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SELMA CIORNAI
(Originalmente publicado em inglês em The Gestalt Journal, Vol.XVIII, Nº 2, e
também na Revista de Gestalt nº 5 e Cahiers de Gestalt Thérapie nº 5)
INTRODUÇÃO
Há uns 22 anos atrás, por volta de 1972, tive em Israel meu primeiro contato com a
Gestalt Terapia. A lembrança desta primeira sessão está até hoje viva em mim. Eu
descrevia uma sensação de ter um fosso dentro de mim, um grande buraco que provocava
uma descontinuidade entre áreas em que eu me sentia funcionando bem, como se eu me
percebesse como uma escada que pula do 3° para o 10° andar sem ter os degraus
intermediários. Eu intuía uma área obscura, meio empacada, que me atrapalhava no meu
contato com o mundo e com os outros. E lá ia eu continuando a explicar esta sensação
àquela nova terapeuta, quando ela me interrompeu, sugerindo que eu fechasse os olhos e
visualizasse este buraco, descrevendo-o na 1° pessoa, como se eu fosse o buraco; e a seguir
me sugeriu que eu me imaginasse entrando nele.
O que se seguiu foi uma sessão onde me vi forçada a sair do “falar sobre” e “entrar
no”, onde me surpreendi com minhas próprias imagens e com o que nelas eu descobri. Para
minha surpresa não era um fosso horrível, mas um lugar frágil e delicado, e ao ir me
identificando com ele, ao “sê-lo” e ao nele entrar, fui me inundando da emoção de estar
me revelando a mim mesma, sentindo-me em encontro com aspectos meus antes pouco
conhecidos.
Esta foi a primeira de uma série de episódios terapêuticos que vivi tanto em Israel
como nos Estados Unidos, para onde fui em 78, para entre outras coisas, fazer a formação
de Gestalt terapeuta. Nos 4½ anos que lá vivi, tive a oportunidade de trabalhar com vários
terapeutas que de maneira mais ou menos sagaz, e mais ou menos suportiva, focavam no
que despontava na situação presente como figura, utilizando-se de vários recursos
terapêuticos para ajudar a revelar, iluminar, parir, e trazer à tona o conteúdo emergente.
Como treinanda, e observando Gestalt terapeutas trabalharem, aprendi que a grande
arte do terapeuta era, dado um tema, um problema, ou um desconforto, ajudar a achar o fio
e segui-lo com maestria através da metodologia Gestáltica, utilizando freqüentemente as
técnicas que Naranjo(1973) categoriza como supressivas, expressivas e integrativas, para
chegar à figura, muitas vezes latente em nível baixo e crônico de tensão e emergência, e
fazê-la vir à tona com sua força e emoção, para um nível agudo de emergência, com a
segurança dada pelo continente terapêutico. Isto se dava em processos experienciais que
em si traziam insights – reconfigurações perceptivas, emocionais e cognitivas.
Éramos treinados a identificar na situação presente do aqui e agora terapêutico
incongruências entre o conteúdo da fala e o tom da voz, entre o dito e os gestos, entre a
reação do cliente e o vivido na terapia. Éramos treinados a ajudar a trazer à tona conflitos
vividos internamente, freqüentemente entre um impulso e a resistência a este impulso. A
detectar situações inacabadas manifestas na situação presente com vistas a presentificá-las,
estimulando uma emergência segura. Enfim, a trabalhar para que o contato fosse
aumentando e as figuras emergentes tornassem-se fortes claras e definidas, facilitando
assim melhores integrações, reconfigurações, novas aberturas, e a resoluções de problemas
e conflitos. Em 1979 comecei a trabalhar como terapeuta em um centro de saúde mental
para a comunidade latina pobre de Oakland, CA. Voltei ao Brasil em 1983 e aqui
desenvolvi uma prática como Gestalt terapeuta.
