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A TRANSCULTURAÇÃO NA NARRATIVA DE
RICARDO GUILHERME DICKE
A TRANSCULTURAÇÃO NA NARRATIVA DE
RICARDO GUILHERME DICKE
À minha família
Dorgival, Maria e Elisângela
AGRADECIMENTOS
Esse trabalho associa uma discussão acerca do foco narrativo com uma outra ligada à
questão da produção literária na América Latina. Ele caracteriza a questão do foco, nos
romances de Ricardo Guilherme Dicke, como um dos aspectos que o definem como
narrador de transculturação, conceito usado por Angel Rama. Conseqüentemente,
insere seus romances nas questões referentes aos conflitos locais e à produção da
identidade local como forma de resistência ao apagamento cultural devido ao contato
com uma cultura de tendência universalizante e modernizadora, de procedência
européia e norte-americana. O contato entre estas culturas de tendência universalizante
e culturas locais tradicionais gera produtos culturais que aproveitam aspectos tanto de
uma quanto de outra, processo que pode ser consciente ou não. Os livros de Dicke são
exemplos dessa produção. Este trabalho traça uma trajetória cuja intenção é evidenciar
a elaboração de um procedimento narrativo que não se apreende pelas categorias
tradicionais de autor, narrador e personagem, frutos da teoria literária de origem
européia. Essa maneira de narrar concorre para a dissolução do pensamento
maniqueísta, que também caracteriza a cultura ocidental, cujas formulações processam
a apreensão do mundo (e do fenômeno literário) através de oposições como
dominador/dominado, universal/local, regional/nacional etc. A análise dos textos de
Dicke mostra a inaplicabilidade dessas categorias nos textos de transculturação e
estende a discussão à própria elaboração da teoria, notando que na escolha da
tipologia estão também implicadas as relações culturais e identitárias.
1
Cerimônias do Esquecimento não é o último romance publicado, sendo anterior a O Salário dos Poetas.
A análise do problema, então, partiu da observação dos romances e da
explicação que Gilvone Furtado Miguel dá, na sua análise de Madona dos Paramos,
para a questão do foco narrativo. Ela afirma que a ‘mudança de centro’ é produto da
escolha do autor, através da categoria do autor-implícito, conceito do teórico Wayne
Booth (apud Miguel, 2001), segundo o qual, independentemente do foco que se
expressa na obra, sempre há por trás de todos eles o pensamento do autor que
manipula toda a evolução do romance, se denunciando nas escolhas das palavras, dos
pontos de vista, de todos os aspectos que compõem uma obra literária. Este autor
implícito não é, no entanto, o autor em pessoa, mas uma espécie de alter-ego, um
personagem através do qual o autor fala na obra2.
Associar a palavra ‘autor’ a uma pessoa real e a palavra ‘narrador’ a uma
categoria fictícia é uma prática comum na teoria e na crítica literárias. Nos romances de
Dicke, no entanto, essa relação direta parece não resolver a questão, pois o problema
está, justamente, não nas categorias isoladamente, mas no uso que se faz delas na
elaboração das teorias acerca do fenômeno literário. É fácil aceitar a categoria de autor
quando se fala da ciência histórica, mas essa aceitação não é tão natural quando se
fala de literatura. Por quê essa diferença? Não seria possível responder ou mesmo
abordar essas questões a partir de uma única corrente teórica. A maioria das correntes
que se debruçam sobre o problema do foco narrativo, ou de uma teoria da narrativa,
parte de uma ou de outra categoria para fundamentar as suas considerações. Alguns
casos, ainda, aplicam os dois termos como se fossem um só e não colocam, portanto,
os conceitos de autor e narrador em questão3.
A discussão, então, enveredou pelo reconhecimento de que nas diferenças entre
as teorias sobre o narrador estariam implicadas diferenças culturais. Ao falar de
literatura, a teoria elabora conceitos de acordo com as categorias de pensamento de
2
Sobre o assunto, consultar Dal Farra, 1978, que compara o autor implícito aos heterônimos de
Fernando Pessoa.
3
Alguns trabalhos delimitam bem seu objeto, como os de Barthes, 1984, (sobre o autor), Benjamin, 1994,
(sobre o narrador) e Bakhtin, 1992, (sobre o autor). Barthes, como estruturalista, ‘mata’ o autor como
elemento exterior àquilo que escreve, pois a linguagem deve se comunicar por si mesma. Benjamin fala
do narrador propriamente oral ou daquele que consegue, na escrita, manter propriedades da narrativa
oral, diferenciando, assim, o narrador do romancista. Bakhtin fala do autor enquanto categoria do
discurso e não como indivíduo. Os três distinguem bem o que é propriamente lingüístico ou não e de
quem é a ‘propriedade’ do discurso. Suas referências ajudam a esclarecer questões acerca do narrador
do romance, especificamente.
que sua cultura dispõe para tal. Percebeu-se, nesse caso, que as teorias sobre o
narrador não se aplicariam plenamente às obras de Dicke porque estas escapariam às
categorias de percepção do fenômeno literário de caráter não-europeu, ou não
canonizado, o que deve ocorrer com muitas produções contemporâneas. Não se
trabalhou, aqui, no entanto, com toda a produção teórica a respeito do assunto: alguns
textos-chave ajudaram a entender as perspectivas, a partir das quais se observava o
fenômeno literário.
Para escapar aos conceitos europeus acerca do narrador e do autor, não
plenamente aplicáveis nos romances de Dicke, optou-se pela teoria da transculturação,
conceito usado por Angel Rama (1982) para abordar alguns romances latino-
americanos. Ele analisa três níveis da produção literária – o lingüístico, o composicional
e o da cosmovisão do escritor – em que se dão os processos de transculturação. A
questão do narrador faz parte do segundo nível. O teórico utiliza, inclusive, teorias
européias e norte-americanas ao abordar o assunto, mas também não as trata da
mesma maneira. Isso se deve ao fato de que seu interesse é mais crítico do que
teórico, focalizando mais as questões sociais referentes às relações inter-culturais que
ocorrem no seio da cultura latino-americana. Este trabalho inseriu a discussão acerca
do foco narrativo nos mesmos processos de transculturação apontados por Rama,
vendo quais relações culturais estão implícitas também na maneira como o foco se
apresenta nos romances do escritor mato-grossense.
O conceito de transculturação coloca o problema da produção literária em termos
do contato entre duas formas que a cultura toma no ocidente: o particularismo (que
assume nomes como regionalismo, localismo, diversidade), que tende a fixar uma
particularidade ou particularidades culturais, e o universalismo, cuja intenção é de que
alguns de seus valores sejam aplicados para todo ser humano. Rama define três
‘rasgos’ que geram as culturas regionais: o histórico, que leva em conta o fato de que a
localidade à qual pertence o escritor em questão havia sido um centro de cultura; o
geográfico, segundo o qual a região se manteve em isolamento durante um
determinado período; o sistema social imperante, em que um grupo subjugado
socialmente se aferra a seus valores como fator de sobrevivência. Mato Grosso
apresenta todos esses aspectos, se considerarmos as palavras de Póvoas (1982) sobre
a intensa atividade cultural de Cuiabá, quando comparada a outros grandes centros do
país no século XVIII, sobre seu isolamento até o momento posterior à segunda Guerra
Mundial e sobre o fato de que, em relação aos grandes centros e à invasão pela
migração latifundiária a partir de 1960, a região teve seus valores culturais
profundamente abalados. Esse abalo gerou, em parte dos agentes culturais, o
aferramento a seus elementos identitários, como no caso dos literatos da Academia
Mato-grossense de Letras.
A cultura de caráter particularista é designada por Rama como ‘rural’, ‘regional’,
‘tradicional’ e, às vezes, ‘local’. A de caráter universalista, por sua vez, é designada
como ‘universalizante’, ‘modernizadora’ e, muitas vezes, ‘urbana’. A primeira descende
da cultura dos grupos minoritários, violentados pelo processo de colonização da
América Latina, especialmente os indígenas. A segunda descende das culturas das
potências imperialistas européias, que constituíram o que se conhece como cultura
ocidental. Discutir o foco narrativo nos romances de Dicke sob a lente da
transculturação é identificar como o romancista lida com os dados dessas culturas, no
contexto da produção literária em Mato Grosso e na América Latina. É determinar como
a categoria do narrador se insere nas questões referentes aos conflitos locais e à
produção da identidade como forma de resistência à anulação da cultura local.
Estabeleceu-se, aqui, que os aspectos semânticos, lingüísticos e da cosmovisão, são
diretamente dependentes da composição. A escolha da maneira de narrar define as
opções culturais do romancista em suas produções.
Os dois primeiros capítulos discutem como os conceitos de identidade, de cultura
e de trocas interculturais se relacionam uns com os outros. Acredita-se, aqui, que toda
elaboração identitária e conceitual, inclusive a dos conceitos de identidade, se origina
dos contatos entre grupos sociais. Partindo de autores que fazem uma revisão histórica
dos conceitos de cultura (Cuche, 2002), e da tipologia relativa às trocas culturais
(Burke, 2003), a intenção é definir a ‘transculturação’, dentre diversos outros termos
utilizados ao longo da história da cultura, como o mais apropriado para se aplicar ao
estudo dos romances de Ricardo Guilherme Dicke. É importante dizer que essa escolha
também é, abertamente, uma opção por utilizar para análise o pensamento gerado a
partir do próprio contexto em que o objeto deste estudo se insere: a América Latina.
O terceiro capítulo desenvolve o conceito escolhido de ‘transculturação’,
aplicando-o à literatura, apoiando-se nas discussões de Angel Rama. Estabelecem-se
os critérios de análise, os níveis (lingüístico, da composição e da cosmovisão) em que
se opera a análise e a configuração do contexto em que a transculturação ocorre na
literatura.
O quarto capítulo, apesar de não tratar diretamente dos textos literários de Dicke,
situa o romancista em relação à produção literária de Mato Grosso. O autor se distancia
de uma produção mais tradicional, vinculada à Academia Mato-grossense de Letras,
cuja temática tende à exaltação do elemento local, ao mesmo tempo em que se
distancia da produção de escritores mais recentes. O capítulo trata, também, de uma
‘redescoberta’ de Dicke no espaço da literatura regional mato-grossense e na
apropriação de sua imagem como ícone dessa literatura.
