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DOI: 10.1590/1413-812320141912.

02292013 4829

Os desafios da participação e da cidadania nos sistemas de saúde

revisão review
The challenges of citizenship and participation
in the health systems

Mauro Serapioni 1

Abstract The themes of citizen participation and Resumo Os temas da participação cidadã e da
citizenship have assumed great relevance in pub- cidadania têm assumido grande relevância nas
lic policy in most countries of the world. In this políticas públicas da maior parte dos países do
article, after briefly summarizing the main stages mundo. Neste artigo, após ter brevemente resu-
of development of the concept of citizenship, the mido as principais etapas do desenvolvimento do
prominence of social participation as a practice conceito de cidadania e ter ilustrado a preeminên-
of citizenship will be depicted. Next, the potential cia da participação social como sua prática, se-
and limits of deliberative approaches established rão analisadas as potencialidades e os limites das
to promote new strategies of citizens’ participa- abordagens deliberativas utilizadas para promo-
tion in health will be analyzed. The paper will ver novas formas em saúde. Sucessivamente serão
then focus on critical aspects that contribute to enfocados outros aspetos críticos que contribuem
reducing or hindering the exercise of citizenship para reduzir o exercício dos direitos de cidadania,
rights, including: the issue of representation un- nomeadamente: a questão da representatividade,
derpinning the citizen participation methods; the que subjaz aos métodos de participação dos cida-
issue of the influence of participatory devices in dãos; o tema da influência da participação nos
decision-making processes; and the limited expe- processos de decisão; a limitada experiência e o
rience and interest in assessing the effectiveness of escasso interesse em avaliar a efetividade da par-
citizen participation in the health sector. ticipação no sector da saúde. Em conclusão, serão
Key words Citizens’ participation, Citizenship, focalizados os principais desafios da participação
Health systems, Deliberative approaches, Evalua- e da prática da cidadania nos sistemas de saúde.
tion of participation Palavras-chave Participação dos cidadãos, Cida-
dania, Sistemas de saúde, Abordagens deliberati-
vos, Avaliação da participação

1
Centro de Estudos Sociais,
Universidade de Coimbra.
Colégio S. Jerónimo Apt
3087, Sé Nova. 3001401
Coimbra Portugal.
mauroserapioni@ces.uc.pt
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Introdução usuários. Ao mesmo tempo, foram introduzidas


uma série de disposições destinadas a proteger e
Os temas da participação e da cidadania têm as- ampliar os direitos individuais dos pacientes.
sumido grande relevância nas democracias oci- A Organização Mundial da Saúde tem reite-
dentais, tendo-se multiplicado, nos últimos anos, radamente apoiado esta estratégia, enfatizando
as iniciativas de participação provenientes da e promovendo a participação dos cidadãos em
sociedade civil. O denominador comum destas todos os documentos publicados nos últimos
iniciativas tem sido o de exercer uma forte pres- anos. A participação e o empoderamento dos
são sobre o setor público, com o objetivo de re- cidadãos tornaram-se palavras-chave nos tex-
formular o sistema de direitos sociais, entendidos tos de reforma da maioria dos países. Tem sido
não mais como conjunto de direitos planejados apontada, portanto, a necessidade de incremen-
e prestados pelo estado, mas como demanda de tar a responsabilidade e transparência das novas
contribuição ativa na definição das políticas so- formas de gestão dos serviços de saúde por meio
ciais e serviços públicos. Esta segunda tradição de de instâncias de envolvimento e participação dos
cidadania promove um modelo de participação usuários. Entretanto, os resultados de inúmeras
ativa dos cidadãos nas instituições e nos serviços pesquisas indicam que, apesar das boas intenções
públicos1-3. De fato, a partir dos últimos anos do e de alguns esforços louváveis empreendidos, a
seculo XX, houve uma mudança substancial na participação, por várias razões, ainda tarda em
abordagem à cidadania: de um discurso base- entrar na praxis dos serviços de saúde.
ado em um conjunto de direitos civis, políticos Neste artigo, após ter brevemente resumido
e sociais, de acordo com a elaboração teórica de as principais etapas do desenvolvimento do con-
Marshall4, para um conceito de cidadania que vai ceito de cidadania e após ter ilustrado a preemi-
além da reivindicação dos direitos consagrados nência da participação social como prática da
na Constituição. cidadania, serão analisadas as potencialidades e
A nova perspetiva de cidadania, definida os limites das abordagens deliberativas utilizadas
como “cidadania ativa”, tornou-se uma dimen- para promover novas formas de cidadania em
são importante da política social e de saúde do saúde. Sucessivamente serão enfocados outros
governo do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha aspetos críticos que contribuem para limitar ou
desde o fim da década de 90, em oposição ao obstaculizar o exercício dos direitos de cidadania,
sentido tradicional de cidadania5. Embora não nomeadamente: a questão da representatividade,
se deva subestimar as críticas de alguns autores que subjaz aos métodos de participação dos ci-
britânicos à nova abordagem6,7, considerada uma dadãos e os temas da influência dos dispositivos
estratégia para legitimar as reformas econômicas participativos e da escassez de estudos avaliativos.