No entanto, à medida em que minha prática terapêutica foi se desenvolvendo,
comecei a notar algumas limitações no que eu havia aprendido como sendo o trabalho de
Gestalt terapia, fui notando em mim insatisfações. Me parecia que aspectos importantes da
pessoa e de sua interação com o mundo não eram, ou raramente eram tocados. Quero listar
estas preocupações para a seguir relacioná-las com a noção de figura-fundo tão básica à
teoria da Gestalt terapia, pois me parece que o que muitas vezes emergia como figura ,
tornava-se uma “figura ofuscante”1, que ao ofuscar o terapeuta e eventualmente também o
1
Este termo me foi sugerido por Abel Guedes, Gestalt terapeuta.
cliente, impedia que outros aspectos da pessoa, menos imediatos, mas nem por isto menos
importantes, emergissem. Era comum, por exemplo, focar a atenção no tamborilar de um
dedinho, perguntando “o que é que seu dedinho está dizendo agora?” – e entrar na raiva ou
impaciência que este revelasse. Isto às vezes terminava em atuações catárticas, enquanto
que elementos mais profundos e sutis da história da pessoa, mitos, medos, esperanças,
significantemente ligadas àquele momento, ficavam fora de foco. Outras vezes, a falta de
atenção do terapeuta à fatores tais como o background social do cliente, contribuíam para
que estes não fossem levados em conta.
O propósito deste trabalho é portanto examinar o conceito de fundo em Gestalt
terapia. Creio que aspectos importante da vida das pessoas tais como seu background
étnico, sócio-cultural e familiar, assim como universos internos mais profundos, têm ficado
literalmente “no fundo” e fora de foco na prática de Gestalt terapeutas. Em termos
gestálticos, não têm emergido claramente como figuras dos processos de nossos clientes
em terapia, e mesmo da atenção do terapeuta. Afirmo que atenção a estes aspectos é de
suma importância, se quisermos ter uma compreensão e uma apreciação holística dos
processos de cada um em suas vidas. Listarei portanto estes fatores, discutindo algumas das
formas que encontrei de considerar e lidar com estas questões.
Apenas o intercâmbio organismo-meio constitui a situação psicológica que não pode ser
concebida tomando qualquer um deles de forma isolada. (p.XII)
Nossa situação presente, seja para que esfera da vida que olhemos, precisa ser
vista como um campo de possibilidades criativas, ou é francamente intolerável. Ao
dissensitizar-se e inibir seus potenciais humanos mais belos, a maior parte das pessoas
parece se persuadir, ou se deixa persuadir, que esta situação é tolerável, ou mesmo
razoavelmente boa. Julgando pelos seus tipos de preocupações, parecem ter a concepção
de uma realidade que é tolerável, para a qual podem se ajustar com uma certa medida de
felicidade. Mas este padrão de felicidade é muito baixo, tão desprezivelmente baixo que a
gente se envergonha de nossa própria humanidade...
O fato é que de modo geral existimos numa emergência crônica, e que a maior
parte de nossas forças de amor e coragem, raiva e indignação, estão reprimidas ou
amortecidas.
Os que vêm mais aguçadamente, sentem mais intensamente, e agem mais
corajosamente, acabam se desgastando e estão sofrendo, pois é impossível que alguém seja
extremamente feliz até que sejamos mais felizes de modo geral. Ao mesmo tempo, se
entrarmos em contato com esta situação terrível, existe nisto também uma possibilidade
criativa (p.251).
No entanto, apesar deste aspecto interacional ser enfatizado na teoria mais básica da
Gestalt terapia, esta unidade organismo-meio, na prática dos trabalhos terapêuticos, tem
sido reduzida aos processos intrapsíquicos de cada um, ou, às relações entre o indivíduo e
seus outros significantes.*
John Frew (1992), num artigo intitulado “Da Perspectiva do Meio”, escreve :
*
Uma exceção à isto foi o “Gestalt Community Action Project” (Projeto Gestáltico de Ação Comunitária) -
um grupo de Gestalt terapeutas que iam à centros de saúde de comunidades pobres e minoritárias, a fim de
fornecer treinamento em Gestalt terapia a seus profissionais, e assim desenvolver uma “Gestalt Social”
(Rubenfeld 1978), e o movimento “Psychotherapists for Social Responsability”( Psicoterapeutas pela
Responsabilidade Social) - , um grupo de terapeutas que buscava mobilizar pessoas quanto aos possíveis
perigos de uma guerra nuclear, através do uso de técnicas grupais utilizadas em psicoterapia (Rubenfeld 1986).
