e do saber sobre a saúde, a doença, a pato-
logia e a medicina

Corpos universais e “taylorizados”; tec- Corpos especificados: tecnologias e produtos far-


nologias / dispositivos médicos e medi- macêuticos adaptados localmente; corpos trans-
camentos do tipo “tamanho único” formados, tipo “sob medida”, personalizados

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Rogério Paes Henriques 31

MEDICALIZAÇÃO BIOMEDICALIZAÇÃO

Medicina de “caso”/individual, com Medicina de resultado/baseada em evidências, no


um controle local (com frequência no interior de um managed care system, utilizando as
consultório do médico) da informa- tecnologias de ajuda à decisão e os bancos de da-
ção sobre os pacientes dos informatizados dos pacientes

Organização econômica, racionaliza- Privatização econômica, descentralização, transna-


ção, corporatização e nacionalização cionalização/globalização

Extraído de Clarke et al. (2000, p. 15)

Nota-se que essa noção de “biomedicalização”, ao invés de ope-


rar uma ruptura com a ideia precursora de medicalização, radicaliza
o seu processo já em curso, prolongando-o no espaço e no tempo:
para além do exercício do poder de vigilância e de controle momen-
tâneo sobre os corpos personalizados, atinge-se os espaços extracor-
porais do comportamento e da ação no porvir. A nosso ver, a bio-
medicalização possui relações acumulativas e não excludentes com
a medicalização, não havendo, portanto, descontinuidade histórica
nem necessidade de distinção conceitual entre ambas; trata-se antes
de sobreposição que de ruptura conceitual.

A Saúde como Ideal de Bem-Estar e a Medicalização


Gostaríamos de comentar, agora, um fator que pensamos con-
tribuir com a expansão da medicalização na contemporaneidade,
acrescentando nossa contribuição à leitura que fizemos dos autores
aqui utilizados como referência principal. Trata-se da própria defini-
ção do conceito de saúde pela Constituição da Organização Mundial
de Saúde (OMS) como “completo bem-estar físico, mental e social, e

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32 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

não mera ausência de doença ou enfermidade”10. Essa definição, ao


mesmo tempo em que se mostra um efeito no plano teórico-con-
ceitual da medicalização, mostra-se também, no plano ético-político,
um multiplicador dessa mesma medicalização. Para além dos avan-
ços no que tange a uma visão mais integral da saúde, a definição da
OMS permanece problemática, dado que a noção de “bem-estar”,
além de relativista ao extremo, alça a saúde a um patamar utópico,
pragmaticamente inalcançável. A saúde, ao invés de ser definida
negativamente, como falta (ausência de doença ou enfermidade),
torna-se algo produtivo que devemos nos esforçar por alcançar, tor-
na-se um projeto contínuo, uma realização em si, mas também uma
realização de si mesma, visto que inalcançável. Em suma: a saúde
assume a função de um novo ideal. Supomos que a saúde definida
como “completo bem-estar” vem diminuindo gradativamente a tole-
rância social com relação ao mal-estar, sobretudo para com as formas
de mal-estar subjetivo intrínsecas à condição humana, já que a proje-
ção de um idealizado “bem-estar” passou a ser a norma moral de sa-
lubridade perfeita a partir da qual os desvios passaram a ser medidos
e patologizados. A consequência é que o campo do patológico tal-
vez tenha se tornado maior do que o próprio campo da normalidade
(reduzido ao ideal), em uma inversão de valores nunca antes vista:
“Quem dentre nós ousaria reivindicar saúde se isso requer encontrar
tal padrão impossivelmente elevado? A saúde perde valor como um
conceito quando este é tão impossível de se obter, que todo mundo
é, ao menos parcialmente, doente” (Frances, 2013, p. 09).
Na reconfiguração de valores típica da “cultura somática”, como
Costa (2004) designa as sociedades industriais contemporâneas, a
saúde modifica-se sendo reduzida ao culto ao corpo e o cuidado de

10
“Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of
disease or infirmity”. Documento disponível em: <http://www.who.int/governance/eb/who_constitu-
tion_en.pdf>. Acesso em 16 out. 2010. Na língua inglesa, disease (doença) indica a presença de uma
patologia de base, independentemente do estado sintomático ou assintomático do doente, que pode
manifestar ou não prejuízo visível/imediato; trata-se de um conceito mais amplo que infirmity (enfer-
midade), que é o estado sintomático provocado pela presença de uma patologia de base que implica
sofrimento/sintoma/fraqueza ou qualquer consequência negativa visivelmente percebida no enfermo.

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Rogério Paes Henriques 33

si volta-se para a longevidade e a boa forma, em detrimento do de-


senvolvimento de atributos morais e psicológicos; nesse sentido, o
indivíduo volta-se para o desempenho segundo a moral do espetá-
culo. Trata-se de uma moral das sensações centrada no corpo e mo-
delada pelos preceitos da “qualidade de vida”, os quais, ironicamente,
desprovêem a vida de sua qualificação, ao reduzi-la à sua dimensão
biológica e ao despolitizá-la. O corpo ressurge imponente, dita as re-
gras de sociabilidade11 e perpassa o conjunto das tramas discursivas.
Os fenômenos psicológicos passam a ser, cada vez mais, atribuídos a
causas físicas e o sofrimento psíquico é medicalizado. Justifica-se a
medicalização não mais com o intuito de proteger a “parte saudável”
da sociedade eliminando suas “impurezas”, mas sim com o objetivo
“altruísta” de promover a saúde (ou seus eufemismos: “bem-estar” ou
“qualidade de vida”) dos “vulneráveis em risco”. Desse modo, o indi-
víduo triste ou enlutado passou a ser encarado como depressivo, o
desatento/inquieto como hiperativo, o agitado como ansioso, o ido-
so hipomnésico como demente, o usuário recreativo de drogas como
dependente químico (se não de fato, ao menos, em potencial, dadas
suas presumidas vulnerabilidades face sua exposição ao risco, o que
já implica algum nível de medicalização), e assim por diante.
A postura da OMS na definição da saúde é similar à do perso-
nagem Simão Bacamarte que, no conto O Alienista de Machado de
Assis, ao definir a sanidade mental como o “perfeito equilíbrio de
todas as faculdades” (Machado de Assis, 1995, p. 28), acabou por in-
ternar no hospício da Casa Verde 4/5 da população da cidadezinha
de Itaguaí, onde ele atuava como psiquiatra. Bela ilustração dessa
inversão de valores que esvazia o campo da normalidade, transfor-
mando quase todos em “doentes”. Atualmente, ao invés de interna-
ção (segregativa e marginalizadora), tal qual a ficção machadiana,
há medicamentação (inclusiva e normalizadora) – de acordo com os
novos dispositivos de exercício do poder.

11
Tal como no conceito de “biossociabilidade”, em Paul Rabinow, Antropologia da Razão (1999).

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34 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

A saúde deixou de ser a vida no silêncio cotidiano e no anonimato,


como a concebia Canguilhem (2002), deixou de ser algo ligado ao
“milagre do autoesquecimento”, conforme a feliz expressão de Gadamer
(2006); ambos os autores partem do pressuposto mais sensato de
que a saúde revela-se na sua ocultação – tal como na famosa frase de
Heráclito: “A harmonia oculta é sempre mais forte que a manifesta” (apud
Gadamer, 2006, p. 120) –, e não na sua exaltação, como na atualidade
a partir de sua espetacularização performática: “Exalarás bem-estar por
todos os teus poros!” – diria o espírito do biocapital e sua ética somática.
O paradoxo é que “(...) o objetivo visado de uma população com-
pletamente saudável – corpos que sejam ‘naturais’ e ‘desmedicaliza-
dos’ – só pode ser alcançado pela internalização individual de uma
perspectiva de vida totalmente medicalizada” (Nye, 2003, p. 119); em
suma: é-se tanto mais “saudável” quanto mais capturado pelos dispo-
sitivos do biopoder.
(...) Com a expansão crescente da biomedicina à vida cotidiana,
torna-se cada vez mais necessário aos leigos aprender a conhecer
e a utilizar esses discursos. Toda uma literatura sobre a saúde e a
doença prolifera na mídia, na Internet e na publicidade (...) e, cada
vez mais, cada um é tido como responsável pela gestão de sua pró-
pria saúde. A aquisição e o consumo de serviços biomédicos, assim
como de outros serviços sanitários, não são mais percebidos como
o privilégio de alguns, mas sim como uma obrigação de todos.

Além disso, o capitalismo entrou no setor da saúde de tal modo


que os indivíduos são construídos como consumidores de bens e
de serviços biomédicos e, por conseguinte, como consumidores
de saberes e de práticas. Essa tendência do capitalismo genera-
lizado traduz-se pela privatização crescente do complexo médi-
co-industrial e pela dominação do managed care system como
modelo para um sistema de oferta de cuidados eficaz e racional.
Nesse contexto, os indivíduos passam do estatuto de doentes
“leigos” passivos a de consumidores ativos responsáveis por seu
próprio vir a ser biomédico (Clarke et al., 2000, p. 23).

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Rogério Paes Henriques 35

Dentre as principais consequências da medicalização sugeridas


por Conrad (1992) estão: assunção da moral médica como principal
instância de controle social e o domínio da vida por tais especialistas,
individualização de problemas sociais, tecnicização extrema da con-
duta médica, despolitização do comportamento e deslocamento da
responsabilidade com respectiva desautonomia individual.

Desmedicalização: a contraofensiva democrática


A desmedicalização não ocorre até que um problema já não seja
mais definido em termos médicos e que tratamentos médicos já não
sejam considerados soluções apropriadas; por exemplo, quando o
parto passar a ser definido como um evento da vida familiar com leigos
o assistindo, o alcoolismo crônico como um problema mais educativo
do que médico ou a menopausa como um evento da vida natural,
impróprios em serem geridos pelo saber médico. Dada a estatura e o
poder da medicina, a desmedicalização, geralmente, só é alcançada
após algum tipo de movimento organizado que desafia a definição e
o controle médicos, como no caso dos grupos homossexuais norte-
americanos, que conseguiram excluir a homossexualidade dos
quadros nosográficos da terceira edição do DSM (vide tópico “O DSM-
III: dos símbolos aos sinais ou de Freud a Kraepelin”, cap. 1; parte 2).
Outros fatores que podem influenciar a desmedicalização são
alguns tipos de tecnologias que têm estimulado maior autonomia
dos indivíduos com seus próprios cuidados de saúde (testes caseiros
de gravidez e instrumentos caseiros de inseminação artificial, kits de
autocuidado etc.), mudanças nas políticas públicas e no reembolso
dos planos de saúde, e a difusão do conhecimento médico na Inter-
net que tem se mostrado inversamente proporcional ao reforço da
autoridade médica, haja vista que esse mesmo conhecimento, de-
mocratizado e acessível com alguns poucos cliques, pode ser usado
contra a própria instituição médica.
Assim, há todo um campo chamado “estudos da deficiência”
(disability studies) no mundo anglo-saxão, os quais, nas últimas qua-

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36 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

tro décadas, vêm desbancando a concepção médica negativista da


“deficiência” (disability) como doença e construindo um discurso da
deficiência como diferença a ser afirmada. Ortega (2009) nos relata
o caso dos autistas de alto funcionamento ou “aspies” que, após te-
rem sido medicalizados em 1994 pelo DSM-IV, que incluiu a chamada
“síndrome de Asperger” (autismo de alto funcionamento) na sua no-
sografia, agora lutam, inclusive com os recursos da Internet, pela des-
medicalização de sua condição, advogando o direito à diversidade e
à afirmação de sua diferença – prova de que categorias psiquiátricas
têm sempre “fronteiras disputadas” e seu estatuto ambíguo exige
uma constante negociação pública.
O terceiro plano autista12, recém-aprovado pelo governo francês
para exercício entre 2013 e 2017, oficializou a concepção do autismo
como “deficiência neurodesenvolvimental de origem genética”, e não
mais como “doença”. Ao que parece, isso tem trazido muito mais ônus
do que vantagens no que tange à assistência pública ao autismo na
França, pois, concomitantemente, abandonou-se também concei-
tos-chave da clínica ampliada como “cuidado” e “atenção” em prol de
outros, mais normalizadores, como “suporte”, “compensação” e “adap-
tação”. Essa concepção biológica do autismo – que é meramente uma
hipótese a mais, e não uma evidência científica, como seus signatários
apregoam (Menéndez, 2012) – lhe limita o espectro de possibilidades
terapêuticas, restringindo-as às práticas “com eficácia científica com-
provada” (leia-se: afins à racionalidade neoliberal), basicamente: me-
dicamentação e psicopedagogia de base cognitivo-comportamental.
Eliminou-se do campo de possibilidades terapêuticas sobre o autismo
(ao menos no setor público francês) a psicoterapia institucional e a psi-
canálise, bodes espiatórios do suposto fracasso terapêutico histórico.
O problema não é o discurso biológico sobre o autismo em si (sus-
tentado pelas neurociências e pelas ciências cognitivas), tão legítimo
quanto qualquer outra hipótese etiológica, mas sim o materialismo
eliminativo que ele implica, tanto na teoria (ao excluir as demais teses

12
Disponível em: <http://www.social-sante.gouv.fr/actualite-presse,42/breves,2325/presentation-
du-3eme-plan-autisme,15797.html>. Acesso em 08 jun. 2013.

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Rogério Paes Henriques 37

não materialistas) quanto na prática (ao excluir as práticas não empíri-


co-pragmáticas), calando o debate democrático intrínseco ao campo
polifônico da saúde mental em prol de um falso consenso, que se im-
põe como pretensa verdade científica.
No outro extremo do espectro autista, os autistas de baixo fun-
cionamento (síndrome de Kanner) – representados à revelia por as-
sociações de pais e amigos – são difusores entusiastas desse discurso
biológico sobre o autismo, combatendo vigorosamente a tentativa de
desmedicalização dessa condição proposta pelos “aspies” e deman-
dando com forte apelo emocional cada vez mais medicalização e ciên-
cia13. O contexto histórico atual do mundo ocidental, regido pela lógica
de mercado, faz com que o pêndulo oscile a favor das reivindicações
desse grupo defensor da medicalização do autismo. Prova disso é que
a quinta e última edição do DSM, recém-publicada em 2013, incorpo-
rou a síndrome de Asperger no transtorno do espectro autista14.
Como se pode perceber, as acirradas disputas públicas em torno
do estatuto do autismo (portadores de Asperger versus portadores
de Kanner) é o emblema maior do enviesamento político do cam-
po psiquiátrico: “A psiquiatria é especialmente vulnerável à manipu-
lação das fronteiras entre o normal e a doença, porque lhe faltam
testes biológicos e porque depende maçicamente de julgamentos
subjetivos que podem ser facilmente influenciados pelo marketing
habilidoso” (Frances, 2013, p. 29).
Soto (2012, p. 236-237) nos sugere alguns procedimentos que
visam à promoção da desmedicalização: (1) considerar sempre o efei-
to global em cascata de qualquer procedimento, e não apenas sua

13
Acerca das formas alternativas de tratamento do autismo que põe em xeque o crescente mo-
nopólio terapêutico científico, vide o documentário: The Horse Boy, direção de Michel Orion Scott,
Estados Unidos, 2009, Cor/93 min. Ele narra a história real de um garoto autista norte-americano
que, após seu périplo por consultórios médicos e tratamentos científicos convencionais, que não
davam resultado, resolve, juntamente com seus pais, viajar à Mongólia e se submeter às curas xa-
mânicas das tribos nômades.
14
Ver:<http://www.dsm5.org/Documents/Autism%20Spectrum%20Disorder%20Fact%20Sheet.
pdf>. Acesso em 08 jun. 2013.

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38 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

conveniência local; (2) considerar os fatores orgânicos como inseri-


dos no contexto mais amplo da “qualidade de vida” (vida qualifica-
da); (3) considerar que não existe a saúde perfeita e que é impossível
levar uma vida com grau zero de risco; (4) desconfiar da informação
médica proveniente do marketing das empresas hospitalares e far-
macêuticas, transmitida como “evidência” científica “desinteressada”
pela mídia; (5) entender que os chamados “fatores de risco”, embora
tenham fundamento estatístico, nunca são aplicáveis de modo dire-
to a casos individuais, isto é, têm pouca utilidade clínica; (6) tratar
os chamados “sintomas indefinidos” (aqueles que denotam um fla-
grante descompasso entre os dados objetivos colhidos pelo saber
médico e as queixas subjetivas emitidas pelos pacientes) através de
meios não médicos; (7) considerar os check ups médicos inespecífi-
cos (genéricos) mais como uma promoção comercial do que de saú-
de propriamente dita, e informar-se sobre a utilidade dos check ups
periódicos específicos; (8) desconfiar da escalada e ampliação diag-
nóstica e a consequente escalada e ampliação “terapêutica”, que gera
verdadeiras espirais de medicalização.
No campo da saúde mental no Brasil, ainda estamos a anos-luz de
distância da desmedicalização, que implica a desconstrução do mode-
lo médico, sobretudo, quando a psiquiatria contemporânea nos des-
via da rota sanitário-reformista sugando-nos para o seu “buraco negro”.
Longe de serem vistas como problemas psicossociais, os problemas de
saúde mental são radicalmente individualizados pelo discurso biologi-
zante e concebidos como questões do domínio médico, inclusive por
grande parte dos demais profissionais de saúde que compõem esse
campo, mais por conformismo e sujeição ao instituído do que por de-
sinformação ou ignorância do movimento instituinte.

2. “Medicalização” x “Desmedicalização” da
Psiquiatria: do organicismo ao psicodinamismo
A partir do terceiro capítulo (“The First Biological Psychiatry”) do
livro de Edward Shorter (1997), pretendemos expor nesse item, os

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Rogério Paes Henriques 39

principais personagens que compuseram a cena da psiquiatria orga-


nicista, extraindo suas premissas básicas e suas propostas de refor-
mulação da prática psiquiátrica, apontando também os processos
que culminaram no seu declínio. Apesar da análise linear e triunfante
de Shorter15 sobre a história da psiquiatria não corresponder à aná-
lise crítica que propomos neste trabalho, optamos por utilizá-lo em
alguns tópicos como referência principal, devido à riqueza de dados
e à clareza didática na exposição dos fatos históricos que esse autor
nos fornece ao longo de sua obra; além disso, seu livro ilustra um
esforço no sentido de refazer uma história da psiquiatria do mundo
ocidental, em contraposição aos cânones dessa área (Michel Fou-
cault, Marcel Gauchet & Gladys Swain, Robert Castel etc.), que per-
manecem francófilos. Como contraponto, utilizamos o livro de Paul
Bercherie (1989) para apontar os alcances e limites, bem como para
corrigir algumas análises (inaceitáveis de um ponto de vista crítico)
do texto de Shorter. Em suma, este segundo tópico do primeiro ca-
pítulo está estruturado da seguinte forma: o roteiro e os dados histó-
ricos, talvez inacessíveis por outra fonte, foram extraídos de Shorter
(op. cit.), enquanto o viés analítico crítico foi inspirado em Bercherie
(op. cit.) e demais autores devidamente citados.
Primeiramente, cabe-nos ressaltar o que vem a ser a chamada “psi-
quiatria organicista”. Entendemo-la como sendo o conjunto de práticas
psiquiátricas biologicamente orientadas, acompanhadas de sua respecti-
va concepção fisicalista da loucura, que antecederam o advento de uma
psiquiatria remedicalizada (dita “biológica”) tornada hegemônica no cam-
po psiquiátrico a partir da década de 1980 (Serpa Jr., 1998, p. 273).
É sabido que antes mesmo do advento das biotecnologias e
de sua aplicabilidade à psiquiatria, várias formas de tratamento
biológico já eram empregadas na prática psiquiátrica. Desde os

15
O título do terceiro capítulo de seu livro já nos dá indícios de sua postura epistemológica. Ao cha-
mar, de modo anacrônico, a psiquiatria organicista do século XIX de “primeira psiquiatria biológica”,
Shorter procura por precursores nobres no passado, no intuito de legitimar a psiquiatria biológica
contemporânea – da qual ele é um admirador confesso –, inserindo-a, assim, numa linearidade
histórica que viria ilustrar o suposto progresso retilíneo da ciência positiva. Trata-se de uma pers-
pectiva historiográfica com a qual não compartilhamos.

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40 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

seus primórdios, os adeptos do polo físico em psiquiatria sempre


estiveram envolvidos com as intervenções biológicas, muito
embora os resultados de suas intervenções deixassem a desejar,
ao menos até o surgimento dos psicofármacos, na década de 1950,
que viria preparar o terreno para a ascensão da psiquiatria em sua
versão remedicalizada. O relativo fracasso das terapias biológicas
antecedentes à moderna psicofarmacoterapia guiaria os adeptos
da psiquiatria organicista à atividade de pesquisa mais que à prática
clínica. Passemos então ao histórico da psiquiatria organicista, que
nos remonta à era vitoriana.
As pesquisas em psiquiatria no século XIX acompanharam as
demais pesquisas empreendidas em medicina geral, através da uti-
lização do método anátomo-clínico, inaugurado com a abertura dos
cadáveres em busca das lesões físicas subjacentes às patologias.
Trata-se da centralização do olhar clínico no corpo, do qual nos fala
Foucault (1998), que passou a ser o receptáculo da doença. Em se
tratando da psiquiatria, buscava-se o substrato orgânico-cerebral
subjacente às perturbações mentais.
Conforme nos mostra Bercherie (1989), tanto os alienistas quanto
os organicistas realizavam autópsias, utilizando o método anátomo-
-clínico. A diferença residia na interpretação contraditória que ambos
faziam das lesões que encontravam nos cadáveres. Para os organi-
cistas, as lesões do cérebro e de seus tecidos eram o substrato físico
causador da loucura, enquanto, para os alienistas, essas mesmas “le-
sões encontradas na autópsia dos alienados podiam ser considera-
das, quer como a expressão de moléstias independentes, quer como
complicações ou consequências da loucura, bem longe de serem as
causas dela” (Ibid., p. 59). Quanto à posição de Pinel frente à anatomia
patológica da alienação mental, ele concluiu que, provavelmente, “na
imensa maioria dos casos (salvo os idiotismos congênitos), a loucura
estava isenta de lesões materiais do cérebro” (Ibid., p. 43). Com isso,
Pinel insurgiu-se contra o dogma da incurabilidade da loucura, mui-
to difundido em sua época, fornecendo à ideia de curabilidade da
loucura uma base teórica. Seu principal discípulo, Esquirol, por sua
vez, não negava “que a loucura dependesse de uma modificação des-

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Rogério Paes Henriques 41

conhecida do cérebro”, somente não se importava com essa suposta


modificação, pois considerava que “felizmente, esse conhecimento
não é indispensável para a cura dos alienados” (Ibid., p. 55). Para os
alienistas, o tratamento moral da loucura tinha um resultado prático,
embora nem sempre positivo, e era isso que importava. A crença ina-
balável num substrato orgânico-cerebral causador da loucura torna-
va os organicistas céticos em relação a qualquer possibilidade de tra-
tamento e de cura da loucura, em vista da precariedade tecnológica
de que dispunham na época: “tornando-se organicista, a psiquiatria
do fim do século XIX se resignará, mais facilmente, com a incurabili-
dade e abandonará a seu destino de exclusos, os doentes que a pri-
meira escola alienista esforçava-se em tratar” (Castel, 1991, p. 109).
Por conseguinte, sugere-se que os expoentes da psiquiatria orga-
nicista eram mais preocupados com a pesquisa científica do que com
o tratamento efetivo da loucura. Devido a esta característica principal,
representavam a antítese perfeita dos alienistas, que enfocavam a
prática clínica, porém, despreocupavam-se com a ancoragem de seus
achados no escopo das ciências naturais (Shorter, 1997, p. 70).
Com a psiquiatria organicista, a medicalização da loucura em-
preendida pela então nascente biomedicina assumiu uma nova for-
ma, entrando no ciclo da racionalidade médica.
Shorter (1997, p. 71) assinala que a pesquisa e o ensino em psi-
quiatria durante todo o século XIX e nas três primeiras décadas do
século passado teriam sido “dominados” pelos alemães. Esse autor,
muito provavelmente, relata um suposto domínio alemão, pois ele se
atém a um modelo ideal (universitário) de se fazer pesquisa e de se
lecionar em psiquiatria. Aqueles que, como nós, acham que a pesqui-
sa e o ensino em psiquiatria puderam muito bem ter sido conduzidos
nos asilos oitocentistas, e não somente nas clínicas universitárias ale-
mãs, sem que isso implicasse uma aberração metodológica, não têm
porque concordar com tal assertiva.

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42 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

A Psiquiatria Organicista Alemã


Uma particularidade teria garantido aos pesquisadores alemães
uma suposta primazia no ensino e pesquisa em psiquiatria: o investi-
mento financeiro estatal em prol do desenvolvimento científico nacio-
nal. Tal investimento permitia que um alto número de profissionais pós-
-graduados produzisse conhecimento de ponta, o que teria garantido
a preeminência científica da Alemanha até 1933 (Shorter, 1997, p. 72).
Os esforços empreendidos até meados da década de 1860 no en-
sino da psiquiatria na Europa Central teriam malogrado, devido à forte
influência da psiquiatria asilar sobre o ensino universitário da época. En-
quanto os alienistas sustentavam a estrutura de ensino centrada no asilo
por defenderem as especificidades da loucura com relação às demais
doenças e da psiquiatria para com o saber médico, os organicistas, em
contrapartida, pretendiam tornar a psiquiatria uma especialidade médi-
ca, centralizando seu ensino e pesquisa nas chamadas “clínicas universi-
tárias” a serem criadas nos hospitais gerais. Os organicistas se queixavam
da estrutura asilar como um todo: questionavam o isolamento dos asilos
com relação às salas de aula, os internos dos asilos – geralmente pacien-
tes “crônicos” que possuíam sintomas residuais semelhantes –, segundo
eles, não eram bons casos clínicos para estudo e, mais importante, acha-
vam que os alienistas estavam deveras absorvidos com a administração
asilar para demonstrar o devido interesse pelo ensino da psiquiatria16.
Tornava-se necessário, segundo as reivindicações dos organicis-
tas, que os departamentos de psiquiatria se situassem próximos aos
demais departamentos médicos – de preferência em hospitais gerais
– e que admitissem em seus quadros pacientes “agudos” que pudes-

16
A relação entre a psiquiatria e a gestão administrativa é indissociável na lógica do alienismo.
Conforme afirmou o alienista E. Renaudin, em 1845 (apud Castel, 1991, p. 151): “Tornando-nos ad-
ministradores nós nos tornamos, se posso me expressar assim, mais médicos.” Grosso modo, pode-
-se dizer que, para o alienismo, a terapêutica da loucura se resumia basicamente a uma boa gestão
administrativa do espaço asilar, que seria responsável pela criação de um ambiente artificial propí-
cio ao aparecimento da essência da loucura, a qual poderia, então, ser combatida pelo tratamento
moral, espécie de método pedagógico de reeducação centrado na autoridade do médico. Cabe
ressaltar que o modelo da Atenção Psicossocial atualmente em vigor enquanto política pública no
Brasil apregoa a indissociabilidade entre modos de atenção e modos de gestão, o que, por sua vez,
aponta para a indissociabilidade entre clínica e política.

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Rogério Paes Henriques 43

sem servir de bons exemplos ilustrativos ao estudo. Dentre tais orga-


nicistas alemães, destacam-se: Wilhelm Griesinger, Theodor Meynert
e Carl Wernicke.
Griesinger é considerado o fundador e o representante mais in-
fluente da psiquiatria organicista. Com Griesinger, a chamada “psiquia-
tria universitária” triunfaria sobre a psiquiatria asilar, na Alemanha. Sua
fama histórica como “o primeiro dos organicistas” talvez se deva ao fato
de ele ter escrito, em 1845, “o primeiro verdadeiro tratado de psiquiatria”:
“(...) a obra de Griesinger já se apresentou com as divisões (considerações
gerais, semiologia, etiopatogenia, formas clínicas, anatomia patológica,
prognóstico e tratamento) que ainda podemos encontrar nos tratados do
final do século e até nossos dias” (Bercherie, 1989, p. 72-73). A reedição de
1861 do seu Tratado foi a obra psiquiátrica mais influente no mundo oci-
dental até o Tratado de Kraepelin, cuja primeira edição data de 1883.
Aproveitando-se do ambiente positivista que pairava na época
sobre Berlim (onde lecionava) no que tangia à medicina, Griesinger
buscou desenvolver a noção de doença mental como uma doença do
cérebro. Ele criaria o primeiro departamento de psiquiatria nos moldes
modernos: dedicado à pesquisa e ao ensino mais que à assistência e à
custódia. Seus residentes experimentavam a prática da psiquiatria em
hospital geral, e não em asilos, o que lhes permitia tomar contato com
a dinâmica da loucura e estabelecer interrelações com outras especia-
lidades médicas.
Na Áustria, Meynert foi o pioneiro no estudo das estruturas mi-
croscópicas do cérebro e da coluna vertebral. Ele procurava por de-
formações neuronais que servissem de substrato físico para as doen-
ças mentais. Na condição de discípulo da escola vienense de ciências
naturais, ele era adepto do niilismo terapêutico, isto é, considerava
as doenças mentais incuráveis e qualquer forma de tratamento psi-
quiátrico inútil do ponto de vista clínico. Ele sustentava que a função
primordial da psiquiatria era fazer pesquisas, e não tratar pacientes.

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Meynert, em Viena, e Griesinger, em Berlim, cada qual ao seu


modo, foram os responsáveis pela reorientação do campo psiquiátri-
co, preocupando-se com o diagnóstico e buscando a origem anatô-
mica subjacente às doenças mentais.
A partir dos anos 1880, os estudos microscópicos em psiquiatria
se popularizaram nas universidades da Alemanha, da Áustria e na
parte germânica da Suíça. Quase todos os líderes do campo na épo-
ca tinham sido alunos de Meynert. Dois grandes neuropatologistas
fundaram clínicas psiquiátricas Paul Flechsig17, em 1882 (Leipzig) e
Eduard Hitzig, em 1885 (Halle).

Além deles, Wernicke, outro aluno de Meynert, que circunscreveu


a região cerebral responsável pela fala (“área de Wernicke”), inaugurou a
corrida pelo mapeamento do córtex cerebral, fazendo disso uma obses-
são em sua carreira profissional.

Com enfoque exclusivo nas pesquisas em fisiologia e anato-


mia cerebral, a psiquiatria organicista oitocentista tornou-se niilista
quanto às possibilidades terapêuticas, buscando se tornar um anexo
das ciências médicas básicas.
Com Wernicke, o desenvolvimento em psiquiatria organicista
daquilo que Karl Jaspers chamaria posteriormente “mitologia cerebral”
atingiu seu ponto final. Emil Kraepelin abriria as portas para um
renovado fisicalismo em psiquiatria ao anunciar que o curso da doença
psiquiátrica oferecia o mais claro indício de sua natureza, mais do que,
como Wernicke pensava, a suposta correlação causal entre os sintomas
e a lesão subjacente. Kraepelin defendia uma abordagem longitudinal
contra o corte transversal (cross-sectional) de Wernicke. Contudo,
antes de chegarmos em Kraepelin, tracemos uma panorâmica sobre a
situação da psiquiatria organicista na França e no Reino Unido.

17
Este é, na verdade, mais conhecido por ter sido o primeiro médico a tratar do grave surto de Da-
niel Paul Schreber (o louco célebre que teve seu livro de memórias analisado por Sigmund Freud),
surto esse desencadeado, segundo Lacan em “De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Pos-
sível das Psicoses” (1998d), pelo significante “fecundo” da expressão “sono fecundo/profundo” (aus-
giebigen Schlaf), enunciado por Flechsig na ocasião do desastroso reencontro com seu paciente.

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Rogério Paes Henriques 45

A Psiquiatria Organicista Francesa


No que se refere à experiência psiquiátrica francesa no século XIX,
Shorter (1997, p. 81) assinala que a política sempre teria interferido
negativamente, impedindo a consolidação da psiquiatria universitária
até 1877, quando enfim foram criadas clínicas psiquiátricas nas quatro
faculdades de medicina existentes na França. Conforme se pode no-
tar claramente, esse autor considera que a psiquiatria universitária no
estilo alemão é o modelo por excelência de pesquisa e ensino em psi-
quiatria. Talvez seja por isso que ele nem cite em seu livro a experiên-
cia de ensino e pesquisa empreendida por Jean-Pierre Falret no asilo
Salpêtrière, instituição essa que, mesmo antes de 1877, já privilegiava
as pesquisas em psiquiatria orientada biologicamente e neurologia,
formando as cabeças pensantes da vertente organicista em psiquia-
tria. Bénédict-Augustin Morel e Valentin Magnan, considerados pelo
próprio Shorter os maiores representantes da psiquiatria organicista
na França, foram alunos de J-P. Falret no asilo Salpêtrière.
Dentre os psiquiatras franceses oitocentistas que contribuíram
com a vertente organicista, Shorter destaca: Antoine-Laurent Bayle,
Bénédict-Augustin Morel, Valentin Magnan e Jean-Marie Charcot.
Bayle, em sua tese de doutorado em medicina de 1822, atribuiu
os sintomas psiquiátricos da neurossífilis à inflamação crônica das me-
ninges. Ele circunscreveu, assim, pela primeira vez uma organicidade
intrínseca a uma dada doença que se considerava psiquiátrica, estabe-
lecendo que, quando a doença subjacente piorava, os sintomas toma-
vam o mesmo rumo (doutrina da paralisia geral progressiva).
A originalidade da descoberta de Bayle ficaria encoberta por
algum tempo devido à tese alienista, hegemônica naquela época,
que considerava as “lesões encontradas na autópsia dos alienados
(...) quer como a expressão de moléstias independentes, quer como
complicações ou consequências da loucura, bem longe de serem as
causas dela” (Bercherie, 1989, p. 59), indo de encontro ao que propunha
Bayle e sua doutrina oficial da paralisia geral. Diante da rejeição
unânime de suas ideias – sem dúvida, tratava-se de ideias progressistas

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para a sua época –, Bayle abandonaria a psiquiatria, decepcionado; “(...)


seriam necessários vinte anos para que sua descoberta começasse a
ser reconhecida, e trinta anos para que surtisse efeito, provocando
uma reviravolta completa na ciência das doenças mentais” (Ibid., p. 83).
Morel era adepto da tradição biológica em psiquiatria e,
conforme afirmou em seu Traité des dégénérescences, de 1857: “Eu
acredito que o cérebro seja o órgão da alma” (apud Shorter, 1997, p.
83). Neste trabalho, Morel cunhou o conceito de “degenerescência”
no intuito de explicar a “incessante progressão” na Europa de males,
tais como a paralisia geral, a epilepsia, o suicídio, a criminalidade etc.
Ele tentava identificar as “forças subjacentes” que moldavam o destino
da condição humana. Notou que seus pacientes recapitulavam
“nos seus corpos a patologia orgânica característica das gerações
precedentes” (Ibid., p. 94). Segundo sua crença, uma característica
adquirida do meio, como uma tuberculose, por exemplo, poderia ser
transmitida hereditariamente à descendência, culminando, três ou
quatro gerações seguintes, numa demência seguida de esterilidade.
Tomando emprestado um termo da zoologia comparativa de sua
época, Morel decidiu denominar esta suposta cronificação mórbida
da descendência familiar com o termo “degenerescência”. Esta última
extrapolaria o âmbito familiar, contaminando a porção saudável
da sociedade. Portanto, era preciso extirpá-la em sua base, ou seja,
aplicando uma política de ação que a sequestrasse do mundo social.
A teoria da degenerescência moreliana conheceu grande sucesso
mundial. Morel possuía simpatizantes em vários países que difundiam
sua doutrina à comunidade psiquiátrica, dentre os quais se destacam
Richard von Krafft-Ebing, na Europa Central, Valentin Magnan e Henry
Maudsley, na Inglaterra.
Magnan tornou-se o principal difusor da teoria da degeneres-
cência na França após a morte de Morel. Em sua obra Les Dégénérés,
de 1895, Magnan interpretava as degenerescências como perdas na
batalha histórica pela sobrevivência das espécies (darwinismo so-
cial). A sociedade que não quisesse sucumbir à “luta hereditária pela
vida” deveria cortar seu mal pela raiz. Sugeria então uma guerra con-

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Rogério Paes Henriques 47

tra a degenerescência em amplas frentes que envolvessem comba-


tes com formas rigorosas de higiene social.
Durante a belle époque, a teoria da degenerescência tornou-se
anacrônica entre os psiquiatras e virou objeto de piadas dentre os
adeptos da então nascente psicanálise18. Interpretações não bioló-
gicas – tal como a abordagem fenomenológica de Karl Jaspers, que
enfatizava a empatia com a vivência subjetiva dos pacientes psiqui-
átricos e a “compreensão” da loucura – ganharam a cena no campo
psiquiátrico na primeira década do século XX.
Assim, no início da I Guerra Mundial, a degenerescência estava desacre-
ditada dentro da psiquiatria. No entreguerras, os psiquiatras que continua-
vam adeptos de tal teoria eram malvistos pelos seus colegas de profissão.
Contudo, a paulatina queda de popularidade da teoria da de-
generescência dentre os psiquiatras foi diretamente proporcional ao
seu sucesso perante o público leigo. Sua difusão nas massas causou
certo estado de histericização coletiva. A classe média europeia co-
meçou a crer que a sociedade estava condenada caso não se tomas-
se providências no sentido de conter o mal hereditário.
A noção fatídica de degenerescência foi apropriada por eugenis-
tas, por higienistas sociais (que visavam a combater o retardo mental
através da esterilização) e por forças políticas antidemocráticas (que
encontraram um bom álibi para perseguir supostos “grupos degene-
rados”, como os homossexuais e os judeus). O conjunto da medicina
acadêmica alemã permaneceu flertando com o nazismo e carrega

18
Michel Foucault, em História da Sexualidade I, assinala que “(...) a posição singular da psicanálise no
fim do século XIX não seria bem compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativa-
mente ao grande sistema da degenerescência: ela retomou o projeto de uma tecnologia médica pró-
pria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de suas correlações com a hereditariedade e, portanto,
com todos os racismos e eugenismos. Pode-se muito bem fazer, agora, a revisão de tudo o que podia
existir de vontade normalizadora em Freud; pode-se, também, denunciar o papel desempenhado
há anos pela instituição psicanalítica; contudo, na grande família das tecnologias do sexo que recua
tanto na história do Ocidente cristão e dentre as que empreenderam, no século XIX, a medicação do
sexo, ela foi, até os anos 40, a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais
do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência” (Foucault, 1984, p. 112-113).