e gerenciais introduzidas no sistema de saúde nos
anos 90. Para Milewa et al.8, a ênfase na participa- Participação social como prática
ção comunitária dos governos conservadores e, da cidadania
sucessivamente, também dos governos do parti-
do trabalhista, reflete, na verdade, o reforço do O primeiro conceito de cidadania a que nos
protagonismo dos gestores (active management) referimos – definido como um conjunto de di-
no sistema de saúde, ao invés de promoção de reitos garantidos progressivamente aos membros
“cidadania ativa” (acitve citizenship). Este proces- da sociedade – foi desenvolvido por Marshall4em
so, conforme Calnan e Gabe9, “deu mais poder seu famoso livro publicado em 1950, Citizenship
aos gestores ao invés de aos pacientes”. and Social Class, e incluía três dimensões:
No entanto, apesar de algumas formas de re- 1. Cidadania civil, os direitos de liberdade da
tórica política sobre o envolvimento de usuários pessoa que tiveram um desenvolvimento signifi-
e pacientes, o novo sentido de cidadania põe ên- cativo no século XVIII;
fase na comunidade, bem como nas obrigações 2. Cidadania política, ou os direitos de parti-
do indivíduo, e promove um modelo de partici- cipar na vida política, conquistados pelas classes
pação ativa dos cidadãos nas instituições e ser- trabalhadoras no curso da luta pela igualdade
viços públicos. Nos últimos 15 anos, este debate política no século XIX; e
tem-se expandido na maioria dos países ociden- 3. Cidadania social, que consiste no reconhe-
tais. Nesse sentido, aumentou a demanda para cimento e ampliação durante o século XX de uma
uma melhor qualidade da atenção à saúde, para série de direitos sociais em períodos de desempre-
uma maior personalização e humanização dos go e de doença, para permitir às pessoas participar
cuidados a prestar e para a valorização da voz dos do bem-estar econômico e social da comunidade.
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Apesar da sua grande influência, a perspetiva e a participação de todos. O reconhecimento das
teórica de Marshall foi muito criticada10-12. Foi diferenças, aponta a autora, não reduz a função
criticada por sua abordagem evolutiva à cida- integradora da cidadania, mas facilita a inclusão
dania que prefigura a existência de uma cadeia dos direitos de grupos multiculturais e desfavo-
sequencial entre direitos civis, políticos e sociais recidos.
muito rígida e incapaz de compreender outros Outros teóricos alargaram ainda mais o âm-
caminhos para a cidadania10,12; por não ter consi- bito dos direitos previstos por Marshall, exigindo
derado o contexto mais amplo dentro do qual de- o reconhecimento - entre os direitos fundamen-
senvolveu-se a política de bem-estar na Grã-Bre- tais do cidadão - da mesma participação nos pro-
tanha durante o período da pós-guerra; por ter cessos de decisão nas esferas social, econômica e
analisado a cidadania como um processo irrever- cultural. Segundo Barbalet15, os direitos sociais
sível nas sociedades contemporâneas, enquanto a representam as pré-condições da participação.
experiência tem evidenciado que os direitos do Esta perspetiva de análise tenciona promover
Estado-Providência são reversíveis e não garanti- uma forma mais ativa dos direitos de cidadania
dos uma vez por todos (como está demostrando do que os tradicionalmente associados com o es-
a crise financeira que está desestruturando o es- tado do bem-estar do pós-guerra, através da pro-
tado social dos países da Europa do sul); por ter moção de estratégias para envolver os usuários, e
adotado uma teoria da cidadania sem ter desen- do fortalecimento da responsabilização e trans-
volvido, em paralelo, uma teoria do Estado; por parência dos serviços públicos. Esta abordagem
deixar de enfatizar a ideia de que, historicamente, enfatiza a participação ativa dos cidadãos na go-
o crescimento da cidadania social foi o resultado vernança do sistema de saúde e nas decisões po-
de violência e ameaças de violência que levaram líticas com a finalidade de promover o bem-estar
o Estado na área social como um estabilizador do de toda a comunidade.
sistema social11. O desenvolvimento da cidadania participa-
Nesta linha crítica é interessante a análise de tiva tem sido interpretado como uma reação ao
Carvalho12 que destaca como ainda hoje muitos individualismo promovido pela abordagem li-
direitos civis, que representam a base da sequên- beral dominante à cidadania. Esta corrente, de
cia de Marshall, são inacessíveis à maioria da po- acordo com Lister16, reduz as pessoas a indivídu-
pulação, embora isso não tenha impedido a aber- os atomizados e passivos portadores de direitos.
tura de novos caminhos para a cidadania, “como Assim, a cidadania, de projeto político coletivo,
demostram os casos da Inglaterra, da França e da transforma-se numa atividade para o exercício
Alemanha”. Também no Brasil, realça Carvalho12, dos interesses econômicos individuais. Sobre o
a cronologia desenhada por Marshall foi inver- mesmo tema, Crouch17 salienta que os direitos de
tida: antes vieram os direitos sociais, depois os cidadania podem ser adquiridos através da ação
direitos políticos e finalmente os direitos civis. coletiva, enquanto “obtê-lo como clientes signifi-
De uma perspetiva teórica radical, alguns ca comprá-los”.