Os três capítulos seguintes fazem uma revisão de textos que trazem informações
mais aprofundadas sobre a obra de Dicke. Compõem o conjunto desses textos os
prefácios a seus romances e os estudos acadêmicos de duas professoras, Gilvone
Furtado Miguel e Hilda Gomes Dutra Magalhães. Os textos das duas autoras
apresentaram notável compatibilidade com a teoria da ‘transculturação’, pois pensam a
obra de Dicke de maneira a escapar às determinações de uma visão regionalista que
só atribui valor à obra que registra traços locais. A reelaboração mítica, tema do
trabalho de Miguel, e a temática do conflito entre as culturas rurais minoritárias e a
invasão latifundiária, tema do trabalho de Magalhães, são aspectos imprescindíveis
para entender os processos de transculturação dentro da literatura. Os prefácios, de
maneira geral, trazem duas discussões importantes para pensar a transculturação na
obra de Dicke, em particular: a questão da regionalidade e a questão do foco narrativo.
O estudo do foco narrativo nos livros do romancista é o tema principal desta pesquisa.
Ele foi o elemento desencadeador do trabalho e é o elemento chave para a discussão
da transculturação nas obras do autor.
É a esse procedimento que se resumem os dois últimos capítulos. O penúltimo
vai tratar da relação entre transculturação e foco narrativo, exemplificando-a com
trechos dos romances, definindo o foco narrativo como principal aspecto para se
avaliar, em Dicke, as questões referentes às dicotomias regionalidade/universalidade,
verdade/ficção, autor/personagem, mito/realidade e muitas outras oferecidas pelo
repertório da cultura ocidental. A discussão sobre a transculturação visa, justamente,
relativizar essas dicotomias na literatura. O último capítulo vai operar os critérios
estabelecidos no penúltimo e aplicá-los ao romance Cerimônias do Esquecimento que
é, segundo a perspectiva adotada para este trabalho, o ponto alto dos processos de
transculturação no romancista. Neste ponto, discute-se uma dicotomia fundamental,
que é uma das bases da herança européia e que Dicke, através do peculiar
procedimento narrativo que adota, questiona de maneira profunda: a dicotomia entre o
eu e o outro.
2 O CONCEITO DE CULTURA
Denys Cuche (2002), etnólogo francês, faz uma revisão histórica do conceito e
do uso do termo ‘cultura’ no âmbito das ciências sociais. Seu texto se inicia com a
evolução do vocábulo ‘cultura’ na França, desde a Idade Média até o século XVIII,
passando pelo debate entre alemães e franceses acerca dos termos ‘cultura’ e
‘civilização’, entre os séculos XIX e XX, com suas aplicações e implicações. O autor
delineia, desde o início, uma bipolaridade que vai percorrer todas as outras discussões
das quais irá tratar em seguida, quando do surgimento da etnografia, da sociologia e da
antropologia:
4
Os trabalhos da antropologia cultural norte-americana, de tendência particularista, somados à pesquisa
de Roger Bastide e outros, intensificaram o campo dos estudos interculturais. Cf. Cuche, 2002.
5
Conceito elaborado por um comitê composto por Robert Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits, no
Memorando para o estudo da aculturação. (apud Cuche, 2002: 115)
Note-se que a transformação dos patterns culturais pode se dar nas duas
culturas e não em uma só. O termo ‘aculturação’, no entanto, não manteve inteiramente
esse caráter de imparcialidade, problema contornado por outros termos como
‘hibridismo’, ‘mestiçagem’ e ‘transculturação’. A cultura passa a ser vista como algo
dinâmico, sujeita a alterações, assimilações, influências, ao longo do tempo.
Esta concepção do processo cultural se relaciona com outra discussão que toma
formas análogas: a questão da identidade. A ligação entre cultura e identidade está
vinculada com a nova maneira de se enxergar as relações culturais, pelos contatos
entre os grupos. A ‘moda’ da identidade, segundo Cuche, é:
6
Este trabalho opta por esta segunda maneira de ver a identidade, de acordo com a opção pela cultura
como sendo constituída pelos contatos interculturais.
indivíduos, numa situação de contato, com determinados fins relativos à situação social
em que se encontram:
Essa maneira de ver a relação entre identidade e cultura se aplica, por exemplo,
ao caso descrito por Woodward (2000, p.8). Trata-se de um episódio da guerra entre
sérvios e croatas, em que a autora destaca as maneiras com que cada lado busca se
diferenciar do outro, em virtude da guerra, mas ao mesmo tempo reconhece
semelhanças entre si. No caso em questão, há uma busca por elementos culturais
(como o cigarro sérvio) que representem uma ‘natureza’, uma originalidade, da qual se
está em busca e que comprove que há uma diferença entre os grupos envolvidos no
conflito. A autora talvez tenha escolhido este caso como exemplo porque, nele, essa
escolha estratégica dos elementos culturais fica mais evidente, já que ambos os lados
são dissidências identitárias de uma mesma cultura inicial. Uma mesma cultura a partir
da qual se constituem identidades distintas7.
O contato entre grupos pode se dar de várias formas e suscitar diversas
variações na formação das identidades e dos produtos culturais. Em geral, ele se dá de
maneira que os grupos envolvidos não possuam as mesmas condições, concorrendo
no contato com diferenças de desenvolvimento tecnológico, contingente demográfico,
autonomia política, superioridade econômica etc. 8 Se pensarmos que no contato um
dos lados possui uma vantagem, exerce uma dominação sobre o outro, a constituição
da identidade já não pode ser vista da mesma maneira, pelo menos para um dos
grupos, o dominado: “a hierarquia cultural resulta da hierarquia social” (Cuche, 2002:
143). Nessa hierarquia, o grupo com menos condições, “em sua evolução, não pode
desconsiderar a cultura dominante” (2002, p.145), o que não quer dizer que ele se
anule, pois o que está em jogo é a cultura e não o grupo: um dos grupos está
submetido, mas suas maneiras de ser e pensar, bem como suas práticas, podem
7
Pelo menos como grupos que buscam se diferenciar de outros, mesmo pertencendo a uma mesma
cultura. Aqui, busca-se uma negação, a diferença pela negação de que se é semelhante.
8
Roger Bastide estabelece diversos fatores que podem influenciar as trocas culturais. (Bastide, 1960:
326)
modificar a cultura do dominador. Esse processo de dominação e sujeição é permeado
sempre pela constituição das identidades de um e outro.
No contato entre grupos, pode ocorrer, pelo menos aparentemente ou
temporariamente, a anulação das manifestações culturais de um dos grupos envolvidos
no contato. O grupo que possui uma posição de vantagem pode impor sua cultura e sua
identidade como prática de dominação. A imposição, bem como a própria constituição
da identidade, toma a forma de narrativa. A identidade é tratada por muitos teóricos
como um processo de narrativa, em que o grupo elabora um contar algo sobre si
mesmo, formando um conjunto de significantes que constituem um topos de onde se
fala, onde se territorializa:
identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-se
é, em última análise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo se
definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si
mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da
definição implícita na qual esta coletividade se encontra. (Ricoeur, apud
Bernt, 1992: 19)
9
Veja-se o caso de Alemanha e França, por exemplo.
É preciso enxergar nos estados-nação a constituição de uma identidade que
pretende à unificação e homogeneização dos indivíduos. “A principal função das
culturas nacionais, que (...) são sistemas de representação, tem sido representar o que
é, de fato, uma amálgama étnica da nacionalidade moderna como a unidade primordial
de ‘um povo’” (Hall apud Escosteguy, 2001: 146). 10 O problema é que a estrutura
cerrada dessas sociedades, e conseqüentemente de suas culturas e identidades, se
desestruturou. Nessa desestruturação está implicada, dentre outras coisas, a
manifestação das minorias, constituídas dos grupos das regiões colonizadas e das
próprias classes desfavorecidas pela ‘narrativa nacional’.
O que ocorre, então, é que as minorias podem também incorrer no mesmo
essencialismo, usando o mesmo método conhecido para constituir sua própria
identidade, se fiando em referentes empíricos como cor, raça e território:
As minorias, por sua vez, também fariam um esforço para criar, novamente, suas
próprias narrativas, buscando uma originalidade cultural que os diferenciaria dos
antigos conquistadores. Se isso acontece, é porque já há nessa cultura,
invariavelmente, elementos da antiga estrutura dos estados-nação. Eles servem de
modelo de constituição de identidade, senão para a coletividade, pelo menos para
quem opera a narrativa. Pode-se pensar, por exemplo, que a estrutura de governo,
jurídica e educacional mantém-se no local sob os moldes do antigo estado colonizador.
Pode ocorrer que já se constituiu aí, dentre outras coisas, uma diferença de classes. A
narrativa da minoria pode ser gerada já no seio de uma elite local.
10
“O conceito (de soberania moderna) funcionou como pedra angular da construção do eurocentrismo.
Apesar de a soberania moderna ter emanado da Europa, ela nasceu e se desenvolveu em grande parte
por intermédio das relações da Europa com o exterior, e particularmente por intermédio do seu projeto
colonial e da resistência do colonizado. A soberania moderna surgiu, portanto, como o conceito da
reação européia e da dominação européia tanto dentro como fora de suas fronteiras”. (Hard & Negri,
2003, p.92).
O que acontece é que a condição de ‘ex-dominado’, de ‘ex-marginal’, já estaria
implícita na constituição mesmo da nova identidade que se forma. A relação, neste
caso, entre dominador e dominado, deve ser vista de outra perspectiva, pois já não é o
dominador que facilmente pode excluir ou inferiorizar o dominado em sua narrativa, mas
é o momento de o dominado criar a sua própria. Nesse momento, ele precisa reelaborar
a história de modo que ela pese favoravelmente para si. Como fazê-lo ao mesmo tempo
em que permanece o estigma da derrota? Como fazê-lo quando alguns componentes
da cultura do conquistador (como o pensamento maniqueísta que define a oposição
entre dominador e dominado) foram apropriados? É preciso lembrar que uma elite local
pode tanto assumir o partido das minorias quanto tentar conservar os padrões já
instituídos pelo antigo colonizador.
Esse contexto pós-colonial tem características muito peculiares, que se
configuram a partir de uma nova situação gerada pela decadência dos estados-nação.
Pelo menos dois tipos de cultura se apresentam e fazem lembrar os próprios conceitos
de cultura tratados no início deste capítulo: uma cultura de tendência universalista, ou
universalizante, descendente da cultura européia, ocidental, que se pretende um
modelo para o mundo; e outra cultura, remanescente de grupos nas sociedades
colonizadas que, não tendo o mesmo poder de difusão e influência da primeira,
procuram sustentar sua particularidade. Obviamente, essas culturas não estão isoladas
do contato entre si. Dentro do grupo, elas se manifestam em locais específicos, com
recursos específicos, com maior ou menor poder de disseminação.
Na América Latina, surgem produtos culturais que superam, consciente ou
inconscientemente, essa dicotomia entre culturas. Esses produtos se manifestam em
favor das culturas particulares, pois a universalista mantém seu status de verdade e de
essencialidade.