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48 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

até hoje fortes responsabilidades pela chamada “solução final”. Após


1933, a degenerescência tornou-se parte oficial da ideologia nazista,
condenando judeus, “retardados mentais” e outros supostos “dege-
nerados” à morte em escala industrial. Após a II Guerra Mundial, por
motivos óbvios, qualquer referência à transmissão hereditária das
doenças psiquiátricas tornou-se um tabu, criando um ambiente pro-
pício à difusão da psiquiatria dinâmica – como veremos mais adiante.

Outro personagem muito importante na história da psiquiatria


francesa do século XIX foi Charcot. Frequentemente aclamado como
um grande psiquiatra, segundo Shorter (1997, p. 84), Charcot seria leigo
no que tange à maioria das doenças psiquiátricas. Em 1862, ele tornou-
-se médico-chefe da Salpêtrière, sucedendo a J-P. Falret, onde, em 1866,
passou a lecionar sobre doenças crônicas. Na década de 1860, Charcot
fez algumas descobertas relevantes na área da neuropatologia, corre-
lacionando mudanças anatômicas aos sintomas clínicos nas escleroses
múltiplas e descrevendo a “esclerose amiotrófica lateral”. Essas descober-
tas científicas lhe conferiram uma reputação merecida; nos anos 1870,
Charcot era o médico mais conhecido na França. Em 1882, uma cátedra
em doença dos nervos foi criada especialmente para ele.

Para Shorter (1997, p. 85), a relevância científica dos estudos de


Charcot parou por aqui. Quando ele se voltou para o estudo da histeria
no início dos anos 1870, acabou se desviando da prática psiquiátrica
propriamente dita. Devido ao seu enorme prestígio, ele acabaria, por
conseguinte, por desvirtuar o campo psiquiátrico francês de sua rota
científica, ao colocar a histeria no centro das discussões acadêmicas
até sua morte, em 1893. Charcot acreditava que a histeria era uma do-
ença orgânica real, hereditária, e associada a supostas mudanças não
identificáveis do tecido nervoso.
Conforme assinala Bercherie (1989), Charcot teria dissolvido
sua própria concepção fisicalista de histeria, elaborada entre 1870 e
1880, ao trazer à tona “o papel das representações na gênese dos aci-
dentes histéricos”. Essa descoberta “levaria às teorias de Janet, Binet
e Freud, fazendo da histeria uma doença mental (...)” (Ibid., p. 209).
Ainda segundo Bercherie, os “trabalhos de Charcot sobre a histeria

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Rogério Paes Henriques 49

traumática” seriam a “origem da maior parte da corrente psicodinâ-


mica europeia” (Ibid., p. 248; n. 1). Talvez esse seja o motivo pelo qual
Shorter, na condição de fisicalista convicto, considere os estudos de
Charcot sobre a histeria irrelevantes cientificamente, já que ele en-
tende a ciência exclusivamente em seu viés positivista, desprezando
o psicodinamismo em psiquiatria.

A Psiquiatria Organicista Britânica


Na Inglaterra, onde o investimento em pesquisas científicas de-
pendia da iniciativa privada, e não de fundos públicos como na Ale-
manha, as pesquisas em psiquiatria orientada biologicamente, no de-
correr do século XIX, foram escassas. O sistema inglês, baseado numa
extrema descentralização estatal (o extremo oposto do sistema fran-
cês), não disponibilizava recursos para o investimento em pesquisas
científicas, optando pelo assistencialismo médico (Shorter, 1997, p. 88).
Isso não implicava que a psiquiatria britânica não fosse orientada
biologicamente, já que desde os seus primórdios, sempre teria bus-
cado uma base física para as doenças mentais. Praticamente todos os
responsáveis pelo ensino da psiquiatria na Inglaterra no decorrer do
século XIX – dentre eles, David Skae, William Sankey e Henry Maudsley
– foram adeptos do fisicalismo.
O primeiro curso sistemático em psiquiatria no Reino Unido data
de 1851, tendo sido ministrado por Skae, médico do Royal Lunatic
Asylum de Edimburgo. Sua proposta organicista previa classificar os
diferentes tipos de insanidade, de acordo com as patologias que elas
acarretavam: “mania de masturbação”, “mania de gravidez” etc.

O primeiro curso de psiquiatria em Londres foi ministrado por


Sankey, em 1865, no University College. Sua aproximação da psiquia-
tria se deu na época em que ele trabalhava no London Fever Hospital,
ocasião na qual ele se interessou por certos tipos de febre que causa-
vam sintomas psicóticos. Fisicalista convicto, Sankey acreditava que

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50 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

a melancolia possuía uma anatomia mórbida. A cátedra em doenças


mentais no University College foi proposta por Henry Maudsley no
mesmo ano em que Sankey a assumiu.

Em 1869, Maudsley19 é nomeado professor de jurisprudência


médica, essencialmente um magistério em psiquiatria, no University
College Hospital. Ele se tornaria o psiquiatra inglês mais conhecido da
era vitoriana. Maudsley acreditava que as doenças psiquiátricas eram
doenças como outras quaisquer. Tal como Griesinger, ele concebia as
doenças mentais como doenças do cérebro.

Em 1907, Maudsley idealizou a construção de um asilo na Ingla-


terra, no estilo Griesinger: que só recebesse casos “agudos”, que fosse
um centro de excelência de ensino e pesquisa e que estivesse loca-
lizado no coração da cidade, próximo às escolas médicas. Em 1915,
a nova construção foi primeiramente usada como hospital militar e
somente em 1923, exatos quatro anos após a morte de Maudsley, co-
meçou a funcionar como uma clínica psiquiátrica universitária, com
um atraso de quase sessenta anos para com a experiência pioneira
de Griesinger na Alemanha.

Emil Kraepelin e a Renovação do Organicismo em


Psiquiatria
Para início de conversa, cabe aqui ressaltar que, segundo o argu-
mento explícito de Shorter (1997, p. 99-109), Kraepelin teria levado
a psiquiatria organicista europeia (denominada por Shorter “primei-
ra psiquiatria biológica”) ao seu declínio, numa tarefa análoga a que
Adolf Meyer empreendeu nos Estados Unidos. Discordamos deste
ponto de vista. Afinal, os componentes do grupo responsável pela
publicação da terceira edição do DSM (o clássico manual norte-ame-
ricano que remedicalizou a psiquiatria na década de 1980) foram
denominados “neokraepelianianos” (Klerman, 1986; Young, 1997),
apontando, assim, certa continuidade, sobretudo metodológica, en-

19
Autor de O Crime e a Loucura, de 1875, obra muito prestigiada inclusive no Brasil, Henry Maudsley é
citado por Lima Barreto em Diário do Hospício e também por Euclides da Cunha, no final de Os Sertões.

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Rogério Paes Henriques 51

tre Kraepelin e os nosologistas contemporâneos (vide tópico “O DSM-


-III: dos símbolos aos sinais ou de Freud a Kraepelin”, cap. 1; parte 2).
Portanto, limitar-nos-emos aqui a extrair de Shorter as informa-
ções sobre Kraepelin que julgarmos procedentes, complementando-
-as com a análise que Bercherie (1989, p. 161-176; p. 251-263) e Pes-
sotti (1999, p. 161-186) realizaram das edições de seu Tratado. Uma
breve citação desse último autor basta para desarticular a argumen-
tação central de Shorter:
(...) a classificação de Kraepelin é, como ele próprio aspirava, um
resgate da psiquiatria clássica e mais antiga, que atribuía à loucura,
com suas várias formas, a desarranjos biológicos, humorais; que via
nas alterações comportamentais ou mentais meras manifestações,
sintomas de desordens orgânicas; e que admitia alguma eficácia
causal secundária dos eventos passionais ou afetivos, desde que
ativassem fatores determinantes orgânicos (Pessoti, 1999, p. 167).

Como vemos, a classificação de Kraepelin é altamente organicis-


ta. Passemos, então, ao panorama geral de sua obra.
Emil Kraepelin (1856-1926) foi a figura central da história da psi-
quiatria na virada do século, sendo considerado o pai da psiquiatria
moderna e o grande sistematizador da nosografia psiquiátrica con-
temporânea. Sua relevante contribuição permitiu um novo enten-
dimento acerca das doenças mentais, na virada do século XIX para
o XX. Segundo propôs, as doenças mentais seriam de vários tipos,
teriam diferentes cursos em seu desenvolvimento e sua natureza de-
veria ser apreciada através de um estudo sistemático de um amplo
número de casos clínicos.
Kraepelin foi o responsável pela criação de um novo modo de
encarar as doenças mentais, que tentava entender os problemas do
paciente num dado momento com o contexto de sua história de vida
(diacronia), em oposição à vertente psicopatológica de sua época,
que tentava correlacionar os sintomas momentâneos dos pacientes
com achados neurológicos e anatômicos (sincronia). Ele foi o respon-
sável pela introdução da temporalidade em psiquiatria.

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A carreira psiquiátrica de Kraepelin começou com sua revolta


contra a psiquiatria orientada biologicamente. Após graduar-se em
medicina em 1878, em Würzburg, Kraepelin foi para Munique, onde
trabalhou como residente numa clínica psiquiátrica universitária
chefiada pelo neurobiólogo Bernhard von Gudden. Nesta clínica,
Kraepelin fez amizade com um jovem médico da Baviera também
residente chamado Franz Nissl. Contudo, enquanto Nissl, Gudden e
todos os outros estavam ocupados, debruçados sobre seus micros-
cópios nas bancadas de laboratório, Kraepelin não podia tomar parte
desta empreitada devido a um problema de visão. Ele estava extre-
mamente interessado na psicologia humana como uma dimensão
da doença psiquiátrica. Desde a mocidade, ele se interessava pela
psicologia, sendo um ávido leitor dos trabalhos de Wilhelm Wundt,
considerado o fundador da psicologia moderna. Em 1882, Kraepelin
deixou Munique para estudar com Wundt no laboratório de psicolo-
gia experimental que ele havia criado em 1879, em Leipzig. Wundt
lhe teria sugerido a redação do Tratado (Kraepelin, s/d), que seria edi-
tado pela primeira vez em 1883.
A atração de Kraepelin pela psicologia e sua repulsa pela psi-
quiatria orientada anatomicamente aumentaram consideravelmen-
te durante sua estada em Leipzig. Para ganhar a vida, ele trabalhou
como assistente de Paul Flechsig, auxiliando-o em seus estudos mi-
croscópicos e anatômicos cerebrais, atividade que ele detestou pro-
fundamente, tendo-a abandonado após três meses de labuta.
Em 1886, ele recebeu uma cátedra de psiquiatria na Universida-
de Dorpat (renomeada, após a II Guerra Mundial, Universidade Tartu)
na cidade de mesmo nome, localizada na Estônia. Em 1890, assumiu
uma cátedra de psiquiatria em Heidelberg, uma clínica universitária
no epicentro da vida acadêmica alemã, onde ele pôde enfim com-
binar seu interesse pelas trajetórias das doenças dos pacientes com
uma abordagem psicológica. Kraepelin encarregou-se de duas ino-
vações em particular: ele começou tomando notas sobre a história
de vida de cada um de seus pacientes em pequenas fichas; e, seguin-
do o modelo dos departamentos de psiquiatria no estilo Griesinger,
ele procurou se cercar dos melhores pesquisadores disponíveis.

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Rogério Paes Henriques 53

Assim, em 1895, Kraepelin trouxe seu amigo Nills para Heidel-


berg. Nills era agora um famoso neuro-histologista responsável pela
criação de técnicas químicas que permitiam o estudo histológico das
estruturas cerebrais. Outro neuro-histologista que trabalhava com
Nills em Frankfurt foi trazido para Heidelberg por Kraepelin, em 1903;
tratava-se do jovem Aloys Alzheimer. A partir de então, pode-se afir-
mar que Heidelberg estava bem servida por dois grandes estudiosos
da microscopia das estruturas cerebrais.
Nesta época, o interesse central de Kraepelin já não recaia mais
sobre a psicologia, mas sim sobre o curso da doença dos pacientes
no decorrer dos anos. “Procurar os resultados das doenças psiquiátri-
cas e diferenciar distintas doenças com base nesses resultados, for-
mava a essência da revolução kraepeliniana” (Shorter, 1997, p. 103).
A ideia de classificar doenças com base no seu curso e nos seus
resultados não era tão nova assim. Ela já havia sido proposta por Karl
Kahlbaum, um jovem médico do asilo estadual da Prússia, em 1863,
e por dois médicos franceses da Salpêtrière, Jean-Pierre Falret e Jules
Baillarger, no início dos anos 1850.
Kraepelin instituiu um curioso método para acompanhar o curso
das doenças dos seus pacientes. Ele e seus residentes anotavam as
primeiras impressões sobre cada paciente em fichas, que eram então
guardadas. Após o estudo detalhado dos pacientes, os dados das fi-
chas eram revisados, e, se necessário, alterados. Na ocasião em que
eles recebiam alta, anotava-se o resultado final do processo patológi-
co. Isso permitia estabelecer quais diagnósticos haviam sido formu-
lados de forma incorreta e quais teriam sido as razões do equívoco.
Na quarta edição de seu Tratado, de 1893, sua série de fichas co-
meçou a fazer sentido. A classificação que propunha era totalmen-
te convencional e estava baseada em conceitos recebidos de seus
predecessores. Todavia, sua tipologia continha um produto original
de suas séries de fichas: “processos psíquicos degenerativos”, isto é,
doenças que culminavam na demência. Uma de suas subcategorias
era dementia praecox. Vale ressaltar que, naquela ocasião, a noção

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54 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

de “demência precoce” pairava por sobre o campo psiquiátrico eu-


ropeu; outros psiquiatras (dentre eles, Karl Kahlbaum, Ewald Hecker,
Thomas Clouston e Albert Charpentier) já haviam escrito antes dele
sobre o tema da insanidade na adolescência. Kraepelin acreditava
que a causa da dementia praecox era biológica e propôs então o ter-
mo “pré-disposição psicopática”. Descrevendo consistentemente a
dementia praecox como uma doença distinta, Kraepelin abriria o ca-
minho para a mais famosa categoria psiquiátrica do século XX: em
1911, Eugen Bleuler proporia o termo “esquizofrenia” para designar
a dementia praecox, no intuito de desfazer o equívoco de Kraepelin
e diferenciá-la da demência propriamente dita. Segundo Bercherie
(1989, p. 165), a nova tipologia “processos psíquicos degenerativos”
tornou visível a marca do pensamento de Kahlbaum, o qual, a partir
de então, influenciaria Kraepelin sobremaneira20. A ideia seminal de
Kahlbaum de que um estado terminal que caracterizava um deter-
minado processo mórbido podia ser previsto desde sua origem com
base em pequenos sinais tomaria corpo na noção kraepeliniana de
“processos psíquicos degenerativos”.
Em 1896, na quinta edição de seu livro, Kraepelin retira a par-
te sobre degeneração, recolocando a demência precoce como um
“transtorno metabólico” próximo à psicose tireóidea e à neurossífilis.
No prefácio desta edição, ele se declara cansado de agrupar transtor-
nos de acordo com seus sintomas e pretende, de agora em diante,
buscar a natureza íntima das doenças, isto é, seu curso e resultado.
Ele abandona qualquer esforço para classificá-las nas bases de suas
apresentações clínicas, restringindo-se à identificação das “entidades
mórbidas naturais” (natural disease entities), de ontologia biológica.
Bercherie (1989, p. 166) aponta que sua preocupação com a unidade
clínico-evolutiva o faria rejeitar nessa edição o grupo das “psiconeu-
roses”, consideradas “simples síndromes clínicas que podiam perten-
cer a diversas unidades evolutivas – a diversas doenças, portanto –,
dignas apenas de figurar na nosologia”.

20
É ainda Bercherie (1989, p. 161-164) quem assinala as influências de outros autores sobre Kraepelin
nas primeiras edições de seu Tratado: a influência da análise psicológica de Wundt é notável na pri-
meira edição, de 1883, assim como nas segunda, de 1887, e terceira, de 1889, edições se percebe um
alinhamento com as ideias dos principais representantes da “escola de Illenau” – Krafft-Ebing e Schule.

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Rogério Paes Henriques 55

Na sexta edição de seu Tratado, em 1899, as ideias de Kraepe-


lin tomaram sua forma definitiva, resultando na classificação das
doenças que embasaria as nosografias psiquiátricas modernas, tal
como a série medicalizada do DSM. Kraepelin decidiu dividir todas
as doenças psiquiátricas em treze grandes grupos, sendo a maioria
dessas doenças já conhecida na época (neurose, psicose febril, retar-
do mental etc.). Com relação às doenças mentais que não possuíam
uma causa orgânica conhecida, Kraepelin as dividiu em dois grupos:
psicoses afetivas e não afetivas. Convencido de que as doenças do
espectro afetivo (mania, depressão e ansiedade) faziam parte de um
mesmo processo, ele propôs o termo “psicose maníaco-depressiva”
para denominá-lo. Segundo Bercherie (1989, p. 168) esta edição teve
grande aceitação por parte da psiquiatria ocidental, à exceção da
escola francesa, que resistiu sozinha por muito tempo e acabou por
fazer com que o próprio Kraepelin revisse seus conceitos, já a partir
da sétima edição (1904) de seu Tratado.
Conforme assinala Bercherie (1989, p. 253-263), na oitava e últi-
ma edição bastante ampliada de seu Tratado, publicada em quatro
volumes (2500 páginas) no decorrer de cinco anos, de 1909 a 1913,
Kraepelin reformulou seu sistema, buscando integrar a totalidade
das críticas e das contribuições da psiquiatria da época. Nessa edição,
a antiga demência precoce foi substituída por um grupo de “demên-
cias endógenas” – ou, mais exatamente, “debilidades” (Verblödung) –,
composta pelos subgrupos da “demência precoce restrita” e das “pa-
rafrenias”, numa resposta aos psiquiatras franceses que o criticavam
pelo fato de ele ter incluído todos os delírios crônicos alucinatórios
na demência precoce. Todavia, Kraepelin permaneceu preso à ideia
de que o mesmo processo mórbido seria a causa das formas diversifi-
cadas reunidas no grupo das demências endógenas, embora o início
e a evolução delas diferissem entre si. Apesar de algumas inovações
interessantes advindas com a nova divisão do subgrupo da demên-
cia precoce, Kraepelin teria pecado pelo caráter sistematicamente
psicológico dos critérios utilizados: “de fato, tratava-se mais uma vez
de ‘entidades mórbidas’, e não de mecanismos psicopatológicos, e
essa metodologia irregular produziu formas com limites confusos e

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56 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

insuficientemente abrangentes” (Bercherie, 1989, p. 262). O novo re-


corte da demência precoce proposto por Kraepelin não conheceria
êxito na Alemanha, devido à forte influência do modelo dinâmico de
Bleuler sobre o campo psiquiátrico germânico da época. Tampouco
sua noção de parafrenia resistiria ao tempo. Em 1921, ela foi desa-
creditada após a publicação da pesquisa de Mayer, colaborador de
Kraepelin, que constatou que mais da metade dos 78 casos rotulados
de parafrenia em 1913 havia desenvolvido sintomas esquizofrênicos
típicos. O termo seria conservado para a posteridade apenas como
uma designação de síndrome.

O Modelo Biopsicossocial de Adolf Meyer e o Declínio da


Psiquiatria Organicista nos Estados Unidos
Shorter (1997, p. 111) afirma ser embaraçosa a reputação de
Adolf Meyer como um antikraepeliniano. Uma explicação plausível
para tal fama seria o esquecimento dos escritos de sua primeira fase.
Vale ressaltar que o conjunto de seus trabalhos só veio a público nos
anos 1950, após sua morte, na condição de post-scriptum.
A psiquiatria que Meyer praticou nas suas primeiras décadas nos
Estados Unidos, na virada do século XIX para o XX, como neuropato-
logista, era predominantemente biológica. Ele acreditava que o cére-
bro era o substrato de toda atividade mental.
Quando Meyer se tornou professor de psiquiatria em John Ho-
pkins, em 1910, ele planejou a criação de uma clínica psiquiátrica
universitária no estilo alemão, a qual abriria suas portas em 1913.
A Henry Phipps Psychiatric Clinic, em Baltimore, promovia o estudo
compreensivo com investigações laboratoriais e psicológicas dos pa-
cientes, seguindo o modelo de Kraepelin.
Uma segunda fase da carreia de Meyer, inaugurada com a sua
cátedra de psiquiatria na John Hopkins, seria paulatinamente carac-
terizada pela rejeição tanto de seu ex-professor, Kraepelin, quanto da
psiquiatria orientada biologicamente. Inspirado na fenomenologia

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Rogério Paes Henriques 57

de Ludwig Biswanger, Meyer erigiu seu próprio modelo “biopsicos-


social”. Ele considerava que as perturbações mentais eram reações
individuais a determinadas situações da vida, e não entidades mór-
bidas naturais, o que marcava claramente sua diferença com relação
ao modelo kraepeliniano. Ele concebia os sintomas psicóticos como
manifestações simbólicas de problemas psíquicos subjacentes, o que
o aproximava da perspectiva psicanalítica. Seu modelo biopsicosso-
cial remetia as perturbações mentais às três esferas da experiência
humana: biológica, psicológica e social. Meyer considerava que a
história de vida dos pacientes era o elemento mais importante na
etiologia dos transtornos mentais. Nesse sentido, propunha que o
tratamento (psicoterápico) deveria ser conduzido de forma singular,
conforme a história clínica pregressa de cada paciente, com ênfase
nos seus aspectos da personalidade.
A teoria da personalidade de Meyer, chamada “psicobiologia”,
enfatizava o caráter singular dos transtornos psiquiátricos. Tal teoria
sugeria que os indivíduos experienciavam “reações” de vários tipos,
dependendo das histórias de vida pregressas, das constituições or-
gânicas individuais e da natureza das pressões específicas sobre eles.
Sua grande influência nas quatro primeiras décadas do século
XX preparou o terreno para a ampla aceitação da psicanálise (em sua
versão ego psychology) por parte da psiquiatria norte-americana no
pós-guerra. Após o holocausto, o referencial psicanalítico se instala-
ria efetivamente no seio da psiquiatria norte-americana enquanto
paradigma dominante, passando a nortear a prática clínica.
Enfocaremos o campo psiquiátrico norte-americano, haja vista
ser ele o cenário principal no qual os processos de desmedicaliza-
ção e remedicalização da psiquiatria ocorreram, e ainda vêm ocor-
rendo na atualidade.

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58 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

3. “Desmedicalização” x “Remedicalização”da
Psiquiatria: do psicodinamismo ao biologicismo

A Ascensão da Psicanálise no Campo Psiquiátrico


Norte-americano
Este tópico baseia-se no quinto capítulo (“The Psychoanalytic
Hiatus”) do livro de Shorter (1997), o qual será tomado criticamente
aqui. Como se deduz pelo controverso título, esse autor considera
que o período no qual a psicanálise orientou a prática psiquiátrica
norte-americana representou uma lacuna na história do desenvolvi-
mento científico da disciplina.
Desde o início do século XX, a psicanálise aos poucos encontrava
adeptos nos Estados Unidos e em vários países europeus, difundin-
do-se a partir da Europa Central, sobretudo Viena e Berlim, através do
vernáculo alemão. O nazismo provocou uma dispersão dos precurso-
res judeus da psicanálise para além das fronteiras alemãs e austría-
cas, mudando seu eixo difusor para os países anglo-saxões, os quais
se tornaram centros irradiadores da nova doutrina.
O número de psicanalistas europeus refugiados nos Estados
Unidos não era expressivo. Dentre os quatro mil médicos alemães
e austríacos que se exilaram em solo norte-americano entre 1933
e 1944, 250 eram psiquiatras e, destes, apenas cinquenta eram psi-
canalistas. Contudo, esta inexpressividade numérica era compensa-
da pela imponência destes personagens, sendo vários deles figuras
de prestígio mundial, como Paul Federn, discípulo de Freud, Hele-
ne Deutsch, Heinz Hartmann, Beate (“Tola”) Rank, Else Pappenheim,
além do “psicanalista leigo” (expressão que se dava na época ao psi-
canalista não médico) Ernst Kris. Vale ressaltar que, antes da diáspora,
já haviam imigrado para os Estados Unidos eminentes psicanalistas
europeus como os vienenses Hermann Nunberg e Paul Schilder, e os
berlinenses Franz Alexander, Sandor Rado e Otto Fenichel.

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Rogério Paes Henriques 59

Consequentemente, o inglês substituiu o alemão enquanto idio-


ma oficial da ortodoxia psicanalítica. A partir de então, a psicanálise
pôde deslanchar, expandindo-se para além dos círculos judeus e dos
movimentos de vanguarda intelectual e artística, como, por exem-
plo, o surrealismo. A “anglicização” da psicanálise correspondeu à sua
psiquiatrização. Como exemplo dessa psiquiatrização da psicanálise
temos que, contrariando as ideias do próprio “pai” em “A Questão da
Análise Leiga” (Freud, 1926/1996), as sociedades psicanalíticas norte-
-americanas restringiram a formação aos candidatos médicos e, pos-
teriormente, aos psiquiatras – a partir do ato inaugural da American
Psychoanalytical Association, em 1938.
A psicanálise que se desenvolveu nos Estados Unidos baseava-se,
sobretudo, nas ideias desenvolvidas pela filha de Sigmund Freud, Anna
Freud, tendo recebido a denominação de ego psychology (“psicologia
do ego”). Sua ênfase recaía na adaptação do paciente às demandas so-
ciais. Os principais representantes da ego psychology durante os anos
1950 e 1960 foram Heinz Hartmann, Ernst Kris e o psiquiatra berli-
nense Rudolph Loewenstein (analista de Jacques Lacan).
Com os ventos existencialistas do pós-guerra, a psicanálise finalmen-
te se instalou no seio da psiquiatria norte-americana enquanto paradigma
dominante, superando o fisicalismo do fin-de-siècle. Teve início, assim, um
curto, porém intenso, período de ouro da psiquiatria dinâmica, que se es-
tendeu do final da década de 1940 ao final da década de 1960.
O aumento da influência da psicanálise no campo psiquiátrico
norte-americano era expresso, particularmente, em números: a American
Psychoanalytical Association cresceu de 92 membros filiados, em 1932,
para cerca de 1300, em 1968. Durante a década de 1960, ocasião na qual
a psicanálise atingiu o ápice nos Estados Unidos, havia vinte institutos
de formação psicanalítica e 29 sociedades locais, espalhados pelo país.
No início dos anos 1940, a psicanálise começou a receber o prestí-
gio dos departamentos universitários de psiquiatria norte-americanos,
primeiramente em Nova York, cidade que congregava, na época, mais
de 1/3 do total de psicanalistas atuantes nos Estados Unidos. Nova York

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60 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

assistiu a fundação de uma série de institutos de formação psicanalíti-


ca. Após a II Guerra Mundial, a invasão psicanalítica aos departamentos
universitários ocorreu para além dos limites da cidade de Nova York.
Conforme assinalou o psiquiatra suíço Henri Ellenberger, em
1955, os psiquiatras norte-americanos eram fracos na classificação
das doenças (nosografia), na “fenomenologia” (a experiência real
dos pacientes com seus sintomas) e na abordagem “constitucional”
(genética psiquiátrica). Contudo, no que se refere à psicanálise em
sua versão ego psychology, eles eram, supostamente, os maiorais.
“De todos os países do mundo, a América é o primeiro a ter adotado
uma psiquiatria dinâmica como sua orientação psiquiátrica principal”
(apud Shorter, 1997, p. 172).
No final dos anos 1940 e início dos 1950, a American Psychiatric
Association foi presidida várias vezes por psicanalistas, como William
Menninger, ou por simpatizantes da psicanálise, como John Whi-
tehorn – que substituiu Adolf Meyer em John Hopikns, a partir de
1941. No decorrer dos anos 1960, os presidentes da American Psychia-
tric Association foram exclusivamente psicanalistas ou membros de
organizações afiliadas à psicanálise.
Como já dito, a capacidade da psicanálise de exercer enorme
influência sobre a psiquiatria norte-americana não se deveu à quan-
tidade de psiquiatras psicanalistas existentes, mas sim, à qualidade
deles, que ocupavam, em sua maioria, cargos academicamente es-
tratégicos nas instituições de ensino de psiquiatria. Além disso, eram
eles que escreviam os manuais de psiquiatria.
O processo de infiltração da psicanálise na psiquiatria se acele-
rou em 1952, devido ao relatório conjunto da American Psychiatric
Association e do corpo nacional de educadores médicos da Associa-
tion of American Medical Colleges. Tal relatório enfatizava a suma im-
portância dos “princípios do psicodinamismo”, incluindo os “concei-
tos freudianos”, para a formação de psiquiatras competentes. Devido
ao número insuficiente de institutos psicanalíticos para dar vazão à
grande demanda de psiquiatras em formação, algumas estratégias

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Rogério Paes Henriques 61

foram traçadas no intuito de infiltrar os conhecimentos psicanalíticos


na grade curricular desses profissionais. Tais conhecimentos tiveram
lugar nos programas de residência em psiquiatria, através de diferen-
tes práticas: terapia supervisionada, discussão de casos orientados
psicanaliticamente etc.
Em 1955, o “Grupo para o Avanço da Psiquiatria” inspecionou ca-
torze programas de residência em psiquiatria nos Estados Unidos e
constatou que todos baseavam seu programa de treinamento nas te-
orias psicodinâmicas. Em 1966, 1/3 dos psiquiatras norte-americanos
haviam recebido algum tipo de formação psicanalítica e 67% disse-
ram empregar a “abordagem dinâmica” em sua prática cotidiana. Na-
quela época, já não havia distinção para o público norte-americano
entre psiquiatria e psicanálise.
Foi, portanto, nos Estados Unidos que os psiquiatras fizeram o
mais acentuado esforço em tratar as perturbações mentais pelo viés
da psicanálise. A figura central nessa empreitada foi Adolf Meyer
(vide tópico “O Modelo Biopsicossocial de Adolf Meyer e o Declínio
da Psiquiatria Organicista nos Estados Unidos”, supra) – um dos pri-
meiros membros da American Psychoanalytic Association, e presen-
ça constante nos círculos sociais de Baltimore-Washington. Embora
Meyer denominasse sua prática de “psicobiologia objetiva”, e não de
psicanálise, ele frequentemente encaminhava seus pacientes para
análise. Em 1909, Meyer já utilizava a psicanálise como um viés para
o entendimento da esquizofrenia.
Graças a Meyer, a tradição de tratar analiticamente pacientes
psicóticos consolidou-se na área de Baltimore-Washington. Foi nessa
região, mais especificamente em Maryland, que duas clínicas particu-
lares se sobressaíram como modelos do tratamento analítico das psi-
coses: Chestnut Lodge e o Sheppard Pratt.
Em 1922, Harry Stack Sullivan21, talvez a figura mais famo-
sa no tratamento analítico das psicoses, chegou em Sheppard.

21
Há uma compilação de textos essenciais de muitos dos autores da psiquiatria clássica citados neste traba-
lho, à qual remetemos o leitor interessado: Jacques Postel (org.). La psiquiatrie. Paris: Larousse, 1994.

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62 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Durante oito anos, Sullivan tratou casos de “esquizofrenia” 22 em


Sheppard, obtendo resultados otimistas. Ele acreditava que a
esquizofrenia seria uma reação malsucedida à ansiedade (un-
succesful reaction to anxiety). Embora não fosse um psicanalista
ortodoxo, Sullivan despertou o interesse da psicanálise norte-
-americana pelas psicoses.
Em 1935, Frieda Fromm-Reichmann, uma psicanalista alemã re-
fugiada chegou em Chestnut Lodge. Influenciada pelas ideias de Sulli-
van, porém, negando que a ansiedade fosse a causa da esquizofrenia,
ela criaria a noção tão cara à ego psychology de “mães esquizofreno-
gênicas” (mães que causam esquizofrenia). Ela descreveu mães de
pessoas que desenvolvem esse transtorno como frias, dominadoras
e impenetráveis às necessidades dos filhos. De acordo com Fromm-
-Reichmann, pode parecer que essas mães estejam se autossacrifican-
do, mas na verdade estão usando os filhos para satisfazerem as suas
próprias necessidades. Superprotegendo os filhos e rejeitando-os ao
mesmo tempo, elas os deixam confusos, abrindo caminho para o fun-
cionamento esquizofrênico (Comer, 2003, p. 310).
Os ensinamentos de Sullivan e Fromm-Reichmann sobre as causas
e o tratamento das psicoses foram amplamente adotados pela psiquia-
tria norte-americana, tendo sido ampliados por Gregory Bateson (do
“Instituto de Pesquisa em Saúde Mental” em Menlo Park, na Califórnia),
Bertram Lewis (psicanalista de Nova York), Sandor Rado, dentre outros.
Uma particularidade da psiquiatria norte-americana (não encon-
trada em outras partes do mundo) foi sua apreensão fundamentalis-
ta da psicanálise. Na era de ouro da “psiquiatria psicanalítica”, admi-
nistrar um sedativo a um paciente agitado não era visto como um ato
terapêutico, mas sim como uma atuação (acting-out) por parte do
médico. A proposta analítica de interpretar sintomas e desarticular
suas causas psicogênicas subjacentes, não os manipulando direta-
mente através de medicação, sugestão etc., foi assimilada literalmen-
te pela psiquiatria norte-americana. Com isso, ela tendeu, cada vez

22
Naquela época, esse diagnóstico era usado indiscriminadamente pelos psiquiatras norte-americanos,
ao ponto de Devereux (1973), posteriormente, designá-lo uma “psicose étnica” ligada aos Estados Uni-
dos. Podia-se, por exemplo, ser declarado “esquizofrênico” após três dias de um episódio de despersona-
lização vagamente alucinatório, além de existirem categorias controversas como “esquizofrenia aguda”.