fonte central de cura”, escrevendo que “é nossa natureza adaptar a perspectiva do
indivíduo para a compreensão e descrição de nossos próprios processos e os processos dos
outros” (p.40). Frew desenvolve a seguir seu artigo, apontando como nós somos tanto
indivíduos como meio, se considerarmos que servimos como meio que pode responder ou
não às necessidades e desejos de outros, e discute o papel do Gestalt terapeuta como meio
em relação aos clientes, apresentando várias possibilidades, e.g., impositivo, competitivo,
confirmador ou co-dependente.
Outro autor, Raymond Saner, terapeuta suíço, membro do Instituto de Gestalt
Terapia de Nova York, e consultor da ONU para Ásia, África e outros países, num trabalho
intitulado “Bias Cultural da Gestalt Terapia feita nos EUA” (Saner, 1989), inicia seu artigo
com a seguinte afirmação : “Como Gestalt terapeuta europeu, preocupo-me com a ênfase
exagerada em valores e comportamentos individualistas de Gestalt Terapia
Americana”(p.57). Afirma que há uma ênfase na formação de gestalts individuais sem
atenção à gestalts e campos sociais, dizendo que, apesar da terapia gestáltica postular que a
energia para a formação figural vem de ambos pólos, organismo e meio, aplicado ao setting
terapêutico, fala-se mais da fenomenologia ou da patologia do paciente, do que de uma
fenomenologia interacional que reflita a situação existencial diádica de formação de
gestalts (p.60). Diz que existe uma grande ênfase no “eu” com uma evitação do “nós”. Ele
pergunta:
E afirma:
“É minha hipótese que a maior parte dos membros do movimento de Gestalt terapia
Americano, super enfatizaram a individualidade, porque não estão cônscios de sua
Ambos se iniciaram na região da baía de São Francisco na época em que eu lá vivia, e participei de algumas de
suas atividades.
predisposição cultural para o individualismo, com a aversão ou evitação de intimidade
mais duradoura, ou comprometimento mútuo, como corolário.”(p.59)
Saner pergunta sobre processos tais como os de valorar, de tomar decisões, normas
sociais e herança cultural, e usando um termo emprestado da psicanálise, afirma que
encontramos na Gestalt terapia “pouca informação sobre o socializado (civilizado)
superego”. Recomenda que devemos incorporar elementos que nos permitam melhor
considerar influências culturais no comportamento social e individual., sugerindo a
inclusão da Psicologia Social de Levin, da antropologia cultural, e de alguns aspectos do
neo-Freudismo tais como teorias de relações objetais, para que possamos realmente
“transformar a Gestalt terapia ‘made in USA’, em uma teoria transculturalmente válida da
organização e do desenvolvimento humano e social” (p.67).
E Gary Yontef (1992), um dos mais proeminentes teóricos atuais da GT, escreve
que o exame de processos e questões sociais, assim como de estruturas sociais, tem sido
muito pouco desenvolvido e negligenciado na teoria e na prática da GT, afirmando que
necessitamos tornar estes processos figurais.
Aqui no Brasil, Keila Macário Pavani procurou unir a Psicologia Social à
Psicoterapia. No trabalho intitulado “O Implícito e o Explícito na Praxis da Gestalt
Terapia: Contribuições das Ciências Sociais para uma Visão Holística” (1992), escreve que
o papel das psicoterapias tem sido freqüentemente o de desenvolver uma compreensão de
que conflitos e sofrimentos têm suas origens apenas na existência privada, como um
problema individual do sujeito e de sua família, e adverte:
Penso que esta é uma advertência extremamente importante pois corremos o risco
de, às vezes, sobrecarregar o indivíduo e seu mundo interno como fatores determinantes de
conflitos e situações que estão, de fato, além de sua responsabilidade.