estudiosos reivindicaram a ampliação da tríade Na era da biomedicina, da biotecnologia e
de direitos reconhecidos no conceito de cidada- da genética, nos últimos anos um novo tipo de
nia (civil, política e social), para incluir outros cidadania está sendo reivindicado no campo da
direitos e outras demandas. Uma abordagem saúde, que alguns autores têm denominado ‘cida-
alternativa à teoria da cidadania, por exemplo, dania biológica’18,19 ou ‘justiça sanitária’20. Nesta
surgiu na década de 90 a partir do movimento nova era biológica, realça Rose18, nem todos têm
feminista e de outros movimentos sociais, e de- igualdade de cidadania e existem diferentes ideias
fendeu a necessidade de remover os mecanismos e práticas de cidadania que podem ser observadas
que excluem as demandas das minorias e grupos na crescente importância dada a corporalidade e
marginalizados13. Neste prisma são interessantes às “novas tecnologias que intervêm no corpo em
as considerações de Young14: “No final do século níveis que vão desde o superficial (cirurgia esté-
XX, quando os direitos de cidadania foram for- tica) ao molecular (terapia genética)”18. Adriana
malmente estendidos a todos os grupos nas so- Petrina19, por exemplo, nos estudos realizados so-
ciedades capitalistas liberais, alguns grupos ainda bre o desastre nuclear de Chernobyl, tem desen-
se sentem tratados como cidadãos de segunda volvido o conceito de cidadania biológica para
classe”. Em outras palavras, Young14 critica a cida- reivindicar os direitos dos cidadãos expostos às
dania universal, baseada na ideia de assimilação e contaminações radioativas ao acesso aos cuida-
reivindica uma “cidadania diferenciada” como a dos médicos, ao apoio social e legal e ao ressarci-
melhor estratégia para alcançar a inclusão social mento dos danos. Neste prisma, a cidadania bio-
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lógica pode incorporar a demanda por formas destaca o indivíduo e seus direitos, a outra, a co-
de bem-estar social e a adoção ou interrupção munidade e as obrigações do indivíduo para ela;
de determinadas políticas ou ações18. A cidadania uma enfatiza a cidadania como um status, a outra
biológica e a justiça sanitária podem ser reivindi- a cidadania como prática.
cadas seja individualmente, mobilizando as redes Recentemente, tem avançado a ideia de co-
de relacionamentos dentro e fora das instituições nectar essas duas principais tradições de cidada-
e organizações20 e seja coletivamente por meio do nia, que animaram e polarizaram o debate nos
ativismo de grupos e associações que possuem últimos anos. De acordo com Lister16, a cidada-
uma vasta experiência de mobilização e recusa nia como participação pode ser considerada uma
do estado de pacientes passivos18. expressão da ação humana (human agency) na
Osler e Starkley21 propuseram uma definição arena política, mas é a cidadania como titulari-
multidimensional do conceito de cidadania ao dade de direitos que dá às pessoas a capacidade
introduzir uma terceira dimensão: a cidadania de agir. Em outras palavras, ser um cidadão signi-
como um sentimento (feeling). Segundo os au- fica desfrutar os direitos necessários para a ação
tores, a cidadania como status descreve a relação e para a participação social e política. Agir como
entre os indivíduos e o Estado, assim como o cidadãos, realça Lister16, “envolve a realização de
conjunto de direitos e garantias para proteger os todo o potencial do status”. No entanto, “quem
cidadãos que, em troca, contribuem para a cober- não cumprir esse potencial não deixa de ser um
tura dos investimentos coletivos através dos im- cidadão”. A experiência de participação, assinala
postos. A cidadania como sentimento se preocupa Wharf Higgins23, reforça a capacitação pessoal.
com o sentido de pertença à comunidade. Ainda Através da participação na vida da comunidade.
quando os indivíduos têm o estatuto de cidadãos Ou seja, praticando cidadania, pode-se ganhar
– apontam Osler e Starkley21 – há graus diferentes um senso de controle sobre a própria vida e um
de identificação com os valores nacionais. Exis- senso de pertencimento. Em essência, um senti-
tem, de fato, várias barreiras formais e informais mento de capacitação (empowerment).
que dificultam a realização da cidadania plena, Apesar da participação dos cidadãos ser am-
particularmente entre mulheres e certos grupos plamente reconhecida como uma dimensão fun-
sociais e étnicos. A este respeito, bem conhecidas damental da cidadania, os resultados obtidos até
são as desigualdades sociais de saúde produzidas agora nessa área têm sido bastante modestos. Na
pelas barreiras econômicas e culturais. A cida- verdade, nem todos os cidadãos têm os meios
dania como prática permite à pessoa agir tanto para fazer valer os seus direitos e vantagens de
individualmente, como também em conjunto cidadania e muitas vezes aqueles que podem ser
com outros, a fim de efetuar as mudanças neces- percebidos como os principais beneficiários da
sárias ou influenciar os decisores. Nesta perspe- participação da comunidade nos cuidados de
tiva, o objetivo da cidadania não pode se limitar saúde são os menos propensos a se envolver nes-
ao simples exercício do direito de voto, mas deve tas iniciativas23.