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Rogério Paes Henriques 63

mais, a se ocupar predominantemente dos casos menos graves de


perturbação mental. Conforme assinalou Ellenberger, em 1955, as
pessoas consultavam um psiquiatra na Europa devido a sintomas, en-
quanto nos Estados Unidos as consultas psiquiátricas se associavam
a problemas (apud Shorter, 1997, p. 179). A população norte-america-
na passaria a conceber a psicoterapia analítica como o elixir para seus
mal-estares. A consequência foi que a demanda por serviços psico-
lógicos nos Estados Unidos praticamente dobrou em duas décadas,
passando de uma taxa populacional de 14%, em 1957, para 26%, em
1976, isto é, mais de 1/4 da população norte-americana era adepta
das psicoterapias em meados dos anos 1970.
Cabe ressaltar o contexto sócio-histórico do pós-II Guerra Mundial
nos países aliados, calcado no pacto estabelecido com seus cidadãos
em prol da promoção do bem-estar social (Welfare States). Isso se re-
flete na definição de saúde surgida naquela ocasião como “completo
bem-estar biopsicossocial”. De certa forma, tal ideal de “saúde perfeita”
difundida no imaginário coletivo tende a diminuir a tolerância social
para com quaisquer formas de mal-estar, inclusive o existencial.
Sob a influência da psicanálise, a psiquiatria norte-americana
completou sua longa jornada dos asilos aos consultórios médicos.
Em 1917, apenas 8% dos psiquiatras norte-americanos atuavam
como autônomos, percentual este que aumentou para 33%, em
1933, e para 38%, em 1941. Em 1970, pelo menos 66% dos psiquia-
tras conciliavam o trabalho em instituições asilares ou de ensino com
a atuação como autônomos.
Destaca-se, para efeito de conclusão deste tópico, que qualquer
prática pode ser apropriada pelo saber médico de modo fundamen-
talista, como a psicanálise o foi. Foi contra a medicalização da psi-
canálise operacionalizada pela psiquiatria norte-americana (em sua
vertente ego psychology) que o psicanalista francês Jacques Lacan
(1901-1981) se insurgiu com sua proposta de um “retorno a Freud”, a
partir da década de 1950. O texto que abre a magnum opus de Lacan,
seus Escritos (Lacan, 1998b), é o “Seminário sobre A Carta Roubada”,
de Edgar Alan Poe, publicado em 1957; nesse texto, que serve de
analogia para sua empreitada no campo psicanalítico daquela época,

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64 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Lacan se propõe a resgatar a “letra” (lettre, em francês = carta/letra)


do texto freudiano, após seu longo extravio e sua apropriação indé-
bita pelos adeptos da medicalização, devolvendo-a ao seu verdadei-
ro destino. Lacan levaria toda a sua vida nessa função de “carteiro da
verdade” (Derrida, 2007), isto é, nesse processo de promoção da des-
medicalização da psicanálise, a partir do seu afastamento da biologia
e aproximação das humanidades (filosofia, linguística, antropologia
etc.), num primeiro momento de seu ensino, e da matemática (topo-
logia), em seu derradeiro ensino.
Muito embora a peculiar incorporação da psicanálise pela psiquia-
tria norte-americana nas décadas de 1950 e 1960 não tenha promovi-
do a sua efetiva desmedicalização, foi nesse período que floresceram as
primeiras experiências reformistas no campo psiquiátrico norte-ameri-
cano, sinal de que algum nível de desmedicalização ocorreu. Referimo-
-nos aqui as experiências da Psiquiatria Preventiva ou Comunitária em
solo estadunidense, com base em Gerald Caplan que culminariam
nas experiências de Loren R. Mosher na casa Soteria (1971-1983), de-
dicada ao tratamento alternativo (não médico) da esquizofrenia, que
originou vários centros de psiquiatria alternativa país afora. Deduz-se,
então, que a apropriação da psicanálise pela psiquiatria norte-ameri-
cana (e a promoção de algum nível de desmedicalização) favoreceu,
em algum medida, formas de assistência (de atenção e de gestão) que,
se ainda não desmedicalizadas na sua plenitude, representaram im-
portantes alternativas ao modelo hospitalocêntrico.

O Declínio da Psicanálise e a Emergência da Psiquiatria


Biológica no Campo Psiquiátrico Norte-Americano
O campo psiquiátrico norte-americano tem uma importância
central neste trabalho por entendermos que a remedicalização atin-
giu seu ápice, sobretudo, nesse ambiente, tendo sido disseminada
para o resto do mundo pela atual globalização do DSM. Os aspectos
históricos deste tópico baseiam-se no oitavo capítulo (“From Freud
to Prozac”) de Shorter (1997).

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Rogério Paes Henriques 65

O declínio da psicanálise na psiquiatria norte-americana come-


çou já no final da década de 1960 e início da década de 1970, quando
ocorreu a ascensão de diversas psicoterapias alternativas que compe-
tiam entre si e com a psicanálise no mercado psicoterápico. Isto é, o
abandono da psicanálise por parte dos psiquiatras norte-americanos,
não implicou de imediato o abandono do modelo dinâmico em psi-
quiatria, embora o paradigma “biopsicossocial” tenha sido consisten-
temente abalado. Estas psicoterapias contabilizavam 130 versões, em
meados dos anos 1970, indo desde as mais comuns (como as psicote-
rapias breves de orientação psicanalítica, a gestalt-terapia, o psicodra-
ma, as terapias corporais, transpessoais, grupais, familiares etc.) até as
mais bizarras (como a “terapia do grito primal”, popularizada por John
Lennon nesta mesma década, a “terapia do toque” etc.)23.
O abandono de interesse pela psicanálise por parte dos progra-
mas de residência médica em psiquiatria nos Estados Unidos, que
deixaram de enfocar as psicoterapias profundas orientadas psicana-
liticamente no treinamento dos residentes, foi seguido pela ênfase
nas terapias biológicas (prescrição de drogas) e no tratamento dos
sintomas manifestos pelos pacientes com o uso de técnicas compor-
tamentais. Na década de 1950, o currículo destes programas era 50%
voltado para a prática psicanalítica, número que contrasta radical-
mente com os atuais 2,5%. Em 1990, mais de cem dos 163 programas
de residência em psiquiatria existentes nos Estados Unidos haviam
abandonado a instrução em psicoterapia intensiva.
Com o declínio da psicanálise nos programas de residência psi-
quiátrica norte-americanos, declinou também o número de psiquia-
tras interessados em se tornar psicanalistas, passando do índice de
10% nos anos 1950 para 2,7% em 1988.
Em 1974, a American Psychoanalytic Associassion (na época uma
instituição restrita a médicos) recenseou seus membros e constatou

23
Robert Castel, em A Gestão dos Riscos (1987), assinala que o surgimento destas psicoterapias alter-
nativas nas décadas de 1960 e 1970, agrupadas sob os rótulos “Movimento do Potencial Humano”
ou “Psicologia Humanista”, aponta para uma era pós-psicanalítica, na qual a psicanálise teria perdido
o monopólio da difusão da cultura psicológica no seio da sociedade.

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66 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

que 3/5 deles tinham começado a prescrever drogas, enquanto 1/5


trabalhava com o amplo complexo das chamadas “psicoterapias al-
ternativas”, devido à escassez de “neuróticos clássicos”, segundo as
palavras de um dos recenseados. Isso nos leva a concluir que somen-
te a fração restante, que contabilizava 1/5 dos membros, permanecia
fiel à ortodoxia psicanalítica.
Por fim, os próprios pacientes tornaram-se descrentes para com
a psicanálise. O mesmo censo descrito acima constatou um signifi-
cativo declínio no número de pacientes que buscavam o tratamento
analítico, em parte também devido à relutância das seguradoras de
saúde em bancar financeiramente os tratamentos longos e não men-
suráveis quantitativamente.
Paradigmático foi o caso do ex-interno Rafael Osheroff, que
processou o hospital Chesnut Lodge. Em 1979, o médico Rafael
Osheroff, que na época contava 42 anos, foi internado no referido
hospital com diagnóstico de depressão psicótica, tendo permanecido
em tratamento por sete meses com psicoterapia intensiva orientada
psicanaliticamente, conforme era a praxe da instituição. Ele não
recebeu nenhuma medicação ao longo de sua estada, apesar de
suas requisições, e praticamente nenhuma melhora foi obtida. Ao
ser transferido para a clínica particular da Fundação Hill Silver, em
Connecticut, ele foi tratado com fenotiazinas e antidepressivos.
Dentro de três meses, ele recebeu alta e retomou sua rotina. Para
seu espanto, ao retornar a sua casa, ele percebeu que sua esposa o
abandonara e que, além disso, havia perdido o emprego.
Em 1982, Rafael Osheroff processou Chesnut Lodge por negligên-
cia médica, alegando que ele deveria ter recebido o tratamento psi-
quiátrico padrão do Estado, baseado em medicamentos com eficácia
comprovada. Moral da história: a grande repercussão negativa do
caso na mídia deixou uma forte impressão de que o tratamento psi-
quiátrico baseado somente na psicanálise constituía charlatanismo
(no sentido moderno e pejorativo do termo). Mensagem subjacen-
te: as clínicas psiquiátricas que persistissem exclusivamente no tra-
tamento psicanalítico corriam o risco de serem punidas. Levando-se
em consideração a cultura jurídico-litigiosa do dano e da reparação

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Rogério Paes Henriques 67

existente nos Estados Unidos, essa era a gota d’água que faltava para
que a psicanálise norte-americana se desmedicalizasse e para que a
psiquiatria se remedicalizasse.
Vale lembrar, como assinala Serpa Jr. (1998, p. 242), que Chestnut
Lodge tinha um importante papel na psiquiatria norte-americana da-
quela época como uma instituição “alternativa”, que abraçava uma
proposta de “desmedicalização”, sendo um dos principais centros pro-
pagadores das psicoterapias orientadas psicanaliticamente. Esse caso
deixou uma forte impressão de que, em favor da “abordagem dos con-
flitos intrapsíquicos”, os adeptos da psicanálise relegavam a um segun-
do plano dimensões tão importantes quanto a diagnose e a análise
dos sintomas, na prática clínica. Supôs-se que o “erro” na condução do
tratamento do Dr. Osheroff deveu-se à falta de estudos controlados no
campo da psicoterapia psicanalítica e, a partir de então, a exigência de
padronizações nesse campo vem aumentando consideravelmente24.

O Objetivismo Médico e o Imperativo Categórico da


Experimentação
Ao invés de relegar as intervenções de caráter psicossocial ao
limbo do esquecimento, o objetivismo médico passa a administrá-las,
impondo-lhes uma padronização de caráter biomédico. Nesse senti-
do, Serpa Jr. (1998, p. 241) assinala que a psiquiatria orientada biologi-
camente não descarta as intervenções “complementares” de caráter
psicossocial, mas exige a adequação dessas últimas à metodologia
experimental, isto é, aos padrões quantificáveis e controláveis ine-
rentes às intervenções calcadas no paradigma biomédico. Exige-se,
por exemplo, uma “modelização das psicoterapias” e a criação de
instrumentos para medir a sua eficácia terapêutica. Paulatinamente,
as psicoterapias de base cognitivo-comportamental vêm ocupando
o espaço antes destinado às psicoterapias de base psicanalítica na

Um relato de paciente que inclui uma experiência de tratamento em Chesnut Lodge encontra-se
24

em Hannah Green, Nunca lhe prometi um jardim de rosas, 3. ed, Rio de Janeiro, Imago, 1987.

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68 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

prática psiquiátrica, por melhor se adequarem às novas exigências e


à lógica empírico-pragmática que perpassa a racionalidade médica.
Cada vez mais psicoterapeutas visam a legitimar suas práticas
psicoterápicas segundo os parâmetros quantificáveis da metodolo-
gia experimental. Alguns pesquisadores, inclusive, utilizam a ima-
geria cerebral no intuito de comprovar cientificamente os supostos
resultados positivos da psicoterapia. Para tanto, exibem imagens do
funcionamento cerebral de um paciente antes e depois de ele se sub-
meter à intervenção psicoterápica e comparam tais resultados com
aqueles obtidos pela psicofarmacoterapia. Esse procedimento com-
parativo sugere que as psicoterapias seriam formas alternativas de
tratamento “biológico”, capazes de modificar a dinâmica do funcio-
namento bioquímico cerebral, qualificado como o novo eu. A eficácia
simbólica da palavra (e das terapias da fala), já comprovada etnogra-
ficamente (Lévi-Strauss, 1985a; 1985b), agora, exige comprovação
adicional pelo método experimental.
Quanto às opiniões do próprio Freud acerca da aplicação de mé-
todos de avaliação experimental em psicanálise, Roudinesco (2000)
nos conta que, em 1934, ele recebeu do psicólogo Saul Rosenweig os
resultados experimentais que provavam sua teoria do recalcamento.
Diante disso, Freud não “rejeitou a ideia da experimentação, mas lem-
brou que os resultados obtidos eram, ao mesmo tempo, supérfluos e
redundantes diante da abundância das experiências clínicas já bem
estabelecidas pela psicanálise e conhecidas através das numerosas
publicações de casos.”
A um outro psicólogo norte-americano que lhe propôs “medir” a
libido e dar seu nome (um freud) à unidade de medida, ele tam-
bém respondeu: “Não entendo de física o suficiente para formular
um juízo confiável nessa matéria. Mas, se o senhor me permite um
favor, não dê meu nome a sua unidade. Espero poder morrer, um
dia, com uma libido que não tenha sido medida” (Ibid., p. 34-35).

Apesar disso, tem sido crescente a tentativa de psicanalistas, em sua


maioria membros das Sociedades Psicanalíticas filiadas à IPA (International
Psychoanalytical Association), instituição fundada por Freud e Ferenczi em
1910, de legitimar a psicanálise, aproximando-a das neurociências.

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Rogério Paes Henriques 69

Foge aos propósitos deste trabalho analisar as complexas e con-


troversas correlações entre psicanálise e neurociências, o que daria
margem a outro estudo. Gostaríamos somente de alertar os leitores
para o que muitas vezes pode resultar numa “equivalência forçada”,
nas palavras de Alves (2001); a desejável caução científica, sobretudo
se a psicanálise for forçada a se deitar no leito de Procusto das neuro-
ciências, está longe de compensar a deformação de sua ética25 e, por
conseguinte, a descaracterização de sua prática clínica.

Apesar do fantasma fisicalista que assombra aqueles que creem


na complexidade do entendimento e tratamento da loucura, Castel
nos tranquiliza, em parte:
É pouco provável que as abordagens objetivistas venham
bruscamente ocupar todo o terreno. A hipótese mais verossímil
no imediato é antes a do triunfo de um ecletismo que procurará
sua caução na eficácia de seus procedimentos. (...) Sem pretender
deduzir o que será o futuro, é pelo menos possível prever com
uma quase certeza o que ele não será. Não mais dominado pelas
grandes sínteses que tentaram se impor nos dois últimos decê-
nios [1960 e 1970] em redor da psiquiatria social e/ou da psicaná-
lise confrontando as técnicas de cura com objetivos políticos ou
existenciais (Castel, 1987, p. 99).

4. A “Remedicalização” da Psiquiatria:
a vertente biológica
Baseamo-nos aqui no sétimo (“The Second Biological Psychia-
try”) e oitavo (“From Freud to Prozac”) capítulos do livro de Shorter
(1997) e no livro de Healy (2000), sobretudo o segundo (“The Disco-
very of Antidepressants”) e sexto (“The Luke Effect”) capítulos, como
referenciais teóricos principais deste capítulo.

25
Em O Seminário, Livro 7: a Ética da Psicanálise, de 1959-1960, Lacan (1988) assinala como pressuposto
ético fundamental do processo analítico que o analisando “não ceda em seu desejo”, exatamente o
oposto do que a psiquiatria biológica e a chamada “neuropsicanálise” propiciam ao nada querer saber
desse sujeito do desejo, implicado com seu sintoma.

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70 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Shorter (1997, p. 239) assinala que, no decorrer da década de


1970, a psiquiatria biológica desbancou a psiquiatria dinâmica – ba-
seada, sobretudo, no paradigma psicanalítico – no campo psiquiátri-
co norte-americano, conferindo à disciplina seu estatuto de especia-
lidade médica. Tratar-se-ia do advento daquilo que ele chamou de
modo anacrônico “segunda psiquiatria biológica”, conforme o título
do sétimo capítulo de seu livro. Aos poucos, a psiquiatria biológica
viria conseguindo impor sua crença na existência de um substrato
biológico-cerebral para as perturbações mentais.
Segundo Guze (apud Serpa Jr., 1998, p. 240), a pressuposição
central da psiquiatria biológica é a de que o “cérebro é o órgão da
mente”. Essa entronização do cérebro justifica o fato de que a estru-
tura e função cerebrais estejam no centro de seu sistema conceitual,
embora, não haja um “enquadramento teórico encompassador que
permita articular coerentemente os achados da psiquiatria biológica”
(Ibid., p. 266). Ela assimila os achados de várias disciplinas (sobretudo
da genética, da psicofarmacologia e das neurociências), concatenan-
do-os, e se legitima pela eficácia de seus procedimentos, centrados
na clínica medicamentosa. Traçaremos, a seguir, um panorama histó-
rico da psicofarmacologia, disciplina que embasa a prática clínica da
psiquiatria biológica, e que nos interessa mais especificamente neste
trabalho em função dos nossos objetivos.

Psicofarmacologia: a base pouco evidente


da psiquiatria biológica

As drogas sempre foram usadas na prática psiquiátrica, desde os


laxantes administrados aos recém-internados – uma vez que se acredi-
tava que seus problemas pudessem ser decorrentes de uma autointo-
xicação –, até o ópio e seus alcaloides indicados para os casos de mania
e depressão, os quais, apesar de alguns efeitos benéficos, mostravam-
-se altamente tóxicos. Mesmo a acetilcolina, após ser isolada como um
neurotransmissor na década de 1920, passou a ser administrada em
pacientes esquizofrênicos. Todavia, a moderna era da psicofarmacolo-

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Rogério Paes Henriques 71

gia só seria inaugurada com o surgimento da primeira droga que atu-


aria qualitativamente sobre os sintomas psicóticos: a clorpromazina.

Clorpromazina: a penicilina da alma?

Em1951, o cirurgião da marinha francesa, Henrit Laborit intro-


duziria o uso da clorpromazina em seus pacientes na ocasião de suas
intervenções cirúrgicas com o intuito de potencializar a analgesia,
acabando por notar um certo “desinteresse” (désintéressement) da par-
te deles quando sob o efeito da droga. O grau de sedação produzida
pela nova substância lhe pareceu estar mais relacionado a um efeito
primário de indiferença do que à sedação propriamente dita, fato que
o levou a sugerir seu uso psiquiátrico. Ele persuadiu os psiquiatras do
mesmo hospital em que atuava (Val-de-Grâce) a testar a nova droga
e, diante de suas recomendações, em 1952, ela seria administrada em
alguns pacientes, em combinação com barbitúricos, outros sedativos e
eletroconvulsioterapia (ECT). Apesar de acharem que a droga poderia
ter valor terapêutico em psiquiatria, a equipe médica do hospital não
achou que se tratasse de uma descoberta muito relevante.

No ano de 1952, a clorpromazina passou a ser prescrita por


dois dos mais eminentes psiquiatras parisienses, Jean Delay e
Pierre Deniker. Jean Delay – professor de psiquiatria da Sorbon-
ne e diretor do Hospital Psiquiátrico Sainte-Anne, então com 45
anos – era um dos líderes da psiquiatria francesa da época, ao lado
de Henri Ey. Pierre Deniker, dez anos mais jovem, fazia parte da
equipe médica do hospital. Ambos eram biologicamente orienta-
dos26. Eles administraram a droga a uma amostra de 38 pacientes

26
Interessante notar que tais psiquiatras, embora biologicamente orientados e adeptos do polo
físico, mantinham diálogo aberto com os adeptos do outro polo. Enquanto Jean Delay dirigiu o
Hospital Psiquiátrico Sainte-Anne, Jacques Lacan e Raimu Henry Ey lecionaram nessa mesma ins-
tituição. Além disso, Lacan foi convidado por Delay para ministrar em Sainte-Anne a conferência
“Freud no Século”, em comemoração ao centenário de nascimento de Freud – trata-se da aula de
16 de maio de 1956 do Seminário, Livro 3: as Psicoses (Lacan, 2002); Lacan também dedicou um es-

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72 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

psiquiátricos com quadro de agitação psicótica (predominava o


diagnóstico de mania) de Sainte-Anne. Desta vez, a droga foi adminis-
trada sozinha, sem o cruzamento com outras substâncias que pode-
riam influenciar o resultado da pesquisa. Os resultados propiciados
pela clorpromazina foram surpreendentes, superando em muito o
efeito das drogas (barbitúricos, anfetaminas etc.) e das terapias físi-
cas (lobotomia, ECT, coma induzido por insulina etc.) administradas
até então: pacientes que alucinavam e deliravam há anos emergiram
de suas psicoses pela primeira vez, libertando-se de seus sintomas.
Delay, Deniker e Jean-Marie Harl descreveriam seus achados numa
série de publicações, enfatizando que se tratava de uma descoberta
revolucionária para a psiquiatria.
Em 1953, o uso da clorpromazina já tinha se espalhado pelos asi-
los franceses. Como assinala Caldwell em sua History of Psychophar-
macology, naquela época,
a atmosfera nas alas perturbadas dos hospícios em Paris tinha
se transformado: camisas-de-força, pacotes psico-hidráulicos
e barulho eram coisa do passado! Mais uma vez, os psiquiatras
parisienses, que há muito tempo desacorrentaram os acorren-
tados, tornaram-se pioneiros na libertação de seus pacientes,
desta vez libertando-os de seus tormentos íntimos com uma
droga: a clorpromazina. Tal substância consumaria a revolução
farmacológica da psiquiatria (apud Shorter, 1997, p. 250).

No entanto, a comunidade psiquiátrica mundial resistiria a assi-


milar a magnitude dessa descoberta. A clorpromazina só se firmaria
no cenário psiquiátrico internacional por volta de 1954. No ano se-
guinte, seria realizado um encontro, em Paris, organizado por Delay,
que contaria com a presença maciça dos líderes da psiquiatria mun-
dial biologicamente orientada. Durante esse encontro, predominou

crito ao livro de Delay sobre a “Juventude de André Gide” (Lacan, 1998c). Como vimos (“A Ascensão
da Psicanálise no Campo Psiquiátrico Norte-americano”, supra), o ambiente era completamente
diferente nos Estados Unidos, onde o campo psiquiátrico incorporou a psicanálise (em sua versão
ego psychology) de maneira fundamentalista, eliminando a interlocução com a vertente fisicalista.
Atualmente, o fundamentalismo do campo psiquiátrico norte-americano persiste, porém, de for-
ma invertida, com a hegemonia da psiquiatria biológica.

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Rogério Paes Henriques 73

um clima de euforia entre os participantes. Pela primeira vez na his-


tória da psiquiatria, pensou-se ter sido aberta uma possibilidade efe-
tiva de terapia das perturbações mentais.
Segundo Shorter (1997, p. 255), a “clorpromazina iniciou a revo-
lução na psiquiatria, comparável à introdução da penicilina na medi-
cina geral”. Embora não seja capaz de curar as doenças mentais, ela,
pelo menos, elimina seus principais sintomas delirantes e alucinató-
rios, possibilitando aos psicóticos uma vida relativamente normal,
ampliando seu trágico destino de confinamento nas instituições de
cuidados. Para além de um mero efeito sedativo, a clorpromazina foi
a primeira droga psiquiátrica que propiciou uma diferença qualitati-
va no estado dos pacientes psicóticos. Os benefícios proporcionados
pela droga a tais pacientes superavam em muito seus incômodos
efeitos colaterais adversos – os chamados sintomas extrapiramidais
(alterações da atividade motora), dentre os quais se destaca a “disci-
nesia tardia”, que significa “transtorno de movimento que surge tar-
diamente” e acomete entre 10 a 20% dos pacientes crônicos.
De fato, atualmente, não há conscenso quanto aos benefícios
do uso crônico dos psicotrópicos em geral, frente o custo dos seus
efeitos colaterais indesejáveis. Até porque tais medicamentos, apesar
de comprovadamente “eficazes” (eliminam ou amenizam os sitomas
psicopatológicos, de modo paliativo), não têm“efeito terapeutico”(poder
curativo). Dessa forma, deve-se dosar muito bem a equação custo-
benefício antes de se prescrever um psicotrópico, pois seu uso crônico
pode ocasionar os mesmos sintomas psicopatológicos que se visa a
combater, encerrando o paciente num ciclo vicioso de medicalização.

A Clorpromazina na América do Norte


O pioneiro na introdução da clorpromazina na América do Norte
foi o psiquiatra alemão Heinz Lehmann. Ele já havia realizado, du-
rante as décadas de 1930 e 1940, inúmeras experiências com as mais
variadas substâncias (cafeína, enxofre, antitoxinas tifoide, terebintina
etc.), administrando-as aos seus pacientes, no Hospital Protestante

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74 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Verdun de Montreal, não obtendo qualquer resultado positivo. Ape-


sar de seu ceticismo quanto às afirmações de Delay e Deniker de que
a nova droga teria proporcionado uma revolução na prática psiquiá-
trica, Lehmann notou que as descrições desses autores sobre os efei-
tos da clorpromazina diferiam significativamente de tudo que havia
sido relatado até então. Ele resolveu testá-la em setenta pacientes
e se surpreendeu com os resultados que encontrou, os quais viriam
confirmar o otimismo dos escritos de Delay e Deniker.
Nos Estados Unidos a clorpromazina foi introduzida pelo labora-
tório Smith, Kline & French, em 1954, com nome comercial Thorazine.
Prescrita em pequena escala por psiquiatras “marginais”, a clorpro-
mazina foi aos poucos ganhando a confiança do corpus psiquiátrico
norte-americano atuante na iniciativa privada que, naquela época,
devido à hegemonia da psiquiatria dinâmica, não eram receptivos à
psicofarmacoterapia. As pesquisas com a clorpromazina ganharam
um incentivo adicional com a visita de Deniker aos Estados Unidos,
no mesmo ano de seu lançamento. Começou-se a difundir a ideia de
que ela era diferente de tudo que existia até então no tratamento das
psicoses. Com isso, as resistências opostas pelos psicanalistas à droga
foram sendo quebradas27.
A realidade foi outra na assistência psiquiátrica pública norte-
-americana. Em 1955, a clorpromazina já havia se popularizado nos
asilos estaduais dos Estados Unidos, em grande parte, devido a uma
força-tarefa criada pela Smith, Kline & French para convencer essas
instituições e os legisladores estaduais dos benefícios terapêuticos
e financeiros advindos com a utilização da clorpromazina. Estima-se
que, nesse mesmo ano, a Smith, Kline & French tenha faturado U$ 75

27
Healy (2000, p. 181) assinala que a clorpromazina foi lançada na Europa com o nome comercial
Largactil. Acrônimo que refletia a percepção inicial sobre a droga de sua “ampla gama de ação” (em
inglês, “large range of action”). A ideia de que a clorpromazina era direcionada à esquizofrenia só se
desenvolveria depois, em parte, devido ao fato de que a maioria dos problemas clínicos psiquiátri-
cos que levavam alguém a ser internado nos Estados Unidos, durante as décadas de 1950 e 1960,
eram rotulados de esquizofrenia. Daí o interesse do laboratório em direcioná-la à “epidemia” de
esquizofrenia detectada na época. Numa analogia ao termo europeu, a clorpromazina foi lançada
no Brasil com o nome comercial Amplictil.

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Rogério Paes Henriques 75

milhões com a patente da droga. Os outros laboratórios farmacêuti-


cos também desejavam um quinhão desse mercado promissor. Entre
1953 e 1958, vários encontros foram convocados pelas grandes in-
dústrias farmacêuticas (Geigy, Ciba, Roche, Sandoz e Rhône-Poulenc)
visando a explorar o desenvolvimento de novos compostos – a imi-
pramina, o meprobamato, o clordiaxepóxido, dentre outros, seriam
sintetizados durante esse período.

O Complexo Médico-Industrial
De fato, a indústria teve um papel fundamental no estabele-
cimento de uma rede organizacional internacional necessária ao
desenvolvimento da psicofarmacologia. Ela patrocinou estudos
pré-clínicos (realizados em animais) e clínicos (realizados em seres
humanos) que acabariam por formatar a nova ciência. Tais encontros
levaram à criação do Collegium Internationale Neuropsychopharma-
cologium (CINP) e, por conseguinte, ao surgimento de muitas socie-
dades nacionais de psicofarmacologia.
Vale ressaltar que a belicosidade do século XX criou uma atmos-
fera propícia à junção do capital privado e dos fundos públicos no
financiamento de pesquisas em farmacologia. Healy (2000, p. 15-28)
assinala o investimento por parte do governo norte-americano nos
laboratórios farmacêuticos instalados nos Estados Unidos, visando
a suprir o déficit de medicamentos importados durante as Guerras
Mundiais. Na I Grande Guerra, os laboratórios Abbott, Smith, Kline &
French, Parke-Davis, Eli Lilly e outros, que já estavam envolvidos no
desenvolvimento de antitoxinas e vacinas, foram beneficiados com
as verbas do governo federal e puderam ampliar suas bases de pes-
quisa. Durante a II Guerra Mundial, o “Escritório de Desenvolvimento
e Pesquisa Científica” dos Estados Unidos investiu em alguns labora-
tórios norte-americanos Merck, Squibb e Pfizer (todos ainda relativa-
mente pequenos na época). Como resultado desse investimento, a
Pfizer iniciaria a produção em escala industrial da penicilina. Nessa
mesma época, a parceria entre o governo federal e os laboratórios de

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76 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

pesquisa do Hospital Memorial Goldwater, chefiados por James Shan-


non, também renderia bons frutos, culminando no desenvolvimento
de antimaláricos sintéticos. Uma rede de cooperação entre cientistas,
indústrias e governo estava sendo delineada. Posteriormente, James
Shannon, ao assumir a direção do National Institutes of Health (NIH),
ajudaria a forjar as bases do “complexo médico-industrial”, que seria
uma das forças motrizes da indústria da saúde moderna. A Guerra
Fria viria contribuir para a superestimação simbólica da importância
da ciência, facilitando ainda mais o investimento público em pes-
quisas científicas, inclusive nas áreas de saúde mental e psicofarma-
cologia, já em meados da década de 1950, ocasião na qual as pes-
quisas nessas áreas ensaiavam seus primeiros passos. Justamente a
influência da iniciativa privada nas decisões político-governamentais
estadunidenses, no que tange à corrida armamentista, seria cha-
mada pelo general e então presidente dos Estados Unidos, Dwight
D. Eisenhower, em 1958, de “complexo militar-industrial”. De modo
análogo, Relman (1987), editor do New England Journal of Medicine,
forjou na década de 1980 a expressão “complexo médico-industrial”,
para mostrar a crescente e também preocupante associação entre
médicos e indústria, principalmente a farmacêutica, que abordare-
mos na segunda parte deste trabalho. Haraway (apud Clarke et al.,
TM
2000, p. 24) refere-se ao “complexo biomédico de tecnoserviços ,
Inc” denotando assim os profundos fenômenos contemporâneos de
corporatização e de mercantilização privada nos domínios da saúde
e da doença, que promovem a globalização e a transnacionalização
do modelo biomédico ocidental.
Seguindo a clorpromazina, uma série de novas drogas antipsicó-
ticas (como se diz nos Estados Unidos) ou neurolépticas (como se diz
na Europa), antimaníacas, ansiolíticas e antidepressivas mudariam a
psiquiatria, transformando-a num saber acerca da farmacologia, isto
é, do efeito das drogas sobre o corpo humano.

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Rogério Paes Henriques 77

Lítio: a substância natural pouco rentável


O médico australiano Jonh Cade, em 1949, descobriu os efeitos
positivos do lítio, substância que já era usada pela medicina desde a
metade do século XIX, quando prescrita para os casos de mania. Toda-
via, sua descoberta não obteve boa acolhida por parte da comunidade
médica mundial devido às circunstâncias históricas. O Journal of the
American Medical Association havia publicado, naquele mesmo ano, o
caso de dois pacientes cardíacos que morreram após terem iniciado o
tratamento com lítio. A descoberta de Cade permaneceria na obscuri-
dade por um longo período, principalmente nos Estados Unidos.
Em 1952, Mogens Schou, psiquiatra dinamarquês, resolveu testar a
veracidade da descoberta de Cade. No Hospital Universitário de Aahus,
Schou realizou um experimento, dividindo os pacientes maníacos do hos-
pital em dois grupos, um grupo experimental, que foi tratado com lítio, e
outro grupo controle, que recebeu um placebo (pílulas de açúcar), sendo
este um dos primeiros estudos clínicos duplo-cego levados a cabo em psi-
quiatria. Schou constatou que o lítio aliviava os sintomas da mania, ao pas-
so que sua retirada, ocasionava a recaída do paciente. Este estudo abriria
as portas para o lítio no campo internacional da psiquiatria.
Contudo, a regulamentação do uso do lítio em psiquiatria só
ocorreu efetivamente em 1970 nos Estados Unidos, passadas qua-
se duas décadas da descoberta de seus fins terapêuticos na mania.
Pode-se atribuir essa demora a dois fatores principais: em primeiro
lugar, o lítio é um sal natural abundante e não uma droga sintetizada
por laboratórios farmacêuticos, o que não lhe garante uma estratégia
de marketing a seu favor; em segundo lugar, todos os psicofármacos
tiveram que vencer as resistências opostas pelos psicanalistas norte-
-americanos e ingleses, que condenavam com veemência a quimio-
terapia em psiquiatria.
Os psicofármacos eram vistos com desconfiança pelo establish-
ment psicanalítico, uma vez que, supunha-se, não atingiriam os confli-
tos intrapsíquicos subjacentes aos fenômenos patológicos, resultando
ser meros paliativos que agiriam tão somente sobre os sintomas; eles
eram usados como “potencializadores” da psicoterapia, considerada o

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78 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

tratamento efetivo. Além disso, a prescrição medicamentosa quando


feita por um psiquiatra psicanalista poderia comprometer o vínculo
terapêutico, prejudicando o tratamento. Para resolver esse impasse,
naquela época, um médico de um hospital era designado a ocupar o
cargo de prescritor de drogas (druggist), responsabilizando-se pela psi-
cofarmacoterapia dos pacientes, e deixando, assim, os psiquiatras psi-
canalistas livres para prosseguir com a ortodoxia analítica. A realidade
foi totalmente diferente na Suíça, onde ambas as práticas (psicoterapia
e psicofarmacoterapia) sempre conviveram pacificamente. Curiosa-
mente, a partir da década de 1960, a psicofarmacologia floresceu prin-
cipalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, justamente os países
que mais opuseram obstáculos à sua implementação.