3 A IDENTIDADE E AS TERMINOLOGIAS
11
O conceito de pós-moderno aqui é o sugerido por Canclini na mesma obra, quando diz que “a
modernidade não é só um espaço ou um estado no qual se entre ou do qual se emigre. É uma condição
que nos envolve, nas cidades e no campo, nas metrópoles e nos países subdesenvolvidos. Com todas as
contradições que existem entre modernismo e modernização, e precisamente por elas, é uma situação de
trânsito interminável na qual nunca se encerra a incerteza do que significa ser moderno... A essa altura,
percebe-se o quanto tem de equívoca a noção de pós-modernidade, se quisermos evitar que o pós
designe uma superação do moderno. Pode-se falar criticamente da modernidade e buscá-la ao mesmo
tempo em que estamos passando por ela? Se não fosse tão incômodo, seria preciso dizer algo assim
como pós-intra-moderno”. (Canclini, 2003: 356)
12
O híbrido é um elemento fundamental para os estudos culturais, no estudo do contato entre as
culturas: “Freqüentemente é nas regiões fronteiriças que as coisas acontecem, e hibridez e colagem são
algumas de nossas expressões preferidas por identificar qualidades nas pessoas e em suas produções”.
(Hannerz: 1997, p.8)
interculturais. Os conceitos usados para analisar a cultura são, eles mesmos, produtos
de cultura e de identidade.
Em vista disso, e em meio a tantas terminologias conhecidas13, ao analisar uma
situação de contato intercultural, deve-se lançar mão da teoria que se apresente mais
adequada. No caso do romance de Ricardo Guilherme Dicke, objeto deste trabalho, a
teoria mais adequada parece ser a da transculturação. Para falar dela, no entanto, é
preciso tratar também de outro conceito já mencionado anteriormente: o de aculturação;
pois é em oposição a este que Fernando Ortiz, teórico cubano, propõe o uso do termo
‘transculturação’.
‘Transculturação’ foi adotado por Ortiz para substituir expressamente o termo
‘aculturação’. A diferença entre o uso dos dois termos marca a diferença cultural dos
grupos aos quais pertencem os seus elaboradores. A diferença conceitual marca a
diferença entre uma tendência universalista e outra particularista. Cuche, francês, sobre
o termo ‘aculturação’, diz que:
Este termo é ‘resgatado’ por Burke em sua origem, nos trabalhos com índios dos
antropólogos do fim do século XIX, que têm por idéia fundamental “a de uma cultura
subordinada adotando características da cultura dominante” (Burke, 2003: 44). É o
mesmo conceito que Ortiz usa para criticar o vocábulo, chamando atenção para as
perdas e as reformulações que ocorrem em cada cultura envolvida no contato, e que o
conceito negligencia:
13
Cf. Burke, 2003. Não se quer, aqui, repetir o trabalho de Burke e outros que realizaram essa revisão
teórica dos conceitos. Trata-se, aqui, de, dentro dos processos reunidos sob o conceito de hibridação, ver
qual se identifica mais com os objetos culturais em questão.
e, além do mais, significa a criação conseqüente de novos fenômenos
culturais, que se poderiam denominar neo-culturação. (Ortiz, 1983)14
14
Ortiz usa termos como ‘transmutação’, ‘sincretismo’, ‘transmigração’ e ‘mestiçagem’ como equivalentes
de transculturação, além de determinar as fases do processo: desculturação, aculturação e, por fim,
transculturação. (Ortiz, 1983)
pois estes são suportes, entre os quais ela pode se transferir. Para a América Latina e
Caribe, no entanto, o processo violento de sua colonização e também de sua libertação
não permite essa abstração da cultura. A sua condição de sociedade subjugada que,
depois, se torna marginal, interfere na percepção de si mesma. A nova cultura, que
surge transculturada, surge também como produto da resistência, consciente ou
inconscientemente, à perda cultural, testemunho da sobrevivência15.
Não se pode considerar, no entanto, para este caso, expressões do tipo ‘cultura
dominada’ como metáforas (como faz Cuche a respeito da análise de Marx e Weber em
Cuche, 2002: 145), pois a dominação é parte constituinte dessa cultura. O que faz com
que o conceito de cultura se contamine pela experiência do grupo é justamente a
identidade16. A identidade constituída de grupo dominado interfere na elaboração do
conceito de ‘transculturação’, assim como a identidade de dominador (e de universal),
interfere na elaboração do conceito de ‘aculturação’. Essa polarização se transmuta,
como já se viu, na dicotomia entre cultura universalizante e cultura tradicional, no
período pós-colonial. Essa dicotomia ainda adquire outras implicações, principalmente
referentes ao desenvolvimento social e tecnológico. As culturas tradicionais carregam o
estigma de atraso, enquanto que as universalistas se apresentam como
modernizadoras. Estas têm como suporte as grandes cidades do mundo, nos países
política e economicamente hegemônicos e nos países em desenvolvimento. Aquelas
estão espalhadas nos espaços rurais ou periféricos. Este estigma se reflete na
constituição da idéia de cidade como símbolo da inovação, da modernização, enquanto
o meio rural assume a representação da tradição. Essa é a correspondência que
Raymond Williams estabelece para as relações entre campo e cidade na Inglaterra:
15
Não no mesmo sentido de sobrevivência utilizado por Herskovits, para quem sobrevivências culturais
são ‘elementos da antiga cultura conservados idênticos na nova cultura sincrética’. (apud Cuche, 2002:
120)
16
Renato Ortiz, tratando d’O Guarani, de José de Alencar, como a construção de um mito de fundação
da brasilidade, diferencia as experiências românticas européias da brasileira: “No entanto, parece-me que
existe uma diferença entre a construção das nacionalidades na Europa... Os países europeus possuíam
um passado histórico que servia de alimento para a construção dos românticos.” (1988, p.261)
da cidade tende ao progresso, à modernização, ao desenvolvimento.
(Williams, 1989: 397)
20
A Semana da Arte Moderna no Brasil foi um caso em que a intelectualidade brasileira pensou a
constituição da nacionalidade frente aos padrões europeus de cultura e pensamento, conflito que
suscitou o surgimento de um conceito importante, que se aproxima da idéia de transculturação, que é o
de Antropofagia.
No Brasil, as metrópoles nacionais que representam as culturas modernizadoras
são as cidades de Rio e São Paulo – bastante presentes na narrativa de Ricardo
Guilherme Dicke – representantes ícones do progresso devastador. A superioridade
econômica e tecnológica é imprescindível nesse processo.
Rama estabelece três reações das culturas dominadas em relação ao processo
modernizador vindo das metrópoles: a vulnerabilidade, a rigidez e a plasticidade
cultural. A primeira se caracteriza por uma renúncia às próprias particularidades; a
segunda por uma fixação nos produtos culturais próprios e a terceira, que caracteriza a
transculturação, reelabora o elemento externo a partir do interno e vice-e-versa. O que
Rama vai apontar nas narrativas de transculturação é que nelas os autores ‘resolvem’ o
problema através da assimilação das tradições locais, associando-as às novas
tendências e estruturas artísticas, caracterizando “‘a plasticidade cultural’ com sua
destreza para integrar em um produto as tradições e as novidades” (apud Aguiar &
Vasconcelos, 2001: 214). Essa plasticidade cultural se deu como relativização da própria
linha regionalista, que notou que a resistência radical implicaria em morte cultural,
operando então uma transmutação do regionalismo que salvou seus princípios
dominantes:
22
Usar-se-á sempre os termos ‘universalista’ ou ‘de tendência universal’ e ‘modernizadora’ ou ‘de
tendência modernizadora’, na tentativa de marcar que essas qualidades não são dadas, mas são um
discurso construído que se pretende universal, pois se alastra juntamente com o sistema capitalista e tem
a favor de si inúmeros instrumentos ideológicos que reproduzem a cultura de determinados grupos como
sendo um padrão para todas as outras culturas.
5 O AUTOR DO ESQUECIMENTO E O ESQUECIMENTO DO AUTOR
23
Cf. site Tribuna da Imprensa, de 17/01/2005. http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2005/janeiro/
17/bis.aspbis= estante
24
Destaque para Deus de Caim, Caieira e Madona dos Páramos.
25
Que Lorenzo Falcão, jornalista e escritor, amigo e atual agente de Ricardo Guilherme Dicke, a
referência para os assuntos dickeanos no momento, resgata no seu texto sobre O salário dos poetas em
Falcão, 2006.
26
Lorenzo Falcão é jornalista e escritor em Cuiabá e tem atuado como agente de Ricardo Guilherme
Dicke, sendo um dos grandes colaboradores para a sua ‘redescoberta’.
Universidade Federal de Mato Grosso e uma Moção de Aplauso da Assembléia
Legislativa do Estado de Mato Grosso. Dois filmes foram produzidos a partir de seus
romances: Cerimônias do Esquecimento (do romance homônimo), num roteiro
premiado pelo DOCTV (2004), de Eduardo Ferreira, e Figueira Mãe (adaptação de
Madona dos Páramos), longa de Amauri Tangará, cineastas também mato-grossenses.
Dois de seus textos foram adaptados para o teatro: em 2003, a peça Belarmino e o
guardador de ossos, por Amauri Tangará, baseada no conto Banzo; em 2005, a peça O
salário dos poetas, baseada no livro homônimo, pela companhia portuguesa O Bando,
do diretor João Brites. Por fim, a homenagem na Literamérica I Feira Sul-Americana
do Livro, promovida em setembro de 2005 pela Secretaria Estadual de Cultura e pela
ONG AlimeMTo, Associação dos Amigos do livro Mato-grossense.
Essa mudança de postura em relação a Dicke, claro, reflete uma mudança de
configuração do contexto histórico-literário em Mato Grosso. O fato chama atenção,
principalmente, porque a situação de isolamento de Dicke se dá desde o início de sua
carreira, período durante o qual a produção de literatura em Mato Grosso e a
divulgação de seus autores continuaram funcionando.
O motivo mais aparente, que surge em meio a essa discussão, para esse
‘esquecimento’ do autor, tem a ver com um assunto que a cada dia vem tomando mais
corpo nas discussões acadêmicas e nas políticas culturais e leis de incentivo à cultura
no estado27: o regionalismo, na perspectiva já tratada anteriormente. Os estudos acerca
do regionalismo literário (e cultural) em Mato Grosso tomam grande impulso,
recentemente, com a instituição, pela Universidade Federal de Mato Grosso, do
Mestrado em Estudos de Linguagem, em 2003, que tem como uma das orientações
principais, na área da cultura, lançar um novo olhar para as produções culturais
produzidas em/sobre/por autores de28 Mato Grosso e suas relações com a cultura e a
sociedade local.
