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tempo
resgatado
de ao
arqueologia
mar
lisboa 2014
Uma história resgatada ao mar
Vestígios das rotas marítimas romanas
nas costas portuguesas
Carlos Fabião
uniarq – centro de arqueologia da universidade de lisboa
A insuperável dificuldade de deslocar gran- tituir cabal prova das navegações atlânticas, regularmente trazidas pelas redes de pesca e
des volumes de mercadorias conferiu es- pela circunstanciada descrição das zonas que, por vezes, acabavam recolhidas em cole-
pecial relevância ao transporte marítimo costeiras. Enfatizavam-se as dificuldades, ções públicas (Diogo; Trindade, 2003).
e fluvial em todas as sociedades pré-indus- como se um lugar tão relevante como o sítio Havia, pois, a noção da presença desses
triais. Naturalmente, a sociedade romana de Troia (Grândola) ou a monumental Torre vestígios, embora existisse também a insupe-
não constituiu exceção. Apesar de serem fa- de Hércules, na Corunha, um farol de época rável barreira física que as águas constituíam.
mosas as grandes estradas que conduziam a romana, não constituíssem, por si, notórias A curiosidade e o acaso iam reunindo alguns
Roma e que, na prática, estabeleciam comu- provas da navegação atlântica em época ro- objetos e observações, mas nada de muito
nicações escorreitas entre as diferentes pro- mana. Outros autores antigos, como o grego concreto se podia apurar.
víncias do Império, as limitações dos meios Estrabão, deixaram apontamento do domí- A situação só mudou substancialmente,
de transporte dificultavam sobremaneira a nio das rotas de navegação atlântica, cujos não só em Portugal, mas e toda a Europa, com
sua utilização para mais do que a circulação segredos eram zelosamente guardados pe- o desenvolvimento e generalização, na se-
a curtas distâncias de pequenos volumes de los navegantes de Cádis, desde tempos pré- gunda metade do século xx, do equipamento
mercadorias. -romanos,2 ou o naturalista Plínio, o Velho de mergulho autónomo de Jacques Cousteau.
Desde os primórdios da investigação ar- que refere as costas do grande mar oceano A partir de então, multiplicaram-se as situa-
queológica, ficou claro que a ampla dispersão como domínio romano, desde os tempos do ções de observação dos fundos marinhos.
de artigos análogos, de diversas procedên- primeiro imperador de Roma.3 Entre nós, a primeira ação concreta de
cias, nas mais desvairadas paragens do Im- Na realidade, existia a clara noção de que pesquisa arqueológica subaquática de que
pério pressupunha importantes fluxos de os fundos marinhos e fluviais guardavam ves- temos conhecimento foi promovida pela re-
distribuição e intercâmbio. O senso comum tígios de antigas navegações. Encontramos cém-criada (1957) Sociedade Portuguesa de
dizia que a via marítima teria sido relevante nos Humanistas portugueses notícias de Atividades Subaquáticas e acompanhada por
em todo esse processo, sobretudo na área presumidas antigas estruturas portuárias, Manuel Heleno, nas águas fronteiras à Penín-
mediterrânea. Para o território hoje por- como o suposto cais com argolas, identifica- sula de Troia, Grândola, em 1958 (CPAS, Cen-
tuguês, as opiniões dividiam-se. Se por um do no subsolo do dormitório do convento de tro Português de Atividades Subaquáticas).