também incluir a participação nas decisões que
afetam a vida dos próprios cidadãos. Portanto, O desafio da participação deliberativa:
não é suficiente adquirir a titularidade dos direi- potencialidades e limitações
tos, mas é a participação ativa que permite que
as pessoas exerçam os seus direitos. Mais do que Na última década, o debate sobre participa-
uma identidade – observam Cornwall et al.22 –, a ção tem apontado a necessidade de adotar novas
cidadania é algo “que é posta em prática, criada abordagens para reforçar a interação e o diálogo
e recriada de maneiras diferentes e em diferen- entre cidadãos e seus representantes, de uma par-
tes espaços”, e intimamente ligadas às diferentes te, e profissionais e gestores, da outra parte. Em
formas em que as pessoas se constituem como outras palavras, hoje em dia, a prioridade não é
atores sociais no território onde agem. mais a de legitimar a participação dos cidadãos
Como pode ser observado a partir da análise nos sistemas de saúde (preocupação advertida
dos autores consultados, o conceito de cidadania nos anos 80 e 90), mas a de melhorar a quali-
é carregado com valores e tem sido alvo de inten- dade e a efetividade da participação, através da
so debate entre os sociólogos e cientistas políti- promoção de estratégia de inclusão e acesso em
cos. Para alguns, a cidadania envolve uma série de favor de determinadas categorias de cidadãos,
direitos individuais, enquanto para outros é vista que geralmente são excluídas não só dos proces-
como um conjunto mais amplo de responsabili- sos de decisão, mas também da sociedade num
dade social e civil. Duas tradições diferentes: uma sentido mais amplo. Neste sentido, nos últimos
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anos, os métodos deliberativos têm recebido um entendimento”. Esta perspetiva está suscitando
interesse crescente enquanto estratégia inovado- um grande interesse também no setor sanitário,
ra para fortalecer a participação cidadã. Na litera- onde se percebe a necessidade de criar uma ‘esfe-
tura sociológica e das ciências políticas dos países ra pública’ apropriada1, para incentivar o diálogo
anglo-saxónicos, o termo ‘deliberativo’ expressa entre os diferentes atores do sistema de saúde.
a possibilidade de debater e analisar, cuidadosa- Entre os métodos mais utilizados para imple-
mente junto com outros participantes, determi- mentar os processos deliberativos importa des-
nadas questões e aspetos críticos, mas não inclui tacar os seguintes: Júris de cidadãos, Workshops
necessariamente a participação direta nos pro- de cidadãos, Unidades de planejamento, Painéis
cessos de tomada de decisão. Ou seja, refere-se às de cidadãos, Conferências de consenso, Processos
dimensões normativas do diálogo e da busca do de votação deliberativa (deliberative poll) e Gru-
entendimento e do consenso. Enquanto no Brasil pos focais deliberativos. Comum a todos eles é o
a função deliberativa dos Conselhos de saúde diz elemento deliberativo que inclui alguns aspetos
mais sobre o poder de tomar decisões vinculati- essenciais, como: prover as informações sobre o
vas, decisões que podem ser alcançadas também assunto em discussão a todos os participantes;
sem consenso24-27. Neste prisma é interessante a descrever os assuntos analisados no idioma dos
análise de Avritzer28 sobre a evolução do “concei- cidadãos comuns (ordinary citizens); considerar
to decisionístico de deliberação para um conceito atentamente os pontos de vista dos outros par-
argumentativo de deliberação”. ticipantes; estimular a discussão para alcançar o
Por democracia deliberativa se entende aque- consenso ou para aproximar as diversas posições
le processo decisional baseado na discussão e sobre o assunto.
análise – preferentemente em pequenos grupos Entre os benefícios dos processos deliberati-
– dos diversos argumentos colocados pelos par- vos realçados, cabe assinalar os seguintes28,30,32-34:
ticipantes líberos e dotados de pares oportunida- a capacidade de desenvolver uma opinião escla-
des29. Os métodos deliberativos, que representam recida, a potencialidade para alterar as opiniões
uma forma de participação, oferecem aos indi- dos participantes; a capacidade de aumentar
víduos a oportunidade de expressar seus pontos o nível de tolerância e compreensão entre gru-
de vista, conhecer e compreender as posições pos, para aceitar os diversos pontos de vista; um
de outros participantes, identificar preferências maior envolvimento dos cidadãos nas políticas
e problemas compartidos, até chegar a adquirir de saúde; uma oportunidade para conhecer as
um juízo fundamentado sobre temas de relevân- necessidades de saúde e valorizar as próprias ex-
cia pública. A prática deliberativa supõe obriga- periências; um mecanismo idôneo para produzir
toriamente um processo coletivo de tomada de decisões coletivas e para aumentar a legitimida-
decisão, em que os participantes interessados na de das decisões. Enfim, há um grande otimismo
discussão dos temas enfrentados têm a oportu- acerca das potencialidades e efeitos positivos dos
nidade de convergir sobre uma opinião compar- métodos deliberativos, tanto nos participantes
tilhada, dando voz e relevância a todos os argu- como no sistema de saúde. Porém, são ainda
mentos apresentados. A democracia deliberativa poucos os estudos que têm examinado atenta-
focaliza, assim, os processos comunicativos entre mente sua efetividade e capacidade de influenciar
decisores políticos e cidadãos, a formação das os decisores políticos30,35,36. Por exemplo, os resul-
opiniões e das vontades que precedem a votação tados das avaliações dos Júri de Cidadãos (JC –
sobre uma determinada decisão. Citizens Juries) – um método deliberativo muito
Contudo, cabe destacar, como ressaltam utilizado nos sistemas de saúde de Reino Unido,
Abelson et al.30, que deliberação é muito mais Canadá e Austrália e bastante conhecido em nível
que uma simples discussão de assuntos. O pro- internacional – têm mostrado diversas potencia-
cesso deliberativo também se preocupa com o lidades, mas também alguns pontos críticos37-39.