27
Na forma de estudos acadêmicos sobre artistas do estado, tanto da Universidade Federal de Mato
Grosso quanto da Universidade do Estado de Mato Grosso; na discussão acerca dos critérios para
aprovação dos projetos pela lei de incentivo à cultura e às políticas para o fomento cultural, como a
Literamérica, nas quais se avalia o que é mato-grossense ou não;
28
Essas três preposições são um ponto fundamental na discussão sobre o que define a literatura como
mato-grossense. Cf. o primeiro capítulo de Hilda Magalhães à sua Historia da Literatura Mato-grossense,
de 2001, e o ensaio de Mário Cezar Leite na coletânea Mapas da Mina, de 2005.
De acordo com a análise que se seguirá, Dicke não se enquadra nos paradigmas
literários elaborados pela produção regionalista mais tradicional (ou de Cuiabá, seu
espaço mais específico). Por outro lado, também não escapa mais, atualmente, a essas
questões acerca da cultura local, porque o espaço de seus romances é
impreterivelmente Mato Grosso, porque já é, há algum tempo, tema de interesse para
acadêmicos das universidades locais e, principalmente, porque, mesmo não se
enquadrando num discurso tradicional regionalista mato-grossense, caracterizado,
sobretudo, pelo ufanismo à terra e pela valorização das belezas naturais e culturais de
Mato Grosso, é tomado hoje como um dos grandes representantes da arte do Estado,
não somente pelos críticos e artistas nacionais, como o provam as referências, mas
pelos agentes culturais e pensadores locais.
Revisando a história literária de Mato Grosso, aparecem duas importantes
instituições, tomadas aqui como representantes de duas tendências que paralelamente
atuam no contexto literário do Estado: a Academia Mato-Grossense de Letras, mais
antiga, e que representa a tradição literária e o “panteão” das letras mato-grossenses; e
a Universidade Federal de Mato Grosso, calcada no estudo científico das relações
culturais 29 . Ambas, sob a denominação de Academias, têm, no entanto, papéis e
objetivos muito claros no meio em que atuam.
Mário Cezar Silva Leite, professor de Literatura da Universidade Federal de Mato
Grosso e incentivador dos estudos e produções literárias no Estado, acaba de publicar
um artigo sobre o regionalismo que envolve a Academia Mato-Grossense de Letras e o
movimento modernista em Mato Grosso. A partir de uma revisão dos conceitos de
regionalismo e identidade cultural, que vão desde Machado de Assis, com seu famoso
‘Instinto de nacionalidade,’30 passando por Antonio Candido31 e Lúcia Miguel Pereira
29
Representados pela primeira estão as instituições do tipo Instituto Histórico-Geográfico, a Fundação
Cultural de Mato Grosso; junto à segunda estão as instituições de ensino superior, com destaque à
Universidade do Estado de Mato Grosso, e as instituições e projetos culturais como SESC Arsenal e o
Projeto Palavra Aberta. Cf. em nota de rodapé de Leite, 2005: 233.
30
Cf. ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade. In
COUTINHO, Afrânio (org.). Machado de Assis. Obra completa. V III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992,
p.801-809.
31
Cf. Candido em seus livros ‘Literatura e sociedade’, ‘Formação da Literatura Brasileira: momentos
decisivos’ e ‘Silvio Romero: teoria, crítica e história literária’. Candido, procura sempre destacar a
necessidade de afirmação do local nas produções brasileiras, colocando o nativismo como um dos
aspectos definidores de nosso público leitor. Cf. Candido, 1967: 93-94 e 151.
(1988), que trata do regionalismo sertanista, Leite, mais do que a uma conclusão,
chega à constatação de uma fragilidade nas manifestações artísticas calcadas num
espírito regionalista, que consiste na concepção do indivíduo como síntese do meio:
E ainda:
Para a minha perspectiva nesta pesquisa e trabalho tanto a obra de
Rubens de Mendonça quanto a de Lenine Povoas também devem ser
pensadas como fundamentais participantes da criação do discurso
regionalista. (Leite, 2005: 233)
Leite vai mais além, ao pensar na produção dos modernistas, tendo como foco
32
central a revista Pindorama , que também se insere nesse mesmo discurso
regionalista, pelo elo com a geração anterior através de Rubens de Mendonça, que
‘encabeçava a revista’ e pelo próprio teor ideologicamente regionalista dessas
produções. Ressalta ainda a absorção dos novos escritores pela Academia Mato-
grossense de Letras, sinal de que não haveria um efetivo rompimento entre as
gerações, pelo menos no que diz respeito à ideologia e não à disputa pela renovação
estética (Cf. Leite, 2005: 247-248). A ideologia regionalista continuaria mesmo com os
vanguardistas.
O texto de Leite marca muito bem, na história literária de Mato Grosso, a
distinção entre um discurso regionalista tradicional, que abarca historiadores,
jornalistas, escritores, que têm como objetivo a edificação da grandeza mato-grossense
(cuiabana, mais especificamente) e um outro científico (universitário), que debate
justamente essa postura edificadora. O primeiro está ligado à Academia Mato-
grossense de Letras e o segundo às universidades, entre as quais se destacam à
Universidade Federal de Mato Grosso e à Universidade do Estado de Mato Grosso, em
particular, ao curso de Letras, pois há, na AML, professores das universidades de
outras áreas, como Direito ou Medicina, seguindo uma tradição dos escritores
brasileiros. Ambos os discursos produzem tanto a literatura quanto a crítica e a história
referentes à arte no Estado. Durante muito tempo, esses dois discursos se mantiveram
paralelamente.
Houve, e ainda há, dessa forma, em Mato Grosso, um alheamento entre essas
classes produtivas, pelo menos no que concerne ao discurso científico-histórico. Pode-
se constatar tal ocorrência pelo fato de que um livro recentemente lançado por Carlos
Gomes de Carvalho, da Academia Mato-grossense de Letras, 2004, não cita
referências a trabalhos universitários contemporâneos de outros que figuram nas suas
notas,33 apesar de contar com um texto de Lucinda Persona.
32
E outros periódicos produzidos como Sarã, Ganga e o Manifesto do Movimento Graça Aranha.
33
O livro de Carvalho, intitulado ‘Panorama da literatura e da cultura em Mato Grosso’, dá conta de textos
históricos que são também utilizados em textos como os de Leite (2005) ou Magalhães (2002), mas não
há referências a trabalhos universitários como o de Hilda, da área de linguagens, em suas considerações
iniciais. Cf. Carvalho, 2004: 13-29.
O ‘lado’ universitário não se mostra tão estanque assim, haja vista os trabalhos
de Magalhães e Leite, talvez porque a questão regional não seja um problema para os
acadêmicos da Academia Mato-grossense. Para estes, o problema (e o objetivo), ainda
segundo Leite, é elevar a ‘legítima’ cultura mato-grossense à esfera representativa
nacional. Mesmo assim, percebe-se também que há uma leva de escritores recentes
publicando literatura por uma também nova leva de editoras, nacionais e locais. Autores
como Lucinda Persona, Aclyse e Gabriel de Mattos, Wander Antunes, a própria Hilda
Magalhães, Marta Helena Cocco, Marilza Ribeiro, Teresa Albues; editoras como
TantaTinta e Cathedral; revistas como a revista eletrônica (hospedada no site da UFMT)
Prosa Virtual e outras como Versoeprosa e Dazibao e, principalmente, a revista Vôte,
instrumentos de divulgação que instauraram uma espécie de boom literário mato-
grossense34. Vinculam-se à ‘cultura mato-grossense’ de uma maneira diferente, menos
apologética e ufanista, daquela mantida pela Academia Mato-grossense.
Apesar disso, mesmo essa ‘nova geração’, de uma maneira análoga ao que Leite
aponta para os vanguardistas, parece também estar ideologicamente absorvida por um
discurso regionalista identitário. A revista eletrônica Prosa Virtual35, hospedada no site
da Universidade Federal de Mato Grosso, se apresenta da seguinte maneira:
34
Não se colocará o adjetivo ‘mato-grossense’ em discussão aqui. Leva-se em conta essa denominação
pois ela é adotada em jornais, encontros, coletâneas de textos literários e científicos etc.
35
Esta revista está temporariamente fora de atividade.
quente desejo de incendiar o cerrado de livros, para fazer nascer a
autonomia editorial de Mato Grosso.36
36
Site Prosa Virtual (http://cgi.ufmt.br/prosavirtual/quem_somos.htm), em que aparecem os nomes dos
artistas e intelectuais ligados ao grupo universitário.
37
Contemporâneo, aqui, não tem caráter de corrente estética, mas de termo de diferenciação com a linha
tradicional da produção literária. Esta linha contemporânea é composta por autores que se aproximam de
estéticas mais atuais.
38
Entenda-se sistema literário a partir de Candido (1967): formado pela interação entre autor, obra e
público.
locais. Dessa forma, inverte-se a situação colocada por Rama, em que o regionalismo
tradicional é que precisou se modificar para sobreviver.
O romancista, apesar de ter seus livros publicados antes de 1970, época de
renascimento das atividades artístico-culturais no Estado, tanto pelo advento da
Universidade Federal de Mato Grosso quanto da Fundação Cultural de Mato Grosso,
correspondentes, respectivamente, aos discursos contemporâneo e regionalista acima
tratados, e sendo ainda premiado em seus romances de 68 (Deus de Caim), 77
(Caieira) e 82 (Madona dos Páramos), só vem ter reconhecimento efetivo e público há
muito pouco tempo. Os motivos desse reconhecimento ainda não se revelaram
totalmente.
Mário Leite, em nota de rodapé (Leite, 2005: 233), aponta que a literatura em
Mato Grosso só veio ter movimentação mais intensa no fim da década de 90, tempo em
que Dicke ganha mais um prêmio nacional, com Cerimônias do Esquecimento, 1995,
publicado pela Editora da UFMT. O autor, depois disso, publica mais três livros (O
salário dos poetas, Rio abaixo dos vaqueiros e Coincidência Opositorum) pela Lei
Estadual de Incentivo à Cultura do Estado de Mato Grosso. Ao que parece, é a partir da
publicação de Cerimônias do Esquecimento que a ‘sorte’ do autor começa a mudar,
auxiliada em parte, pela atividade de seu agente Lorenzo Falcão, intermediário em
todos os processos artísticos/publicitários que envolvem o seu nome.
