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9 a 12 de julho de 2019
UFSC - Florianópolis, SC
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Resumo: Este artigo propõe-se a compreender como as redes sociais na internet
implicam na construção da subjetividade de um homem trans em Belém do Pará-
Amazônia. O intuito é refletir mediante a perspectiva da antropologia urbana
(VELHO, 1989; 2004), como homens trans estão construindo projetos (VELHO,
2004) e subjetividades no contexto das “tecno-paisagens” (ESCOBAR, 2016), a
partir das implicações de suas trajetórias de vida com as redes sociais digitais,
configurando técnicas do corpo (MAUSS, 2003) na cibercultura. Para desenvolver
a reflexão, utilizo as informações coletadas a partir de entrevista em profundidade
com Rafael Carmo, homem trans e um dos coordenadores da Rede Paraense de
Pessoas Trans (REPPAT), além de observação participante de ações
desenvolvidas pela Rede e da atuação de Rafael em suas redes sociais. Na
trajetória de vida de Rafael, destaca-se não apenas a sua compreensão da
transexualidade, e de si mesmo enquanto homem trans, a partir das interações com
outros homens e mulheres trans de fora do Pará pelas redes sociais, como também
a sua atuação enquanto influenciador na construção da subjetividade de outras
pessoas trans no Estado, conectadas com ele pela internet.
Introdução
O artigo visa compreender “a produção de subjetividades que acompanham
as novas tecnologias” como propõe Escobar (2016, p. 40), refletindo no contexto
específico da produção de subjetividades de pessoas trans em Belém-Pará-
Amazônia. O trabalho, assim, tem como objeto a análise da relação entre as mídias
digitais e a trajetória de vida de um homem trans amazônico, o Rafael Carmo, que
é militante e um dos coordenadores da Rede Paraense de Pessoas Trans
(REPPAT), fundada em 2016.
O texto compõe parte da minha pesquisa de doutorado, trazendo reflexões
iniciais sobre os dados coletados em campo, no período da segunda quinzena de
novembro de 2018 à segunda quinzena do mês de janeiro de 2019. O contexto do
campo diz respeito à construção da Semana de Visibilidade Trans no Pará, em
parte ocorrida nas dependências da Universidade Federal do Pará, organizada pela
REPPAT, em parceria com outras ONG’s, movimentos sociais e instituições do
Estado.
Para desenvolver a pesquisa, utilizei como recursos metodológicos a
entrevista em profundidade, no sentido de compreender a trajetória de vida de
Rafael, bem como o papel das mídias digitais na construção de sua subjetividade
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enquanto homem trans em Belém do Pará-Amazônia. Aliado à entrevista, fiz
observação participante de momentos nos quais Rafael atua enquanto militante
político, o que me permitiu inferir como se configura as relações com as mídias
digitais em seu cotidiano. Acompanhei, também, as redes sociais dele, Facebook e
Instagram, com o intuito de perceber as narrativas de si feitas por ele na internet.
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A construção do discurso médico sobre a transexualidade tem uma longa
trajetória. Leite Júnior (2014, p. 41) aponta que entre os séculos XIX e XX
desenvolveu-se o conceito de “hermafroditismo psíquico” que serviu de base para
as noções de “travestismo” e “transexualismo”. Para este autor, assim como em
outras culturas, no Ocidente as transições de gênero são comuns, a diferença é
que o discurso científico contemporâneo cria a “patologização das pessoas”.
De acordo com Leite Júnior (2014), já em 1949 é criado o termo
“psychopathia transexualis” pelo médico Cauldwell. Em 1952 o transexualidade
ganha notoriedade no debate midiático norte-americano. Mas é apenas em 1953,
em meio a esse debate, que o endocrinologista alemão Benjamin publica sobre o
então “transexualismo”: “Neste texto, Benjamin cria literariamente o sujeito
‘transexual’ e o ‘transexualismo’, iniciando assim o processo de popularização tanto
científica quanto cotidiana destes dois novos termos [...]” (LEITE JÚNIOR, 2014, p.