resultado da discussão, ou seja, das decisões e re- Sem dúvida, o método de envolvimento adotado
comendações propostas e do processo que gera pelos JC representa um ponto de força. Muitos
esse resultado. estudiosos têm destacado a sua “superioridade”
A ideia de democracia deliberativa é muito em relação aos tradicionais dispositivos adotados
antiga, embora nos últimos anos tenha obtido no setor da saúde (questionários, grupos focais,
mais destaque graças a influência da obra de Jür- conferências, etc.), em virtude da sua capacidade
gen Habermas31, em particular os conceitos de de estimular a reflexão dos jurados e elaborar re-
“situação discursiva ideal”, “formação discursiva comendações para os gestores38. Entretanto, im-
do consenso” e “ação comunicativa orientada ao porta assinalar também alguns constrangimen-
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tos: a) não há garantia que as recomendações dos Representatividade e inclusão


JC sejam adotadas pelas autoridades de saúde36-38. das instâncias de participação
Isso significa que o modelo dos JC, como de ou-
tros modelos de participação consultiva, deixa Outro aspeto problemático, já evidenciado
os usuários fora da arena política, na espera que pelas investigações realizadas nos anos noven-
suas sugestões sejam incorporadas nos processos ta2,45, refere-se à representatividade das instâncias
de decisão. b) Baixo nível de institucionalização de participação ativadas. Muitos estudos têm
no âmbito do sistema de saúde, tratando-se de demonstrado que nem sempre os representantes
uma forma de participação ocasional ativada por dos usuários e as associações de pacientes conse-
iniciativa das autoridades de saúde. A participa- guem ser representantes das necessidades de toda
ção pública, como afirma Rigge40, não deve ser a população e, sobretudo, dos setores sociais mais
entendida como um exercício isolado (ad-hoc desfavorecidos. É certo que, no caso da participa-
participation), mas como uma componente vital ção social, não se pode falar de representatividade
para garantir a qualidade do sistema de saúde. As no sentido próprio do termo, na medida em que
avaliações até agora realizadas, sobre o envolvi- não existem mecanismos formais de delegação,
mento dos cidadãos32, têm evidenciado o valor através dos quais grupos ou categorias de usuá-
da continuidade da participação (on-going parti- rios escolhem seus representantes. No caso das as-
cipation). Somente desta forma é possível estabe- sociações de pacientes, por exemplo, como apon-
lecer as bases para o desenvolvimento de formas tam Bovenkamp et al.46, não existe uma seleção
mais avançadas de participação e de cidadania formal das associações que podem participar nos
em saúde. c) Os custos financeiros excessivos que processos de tomada de decisões. Teoricamente,
comportam o planejamento e a execução dos todas podem participar. Além disso, é difícil ar-
JC37-39. De acordo com as estimativas de Iredale gumentar que tais fóruns podem representar a
e Longley38, a organização de um JC custa cerca todos os cidadãos de uma determinada área ou a
de 25.000 libras, incluindo as despesas para re- todos os usuários de um serviço, considerando a
crutar os jurados, remunerar os testemunhos e proporção limitada de pessoas e associações que
os moderadores, e para transporte, alimentação participam ativamente nas atividades47,48. Nesse
e alojamento. d) Assimetria de poder. Alguns es- sentido, Contandriopoulos49 afirma que os par-
tudos têm mostrado que a centralidade do poder ticipantes envolvidos em mecanismos de partici-
não foi redimensionada30 e que os participantes pação pública “são autodesignados ou nomeados
interagem em situações e contextos caracteriza- através de procedimentos formais de representa-
dos pela distribuição desigual de poder41. Tais in- ção débil”. Na mesma linha, Lomas45 demonstra
vestigações têm questionado um pré-requisito da que os membros escolhidos para participar não
democracia participativa, ou seja, a capacidade são, do ponto de vista social e demográfico, re-
de excluir o poder do diálogo deliberativo e de presentativos da comunidade. Neste caso, se trata
reduzir as desigualdades entre os participantes. de um déficit de “representação descritiva”50, que
Essas desigualdades são geradas tanto pelas dife- faz referência às características demográficas, tais
renças materiais e de classe entre os participan- como sexo, idade, etnicidade, educação e rendi-
tes quanto pela disparidade de informações e de mento. Contudo, há que considerar também o
conhecimentos entre peritos e cidadãos. Referin- déficit de “representação substancial”50, quando
do-se à experiência do júri de cidadão de Bristol, os membros designados – embora representem
Gooberman-Hill et al.39 mostraram que há uma as diversas categorias da população ou da área
clara assimetria de poder entre os patrocinadores geográfica – não perseguem os reais interesses
do processo deliberativo (que detêm a informa- daqueles que representam. De fato, como assi-
ção) e os jurados. nalam vários estudos brasileiros25,43,44,51,52, uma
A preocupação pela concentração das infor- representatividade efetiva e responsável, supõe a
mações nos gestores e nos técnicos e pela relação ativação de canais de comunicação bidirecionais
assimétrica entre os conselheiros usuários e os entre as pessoas nomeadas e sua base de apoio.