A Imipramina e a Depressão Psicótica


O psiquiatra suíço Roland Kuhn foi o responsável pela desco-
berta dos efeitos terapêuticos “milagrosos” (segundo sua própria ex-
pressão) da imipramina, quando administrada a pacientes depressi-
vos. A imipramina fora sintetizada pelo laboratório suíço J. R. Geigy,
possuindo uma estrutura química quase idêntica a da clorpromazina.
Após constatar o efeito adverso da imipramina quando administra-
da em pacientes esquizofrênicos do Hospital Psiquiátrico Münsterlingen,
que se tornaram muito agitados, Kuhn resolveu testá-la em pacientes
“melancólicos” (aqueles que apresentavam quadros de depressão psicó-
tica), em 1955, obtendo sucesso em sua empreitada. Ele enviou então
um relatório desse estudo para a Geigy, no início de 1957, designando
a droga como um potencial antidepressivo. Ainda nesse mesmo ano,
ele publicaria seus achados num periódico médico suíço e apresentaria
uma comunicação oral no II Congresso Mundial de Psiquiatria, realizado
em Zurique, ressaltando as qualidades da imipramina.
Na visita que fez aos Estados Unidos, em maio de 1958, Kunh co-
municou seus achados numa audiência no Galesburg State Hospital,
em Illinois. Em novembro desse mesmo ano, publicaria um artigo no
American Journal of Psychiatry, no qual enfatizava que, apesar dos re-

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Rogério Paes Henriques 79

sultados positivos serem visíveis dois ou três dias após a administração


da droga aos pacientes, o tratamento com a imipramina deveria ser
continuado, já que a interrupção abrupta de seu uso levaria ao retorno
dos sintomas. Nesse artigo de 1958, Kuhn já se preocupava com a cha-
mada “terapia de manutenção”, isto é, com a duração do tratamento
necessária ao efetivo restabelecimento de seus pacientes. Ele relatou
já ter tido casos nos quais os pacientes permaneceram em tratamen-
to com a droga por dois anos. Ele também se encarregou de estipular
uma escala de dosagens para a imipramina, que permanece atual até
hoje. Kuhn também descreveu todos os efeitos colaterais, atualmen-
te associados ao uso dos tricíclicos: secura na boca, tendência a suar
mais intensamente e às vezes de forma paroxística, alguma constipa-
ção, possível queda da pressão sanguínea, além de um possível estado
confusional em sujeitos com outros transtornos cerebrais.
A imipramina seria lançada na Suíça em novembro de 1957 e, no
início de 1958, ocorreria seu lançamento em outros países europeus,
sob o nome comercial Tofranil (essa é também, atualmente, a marca
mais conhecida no Brasil).
À semelhança da clorpromazina, o pioneiro na introdução da
imipramina na América do Norte foi Heinz Lehmann, psiquiatra do
Hospital Protestante Verdun de Montreal. Tendo participado do con-
gresso internacional de psiquiatria de Zurique, no qual Roland Kuhn
apresentou sua comunicação oral, Lehmann se interessaria pela nova
droga e solicitaria uma amostra do produto ao escritório da Geigy, lo-
calizado no Canadá. Em 1958, ele relataria os resultados do primeiro
teste com a imipramina na América do Norte, aplicada a uma amos-
tra de 84 pacientes, dos quais 2/3 haviam respondido ao tratamento.

O Mercado Consumidor dos Antidepressivos


Contudo, por que a imipramina levaria algum tempo para ter
um impacto, desde a sua descoberta? Houve alguma hesitação para
que os efeitos da clorpromazina fossem reconhecidos, porém isso se

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80 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

explica, em parte, pelo fato de que nenhuma droga precedente de-


monstrou ser específica às perturbações psiquiátricas. No entanto,
o que teria levado a tal hesitação no caso da imipramina? Por que a
Geigy hesitaria em comercializá-la?
Desde o início, a Geigy teve que se haver com alguns problemas.
Que credibilidade teriam as observações de Kuhn? Além disso, qual
seria o tamanho do mercado consumidor que a imipramina atingi-
ria? Naquela época, vários pesquisadores eram céticos com relação à
nova droga. Acreditava-se que o composto seria um similar da clor-
promazina. Alguns psiquiatras da Europa Central que haviam testado
a imipramina, administrando-a em altas dosagens, encontraram efei-
tos similares àqueles proporcionados pela clorpromazina. Perante
outros profissionais que também testavam a droga, Kuhn era uma
figura sem credibilidade.
Seguindo a tradição da psiquiatria alemã, Kunh se preocupava
com a natureza íntima da doença sobre a qual a imipramina agia,
a saber: a depressão psicótica; ele não se importava com as impli-
cações práticas surgidas com o advento da nova droga, tal como o
faziam os anglo-saxões, inspirados no empirismo terapêutico. O en-
volvimento de Kuhn com as nuances da teoria psicopatológica era de
pouco interesse para a Geigy, que estava mais preocupada em saber
se haveria ou não um mercado consumidor para seu produto.
Além disso, Kuhn era uma espécie de médico provinciano, no
sentido em que ele era quase o oposto do cosmopolita Nate Kline,
um contemporâneo seu, que descobriria os efeitos antidepressivos
do “inibidor das monoaminoxidases” (IMAO): iproniazida. Quando o
laboratório farmacêutico Roche estava receoso quanto à comercia-
lização dessa droga como um antidepressivo (ela já havia sido lan-
çada no mercado para combater à tuberculose, sendo tal uso inter-
rompido devido aos seus efeitos colaterais adversos), Kline interveio
pessoalmente em prol da comercialização, inclusive, anunciando sua
descoberta na mídia, antes mesmo de divulgá-la ao campo científico,
numa postura ética reprovável. Enquanto o Rockland State Hospital,
em Nova York, onde Kline trabalhava, e o Hospital Sainte-Anne, em Pa-

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Rogério Paes Henriques 81

ris, que Delay dirigia, localizavam-se em metrópoles mundialmente


famosas, o Hospital Münsterlingen, aonde Kuhn conduziu suas expe-
riências com a imipramina, estava praticamente fora do mapa. Como
assinala Bourdieu, “(...) os julgamentos sobre a capacidade científica
de um estudante ou de um pesquisador estão sempre contaminados,
no transcurso de sua carreira, pelo conhecimento da posição que ele
ocupa nas hierarquias instituídas” (1983, p. 124).
Que importância deveria ser dada às opiniões de Kuhn, conside-
rado um psiquiatra provinciano de segundo escalão, quando muitos
líderes do campo, mesmo aqueles comprometidos com a psicofar-
macoterapia, afirmavam não ser possível a existência de um agente
antidepressivo? Esse era um dos problemas enfrentados pela Geigy.
Para complicar ainda mais a situação, Kuhn fazia questão de enfatizar
que a imipramina não era um estimulante, mas sim um antidepressi-
vo, indicado a um número restrito de estados depressivos, particular-
mente àqueles casos que respondiam à eletroconvulsoterapia (ECT).
Um medicamento voltado para esse público-alvo certamente estaria
condenado ao fracasso de vendas.
A imipramina seria tão efetiva quanto a ECT? Muito provavel-
mente não. Haveria um mercado para os antidepressivos? Quem sa-
beria dizer? Essa última dúvida pode nos parecer estranha hoje em
dia, pois a depressão é, na atualidade, considerada um problema de
saúde pública. Contudo, em se tratando do final da década de 1950,
ainda não havia uma demanda psiquiátrica tão grande para os casos
de depressão28. Somente os estados depressivos mais graves (aque-
les nos quais havia risco de morte iminente para o paciente) eram
tratados. O tratamento, por sua vez, envolvia a internação e sessões
de eletrochoque. Se o mercado para um antidepressivo era incerto
naquela época, havia claramente uma demanda por estimulantes, o
que vinha a ser comprovado pelo amplo uso da anfetamina nos anos
1940 e 1950. Todavia, a imipramina não era um estimulante! – fazia
questão de afirmar Kuhn. Além disso, o impacto do sucesso de ven-

28
Sobre os olhares históricos nas décadas de 1920, 1950 e 2000 da depressão clínica, vide o filme:
As Horas (The Hours), direção de Stephen Daldry, Reino Unido/Estados Unidos, 2001, Cor/114 min.

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82 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

das da clorpromazina nos Estados Unidos fazia com que as indústrias


farmacêuticas direcionassem suas drogas recém-criadas prioritaria-
mente aos esquizofrênicos.
Entre 1956 e 1957, enquanto pesquisava se haveria mercado
para a droga, a Geigy convocou vários especialistas para investigar
os achados de Kuhn. Por fim, o laboratório acabaria por lançar a imi-
pramina, impelida por dois episódios decisivos: um de seus maiores
acionistas, Robert Böhringer, comprovaria os efeitos “milagrosos”
da droga sobre um de seus parentes; o professor de psiquiatria da
Universidade de Basel, Paul Kielholz, conterrâneo de Kuhn, que des-
pontava como o psicofarmacoterapeuta mais conceituado da Suíça,
confirmaria o efeito antidepressivo da substância.

A Amitriptilina e a Depressão Neurótica


A imipramina foi o primeiro antidepressivo tricíclico. Aos poucos,
vários medicamentos similares apareceram no mercado. Em 1961, o
laboratório Merck Company lançou a amitriptilina. A Merck foi pionei-
ra no redirecionamento de seu componente amitriptilina à depressão
neurótica. Healy (2000, p. 74-77) assinala a “descoberta” desta catego-
ria nosológica pela indústria farmacêutica no final dos anos 1950. Na-
quela ocasião, por sugestão do eminente psiquiatra norte-americano
Frank Ayd, o laboratório Merck resolveu testar o componente amitrip-
tilina – cuja molécula se pensava ter propriedades “antiesquizofrêni-
cas” – em pacientes depressivos, comprovando seus efeitos benéficos
sobre esses últimos. A amitriptilina foi lançada no mercado no mesmo
ano em que Frank Ayd publicou seu livro Recognizing the Depressed
Patient (“Reconhecendo o Paciente Depressivo”), dirigido aos clínicos
gerais. No Brasil, sua marca mais conhecida é o Tryptanol.
Enquanto a psiquiatria europeia se baseava no modelo asilar,
tendo como protótipos de doenças mentais as esquizofrenias e as
psicoses afetivas, a psiquiatria norte-americana – da qual Ayd fazia
parte – pretendia ser ambulatorial e reivindicava atuar também so-
bre os transtornos do impulso e as neuroses. Como a ação da imipra-

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Rogério Paes Henriques 83

mina sobre a depressão psicótica já estava consagrada na época, so-


mente a ampliação do conceito de depressão poderia abrir as portas
do mercado de fármacos para um novo componente tricíclico com
propriedades antidepressivas. Nesse sentido, a amitriptilina, apesar
de sua estrutura molecular ser bastante similar à imipramina, foi dire-
cionada ao tratamento da depressão neurótica.
A estratégia da Merck pode ser caracterizada como o primórdio
da mercantilização da doença e da medicalização da vida cotidiana,
que atingiria seu ápice com o desenvolvimento da “psicofarmacolo-
gia cosmética” e seus medicamentos fetiches, como veremos a seguir.
De forma sagaz, a Merck comprou cinquenta mil exemplares do livro
de Ayd e os distribuiu pelo mundo afora, no intuito de popularizar o
novo transtorno, que, segundo o autor, não se restringia aos asilos,
podendo ser facilmente diagnosticado nas enfermarias médicas ge-
rais e na clínica psiquiátrica ambulatorial. A estratégia do laboratório
era clara: visava a propagar a ideia de uma doença específica (a de-
pressão neurótica) e, por conseguinte, vender o medicamento indi-
cado para combatê-la (a amitriptilina), cuja patente lhe pertencia29.
A linguagem acessível do livro de Ayd permitia que os médicos não
psiquiatras aprendessem a reconhecer e a tratar o novo transtorno.
Isso possibilitou que a amitriptilina fosse o primeiro antidepressivo a
ter um volume de vendas substancial.
Em 1980, cerca de dez milhões de prescrições de antidepressivos (a
maioria tricíclicos) eram feitas anualmente nos Estados Unidos, poden-
do-se optar entre mais de uma dúzia de marcas (Shorter, 1997, p. 261).

29
Seu exemplo seria seguido pelas indústrias farmacêuticas produtoras dos compostos antidepres-
sivos IMAOs. Healy (2000, p. 185-187) aponta que, durante as décadas de 1960 e 1970, tais indústrias
bancaram extensas campanhas publicitárias no sentido de convencer a comunidade médica de
que seus compostos IMAOs eram eficazes no combate a algumas formas de “depressões atípicas”
associadas à ansiedade e aos estados fóbicos. Os fabricantes de IMAOs, numa estratégia de sobre-
vivência, resolveram investir na noção de “depressões atípicas” – que vinha sendo proposta por
eminentes psiquiatras daquela época –, no intuito de redirecionar seus compostos para essas no-
vas “doenças”, criando, assim, um novo nicho consumidor para eles. A partir de então, as indústrias
farmacêuticas vislumbraram uma possibilidade de, em adotando tal postura, repartir o mercado
dos “antidepressivos” com a imipramina.

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Atualmente, as indústrias farmacêuticas promovem campanhas


junto às associações psiquiátricas, tais como a American Psychiatric
Association e o The Royal College of Psychiatrists, no intuito de lhes
vender a ideia de que a “depressão” é ainda subdiagnosticada pelos
serviços médicos primários, sustentando que os profissionais desses
serviços deveriam ser treinados para reconhecê-la e tratá-la apro-
priadamente. Valenstein (1998, p. 186) nos conta que, em 1994, a
American Psychiatric Association recebeu a quantia de U$ 469.900 das
indústrias farmacêuticas para produzir material educativo aos médi-
cos sobre as depressões.

Meprobamato: a era da psicofarmacologia cosmética


A história da “psicofarmacologia cosmética”30 começou com Frank
Berger, um médico judeu de origem tcheca, radicado nos Estados
Unidos, que em 1950 descobriu os efeitos ansiolíticos do meprobamato,
substância sintetizada pelo Laboratório Carter, do qual ele era consultor.
Em 1955, o laboratório Wallace (subsidiário do Carter) lançou o
meprobamato no mercado estadunidense com o nome comercial Mil-
town, enquanto os Laboratórios Wyeth, que haviam comprado a licen-
ça da fórmula, o lançaram como Equanil. Ambos tiveram enorme re-
percussão na história cultural norte-americana como “tranquilizantes”.
Apesar da receptividade hostil ao Miltown por parte da psiquia-
tria norte-americana da época, este medicamento obteve grande
aceitação popular e midiática, tendo sido a primeira droga psiquiá-
trica a se tornar objeto de frenesi popular.
Apesar de seu sucesso no mercado norte-americano, o mepro-
bamato não parece ser muito popular no Brasil. Graeff & Guimarães
(1999, p. 124) assinalam que esse composto foi sintetizado no intuito

30
Termo cunhado em 1990 pelo psiquiatra da Universidade de Brown, Peter Kramer, referindo-se à fluo-
xetina, novo antidepressivo sintetizado pela indústria farmacêutica Eli Lilly, chamado comercialmente
Prozac, que prometia ser a “pílula da felicidade” (vide tópico “Fluoxetina: a ‘pílula da felicidade’”, infra). Du-
mit (1997, p. 6) assinala que a era da “psicofarmacologia cosmética” inaugurou o consumo de psicofármacos
por pessoas “normais” que visavam tão somente o autoaprimoramento.

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Rogério Paes Henriques 85

de substituir o fenobarbital (Gardenal), o qual, devido aos seus potentes


efeitos sedativos, era usado como ansiolítico na época. Contudo, além
de menos eficaz, o meprobamato teria se mostrado tão tóxico quanto
o fenobarbital; como era muito mais caro, acabou sendo apelidado de
“fenobarbital dos ricos”. Sua marca mais conhecida no Brasil é Fidepax.

Benzodiazepinas: as “pílulas da tranquilidade”


O primeiro composto benzodiazepínico, o clordiazepóxido, foi
lançado no mercado com o nome comercial Librium pelo laboratório
Roche, em 1960. Tendo sido sintetizado em 1955 pelo químico Leo
Stenrnbach, a substância provou ter efeitos extraordinários nos tes-
tes pré-clínicos sobre as cobaias, as quais, apesar de se acalmarem,
não se sedavam, ou seja, não perdiam a agilidade do estado de vi-
gília. Nos testes clínicos (com seres humanos), o clordiazepóxido foi
testado por alguns médicos que o prescreveram aos seus pacientes
de consultório, os quais se tornaram menos ansiosos e tensos, me-
lhorando também o sono.
O clordiazepóxido foi a primeira droga com efeitos propriamen-
te ansiolíticos, daí o fato de ele ter sido o psicotrópico mais prescrito
nos Estados Unidos durante a década de 1960. Atualmente, existem
mais de cem tipos de benzodiazepinas ou benzos disponíveis no
mercado farmacêutico.
Todavia, o Librium possuía vários efeitos colaterais podendo le-
var à síncope, caso seu uso fosse suspenso abruptamente. Em 1959,
Stenrnbach sintetizou um novo benzo (diazepam), que poderia ser
comercializado sob o formato de pílulas. A Roche lançou o diazepam
no mercado norte-americano em 1963 sob o nome comercial Valium,
que se tornou o psicotrópico mais famoso da história farmacêutica,
só vindo a ser desbancado posteriormente pelo Prozac. Em 1969, o
Valium ultrapassou o Librium, tornando-se a droga mais consumida
nos Estados Unidos. Em 1970, uma mulher em cada cinco, e um ho-
mem em cada treze, estavam usando “tranquilizantes menores e se-
dativos”, os ditos benzos, nos Estados Unidos.

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86 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

No Brasil, a marca mais famosa para o componente clordiazepó-


xido é Psicosedin, enquanto o diazepam é mais conhecido pelo seu
próprio nome genérico.

Fluoxetina: a “pílula da felicidade”


Durante os anos 1970, o farmacologista sênior da indústria far-
macêutica Eli Lilly de Indianápolis, Ray Fuller, persistia na ideia de que
o neurotransmissor serotonina teria um papel fundamental no meca-
nismo bioquímico da depressão.
Fuller se associou ao bioquímico da Lilly, David Wong. A empresa
formou um grupo para a pesquisa da relação serotonina-depressão e
atribuiu ao químico Bryan Molloy a tarefa de sintetizar uma série de
componentes que deveriam funcionar como antidepressivos, sem os
habituais efeitos colaterais dos tricíclicos. Wong acreditava que alguns
desses componentes inibiam a recaptação da serotonina no mecanis-
mo das sinapses, aumentando, assim, sua disponibilidade no cérebro.
Em 1974, testes de laboratório foram realizados com a fluoxetina, pos-
teriormente rebatizada com o nome comercial Prozac. Em 1976, a Lilly
testou um componente análogo ao Prozac, a nisoxetina, em pacientes
voluntários, que não mostraram os habituais efeitos colaterais dos tri-
cíclicos. Os pesquisadores observaram também que a droga não blo-
queava a recaptação de outros neurotransmissores, tal como a nora-
drenalina, isto é, a droga parecia ser um autêntico “Inibidor Seletivo de
Recaptação da Serotonina” (ISRS). Em 1978, a fluoxetina foi testada pre-
liminarmente em Indianápolis e Chicago com resultados promissores.
Em 1980, a Lilly decidiu testar a fluoxetina com grandes nomes
da psiquiatria biológica. Em 1983, John Feighner constatou que a
nova droga era tão eficaz quanto os antidepressivos tricíclicos, com
a vantagem de não ocasionar os mesmos efeitos colaterais. Dentre
os doze diferentes novos antidepressivos testados por Feighner, a
fluoxetina foi o único que ocasionou perda de peso (efeito diame-
tralmente oposto ao dos demais). Obviamente, um remédio que se
propõe a combater a “depressão” (entendida aqui em seu sentido ba-

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Rogério Paes Henriques 87

nal de desânimo e tristeza) e, além disso, proporciona, de quebra, o


emagrecimento sem a necessidade de dietas rigorosas e/ou exercí-
cios físicos intensivos teria um enorme mercado garantido.
Além disso, Healy (2000, p. 210) nos conta que outros antidepres-
sivos inibidores seletivos da recaptação de neurotransmissores que
precederam o Prozac no mercado já vinham sendo prescritos extraofi-
cialmente como substâncias afrodisíacas, o que aumentava o interesse
coletivo pela nova droga, em vista desses efeitos colaterais desejáveis.
Os testes de campo realizados com a fluoxetina entre 1984 e 1987
constataram o que Feighner já havia afirmado: ela surtia o mesmo efei-
to dos tricíclicos, com a vantagem de ocasionar poucos efeitos colate-
rais adversos. Além disso, o seu uso dispensava a monitoração do teor
tóxico sanguíneo. Em dezembro de 1987, a Food and Drug Administra-
tion (FDA)31 aprovou o Prozac para o uso dos norte-americanos.
Somente três anos após sua aprovação, em 1990, o Prozac foi capa
da revista norte-americana Newsweek, cuja matéria relatava uma ven-
dagem de U$ 350 milhões naquele ano, quantia esta que ultrapassava
o montante gasto com todos os antidepressivos nos dois anos anterio-
res. Esse sucesso não aconteceu por acaso: além de se mostrar o antide-
pressivo mais seguro e eficaz, ele parecia ser uma droga “milagrosa” para
vários fins – os médicos também o prescreviam para uma série de pro-
blemas, como ansiedade, dependências químicas, bulimia e transtornos
obsessivo-compulsivos. Contudo, sua maior novidade era a possibilida-
de de transformar seus usuários em novas pessoas (Anderson, 1997, p.
114). Conduzido pelas promessas midiáticas de uma transformação no
eu, de perda de peso e de melhora do desempenho sexual, o Prozac tor-
nou-se a droga mais bem-sucedida da história dos psicofármacos.

31
Agência estatal, criada pelo governo norte-americano em 1938, que controla a comercialização
de alimentos e remédios, objetivando assegurar a saúde dos seus cidadãos. Numa analogia com o
Brasil, a FDA teria uma função semelhante àquela desempenhada pela nossa Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa).

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O Efeito Prozac: transformando eus?


O best-seller do psiquiatra norte-americano Peter D. Kramer inti-
tulado Listening to Prozac, de 1993, foi capital na promoção do Prozac
como a droga da felicidade. Nele, Kramer relatou suas experiências
com pacientes que obtiveram, com a nova droga, não apenas o alívio
dos sintomas, mas, na verdade, personalidades totalmente novas e
novos níveis de compreensão sobre si mesmos. Dentre tais pacien-
tes, Sam, que abre seu livro, representa um emblema daquilo que o
novo medicamento seria capaz de proporcionar aos seus usuários.
Vejamos um resumo do caso em questão: Sam é um jovem arquiteto
de trinta anos, fascinante, espirituoso, inclinado ao sarcasmo, que se
orgulhava de seu estilo independente em questões sexuais, acome-
tido por um quadro de depressão melancólica que se seguiu a uma
reviravolta nos seus negócios e à morte de seus pais. Ao procurar
ajuda com o Dr. Kramer, primeiramente, Sam foi medicado com um
antidepressivo ao qual ele respondeu apenas parcialmente, fato esse
que, somado aos traços de obsessividade colhidos durante a anam-
nese clínica, fez com que seu médico lhe propusesse experimentar
uma nova droga. Após ser medicado com o Prozac, foram notáveis
as mudanças em Sam. Ele não somente se livrou da depressão, mas
também declarou se sentir “melhor do que nunca”. Sentiu-se descon-
traído, com mais vivacidade e menos pessimista, como se um peso
tivesse sido retirado de suas costas. A partir de então, ele foi capaz de
levar adiante seus projetos de vida. Sua memória estava mais confiá-
vel, sua concentração mais aguçada e sua mente mais ágil. Embora
persistisse o seu desejo sexual, ele não tinha mais nenhum interesse
em pornografia – que Sam, anteriormente, impunha à sua mulher.
Seu antigo estilo de vida parecia-lhe, agora, ter sido fruto de uma
doença: notou que o que ele alardeava como sendo independência
de espírito, não passava, na verdade, de um tique biológico. Sam es-
tava convencido que seu antigo interesse por pornografia não pas-
sava de mera obsessão fisiológica. A medicação redefiniu o que era
essencial e o que era contingente no que se refere à personalidade
de Sam. Além de curá-lo da depressão, o Prozac lhe teria mostrado
como ele era constituído (Kramer, 1995, p. 09-11).

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No desfecho desse caso, Sam tornou-se alerta, atento, feliz, ajusta-


do e bem-sucedido como jamais havia sido em seus trinta anos de vida
pregressa. O Prozac teria revelado um Sam verdadeiro que se sobrepôs
ao antigo Sam, libertando-o de um aprisionamento de anos à fisiolo-
gia de sua doença. O Prozac curou-o não somente da depressão, mas
o redefiniu como uma “nova pessoa melhorada”. Tentemos, portanto,
imaginar o frisson que relatos como esse, amplamente difundidos pela
mídia, teriam causado na população, nos anos 1990.
Anderson (1997, p. 115) nos conta que a onda de publicidade e
controvérsias sobre o Prozac se assemelhava à grande sensação do
LSD nos anos 1960. A promessa psicodélica de uma transformação
química do eu levantava uma questão polêmica: se ele era capaz de
melhorar algumas pessoas, não poderia piorar outras? Havia relatos
de efeitos secundários desagradáveis comparáveis à onda de entusias-
mo inicial. O Prozac estava sendo acusado de provocar pensamentos
suicidas em algumas pessoas, levando até a concretização do ato em
outras. Alguns advogados defensores de homicidas usuários desta
droga argumentavam que havia sido o Prozac que puxara o gatilho.
No contexto da cultura jurídica norte-americana pautada no dano e
na reparação, muitos processos foram movidos contra seu fabricante,
a Eli Lilly & Company, por advogados que levavam adiante a causa de
usuários que relatavam terem sido prejudicados pela droga. Um des-
ses processos foi movido por um dos sobreviventes de um massacre
no Kentucky, que alegava que seu agressor agira sob a influência da
droga. O curioso é que os mais ferrenhos adversários do Prozac diziam
a mesma coisa que seus mais ardorosos admiradores: de fato, ele trans-
formava qualitativamente seus usuários em pessoas diferentes.
O furor em torno do Prozac parece ter sido aplacado, diante
de seu incontestável sucesso comercial. Em 1990, ele já era líder de
prescrições psiquiátricas nos Estados Unidos. Seu coroamento ocor-
reu em 1994, quando se tornou a segunda droga mais vendida no
mundo (Shorter, 1997, p. 324). Essa droga já foi liberada para uso em
crianças nos Estados Unidos, país no qual ela vem sendo prescrita
até mesmo para uso veterinário em cães com problemas de humor
e de comportamento (Comer, 2003, p. 169). Valenstein assinala que,

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em 1996, o montante resultante de suas vendas em todo o mundo


alcançou a cifra de U$ 2,5 bilhões, tendo sido U$ 1,73 bilhão deste
total faturado somente nos Estados Unidos (1998, p. 174).
A partir de registros da FDA, Irving Kirsch – diretor do programa
de placebos da Harvard Medical School e autor do livro The Emperor’s
New Drugs – realizou uma metanálise sobre a eficácia dos antidepres-
sivos “de segunda geração” ou “atípicos” (fluoxetina/Prozac, paroxe-
tina/Paxil, sertralina/Zoloft, venlafaxina/Effexor, nefazodona/Nefadar
e citalopram/Celexa) nos testes clínicos duplo-cego controlados por
placebo. Notou um flagrante descompasso entre o comedimento das
informações fornecidas à FDA pelas próprias indústrias farmacêuticas
acerca desses medicamentos e o histrionismo do marketing a partir
do qual são promovidos como “drogas fetiche”. Concluiu que “segun-
do as informações das próprias companhias farmacêuticas, nenhum
desses medicamentos melhora o estado de depressão de maneira
clinicamente significativa” (apud Soto, 2012, p. 191). A metanálise
mostra que os efeitos desses medicamentos são reproduzidos pelos
placebos numa proporção de 80% do grupo controle. Isso significa
que a melhora dos níveis da depressão moderada ou grave no gru-
po controle é clinicamente indistinguível da melhora supostamente
produzida pela substância psicoativa a ser testada, sendo esta última
marginalmente eficaz apenas nos pacientes que se encontram nos
estados mais extremos. Levando-se ainda em consideração o fato de
que não se conhecem os efeitos do uso crônico dos antidepressivos
(se sua eficácia não é comprovada, seus danos colaterais são bastan-
te evidentes), conclui-se que a prescrição desses medicamentos de-
veria ser extremamente cautelosa e criteriosa, exatamante o oposto
do que se vê na atualidade.

Psicofarmacologia: utopia ou distopia?


Assim, o desenvolvimento de psicotrópicos “antipsicóticos”, “an-
siolíticos” e “antidepressivos” (efeitos esses selecionados mais pelo
marketing farmacêutico do que pelas propriedades intrínsecas aos

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Rogério Paes Henriques 91

compostos químicos) prepararia o terreno para a redução da noso-


grafia psiquiátrica em torno de três grandes categorias de diagnósti-
cos: “psicose”, “ansiedade” e “depressão” – o que acabaria por reforçar
o sistema de Kraepelin, que seria restaurado na terceira edição do
DSM. Com a redefinição do diagnóstico, nesse manual, em função do
tratamento farmacológico que lhe é aplicado (critério operacional),
bastava, a partir de então, responder positivamente ao medicamen-
to específico para confirmá-lo a posteriori, o que expandiria imensa-
mente as fronteiras dessas categorias diagnósticas.
Nos anos 1950, Henri Laborit declarou àqueles que o criticavam
pelo fato de ele ter inventado a “camisa de força química”, que a psi-
cofarmacologia era necessária naquele momento histórico. Sendo um
estágio obrigatório na evolução da humanidade, ela poderia até desa-
parecer num futuro distante. Passados mais de 60 anos desde a época
dessa declaração, assiste-se atualmente o despotismo farmacológico
no tratamento das perturbações mentais e seu uso cosmético, con-
trariando as previsões de Laborit. Édouard Zarifian, autor de Le prix
du bien-être, assinala que os psicotrópicos só assumiram a suprema-
cia frente aos tratamentos psicoterápicos por terem surgido num mo-
mento oportuno. Eles se tornaram “(...) o símbolo da ciência triunfante
– aquela que explica o irracional e cura o incurável (...). O psicotrópico
simbolizou a vitória do pragmatismo e do materialismo sobre as ene-
voadas elucubrações psicológicas e filosóficas que tentavam definir o
homem” (apud Roudinesco, 2000, p. 24).
Em seus primórdios, a psicofarmacologia devolveu ao homem
seu quinhão de liberdade. Os neurolépticos devolveram a fala aos
loucos, abrindo o caminho para a sua ressocialização e possibilitando
o abandono dos tratamentos bárbaros e ineficazes. Os ansiolíticos e
antidepressivos trouxeram aos neuróticos “normais” uma tranquilida-
de maior nos momentos de “crise”. Contudo, a própria psicofarmacolo-
gia acabaria por encerrar o sujeito numa nova alienação ao pretender
curá-lo da própria essência da condição humana, ao prometer o fim do
mal-estar psíquico através da ingestão de pílulas que nada mais fazem
do que suspender sintomas ou transformar o eu – instância psíquica
essa que, ironicamente, é a fonte de nossas mais caras ilusões. Ao que

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parece, o ideal da saúde como bem-estar, definido segundo os valores


de mercado, vem nos cobrando um preço muito alto.
A segunda parte deste trabalho será dedicada à descrição das
vicissitudes da nosografia psiquiátrica norte-americana, a partir da
série de seu manual oficial, o DSM, que culminaram na remedicaliza-
ção da psiquiatria e na medicalização da vida cotidiana.

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PARTE 2

O DSM-III E A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA: RUMO


À MEDICALIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA

1. Do DSM–I ao DSM–5

Antes de examinarmos as mudanças nosográficas da série DSM,


que culmWinaram na remedicalização da psiquiatria, vejamos como
a nosografia retornou ao centro do debate da psiquiatria norte-ame-
ricana, ressuscitando o diagnóstico descritivo.

A Retomada da Importância do Diagnóstico Descritivo


em Psiquiatria
Enquanto a psicanálise dominou o campo psiquiátrico norte-
-americano, nas décadas de 1950 e 1960, era comum a indiferença
para com o diagnóstico descritivo, já que averiguar as presumíveis
causas psicodinâmicas das perturbações mentais era supostamente
mais importante do que classificar seus sintomas manifestos (Shor-
ter, 1997, p. 296-297). Na era da “desmedicalização”, os psiquiatras
adeptos da Reforma Psiquiátrica se distanciaram do modelo médico,
demonstrando pouco interesse pela nosologia, pela epidemiologia,
pela farmacoterapia e pela investigação etiológica orgânica.
A partir da década de 1960, a psiquiatria norte-americana começou
a despertar para a importância dos diagnósticos através do psiquiatra
vienense Erwin Stengel. Forçado a deixar Viena em 1938, Stengel
desembarcou primeiro no Hospital Maudsley onde permaneceu até

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1957, ocasião na qual ele fundou o departamento de psiquiatria da


University of Sheffield, na Inglaterra. Em 1959, publicou uma influente
crítica sobre a falta de confiabilidade dos diagnósticos psiquiátricos da
época. Stengel dizia que tanto os psicanalistas quanto os discípulos de
Adolf Meyer (vide tópico “O Modelo Biopsicossocial de Adolf Meyer e o
Declínio da Psiquiatria Organicista nos Estados Unidos”, cap. 2; parte1)
enfatizavam a singularidade do indivíduo, sendo que tal abordagem
desencorajava a categorização das perturbações mentais.
Em 1970, um amplo estudo comparativo de diagnóstico em psi-
quiatria, conduzido nos Estados Unidos e na Inglaterra, tornou clara
a falta de sincronia entre os dois países. Dentre as maiores diferenças
encontradas, os psiquiatras norte-americanos atuantes em Nova York
diagnosticavam muito mais a “esquizofrenia”, com base no continuum
entre neurose e psicose que adotavam como critério diagnóstico, do
que os psiquiatras ingleses, atuantes em Londres, baseados nos crité-
rios kraepelinianos; os psiquiatras ingleses identificavam mais outras
condições, como os transtornos da ansiedade e do humor. Comparan-
do-se Nova York com Londres, a esquizofrenia era diagnosticada, res-
pectivamente, numa proporção de 65% versus 34%, enquanto a “de-
pressão psicótica” correspondia à respectiva proporção de 7,2% versus
32,8% (Cooper et al., 1972). Comentando esse estudo, o psiquiatra de
Montreal Heinz Lehmann, que, como já vimos, foi o pioneiro na intro-
dução da clorpromazina e da imipramina na América do Norte, alertou
para a necessidade de se ressuscitar o diagnóstico psiquiátrico.
Além do empurrão intelectual desses teóricos, outro fator que
impulsionou o desenvolvimento de um sistema diagnóstico descriti-
vo em psiquiatria foi o surgimento da moderna psicofarmacoterapia.
A disponibilidade de drogas específicas para transtornos específicos
fez do diagnóstico uma matéria prática. Para além de um mero exer-
cício intelectual, o diagnóstico deveria, a partir de então, determinar
o modo pelo qual os pacientes seriam tratados.
Como salienta Andrews (apud Saraceno, 1999, p. 85), os três moti-
vos principais que justificaram a retomada da classificação diagnóstica
descritiva em psiquiatria foram: (1) a necessidade de comunicação entre

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Rogério Paes Henriques 95

os diversos níveis da assistência sanitária; (2) a sempre maior sofisticação


dos estudos de eficácia que comparam os tratamentos farmacológicos e
os não farmacológicos; (3) os complexos problemas administrativos e de
seguro relacionados ao reembolso da despesa sanitária.
Mitchell Wilson (apud Soto, 2012, p. 168) também elenca os presumi-
dos fatores motivacionais que culminariam na ascenção do objetivismo
médico e do diagnóstico descritivo em psiquiatria: (1) a pressão das segu-
radoras de saúde; (2) os escassos recursos disponíveis para pesquisa e a
falta de status da psiquiatria no campo médico; (3) o deslumbramento dos
psiquiatras com as novas drogas, que exigiam expertise biomédica; (4) a
necessidade de diagnósticos confiáveis frente à reconfiguração da prática
psiquiátrica; (5) a suposta ineficácia dos enfoques psicodinâmicos no tra-
tamento dos transtornos mentais graves; (6) a “vergonha” pública ante o
plebicito realizado pela American Psychiatric Association (APA), que decidiu
por excluir a homossexualidade da nosografia psiquiátrica.
A partir da década de 1970, a classificação das doenças mentais
pelo viés científico se tornou uma questão prioritária para a psiquia-
tria norte-americana, o que culminaria na publicação de um manu-
al psiquiátrico supostamente “descritivo e a-teórico”, o DSM-III, em
1980. Mas, não apressemos os fatos. Antes do surgimento do DSM-III,
muita água ainda faria rolar os moinhos da história.