Recentemente, houve a criação de uma associação de pessoas interessadas em
literatura, preocupadas em discutir uma lei não regulamentada que obrigava as escolas
a oferecem as disciplinas referentes à cultura local:
39
Ver estatuto no site da associação: http://www.alimemto.org.br/quem/estatuto.asp?detpage=4
mais recentes. Ele também está sendo transformado em um novo ícone da literatura
mato-grossense. Deve-se notar se, a exemplo do que Leite já dissera sobre Dom
Aquino, José de Mesquita e Silva Freire, Dicke não seria a nova personalidade regional
capaz de representar a literatura de Mato Grosso, mesmo sem ser lido ou entendido
pelo grande público mato-grossense 40 . Alguns aspectos podem contribuir para isso:
elementos locais como a fala do sertanejo ou o espaço mato-grossense que aparecem
nos seus textos; o fato de que ele é essencialmente romancista, gênero que reflete
mais adequadamente o tipo de sociedade em que vivemos e que é, na literatura, o que
possui melhor status; os prêmios que recebeu; o fato de ainda viver em Mato Grosso
etc41.
De tudo isso, resta mais uma pergunta do que uma conclusão: a regionalidade e
representatividade de Dicke vêm calcados (justificados) nas críticas nacionais, nos
prêmios e não por um esforço de valorização ou inserção locais, tanto por parte dele
mesmo, quanto por parte da Academia e dos órgãos relacionados à literatura?42 O que
parece acontecer é que os primeiros apelos (ou pelo menos os mais significativos)
anteriores às homenagens vêm da crítica nacional e não de um esforço local. Dicke
mesmo, vivendo na região, busca guarida em críticos estrangeiros e, ele próprio,
corrobora com as opiniões acerca de seu isolamento e esquecimento. Vejam-se suas
palavras, em entrevista a João Ximenes Braga, do jornal O Globo, sobre o mercado
editorial local:
Sim, aqui a gente pula atrás de editores. Como não há o que fazer,
temos que esperar que nos descubram nos grandes centros. Tenho oito
livros prontos para publicar. Nenhum plano porque aqui é a minha
Finisterrae. (Dicke, 2004: 2)
40
Leite se apóia numa citação de Lúcia Miguel Pereira, que diz que faltou ‘um homem de prestígio e de
coragem que chefiasse um movimento literário de franca mudança de rumos’ (Pereira, apud Leite, 2005:
231)
41
Para efeito do que se diz aqui, a Feira de livros Literamérica, já mencionada, homenageia
principalmente Manoel de Barros, Wladimir Dias Pino e Ricardo Guilherme Dicke. Dos três autores, Dicke
é o que menos possui repercussão nacional e local.
42
Abre-se a possibilidade, aqui, de se estudar o consumo de ‘literatura regional’ pelo viés das ações do
mercado editorial em conjunto com a Universidade Federal de MT, pela exigência da literatura regional
nas escolas e, principalmente, cursinhos, legitimando a literatura pelo vestibular. Quem traz essa
possibilidade, ao refazer um percurso histórico do segundo grau (ou tantos outros nomes que esse nível
já adquiriu) no Brasil, é Regina Zilberman, 1991.
O autor não publicou seus títulos pelos mesmos canais que os da Academia e só
seus romances mais recentes foram publicados com incentivo do Estado, fatos que já
podem ser considerados frutos das mudanças que estão levando Dicke à possível
situação de ícone regional.
Concomitantemente a essas relações político-culturais identitárias envolvendo o
romancista, que dizem respeito à situação do escritor no meio literário local, há ainda a
questão estética da obra de Dicke. Ele não pertence a nenhuma das duas vertentes de
artistas tratadas anteriormente. Não se pode afirmar que ele é um regionalista
tradicional, como os escritores da Academia Mato-grossense, pela ausência dos
elementos apologéticos às belezas e aos tipos da região43, mas ele também não se
insere totalmente na nova geração de escritores, por ser de um outro contexto histórico-
social, que determina sua produção de maneira totalmente diversa. O que o aproxima
do segundo grupo não é propriamente sua estética (que também o distancia do
primeiro), mas a movimentação do meio literário mato-grossense pelo grupo
universitário, que investe na sua redescoberta para a consolidação de um sistema
literário em Mato Grosso.
43
Este trabalho corrobora, aqui, com as idéias de Leite:2005.
6 OS PREFÁCIOS E AS PREVISÕES: REGIONALIDADE E FOCO NARRATIVO
Lidando com toda uma simbologia a que ele dá um sopro vital fora do
comum, Dicke não deixa coisa alguma de fora. Seu enredo é de vida
primitiva, com personagens que, revelando uma existencialidade mato-
grossense, estão no ar, soltos e livres, não comprometidos com uma
possivelmente falsa mato-grossidade, humana e literariamente
disponíveis. (Dicke, 1968: 13)
44
Pólvora investe nessa relação, estabelecendo a aproximação com os locais de fronteira: ‘Madona dos
Páramos é o relato dos jagunços do Mato Grosso do Sul e do Norte, e das regiões fronteiriças com o
Paraguai e a Bolívia.’(Dicke, 1981: 7) Apesar do deslize geopolítico, Pólvora sugere algo que será aqui
discutido: a relação entre a produção de Dicke e a produção latino-americana, dada a grande recorrência
de elementos hispano-americanos e seus romances.
prefácio mais recente, de O salário dos poetas, Amorim trata Dicke da seguinte
maneira:
Enfim chega ao público a obra que pode ser saudada como o mais
seguro para se penetrar no vasto e complexo universo literário do autor
mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke...
O escritor Ricardo Guilherme Dicke é o principal autor mato-grossense
no terreno da ficção. (Dicke, 2000)
Assume-se Dicke como mato-grossense, não pelo viés da sua relação com a
modificação do espaço local, da repercussão dos conflitos locais em seus textos, mas já
por um discurso regionalista assimilado, que naturalmente identifica o autor com a
região, sem problematizar essa relação, como fazem mais abertamente Olinto e
Pólvora.
Todos esses aspectos acima relacionados aparecem, de uma maneira ou de
outra, nas críticas mais especializadas acerca do romancista. Sugere-se aqui, desde já,
pelas informações do capítulo anterior e pelas impressões dos autores dos prefácios,
que, enquanto há um discurso regionalista apologético em Mato Grosso, calcado no
ufanismo à natureza local, há outro que está mais sintonizado com as modificações em
todo contexto social.
Outro aspecto recorrente, e talvez o elemento estético mais relevante, na
produção literária de Ricardo Guilherme Dicke, consiste na maneira como o autor
manipula os pontos de vista e os narradores em suas narrativas. Os prefácios de seus
romances também sinalizam sobre esse ponto diferencial. No prefácio a Deus de Caim,
Antonio Olinto diz:
O que se constata nesses dois trechos é a impressão volúvel dos dois autores
acerca dos ângulos da narrativa, ou do narrador. Apesar de as pessoas gramaticais não
serem imprescindíveis para a definição do ponto de vista, ou do ângulo 45 , como
denomina Olinto, é basicamente a partir da observação desses elementos nos
romances que se pode depreender em quê o processo narrativo de Dicke se torna
diferente de uma narrativa mais tradicional. Pólvora, associando o romancista mato-
grossense a João Ubaldo Ribeiro e Guimarães Rosa, no que diz respeito ao
procedimento narrativo, qualifica como monólogo aquilo que acontece em Dicke.
O que ocorre, no entanto, no caso de Rosa, é que, apesar das digressões e falas
de outros personagens que Riobaldo apresenta na sua narrativa, ele é o narrador
definido e definitivo da história. Não se perde de vista a presença tanto dele quanto do
ouvinte de sua narrativa, o ‘senhor’ a quem ele dirige suas palavras. Em Dicke, por
outro lado, acontece com o narrador exatamente o que afirmam (ou não conseguem
afirmar) Pólvora e Olinto em seus textos: o falseamento ou, ao menos, uma
desorientação na definição do foco narrativo. Não se pode definir claramente se os
romances são de terceira ou primeira pessoa, nem que uma destas predomina sobre a
outra.46
Nas seções seguintes, abordar-se-ão esses dois aspectos no decorrer da obra
de Dicke: a temática que abrange as alterações sócio-culturais na região por causa do
grande fluxo migratório em direção a Mato Grosso após os anos 60 e a elaboração de
um procedimento narrativo diferenciado, que indetermina, através da alternância das
45
Vários teóricos que tratam sobre o assunto não vinculam o ponto de vista ao uso da pessoa gramatical.
O que sugere, por exemplo, uma visão ‘com’, no caso de Pouillon, ou a ‘dramatização’, de Lubbock, bem
como as diferentes formas de narrar de Friedman e outros, não são as pessoas gramaticais, mas vários
aspectos que se inter-relacionam. Uma narrativa de terceira pessoa, por exemplo, pode tanto se dar na
visão ‘com’, como na visão ‘de fora’, se ela perscruta a mente do personagem ou somente o descreve
exteriormente. Essas posições são medidas, por exemplo, pela apresentação do personagem, por aquilo
que ele consegue perceber à sua volta, pelo grau de conhecimento que ele tem de si e dos outros na
história etc. (Cf. Sallenave:sd)
46
Hilda Magalhães afirma que Caieira é um romance de terceira pessoa, justificando que esse
procedimento aumenta o alheamento em que os personagens se encontram no romance. Caieira, no
entanto, apresenta também o mesmo uso das pessoas gramaticais que aparece nos outros romances.
pessoas gramaticais que marcariam o tipo de narrador, o ponto de vista inscrito nos
textos.
7 A SUPERAÇÃO DO REGIONAL E O ENTRE-LUGAR EM MADONA DOS
PÁRAMOS
47
Na seqüência, cita Helio Pólvora para reiterar a idéia de que o romance tem identidade de épico do
sertão, assim como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Pólvora, no entanto, ‘resguarda-o
(Dicke) de ficar à sombra dos já consagrados autores citados’ (Rosa, João Ubaldo Ribeiro e Euclides da
Cunha), novamente demonstrando uma preocupação com o valor nacional de Dicke.Cf MIGUEL: 2001 P
11.
como fonte de formação da narrativa. A este processo Mielietinski
chama de remitologização. (2001, p.89)
Olinto usa o conceito de absurdo para falar da posição de Dicke frente à tradição
literária brasileira, afirmando que o autor tenta destruir, até certo ponto, a situação da
literatura no Brasil, estética e ideologicamente, sem fazer oposição, mas sim escapando
a essa dicotomia, propondo algo novo e independente. Exemplo disso é o que aponta
Miguel em Madona dos Páramos, quando diz que a narrativa dickeana supera, nos
temas pelos quais circula, dicotomias do tipo bem/mal, real/sobrenatural,
material/sonho, (Miguel, 2001:15-16).