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Para além dessa construção das áreas médicas, porém, a transexualidade
ganha formas diversas, de acordo com as vivências das pessoas trans. A/o
“transexual de verdade” criado pela medicina é constantemente questionado pelas
experiências diversas de transexualidades.
Na definição de Bento (2008), “a transexualidade é uma experiência
identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”. Essa posição da
autora parte de uma perspectiva das Ciências Sociais que procura retirar a carga
patologizante da transexualidade como vista inicialmente pelas ciências médicas.
Em uma definição similar à de Bento (2008), a psicóloga e mulher trans negra
Jaqueline de Jesus (2012, p. 14) entende o transgênero como um “conceito
‘guarda-chuva’ que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se
identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do
gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento”.
Em entrevista cedida em 2004, Preciado (2010) já aponta para a forma como
os meios de comunicação entram no jogo de construção e reificação das
identidades sexuais, por criarem formas-padrão de representação. Preciado (2010)
considera que, diante dos meios de comunicação atuais, e aqui incluo as mídias
digitais, não se pode mais falar de sociedade disciplinar da mesma forma que
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Foucault, pois esses meios também se tornaram formas disciplinares de
sexualidade, pois há visibilidade nesses meios.
Para Preciado (2010), suas pesquisas convergem com as críticas ao
feminismo e aos movimentos identitários gays e lésbicos que essencializam essas
identidades. Os movimentos queer, assim, surgindo como contestações políticas e
teóricas marginais a esses processos, questionando a categoria “mulher” como
sujeito do feminismo. Preciado (2010) argumenta que uma parte da crítica à teoria
queer emerge justamente de debates transexuais e transgêneros quanto a ideia de
performatividade, na medida em que estes não mais fariam mimeses, mas sim
viveriam essas transformações nos próprios corpos. “O que a crítica transgenérica
põe sobre a mesa não são mais performances, são transformações corporais
físicas, sexuais, sociais e políticas que ocorrem não no palco, mas no espaço
público. Dito de outro modo: trata-se de tecnologias precisas de transincorporação”
(PRECIADO, 2010, p. 53).
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pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional,
sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2003, p. 401).
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da minha casa eu não conversava sobre sexualidade, nada que envolvesse
sexualidade né” (Rafael Carmo/Pesquisa de campo/2018). Apesar dessa memória,
ele considera que o seu primeiro contato com a temática trans ocorreu por meio de
uma reportagem na televisão. A televisão, porém, não deu as respostas que ele
precisa, por isso o uso das redes sociais na internet.
Porque, foi por conta das redes sociais que: primeiro, eu tive contato
sobre a temática da transexualidade de fato, porque uma reportagem
na televisão não ia... não ia ser o suficiente pra suprir, como não foi!,
pra dizer tudo o que eu precisava saber, porque foi tudo muito rápido
né. Mas nas redes sociais, e na internet como um todo, eu tive as
informações. Mas foi pelas redes sociais que eu também pude me
comunicar com pessoas iguais a mim, sabe?, saber que eu não tava
sozinho e que hoje eu uso as redes sociais pra divulgar informações
pra essas pessoas que estão longe, às vezes, que estão no mesmo
estado, mas assim, que as vezes a informação que chega aqui na
capital, em Belém, não é a mesma que chega lá em Marabá, não é
a mesma que chega em Santarém, em Santa Izabel, entendeu?
(Rafael Carmo/Pesquisa de campo/2018)
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Figuras 1 e 2: Postagens de Rafael na conta pessoal no Facebook
Fonte: Facebook
Fonte: Instagram
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Outro ponto da trajetória de vida de Rafael é a militância política, que
aparece nas postagens em suas redes sociais na internet. Ao considerar a
transexualidade como uma “vivência de resistência”, além de ser “algo libertador”,
ela seria resistência porque a pessoa trans “vai ter a todo momento que enfrentar
esses padrões, esses papeis de gênero que a sociedade vai jogar em cima dela”
(Rafael Carmo/Pesquisa de campo/2018). Nesse enfrentamento, é fundamental a
organização política em torno da ONG Rede Paraense de Pessoas Trans
(REPPAT), na qual Rafael é um dos coordenadores.