Sintomas como Símbolos: as duas primeiras edições do DSM

Até a década de 1930, a classificação das doenças mentais era


caótica nos Estados Unidos, sendo realizada conforme as necessidades
locais, não havendo uma padronização das nomenclaturas. Todavia,
necessitava-se de um padrão que permitisse a comunicação entre
os centros de estudo e os médicos, e que, sobretudo, facilitasse o
trabalho estatístico.
Devido à necessidade classificatória particular surgida durante
a II Guerra Mundial, desenvolveu-se nos Estados Unidos um siste-

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96 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

ma de classificação das doenças mentais, amplamente influenciado


pelas ideias de William Meninnger (1899-1966). Este último foi um
psiquiatra e psicanalista muito influente nos Estados Unidos, preo-
cupado com o rápido avanço das doenças mentais, detectado pela
psiquiatria de sua época. A classificação de Menninger propunha que
certos sintomas seriam “ações” ou “comportamentos”, e não indícios
de doenças mentais, o que o colocava em desavença com a psiquia-
tria organicista, que predominava em sua época.
A Classificação Internacional das Doenças conheceu sua sex-
ta edição em 1948. A CID-6 foi a primeira edição a contemplar uma
seção destinada às perturbações mentais; tal manual carecia de in-
formações acerca das síndromes cerebrais crônicas, dos vários dis-
túrbios de personalidade e das reações situacionais ou transitórias,
que eram de interesse dos clínicos norte-americanos, embora não
parecessem importar tanto aos médicos de outras partes do mun-
do. Os problemas situacionais eram o foco de estudo do psiquiatra
suíço Adolf Meyer em sua prática nos Estados Unidos (vide tópico
“O Modelo Biopsicossocial de Adolf Meyer e o Declínio da Psiquiatria
Organicista nos Estados Unidos”, cap. 2; parte 1). Respondendo às crí-
ticas generalizadas, a APA desenvolveu uma alternativa à CID-6 para
utilização em solo norte-americano.
Assim, eis que surge, em 1952, a primeira edição do Manual Diag-
nóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-I), sob os auspícios
da APA. O DSM-I foi o resultado do trabalho do Comitê de Estatística
desta instituição.
O uso da expressão “reação” (ex: “reação esquizofrênica”) no DSM-I
refletia o fato de a psiquiatria entender as perturbações mentais “como
uma reação aos problemas da vida e às dificuldades situacionais
impingidas ao indivíduo” (Gaines, 1992, p. 08). Essa conceitualização
psicossocial refletia as grandes influências de Adolf Meyer e William
Menninger no campo psiquiátrico norte-americano da época.

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Rogério Paes Henriques 97

Outras influências também se fazem presentes no DSM-I. Nota-


-se uma marcante presença da psicanálise de Sigmund Freud, ilus-
trada no uso frequente das noções de “mecanismo de defesa”, “neu-
rose” e “conflito neurótico”. Shorter (1997, p. 299) assinala que dos 28
membros do comitê da APA, responsáveis pela elaboração do DSM-I,
dez eram filiados a alguma instituição psicanalítica ou eram simpati-
zantes da psicanálise.
Young (1997, p. 98) assinala que um grande número de psiquiatras
e de instituições norte-americanas simplesmente se recusou a adotar
o DSM-I como referência para a prática clínica e para a pesquisa.
Em 1968, a APA publicaria o DSM-II, no qual ocorreria uma mu-
dança na concepção das doenças mentais. Nele, as perturbações
mentais passariam a ser vistas como “expressões simbólicas de rea-
lidades psicológicas (ou psicossociais) latentes” (Gaines, 1992, p. 08).
O DSM-II afastou-se da primeira edição em vários aspectos, numa
tentativa de ser compatível com o sistema nosográfico empregado
na edição internacional concorrente, a CID-8 (Young, 1997, p. 98).
O DSM-II abandonou o uso do termo “reação” e se afastou de uma
concepção “biopsicossocial” das perturbações mentais como reações
transitórias às situações adversas da vida cotidiana (Gaines, 1992, p. 09).
O DSM-II ampliou a influência da psicanálise e de sua nomencla-
tura, como reflexo da consolidação da hegemonia psicanalítica no
campo psiquiátrico norte-americano da época. Assim, “neurose” foi
a principal categoria utilizada neste manual, sendo “definida como
um conflito intrapsíquico que resulta em sintomas que, inconscien-
temente, servem para controlar a angústia” (Young, 1997, p. 98). Os
médicos concebiam a neurose e outras perturbações mentais como
manifestações simbólicas a serem interpretadas no curso do diag-
nóstico e/ou tratamento. Tal como no DSM-I, a nosografia afirmava a
natureza simbólica subjacente dos sintomas psiquiátricos no DSM-II.
Conforme indica Shorter (1997, p. 299), seis dentre os dez membros
do comitê da APA responsáveis pela elaboração deste manual eram
psicanalistas ou simpatizantes.

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98 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

As duas primeiras edições do DSM não teriam sido “lidas, apre-


ciadas e utilizadas”, em função do foco da psiquiatria daquela épo-
ca incidir predominantemente no tratamento, e não no diagnóstico
(Frances, 2013, p. 61).


O DSM-III: dos símbolos aos sinais ou de Freud a Kraepelin
No final dos anos 1960, Robert Spitzer, psiquiatra e ex-psica-
nalista, convertido em nosologista da Universidade de Colúmbia,
propunha um percurso completamente oposto ao que a nosografia
vinha tendo até então: ele pretendia tornar o diagnóstico psiquiátri-
co o mais descritivo possível. Dever-se-ia definir os critérios diagnós-
ticos apriorísticos que configuram uma dada doença, baseando-se
na descrição dos seus sintomas.
Spitzer não estava sozinho nesta empreitada. Outros pesqui-
sadores norte-americanos também tinham ideias afins às suas. Em
1948, Eli Robins, George Winokur e Samuel Guze formaram um nú-
cleo de estudos no Departamento de Psiquiatria da Universidade de
Washington, em St. Louis, com o objetivo de pesquisar disciplinas
marginais na época, tais como química cerebral, biologia e nosologia,
caminhando na contramão da onipresente psicanálise. Os membros
desse grupo de St. Louis ficaram conhecidos como os “neokraepe-
linianos”. Young (1997, p. 95-96) enumera as três ideias básicas do
método clínico-evolutivo de Kraepelin para a classificação psiquiá-
trica, que seriam seguidas pelos nosologistas norte-americanos res-
ponsáveis pela confecção do DSM-III:
1. As perturbações mentais são mais bem compreendidas por
analogia às doenças físicas. Segundo Kraepelin, o progresso
da medicina sobre as doenças infecciosas só foi possível após
os pesquisadores redirecionarem seu foco de estudos para as
causas específicas das síndromes específicas. O primeiro passo
histórico da medicina consistiu na classificação de diferentes
tipos de doenças.

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Rogério Paes Henriques 99

2. A classificação das perturbações mentais demanda uma


observação cuidadosa dos fenômenos visíveis. É somente
através de um registro, coleção e comparação sistemática de
casos clínicos que é possível identificar o grupo de sintomas
justapostos (síndromes) que seguem um curso temporal
discernível e conduzem a uma saída prevista. Deve-se rejeitar
especulações etiológicas que não estejam baseadas em sólidas
evidências empíricas.
3. Pesquisas empíricas hão de mostrar que os transtornos
mentais possuem substratos orgânico e bioquímico. Embora,
atualmente, se saiba relativamente pouco sobre suas causas,
isto não deve obstaculizar a classificação dos transtornos
mentais. Pelo contrário, a classificação é o primeiro passo
necessário rumo às descobertas etiológicas.

Em 1972, o grupo de St. Louis, então liderado por John Feigh-


ner, publicou a primeira série de critérios rigorosos para o estabeleci-
mento de diagnósticos psiquiátricos, o que permitia a padronização
dos mesmos, e sua consequente universalização.
Naquela época, a APA recebia pressões para que o DSM-II fosse
revisado. Os grupos homossexuais organizados estavam insatisfeitos
com a figuração da homossexualidade dentre os transtornos psi-
quiátricos. Uma minoria beligerante de clínicos identificados com o
paradigma biológico estava descontente com a psicanálise e queria
diagnósticos baseados em sintomas, e não em teorias dúbias sobre
etiologias subjacentes. Last but not least, os planos e as seguradoras
de saúde exigiam maior precisão diagnóstica para os casos de per-
turbações mentais, visando a uma relação custo/benefício ótima que
minimizasse os altos gastos com os longos tratamentos psicoterápi-
cos conduzidos até então.
Assim, em 1973, foi instituída uma força-tarefa da APA para re-
visar o DSM-II e preparar uma terceira edição do manual. Young as-
sinala que, após ser nomeado pela APA coordenador da força-tarefa
encarregada de revisar o DSM-II, Spitzer recebeu carta branca para
se distanciar do grupo responsável pela sua confecção, alegando que

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100 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

seria difícil obter progressos reais na revisão, caso se insistisse nos


mesmos personagens. Spitzer montou então uma equipe de psiquia-
tras e psicólogos comprometidos antes com a pesquisa nosológica
que com a prática clínica. A cidade de St. Louis e a inspiração intelec-
tual em Kraepelin substituiriam respectivamente Viena e Freud. Nas
palavras do próprio Spitzer, a nova edição seria baseada em dois prin-
cípios: as teorias etiológicas deveriam ser confirmadas por “princípios
de testabilidade e verificação” e cada transtorno deveria ser identifi-
cado por critérios acessíveis à mensuração e observação empírica.
O novo sistema classificatório, baseado em critérios supostamente
operacionais e ateóricos, permitiria a comunicação entre os adeptos
de diferentes perspectivas teóricas, bem como entre os pesquisado-
res e os psiquiatras clínicos, já que todos se refeririam a mesma série
de transtornos, utilizando a mesma linguagem (Shorter, 1997, p. 99).
A força-tarefa era liderada por Spitzer, sendo composta por
Paula Clayton e Robert Woodruff, do grupo de St. Louis, em Wa-
shington; Donald Goodwing, da Universidade do Kansas que havia
estudado com Samuel Guze em St. Louis; Z. J. (“Bish”) Lipowisk, um
especialista em delirium; o psicofarmacologista e psiquiatra Donald
Klein que, em 1978, tornou-se professor de psiquiatria em Colúmbia,
e mais treze outros membros32. Contrariamente às forças tarefas da
APA precedentes, que tendiam para a psicanálise, esta, coordenada
por Spitzer, direcionou-se rumo à psiquiatria biológica.
Entre 1977 e 1979, o National Institute of Mental Health (NIMH)
realizou uma série de pesquisas de campo, nos quais cerca de qui-
nhentos psiquiatras de diferentes centros usaram esboços da nova
versão do manual, diagnosticando mais de doze mil pacientes. Apro-
ximadamente trezentos destes psiquiatras elogiaram sua consistên-
cia. Das 134 páginas que constituíam o DSM-II, passou-se para qua-

32
Dentre eles, Allen Frances, que – no calor do surgimento da quinta edição do manual da APA, em maio
de 2013, que coincide com o momento no qual nosso trabalho recebeu seus últimos ajustes antes de sua
publicação – acabou de lançar seu livro Saving Normal (2013), uma espécie de manifesto contra-DSM, que
denuncia o seu desvio de rota científica e os consequentes excessos cometidos pela psiquiatria remedi-
calizada contemporânea. Naquela ocasião, Frances foi o responsável pela elaboração do capítulo sobre os
transtornos de personalidade e pela explicação da nova metodologia adotada pelo DSM-III.

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Rogério Paes Henriques 101

se quinhentas no DSM-III, cada uma delas contendo longas listas de


critérios sintomáticos que deveriam ser encontrados nos pacientes
antes de se estabelecer o diagnóstico. Correlato a este aumento de
volume foi o aumento no número de entidades nosológicas: das 180
listadas no DSM-II, passou-se para 265 no DSM-III, que corresponde a
um aumento significativo de cerca de 30%.
Todavia, Young (1997, p. 95) afirma que a contribuição que os
diferentes centros de pesquisa norte-americanos prestaram à força-
tarefa na ocasião da confecção do DSM-III limitou-se à discussão
técnica acerca da escolha dos critérios diagnósticos mais apropriados
à identificação dos transtornos específicos. O que não era negociável,
segundo Spitzer, era a sua nova “arquitetura”, que deveria se distinguir
das precedentes. A estrutura do DSM-III foi decidida por um
pequeno círculo de pessoas que se identificavam com a perspectiva
nosológica de Emil Kraepelin. Sua estruturação, entretanto, não se
deu sem conflitos. Shorter (1997, p. 304) refere-se às pressões que a
APA sofreu por parte dos grupos organizados e entidades de classe
na ocasião da preparação do novo manual.
Os grupos homossexuais organizados pressionaram a APA na
ocasião da revisão do DSM-II para que a homossexualidade deixasse
de ser considerado um “desvio sexual”, o que acabou acontecendo
em 1974, por determinação dos membros da força-tarefa, após
aprovação num plebicito interno realizado pela APA. Vale ressaltar
que nem toda exigência dos grupos minoritários foi acatada pela
força-tarefa de Spitzer. Roudinesco (2000, p. 50) nos conta que, em
1975, a proposta de uma comissão de psiquiatras negros de incluir o
racismo entre os transtornos mentais foi rejeitada categoricamente33.

33
A nosso ver, trata-se de uma decisão acertada, já que a medicalização do preconceito de “raça” não
o resolve, uma vez que seu combate deve se dar no campo político com ações voltadas ao exercício
da cidadania e à promoção dos direitos humanos, e não no campo médico com a individualização
do problema. Todavia, em sua justificativa, Robert Spitzer deu a seguinte definição psicopatológica
para o racismo: “No âmbito do DSM-III, deveríamos citar o racismo como bom exemplo de um estado
correspondente a um funcionamento psicológico não ótimo, que, em certas circunstâncias, fragiliza
a pessoa e conduz ao aparecimento de sintomas” (apud Roudinesco, 2000, p. 50).

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102 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Em 1978, o comitê de transtornos reativos recomendou oficial-


mente à força-tarefa a inclusão no DSM-III do “transtorno de estresse
pós-traumático” (PTSD, da sigla em inglês Pos-Traumatical Stress Di-
sorder), devido às pressões exercidas pelos psiquiatras defensores da
causa dos veteranos da Guerra do Vietnã, para que se incluísse no
novo manual um transtorno que explicasse as dificuldades de rea-
daptação social pelas quais esses veteranos estavam passando.
Em 1979, sob forte pressão dos psicanalistas, essa mesma força-
tarefa decidiu reinserir o termo “neurose”, colocando-o entre parênteses
após a palavra “transtorno”, ressaltando, contudo, que a expressão
“neurose” não se referia ao “processo neurótico”, sendo entendida em
seu sentido descritivo. O abandono dos termos “neurose” e “psicose”
(ambos “contaminados” pela psicanálise) e o privilégio concedido à
expressão “transtorno” (disorder) no DSM-III denota uma assepsia da
nosografia psiquiátrica.
Não se pode esquecer das pressões exercidas pela indústria farma-
cêutica sobre a força-tarefa de Spitzer. Devido a sua importância, esse
tema será desenvolvido à parte mais adiante, no capítulo 3 “A Nova Noso-
grafia e a Indústria Farmacêutica: a Mercantilização de Doenças” .

O Fisicalismo e sua Nova Roupagem


O DSM-III desvinculou-se de todo um entendimento psicossocial
explícito das perturbações mentais em prol das explicações biológi-
cas implícitas, em decorrência da necessidade de racionalizar e justi-
ficar o aumento na utilização das intervenções farmacológicas.
Young (1997, p. 94) assinala que o DSM-III foi a primeira nosografia
psiquiátrica padronizada; trata-se de um sistema de classificação baseado
em listas de critérios sintomáticos rigorosos e em princípios lógicos aris-
totélicos de inclusão e exclusão. O DSM-III tem a pretensão de apresentar
uma “metalinguagem diagnóstica” desvinculada de qualquer abordagem
teórica, uma vez que ele se baseia em traços visíveis – supostas evidências
que não passam de um checklist de sinais e sintomas –, como critérios ne-
cessários e suficientes para a elaboração do diagnóstico.

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Rogério Paes Henriques 103

Com relação à metodologia, seus autores assinalam na introdu-


ção do manual que: “A abordagem adotada no DSM-III é ateórica em
relação aos processos patofisiológicos ou etiológicos (...) pode[ndo] ser
chamada ‘descritiva’, já que as definições dos transtornos geralmente
consistem em descrições de seus aspectos clínicos” (APA, 1980, p. 07).
De fato, a tentativa explícita de afastamento de qualquer teoria ex-
plicativa, empreendida pelos idealizadores do DSM-III, representou a
aproximação implícita para com os modelos etiológicos biológicos, os
quais detêm o monopólio explicativo neste manual (Gaines, 1992, p. 09).

Onde Kraepelin via sua nosologia como biologicamente compro-


metida com as entidades mórbidas, embora limitada às condições
psicóticas graves [esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva], os
psiquiatras norte-americanos neokraepelinianos contemporâneos
negam um comprometimento biológico na teoria, mas atuam na
prática como se as mais de [quatrocentas] entidades definidas no
DSM[-5] tivessem comprometimento biológico, justificando assim
o tratamento farmacológico (GHAEMI, 2009).

Em suma: a manifesta opção pelo tratamento psiquiátrico farma-


cológico reflete uma escolha teórica latente sobre as causas (biológicas)
dos transtornos mentais. Na teoria, o DSM classifica os transtornos
mentais como síndromes indefinidas, contudo, na prática psiquiátri-
ca orientada pelo DSM, tais transtornos são tomados como se fossem
entidades mórbidas biologicamente definidas.
O DSM-III buscou eliminar o conflito entre o ecletismo de explica-
ções diversas (sobretudo psicodinâmica e sociocultural), explicitamen-
te contidas nos manuais precedentes; seus mentores creem que o foco
biológico na psiquiatria contemporânea é “mais avançado”, já que mais
próximo do vocabulário científico, o que supostamente lhe forneceria
uma maior confiabilidade. Todavia, o aumento da confiabilidade (con-
cordância e consistência) do diagnóstico proporcionado pelo DSM-III
ocorreu concomitantemente à diminuição de sua validade (exatidão
ou verdade); assim, se por um lado, o procedimento diagnóstico pas-
sou a ser facilmente reprodutível por qualquer profissional de qual-

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104 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

quer canto do planeta, por outro lado, ofuscou-se sobremaneira a sua


capacidade de identificar aquilo que realmente se propõe com fide-
dignidade, culminando em uma “epidemia” de falsos positivos. Conse-
quentemente, o DSM-III tornou-se muito mais propenso do que as edi-
ções anteriores a incluir no seu escopo categorias nebulosas que, muitas
vezes, ao invés de traduzir o patológico, medicalizam a diversidade34. Mais
de trinta anos se passaram desde a publicação de sua terceira edição e
a validade continua sendo o calcanhar de Aquiles do DSM, como assi-
nalou muito recentemente Tom Insel, atual diretor do National Institute
of Mental Health (NIMH), em suas críticas à quinta edição do DSM, pu-
blicada em maio de 2013:
a força de cada uma das edições do DSM tem sido sua “confiabi-
lidade” [“reliability”] – cada edição tem assegurado que os mé-
dicos se utilizem dos mesmos termos das mesmas maneiras. O
ponto fraco é a falta de validade [lack of vality]. Ao contrário de
nossas definições de doença isquêmica do coração, linfoma ou
AIDS, os diagnósticos do DSM são baseados em um consenso so-
bre grupos de sintomas clínicos, e não em qualquer medida ob-
jetiva de laboratório. No resto da medicina, seria equivalente a se
criar sistemas diagnósticos sobre a natureza da dor no peito ou a
qualidade da febre. De fato, diagnósticos baseados em sintomas,
outrora comuns em outras áreas da medicina, foram amplamen-
te substituídos na última metade do século passado, conforme
temos entendido que sintomas sozinhos raramente indicam a
melhor escolha de tratamento. Pacientes com transtornos men-
tais merecem algo melhor35.

A guinada rumo às veladas explicações biológicas conduz à


remodelagem central do diagnóstico e da prática psiquiátrica e re-
presenta a principal mudança ocorrida com o DSM-III. Quanto ao

34
Além da confiabilidade e da validade, um diagnóstico médico deve ser capaz de distinguir clara-
mente entre dois quadros clínicos diferentes, de detectar “falsos negativos” (pessoas que apresen-
tam a doença, porém não são identificadas como doentes) e de prevenir “falsos positivos” (pessoas
que não apresentam a doença, porém são indentificadas como doentes). Evidentemente, o DSM, a
despeito de sua mudança metodológica, não apresenta o rigor exigido de um sistema diagnóstico
pela epistemologia médica.
35
Disponível em: <http://www.nimh.nih.gov/about/director/2013/transforming-diagnosis.shtml>.
Acesso em 08 jun. 2013. Esse “algo melhor” (sic.) refere-se ao “Projeto Pesquisa em Domínio de Crité-
rios” (Research Domain Criteria Project - RDoC), criado pelo NIMH em 2009 – como veremos adiante.

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Rogério Paes Henriques 105

diagnóstico, a “identificação dos sintomas é transformada de uma


interpretação dos símbolos do sofrimento numa leitura dos sinais da
doença” (Gaines, 1992, p. 09). Com relação à prática psiquiátrica, o
novo foco direcionou a psiquiatria rumo ao fisicalismo eliminativo.
Consequências: dificulta-se o estabelecimento de um diálogo her-
menêutico na relação médico-paciente, já que se tende a desconsi-
derar de antemão a dimensão psicossocial; um discurso biológico,
substancialista, substitui outro de cunho existencial-fenomenológi-
co; a pessoa e a doença tornam-se cada vez mais isomorfos (Ibid., p.
09-10). Trata-se, nos termos de Karl Jaspers (1913/1985), da antepo-
sição da Erklären (explicação objetiva) à Verstehen (entendimento in-
terpretativo), aplicada à psicopatologia.
A segunda maior mudança ocorrida a partir do DSM-III foi a pro-
posta de um diagnóstico pluridimensional em saúde mental, basea-
do no sistema multiaxial, dividido em cinco eixos:

Eixo 1. Síndromes Clínicas (Diagnóstico do Transtorno Mental) – ex: Esquizofrenia paranoide,


Episódio depressivo grave, Dependência ao álcool, Anorexia nervosa etc.

Eixo 2. Transtornos da Personalidade e do Desenvolvimento (Diagnóstico de Personalidade


e do Nível Intelectual) – ex: Personalidade histriônica, Personalidade borderline etc., Retardo
mental leve, Retardo mental grave etc.

Eixo 3. Condições e Transtornos Físicos (Diagnóstico de Transtornos Somáticos Associados) –


ex: Diabete, Hipertensão arterial, cirrose hepática, infecção urinária etc.

Eixo 4. Gravidade dos Estressores Psicossociais (Problemas Psicossociais e Eventos da Vida


Desencadeantes ou Associados) – ex: morte de uma pessoa próxima, separação conjugal,
falta de apoio social, viver sozinho, desemprego, pobreza extrema, detenção, exposição a
desastres etc.
Eixo 5. Avaliação Global do Funcionamento (Avaliação Global do Nível de Funcionamento
Psicossocial) – ex: bom funcionamento familiar e ocupacional, incapacidade de lidar com a
própria higiene, não saber lidar com dinheiro, dependência de familiares ou serviços sociais
nas atividades sociais ou na vida diária etc.

Extraído de Dalgalarrondo (2000, p. 34)

Assim, pacientes são diagnosticados da seguinte forma, segun-


do propõe o coordenador da força-tarefa Spitzer em seu livro de ca-
sos clínicos do DSM:

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106 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Caso clínico: “Nada Importa”


Eixo 1 - Transtorno depressivo maior, recorrente
Dependência de cocaína
Dependência de álcool
Dependência de benzodiazepínicos

Eixo 2 - Transtorno da personalidade borderline


Eixo 3 - Nenhum
Eixo 4 - Investigação dos serviços de proteção à infância, de
semprego, residência em área perigosa
Eixo 5 - AGF = 30 (atual) [em uma escala que varia de 0 a 100]
Extraído de Spitzer et al. (1996, p. 280)

Caso clínico: “Uma Criança Chora”


Eixo 1 - Episódio depressivo maior, Episódio Único, Com Aspec
tos Psicóticos Congruentes com o Humor
Eixo 2 - Nenhum
Eixo 3 - Nenhum
Eixo 4 - Separação dos pais
Eixo 5 - AGF = 35 (atual)
Extraído de Spitzer et al. (1996, p. 291)

Caso clínico: “Infectado”


Eixo 1 - Transtorno Delirante, Tipo Somático

Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação


Eixo 2 - Nenhum
Eixo 3 - História de clamídia e estomatite
Eixo 4 - Protelado
Eixo 5 - AGF = 35 (atual)
Extraído de Spitzer et al. (1996, p. 273)

Por trás da aparência holista, o diagnóstico multiaxial inaugura-


do com o DSM-III proporciona no que tange à prática clínica, quando
muito, a orientação das intervenções biomédicas a serem empreen-

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Rogério Paes Henriques 107

didas, como a prescrição de psicofármacos, e o tratamento de co-


morbidades associadas. Dalgalarrondo (2000) assinala que para um
diagnóstico psiquiátrico ser completo, precisa ainda contemplar as
seguintes dimensões:

Formulação Psicodinâmica do Caso

Quais conflitos afetivos são mais importantes neste paciente. Conflitos relativos à sexuali-
dade. Dinâmica afetiva da família. Conflitos relativos à identidade psicossocial. Que tipo de
transferência o paciente estabelece com os profissionais da saúde. Que sentimentos contra-
transferenciais desperta nos profissionais que o tratam. Que mecanismos de defesa utiliza
preponderantemente. Qual o padrão relacional do paciente. Qual a estrutura psicopatológi-
ca do ponto de vista psicanalítico (estrutura neurótica: obsessiva, histérica, fóbica etc.; estru-
tura psicótica; estrutura “perversa”, “autista” etc.)

Formulação Cultural do Caso

Como é o meio sociocultural atual do paciente (bairro de periferia, favela, morador de rua,
de uma instituição etc.). Como o paciente e seu meio cultural concebem e representam seu
transtorno. Quais as suas teorias etiológicas e de cura. Como é a identidade étnica e cultural
do paciente. Qual e como é sua religiosidade. Como o paciente e seu meio cultural enca-
ram o diagnóstico e o tratamento psiquiátrico “oficial”. O paciente é migrante, de área rural?
Como isso interfere no diagnóstico e terapêutica? Qual a “linguagem das emoções” que uti-
liza? Qual o impacto das mudanças socioculturais pelas quais o paciente passou sobre seu
transtorno mental?
Extraído de Dalgalarrondo (2000, p. 34)

Tais formulações, não contempladas pelo DSM, são indispensá-


veis para uma efetiva avaliação diagnóstica pluridimensional, que
norteie outras formas de intervenção não biomédicas, como propõe
o atual modelo assistencial integral em saúde mental no Brasil, pau-
tado na atenção psicossocial.

Os Sucessores do DSM-III e o RCoD: APA versus NIMH


As edições seguintes da série DSM – DSM-III-R (1987), DSM-
-IV (1994), DSM-IV-TR (2000) e DSM-5 (2013) – mantiveram a mesma

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108 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

perspectiva metodológica aberta pelo DSM-III. As mudanças advindas


com as sucessivas edições são secundárias, referindo-se basicamente
à inclusão de novos transtornos, exclusão de outros e redistribuição
de alguns transtornos já existentes em outras categorias, bem como a
redefinição dos critérios utilizados nas categorizações – os quais, com
o transcorrer das edições, vem se tornando cada vez mais amplos.
Young (1997, p. 102) afirma que as disputas envolvendo a metodo-
logia do DSM-III são coisa do passado. Atualmente, sua dominância é
praticamente completa. Fora dos círculos psicanalíticos, todos utilizam
sua linguagem. Mesmo que ela não seja a língua oficial dos psiquiatras
psicanalistas, a maioria deles a adotou como língua franca para se co-
municar com seus pares. Por volta do início dos anos 1990, o DSM-III e
sua revisão já haviam sido traduzidos para vinte outros idiomas. Seu
auge se deu quando a décima revisão da Classificação Internacional de
Doenças (CID-10), publicada em 1993, adotou uma perspectiva meto-
dológica semelhante àquela inaugurada pelo DSM-III.
Um survey realizado em 1989 com profissionais de psiquiatria
norte-americanos, dentre professores, pesquisadores, clínicos e
residentes, constatou que o DSM-III (e sua revisão) só é apreciado
como instrumento formal de comunicação e pesquisa (apud Sarace-
no,1999, p. 86).
Como esforço de unificação semântica, para efeitos práticos, o
DSM-IV e suas futuras edições têm seu valor assegurado. Não
se deve esquecer, também, que uma das razões fundamentais
para a criação dos CID e dos DSM foi a necessidade de critérios
uniformes para o registro clínico-estatístico das doenças. E essa
função [acrescentaríamos: e tão somente tal função burocrático-
-administrativa], o DSM-IV tem cumprido (Pessotti, 1999, p. 186).

Hill & Fortenberry (1992, p. 77) assinalam que uma amostra re-
presentativa dos psicólogos norte-americanos rejeitou o DSM-III e
sua revisão, concebendo-os como “(...) uma extensão não empírica
do ‘modelo médico’, enviesado por questões de gênero, não univer-
sal, dominado pela psiquiatria e impulsionado pelo reembolso das
seguradoras de saúde” .

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Rogério Paes Henriques 109

Atualmente, o consenso acerca do DSM, do qual nos falava You-


ng no fim do século passado, é apenas parcial, e não só psicólogos
expressam descontentamento para com ele. Um dos seus principais
signatários, o psiquiatra norte-americano Allen Frances – em cujo
currículo constam decisivas participações na elaboração dos DSM-
-III, III-R e IV –, confronta, em seu mais recente livro Saving Normal:
an insider’s revolt against out-of-control psychiatric diagnosis, DSM-5,
big pharma, and the medicalization of ordinary life, de 2013: (1) a falta
de controle do diagnóstico psiquiátrico e a expansão das fronteiras
da psiquiatria para além dos limites de sua competência profissio-
nal; (2) as relações mercantilistas (e promíscuas) estabelecidas entre
a corporação psiquiátrica e o complexo médico-industrial; (3) a hi-
permedicalização da vida cotidiana advinda da “inflação diagnóstica”
e da assimilação de novos hábitos de consumo de psicotrópicos por
“consumidores inteligentes” (smart consumers). Apesar das aparên-
cias, Frances apregoa antes uma reforma desse manual do que pro-
priamente uma revolução nosográfica. Nesse sentido, propõe-se-lhe
a expurgação da nociva influência mercantilista da qual o DSM teria
sido vítima, que o submete ao lobby das grandes corporações farma-
cêuticas / seguradoras de saúde e aos interesses político-econômi-
cos da American Psychiatric Association, e que conspurca seu projeto
científico. Em seu intuito de “salvar o normal”, identificado à tarefa de
“salvar a psiquiatria”, Frances é oportunamente muito comedido nas
críticas que tece ao saber psiquiátrico, restringindo-se a denunciar
os excessos da “má psiquiatria” e, ao lapidá-la, trasformá-la em “boa
psiquiatria” – como o Rei Midas cujo toque a tudo transforma em
ouro. Em suma: seus questionamentos limitam-se a apontar a “saída
dos eixos” (ou o “delírio”: de = fora; liros = sulcos) da atual nosografia
psiquiátrica, representada pelo DSM-5, e os conseguintes excessos
cometidos pela psiquiatria remedicalizada contemporânea.
Somando-se a isso, o National Institute of Mental Health (NIMH)
desenvolve desde 2009 um projeto paralelo e complementar ao DSM,
denominado “Projeto Pesquisa em Domínio de Critérios” (Research

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110 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Domain Criteria Project - RDoC) 36, com o intuito de desenvolver “novos


modos de classificação de transtornos mentais baseados nas dimen-
sões do comportamento observável e em medidas neurobiológicas”.
Trata-se de um projeto a longo prazo cuja ambição é a de substituir o
atual checklist de sintomas do DSM por critérios mais objetivos (enten-
da-se: biológicos) para um diagnóstico mais preciso dos transtornos
mentais (reduzidos a transtornos cerebrais), com base na genética, nas
neurociências e nas ciências comportamentais básicas. Visa-se assim a
eliminar qualquer referência teórica que o DSM ainda tenha, como sua
filiação às ideias de Kraepelin. Nesse sentido, em um exemplo de estu-
do conduzido dentro do RDoC, assinala-se que alguns genes associa-
dos ao risco da esquizofrenia (DISC1 e Neuregulin) também atuariam
similarmente no risco de transtornos afetivos uni e bipolares, o que, se-
gundo o NIMH, se coaduna “com vários artigos recentes que questio-
nam a clássica distinção kraepeliniana entre esquizofrenia e transtorno
bipolar”. Tendo-se como parâmetro o desenvolvimento científico de
outras especialidades médicas e efetuando-se constantes analogias
dos transtornos mentais com doenças orgânicas (como o câncer e as
doenças cardíacas), os idealizadores desse projeto pretendem levar a
cabo a redução do fato psiquiátrico ao fato cerebral. O que foi, outrora,
apenas um sonho da psiquiatria organicista oitocentista, hoje em dia,
torna-se um projeto concreto da psiquiatria biológica.
O papel principal do NIMH é o de financiar pesquisas em saúde
mental nos Estados Unidos e seu projeto paralelo RDoC implica a dimi-
nuição de investimentos na APA, responsável pelo DSM, o que acaba
por enfraquecer esse manual, mesmo que indiretamente. Ao contrá-
rio do que alegam os líderes do NIMH e da APA37, a “cooperação” entre
ambas as corporações parece ser mais impositiva do que amistosa, e
requer a incorporação a curto/médio prazo dos achados do RDoC às
futuras edições do DSM, sob a pena de, em caso contrário, se aban-
donar esse manual. De fato, o RDoC radicaliza as premissas sujacentes

36
Disponível em: <http://www.nimh.nih.gov/research-priorities/rdoc/nimh-research-domain-cri-
teria-rdoc.shtml>. Acesso em 08 jun. 2013.
37
Disponível em: <http://www.nimh.nih.gov/news/science-news/2013/dsm-5-and-rdoc-shared-
-interests.shtml>. Acesso em 08 jun. 2013.

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Rogério Paes Henriques 111

do DSM, elevando a enésima potência a concepção biologizante elimi-


nativa dos transtornos mentais, que passarão a ser descritos por seus
substratos biológicos: ao invés de esquizofrenia, uma disfunção das
sinapses associada a um grupo de genes reguladores, por exemplo.
Pelo andar da carruagem, parece-nos cada vez mais difícil na contem-
poraneidade a sustentação pública de teses que não entronizem as
causas das perturbações mentais no substrato orgânico, e que fujam
da territorialização da doença mental no cérebro.

2. A Roupa Nova do Rei: a doxa empirista

O DSM-III e o Empirismo Baconiano


Faust & Miner (1986) assinalam que, para além do suposto ateo-
ricismo do DSM-III, seus pressupostos metodológicos refletem uma
adesão epistemológica ao empirismo, particularmente a visão data-
da de Francis Bacon (1561-1626) sobre a ciência. A postura antiteó-
rica dos nosologistas de St. Louis – suposta como o “grau zero da in-
terpretação” – representaria, antes, uma nova doxa empirista, na falta
de episteme (Lantéri-Laura, 1989). Abbagnano afirma que
(...) a antítese estabelecida por Francis Bacon [no Novum Orga-
num] entre a antecipação da natureza, que, sem verificação nem
comprovação, salta dos casos particulares para os axiomas gene-
ralíssimos, e a interpretação da natureza, que consiste em ir, “sem
saltos e por graus”, das coisas particulares aos axiomas, representa
a certidão de nascimento do empirismo moderno e de sua oposi-
ção a qualquer forma de racionalismo dogmático (2000, p. 328).