Estes são alguns dos autores no campo da GT com os quais tenho compartilhado
preocupações sobre a necessidade de uma consideração mais efetiva de fatores sócio-
culturais em GT.
Minha história pessoal, de ter vivido em vários países e convivido com distintos
valores e culturas, me levaram a sentir uma grande necessidade de compreender processos
de diferenças culturais e diferenças de valores, pois passei pelos processos às vezes
solitários e dolorosos, de chegar a um lugar novo e ter que aprender a perceber, a dar
sentido a regras sociais implícitas, e a reconhecer valores não nomeados porém existentes
em uma sociedade. Tive portanto que aguçar minhas antenas para estes aspectos por uma
necessidade humana de pertinência, inclusão, troca, confirmação e convivência.
Também no consultório tenho sentido como a situação nacional que vivemos, de
deseperança, corrupção e recessão tem afetado pessoas agudamente. Me parece portanto
imperativo incluir atenção à estes fatores em nossa prática psicoterápica, assim como em
nosso papel potencial de facilitadores de cura em processos comunitários.
Nesse sentido encontrei no trabalho de David Feinstein e Stanley Krippner (1998a)
sobre “Mitologia Pessoal”, uma contribuição importante tanto à teoria como à prática da
Gestalt terapia, pois articula de forma consistente na prática da psicoterapia, dimensões e
fatores sócio-culturais, históricos e transgeracionais, com as noções de liberdade de escolha
e movimentos pessoais tão centrais à nossa fundamentação filosófica.
O que são mitos pessoais? No sentido usado por Feinstein e Krippner, não são
falsidades. “São modos pelos quais os seres humanos codificam e organizam suas vidas
interiores”( 1988b, p.27). São crenças profundas que guiam nossas vidas, e servem para
inspirar, orientar ações e escolhas, e dirigir o desenvolvimento pessoal. “É através dos
nossos mitos que interpretamos a experiência dos nossos sentidos, ordenamos novas
informações, encontramos inspiração e direções, e nos orientamos em relação a poderes no
universo que estão além da nossa compreensão”(1988b, p.27).
Nas sociedades primitivas, o indivíduo não existia como uma entidade à parte, os
mitos eram apenas culturais e não pessoais. Mas no que as sociedades foram se tornando
por demais complexas para que uma visão uniforme do mundo fosse aceita por todos os
seus membros, mitos pessoais foram se formando para cada indivíduo. Mesmo que mitos
culturais, vistos na TV ou vividos em festividades folclóricas, por exemplo, sejam
absorvidos pelo indivíduo, estes são absorvidos de modo único e individual por cada um.
Portanto:
“Mitos pessoais são modelos internos que, para o indivíduo, interpretam o passado,
explicam o presente e orientam o futuro... Mitos pessoais dizem respeito a questões
de identidade (Quem sou eu?), de direção ( Para onde vou?), e de objetivo ( Para
que vou?) (Feinstein e Krippner 1988b, p.29).
Os mitos pessoais de uma pessoa podem ser conflitantes, e evoluem ao curso da sua
vida à medida em que novas experiências de vida se adicionam. A nossa compreensão do
mundo é constantemente revisada, e nossas mitologias internas se tornam complementares
ou conflitivas. Na medida em que somos desafiados pela vida a incorporar novas
informações e experiências, as pessoas ou adaptam suas mitologias internas para se
acomodar à estas novas informações, ou as reformulam. Portanto, ao compreender e tornar-
se “aware” de seus mitos latentes, as pessoas podem tornar-se menos limitadas e começar
a modificar padrões de vida que antes lhe pareciam incontestáveis. A awareness das
escolhas possíveis cresce quando se reconhece que padrões de nosso viver são dirigidos por
mitos internos que podem ser questionados e modificados.
Tenho dirigido workshops de Mitologia Pessoal e Gestalt em vários lugares, e me
dado conta de como esta perspectiva realmente provê um gancho de união tanto teórica
quanto prática, entre os aspectos psíquicos, e os aspectos sociais, culturais, étnicos e
familiares do comportamento. Esta conexão media o que temos de comum com nossas
culturas, famílias, etc com aquilo que temos de singular, único, de incomum, pois a
mitologia pessoal traz justamente a perspectiva de como estas influências são filtradas por
cada pessoa de maneira própria.