Magalhães considera o absurdo por outro viés, a partir dos conceitos de Camus
e José Fernandes. Para ela, o absurdo é uma resignação que impede a ação do
marginalizado frente a seu opressor, quando não consegue defini-lo. Diz, ainda que,
dificilmente, um personagem consegue ter a consciência de sua opressão e, quando a
tem, torna-se ainda mais absurdo, pois conhece também a amplidão de sua impotência
(2002, p.47). É dessa forma que a experiência do absurdo, na perspectiva de
Fernandes, que é a teoria pela qual, por fim, a autora parece optar, é vivida antes pelo
leitor que pelo personagem. Como este não tem consciência de sua situação, é o leitor
quem compõe, pela leitura, a imagem de absurdez do mundo. (2002, p.17)
A partir daí, Magalhães define duas posturas distintas na literatura da Amazônia:
uma que condena os personagens a uma eterna letargia, mesmo quando, ao final, o
elemento mítico pune o opressor, instaurando o irracionalismo (2002, p.50) - nesta
postura se inserem Dicke, Teresa Albues e José Vilela; outra que traz uma visão mais
consciente e revolucionária, pois não sujeita seus personagens à situação de absurdo.
Desta fazem parte Dom Pedro Casaldáliga e Márcio Souza. Os autores da primeira
linha apenas se ‘contentam em ilustrar os dramas da exploração, sem empreender um
debate sobre os problemas’, ao passo que os da segunda não ilustram a mesma
inconsciência dos personagens em relação aos opressores, nem a do leitor em relação
ao contexto em que se insere, no caso, o de subdesenvolvimento local e exploração
pelas grandes empresas do capitalismo. (Magalhães, 2002:131) Importante, no entanto,
é entender que, para Magalhães, algumas produções literárias, incluindo a de Dicke,
não escapam a uma discussão acerca do local, pois os conflitos que nele ocorrem são
materiais para a elaboração estética e, em última instância, definidores de sua
estrutura.
Apesar de concordarem em alguns pontos49, Miguel e Magalhães apresentam
conclusões diferentes. A segunda se aproxima das idéias de Candido e Rama, apesar
de não usá-los como referência, quando se debruça sobre a obra de Dicke, enfocando
aquilo que nela se pode detectar do conflito entre culturas. Magalhães não destaca, em
seu texto, a qualidade dos ‘jagunços’ em Madona dos Páramos. Miguel os coloca como
lutadores, positivamente (Miguel, 2001:17), enquanto Magalhães os pinta como
assujeitados sem rumo e sem força para escapar ao domínio do poder desconhecido
(representado pela fazenda do Batovi, ou O Desolado). (Magalhães, 2002:17)
Essa diferença de opinião, talvez a mais evidente na comparação, vem da
diferença de postura das duas autoras em relação ao aspecto regional. Ambas não
colocam o problema em foco, apesar de seus trabalhos estarem permeados por esse
assunto. A diferença entre as autoras é que Miguel não se propõe voluntariamente a
essa questão e Magalhães não chega a discuti-la porque, segundo sua perspectiva, a
relação dos romances de Dicke com o contexto sócio-histórico é um pressuposto e sua
análise, dessa forma, escapa ao maniqueísmo entre o regional e o universal. Em
Magalhães, o que compõe o aspecto regional são critérios ou características que
marcam a opção dos produtores em relação ao jogo de poder entre as culturas. Neste
caso, o aspecto local é mais ativo e menos superficial do que em Miguel, que o
considera apenas como patamar para o desenrolar dos fatos.
Mesmo Antonio Candido, quando trata das relações entre localismo e
universalismo, afirma que, no Brasil, as produções mais significativas são aquelas em
que estas relações estão implicadas (Candido, 1967:151). Angel Rama, por sua vez,
afirma que o regionalismo veio para ficar na América Latina (apud Aguiar &
Vasconcelos, 2001: 137) e se torna elemento indispensável para análise. Rama ainda
observa que, no confronto entre as culturas rurais do interior e as culturas
modernizadoras das grandes metrópoles nacionais, o discurso frágil do regionalismo
tradicional serve à prática de dominação da cultura pois, ao conservar puros os
elementos dessa cultura, impede o seu desenvolvimento (Rama,1982:169).
49
Concordam em alguns aspectos. Miguel, citando Magalhães, se refere à consciência que o
personagem tem de sua fragilidade, de sua incapacidade frente à opressão ou ao mistério da vida e do
sofrimento. (Miguel, 2001:15-16)
Em Dicke, o local se traduz na reelaboração literária (e mítica) do conflito social
e, portanto, é indispensável na análise, pois, mesmo tratando-se de temas
universalizantes (e não universais), estes só ganham materialidade e sentido quando
incorporados à cultura local, quando reelaborados por ela.
8 DICKE E AS MIGRAÇÕES PÓS-60
Enquanto Cuiabá esteve isolada dos grandes centros do país... vive ela
a fase mais brilhante de seu desenvolvimento literário...
A partir da Segunda Guerra Mundial, justamente quando a maior
facilidade de comunicações e transporte, pelo rádio, pelo telefone, pelas
rodovias e pela via aérea colocaram Cuiabá mais próxima dos grandes
centros, segue-se um período de estagnação em suas atividades
culturais.( Póvoas, 1982:16)51
En esas condiciones, las culturas más tradicionales, más puras, eran las
que se revelaban más inermes para defenderse, las que se entregaban
al proceso de aculturación que las despojaba de su identidad,
celosamente custodiada por siglos. (Rama, 1982:169)
O primeiro caso ocorre, em Mato Grosso, com as produções que tem como
referente a cultura da capital e não a do interior. As produções que têm como centro a
capital Cuiabá, diminuem e são suprimidas pela modernização, como podemos
depreender pelo texto de Póvoas, acima, ao passo que as produções que remetem ao
espaço do interior do Estado (obviamente, nem todas elas), adquirem significativo
material estético. O que vai acontecer na Capital, num período posterior, é uma ação de
cunho regionalista, na tentativa de resgate e preservação de um patrimônio cultural
original. Esse fato colabora mais com o sistema de dominação da cultura
modernizadora, que se transfere dos grandes centros para as pequenas cidades do
interior, do que com a resistência dessa cultura resgatada:
52
‘Aculturação’, neste caso, tem o sentido que lhe é dado por Burke: a aquisição, pela cultura
subordinada, dos valores e características da cultura dominante. Cf. p. 24 deste trabalho.
53
Hilda Magalhães lembra, ao tratar da amazônia legal, a ‘ausência de tradição de luta de classes no
Brasil, a falta de formação dos antigos cultivadores, o isolamento geográfico desses últimos e dos
indígenas’ (Magalhães, 2002: 26) A esses aspectos, poderia se acrescentar a falta, no caso dos colonos
da região, de uma identificação mais efetiva de si enquanto grupo.
ao menos por um tempo, o que já é uma maneira de matar a cultura,
ao dificultar sua criatividade e renovação, para depois substituí-la pela
homogeneidade urbana. Normalmente propõe às regiões internas uma
escolha macabra: ou retroceder ou morrer.(Rama apud Aguiar &
Vasconcelos, 2001:191)
54
É o que predomina nos dois autores destacados pela autora: Pedro Casaldáliga e Marcio Souza.
55
Cf. Miguel, 2001.
56
Assim como Magalhães trabalha com autores de Estados distintos (Amazonas e Mato Grosso),
agrupando-os numa mesma região cultural, Rama supera os limites entre América hispânica e lusa pelo
processo de colonização que, apesar de suas diferenças, situa as duas Américas no plano de colônia
explorada. A cultura extrapola os limites da divisão política.
A questão incide sobre a mudança da perspectiva a partir da qual se conta, se
narra a história. Enquanto tradicionalmente o ponto de vista se detém no olhar do
dominador, o tipo de literatura analisada por Magalhães reflete a perspectiva, ou do
próprio dominado, ou de alguém que toma partido de seu sofrimento e de sua situação,
e usa a literatura como arma de denúncia, como espaço para a punição ou caminho
para a libertação. A autora, mantendo essa postura, chama atenção para a
recaracterização do espaço amazônico e a reflexão desse processo na literatura
produzida na região, indicando os participantes dos conflitos sociais. Na segunda seção
do primeiro capítulo, Magalhães percorre a trajetória de ocupação da região por
grandes latifundiários subsidiados pelo governo e as conseqüências dessa ocupação.
Estou em minha terra. Terra minha sim, senhor. Este terreno é meu,
meu finado marido Cachambão foi me deixou de herança e esse maldito
americano vindo não sei de onde, que as piranhas lhe comam os ossos
um dia, vindo do inferno de sua riqueza foi que nos fez a nós, pobres,
mais pobres ainda. Esse doutor coisa nenhuma doutor em desgraça dos
outros, doutor em maldição... esse doutor de fel e sangue nos roubou
toda essa terra que ele diz que é dele, porque é americano e mora lá na
cidade, amigo do governador e de toda essa gentaria importante, passa
sua vida no bom aproveitando a miséria de todos nós. (Dicke,1978: 30)
A cultura universalizante que entra em choque com a cultura local, nos romances
de Dicke, é a americana, de maneira mais significativa do que a Européia, que talvez
seja a referência maior em Deus de Caim, em que os personagens mais ricos viajam ou
já viajaram a diversos países daquele continente. A TV, nesse processo, é a grande
difusora dessa cultura, em contrapartida aos cantadores, poetas, ciganos, que
compõem os canais transmissores e sustentadores das informações e narrativas de
uma cultura local. O processo de exploração da cultura local gera seus contingentes:
As obras analisadas pela autora em seu livro trazem, além do próprio conflito
entre latifundiários e antigos ocupantes, na década de 60, a prostituição, a
marginalidade, a promiscuidade e a violência, que permeiam as novas relações sociais
vividas pelos participantes do conflito. Pensando na produção de Dicke, seus
protagonistas podem ser vistos, em grande parte, como provenientes da massa
marginalizada resultante desse processo. Essa massa se tornou mão-de-obra para o
grande capital, como em Caieira, por exemplo, em que os empregados da caieira Nova
Esperança são mantidos num regime de semi-escravidão por um empresário
americano. Ela compõe o grupo excluído dos privilégios do sistema – bêbados, loucos,
professores desempregados, ciganos, trabalhadores braçais, jagunços, prostitutas,
bandidos, garimpeiros, índios, peões de gado e tantos outros estereótipos da
marginalidade, na cidade grande ou em áreas rurais. Esses estereótipos estão
presentes, sem exceção, em todos os livros de Dicke.