O empirismo baconiano buscou a todo custo minimizar ou mes-


mo eliminar as pressuposições, as teorizações desnecessárias e o alto
grau de abstração do escopo da ciência, visando torná-la objetiva e
factual. Os dados deveriam ser coletados e analisados rigorosamente

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112 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

do modo mais objetivo possível, evitando os pressupostos metafísi-


cos e permitindo que a natureza se autorrevelasse em sua verdadei-
ra essência. O conhecimento surgiria pela combinação de blocos de
fatos irrefutáveis, que os cientistas reuniriam sob a forma de leis ou
postulados. Caminhar-se-ia de baixo para cima, partindo-se do solo
dos fatos rumo à plataforma da teoria.
Há dois pontos principais em comum entre o projeto baconiano
e a proposta nosológica da força-tarefa de Spitzer: (1) ambos se atêm
o máximo possível aos fatos, buscando minimizar as inferências lógi-
cas e se afastar das teorizações apriorísticas; (2) ambos acreditam que
a pesquisa que seguisse à risca tais pressupostos científicos obteria
melhores resultados. Paradoxalmente, o ceticismo de ambos com re-
lação às especulações metafísicas culmina numa crença irrestrita no
empirismo estrito.
Há um consenso na filosofia da ciência contemporânea de que o
ideal baconiano não pode ser alcançado, seja pela psiquiatria seja por
qualquer outra disciplina científica. Uma das razões dessa inviabilidade
do programa baconiano é a inexistência dos supostos fatos irrefutáveis
ou objetivos. Fatos não são teorias neutras. Os fatos não criam teorias,
mas são definidos no contexto de uma teoria. Com frequência, as teo-
rias esboçam e predizem novos fatos a serem descobertos, guiando a
pesquisa científica na direção deles. Embora o trabalho de Galileu com
o plano inclinado seja conhecido como um exemplo clássico de pes-
quisa experimental, seus pressupostos teóricos só foram confirmados
após sua morte. A teoria da relatividade de Einstein constitui um exem-
plo de constructo hipotético que talvez nunca possa ser confirmado
experimentalmente. Em suma: a ordem mais comum na ciência é da
teoria aos fatos, e não o inverso, como propõe Bacon. Uma implicação
dessa premissa é que a interpretação dos fatos está sempre na depen-
dência da teoria na qual o investigador se apoia.
Na antiga visão da ciência, a teoria era supostamente confron-
tada com a natureza e, quando houvesse discrepâncias, as teorias
deveriam se modificar para se adequar aos fatos. Na visão contem-
porânea, as diversas teorias ou visões de mundo – ou ainda “para-

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Rogério Paes Henriques 113

digmas”, segundo a expressão consagrada de Thomas Kuhn (1998)


– competem entre si no campo científico, visando impor seu modelo
de natureza às outras vertentes concorrentes e delimitando quais
problemas são mais dignos de estudo e quais métodos são mais pro-
pícios para estudá-los. O progresso do conhecimento científico seria
antes um processo de persuasão que de adequação à “verdade dos
fatos”, como bem assinalou Paul Feyerabend (1977). Separando fato
e valor, o empirismo estrito crê poder se ater aos fatos em si, revelan-
do-os com “maior precisão”, de forma neutra, como se fosse possível
a dada interpretação factual não envolver um julgamento valorativo.
Segundo Lantéri-Laura (1989), o que estaria em jogo na adoção
pela psiquiatria do empirismo é a legitimidade do conhecimento
psiquiátrico sem a determinação apriorística de suas condições de
possibilidade, o que a princípio não constituiria um problema em si,
pois foi desse modo que a medicina tornou-se científica rompendo
com a tradição dogmática; é somente a “teoria da prática” (expressão
tomada emprestada de Pierre Bourdieu) que o conhecimento psiqui-
átrico não poderia dispensar, nem que quisesse. Nesse texto, que não
debate especificamente a revolução nosológica do DSM-III, mas sim
a tradição da semiologia psiquiátrica clássica, a esta, Lantéri-Laura as-
sinala que lhe é impossível a pressuposição de neutralidade teórica:
Sem requerer a aceitação de nenhuma teoria, a semiologia psi-
quiátrica não lhe constitui, portanto, o marco zero; além do mais,
ela exige aprendizado, de modo que tudo que ela pode apresen-
tar de evidências aparentemente imediatas requer um learning
prévio, e se sabemos reconhecer a fuga de ideias e distingui-la
dos distúrbios do curso do pensamento, é que outros nos aju-
daram a lhe demarcar exemplos e que, aos poucos, aprendemos
a nos desembaraçar sozinhos. Essa formação equivale a adquirir
noções semióticas que, todas, remetem a teorias diversas, e de-
pois, a dominar o saber-fazer então fora de toda teoria (...)

A semiologia psiquiátrica, pois, não nos parece serva nem do


empirismo de J. Locke, nem da philosophy of common sense de
Th. Reid, nem do sensualismo de Condillac, nem dos ideólogos,
tampouco do ecletismo de V. Cousin ou do associacionismo de

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114 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

J. Stuart Mill. (...) Encontra-se constituída por um saber heterogê-


neo, garantido por uma tradição cumulativa, que guarda o que se
confirma e rejeita o que não serve; esse saber deve ser aprendido,
ao mesmo tempo por ser compósito por essência e porque se
prolonga necessariamente por um saber-fazer que exige tempo
guiado e experiência raciocinada (Lantéri-Laura, 1989, p. 96).

Concordâncias à parte, tendo encerrado seu escrito, a nosso ver,


precipitadamente, Lantéri-Laura esquece-se de acrescentar, para efei-
to de conclusão, que a ascensão do DSM-III equivale à decadência da
semiologia psiquiátrica clássica, tão exaltada por ele. Com o DSM-III,
não é mais a forma do transtorno mental, definida a priori pela semio-
logia psiquiátrica, que determina se o psiquiatra deve tratá-lo ou não,
mas a possibilidade de o psiquiatra tratá-lo é que define o que é trans-
torno mental (advento do critério operacional: é a resposta positiva
frente os psicotrópicos que confirma a posteriori o diagnóstico).
Faust & Miner (1986) afirmam que a aparente objetividade do
DSM-III é ilusória e identificam, a título ilustrativo, quatro pressupos-
tos teóricos que subjazem ao manual:
1. A escolha de uma abordagem ateórica e descritiva parece
estar baseada no pressuposto de que essa abordagem é “mais cien-
tífica” (logo, mais confiável), podendo ser usada por pesquisadores
adeptos das mais variadas orientações teóricas. Contudo, o mérito
dessa abordagem descritiva não está baseado em dados objetivos
(evidências). Não há base empírica para afirmar que um sistema que
gere consenso tenha uma maior validade científica. Pelo contrário,
muitas das grandes descobertas da ciência foram inicialmente rejei-
tadas por grande parte da comunidade científica.
2. Os critérios utilizados para a definição de “transtorno mental”
são baseados nos conceitos de “sofrimento”, “incapacitação” e “risco”,
cuja definição elástica aumenta consideralvemente o universo das
“patologias”38. A escolha desses critérios está baseada em pressupos-

38
Cabe ressaltar que o sofrimento era visto por autores da semiologia psiquiátrica clássica (incluindo
organicistas) como um sintoma das doenças mentais; contudo, no DSM, curiosamente, o sofrimen-
to (ou tão somente seu risco, o que configura um “problema de saúde”) passou a definir as doenças
mentais, o que obviamente as vem banalizando ao sabor das conveniências de mercado.

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Rogério Paes Henriques 115

tos teóricos relativos à definição da perturbação mental. Tais critérios


estão permeados de valores sociais dominantes e são moldados, em
parte, pela adesão ao ideal de saúde como bem-estar.
3. A opção pela divisão do conjunto dos transtornos mentais em
categorias ou tipos também reflete um pressuposto teórico, basea-
do na ideia de que a patologia é mais fielmente representada dessa
forma. Contudo, não há qualquer prova científica objetiva que justifi-
que a escolha pelo modelo categorial, sendo o modelo dimensional
mais adequado aos propósitos de uma nosografia psiquiátrica (no
próximo tópico, veremos como o modelo categorial se coaduna aos
interesses mercadológicos do complexo médico-industrial)39.

4. Apesar de seu esforço em ser ateórico, subjaz a todos os trans-


tornos descritos no DSM-III um pressuposto etiológico, seja ele sutil
ou explícito. Um exemplo de pressuposto etiológico sutil refere-se à
idade do paciente na ocasião em que ocorre a primeira manifestação
do transtorno: diferenças de idade específica entre as pessoas aco-
metidas remetem a diferentes etiologias, tais como as distinções en-
tre uma condição que deve necessariamente começar nos primeiros
trinta meses de vida (autismo) ou até os 45 anos de idade (transtor-
nos esquizofrênicos). Um exemplo de pressuposto etiológico explíci-
to refere-se aos ditos “transtornos factícios”. O termo factício significa
artificial, ou, nas palavras dos próprios autores do manual, “não real,
genuíno, ou natural”. Embora não se tenha um pressuposto etiológi-
co definido acerca das causas desses transtornos, nota-se claramente
um pressuposto definido sobre aquilo que não os causam. Também
existem pressupostos teóricos nos critérios necessários e suficientes
utilizados no DSM-III para definir os transtornos mentais, sendo o
termo “conduta agressiva” ilustrativo nesse sentido. A agressão é um

39
O modelo categorial é bidimensional e, dessa forma, ou a pessoa se inclui ou não à tipologia
proposta, dados os critérios rigorosos de inclusão/exclusão diagnóstica, não havendo sequer uma
terceira possibilidade (ou se é/está ou não se é/está doente, ambos os estados apresentando es-
sências diferentes). Já o enfoque dimensional, por se constituir num continuum que varia do normal
ao patológico, possui múltiplas possibilidades de nuances quantitativas, várias gradações, entre
tais estados (o normal e o patológico, aqui, possuem a mesma essência, sendo a diferença entre
ambos de grau).

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116 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

elemento central utilizado no manual como critério diagnóstico para


vários transtornos, tais como os transtornos de conduta. Todavia, a
identificação de atos agressivos é uma tarefa extremamente comple-
xa, que remete necessariamente ao contexto no qual o comporta-
mento ocorre. Praticamente não há comportamentos que possam
ser taxados de agressivos por si sós e a identificação das “condutas
agressivas” requereria uma análise multidimensional, inexistente
no manual. Tais critérios estariam refletindo, de fato, o conceito de
agressão tal como ele é entendido pela sociedade norte-americana.

O DSM-III e suas Vestes Invisíveis


Gaines (1992) assinala alguns novos transtornos psiquiátricos
surgidos com o DSM-III e sua revisão: “transtorno do estresse pós-
-traumático” , “síndrome pré-menstrual” , “síndrome da fadiga crô-
nica” , “personalidade autodestrutiva” e “transtorno disfórico da fase
lútea tardia” . À exceção do primeiro, todos os outros transtornos e
síndromes guardam semelhanças com as pesquisas de diferenças
étnicas em termos “raciais”; isto é, tais categorias nosológicas repro-
duzem o senso-comum sobre a mulher num linguajar científico, su-
postamente calcado no plano natural (biológico), o que faz com que
a ideologia sexista seja caucionada pela pretensa neutralidade (im-
parcialidade) da ciência positiva.
Com relação às questões de gênero, nota-se a patologização dos
eventos e das fases da vida da mulher. Noções populares sobre as di-
ferenças de gênero são, com frequência, retraduzidas à luz do voca-
bulário cientificista em termos hormonais, culminando num crono-
grama da vida feminina, onde, em certas fases (menopausa, fase lútea
menstrual, fases pré e pós-parto), a mulher estaria supostamente mais
susceptível aos problemas psiquiátricos. Como nos mostra Serpa Jr.,
em 1993, o jornal Folha de São Paulo, referindo-se a futura inclusão da
tensão pré-menstrual na “bíblia da psiquiatria mundial” (DSM), trouxe
a seguinte manchete estampada num de seus cadernos de domingo:
“Mulher agora é ‘louca’ uma vez ao mês” (Serpa Jr., 1994, p. 483).

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Rogério Paes Henriques 117

Subjacente ao discurso psiquiátrico, encontra-se a ideia de que


certas categorias de pessoas são incapazes de exercer controle sobre
si mesmas, dado que seu gozo situar-se-ia para além da norma fáli-
ca. Isso vale para os povos ditos “primitivos”, as mulheres, as crianças,
os loucos, as “raças” tidas como “inferiores” etc., ou seja, para todos
aqueles que são medicalizados por desviarem da norma fálica. A voz
da “etnopsicologia” que subjaz o DSM, a verdadeira voz do (auto)
controle, da razão e da sanidade, é aquela de um eu ideal que repro-
duz tal norma. Resta perguntarmos: onde foi parar a pretensão de
neutralidade que a força-tarefa de Spitzer propunha?

Bourdieu destaca que

A ideia de uma ciência neutra é uma ficção, e uma ficção interes-


sada, que permite fazer passar por científico uma forma neutrali-
zada e eufêmica, particularmente eficaz simbolicamente porque
particularmente irreconhecível, da representação dominante do
mundo social (1893, p. 148).

Tal como no conto do escritor dinamarquês Hans Christian


Andersen, A Roupa Nova do Rei, que inspirou o título deste tópico,
a força-tarefa de St. Louis representa os alfaiates oportunistas que
confeccionaram uma nova vestimenta invisível, a qual serve de indu-
mentária ao rei – representado aqui pelo DSM-III; por sua vez, o cam-
po psiquiátrico representa os súditos do rei, os quais, muito embora
percebam que o rei está nu por detrás de suas vestes invisíveis, não
ousam denunciá-lo; por fim, cabe à “ingenuidade” dos críticos (no
conto, uma criança, representante de todos os indivíduos desviantes
medicalizados pelo DSM) denunciar a farsa e bradar: “O rei está nu!”.
Doce ironia que a literatura detenha aqui a verdade sobre a ciência
psiquiátrica. A verdade revela-se como estrutura de ficção.

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118 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

3. A Nova Nosografia e a Indústria Farmacêutica:


a mercantilização de doenças
O modelo nosológico categorial em psiquiatria, adotado pelo
DSM-III, concebe os transtornos mentais como entidades mórbidas
específicas. Procura-se por desvios qualitativos que justifiquem a exis-
tência de tais entidades mórbidas ou categorias. O modelo médico
tradicional, baseado nas doenças infecciosas, é categorial: sabe-se que
a malária é qualitativamente distinta da febre tifoide, a qual, por sua
vez, distingue-se da escarlatina; da mesma forma, o câncer distingue-
-se qualitativamente da tuberculose, e assim por diante. As bases con-
ceituais do modelo categorial se encontram na filosofia aristotélica.
Pressupõe-se que os fenômenos observáveis (os sinais e sintomas, isto
é, as síndromes) são separáveis em classes distintas e bem definidas,
sendo tais classes manifestações de “essências” (categorias chamadas
doenças). O que distingue uma categoria da outra são as alterações
qualitativas subjacentes, identificadas, a posteriori, como bactérias,
mecanismos anátomo ou fisiopatológicos, dentre outros fatores.
Kolb (1976, p. 163) assinala que
[d]e um ponto de vista descritivo, o problema é simplificado quan-
do os distúrbios são divididos em grupos baseados nas diferenças
clínicas e comportamentais. É mais importante, entretanto, pensar
em uma compreensão diagnóstica nos termos dos processos in-
trapsíquicos do paciente e como eles se refletem na conduta e nos
relacionamentos interpessoais do paciente. (...) Exceto em se tratan-
do de distúrbios orgânicos, um diagnóstico classificativo é menos
importante do que um estudo psicodinâmico da personalidade.

Um dos nosologistas colaboradores na confecção do DSM-III, J. S.


Saraus, afirma que depois de anos dedicados a contribuir com o de-
senvolvimento desse manual, foi para ele impossível não se dar conta
de que, com frequência, os pacientes psiquiátricos não se encaixavam
de maneira correta nas tipologias propostas, uma vez que eles descre-
viam experiências “intermediárias” em relação à definição dos sinto-
mas (um pensamento delirante ou “quase” normal; uma alucinação ou
um pensamento percebido de forma “muito intensa”), o que acarreta-

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Rogério Paes Henriques 119

va marcações frequentemente arbitrárias. A utilização do DSM-III para


levantamento diagnóstico “(...) mostrava como as pessoas ‘reais’ bem
pouco se adaptavam às categorias psiquiátricas: emergia claramen-
te um continuum entre diversos grupos diagnósticos, entre diversos
grupos de sintomas e também entre manifestações sintomáticas e
manifestações psicológicas normais” (apud Saraceno, 1999, p. 89-90).
Essas considerações críticas acabam endossando a opinião de que
o modelo dimensional seria o mais adequado aos propósitos de um
manual psiquiátrico.
Talvez a opção pelo modelo categorial, que passou a vigorar no
DSM-III e em seus sucessores, esteja diretamente relacionada com a
reconfiguração da prática psiquiátrica, a qual, praticamente, foi re-
duzida à prescrição medicamentosa – isto é, à análise combinatória
dos psicotrópicos disponíveis no mercado –, a partir da hegemonia
conquistada pela psiquiatria biológica. Esmiucemos esta questão.

O “Efeito Lucas”: semeando e cultivando doenças


Healy (2000, p. 180-181) chama a atenção para o “efeito Lucas”40,
que recebe este nome já que ele se inspira na parábola bíblica do
semeador do “Evangelho segundo Lucas”, do Novo Testamento. Se-
gundo tal parábola: o semeador espalha as sementes; algumas cairão
em solo árido, outras cairão em solo fértil, mas sucumbirão frente às
ervas daninhas, enquanto outras, ainda, cairão em solo fértil e produ-
zirão uma bela colheita. O “efeito Lucas” em psiquiatria diz respeito à
seleção de uma ideia científica que prosperará, tal como a semente
que caiu em solo fértil e floresceu. Contudo, semelhanças à parte, o
sucesso de uma ideia científica em psiquiatria não ocorre aleatoria-
mente – tal como uma semente que, porventura, caiu em solo fértil e

40
Também chamado “mercantilização da doença” por Ray Moynihan, Iona Heath & David Henry, “Selling
Sickness: the pharmaceutical industry and disease mongering”, British Medical Journal, 324: 886-891, 2002.

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120 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

dispôs de um ambiente favorável para o seu florescimento –, mas sim


porque tal ideia coincidiu com os interesses comerciais dos grandes
laboratórios farmacêuticos, que transformaram a psiquiatria contem-
porânea em um imenso canteiro de obras; trata-se daquilo que Rose
(2013) denominou “sociedades psicofarmacológicas”, construídas a
partir da dependência cada vez maior da psiquiatria aos produtos
comerciais farmacêuticos, nas quais o eu tem sido rotineiramente re-
formatado pela ação dos psicotrópicos.
Claro está para todos que os laboratórios farmacêuticos produ-
zem drogas, porém, não é tão evidente que estes mesmos laborató-
rios também produzam concepções de doenças. Não que eles fabri-
quem novas ideias em seus tubos de ensaio, mas sim no sentido em
que eles seletivamente reforçam certos paradigmas que sejam afins
aos seus interesses comerciais. O modelo categorial das doenças
mentais tem sido privilegiado, já que é mais fácil vender remédios
para tipologias específicas, tais como aquelas descritas no DSM-III e
nos seus sucessores. Vende-se a ideia de um novo transtorno como
uma categoria distinta, juntamente com o medicamento que, supos-
tamente, possui o princípio ativo para combatê-lo. Num acordo táci-
to entre as indústrias farmacêuticas, cada uma delas pode direcionar
seus “novos”41 medicamentos (ou redirecionar seus medicamentos
antigos) para os novos transtornos que surgem a cada revisão do
DSM, repartindo o mercado entre si.
Healy (2000, p. 180-181) sustenta que a emergência dos antip-
sicóticos e dos antidepressivos selecionaram as ideias de Kraepelin
sobre a doença mental. Conforme já vimos, a clorpromazina, nos pri-
mórdios de sua comercialização, era tida como uma droga com uma
ampla gama de ação e, dentre suas ações, constavam seus efeitos
benéficos em muitos casos de depressão. Após a introdução dos an-
tidepressivos tricíclicos no mercado de fármacos, as indústrias farma-
cêuticas que produziam tanto antipsicóticos quanto antidepressivos

41
Novamente aqui chamamos a atenção para a falsa “novidade” dos laboratórios advinda do lança-
mento no mercado de “medicamentos de imitação”, que constituem sua principal fonte de lucro. Cf.
Marcia Angell, A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos (2007).

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Rogério Paes Henriques 121

passaram a desestimular a divulgação dos efeitos antidepressivos de


seus antipsicóticos, ao mesmo tempo em que passaram a estimular a
distinção entre ambos os compostos. Esta nova divisão dos compos-
tos em dois grandes grupos (antipsicóticos e antidepressivos) acaba-
ria por selecionar o modelo kraepeliniano de doença mental e sua
classificação dos transtornos mentais em duas categorias amplas:
psicose esquizofrênica e psicoses afetivas. Durante o final dos anos
1950, nos Estados Unidos, Kraepelin era tido como um alemão obs-
curo, uma figura típica da pré-história da psiquiatria, ao passo que,
no decorrer dos anos 1970 e 1980, muitos médicos norte-americanos
passariam a se intitular neokraepelinianos. Esta nova postura ideoló-
gica da psiquiatria norte-americana, como vimos, resultaria na con-
fecção do DSM-III, em 1980. Um dos fatores que necessita ser levado
em conta num esforço de entendimento acerca da mudança de uma
visão dimensional da doença mental – inspirada em Freud e Meyer,
que permeou as duas primeiras edições do DSM –, rumo à visão ca-
tegorial de Kraepelin é a influência das indústrias farmacêuticas, in-
teressadas que estavam em assegurar um mercado consumidor para
seus produtos, buscando vender medicamentos específicos para ti-
pologias específicas (portadores do transtorno X, Y, Z etc.).
A emenda constitucional de 1962, referente à regulamentação da
comercialização de medicamentos nos Estados Unidos, que se seguiu
ao desastre da talidomida (Contergan)42, teve três consequências prin-
cipais: (1) institucionalizou-se o teste clínico duplo-cego/placebo-con-
trolado como o único meio apropriado de se comprovar a eficácia e a
segurança de qualquer tratamento. Com isso, a pesquisa clínica passou
a ser sinônimo de pesquisa experimental; (2) houve um fortalecimen-
to e uma ampliação da categoria “medicamentos controlados” (que só
podem ser vendidos sob prescrição médica), como uma reação ao fato
de a “talidomida” ter sido comercializada livremente em vários países;
(3) estipulou-se um maior rigor da FDA no licenciamento dos medica-
mentos. Estes, além de terem obrigatoriamente que passar por testes

42
Substância sedativa e tranquilizante que provocou deformações congênitas em fetos ao ser uti-
lizada por gestantes.

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122 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

clínicos controlados para terem seu registro aprovado, deveriam ser di-
recionados para “doenças” (diseases) específicas, e não para “perturba-
ções” (illnesses). Tudo isso reforçou sobremaneira os modelos médico
e categorial, em detrimento dos modelos dimensionais das doenças
psiquiátricas. A vitória do modelo bacteriológico reforçou a noção de
que um determinado composto deve ser licenciado para uma indica-
ção específica (Healy, 2000, p. 27-28).
A maioria dos testes clínicos controlados (método duplo-cego),
patrocinados e conduzidos pelas indústrias farmacêuticas, estão
mais interessados em obter o registro dos seus compostos junto à
FDA, que em promover o desenvolvimento científico (Healy, 2000,
p. 103-104). Nesse sentido, as indústrias farmacêuticas interrompem
os testes com os medicamentos tão logo eles sejam aprovados para
comercialização pela FDA. Desse modo, os possíveis efeitos colate-
rais adversos, decorrentes do uso prolongado dos medicamentos, só
são descritos a posteriori pelos profissionais que os prescreveram (Va-
lenstein, 1998, p. 190). Assim mesmo, as indústrias farmacêuticas não
se dão por vencidas e fazem de tudo para desqualificar as informa-
ções clínicas desfavoráveis aos seus produtos, utilizando-se de mé-
todos espúrios43. Deduz-se, então, que os testes clínicos controlados,
da forma como eles são conduzidos pelas indústrias farmacêuticas,
não garantem a eficácia nem a segurança das drogas testadas (Ibid.,
p. 188-189). A partir da emenda de 1962, quando tais testes se torna-
ram obrigatórios nos Estados Unidos para a aprovação de qualquer

43
Para maiores detalhes, vide Elliot Valenstein, Blaming the Brain (1998, p. 190-199). Esse autor relata
os casos da sertralina (Zoloft), do Cordichin, do Redux, dos “bloqueadores dos canais de cálcio” e das
drogas de emagrecimento que compõe a dieta “fen-phen”, como exemplos emblemáticos da influ-
ência das indústrias farmacêuticas junto à comunidade científica, visando a proteger seus interesses
financeiros. Para o Dr. Andrew Herxheimer (apud Valenstein, 1998, p. 196), diretor da International So-
ciety of Drug Bulletins, seriam três os principais motivos pelos quais as informações precisas sobre as
drogas podem não alcançar a comunidade médica e o público em geral: em primeiro lugar, não
existe nenhum mecanismo para a coleta sistemática, análise e distribuição das informações sobre as
reações adversas às drogas, decorrentes de seu uso prolongado; em segundo lugar, as indústrias far-
macêuticas mostram-se reticentes em divulgar as informações sobre os efeitos colaterais adversos de
seus compostos; por último, trata-se de uma prática comum por parte de algumas indústrias farma-
cêuticas desacreditar e até mesmo suprimir as informações que lancem dúvidas quanto à segurança
e eficácia de seus medicamentos. Para tanto, elas exercem considerável pressão sobre os pesquisado-
res, editores de periódicos médicos, universidades e, até mesmo, sobre as agências governamentais.

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Rogério Paes Henriques 123

tipo de novo medicamento, a preocupação da medicina para com o


diagnóstico aumentou consideravelmente, acarretando consequên-
cias para a praxis clínica. Bastava agora ao médico diagnosticar corre-
tamente o paciente e lhe prescrever um medicamento “com eficácia
comprovada” contra a patologia em questão, de acordo com as do-
sagens recomendadas pela indústria farmacêutica (eis os primórdios
da conduta protocolar, baseada em “evidências”). No caso específico
da psiquiatria, um manual nosográfico pretensamente científico dos
transtornos mentais só apareceria em 1980. A partir de então, o DSM-
-III passou a ser uma referência mundial, já que a maioria das indús-
trias farmacêuticas opta por patentear seus medicamentos nos Esta-
dos Unidos e, portanto, precisam comprovar a eficácia e a segurança
dos mesmos seguindo os critérios nosográficos norte-americanos.
Isso contribuiu muito para a ampla aceitação do DSM-III e de seus
sucessores pela psiquiatria mundial.
Algumas indústrias farmacêuticas investiram maciçamente na
difusão de certos transtornos afins aos seus interesses comerciais.
Vejamos os exemplos ilustrativos do chamado “efeito Lucas” ou da
“mercantilização da doença” com três tipos de transtornos da ansie-
dade surgidos com o DSM-III: o “transtorno do pânico”, a “fobia social”
e o “transtorno obsessivo-compulsivo”.

A Upjohn e a Difusão do Transtorno do Pânico


Algumas indústrias farmacêuticas, no intuito de saírem na frente
da concorrência, redirecionam suas antigas drogas para novos trans-
tornos – dentro da concepção de que um composto é sempre licencia-
do para uma “doença” específica (Shorter, 1997, p. 319-320). Pode-se
tomar o exemplo da categoria “transtorno do pânico”, que foi dissocia-
da da categoria mais ampla “neurose de angústia”, a partir do DSM-III,
devido antes à influência de Donald Klein (patrocinado em suas pes-
quisas farmacológicas pelos laboratórios Geigy e Smith, Kline & French)
sobre a força-tarefa da qual ele fazia parte (vide tópico “O DSM-III: dos
símbolos aos sinais ou de Freud a Kraepelin”, cap. 1; parte 2), do que a

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124 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

estudos nosológicos mais sistemáticos que comprovassem a especi-


ficidade do referido transtorno.
Em 1981, a indústria farmacêutica Upjohn de Kalamazoo, em Mi-
chigan, lançou no mercado um novo tipo de benzodiazepina chamado
alprazolam ou Xanax, conforme seu nome comercial. Naquela época, o
mercado dos tranquilizantes menores ditos “benzos” estava declinan-
do e a Upjohn resolveu redirecioná-lo como um remédio específico
para combater a categoria nosológica recém-criada “transtorno do pâ-
nico”. Nos anos 1980, essa indústria bancou extensos testes de campo,
coordenados pelo eminente psiquiatra norte-americano Gerald Kler-
man, no intuito de provar que o pânico era realmente um transtorno
independente sobre o qual o alprazolam operava maravilhas. Embora
os resultados não tenham sido convincentes, no início dos anos 1990,
o Xanax tornou-se a droga do momento em psiquiatria nos Estados
Unidos, sendo prescrita pelos psiquiatras para combater a “epidemia”
de transtorno do pânico que assolava a Nação.
Sobre a celeuma entre as duas correntes de pensamento que
divergiam no tocante à ação benéfica do alprazolam sobre o trans-
torno do pânico, Healy (2000, p. 191-199) assinala que o psiquiatra
inglês Isaac Marks44 e colaboradores sustentavam que a aparente
eficácia do alprazolam resultava mais da manipulação estatística dos
resultados das pesquisas por parte do grupo de Klerman do que dos
méritos intrínsecos a tal substância. O ápice desta discussão ocorreria
com os comentários que Marks e colaboradores fariam da pesqui-
sa Londres-Toronto – que estudou os resultados a longo prazo dos
tratamentos com alprazolam, imipramina e terapia comportamental
sobre o transtorno do pânico – num artigo publicado em 1993, no
British Journal of Psychiatry. Nesse artigo, os autores afirmavam que
as terapias comportamentais possuíam efeitos benéficos mais con-
sistentes que o alprazolam sobre o transtorno do pânico. Tão logo
esses resultados vieram à tona, a Upjohn fez de tudo para minimi-

44
Psiquiatra do Hospital Maudsley e um dos maiores expoentes mundiais da terapia comportamen-
tal, que, nos anos 1960, descreveu pela primeira vez a síndrome que viria a ser posteriormente
chamada “fobia social”.

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Rogério Paes Henriques 125

zá-los, inclusive convidando profissionais (ligados a Klerman) para


criticar publicamente tal pesquisa, que o próprio laboratório havia
idealizado tão cuidadosamente. Segundo as críticas de Marks, as in-
dústrias farmacêuticas estariam mais preocupadas em registrar seus
produtos junto à FDA e, consequentemente, abocanhar uma fatia do
mercado, do que em contribuir com o avanço da ciência. Marks fazia
questão de frisar que “o marketing farmacêutico e a ciência são dis-
ciplinas diferentes” (apud Healy, 2000, p. 197). Shorter, por sua vez,
se refere ao transtorno do pânico como “the Upjohn illness” (Shorter,
1997, p. 320). No Brasil, o componente alprazolam é mais conhecido
pelo nome comercial Frontal.

A Roche e a Difusão da Fobia Social


Segundo Healy (2000, p. 187-191), outro transtorno que surgiu
com o advento do DSM-III, também dissociado da categoria mais am-
pla “neurose de angústia”, foi a “fobia social”45.
Apesar de sua raridade no mundo ocidental até meados dos
anos 1980, estudos conduzidos na ocasião da confecção do DSM-III
teriam comprovado a especificidade da fobia social como uma sín-
drome distinta. Supôs-se, naquela época, que várias pessoas que
preenchiam os critérios diagnósticos propostos no DSM-III para a ca-
tegoria fobia social, teriam sido diagnosticados, no passado, como
portadores de transtornos associados à depressão. Um dos maiores
interessados na nova categoria era a indústria farmacêutica Roche,
que pretendia lhe redirecionar seu composto “moclobemida” – trata-
-se de um antidepressivo “inibidor reversível das monoaminoxidases
tipo A (IRMAOs)”. Na ocasião do lançamento dos IRMAOs, o mercado
dos antidepressivos já estava saturado, haja vista o sucesso já obtido
pelos “inibidores seletivos de recaptação da serotonina” (ISRSs) no
tratamento farmacológico dos transtornos depressivos. Vendendo
a noção de fobia social como um transtorno distinto, a Roche auto-
maticamente promoveria as vendas da moclobemida, já que criaria
um novo público consumidor para o seu produto. Nesse sentido, o

45
Essa categoria foi renomeada como “transtorno da ansiedade social” no DSM-5, refletindo assim
sua ampliação de um medo fóbico localizado a uma ansiedade inespecífica em situações sociais.

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126 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

laboratório Roche vem patrocinando campanhas educativas – con-


tando, inclusive, com a participação da Organização Mundial de Saú-
de (OMS) – que visam a esclarecer o público médico e leigo sobre a
natureza da fobia social e seu potencial para o tratamento. Estima-se
que menos de 3% do total de casos de fobia social sejam diagnosti-
cados corretamente pelos serviços médicos primários. A marca mais
conhecida do composto moclobemida no Brasil é Aurorix.
À semelhança do alprazolam e da moclobemida, o componen-
te clomipramina também seria direcionado a um transtorno recém-
-surgido no DSM-III como uma estratégia comercial da indústria
farmacêutica que o sintetizou, visando a impulsionar suas vendas.
Vejamos como isso ocorreu.

A Geigy e a Difusão do Transtorno Obsessivo-Compulsivo


Healy (2000, p. 199-208) nos conta que, em 1958, a indústria far-
macêutica Geigy clorinou a imipramina buscando produzir um com-
posto mais potente. Como resultado, a Geigy sintetizaria o composto
“clorimipramina” ou “clomipramina”. Esta substância foi testada em
pacientes esquizofrênicos por Walter Pöldinger, que notou suas
propriedades antidepressivas e sugeriu testá-la em pacientes depri-
midos. A clomipramina só chegaria ao mercado
46
norte-americano em
1990, sob o nome comercial Anafranil , direcionada ao tratamento
do recém-surgido transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) mais do
que à depressão, muito embora muitos médicos pelo mundo afora a
considerassem como o mais potente antidepressivo.
Na época do lançamento da clomipramina, pouquíssimos anti-
depressivos surgiam como preparados intravenosos. Geralmente, os
laboratórios farmacêuticos os lançavam sob a forma de comprimi-
dos ou cápsulas, mudando para a forma líquida ou intravenosa tão
logo os primeiros formatos começassem a perder terreno no mer-
cado. Talvez ciente das dificuldades de penetração da clomipramina
no mercado dos antidepressivos, a Geigy resolveu lançá-la também

46
Este é também o nome comercial mais popular no Brasil para o componente clomipramina.

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Rogério Paes Henriques 127

num formato injetável desde o início. Isso levaria a uma certa voga do
medicamento entre os centros especializados europeus, que o dire-
cionaram ao tratamento de casos difíceis de depressão. Importantes
figuras do campo psiquiátrico europeu, sobretudo do Reino Unido,
eram defensores entusiastas desta forma de tratamento.
O registro da clomipramina no Reino Unido esteve a cargo de
Georges Beaumont, após sua nomeação como diretor clínico da
Geigy-UK. Estava claro para Beaumont que a substância só obteria
sucesso no mercado caso se distinguisse um perfil específico para ela.
Seguindo os relatos de seus efeitos benéficos sobre o TOC e estados
de ansiedade severos, que foram feitos respectivamente por Jean
Guyotat, na França, e Juan Lopez-Ibor, na Espanha, a Geigy patrocinou
uma série de estudos nos quais a clomipramina (em suas formas oral e
intravenosa) foi testada em pacientes portadores do que se chamava
na época neurose de angústia – transtornos fóbicos e TOC. Num esforço
sistemático para registrar a clomipramina, Beaumont e colaboradores
criaram uma metodologia para se testar clinicamente os efeitos desta
droga sobre o TOC. Estes testes acabaram confirmando os achados de
Lopez-Ibor, muito embora eles não preenchessem os critérios rigorosos
dos estudos duplos-cegos. Por conseguinte, em 1975, a clomipramina
seria licenciada no Reino Unido para o tratamento farmacológico da
depressão e estados obsessivos e fóbicos associados.