É interessante notar que em sessões de Gestalt terapia, perguntamos usualmente
aos nossos clientes “O que você sente?”, “Que sensação está presente?”, “O que você
experiência agora?,” mas muito raramente “Em que você acredita?”. Trabalhar nossas
crenças mais profundas, nossa mitologia pessoal, tem sido um caminho muito fértil que
tenho inserido em meu trabalho terapêutico, de estar encontrando um meio de trabalhar e
trazer à tona aspectos que usualmente não são considerados. Trabalhando com grupos com
características culturais semelhantes, tenho percebido como às vezes os mitos pessoais de
uma pessoa acabam assumindo a dimensão de mitos grupais, ao se revelarem
compartilhados por outros membros do grupo, o que tem enriquecido a “awareness” tanto
pessoal quanto grupal para a forte influência de fatores até então pouco considerados.
Tenho tido feedback dos que participaram destes trabalhos de quanto que estas descobertas
se constituíram em fontes de revelações das mais profundas e significantes sobre si às quais
não haviam chegado em terapias prévias.
Por exemplo, coordenando um workshop de Mitologia Pessoal e Gestalt em
Curitiba, Paraná, trabalhei com um grupo de pessoas de descendência européia, a maioria
de origem alemã.
Algumas destas pessoas, descobriram em suas mitologias pessoais o mito que tempo
para lazer era errado e pura proscratinação, que se deveria empregar o tempo livre em
trabalho e atividades úteis. Ouviam freqüentemente: “Tempo livre?! Costure suas meias,
faça um bolo, faça algo útil!”. Mas, na medida em que cada um compartilhou com o grupo
esse mito familiar e transgeracional, puderam notar que compartilhavam uma
comunalidade, que isto era na realidade, um mito coletivo, desconhecido até aquele
momento, que estava permeando tanto suas vidas pessoais como a sua dinâmica grupal.
Esta awareness foi muito liberadora, pois puderam redimensionar os aspectos funcionais e
disfuncionais que este mito lhes infligia.
Trabalhando com um grupo de descendentes de judeus europeus, o mito de ter
sempre que estar num estado de vigilância, sempre em alerta porque cedo ou tarde pode-se
ter que lidar com o inesperado – hostilidades, animosidades, e até deportação e fuga - era
comum. No entanto, isto foi uma surpresa para os participantes, pois não haviam se dado
conta até então, de como padrões de pensamento e sentimento de seus ancestrais e família
imediata, ainda estavam presentes em suas vidas.
Isto chamou a minha atenção para a relevância deste referencial para o trabalho
terapêutico com pessoas de diferentes culturas. Tornar-se consciente de sua mitologia
pessoal e cultural aumenta a habilidade do terapeuta de trabalhar com clientes de forma
culturalmente sensível. Podemos explorar nossa própria identidade cultural, valores e
vieses, e seu impacto nas nossas interações terapêuticas, na medida em que nos tornamos
mais sensíveis às mitologias sócio-culturais, valores e crenças de nossos clientes.
INTERAÇÃO DE MITOS CULTURAIS E PESSOAIS
GESTALT TERAPIA
(Nota escrita em 7/96) Como este trabalho foi escrito a quatro anos atrás, algumas coisas já não
correspondem ao meu pensamento atual. Hoje, ao invés de “diagnóstico”, prefiro falar em “compreensão
clínica”, que me parece um termo mais abrangente, que possibilita um texto mais longo do que comumente se
entende por diagnóstico. Sob esta perspectiva, a lista de autores citados sem dúvida seria mais ampla.
contato-retraimento (Perls, Hefferline & Goodman 1951, Zinker 1977), necessitam ser mais
desenvolvidos em direção a um marco teórico que possa fundamentar um pensamento
diagnóstico por parte de Gestalt terapeutas.