demais representantes é um tema constantemen- A situação não é melhor no caso dos mé-
te aflorado nas pesquisas realizadas com os Con- todos deliberativos cujas virtudes são também
selhos Municipais de Saúde no Brasil25,42-44. questionadas pelo déficit de representatividade
que deveria constituir um elemento fundamen-
tal da democracia participativa. O envolvimento
de pequenos grupos de participantes submete
os processos deliberativos a fortes críticas30. Vá-
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rios estudos têm enfatizado o paradoxo da par- sistemas de saúde, os mecanismos participativos,
ticipação pública que poderia contribuir para o tanto os deliberativos como os mais tradicionais,
aumento das desigualdades de saúde, na medida devem mostrar a capacidade de gerar recomen-
em que os grupos sociais vulneráveis, os que Ti- dações e exercer algumas formas de influência
motijevic e Raats53 definem cidadãos “difíceis de nos decisores políticos25,55,60. Blondiaux e Sinto-
alcançar” (hard-to-reach citizens) – imigrantes, mer61, por exemplo, têm assinalado a debilidade
idosos, pessoas com problema de saúde mental e, da relação entre democracia deliberativa e pro-
em geral, as pessoas com escassas competências cessos de decisão: “Porque ser envolvidos se de-
linguísticas – que participam menos que as pes- pois falta a perspetiva da ação? Como convencer
soas formadas e mais integradas socialmente27. as pessoas a participar sem garantir que seus pon-
Existe o risco, que a deliberação pública se torne tos de vista serão utilizados?”. Na mesma linha,
uma prática reservada aos grupos mais favoreci- Fung e Wright41 afirmam que os investigadores
dos, que assim podem consolidar suas posições e os profissionais deveriam avaliar as experiên-
sociais e adquirir uma maior dotação de capital cias de participação não somente pela qualidade
social34, reforçando os padrões existentes de ex- dos processos, mas também pelos efeitos. Esta é
clusão social24. a maior preocupação de muitos estudiosos que
O conceito de cidadania, incluindo o origi- identificam a avaliação dos dispositivos de envol-
nalmente desenvolvido por Marshall4, implica vimento dos cidadãos como uma área ainda des-
um conjunto de direitos igualmente desfrutados cuidada na literatura sobre participação social,
por todos os membros da sociedade. inclusos os métodos deliberativos30,35,36. A neces-
De acordo com Miller54, nos escritos de Mar- sidade de estudos que demonstrem a efetividade
shall dos anos 50 se percebe a preocupação pelas dos mecanismos participativos é essencial para
desigualdades de classe e pelo seu impacto sobre garantir o uso apropriado dos recursos públicos,
a cidadania, que o autor observou na sociedade incluindo o tempo e os esforços dos cidadãos que
britânica da época. A este respeito, salienta Mil- raramente foram contabilizados entre os gastos
ler54, o conceito de cidadania em Marshall impli- da participação. Esta preocupação não era per-
ca uma potencial distribuição do rendimento. Os cebida nas investigações publicadas nos anos 90,
cidadãos são de fato titulares de benefícios, tais quando o desafio era o de legitimar a prática da
como a saúde e a educação de seus filhos, que po- participação e realçar os benefícios desta prática.
deriam não ser capazes de suportar com os pró- Sobre isto, é muito interessante a revisão de
prios recursos financeiros. A cidadania em saúde, Crawford et al.62 dos artigos publicados entre
alega Milewa7, assume que o Estado é capaz de Janeiro 1966 e Outubro de 2000, uma vez que,
garantir a igualdade do direito à saúde. O direito dos 42 artigos considerados na análise, nenhum
à saúde e a extensão deste direito é o resultado do revelou preocupação em “avaliar os efeitos do en-
grau de inclusão da cidadania em um sistema de volvimento dos pacientes na saúde, na qualidade
saúde. Em outras palavras, a equidade é o primei- dos cuidados prestados ou na satisfação de quem
ro dos direitos dos cidadãos55. os utiliza”. Para os autores, isto significa que os
Neste prisma, as instituições de saúde são cri- efeitos da participação sobre a qualidade e efeti-
ticadas pelo fato de não brindar oportunidades vidade dos serviços são, portanto, desconhecidos.