Novamente aqui há uma discordância radical no tocante à ação


benéfica de um medicamento sobre um transtorno. Em contraposi-
ção aos achados de Beaumont, Isaac Marks sustentava que a terapia
comportamental era mais eficaz sobre o TOC que a clomipramina.
Vale destacar que Marks era um ávido defensor do tratamento não
medicamentoso das neuroses. Nesse sentido, ele conduziu uma série
de testes clínicos comparativos entre a terapia comportamental e a
clomipramina durante os anos 1970 e 1980, no intuito de comprovar
sua tese. Ele concluiria que a terapia comportamental realmente fun-
cionava, enquanto a clomipramina tinha efeitos mínimos, o que o fez

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128 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

questionar o uso desta substância para o TOC, dada a disponibilidade


de um tratamento superior e menos arriscado47.
O mercado para os transtornos fóbicos despontava naquela épo-
ca como muito mais promissor que aquele destinado ao TOC, uma
vez que estes últimos eram supostamente raros. Todavia, os inibido-
res das monoaminoxidases (IMAOs) já haviam se firmado comercial-
mente como antifóbicos. Além disso, direcionar a clomipramina aos
transtornos fóbicos poderia não ser uma estratégia muito inteligen-
te, dada a percepção clínica difusa na época de que os tricíclicos não
eram úteis para este grupo de transtornos. A alternativa do labora-
tório foi direcioná-la ao TOC. Tendo sido prescrita com esta finalida-
de por médicos europeus e canadenses, a droga, paulatinamente,
acabaria por conquistar a simpatia dos médicos norte-americanos,
o que lhe possibilitou vencer a resistência que até então lhe vinha
sendo oposta. Conforme já dissemos, a clomipramina só obteria o re-
gistro junto à FDA para uso nos Estados Unidos sobre o TOC em 1990,
e mesmo assim, somente após se constatar que os ISRSs, que eram
então os agentes antiobsessivos licenciados, tinham poucos efeitos
benéficos sobre o TOC.
Estudos epidemiológicos sugerem que o TOC, longe de ser raro,
como se pensava anteriormente, pode afetar mais de 3% da popu-
lação, o que significa mais de sete milhões de pessoas nos Estados
Unidos e cerca de dez milhões na Europa. Trata-se de um mercado
substancial. No entanto, o que teria acontecido para que, num inter-
valo de 25 anos, tal transtorno se tornasse tão comum?
Um de seus maiores difusores foi o livro The Boy Who Couldn’t
Stop Washing, de autoria da Dra. Judith Rapoport, publicado em

Com o passar do tempo, as indústrias farmacêuticas vêm se tornando cada vez mais interessadas
47

na venda de pacotes de tratamento que incluam métodos psicoterápicos como complemento da


psicofarmacoterapia. Nesse sentido, a indústria farmacêutica Pfizer lançou há algum tempo no Reino
Unido um pacote para o TOC que inclui seu ISRS, a sertralina, junto com um método de autotrata-
mento desenvolvido por Marks e colaboradores.

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Rogério Paes Henriques 129

198948. Trata-se de uma coleção de casos clínicos típicos de TOC para


os quais a autora, por intermédio de uma narrativa laudatória muito
afetada, incentiva o tratamento farmacológico. O sucesso de vendas
dessa obra levou sua autora a participar de vários programas televisi-
vos e de vídeos educativos para médicos, o que culminou na difusão
do TOC a uma audiência mais ampla que a habitual, possibilitando
sua popularização e legitimação perante os públicos médico e leigo.
Somando esforços à popularização do conceito, em 1997, foi produ-
zido o filme hollywoodiano “Melhor é Impossível”49, no qual o vete-
rano ator Jack Nicholson protagonizou o papel de um portador do
TOC que se “cura” por intermédio de uma combinação fortuita entre
amor e pílulas, interpretação essa que lhe rendeu o Prêmio Oscar de
melhor ator principal. Esse filme foi visto por milhares de pessoas no
mundo todo. As indústrias farmacêuticas interessadas em promo-
ver seus produtos para esta indicação também cumprem um papel
crucial na difusão do TOC, seja patrocinando conferências médicas
nas quais este transtorno é discutido (as chamadas “conferências de
consenso”), seja financiando a publicação de suplementos nos pe-
riódicos especializados favoráveis ao tratamento farmacológico do
TOC, seja distribuindo cópias de suplementos e livros (tal com o da
Dra. Rapoport) sobre o referido transtorno, ou ainda financiando a
existência de grupos de portadores de TOC.

Os Grupos de Apoio a Pacientes e a Socialização das


Teses Biológicas
Valenstein (1998, p. 176-182) aponta os vários “grupos de apoio
a pacientes” existentes nos Estados Unidos. Muitos desses grupos re-
cebem investimentos das indústrias farmacêuticas, que lhes permitem
divulgar na mídia as ideias biológicas acerca das perturbações mentais.
Tipicamente, tais grupos encorajam as pessoas a buscar medicação

48
Judith L. Rapoport, O Menino Que Não Conseguia Parar de Se Lavar: experiência e tratamento do
distúrbio obsessivo-compulsivo, Rio de Janeiro, Marques-Saraiva, 1990.
49
As Good as It Gets. Direção de James L. Brooks, Estados Unidos, 1997, Cor/138 min.

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130 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

para seu sofrimento, com frequência, exagerando o grau de eficácia


das drogas disponíveis e o fundamento científico de suas ideias. Como
exemplo, o autor cita a campanha publicitária “Depressão: uma falha na
química, não no caráter”, veiculada em 1995 nos principais jornais norte-
-americanos, com o financiamento da National Alliance for Research on
Schizophrenia and Depression. Tal campanha difundiu a ideia de que a
depressão era uma doença física que requeria medicação (tal como o
diabetes requer insulina), sendo resultante de um déficit de serotonina
nos lobos frontais do cérebro. Sugeria-se, através de imagens cerebrais,
que os deprimidos teriam os ventrículos cerebrais maiores, quando
comparados às pessoas “normais”. Além desta última sugestão não ter
sido comprovada cientificamente, não havia nenhuma conexão lógica
que permitisse associá-la à hipótese do desequilíbrio bioquímico da se-
rotonina. Ou seja, esta campanha publicitária baseou-se mais na “mitolo-
gia cerebral” do que na ciência e isso parece ter passado desapercebido.
Geralmente, os panfletos informativos dos grupos de apoio a pacientes
norte-americanos enfatizam o desequilíbrio bioquímico como sendo a
etiologia principal das perturbações mentais, propondo-lhes, por con-
seguinte, tratamentos farmacológicos. Nesses panfletos, as estimativas
percentuais da eficácia dos medicamentos são superestimadas, girando
em torno de 80 a 90%, enquanto os tratamentos psicoterápicos são su-
bestimados, mesmo que estes últimos se mostrem tão – às vezes, até
mesmo, mais – eficazes que os medicamentos sobre alguns transtornos,
como comprova a ação das psicoterapias breves sobre a depressão. Em
suma: há um grande interesse das indústrias farmacêuticas em investir
nos grupos de apoio a pacientes, dada a sintonia destes últimos para
com seus interesses comerciais, o que acaba por lhes proporcionar um
considerável retorno financeiro.

Os Laboratórios Farmacêuticos e a Classe Médica


Diante de tamanho bombardeio midiático, torna-se difícil para
um médico resistir a carimbar um receituário. Dada a necessidade
de prescrição médica para a compra de psicotrópicos, Healy (2000,
p. 214) assinala que os verdadeiros consumidores desse tipo de dro-

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Rogério Paes Henriques 131

ga são os médicos, e não seus usuários. Dr. Valenstein (1998, p. 166),


por sua vez, destaca que afirmações como essa soam ofensivas aos
seus colegas de trabalho, os quais se julgam capazes de discernir
entre evidências científicas e publicidade promocional. Entretanto,
estudos indicam que os médicos, de um modo geral, leem pouca li-
teratura científica. Além disso, eles não são treinados para avaliar a
metodologia das pesquisas que leem, nem seus dados estatísticos
resultantes, o que os torna vulneráveis à influência publicitária50. Es-
tudos têm mostrado que as indústrias farmacêuticas exercem uma
grande influência sobre as prescrições médicas. Um desses estudos
mostrou que 58% dos médicos de família mencionavam o laborató-
rio farmacêutico representante como fonte de informação para o úl-
timo medicamento que eles haviam prescrito; isto é, tais laboratórios
tiveram uma frequência de citações quatro vezes maior que qual-
quer outra fonte mencionada51. Uma pesquisa francesa, publicada
no jornal Le Monde em 1998, mostrou que vários médicos, sobretudo
dos serviços de emergência, não estão em melhores condições que
seus pacientes. “Inquietos, insatisfeitos, atormentados pelos labora-
tórios e impotentes para curar, ou, pelo menos, para escutar uma dor
psíquica que os transcende cotidianamente, parecem não ter outra
solução senão atender à demanda maciça dos psicotrópicos” (Roudi-
nesco, 2000, p. 30-31).

50
Os resultados da pesquisa realizada por Camargo Jr. (2003) com uma amostra de 24 professores
de clínica médica de duas eminentes faculdades de medicina localizadas no Rio de Janeiro en-
dossam essa afirmação contundente de Valenstein. Constatou-se que, no intuito de se manterem
sempre atualizados, os médicos entrevistados selecionam novos conhecimentos a serem adqui-
ridos de maneira “intuitiva, pragmática, orientada a resultados, por informação relevante (isto é,
potencialmente útil na prática), selecionada de fontes com suficiente credibilidade acadêmica e
submetida a um primado do conhecimento prático, experimental”.
51
Anualmente, estima-se que mais de U$ 12.3 bilhões sejam gastos pelas indústrias farmacêuticas
na promoção de drogas somente nos Estados Unidos, e que mais de U$ 5 mil sejam gastos para
influenciar os hábitos prescritivos de cada médico norte-americano. Trata-se de um investimento
com retorno garantido. Um estudo patrocinado por cinco grandes indústrias farmacêuticas cons-
tatou que os anúncios publicitários em periódicos médicos aumentam o número de novas prescri-
ções do medicamento anunciado (Valenstein, 1998, p. 197).

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132 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

4. A Medicalização do Social e a Expansão da


Psiquiatria ao Campo da Normalidade
Apesar de sua simpatia confessa pela psiquiatria biológica, Shor-
ter assume que a empreitada de Spitzer e colaboradores (os idealiza-
dores do DSM-III) malogrou parcialmente devido a um suposto desvio
de função da prática psiquiátrica. Ele se refere ao alto interesse de-
monstrado pelos psiquiatras na medicalização dos comportamentos
humanos, visando à competição no mercado com psicólogos clínicos
e psicoterapeutas. Ele dá como exemplo o fenômeno da medicalização
da infância e da adolescência. Da “disfunção cerebral mínima”, como
era conhecida nas décadas de 1950 e 1960, passando pela nosografia
psiquiátrica norte-americana oficial, em 1968 (DSM-II), que a designa-
va como “reação hipercinética da infância (ou adolescência)”, até sua
transformação, em 1980 (DSM-III), em “transtorno do déficit de aten-
ção/hiperatividade (TDA/H)”, o que estava em jogo nesta atualização
nosológica era a medicalização de algo que havia sido considerado
normal durante séculos: a inquietação e distração infantis. Obviamen-
te, com o advento do sistema escolar ligado ao regime de produção
do capitalismo tardio, tais características comportamentais tornaram-
-se um problema para os educadores. O fato é que o tratamento de tais
transtornos era monopólio dos médicos, que prescreviam uma subs-
tância do tipo anfetamina chamada Ritalin (metilfenidato) – no Brasil,
sua marca mais conhecida é Ritalina. Em 1995, os médicos norte-ame-
ricanos emitiram seis milhões de prescrições de Ritalin e 2,5 milhões
de crianças foram medicadas52 (Shorter, 1997, p. 290). Isso correspon-
de a um total de três a cinco porcento das crianças em idade escolar
(Valenstein, 1998, p. 180). Sugere-se que essa “epidemia” de TDA/H nos
Estados Unidos assemelhar-se-ia claramente a uma “síndrome ligada à

52
Conforme um artigo publicado no jornal New York Times, (apud Valenstein, 1998, p. 179-180), o
grupo de apoio a paciente chamado Children and Adults with Attention Deficit Disorder, recebeu a
“bagatela” de U$ 900 mil da indústria farmacêutica Ciba-Geigy (produtora do Ritalin), para se ex-
pandir e, por conseguinte, ampliar seu trabalho de “conscientização” das pessoas acerca da eficá-
cia do Ritalin sobre o transtorno do déficit de atenção/hiperatividade. Isto teria contribuído para
que sua prescrição atingisse tais cifras astronômicas. Sua vendagem aumentaria ainda mais, após
a Ciba-Geigy ter divulgado à comunidade médica que essa droga era eficaz não somente sobre o
transtorno do déficit de atenção/hiperatividade, mas também sobre a hiperatividade moderada.

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Rogério Paes Henriques 133

cultura” estadunidense53 (Rose, 2003, p. 52). No DSM-5, essa categoria,


já consagrada dentre as crianças e os adolescentes, conhece sua acen-
tuada expansão aos adultos54.
Outro exemplo de medicalização da infância refere-se ao “transtor-
no de estresse pós-traumático”. Em 1995, terapeutas afirmaram ter cons-
tatado sua presença em crianças expostas a filmes de violência. Shorter
(1997, p. 290) destaca que a ansiedade em crianças não era nada novo. A
novidade residia no fato de os psiquiatras tentarem convencer os pais de
que os problemas cotidianos de seus filhos representavam transtornos
médicos distintos, passíveis de tratamento farmacológico.
Do mesmo modo, a antiga “neurose depressiva” do DSM-II tor-
nou-se “distimia” ou “transtorno distímico”, a partir do DSM-III, que
significa uma depressão leve (não chega a constituir um episódio
depressivo) e crônica (sintomas persistem por pelo menos dois anos)
com componentes de “mau-humor” (conforme a etimologia grega da
expressão: dys + thymos), irritabilidade e baixa autoestima. Apesar de
seu quadro clínico se assemelhar aos transtornos da personalidade
(listados no Eixo 2), a distimia aparece no DSM-III como um transtor-
no clínico do Eixo 1, devido à sua resposta terapêutica positiva frente
os antidepressivos e estabilizadores de humor. A suposta eficácia de
drogas, como a fluoxetina, no seu tratamento, contribuiu para o au-
mento no número de casos de distimia diagnosticados, já que os mé-
dicos preferem diagnosticar situações que eles podem tratar àquelas
que eles não podem. Um forte indício da lacuna deixada na nosogra-
fia da APA pela transformação da neurose depressiva numa síndro-
me clínica tratável por medicamentos é o fato de o DSM-IV propor a

53
Tradução para o português da expressão inglesa Culture-Bound Syndromes (CBS). Este termo foi
cunhado pelo psiquiatra chinês P. M. Yap, em 1967, no intuito de agrupar conceitualmente as sín-
dromes restritas a grupos ou culturas específicas numa rubrica geral (Prince & Tcheng-Laroche,
1987, p. 4). A expressão CBS passou a ser adotada no lugar de termos como “psicoses étnicas,
neuroses étnicas, psicoses histéricas, exóticas ou atípicas e síndromes reativas à cultura”. O DSM-IV
popularizou esta expressão a partir de sua inclusão no Apêndice I “Plano de Formulação Cultural
e Glossário para Síndromes Ligadas à Cultura” (Mateus, 1998). Já na CID-10, a expressão CBS não
é utilizada, embora seu conceito seja incorporado ao item F 48.8: “Outros transtornos neuróticos
especificados” (OMS, 1993, p. 169).
54
Ver: <http://www.dsm5.org/Documents/ADHD%20Fact%20Sheet.pdf>. Acesso em 08 jun. 2013.

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134 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

categoria “transtorno da personalidade depressiva” para estudos adi-


cionais, visando a sua inclusão na quinta edição desse manual, o que
acabou por não acontecer – muito embora aquilo que tenha saído
outrora pela porta da frente, agora, assombre a janela dos fundos.
A banalização do diagnóstico de depressão na atualidade atinge
uma extensão tal que um autor como Pignarre (apud Coser, 2003, p.
119, n. 94) denunciou, em 2001, seu suposto “caráter epidêmico”, a
partir da constatação de que o número de pessoas deprimidas foi
multiplicado por sete entre 1970 e 2000; o que muitos clínicos consi-
deram atualmente como “depressão” é a queixa que o sujeito enun-
cia, enquadrada como entidade nosológica (no sentido de Kraepe-
lin), ou seja, reificada como uma “doença natural”; o que atualmente
se designa por “depressão” são quadros clínicos muito inespecíficos
e híbridos (queixas de fadiga, mal-estar, sofrimento moral, dores di-
fusas, insônia, ansiedade, tristeza etc.), que lembram as antigas cate-
gorias oitocentistas “neurastenia”, de Beard, e “psicastenia”, de Janet.
Uma consequência da banalização da depressão e de seu tratamento
foi que ela se tornou o transtorno mais comum da prática psiquiátri-
ca, responsável por 28% do total de consultas nos Estados Unidos.
E essa tendência se acentuou ainda mais com o DSM-5, sobretudo
em função de ele ter eliminado a mútua relação excludente entre o
“luto” e a “depressão”, classicamente estabelecida por Freud em 1917
(Freud, 2006) e mantida na edição anterior, o que ampliou conside-
ravelmente o espectro do transtorno depressivo. Justifica-se que isso
ajudaria a “prevenir que a depressão maior fosse negligenciada em
certos pacientes, facilitando-lhes o acesso ao tratamento adequado”;
trocando em miúdos, o luto e a depressão foram sobrepostos poden-
do coexistir ao mesmo tempo, o que tende a tornar ambas as condi-
ções cada vez mais isomorfas55.
Shorter (1997, p. 291) critica também os transtornos associados à
personalidade, tais como o “Transtorno da Personalidade Antissocial” e
o “Transtorno da Personalidade Múltipla”, como emblemáticos da “pa-

55
Ver:<http://www.dsm5.org/Documents/Bereavement%20Exclusion%20Fact%20Sheet.pdf>.
Acesso em 08 jun. 2013. Curioso que, em um manual que se pretende científico, como o DSM-5, a
exceção feita ao luto para o diagnóstico da depressão tenha sido substituída por moções de caute-
la endereçadas aos diagnosticadores.

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Rogério Paes Henriques 135

tologização do essencialmente normal”, sem, no entanto, desenvolver


seu argumento. Vejamos a seguir o exemplo do transtorno da persona-
lidade múltipla, extraído dos estudos de Hacking (1986; 2000).

A Personalidade Múltipla: classificando pessoas


De 1920 a 1972, apenas dez casos de personalidade múltipla ha-
viam sido recenseados em solo norte-americano. A partir de 1986,
estimou-se em seis mil o número de “múltiplos” nos Estados Unidos.
Já em 1992, considerou-se que uma em cada vinte pessoas sofria do
transtorno da personalidade múltipla, o que resultou no surgimento
de clínicas especializadas no tratamento da nova epidemia em todas
as cidades norte-americanas (Anderson, 1997, p. 106). Qual seria o
motivo deste aumento exponencial do transtorno?

Roudinesco ressalta que


Esse crescimento absurdo é uma boa prova da regressão da noso-
logia induzida pelas diversas revisões do DSM. Foi justamente por
não mais se enquadrarem numa classificação significativa que as
pacientes afetadas por transtornos histéricos ou psicoses passaram
a receber um diagnóstico de personalidade múltipla (2000, p. 98).

Segundo Hacking (1986, p. 225), essa nova “doença” se difundiu


no imaginário social norte-americano, tendo ocupado uma matéria
de página inteira na revista Time, em 1982. Shorter (1997, p. 291) as-
sinala que o “transtorno da personalidade múltipla” foi epidêmico nos
Estados Unidos durante os anos 1980 como reflexo de sua banalização
promovida pelo DSM. Em outro texto, Hacking (2000, p. 17) também
assinala a “epidemia da múltipla personalidade”, que, segundo ele, vi-
nha sendo detectada pelos psiquiatras norte-americanos desde 1982
(a edição original desse texto data de 1995). Porém, diferentemente de
Shorter, que o considera “mítico”, fruto de um equívoco nosológico que
teria maculado a “psiquiatria científica”, Hacking crê na existência do
transtorno da personalidade múltipla – dada sua noção de “invenção
de pessoas” (making up people), calcada no construtivismo social.

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136 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Conforme nos mostra Anderson (1997), a celeuma em torno da


“realidade” da personalidade múltipla – ilustrada aqui pelas opiniões
opostas de Shorter e Hacking – dividia os psiquiatras da época:
Não é de se admirar que os psiquiatras se indagassem se o trans-
torno da personalidade múltipla era realmente uma doença men-
tal que simplesmente não havia sido descoberta até pouco tempo,
ou se, como muitos pensavam, era um tipo de logro, parte ilusão
de massa e parte propaganda, criado a partir de uma associação
de pacientes mentalmente sugestionáveis com terapeutas que
queriam enriquecer rapidamente, repórteres sensacionalistas e
apresentadores de programas de televisão” (Ibid., p. 106).

Da mesma perspectiva de Hacking, Anderson (1997) afirma a re-


alidade de um transtorno culturalmente construído:
Acredito que o transtorno da personalidade múltipla é real, exa-
tamente da maneira que os pacientes e clínicos dizem que é, mas
também acho que é uma realidade construída, peculiar ao nosso
tempo. Em outras épocas e lugares, experiências parecidas eram
vistas como transe e possessão, ou simplesmente não eram enten-
didas e, portanto, ignoradas na medida do possível (Ibid., p. 109).

No DSM-III, os critérios necessários e suficientes para o diagnós-


tico de transtorno da personalidade múltipla foram:
A – A existência dentro do indivíduo de duas ou mais personalidades
distintas, cada uma delas dominante em um momento específico.

B – A personalidade que é dominante em qualquer momento es-


pecífico determina o comportamento do indivíduo.

C – Cada personalidade individual é complexa e integrada ao seu


próprio padrão de comportamento único e relações sociais (apud
Hacking, 2000, p. 19).

Na revisão desse manual (DSM-III-R/1987), o item “C” foi excluído,


o que tornou os critérios diagnósticos menos restritivos. A partir de
então, não se exigia mais que as personalidades fossem complexas
e integradas e que manifestassem distintas relações sociais. Tal mu-

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Rogério Paes Henriques 137

dança aumentou o espectro de pessoas potencialmente diagnosticá-


veis como “múltiplos”, o que talvez explique a epidemia norte-ameri-
cana de personalidade múltipla nos anos 1980 (Hacking, 2000, p. 20).
Atualmente, a expressão “transtorno da personalidade múltipla” caiu
em desuso, tendo sido redefinida na quarta edição do DSM (DSM-
-IV/1994) como “transtorno dissociativo de identidade”. No DSM-IV e
em sua revisão, os critérios necessários e suficientes para a diagnose
desse transtorno são os seguintes:
A – A presença de duas ou mais identidades ou personalidades
distintas ou estados de personalidade (cada qual com seu pró-
prio modelo duradouro de percepção, relação e reflexão em rela-
ção ao ambiente e ao self ).

B – Pelo menos duas dessas identidades ou estados de personali-


dade controlando recorrentemente o comportamento da pessoa.

C – Incapacidade de dar importantes informações pessoais que sejam


longas demais para serem explicadas como esquecimento normal.

D – O distúrbio não é devido aos efeitos fisiológicos diretos de


uma substância (por exemplo, esquecimentos ou comportamen-
to caótico durante intoxicação por álcool) ou a um problema mé-
dico geral (por exemplo, convulsões parciais complexas). Nota:
Nas crianças os sintomas não são atribuíveis a companheiros
imaginários ou a alguma outra brincadeira fantástica (apud Ha-
cking, 2000, p. 29).

Essa ressignificação do transtorno talvez seja um forte indício de


que ele próprio esteja mudando. Hacking (2000, p. 29-30) assinala
que o DSM-III exigia a existência de mais de uma personalidade ou es-
tado de personalidade. Já o DSM-IV exige apenas a presença. Segue-
-se que, na análise dos fenômenos da múltipla personalidade, a ênfa-
se se desloca da realidade concreta das alters (expressão latina usada
como referência à personalidade alterada) para a realidade da expe-
riência subjetiva do paciente. Levando-se em conta o fato de que a
palavra presença é usada para designar as ilusões características das
esquizofrenias, deduz-se que as alters de uma personalidade múlti-
pla tornaram-se mais análogas às ilusões. Isso significa que a múltipla
personalidade não é mais considerada o transtorno principal. O pro-

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138 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

blema passou a ser a desintegração do senso de identidade, daí sua


redefinição no DSM-IV como “transtorno dissociativo de identidade”.
O problema é, assim, deslocado do fato de haver vários eus para o
fato de não haver nenhum eu integrado.
Pois bem. Lembremos que Gaines (1992) considera a psiquiatria
biológica norte-americana, a mesma que criou o transtorno da perso-
nalidade múltipla, como uma “etnopsiquiatria” como outra qualquer, à
qual subjaz uma “etnopsicologia” calcada numa tradição cultural parti-
cular do ocidente (a Tradição Protestante Germânica do Norte Europeu),
que pressupõe uma noção positiva idealizada de um eu “referencial”,
autocontrolado, cujas questões existenciais centrais se referem à auto-
nomia, à individualização e ao desenvolvimento/crescimento pessoal.
Dessa perspectiva, não poderíamos nos perguntar se a obsessão da cul-
tura norte-americana com o autocontrole não estaria na base da epide-
mia do transtorno de personalidade múltipla nos anos 1980? Teria sido
o transtorno de personalidade múltipla uma espécie de síndrome ligada
à cultura norte-americana? Por que esse transtorno só floresceu nos Es-
tados Unidos e na Holanda, tendo esse último país, curiosamente, rece-
bido uma visitação intensa dos líderes do movimento norte-americano
pró-personalidade múltipla? (Hacking, 2000, p. 23)
É o próprio Hacking quem nos fornece o protótipo da década de
1980 da personalidade múltipla:
(...) mulher branca de classe média, com valores e expectativas de
seu grupo social. Tem cerca de trinta anos e apresenta um grande
número de personalidades distintas; dezesseis, digamos. Passou
grande parte da vida negando a existência dessas alters, que in-
cluem personalidades infantis, persecutórias e cooperativas, e pelo
menos uma masculina. Ela sofreu abuso sexual em várias ocasiões
por parte de um homem da confiança de sua família quando era
ainda muito pequena. Passou por várias outras indignidades infli-
gidas por pessoas cujo amor lhe era necessário. Essas necessidades
são, entre outras coisas, parte dos valores de sua classe, que po-
dem ser concedidos ou malbaratados por quem abusou dela. Pas-
sou por vários estágios de doença mental e foi diagnosticada com
muitas queixas; seus tratamentos não a ajudaram a longo prazo,

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Rogério Paes Henriques 139

mas finalmente ela encontrou um clínico interessado em múltipla


personalidade. A paciente tem amnésia de partes do seu passado.
Tem a experiência de “entrar” numa situação estranha sem ter ideia
de como chegou lá. Tem depressão grave e pensa com frequência
em suicídio (Hacking, 2000, p. 43-44).

Conforme tal protótipo, seria praticamente impossível não achar-


mos aspectos associados aos valores culturais da sociedade norte-
-americana na tipificação da síndrome. Roudinesco assinala que “essa
síndrome remete, na verdade, a um modelo de sociedade em que a
mulher é assimilada a uma vítima sexualmente maltratada, às voltas
com o desespero identitário” (Roudinesco, 2000, p. 98).

A Medicalização da Vida Cotidiana


O diagnóstico de transtorno dissociativo de identidade, somado
à banalização da depressão e à medicalização da infância resultam
de uma diminuição da tolerância sociocultural para com certos mal-
-estares e condutas contemporâneos, que passam a ser patologiza-
dos, ficando, a partir de então, sob a tutela da psiquiatria e de seu
arsenal químico.
O DSM-5 trouxe como novidade nosográfica no que tange à pa-
tologização da infância e da velhice, respectivamente: o “transtorno
disruptivo de desregulação do humor” (Disruptive Mood Dysregulation
Disorder) e o “transtorno neurocognitivo leve” (Mild Neurocognitive Di-
sorder). Além disso, o campo psiquiátrico contemporâneo fala em “ví-
cio comportamental” e em “risco psicótico” como condições que mere-
cem considerações como categorias patológicas isoladas. Esta última
é o emblema do sintoma da atualidade, haja vista que as noções de
“risco” e “vulnerabilidade” são as promotoras da medicalização em seu
viés contemporâneo (vide tópico “Breve Histórico da Medicalização”,
cap. 1; parte 1). A noção de “risco” estende as fronteiras da psiquiatria
aos “pacientes vulneráveis”, para além dos limites de sua competência

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140 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

profissional56. Na atual inflação diagnóstica, que corresponde ao in-


cessante aumento do número de categorias patológicas, que variam
desde a depressão maior até a tristeza ou desde a esquizofrenia até a
excentricidade (ilustrada na noção de “personalidade esquizotípica”), a
psiquiatria biológica amplia os limites da patologia ao normal.
Um exemplo dessa expansão da psiquiatria é o aumento do nú-
mero de transtornos a cada nova edição do DSM. Um dos responsá-
veis pela elaboração do DSM-III, Millon (apud Shorter, 1997, p. 302-
303), justificou que a ampla inclusão de novos transtornos se devia à
vontade dos nosologistas de abarcar as várias condições como elas
necessariamente são vistas na prática clínica, cabendo aos psiquiatras
julgar a posteriori a validade das entidades sindrômicas ali descritas.
Como assinala Pessotti (1999, p. 182), “o DSM-IV não é uma classifica-
ção das formas de loucura [estados de desrazão ou de descontrole
da vontade]; é uma classificação extremamente inclusiva das queixas
possíveis a que um psiquiatra pode ou deve dar atenção”; diríamos
que o DSM classifica a “vulnerabilidade” e os “comportamentos de ris-
co” que são ou que podem vir a ser problemáticos para a sociedade.
Em outros termos: o conceito elástico de “transtorno mental” do DSM
(associado ao sofrimento, incapacitação ou risco) praticamente elimi-
na o campo da normalidade. O DSM-III listava 265 diferentes transtor-
nos, cerca de 1/3 a mais que os 180 listados no DSM-II. Já o DSM-III-R
contabilizava 292, o DSM-IV e sua revisão continham 374 transtornos,
enquanto o DSM-5 apresenta impressionantes 450. Aumentando-se
o campo do patológico, automaticamente, aumenta-se o contingen-
te de pessoas passíveis de medicalização57. Esse furor nosográfico,
ilustrado pelo aumento progressivo no número de códigos a cada
nova edição do manual, assemelha-se ao conto de Borges (1999), Dos

56
Nesse sentido, o DSM-5 alerta que o luto, entendido enquanto reação normal à perda (real, frisa esse
manual), pode ser vivenciado de forma patológica (como depressão) em pessoas previamente vulnerá-
veis; ou seja, a vulnerabilidade individual é inversamente proporcional à resiliência. Vide: <http://www.
dsm5.org/Documents/Bereavement%20Exclusion%20Fact%20Sheet.pdf>. Acesso em 08 jun. 2013.
57
Não nos admira que o gênio sarcástico de um autor como Richard P. Bentall tenha proposto, de
modo convincente (diga-se de passagem), a inclusão da felicidade no DSM, sob a alcunha “Trans-
torno Afetivo Maior do Tipo Amável” (Bentall, 1992).

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Rogério Paes Henriques 141

Rigores da Ciência, no qual os personagens cartógrafos de um reino,


não mais satisfeitos com a aproximação inexata que os mapas que
produziam proporcionavam, resolveram confeccionar um mapa do
tamanho do próprio território a ser cartografado, despojando-o, as-
sim, de sua própria funcionalidade representativa e, portanto, de sua
utilidade. Eis o triste fim dado a esse mapa entificante “mais realista
que o Rei”, como diz o provérbio:
Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o
mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa
do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Des-
mesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos
levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Impé-
rio e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da
Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado
Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemên-
cias do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despe-
daçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos;
em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.

Talvez o futuro da série do DSM e da CID, em se insistindo na mes-


ma metodologia adotada a partir do DSM-III, que implicou a morte
da arte da cartografia, já esteja vaticinado nessa criação de Borges. A
verdade revelando-se, novamente, aí, como estrutura de ficção.
Shorter (1997, p. 280-281) nos fornece dados valiosíssimos so-
bre a expansão dos cuidados em saúde mental nos Estados Unidos,
como exemplo ilustrativo da medicalização da vida cotidiana. Ele
relata que a demanda norte-americana por serviços psiquiátricos
cresceu assustadoramente (quintuplicou), passando de 1,7 milhão
de casos, em 1955, para 8,6 milhões, em 1990. Em uma pesquisa
realizada nos Estados Unidos, em nível nacional no início dos anos
1990, constatou-se que os problemas psiquiátricos tornaram-se tão
comuns quanto os problemas de pressão sanguínea (Ibid., p. 294).
Sugerimos que esses dados refletem, em parte, a mudança de
concepção acerca das perturbações mentais pela APA. Conforme já
assinalamos, a partir do DSM-III, as perturbações mentais deixaram
de ser consideradas “neuroses” e “psicoses” (termos “contaminados”

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142 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

pela psicanálise), e passaram a ser “transtornos” (disorders). As noções


de “neurose” e “psicose” remetem-se à ideia de “estrutura subjetiva”,
e, portanto, à implicação do sujeito na causação das perturbações
mentais. Nada gera mais aversão ao paciente e seu entorno (familia-
res, cuidadores e advogados) do que a ideia de que o próprio pacien-
te tenha implicação para com seu sofrimento psíquico; um exemplo
nesse sentido foi a já citada campanha “Depressão: uma falha na
química, não no caráter”, veiculada em 1995 nos principais jornais
norte-americanos, com o financiamento de um grupo de apoio a
pacientes depressivos, que veiculava deliberadamente a desimpli-
cação/desresponsabilização do sujeito para com seu adoecimento
(lembremos que, no modelo categorial, saúde e doença são defini-
dos como essências diferentes, e a doença supostamente nada tem
a ver com o sujeito). As teses biológicas sobre a depressão são muito
mais palatáveis ao público contemporâneo do que a amarga tese psi-
canalítica formulada por Jacques Lacan em 1973 de que a depressão
seria uma “lassidão moral” (Lacan, 2003), afeto típico de quem cedeu
de seu desejo e nada dele quer saber. Com a noção de “transtorno”
o indivíduo (desimplicado e desresponsabilizado) passa a ser visto
como vítima de um mal oportunista que o acometeu, passa a ser o
“portador” desse mal que lhe é supostamente estranho e que deve
ser combatido por uma cruzada médica (o “portador” e o “transtorno”
passam a não ter relação alguma, a não ser aquela estabelecida entre
hospedeiro e parasita).
Nesse sentido, o DSM acaba englobando, praticamente, toda a
população do planeta, já que todas as pessoas seriam passíveis de se
tornarem “portadoras de um transtorno mental”, bastando que, num
determinado momento de suas vidas, se enquadrassem nos diag-
nósticos – no checklist de sintomas reduzidos a comportamentos
manifestos. Por não levar em conta o sujeito, assinala Zarifian (1989,
p. 49), o DSM não reconhece o fato de que uma sintomatologia, em-
bora muito grave, pode ser senão um momento – às vezes bem lon-
go – da existência de um paciente, que não condiciona sistematica-
mente seu futuro. Em suma: esse manual, ao ontologizar a doença,

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Rogério Paes Henriques 143

desontologiza o sujeito58. Exemplo da ontologização neurobiológica


dos transtornos mentais no DSM é a correlação manifesta entre os
diagnósticos e os tratamentos farmacológicos; exemplo da desonto-
logização do sujeito é que, a partir do DSM-III-R, as expressões “um
esquizofrênico” ou “um alcoolista”, por exemplo, foram substituídas
respectivamente por “um indivíduo com Esquizofrenia” ou “um indi-
víduo com Dependência de Álcool”.
A noção de “transtorno” remete-se, também, à transitoriedade
do mal, concebendo o sintoma como algo a ser combatido. Além dis-
so, o termo “transtorno” (dis-order) reflete uma visão do mundo que
deveria ser ordenado – basta que reparemos as placas nas vias pú-
blicas que nos pedem desculpas pelo transtorno causado por obras,
que desorganizam momentaneamente o espaço urbano. Implícito a
tal termo encontra-se a ideia de que a ordem é desejável, saudável,
isto é, trata-se de um objetivo a ser alcançado. A verdade, a pessoa
verdadeira, ficaria distorcida com a “desordem” (disorder), o que jus-
tificaria a intervenção sobre ela visando à retomada de seu padrão
anterior. Entretanto, qual o parâmetro para se medir a “ordem” e a
“desordem”, o normal e o patológico?
Canguilhem (2002) nos mostrou de forma convincente que à no-
ção de “normal”, além de expressar um fato estatístico (um padrão
quantificável conhecido como “média”), subjaz um juízo de valor.
Nem sempre o padrão quantificável coincide com o saudável (aqui-
lo que valorativamente se coaduna com a norma vital); a cárie, por
exemplo, é muito frequente na população brasileira e nem por isso
essa regularidade estatística determina o saudável, muito pelo con-
trário, o saudável coincide nesse caso com o desvio dessa norma: ser
saudável (não ter cárie no Brasil) é ser anormal. É a correlação entre
fato e valor que determina a patologia. Existem desvios da norma

58
Um estudo norte-americano, publicado em 2010, revelou que o grande público adere cada vez
mais a uma concepção exclusivamente neurobiológica das perturbações mentais – implícita na
noção de dis-order. Assim como uma extensa matéria do New York Times, surgida naquele mesmo
ano, com o sugestivo título “The Americanization of Mental Illness”, mostrou o quanto tal concep-
ção norte-americana de transtorno difunde-se com facilidade pelo “resto” do mundo – indício de
que ela não tem encontrado muitas resistências culturais (Gonon, 2011, p. 55).