Há, ou houve nesse momento, portanto, em Mato Grosso, uma divisão básica
entre o grande capital que chegava, trazendo com ele a modernização das técnicas
agrícolas, dos transportes, com as estradas57, da vida em geral, e as populações que
aqui já se encontravam antes dessa migração. Em Dicke, as estradas, como pontes que
ligam o interior às grandes metrópoles, são representativas da cultura universalizante, e
marcam novas relações espaciais. Veja-se esta passagem de Deus de Caim, que
descreve o espaço da cidade em que se situa o palacete de Isidoro, que é uma das
personagens centrais:
Será mesmo a noite mais fria do ano, como a televisão do bar Nínive
sempre mastigando sua pirada perversão de anúncios sobre tratores,
moto-serras, facões e machados anunciou? (Dicke, 2000: 81)
a TV desilusionada do bar Nínive ia vomitando tratores, motoserras e
machados e facões e outros monstros, entre caras de aureolados
presidentes e governadores e os capotes se faziam surdos da surdez
das imagens que se desilusionavam na TV do bar Nínive, tudo era
possessa surdez extraordinária... (Dicke, 2000: 427)
58
Se nos primeiros tempos da Colonização a ocupação da Amazônia estava diretamente ligada à
necessidade de se garantir a soberania da Coroa Portuguesa sobre as terras do Norte brasileiro, no
Século XX as políticas de integração da Amazônia visam, de um lado, a afirmação da soberania brasileira
sobre a Amazônia, ameaçada pelos projetos de internacionalização apresentados principalmente pelos
Estados Unidos, e, de outro, elevar a taxa de exportação de produtos agropecuários a partir da
implantação na Amazônia Legal das chamadas ‘fazendas-empresas’. Cf. Magalhães, 2002: 20-21.
metrópoles nacionais que, por sua vez, reproduzem, no contato com metrópoles
regionais ou com culturas rurais, a sua relação com as metrópoles mundiais. São os
processos de transculturação entre a metrópole nacional e a cidade interiorana que
permitem maior plasticidade na elaboração local do material estrangeiro:
Terras que rendem, terras que são dinheiro... essa gente não prestava,
não trabalhava, para que queria terra. Ele não, estava ali, pronto para
trabalhar, fazer aquilo tudo crescer, para fazê-la parir frutos e frutos sem
fim, cornucópia inestancável. Lá estava ele, e todas as terras eram dele,
todas, todas, o mundo se possível, o orbe todo, só sua raça sabia
penetrar o segredo alquímico delas, só ele era homem, e mais que
homem, uma espécie de super-homem com o qual ninguém podia, povo
nenhum, muito menos estes famintos, podres, rastejantes, miseráveis,
hediondos, os ignorantes, os indesejados de terras...(Dicke, 1978: 31)
59
Isolamento relativo aos grandes centros e à forma de produção econômica e cultural destes centros, é
importante frisar.
vistos como mundos muito distantes e imaginários, ou se formam no imaginário dos
trabalhadores da Caieira através da pouca informação a que têm acesso. Faz-se uma
imagem tanto positiva como negativa do estrangeiro, de acordo com a relação que se
têm com ele. A visão negativa é a do explorador, como já se viu, o que consome as
forças e as vidas dos indivíduos em função do acúmulo de capital. A visão positiva é a
do progresso:
60
Cf. Magalhães, 2002.
Nessa oposição, marca-se o americano como o outro, assim como em Caieira,
como o opressor capitalista, representado pelos protestantes da fazenda Batovi, os
sucessores de Cristo que se aproveitam de sua situação:
61
Aliás, Dicke se aproxima do universo latino-americano através de seus temas, de personagens
paraguaios, bolivianos, índios etc., cantigas que fazem referência a países da América do Sul, que estão
sempre presentes nos seus romances. Essa relação é sugerida por Aclyse de Matos, num conto
chamado Tigres de Borges, Tigres de Cortazar, que tem Dicke como personagem, no site Prosa Virtual.
Pode-se perceber, a partir daqui, que a oposição entre pobres e ricos, que
corresponde à oposição entre o local e o estrangeiro, o tradicional e o moderno, é um
elemento recorrente nos textos de Dicke. À exceção de Madona dos Páramos, em
todos os outros há a punição – pelo fogo em Deus de Caim, pelo ataque mítico da
natureza em Caieira e pela bala de prata em O salário dos poetas. Em Cerimônias do
Esquecimento, ela se dá pelo próprio esquecimento – do elemento modernizador,
aquele que transfigura a realidade para algo decadente ou se mostra como grande
ameaça à sobrevivência da cultura local.
A ‘cultura rural’, termo usado por Rama para indicar as culturas locais,
autóctones, seria, no caso da Amazônia, representada por índios e camponeses, de
forma análoga à situação andina:
Têm-se, dessa forma, três classes diferentes neste espaço: o índio, o fazendeiro,
o mestiço e os pequenos proprietários, estes dois últimos formando uma só classe. Vê-
se que as idéias de Rama e Magalhães se aproximam, pois ambos procuram sinalizar
quais produções literárias se inserem nesse conflito entre as culturas modernizadoras e
as tradicionais e que indicações elas trazem dele. Rama trata da questão de como
alguns autores, a exemplo de José Maria Arguédas62, trazem à tona a linguagem, a
cultura tradicional, mesclada, e não resistente ou rígida, à cultura modernizadora,
universalizante. Arguédas não se mantém resitente ao processo de modernização, mas
busca nele também elementos que façam perdurar a cultura rural. Seu elemento central
é o índio que, no Brasil, também aparece como importante material para a elaboração
estética, ao lado do sertanejo, do trabalhador do campo e outros tipos.
62
José Maria Arguédas, peruano, antropólogo, no romance Los Rios profundos.
Resta saber como Dicke realiza essa hibridação entre a cultural local e a cultura
modernizadora. A partir dos trechos dos romances já citados, o que se pode
depreender é que eles defendem o local atacando a cultura estrangeira, denunciando
seus desvios e a decadência que trouxe à comunidade local. A opção pela defesa da
cultura do marginalizado é clara. Esta postura não constitui, no entanto, a
transculturação. Ela ocorre, em Dicke, principalmente nos níveis da composição literária
e da cosmovisão mítica.
Quanto ao nível lingüístico, em que a transculturação incide sobres os aspectos
sintáticos e morfológicos da língua, aparecem palavras, expressões locais, bem como
estruturas sintáticas que buscam simular aspectos da fala local. Apesar disso, o que
predomina é uma linguagem de aspecto culto, formal, mas entremeada de expressões
coloquiais que denotam uma ascendência local sem ser exoticizante. Pela linguagem,
às vezes, é possível identificar um narrador que não seja personagem. No entanto, a
maneira como o foco narrativo é operado faz com que a linguagem culta se mescle à
linguagem sertaneja por serem, a momentos, pertencentes textualmente a um mesmo
personagem, embora possamos identificar ou supor aspectos que seriam ou só do
narrador (como a linguagem culta e o eruditismo) ou só do personagem (como as
expressões coloquiais e a cosmovisão mítica).
Quanto ao nível da cosmovisão, essa alternância acontece da mesma maneira
nos romances iniciais (como Deus de Caim, Caieira e Madona dos Páramos) em que
um tipo de narrador mais tradicional ainda se mostra com nitidez em alguns momentos.
Nos últimos romances (Ultimo Horizonte, Cerimônias do Esquecimento e O Salário dos
Poetas), no entanto, a visão mítica prevalece em toda a narrativa. Em relação a esse
nível, em que o mito como forma de apreender a realidade é expressão da cultura local,
o trabalho de Miguel, 2001, é bastante expressivo, mostrando como Dicke se apropria
da tradição e dos mitos ocidentais reintroduzindo-os no espaço de seus romances.
Este trabalho tem como objeto o foco narrativo, que se inclui no nível da
composição literária, pois acredita que a análise do processo de transculturação nos
níveis lingüístico e da cosmovisão dependem fundamentalmente do nível da
composição. É ele, através do foco narrativo, que irá indicar em que medida, nas
personagens e no narrador, o romancista se torna um escritor de transculturação,
apresentando um híbrido da cultura local com a universalizante.
9 TRANSCULTURAÇÃO E FOCO NARRATIVO
63
Ainda assim, em muitos casos a identificação não é imediata.
pessoa irrompe na narrativa sem nenhuma preparação, sem nenhum índice gráfico,
sintático ou semântico, o que gera um estranhamento. As primeiras considerações de
Miguel sobre o assunto não são acerca do foco narrativo especificamente, mas das
relações que se estabelecem, a partir dele, entre narrador, leitor e personagem:
64
Fraçois Guyon diz: “A propósito da ausência ou da presença do autor na narrativa (pois o narrador que
aqui se analisa deve ser identificado com o autor implícito de Booth), são ainda as mesmas questões que
se põem: comunicação com o leitor,... diferenças entre os modos de apresentação, papel das visões ou
centros de orientação no interior da narrativa, etc.” (Sallenave, sd: 36). Perceba-se que, aqui, assim como
em Miguel, o narrador é a representação do autor, é a manifestação direta do autor implícito.
conseqüente aproximação do leitor com a consciência de cada um deles, a expressão
de seus sentimentos e suas dúvidas acerca da personagem denominada “moça sem
nome”, cuja figura misteriosa é a referência para as reflexões dos jagunços.65 Nas duas
passagens a seguir, José Gomes, que no romance também se chama Urutu, sendo
personagem referida em terceira pessoa, assume a primeira para falar de si:
José Gomes continua pensando em Tabita. Mais esta velha. Todas são
irmãs de sua mãe. Podem estar onde estejam e serem o que forem,
todas as velhas são irmãs de minha mãe, e a razão delas não tem fim.
(Dicke, 1982: 45)
65
‘O uso da primeira pessoa na voz narrativa contribui para o efeito da credibilidade aos olhos do leitor -
ninguém sabe melhor de sua própria história do que aquele que a viveu -, portanto, o autor faz de seus
personagens narradores dignos de confiança: “[...] segundo ele mesmo, porque aqui ninguém sabe nada
de ninguém a não ser o que a pessoa mesma diz, que fica sendo a sua verdade. A gente tem que
acreditar no que dizem com sua própria boca...” (Dicke, 1982: 41-2)
66
É importante porque, em alguns críticos como Percy Lubbock, o ponto de vista não depende da pessoa
verbal utilizada. Cf Lubbock, 1976: p.49.
estar presenciando os fatos narrados, apesar de não marcar sua presença enquanto
personagem diferente das que já existem. Em Caieira, mesmo sendo o único romance
que parece não apresentar a oscilação entre as pessoas verbais, mantendo um foco de
terceira pessoa em todo o romance, há passagens como a seguinte:67
Mas ele sabia, o Cardeal não fizera nada de mais, simplesmente, ele
Jônatas havia enchido as tipas de pinga e nesse estado depois da briga,
não havia visto nada, pensando como estava, que Lázaro morrera
irremediavelmente... Era um caso de choque, de catalepsia, de não sei o
quê... (Dicke,1968: 82)
Esse tipo de intervenção pode ser visto em romances tradicionais do século XIX,
em autores como Machado de Assis. Da mesma forma acontece em Madona dos
Páramos, em que a primeira pessoa se apresenta no plural através da locução a gente.