lado parecia evidente que as costas algarvias, São Domingos (Silva, 1939, pp. 130-132), tido A atenção sobre este relevante sítio do estuá-
por constituírem o prolongamento natural como prova de que, na Antiguidade, se nave- rio do Sado é compreensível por se tratar de
das andaluzas a oeste do Estreito de Gibral- garia através da baixa lisboeta; ou os vestígios um dos mais afamados centros romanos do
tar, eram de certo modo «mediterrâneas» de antigas construções submersas junto aos espaço hoje português; a atenção e acompa-
também, já era menos clara a relevância das areais de Troia, Grândola, sobre as quais nhamento do segundo diretor da instituição
navegações a norte do cabo de São Vicente, escreveu Amador Arrais (Castelo-Branco, é natural, pois de há muito o Museu Nacio-
considerado um obstáculo de muito difícil 1963). De igual modo, na sequência do grande nal de Etnologia do Dr. Leite de Vasconcellos
superação com as tecnologias navais antigas. terramoto de 1755 e da turbulência costeira (como então se chamava aquele que hoje é o
O facto de uma obra literária tardia, já do sé- gerada pelo imenso tsunami que lhe esteve Museu Nacional de Arqueologia) ali realizava
culo iv, mas que usou fontes muito anterio- associado, os eruditos notaram a revelação trabalhos. Contudo, como já foi devidamen-
res, a Orla Marítima, de Rufo Festo Avieno, de antigas construções submersas nas cos- te sublinhado por outros autores, não se tra-
mencionar uma rota terrestre entre as zonas tas algarvias, como no lugar da Boca do Rio tou verdadeiramente de uma intervenção
meridionais da Península e o estuário do (Vila do Bispo). No mesmo sentido, apontava de arqueologia subaquática no sentido em
Tejo,1 era invocada como prova dessas difi- a descoberta ocasional de cerâmicas antigas que hoje a entendemos, mas antes de uma
culdades, apesar de essa mesma obra cons- pesquisa mais ou menos aleatória de mer-
2 Estrabão, ca 63 a. C. - ca 24 d. C. – Geografia, III, 5, 11. gulhadores amadores, acompanhada por ar-
1 Avieno, Rufo Festo, ca 305- 375 – Ora Marítima, 178. 3 Plínio, o Velho, 23/24 - 79 – História Natural, II, 167. queólogos a partir da superfície. Sublinhe-se
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que de modo algum se trata de uma singulari- cuja recolha e ou documentação depende dos Depois de mais de meio século de registos,
dade lusa, uma vez que situações análogas se conhecimentos e da atenção do mergulhador, recolhas e observações, podemos ensaiar um
verificaram em outras paragens, designada- bem como da sua iniciativa de recolher e ou esboço do panorama das navegações atlân-
mente no sítio de Gran Congloué, Marselha, divulgar o achado. Por isso, tal como muitas ticas em época romana e suas relações com
uma referência emblemática das pesquisas outras situações em terra firme, a cartografia a área mediterrânea (Parker, 1992; Bombico,
subaquáticas de época romana (Parker, 1992, da sua distribuição é essencialmente a carto- 2011). Sublinhe-se que se trata de um ponto
p. 200-201). Neste local, mergulhadores grafia das áreas frequentadas por mergulha- de situação no âmbito do qual podemos re-
procederam à recuperação de cargas de dois dores mais informados ou mais atentos aos gistar alguns dados concretos, mas verificar
navios de época romana parcialmente so- artefactos antigos submersos, resultando tão também algumas estranhas lacunas, sobretu-
brepostos, orientados a partir da superfície ociosos quanto inútil qualquer ensaio de in- do porque estas observações se compaginam
por um arqueólogo. Estavam ainda longe os terpretação, para além da simples verificação com a crescente informação que vamos ten-
tempos em que a pesquisa submarina seria de que constituem expressivos exemplos da do sobre fluxos de mercadorias no interior do
realizada por arqueólogos mergulhadores. navegação atlântica romana. Império Romano, aferidos a partir dos regis-
A colaboração entre o Museu e o Cen- Sobre as áreas de concentração de ma- tos de «terra firme».