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144 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

estatística que tendem a se mostrar vantajosos, como no caso da cá-


rie no Brasil ou dos indivíduos ditos “superdotados”, existem também
desvios da norma estatística que tendem a se mostrar indiferentes,
como no caso da polidactilia ou da inversão total dos órgãos, e exis-
tem, ainda, desvios da norma estatística que tendem a se mostrar
prejudiciais, como no caso da hidrocefalia e da hemofilia; o ponto de
coincidência entre o desvio quantitativo da norma estatística (fato)
e o desvio qualitativo da norma vital (valor), que implica o prejuízo
ou mesmo a incompatibilidade com a vida, determina o patológico,
porém, tal avaliação só pode ser feita na singularidade de cada caso,
isto é, valorativamente e contextualmente. Fica aqui a pergunta: se
o DSM supõe-se isento de valor (“descritivo e ateórico”) e descon-
textualizado, eliminando as dimensões subjetiva e sociocultural na
determinação do patológico, ele constitui um instrumento fidedigno
para avaliação diagnóstica como base para a clínica?
Se o DSM desontologiza o sujeito descontextualizando seus
sintomas, qualquer desvio, mesmo aquele meramente quantitativo
(que escapa à media estatística, mas não necessariamente à norma
vital), passa a ser concebido como patológico e, assim, a medicali-
zação do social conhece uma expansão rumo ao campo da normali-
dade sem precedentes na história da prática psiquiátrica – como no
conto O Alienista de Machado de Assis, no qual o protagonista Simão
Bacamarte se espanta com a imensidão do campo da patologia: “A
loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no
oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente” (Machado
de Assis, 1995, p. 27); se se subtitui o termo “loucura” da citação ma-
chadiana por “transtorno mental”, tem-se a verdade do DSM revelada
como estrutura de ficção.
Supõe-se, ainda, que a noção de “transtorno” pode contribuir
com a desestigmatização dos pacientes, contudo, é justamente
o oposto o que se constata, haja vista a mais forte reação de rejei-
ção frente à doença e o maior pessimismo quanto às possibilidades
de cura (Pescosolido, Martin, Long et al., 2010). A nosso ver, o que
estaria efetivamente em jogo nessa reconfiguração semântica é a
“desculbabilização generalizada” (sobretudo dos familiares, os quais

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Rogério Paes Henriques 145

se eximem da responsabilidade ética pela eliciação do mal em seus


dependentes: “A culpa é do cérebro dele(a)!”, diria Valenstein em Bla-
ming the Brain), mesmo que ao preço do aumento da estigmatização
e de certa retomada do niilismo terapêutico. Fato é que a noção de
transtorno ampliou em muito o contingente populacional potencial-
mente medicamentável para deleite do complexo médico-industrial.

A Globalização do DSM e a Americanização da Psiquiatria


Não poderíamos deixar de apontar algumas implicações éticas
da globalização da etnoclassificação psiquiátrica norte-americana:
o DSM. A pretensa linguagem descritiva do DSM-III (e sucessores),
ao privilegiar os sintomas descontextualizados, traduz as “síndromes
ligadas à cultura” (Culture-Bound Syndromes - CBS) para a nosografia
psiquiátrica convencional, operando nos moldes do mais estrito re-
ducionismo biomédico.
Tal reducionismo se presentifica na proposta de Prince & Tcheng-
-Laroche (1987) de inserir duas síndromes psiquiátricas ligadas à cultu-
ra, muito comuns na bacia do Oceano Pacífico – a taijin kyofusho59 e a
latah60 –, nas categorias já existentes no DSM, visando a construção de
uma nosografia internacional. Os autores propõem que a categoria “fo-
bia social” seja modificada para que possa incorporar a taijin kyofusho
e sugerem incluir a latah na categoria “transtornos do movimento es-
tereotipado”, haja vista sua semelhança com a síndrome de Tourette.

59
A taijin kyofusho é uma síndrome psiquiátrica muito comum no Japão – acometendo de 7 a 36% dos
pacientes – e significa etimologicamente “medo de outras pessoas”. Caracteriza-se pelo medo persisten-
te e excessivo de ofender outras pessoas em situações sociais, devido às “deficiências imaginárias” (rubor
facial, contato visual direto indiscreto, expressão facial, deformidades, odor fétido emanado pelas axilas
e genitais, voz ou membros trêmulos, sensação de que se pensa em voz alta etc.). Para maiores informa-
ções sobre a taijin kyofusho, Cf. Kirmayer, The Place of Culture in Psychiatry Nosology (1991).
60
O termo latah tem sido usado como um rótulo genérico para incluir fenômenos similares em
muitas culturas, sobretudo na Malásia e Indonésia, cuja manifestação clínica inclui, segundo o vo-
cabulário biomédico: extrema sugestionabilidade, ecolalia, ecopraxia, coprolalia, obediência auto-
mática, tiques motores, pequenos saltos etc. Para maiores informações sobre a latah, Cf. Murphy,
Notes for a Theory on Latah (1976).

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146 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

Tais autores centram-se na psiquiatria do colonizador, baseada


na observação empírica e não na escuta clínica. A consequência di-
reta desta postura é a produção de uma psicopatologia objetivista
do comportamento externo (como a classificação de Kraepelin, ba-
seada nas descrições clínicas e no prognóstico, restaurada a partir
do DSM-III), ao invés de uma psicopatologia compreensiva do dis-
curso do paciente e de seu sofrimento subjetivo. Prince & Tcheng-
-Laroche (1987) partem do ponto de vista etic, no qual os objetos
(supostamente universais) são definidos pelo observador que passa
a procurá-lo em seu campo de estudo; assim, os transtornos mentais,
definidos pela nosografia científica, são detectados pelos autores em
diferentes culturas na condição de CBS. Se as CBS nada mais são que
variações locais ou novas nomeações de quadros clínicos universais,
por que não reduzi-las aos transtornos já descritos no DSM? Em sua
crítica à expressão CBS, Hughes (1996) assinala que seu uso pressu-
põe a existência de síndromes não ligadas à cultura, como se toda a
tradicional nosografia descrita pela psiquiatria ocidental fosse neutra
para a influência da cultura, ao contrário das CBS. Já sugerimos neste
trabalho que o “transtorno da personalidade múltipla” seria uma sín-
drome ligada à cultura norte-americana. Da mesma forma, o “padrão
de comportamento do tipo A” (relacionado a maior risco de doenças
coronarianas), a “anorexia nervosa” (Helman, 1987) e os problemas
ligados ao desajuste na adolescência (Hill & Fortenberry, 1992) tam-
bém foram propostos como CBS pertencentes à cultura ocidental
europeia/norte-americana. Ainda nesta mesma direção, o eminente
etnopsiquiatra francês Georges Devereux (1973), num artigo publica-
do originalmente em 1965, propôs que o espectro da esquizofrenia
(incluindo os transtornos esquizoides), amplamente diagnosticado
pela psiquiatria ocidental naquela época, seria um tipo de “psicose
étnica” (termo usado na ocasião para se referir ao que hoje se conhe-
ce como CBS) ligada às sociedades ocidentais.
De um ponto de vista emic, o objeto de estudo surge da observa-
ção de campo, sendo esta descrição válida apenas para o campo em
que foi descrito. Poder-se-ia, portanto, conceber os transtornos men-
tais como constructos culturais que visam a dar sentido às experiên-

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Rogério Paes Henriques 147

cias de sofrimento humano, circunscritas a determinados contextos


sócio-históricos. Os transtornos mentais seriam válvulas de escape,
no sentido de representarem padrões de comportamento incorretos,
embora culturalmente determinados, que possibilitam aos indivídu-
os de uma dada cultura extravasar o sofrimento psíquico. Nesse sen-
tido, uma mulher nigeriana acuada pela submissão irrestrita ao ma-
rido teria na zar uma forma culturalmente determinada de expressar
seu sofrimento e obter ajuda. Já uma mulher nova-iorquina acome-
tida, por exemplo, pela tripla preocupação em ser boa profissional,
amante exemplar e mãe zelosa, teria no “transtorno obsessivo-com-
pulsivo” (TOC) uma saída “conveniente” para seu sofrimento, fazendo
seu pedido de ajuda. Da mesma forma que a zar é praticamente ine-
xistente nos Estados Unidos, sendo restrita aos grupos de imigrantes
afrodescendentes, casos de TOC mostraram-se raríssimos na África.
Nesse sentido, Gonon (2010, p. 58) distingue os transtornos mentais
dentre aqueles muito incapacitantes (autismo, esquizofrenia e retar-
do mental), raros e com forte componente genético, e aqueles muito
frequentes (espectros da depressão e ansiedade), que possuem forte
componente ambiental envolvido na sua determinação; a prevalên-
cia dos primeiros gira em torno de 1% da população sem grandes
variações culturais, enquanto a prevalência dos últimos (que consti-
tuem a maior parte dos transtornos listados no DSM) varia muito de
acordo com as diferentes culturas.
A nosso ver, há muita perda de sentido nas reinterpretações
grosseiras realizadas por Prince & Tcheng-Laroche (1987) das CBS à
luz do cientificismo tacanho. Em sua obsessão com a construção de
uma nosografia psiquiátrica internacionalmente aceita, estes autores
optaram por agir de modo procustiano, forçando tais síndromes a
entrarem onde elas não cabem, e, dessa forma, descaracterizando-
as. Reduzir a taijin kyofusho à fobia social, por exemplo, implicaria
limitar o estabelecimento de uma conduta terapêutica conveniente
à síndrome psiquiátrica japonesa, impondo-lhe um tratamento
biomédico baseado em psicotrópicos. Lock (1987) destaca que a
interpretação contextualizada da taijin kyofusho como um “medo
[acentuado] de falhar em situações sociais”, característico da cultura

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148 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

japonesa, pode ser a chave para o sucesso da intervenção terapêutica,


já que essa visão permite aos terapeutas japoneses acolher o
pedido de ajuda destes pacientes e oferecer-lhes uma psicoterapia
culturalmente apropriada. Ritenbaugh (apud Hill & Fortenberry,
1992) afirma que o tratamento de uma CBS só será inteiramente
bem-sucedido se conduzido por participantes da cultura na qual
a CBS se expressa. Sustentamos que o tratamento de quaisquer
transtornos mentais – dado que estes são illness, portanto, formas de
experiência e interpretação cultural dessa experiência que ocorre em
indivíduos e grupos sociais (e, por extensão, são CBSs) – só será bem-
sucedido caso se leve em consideração a cultura dos pacientes que
o portam, não somente como elemento coadjuvante, mas sim como
protagonista na condução do tratamento61.
Kleinman (1987) assinala ser inaceitável que a maioria das ca-
tegorias de perturbações mentais das sociedades não ocidentais –
onde se concentra a maior parte da população do planeta – tenha
que ser alocada como categoria “atípica” no DSM; atípico seria o uso
de amostras das populações europeias e norte-americanas como
fonte para a determinação dos tipos clínicos descritos nesse manual.
A reificação das CBS em “categorias étnicas” ameaça a sua compreen-
são, pois, como assinala Le Breton: “Na prática do cuidado, a indife-
rença em relação às origens sociais e culturais do doente não é um
erro menor que aquele que reduz o indivíduo a um estereótipo de
sua cultura ou de sua classe social (...)” (1998, p. 166).
Conforme assinalou Hacking em sua crítica à medicalização da
experiência do transe empreendida pela CID-10 e pelo DSM-IV: “Po-
de-se perceber que o imperialismo cultural não morreu, mesmo sen-
do hoje orientado por psiquiatras e não missionários” (2000, p. 159).
As instituições de saúde transnacionais e os consórcios multibilioná-

61
Isso se evidencia quando se considera o “campo AD” (os transtornos mentais decorrentes do uso
abusivo de álcool e outras drogas), no qual as políticas públicas sanitárias e os modelos de atenção
adotados dependem das circunstâncias locais e do contexto político e cultural de cada país. Dessa
forma, uma substância altamente controlada em um país pode estar disponível em outro país, sen-
do o padrão do que é considerado um uso normal e um uso desviante determinado culturalmente.

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Rogério Paes Henriques 149

rios globalizam com agressividade a biomedicina ocidental com seus


produtos e seus serviços tecnocientíficos às novas regiões geográ-
ficas para desenvolver novos mercados e medicalizar os recônditos
mais longínquos das culturas mundiais, dedicando-se, assim, a um
neocolonialismo de um tipo novo e diferente.
Mesmo um autor atualmente cultuado nos meios acadêmicos
críticos, dadas as recentes publicações praticamente em conjun-
to, em 2013, da quinta edição do DSM e de sua crítica a ela (Saving
Normal: an insider’s revolt against out-of-control psychiatric diagnosis,
DSM-5, big pharma, and the medicalization of ordinary life), como Allen
Frances, comete esse mesmo erro; mesmo ele, na condição de signa-
tário do DSM com toda implicação e autoridade que lhe permite sua
“insider’s revolt”, acaba caindo em idêntico reducionismo cultural ao
aqui retratado, ao tentar descartar a água suja da banheira após a
limpeza preservando o bebê, isto é, preservando “seu filho”, o DSM:
“Em todos os sentidos, os humanos são parecidos o bastante gené-
tica e culturalmente que um único sistema diagnóstico (...) é elástico
o suficiente para assentar todas as possibilidades” (Frances, 2013, p.
23). Apesar de suas críticas parciais ao DSM, Frances não abre mão de
seu pretenso universalismo, que refletiria o monopólio concedido à
ciência psiquiátrica pelo Iluminismo, após a Revolução Francesa, no
trato com o que denomina “transtornos psiquiátricos reais” (entenda-
-se: doenças naturais, trans-históricas e transculturais).
Bourdieu & Wacquant (1998) assinalam que “(...) nada é mais
universal que a pretensão ao universal, ou, mais precisamente, a uni-
versalização de uma visão de mundo particular (...).” E continuam: “O
imperialismo cultural repousa sobre o poder de universalização dos
particularismos ligados a uma tradição histórica singular, fazendo-os
não se reconhecerem como tais.” Os autores sugerem que a ampla
difusão de “teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não
se argumenta” nos campos acadêmico e político mundiais, favorece
a neutralização do contexto histórico que as originou e produz uma
universalização aparente que fortalece o trabalho de teorização da
nova doxa intelectual planetária (norte-americana) num processo de
“Mc’Donaldização servil do pensamento” (Ibid., p. 109).

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150 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

A expressão de Bourdieu & Wacquant é muito pertinente, na medida


em que a nosografia da APA e seu correlato clínico, o Compêndio de Psi-
quiatria de Kaplan & Sadock (1993), acabam por funcionar à semelhança
das grandes redes multinacionais de fast food; tal como estas ofertam uma
padronização do cardápio e do atendimento aos clientes, aqueles lhes
oferecem um padrão (biomédico) de diagnose e de tratamento.

O processo de globalização da biomedicina – incluindo aqui a psi-


quiatria em sua versão biológica, tornada “biopsiquiatria” – não poderia
legitimar a “americanização” do mundo, obscurecendo as diferenças e
as lutas culturais? Pior, não poderia tal processo homologar os estilos
culturais e técnicos norte-americanos tornados transnacionais? Vale
ressaltar que a biomedicina está prestes a se tornar uma das mais
importantes redes transnacionais de megaconsórcios do planeta, sob
a liderança dos Estados Unidos (Clarke et al., 2000, p. 32). A biomedici-
na não tem nenhum privilégio epistemológico apriorístico, não sendo
mais “verdadeira”, nem mais “real”, tampouco mais “científica” que qual-
quer outro sistema “etnomédico”, portanto, sua globalização reflete
tão somente sua atual contingência de dominação política sobre os
demais saberes concorrentes.

O Materialismo Biológico Eliminativo


Ao apontar aquilo que considera falhas no processo nosográfico
da psiquiatria norte-americana (alguns “diagnósticos equivocados”
de transtorno da personalidade, a banalização da depressão e a me-
dicalização da infância, ao que acrescentaríamos os diagnósticos de
CBS, descritos acima), Shorter deixa subentendido que um possível
retorno da psiquiatria a sua “intrínseca” vocação científica em lidar
com as “doenças naturais” – que implicaria o afastamento da discipli-
na do campo das neuroses (isto é, do campo da normalidade) e sua
autonomização para com a esfera político-econômica –, seria sufi-
ciente para conter o avanço da atual onda de hipermedicalização de
comportamentos normais, uma vez que a psiquiatria restringiria sua
atuação aos “doentes” que realmente necessitam ajuda.

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Rogério Paes Henriques 151

Esse é basicamente o cerne da ideia defendida também por Al-


len Frances, que denota uma visão linear e triunfante da história e do
progresso científico. Isso fica claro em várias passagens de sua obra,
por exemplo, quando esse autor afirma anacronicamente que “O
mundo árabe [referindo-se ao período de explendor do Islã entre 700
e 1500 d. C.] criou uma descrição completamente notável dos trans-
tornos equivalente ao moderno DSM (...) Claramente, os transtornos
psiquiátricos básicos são estáveis ao longo do tempo – mesmo se os
modismos vêm e vão” (Frances, 2013, p. 51); ou quando se identifica
com Lineu, o mais “atraente gênio do Iluminismo” e sua função de ta-
xonomista, que “trouxe ordem ao universo biológico aparentemente
caótico” (Ibid., p. 54-55); ou quando lamenta o fato de a psiquiatria
ainda não ter elaborado (ou não poder elaborar) sistemas classifica-
tórios baseados em “modelos explicativos claros”, cujo ideal é forne-
cido pela tabela periódica de Mendeleiev – que deve ser lido como
apologia do método cartesiano (Ibid., p. 56); ou ainda, quando alça
Robert Spitzer [chefe da força-tarefa que elaborou o DSM-III, que ele
invoca vulgamente como “Bob”] ao status de salvador da psiquiatria,
em sua hercúlea tarefa de tornar o diagnóstico psiquiátrico sistemáti-
co e confiável, que ele compara com “Ahab perseguindo implacavel-
mente Moby Dick” – descrevendo, em seguida, sua visão progressista
desse manual (Ibid., p. 62-67 passim); enfim, os exemplos são muitos
e qualquer leitor atento os encontrará aos montes em seu livro.
Ora, a própria noção de “doença natural”, que Kraepelin aplicou à
psiquiatria no século XIX e que foi atualizada por Spitzer e colaboradores
sob o eufemismo “transtorno” a partir do DSM-III, nos parece altamente
questionável. Não pensamos que seja possível substancializar as per-
turbações mentais, pressupondo-lhes uma existência própria sob uma
estrutura fixa, estável, trans-histórica e transcultural. Essa substanciali-
zação das perturbações mentais implica uma adesão epistemológica
ao positivismo, de cujas premissas não compartilhamos. Consideramos
as perturbações mentais como constructos culturais que visam a dar
inteligibilidade às experiências de sofrimento (pathos), circunscritas a
determinados contextos sócio-históricos, e não como entidades mórbi-
das universais existentes in natura. Isso não implica negar sua existência,

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152 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

uma vez que, de modo nominalista, depois de construídas socialmente


(depois de inventadas), as doenças passam a ser operadores lógicos a
partir dos quais o pathos é apreendido. Negamos, sim, o realismo das
doenças (isto é, seu estatuto ontológico neurobiológico e universalista),
tal como apregoado pelas concepções essencialistas das teorias cientí-
ficas62. Parafraseando a afirmação de Lacan (1998a, p. 37) acerca do in-
consciente, em seu seminário sobre os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise, diríamos que o estatuto das doenças mentais é ético, e
não ôntico. Por mais que se tente adaptar a psiquiatria ao modelo bio-
médico baseado nas doenças infecciosas, tornando-a “biopsiquiatria”,
consideramos que a complexidade do pathos escapa a esse reducionis-
mo, perturbando o sono dos fisicalistas mais convictos.
Castel (1987) assinala que uma das causas do declínio da psicaná-
lise no campo psiquiátrico francês teria sido sua ousadia em reduzir
a patologia mental a uma patologia relacional, retirando assim a psi-
quiatria definitivamente da esfera médica. A psicanálise teria dado,
segundo este autor, um passo maior do que a própria perna, pois “há
qualquer coisa no fato psiquiátrico – e, sobretudo, na organização da
psiquiatria como profissão – que resiste a tal redução” (Ibid., p. 89).
À semelhança de sua eterna rival, não estaria a psiquiatria biológica
sendo ousada demais ao tentar reduzir a patologia mental a uma pa-
tologia orgânica e, dessa forma, encapsulando a psiquiatria na esfera
médica, justamente no momento em que as políticas de saúde men-
tal no Brasil se definem em torno do modelo da atenção psicossocial,
que promove a ampliação da clínica e a transversalização das práti-

62
Justiça seja feita, aqui, uma aproximação e um distanciamento para com Allen Frances. Aproxima-
mo-nos quando, logo após sua defesa do pragmatismo utilitário, afirma ele serem os transtornos
mentais “não mais que (...) constructos falíveis e limitados [porém úteis] que buscam, mas nunca
encontram, a verdade” (Frances, 2013, p. 21). Distanciamo-nos quando, pouco adiante, esse mesmo
autor, recorrendo à epidemiologia, afirma que “Embora o comportamento ‘normal’ seja variável nas
culturas, os transtornos mentais específicos são bastante uniformes. (...) A mais fascinante questão
é por que ambos os sistemas diagnósticos [DSM e CID] ganharam tal aplicabilidade universal em
todas as raças e culturas do mundo. Claramente, nós, humanos, somos mais parecidos do que
somos diferentes, assemelhando-nos uns aos outros nas coisas que contam para a definição do
normal e do transtorno mental. (...) Em todos os sentidos, os humanos são parecidos o bastante”
(Ibid., p. 22-23). Em suma: embora admita a transitoriedade do conceito de transtorno mental em
sua captura sempre parcial da realidade (e, portanto, sua relatividade epistêmica ao constatar que,
para a ciência, a verdade nunca pode ser toda apreendida), Frances não abre mão de sua pretensa
universalidade conceitual (logo, de seu caráter transcultural – e colonialista?).

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Rogério Paes Henriques 153

cas assistenciais? Para além dos interesses da corporação psiquiátrica


em se afirmar pertencente à biomedicina, das seguradoras de saúde
em reduzir os custos com o tratamento psiquiátrico e dos gestores
da saúde pública em adotar a governamentalidade neoliberal, seria
o “fato psiquiátrico” passível de tal redução ao cerebral?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivos principais: (1) fazer um levan-


tamento da história do fisicalismo em psiquiatria, mostrando seus
altos e baixos na dinâmica do campo psiquiátrico, até a contempo-
raneidade, que assiste a hegemonia da psiquiatria em sua versão re-
medicalizada (dita biológica) no mundo ocidental; (2) demonstrar a
hegemonia da psiquiatria biológica no campo psiquiátrico ocidental
contemporâneo, a partir da série DSM, patrocinada pela American Psy-
chiatric Association (APA); (3) estabelecer os vínculos entre a nova no-
sografia psiquiátrica, inaugurada com o DSM-III, e a comercialização
de novos medicamentos pelas grandes corporações farmacêuticas
privadas; (4) examinar as consequências da hegemonia da psiquia-
tria biológica no que tange à medicalização do social, à globalização
do DSM e a consolidação do materialismo fisicalista eliminativo. Para
tanto, buscamos levantar a literatura sobre o tema, sem pretender
esgotá-la, procurando fornecer subsídios para uma visão crítica da
vertente hoje dominante no campo psiquiátrico ocidental.
Como vimos, a psiquiatria biológica consolidou-se como he-
gemônica no campo psiquiátrico ocidental, desbancando a psi-
quiatria dinâmica, no final do século passado. Aos poucos, ela viria
conseguindo impor sua crença fisicalista (com base no materialis-
mo eliminativo) na existência de um substrato biológico-cerebral
para as perturbações mentais, tendo como axioma a noção de
que o “cérebro é o órgão da mente”.
Vimos também que o clássico manual nosográfico responsá-
vel pela remedicalização da psiquiatria foi o DSM-III, publicado em
1980 pela APA. Esse manual e seus sucessores (DSM-III-R/1987, DSM-
-IV/1994, DSM-IV-TR/2000 e DSM-5/2013) – os quais mantêm a mes-
ma perspectiva kraepeliniana, inaugurada com a edição de 1980 –

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156 A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero

não são produtos do progresso linear da ciência positivista, a qual,


através do aprimoramento de seus instrumentos de análise, teria
“descoberto” supostas doenças naturais. Antes de serem descrições
da natureza, os transtornos mentais classificados nesses manuais são
constructos socioculturais datados que conferem significação às ex-
periências de sofrimento humano (pathos). Nesse sentido, tais trans-
tornos refletem, necessariamente, as peculiaridades de determinada
cultura – no caso específico dos DSM’s, da cultura norte-americana.
Classificar os transtornos com base somente em seus sinais e sinto-
mas, como fizeram os idealizadores do DSM-III, pressupõe conceber
as síndromes como universais e, portanto, estáveis ao longo do tem-
po (intemporais) e do espaço (aculturais). Isso implica a globalização
da etnoclassificação psiquiátrica norte-americana ao “resto” do mun-
do e, por conseguinte, a universalização da psiquiatria biológica e de
seu corolário: a psicofarmacoterapia.
Vimos, ainda, que as indústrias farmacêuticas investiram maciça-
mente na difusão de certos transtornos afins aos seus interesses co-
merciais – como ilustramos com os casos da Upjohn e o transtorno do
pânico, da Roche e a fobia social e da Geigy e o transtorno obsessivo-
-compulsivo (vide cap. 3; parte 2). Defendemos a tese de que o mode-
lo categorial das perturbações mentais tem sido privilegiado, já que é
mais fácil vender remédios para categorias tipológicas específicas, tais
como aquelas descritas no DSM-III e nos seus sucessores. Vende-se a
ideia de um novo transtorno como uma categoria distinta, juntamente
com o medicamento que, supostamente, possui o princípio ativo para
combatê-lo, cuja patente pertence a algum grande laboratório priva-
do – trata-se do chamado “efeito Lucas” ou “mercantilização da doen-
ça”. As indústrias farmacêuticas também investem pesado nos grupos
de apoio aos pacientes, que socializam as concepções biologizantes
das perturbações mentais afins aos seus interesses comerciais, e na
tentativa de influenciar os hábitos prescritivos dos médicos em geral
em seu proveito.
Finalmente, esperamos ter demonstrado que a redefinição das per-
turbações mentais como “transtornos” (dis-orders) e o aumento indiscri-

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Rogério Paes Henriques 157

minado no número de categorias a cada nova edição do DSM culmina


na hipermedicalização da vida cotidiana, através da medicamentação
dos comportamentos normais. Isso se comprova ao examinarmos os
alarmantes números da medicalização do social na atualidade: o mon-
tante do mercado farmacêutico é estimado entre U$ 300 e 500 bilhões
e, segundo previsões de bancos de investimento, em vinte anos, terá
saltado para algo em torno de U$ 3,2 trilhões, havendo quem arrisque
a astronômica cifra de 5,6 trilhões (Bezerra Jr., 2000, p. 162). Por sua vez,
assinala-se o aumento absoluto ao longo da última década do século
XX na prescrição de psicotrópicos em todas as regiões do mundo que
foram pesquisadas: 200% na América do Sul, 50% na África do Sul, 137%
no Paquistão, 50% no Japão63, 126% na Europa e 638% nos Estados Uni-
dos (Rose, 2013, p. 290) – indício de que a globalização do DSM e de sua
psiquiatria tem de fato obtido estrondoso sucesso.
Assim como os consultores em questões transculturais da
equipe de trabalho do DSM, comprometemo-nos com uma visão
psicossocial da psicopatologia. Isso não implica um desprezo pelo
papel da biologia humana, muito pelo contrário, representa uma
crítica, como assinala Good (1996, p. 129-130): (1) da visão dominante
da psicopatologia e da prática psiquiátrica, calcadas no paradigma
biológico – acrescentaríamos: de cunho materialista eliminativo;
(2) da distinção entre “doença”, em seu sentido biomédico (disease),
e perturbação (illness), isto é, entre doença psiquiátrica concebida
como entidade biológica universal e formas de experiência e
interpretação cultural dessa experiência que ocorre em indivíduos e
grupos sociais; (3) da hegemonia de uma forma particular de ciência,
que se caracteriza por sua inaptidão em combinar harmonicamente
os conhecimentos da neurobiologia das perturbações mentais com
o reconhecimento e entendimento das origens psicossociais da
psicopatologia, e o consequente desenvolvimento de intervenções
psicossociais efetivas; (4) de todo pressuposto essencialista – tal
como aquele que torna generalizável para todos os seres humanos

63
Com o intuito de introduzir os antidepressivos no país do Sol nascente, as indústrias farmacêuti-
cas venderam aos japoneses a ideia da depressão como a “gripe da alma”. Pelo visto, essa estratégia
sagaz de marketing deu certo.

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as pesquisas conduzidas com amostragens representativas da classe


média urbana euro-americana.
Nossa preocupação primária não é achar a qualquer custo um
marcador biológico ou cognitivo-comportamental para um subtipo
específico de transtorno – tal como se propõe o “Projeto de Pesqui-
sa para Domínio de Critérios” (RDoC), do National Institute of Mental
Health (NIMH) –, mas sim, associar qualquer preocupação científica
com um compromisso ético para com a sustentação de práticas as-
sistenciais que agenciem o desejo, endereçadas à singularidade das
pessoas vivas e encarnadas, e não a um somatório de comportamen-
tos e de sintomas a corrigir.

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EPÍLOGO

Tendo-se passado pouco mais de uma década desde a data da


defesa deste trabalho, caberia algumas considerações adicionais
aproveitando aqui o distanciamento crítico que tal afastamento
cronológico me possibilita. Após a recém-publicação da quinta edi-
ção do DSM, esse calhamaço de 992 páginas ampliou o processo de
medicalização da normalidade em curso desde sua terceira edição,
acrescentando, por exemplo, o luto como patológico se este per-
turbar a produtividade e a socialização. Na edição anterior, tinha-se
que esperar dois meses após o episódio desencadeante associado à
perda para se diagnosticar transtorno depressivo em um indivíduo
enlutado, prazo esse que se encurtou para quinze dias no DSM-5. Isso
reflete a temporalidade acelerada da produção do capitalismo avan-
çado sendo incorporada a esse manual. Nesse sentido, as críticas que
fiz neste trabalho há uma década mostram-se bastante atuais. Não
pretendi negar a existência das doenças, uma vez que sua constru-
ção social, isto é, sua invenção, implica que elas existem para a cole-
tividade. Também não quis construir uma “narrativa paranoica” com
base na “teoria da conspiração” que condiciona, de modo mecanicis-
ta, a construção social das doenças ao poderio econômico dos labo-
ratórios farmacêuticos multinacionais. Até porque, algumas pessoas
se beneficiam de fato com os tratamentos farmacológicos ofertados
pela psiquiatria biológica. Não sou contrário ao uso racional de medi-
camentos, mas sim ao seu uso irracional, acrítico, não democrático e
normalizador, que torna a população dependente desse tipo de res-
posta médica para os seus problemas cotidianos.
Por analogia ao que Le Breton (1998) assinala acerca da transfor-
mação da experiência humana da dor por efeito do progresso dos
analgésicos, pode-se dizer, também, que a experiência humana do
sofrimento psíquico modificou-se com o progresso dos psicotrópicos.
Desde então, a dor ou o sofrimento psíquico puderam ser suprimidos,

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ou ao menos amenizados, graças à biotecnologia e, por conseguin-


te, o grau de tolerância à dor e ao sofrimento diminuiu consideravel-
mente. A indústria farmacêutica só obtém esse lucro exorbitante na
atualidade porque atende a uma demanda imediatista dos próprios
indivíduos contemporâneos, num ciclo vicioso, do qual não nos cabe
perguntar o que teria vindo primeiro. A “mercantilização da doença”,
tal como mostrada neste trabalho, requer um agenciamento coletivo
constituído pela política colaboracionista dos médicos para com as in-
dústrias farmacêuticas (já que são esses profissionais que efetivamen-
te prescrevem os psicotrópicos), pacientes cada vez mais entendidos
e imediatistas que os demandam como panacéia, pesquisadores que
inventam novos transtornos mentais, grupos de apoio a pacientes que
demandam “mais tratamento”, além da mídia e da Internet que divul-
gam as pesquisas mundo afora nem sempre de forma ética64.
Analogamente às considerações de Le Breton, pode-se, ainda,
aventar uma redefinição da concepção do eu dos indivíduos contem-
porâneos à luz do corporal/cerebral. O efeito da difusão midiática das
descobertas da biologia molecular e das técnicas de imageamento ce-
rebral, ou seja, novos “jogos de linguagem” ou novos “estilos de pensa-
mento” traduziriam a ideia de que apreender o cérebro é indispensável a
fim de nos compreendermos a nós mesmos e de que, para mudarmos, é
preciso antes mudar nossa configuração cerebral. Essa fetichização con-
temporânea do cérebro e a tentativa de redução da identidade pessoal
à identidade cerebral resultariam num “si-mesmo neuroquímico”, que
vem sendo designado também como “indivíduo somático”: o corpo/
cérebro despontam como o novo eu-ideal e a saúde (entendida como
bem-estar) como o novo ideal do eu.
Cabe refletir se a reformatação somático-cerebral do humano pela
ação química dos psicotrópicos, sobretudo por intermédio do seu uso
cosmético para fins de suposto “autoaprimoramento”, constitui uma

64
Sobre esse último ponto, Cf.: F. Gonon, E. Bézard, T. Boraud et. al., “Misrepresentation of Neurosci-
ence Data Might Give Rise to Misleading Conclusions in the Media: The Case of Attention Deficit
Hyperactivity Disorder”, PLoS One, 6(1), 2011. Disponível em: <http://www.plosone.org/article/in-
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Rogério Paes Henriques 161

prática de invenção de si que rompe com as políticas dominantes da


subjetividade (utopia) ou, por outro lado, constitui uma prática de su-
jeição de si aos mecanismos do biopoder (distopia)?
E suponhamos que se tivesse já desenvolvido biotecnologias
utópicas como o Soma, espécie de panacéia contra os infortúnios
da alma descrita por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo ou o
estetoscópio da alma do Dr. Tom More, herói psiquiatra do romance
Love in the Ruins, de Walker Percy, que permitisse diagnosticar e curar
as crises existenciais, ainda assim, caberia questionar se, como seres
humanos, às vezes, não seria mais salutar sentir-nos mal ao invés de
bem? Invocamos aqui o médico psiquiatra (à la Molière) relatado por
Parens (2013, p. 35) que, ao perguntar a sua paciente se os antide-
pressivos que ele lhe havia prescrito estavam funcionando, ouviu
dela: “Sim, eles estão funcionando bem... Sinto-me muito melhor.
Porém, ainda estou casada com o mesmo alcoolista filho da puta. Só
que, agora, consigo suportá-lo”. Como diria Paul Éluard, o “poeta da
liberdade”: “tristeza belo rosto”.

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