A REPPAT foi criada em 2016 a partir de um workshop em Belém com
integrantes da Rede Trans Brasil1, não possui sede física, e congrega
aproximadamente 30 pessoas trans paraenses, principalmente jovens, com “o
intuito de lutar e representar as demandas de pessoas transexuais e travestis do
Estado do Pará”, como consta em sua página no Facebook2. É em parte com base
no conflito com as normas de gênero que a ação política da REPPAT constitui-se,
visto a necessidade de garantir o direito à existência de pessoas trans em Belém-
PA. De acordo com Rafael, a REPPAT
[...] ela trabalha muito com essa questão do acolhimento das pessoas
trans, a gente recebe muitas demandas assim, de orientação mesmo
de retificação; passou por transfobia, o que que a pessoa tem que...
deve fazer, aí a gente encaminha pros locais que são responsáveis.
A gente também tem momentos de convivência, de troca de
experiências né, que nem sempre a gente marca reunião, assim, pra
falar de coisa séria, às vezes a gente marca pras pessoas se
ouvirem, compartilharem né (Rafael Carmo/Pesquisa de
campo/2018)
1 “A Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil – REDETRANS Brasil teve sua fundação e registro
no ano de 2009 na cidade do Rio de Janeiro, instituição nacional que representa pessoas Travestis
e Transexuais do Brasil”. Disponível em: http://redetransbrasil.org.br/quem-somos/. Acesso em: 08
de junho de 2019.
2 Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/RedeParaensedePessoasTrans/about/?ref=page_internal. Acesso
em: 08 de junho de 2019.
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seguida, acompanhei as atividades realizadas, que culminaram com o ato político
organizado pela REPPAT no dia 27 de janeiro de 2019 em frente ao Mercado de
São Brás, no centro de Belém, sob o título “Ser trans é resistência. Minha identidade
é um ato político”. Abaixo seguem registros dessas ações.
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Figura 7: Seminário de Visibilidade Trans na Defensoria Pública do Pará 2019
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no contemporâneo, é preciso estarmos atentos para o risco de naturalizar o uso
das mídias digitais. Nesse sentido, meu interesse é compreender as maneiras
como os usuários utilizam essas mídias (MISKOLCI, 2011), mais especificamente,
como transsexuais no Pará têm utilizado as mídias digitais e redes sociais na
construção de suas subjetividades enquanto pessoas trans.
Importa, assim, compreender como, no contexto da cibercultura, os projetos
e subjetividades de pessoas trans relacionam-se com as mídias digitais,
constituindo narrativas de si. De acordo com Velho (2004, p. 26): “Quando há ação
com algum objetivo predeterminado ter-se-á o projeto”. Porém, a possibilidade de
projetos individuais “está vinculada a como, em contextos sócio-culturais
específicos, se lida com a ambiguidade fragmentação-totalização”. Isto é, não se
pode pensar em projeto de indivíduos de forma isolada, fora das interações e
implicações sociais. Apesar do “caráter consciente do processo de projetar”
(VELHO, 2004, p. 27), não existe projeto individual “puro”.
Ao propor a noção de projeto para refletir sobre a trajetória de vida de Rafael,
situo a análise nas discussões sobre a cibercultura e as diversas formas de
interações e sociabilidades das pessoas através das mídias digitais presente em
autores e autoras como Lévy (2010), Escobar (2016), Castells (2005), Sibilia (2016)
e Miskolci (2015). Já no final dos anos 1990, Lévy (2010) e Escobar (2016) apontam
o desenvolvimento e uso das TIC’s no meio social, estabelecendo novas formas de
sociabilidade e interação a partir do ciberespaço.