adequadas e mecanismos apropriados aos cida- Recentemente, também Mitton et al.32 em-
dãos que não dispõem de recursos econômicos preenderam uma análise relevante ao nível de
e culturais para participar nos processos de to- análises empíricas registradas entre 1981-2006,
mada de decisões32,50,56. Recomenda-se, portanto, mais concretamente sobre a implicação dos usu-
a implementação de dispositivos adicionais para ários na definição das prioridades em saúde e na
se alcançarem grupos distintos de cidadãos24, de distribuição de recursos. Os resultados da aná-
forma a garantir uma adequada representação lise de 175 artigos confirmaram, uma vez mais,
dos grupos sociais desfavorecidos57. o escasso interesse pela avaliação da efetividade
da participação em saúde visto que: i) dois terços
Influência e efetividade da participação dos artigos analisados concluem que o processo
participativo se considera bem-sucedido apesar
Apesar de a participação representar um va- da escassez da avaliação; ii) somente em 6% dos
lor em si mesma, na medida em que exerce uma casos se admitem que o envolvimento dos usu-
relevante função de educação à democracia58, é ários foi mal sucedido; iii) 75% das avaliações
importante contemplar também os resultados realizadas adotaram critérios baseados no ‘pro-
obtidos pela ação participativa41,59. No caso dos cesso’ participativo e somente em 25% critérios
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baseados nos resultados da participação; iv) as opiniões sobre o que já está decidido? Ou devem
experiências consideradas bem-sucedidas não ser envolvidos na tomada de decisões?
aparecem relacionadas com os processos de ava- Infelizmente, estas questões conceituais e
liação efetuados. metodológicas têm recebido pouca consideração
A avaliação das experiências participativas por parte da literatura acadêmica e isto tem per-
dos cidadãos é ainda mais urgente face à sua mitido que qualquer atividade de envolvimento
grande proliferação nos últimos anos, sobretu- dos cidadãos pudesse ser considerada exitosa66.
do a partir de novos métodos de promoção da As reflexões de muitos investigadores sobre
participação. É também escasso o conhecimento a avaliação da participação convergem na ne-
que dispomos sobre a qualidade e efetividade da cessidade de definir o conceito de efetividade e
participação em saúde e se os distintos métodos os critérios mais adequados para a avaliação das
permitem alcançar os diversos objetivos inclu- experiências de participação53,68,69. Muitas das de-
ídos no conceito de participação pública. Já no finições encontradas reconhecem a complexidade
final dos anos 70, Rosener63 observou que “a falta e a multidimensionalidade do sucesso destes pro-
de conhecimento sobre a efetividade da partici- cessos e adotam, consequentemente, múltiplos
pação está provavelmente relacionada com o fato critérios: critérios baseados no processo, no resul-
de que poucos estudiosos reconhecem esta com- tado ou em ambos. Na revisão efetuada por Rowe
plexidade”. Mais tarde, Rosener64 veio a identifi- et al.69, por exemplo, cerca da metade dos estudos
car quatro problemas inerentes a realização deste publicados adotaram critérios de resultado e a
tipo de avaliação: i) o conceito de participação é outra metade critérios baseados no processo.
complexo e está carregado de valores; ii) não há Como se pode observar na literatura sobre o
muitos critérios para julgar o êxito e os fracas- assunto, as preocupações sobre o impacto da par-
sos de uma estratégia de participação; iii) não há ticipação social e da falta de práticas de avaliação
acordo sobre os métodos de avaliação; iv) os ins- entraram, há alguns anos, no debate acadêmico
trumentos de medida são poucos fiáveis64. e profissional. No entanto, ainda hoje é possível
Trinta anos depois, Burton65 reitera o mesmo notar um desequilíbrio entre a quantidade de
questionamento sobre a dificuldade em avaliar tempo, de recursos e de energia que os governos
um conceito complexo como a participação pú- investem para envolver os cidadãos e os represen-
blica, que nem sempre é suficientemente defini- tantes da sociedade civil nos processos de decisão
do e compartilhado. Seguramente, a dificuldade pública e a atenção dispensada à avaliação da efi-
de desenhar modelos apropriados e rigorosos de cácia de tais esforços70. Torna-se, portanto, cada
avaliação é o fator responsável pelo ainda escas- vez mais urgente desenvolver um modelo robus-
so conhecimento sobre impacto dos diferentes to e confiável para avaliar o impacto da partici-
mecanismos de participação65. De fato, antes de pação social.
construir uma estratégia apropriada de avalia-
ção da efetividade, torna-se necessário clarificar
o que entendemos por participação pública e Conclusões
como seus benefícios são definidos teoricamente
e empiricamente. Na perspetiva da governança, o Estado deve rede-
Para isso, no entanto, é importante compre- finir a relação com a sociedade civil criando ca-
ender o que constitui um bom resultado de uma nais permanentes de negociação que promovam
prática participativa, assim como os processos a cidadania ativa através da institucionalização
que contribuem para alcançá-lo66. Por outras da participação cidadã nas decisões do governo.