tro Português de Atividades Subaquáticas teriais cerâmicos ou de cepos de âncoras, já Quando os romanos chegaram às costas
prosseguiu até à década de 70 do século xx, haverá algo mais a dizer. No estado atual dos atlânticas da Península Ibérica, havia já uma
sempre no mesmo registo: mergulhadores conhecimentos, verifica-se uma apreciável longa história de navegações e contactos por
amadores que realizam recolhas e alguma su- densidade de cepos de âncoras de época ro- via marítima na fachada atlântica. Em diver-
pervisão arqueológica da atividade realizada mana em locais como as Berlengas (Alves, sos locais, desde a foz do rio Arade, junto
a partir de terra, sem nunca se ter dado uma et al., 1988-1989; Blot, et al., 2005; Bombico, a Portimão (Silva, et al., 1987; Diogo, et al.,
mudança qualitativa (CPAS). Assim, ao fim 2011) ou a área a sul do cabo Espichel, uma 2000), até às costas da Galiza (Naveiro, 1991),
de vários anos, foi possível reunir um vasto zona usualmente chamada «Mar de Ancão» com numerosos pontos no percurso intermé-
conjunto de materiais de época romana, so- (Maia, 1975; Alves, et al., 1988-1989; Bom- dio, como o cabo Sardão (Diogo, 1999) ou o
bretudo cerâmicas, em uma zona conhecida bico, 2011). Em qualquer dos casos, deverá estuário do Sado (Diogo; Alves, 1988-1989),
como «fundão de Troia», uma vasta depres- tratar-se de zonas de fundeadouro habitual, os acasos da pesca, do mergulho desportivo
são localizada no fundo do estuário do Sado, relacionadas com a espera de melhores con- ou algumas investigações têm documentado
com más condições de visibilidade, onde dições para o prosseguimento da navegação a presença de ânforas de tradição pré-roma-
existe uma grande acumulação destes mate- ou simplesmente de abrigo contra a intem- na, que constituem os expressivos documen-
riais. Alguns autores têm designado o local périe. São por isso mesmo elucidativos sobre tos dessas navegações gaditanas de que nos
como fundeadouro, o que se afigura plausí- rotas e práticas de navegação e, mais do que fala Estrabão.4
vel, embora a longa diacronia da ocupação da indícios de eventuais barcos naufragados, de- Com os inícios da conquista romana, nos
extremidade da península de Troia, que se es- verão simplesmente documentar episódios séculos ii-i a. C., começam a parecer nos fun-
tende desde o século i ao vi (pelo menos), par- associados às frequentes perdas de âncoras. dos marinhos ou fluviais as ânforas fabrica-
cialmente destruída pela ação das correntes, Já os locais onde se verifica apreciável con- das nas costas ocidentais da Península Itálica
possa sugerir múltiplas causas para a imen- centração de ânforas poderão indicar a pre- que transportavam alimentos destinados a
sa concentração de vestígios que ali se veri- sença de embarcações naufragadas com as apoiar o esforço de guerra romano. Uma
fica (CPAS; Cardoso, 1978; Fonseca, 2004). respetivas cargas. Naturalmente, para que tal vez mais, desde as costas algarvias, nomea-
Durante este período de tempo, e à medi- suspeita se confirme, são necessárias várias damente na foz do Arade (Silva, et al., 1987;
da que se popularizava o mergulho com es- condições. Em primeiro lugar, a homogenei- Diogo, et al., 2000), próximo do estuário do
cafandro autónomo, foi crescendo o número dade cronológica dos materiais identifica- Sado (Cardoso, 1978), nos fundos do baixo
de coleções de artefactos de época romana dos, ou seja, se encontramos várias ânforas Tejo (Diogo, 1987; Diogo, Alves, 1988-1999;
encontrados nas costas portuguesas. Na sua da mesma época, da mesma proveniência Quaresma, 2005), no litoral de Viana do
esmagadora maioria, as recolhas incluíam ou do mesmo tipo, poderemos alvitrar que Castelo (Díaz Alvarez, 1984) ou na ria de
os grandes contentores cerâmicos de trans- se tratará de um carregamento homogéneo Vigo (Díaz Alvarez, 1984; Naveiro, 1991; 1996),
porte de alimentos, as ânforas e os cepos de pertencente a uma embarcação naufragada; multiplicam-se os achados destes conheci-
chumbo que compunham as âncoras roma- se, pelo contrário, a observação conclui se- dos contentores de transporte do vinho itá-
nas. A geografia da distribuição dos exempla- rem exemplares de diferentes épocas, mui- lico. Como não poderia deixar de ser, a sua
res conhecidos correspondia, pode dizer-se, to dificilmente se poderá tratar de um único presença em meio flúvio-marinho acompa-
a duas categorias de situações: os achados barco afundado. Sublinhe-se, porém, que a nha a multiplicação dos materiais análogos
isolados e as áreas de especial concentração. identificação categórica de um antigo barco identificados em terra firme. Em conformi-
Das primeiras, pouco haverá a dizer. Re- depende sobretudo da identificação de restos
sultam quase sempre de achados fortuitos, das madeiras de que se compunha. 4 Estrabão, v. nota 2.