Para Sibilia (2016, p. 09), no entanto, “as confissões vertidas no
ciberespaço”, que configuram o que a autora chama de “show do eu”, não são
consequências apenas da presença das tecnologias de comunicação na
sociedade. Para a autora, esses como outros meios digitais, parecerem retomar um
certo modelo de testemunho pessoal. Assim, os blogs, bem como outras
plataformas digitais, recorrem ao “modelo confessional do velho diário íntimo. Ou
melhor: do diário éxtimo, de acordo com um trocadilho que procura dar conta dos
paradoxos dessa novidade, que consiste em expor a própria intimidade nas vitrines
globais das telas interconectadas” (SIBILIA, 2016, p. 20-21).
É interessante notar que, no caso da trajetória de vida do Rafael, esse “show
do eu” ou exibição de si nas redes sociais tem um papel duplo: num primeiro
momento, ele como seguidor de outras pessoas trans, adquire informações
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necessárias para a sua construção enquanto pessoa trans; em um segundo
momento, ele próprio projeta-se, no sentido dado por Velho (2004), como uma
referência para outras pessoas trans no Estado Pará, tanto pela militância no
movimento trans, como usando as suas redes sociais na internet para auxiliar e
apoiar as/os trans que lhe procuram.
A pesquisa de campo, assim, tem demostrado que, na trajetória de vida de
Rafael, as mídias digitais integram a construção da sua subjetividade enquanto
homem trans, na medida em que é a partir das redes sociais na internet, das
interações com outros homens trans de fora do Pará, que Rafael tem acesso à
informações sobre o que é ser um pessoa trans, além de obter os caminhos
necessários para o processo de transição para o gênero pelo qual se identifica. O
ser homem trans, dessa maneira, está ligado à sociabilidade na internet, que
permitiu o contato com pessoas trans de outros locais do Brasil e ajudaram na
construção de si do Rafael.
Além disso, o próprio Rafael, enquanto militante da REPPAT, mas também
como um usuário de redes sociais na internet, auxilia e influencia na construção de
subjetividade de outras pessoas trans no Pará, por meio de suas publicações e
interações na internet. As redes sociais, assim, são usadas como redes de
informação e de apoio para pessoas trans que vivenciam suas transexualidades
em locais distantes da capital, Belém, com isso se construindo enquanto sujeitos a
partir, mas só, dessas interações digitais.
Então a gente acaba, por conta da militância, sendo referência né, e
a rede social ela permite que as pessoas é... consigam ter um acesso
mais rápido com quem é da militância, com quem é mais próximo,
entrar em contato com a ONG, tipo fazer parte da ONG que se
informa e tudo mais. Então eu acho que a rede social ela serve como
um divisor de águas, assim, sabe?, pra muitas pessoas trans porque
é aonde assim... a gente consegue ter um espaço melhor de
comunicação, principalmente se a gente for parar pra pensar na
questão da distância né, e no acesso à informação né, porque às
vezes tudo tá muito centralizado aqui na capital do Estado, sabe?
(Rafael Carmo/Pesquisa de campo/2019)
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Considerações finais
Dessa maneira, acredito que, com base nos dados coletados em campo
sobre a trajetória de vida do Rafael, é possível pensar as transexualidades em suas
relações com as mídias digitais, principalmente no que diz respeito à construção de
subjetividades trans, na medida em que, pelo menos no contexto amazônico, essa
construção do ser trans perpassa pelas informações e interações realizadas nas
redes sociais. O que a pesquisa de campo tem mostrado, com a trajetória de vida
do Rafael Carmo, é que, uma parte da construção do ser trans em Belém-PA, pode
ser compreendido como transições digitais, visto a importância das redes sociais
nesse processo.
Referências Bibliográficas
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ESCOBAR, Arturo. Bem-vindos à cyberia: notas para uma antropologia da
cibercultura. In: SEGATA, Jean; RIFIOTIS, Theophilos (orgs). Políticas
etnográficas no campo da cibercultura. Brasília: ABA Publicações; Joinville:
Editora Letradágua, 2016. (p. 21-66)
PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Jesús Carrilo. Revista Poiésis, n 15, p. 47-71,
Jul. de 2010. Disponível em:
http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis15/Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf. Acesso
em: 09 de abril de 2018.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2 ed., Rio de Janeiro:
Contraponto, 2016.
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