palavras, a avaliação da efetividade requer uma Neste sentido, muitos países já implemen-
definição de êxito para as distintas práticas de taram métodos e dispositivos (conselhos, comi-
envolvimento dos cidadãos67. Nesse sentido, não tês, conferências, fóruns, etc.), para incentivar a
é suficiente desenvolver uma definição única de participação de representantes das associações e
êxito, já que na arena sanitária existe uma mul- da sociedade civil na elaboração de políticas pú-
tiplicidade de atores envolvidos e uma diversi- blicas. No contexto dos sistemas de saúde, este
dade de perspectivas sobre os objetivos da par- processo de reconhecimento dos direitos dos ci-
ticipação. Por exemplo, em relação às funções dadãos remonta aos anos 70, quando a Organiza-
que devem desempenhar os representantes dos ção Mundial de Saúde e a UNICEF apontaram a
cidadãos, cabe perguntar: Devem participar na participação como uma das diretrizes essenciais
difusão das informações? Devem expressar suas para garantir a Saúde para Todos até o Ano 200071.
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Hoje, olhando para a literatura sobre a par- do Paciente (Patient’s charter) – como mostram
ticipação em saúde, pode-se observar que há um as experiências internacionais – tem contribuído
amplo consenso sobre a importância de envolver para a redefinição dos usuários como consumi-
os cidadãos em diferentes momentos do processo dores individuais e não como cidadãos com uma
de produção de saúde. No entanto, apesar de o voz coletiva.
tema da participação ser um dos mais abordados O sentido de cidadania é desenvolvido – es-
pela literatura em saúde72, a análise da literatura creveu Valelly74 – por meio da participação dos
dos últimos anos tem mostrado uma contradição cidadãos em associações e ações cívicas, discus-
entre o discurso político (e, às vezes, a retórica) são, deliberação e análise de questões que afetam
sobre a participação dos cidadãos e a prática das a comunidade. Cidadania, continua o autor, exi-
instituições de saúde ainda pouco sensíveis às ge um aumento do diálogo coletivo e o reforço
contribuições do seu ambiente social. Para expli- das relações entre indivíduos e grupos.
car essa incongruência, a literatura enfoca vários Esta perspectiva desejável, no entanto, pres-
aspetos problemáticos que são associados tanto supõe a capacidade de deter o processo de “co-
às modalidades de funcionamento dos sistemas mercialização da cidadania” que, de acordo com
de saúde (ainda permeados por uma cultura or- Crouch17, está a devolver ao mercado uma gama
ganizacional burocrática) como ao insuficiente de serviços públicos (incluindo os de saúde) que
nível de capacitação (empowerment) necessário lhe tinha sido subtraído em meados do século
para apoiar o processo de envolvimento dos cida- XX. No caso da saúde, são óbvias as distorções
dãos56,73. Muitos estudos têm demonstrado que os resultantes de um sistema que deu prioridade ao
mesmos representantes dos usuários e das asso- critério da eficiência, em vez do critério da equi-
ciações de pacientes também encontram algumas dade, e que tem contribuído de forma significati-
dificuldades no desempenho das suas funções de va para acelerar a diluição da cidadania.
representação dos cidadãos. Estas situações críti- Como vimos no decorrer de nossa análise, a
cas, obviamente, contribuem para redimensionar presença de grupos sociais menos favorecidos e​​
ainda mais o potencial da cidadania, entendida de cidadãos que não dispõem de recursos eco-
como prática social que – como observamos nas nômicos e culturais para participar nos proces-
seções anteriores – confere aos cidadãos, titulares sos de tomada de decisões, e a expansão da área
de direitos, a capacidade de pôr suas próprias ne- das desigualdades minam as pré-condições para
cessidades e perspetivas de análise no centro do o desenvolvimento da prática da participação e
debate político e dos processos de decisão. da cidadania. Nesse sentido, existem fortes laços
Neste prisma, torna-se premente desenvolver entre as questões da igualdade, dos direitos e da
uma série de reformas, no âmbito dos sistemas participação.
de saúde, para dar novo impulso e vigor ao pro-
jeto de cidadania, entendido como participação
ativa no processo de decisão e na definição de
objetivos coletivos. Para este fim, é importante,
antes de tudo, superar a abordagem individualis-
ta típica da consumer satisfaction, muito utilizada
nos últimos anos em projetos de melhoramento
da qualidade do cuidado em saúde e que têm de-
monstrado a existência de diferentes formas de
entender a participação dos cidadãos. Eles po- Agradecimentos
dem estar envolvidos individualmente e passiva-
mente, como respondentes de um questionário Ao doutorando Ronaldo Teodoro dos Santos
para levantar seus níveis de satisfação com os (PUC Minas), pelos preciosos comentários, e à
serviços de saúde, mas – como argumenta Crou- doutoranda Edilene Mendonça Bernardes (USP
ch2 – neste caso trata-se de “um exercício muito Ribeirão Preto) e à mestre Edilma Maria Marcos
pobre, se o objetivo é desenvolver um espaço de do Nascimento pela revisão do texto em portu-
cidadania ativa”. A própria introdução da Carta guês.
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Artigo apresentado em 15/03/2013
Aprovado em 25/03/2013
Versão final apresentada em 26/03/2013

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