Há uma necessidade de compreender a partir de que parâmetros indivíduos
organizam suas experiências e estabelecem relações de significado entre elas, como se
articulam e se configuram os padrões de relacionamento do indivíduo consigo mesmo, com
os outros e com o mundo, e de como estes padrões, muitas vezes repetitivos e
internalizados, articulam-se em “gestalts” mais amplas que ficam de “pano de fundo” em
nossas vidas.
Tobin (1982), escreve sobre a necessidade de uma compreensão em nível estrutural
das dificuldades pessoais. Yontef (1981) em um artigo intitulado “Mediocridade e
Excelência: Uma Crise de Identidade no Treinamento --em Gestalt Terapia”, escreve que
necessitamos de uma teoria diagnóstica e de desenvolvimento que possa nos fornecer uma
compreensão da estrutura de caráter de nossos clientes, defendendo a inclusão de
pensamento diagnóstico no treinamento de Gestalt terapeutas. Em 1983, em “Resposta a
Tobin”, afirma que necessitamos relacionar a interação presente do cliente ao background
histórico-experiencial que se reflete no presente.
Retornamos portanto à questão do fundo. Como Frazão( 1991) escreve em seu
trabalho sobre pensamento diagnóstico em Gestalt terapia, “é necessário buscar no fundo,
no duplo sentido que a palavra pode ter, a compreensão da figura que nos afigura em nosso
contacto com o cliente.”
Alguns Gestalt terapeutas estão atualmente tentando preencher esta sentida lacuna ,
através da integração da Gestalt terapia com compreensões provenientes das teorias das
relações objetais, que mudaram a ênfase psicanalítica em uma teoria pulsional para uma
teoria relacional.
Porém, como assimilar estas perspectivas diagnósticas e psicanalíticas, sem perder a
coerência com os fundamentos filosóficos da Gestalt terapia ? Esta questão tem sido
discutida (Alexander et al. 1992; Breshgold e Zahm 1993; Frazão 1992; Jacobs 1993;
Yontef 1998). Outros Gestalt terapeutas pensam em termos de compreensão e categorias
fenomenológicas (Penteado 1990; Rehfeld 1991,1993) . Naranjo (1989) propõe uma
integração das categorias diagnósticas protoanalíticas de Oscar Ichazo com a Gestalt
terapia. Acredito que a Mitologia Pessoal, com seus conceitos de mito-guia, mega-mito,
contra-mito e constelações míticas, também nos fornece um marco compreensivo que pode
nos ajudar a apreender os universos das interioridades de nossos clientes.
Ressalto aqui que em Gestalt terapia, ao falarmos de pensamento diagnóstico,
estruturas de caráter ou dificuldades estruturais, não nos referimos à estruturas estáticas
pré-existentes às experiências , mas a processos que, tendo uma organização interna,
podem apresentar elementos ou aspectos que continuam a se repetir. Estamos sempre
falando de processos dinâmicos, em desenvolvimento e em transformação, de estruturas
que podem estar constantemente em processo. Em Gestalt terapia, funcionamento saudável
é definido como funcionamento criativo, como um constante fluir de energia. É exatamente
quando processos de crescimento saudável e criativo são interrompidos e cristalizados em
padrões crônicos de pensamento, sentimento e/ou comportamento, que estamos lidando
com funcionamento não saudável, com padrões neuróticos ou patológicos.
É importante portanto, compreender melhor o fundo de onde o que eu percebo
como figura em meus contatos com os clientes pode emergir. Necessito olhar no fundo, no
duplo sentido da palavra como diz Frazão, para ver e perceber melhor o que é presente.
Preciso tornar visível o que está invisível, e o que era fundo, em figura da atenção tanto
do terapeuta como do cliente.
Em resumo, me parece que em relação à questão da compreensão diagnóstica, da
necessidade de apreensão do universo subjetivo e interno do cliente com todas as suas
sutilezas, uma visão que transcenda a figura imediata de awareness e que penetre nos
mistérios do background da pessoa, é necessária à prática da Gestalt terapia.
(Nota escrita em 7/96) Gostaria de acrescentar à esta lista os trabalhos de Fátima Barroso ( 1991,1992 ).
Desenvolvi como arte terapeuta que também sou, experiências onde me utilizo de
recursos artísticos e expressivos para explorar e melhor entender a situação existencial de
meus clientes; por exemplo, pedindo um desenho que expresse como a pessoa se sente. Me
percebo me surpreendendo a cada vez com a riqueza e complexidade simbólica das
imagens que surgem, com a riqueza e diversidade das formas do mundo interno de cada
um, e com a complexidade das possíveis danças entre figuras e fundos que se apresentam e
se revelam inusitadamente.
O uso de linguagens não verbais e recursos artísticos não é novo na prática da
Gestalt . Fritz Perls foi pintor e teve experiências com teatro; Laura Perls foi dançarina;
Paul Goodman foi poeta e escritor. Experimentos gestálticos com freqüência usam recursos
plásticos, expressão corporal e dramatização em sua prática.
Na arte, figura-fundo não é um modelo de compreensão ou uma metáfora ; pode ser
visto e sentido concretamente. Da mesma forma, as ambigüidades de uma pessoa,
experiências que não podem ser traduzidas em palavras por serem predominantemente
sensoriais ou imagéticas, podem ser expressas. As artes permitem a expressão de uma
diversidade e simultaneidade de níveis de significados, que usualmente caracteriza nossas
experiências subjetivas e internas. Assim me parece que a exploração destas realidades
através de recursos artísticos, pode facilitar nossa apreensão das riquezas e complexidades
que se encontram tanto no que é figural, no que é fundo em nossas vidas, assim como nas
danças e interações entre figura e fundo que ocorrem durante nossos processos de vida.
“ampliamos figura/fundo para incluir eventos internos tais como imagens e idéias...
Escolhemos ampliar conceitos, e arriscamos imprecisão, na esperança de
resultados frutíferos na compreensão do amplo âmbito de funcionamento das
pessoas” (p.60, 61).
Fui procurar então o livro dos Polsters ( Polster & Polster 1974), outro livro
respeitado por todos, e para minha surpresa encontrei a mesma crítica quanto à
transposição direta e automática de conceitos da teoria da percepção da psicologia da
Gestalt à Gestalt terapia. Dizem eles:
“... porque no curso de nossas vidas não se pode evitar ficar com
várias delas. No entanto, apesar de poder-se tolerar uma quantidade
considerável de experiências inacabadas, estas direções incompletas
procuram completude, e quando adquirem força, o indivíduo é assolado
por preocupações, comportamento compulsivo, ansiedade, energia
opressiva e atividades auto- destrutivas ... o fechamento deve-se dar
através ou de um retorno à situação antiga, ou relacionando-a à
circunstâncias paralelas no presente” (Polster & Polster 1974, pp36,37)
Por exemplo, uma pessoa pode nunca ser capaz de confrontar seu
verdadeiro pai, mas pode fazê-lo ou através do confronto com outras pessoas,
ou através da fantasia de interagir com o pai imaginário. Uma vez que um
fechamento tenha sido alcançado, e a situação inacabada possa ser plenamente
experienciada no presente, a pessoa é livre para caminhar no presente com toda
a sua energia , e com abertura a novas possibilidades.
Portanto podemos ver que o que guardamos no “fundo”é muito mais do que o que
foi concebido pelos psicólogos da forma.
Quando falamos de “fundo” em termos apenas de percepção visual, no que uma
figura se abrilhanta e emerge com toda sua energia, na terminologia da psicologia da
Gestalt pode-se dizer que o fundo praticamente se esvazia. Mas quando falamos de seres
humanos, os elementos que compõem o fundo não são externos nem concretos, mas
internos e muitas vezes subjetivos, o que demarca uma diferença importante que necessita
ser levada em conta.
CONCLUSÃO
Creio que na teoria e na prática da Gestalt terapia temos negligenciado uma atenção
apropriada a aspectos do fundo que são mais obscuros e de mais difícil acesso, tais como os
mencionados anteriormente neste trabalho: nossa história de vida e nossas experiências
anteriores, nossas influências socio-culturais, nossa mitologia pessoal com seus mitos,
contra-mitos e mega-mitos, às vezes nem vislumbrados, padrões de sentir e de nos
relacionar que estão fora de “awareness”, assim como valores, sonhos, fantasias, feridas
internas, e outras partes de nosso universo interior, organizadas em gestalts maiores e
freqüentemente ocultas. Ao trabalhar em grupos, muitas vezes me surpreendo ao me
perceber entrando em contacto com aspectos meus eliciados pelo trabalho de outros, e que
dificilmente viriam à tona se eu estivesse trabalhando sozinha. Outros, de mais difícil
acesso, emergem apenas em trabalhos delicados e mais longos, processos terapêuticos mais
contínuos.
Creio que necessitamos hoje, de uma atenção mais voltada para o social, o
econômico, e para o momento nacional em que vivemos , porque estão diretamente
afetando nossas vidas, tanto do ponto de vista pessoal quanto grupal. Noto que face à forte
recessão econômica que vivemos as pessoas hoje se encontram menos; nós nos enrustimos,
nos entristecemos enquanto grupo social. Já não se escutam mais no Brasil tantas piadas
quanto antigamente. É freqüente em situação de consultório ouvir as dificuldades
financeiras encontradas e como isso tem afetado a auto-estima das pessoas. Recentemente
ouvi de um cliente que embora se sentisse como um cavalo branco altivo, indomável,
vigoroso e potente interiormente, sentia -se também sem valor, como um cansado pangaré,
massacrado e impotente, com a cabeça baixa frente às pressões que vem sofrendo, tendo
que exercer trabalhos abaixo de sua capacidade para sobreviver.
Acredito que a situação nos Estados Unidos e na Europa também são preocupantes.
Existe uma forte recessão nos Estados Unidos e na maioria dos países Europeus; existem
guerras na Europa Oriental; há um crescimento preocupante de movimentos nazi-fascistas
por toda a Europa que afeta a vida das pessoas e são uma ameaça a todos nós como
comunidade global.
Necessitamos incluir este foco em nossa prática , porque se não o fizermos, nosso
papel de ajuda será distorcido e diminuído.
Creio também que necessitamos de uma atenção delicada para a complexidade que
constitui nossos mundos internos, para como fomos construindo e elaborando nossas
paisagens e realidades internas, para poder nos deter com mais atenção na tessitura do
pano de fundo de onde emergem as figuras do nosso viver, com suas linhas, suas tramas,
seus nós e seus esgarços. Pano este existente e em transformação, sempre fazendo-se e
refazendo-se, mágico e misterioso, onde encontramos nossas histórias, nossas estórias,
nossos mitos, nossos sonhos - os cantos e encantos de nossas vidas. Como o vestido de
noiva de Narizinho ao casar-se com o Príncipe das Águas Encantadas no livro de Monteiro
Lobato, um pano cheio de peixinhos vivos e de cores que sempre se alteram - um pano
vivo, mas que era um vestido de casamento, tinha uma identidade.
Retorno então ao título deste trabalho. Necessitamos em Gestalt terapia mais
atenção ao fundo que serve de pano de fundo às figuras do nosso viver, a fim de que
possamos ter uma compreensão verdadeiramente holística e profunda da existência de
nossos clientes. Tenho encontrado na Mitologia Pessoal de Feinstein e Krippner um
caminho para isto que me parece frutífero. Porém, acredito que outros caminhos possam
também ser descobertos por Gestalt terapeutas, e incorporados à nossa prática, na medida
em que as preocupações que listei neste trabalho possam ser a propriamente examinadas e
levadas em conta. Necessitamos de abordagens terapêuticas que considerem
simultaneamente aspectos sociais e espirituais de indivíduos e comunidades. A este
respeito, acredito que a Gestalt terapia, que teve um papel tão importante nos movimentos
de contra-cultura dos anos sessenta, possa também agora, quando adentramos o século 21,
ter um papel inovador e revolucionário.
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