A personagem referida em terceira pessoa, aqui, é José Gomes:
67
Hilda Magalhães diz: “O personagem absurdo não é consciente de si mesmo no tempo e no espaço,
não pode também exercer o poder da palavra, motivo pelo qual a narrativa é realizada em terceira
pessoa” (Magalhães, 2002: 43). Caieira, apesar do apontamento de Hilda Magalhães, apresenta, em
menor grau, a mesma característica narrativa tratada aqui.
A alternância do foco narrativo entre a primeira e a terceira pessoas é uso
comum na narrativa ocidental, pois, de acordo com o desenrolar da trama, o narrador
onisciente pode passar, por diversos motivos, a narração para algum personagem. Em
Dicke, essa problemática não consiste somente na narração, mas na diferenciação
entre a narração e o diálogo, em que, muitas vezes, o que ocorre é não a transmissão
da voz narrativa para o personagem, mas apenas a sua fala inserida diretamente no
período narrativo, sem marcação gráfica. A afirmação de que há mudança de foco vem,
na verdade, do fato de que essa fala em primeira pessoa pode se estender por muitas
páginas, narrando ou não.
A mudança de foco narrativo em um texto é sentida de várias maneiras, seja pré-
anunciada, ou vindo separada da fala do narrador por quaisquer sinais de pontuação
(ou mesmo pela ausência deles), ou marcando-se na diferença de linguagem entre
narrador e personagem, ou ainda pela própria estruturação sintática e uso do tempo
verbal e dos dêiticos que permitem, mesmo sem marcação, a identificação das
fronteiras entre personagem e narrador. A diferença entre esse tipo de procedimento e
o que ocorre em Dicke é que a mudança, muitas vezes, não está marcada e ocorre no
fluir de uma mesma oração. Na seguinte passagem, o general Augusto Barahona, de O
salário dos poetas, vem designado por terceira pessoa até que irrompe falando em
primeira:
68
Cf. Sallenave: sd, p.31.
A idéia de que há um autor por trás do texto, ou de que existe a possibilidade de
o autor marcar, de uma maneira ou de outra, sua presença no texto69, é produto de uma
corrente de pensamento que tem como fundamento a linguagem como expressão do
pensamento. Roland Barthes, estruturalista assim como Genette, associa a idéia de
autor a uma perspectiva racionalista/positivista, cuja ênfase recai no indivíduo. O autor
também é uma criação, surgida num determinado contexto social:
Barthes faz uma crítica à importância dada à noção de autor exterior ao texto,
enquanto pessoa, enquanto indivíduo. Como estruturalista, ele dá mais ênfase à
linguagem em si do que a um sujeito externo a ela. Na verdade, o sujeito para Barthes
está situado dentro da própria linguagem, como categoria da enunciação, discriminada
no discurso e não na realidade, ou melhor, a realidade do sujeito é uma realidade
lingüística:
69
E boa parte da crítica acerca do foco narrativo, compreendendo principalmente as linhas inglesa e
francesa, trabalha nessa perspectiva. Jean Pouillon (sd), com as visões narrativas, também se enquadra
nesse mesmo psicologismo, que consiste na representação da mente do autor ou do personagem. Nessa
perspectiva, o narrador onisciente sempre será uma representação do pensamento do autor, da figura
que ele mentalmente elabora para criar suas histórias.
acabada. Barthes vai, então, substituir o autor por uma outra instância que denomina de
scriptor, que seria um sujeito presente na enunciação, que se constitui no momento
mesmo do acontecimento do discurso:
o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de
modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua
escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o
predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o
texto é escrito eternamente aqui e agora. (Barthes, 1984: 51)
70
Leia-se, por exemplo, textos como os de Lígia Chiappini (2002) e Fraçoise Guyon (sd.) que,
percorrendo a discussão acerca do foco narrativo na literatura ocidental, em vários momentos usam
indiferenciadamente as categorias autor e narrador para designar a mesma coisa.
Bakhtin (1992 e 1997) elabora uma teoria que abre outras possibilidades de
olhar a questão do foco narrativo. Ele não trabalha com essa relação entre autor e
narrador, abordando o texto literário a partir da relação entre autor e herói. Nesse caso,
o narrador se configura, diretamente, ou como voz do autor ou como voz do
personagem. O narrador é uma instância discursiva assumida de acordo com as
necessidades do romancista71. Essa maneira de ver o processo narrativo não coincide,
como poderia parecer, com a teoria do autor implícito, pois no caso de Bakhtin, o autor
não consegue captar a plena consciência de mundo do herói. A noção de autor implícito
marca a predominância de uma só voz camuflada, metamorfoseada em outras,
estabelecendo o que Bakhtin chama de monologismo. Para o teórico russo, isso
caracteriza apenas um certo tipo de produção, que ele chama de monológica e que
representa uma estética e uma filosofia específicas, que são o idealismo e o
positivismo:
A relação entre autor e herói se dá de maneira com que um não possa captar
plenamente a completude, a totalidade do outro, de sua consciência. Essa totalidade só
consegue ser estabelecida pela atividade estética, que consiste em visualizar o outro
lhe dando um pano de fundo, uma moldura que permita criar uma completude estética
exterior, mas que não corresponderá nunca à totalidade do ser e não compreenderá
totalmente a visão e a consciência desse outro. O que o positivismo fez foi reduzir, pelo
olhar monocular, pelo discurso monológico, “definitivamente a um denominador comum
o eu e o outro...” (Bakhtin, 1992: 76)
Essa distância, que na literatura se configura na distância entre autor e herói,
caracteriza o que Bakhtin (1992, p.34) denomina de exotopia. Obviamente, as idéias de
Bakhtin estão impregnadas do socialismo (do marxismo) que caracteriza a linguagem
71
Para Cristóvão Tezza, o narrador em Bakhtin consiste no ponto de vista gramatical que estabelece a
narrativa e pode, portanto, ser assumido por qualquer uma das duas categorias passíveis de assumirem
a voz narrativa, autor ou narrador. Cf. Tezza, 2003: 206.
não como expressão do ser, mas como um produto das interações humanas, como
espaço para interação social. Dessa forma, sua análise não coincide com a
estruturalista de Barthes, pois esta está calcada na separação sistemática entre língua
e indivíduo, e, por outro lado, também se torna incompatível com a idealista monológica
de Booth. Apesar disso, consegue mostrar, como Barthes, que a teoria que procura
discutir a presença ou não do autor na obra é específica de um determinado contexto
sócio-histórico, que não limita outras possibilidades de interpretação do fato literário.
A presença do autor para Bakhtin é ponto passivo, com a diferença de que esse
autor não tem pleno conhecimento do seu herói, estabelecendo com ele uma relação
de diálogo, dialógica e não monológica, e com a diferença de que este também não é
um autor real. Segundo Faraco, Bakhtin diferencia o autor criador do autor real, em que
o primeiro é uma instância do discurso estético que o segundo pode ocupar:
72
Cf. ainda Bakhtin, 1997: 184.
Ao que parece, nenhuma dessas correntes em particular - a idealista, a
estruturalista e a marxista – servem isoladamente para entender a narrativa de Dicke.
Os romances, por momentos, se alternam entre estas três maneiras (e outras) de
narrar. Por vezes, os textos apresentam caráter monológico e, em outras, um caráter
dialógico. Essas alterações se dão, no caso de Dicke, com as alterações do foco
narrativo pela mudança das pessoas e tempos verbais durante a narrativa.
Na tentativa de identificar qual é a voz do narrador e qual é a do personagem,
observa-se, como já foi dito, a predominância de uma indiferenciação lingüística entre
ambos. Ela é cada vez mais predominante a cada romance do escritor. Ao observar a
relação entre os tempos verbais e os dêiticos utilizados, como referência para a
diferenciação, ver-se-á que é possível esboçar uma separação que, no entanto, pela
maneira como o fato acontece, é fugaz, efêmera. As pessoas verbais, ao se alterarem
num mesmo parágrafo e, por vezes, num mesmo período, instauram uma dúvida não
sobre a personagem, pois ela, afinal, deterá a voz em primeira pessoa, mas sobre o
narrador. A partir do momento em que a voz da personagem (ou o que seria a voz da
personagem) irrompe no texto, tudo o que ficou para trás fica sob suspeita, seja
narração ou discurso. Em alguns momentos a diferença é um pouco mais evidente
porque os personagens são tratados em terceira pessoa, nomeados, para, em seguida,
falarem, como é o caso de alguns exemplos já citados. Para Bakhtin:
73
Essa dúvida é um dos temas centrais do romance Cerimônias do Esquecimento, que será tratado
adiante.
obra. Segundo Bakhtin, ela pode ser entendida como polifonia do discurso, em que,
mesmo havendo recorrências de idéias, palavras, estilos, as consciências do autor e do
personagem não formam uma consciência única e indivisa (como no caso do autor
implícito).
Angel Rama, ao realizar a análise de Los Rios Profundos, de Arguédas, marca o
distanciamento entre autor e personagem, que assumem cada qual o papel de narrador
a seu tempo, com uma função e características específicas. Esse distanciamento, no
texto, se dá através dos tempos verbais que cada um usa em sua fala, bem como a
postura – de etnólogo de um (Arguédas) e de narrador popular de outro (Ernesto) – que
cada um assume, trazendo elementos da cultura popular quéchua e de uma cultura
erudita. Apesar de usar referências como Benvenieste e Weinrich, a definição da
distância entre autor e personagem é muito semelhante à definição de dialogismo e
exotopia de Bakhtin:
74
Rama lembra a migração dos intelectuais do interior para as metrópoles. (Aguiar & Vasconcelos,
2001: 263).
literária, inclusive na manifestação das reflexões metalingüísticas.
(Miguel, 2001: 40)
75
Como sugere Antonio Candido em seu prefácio para Literatura e Sociedade.
76
Mesmo o marxismo, no caso de Arguédas, é tomado como crença: “El socialismo no fue para él
simplemente una teoría ni un método, sino preferencialmente una creencia sostenida sobre una
explicación persuasiva del funcionamiento de la sociedad... El socialismo, por lo tanto, funcionó como un
mecanismo eficaz para religar los dos hemisferios culturales en que se movió Arguédas. Gracias a él
podía encontrarse una comunicación entre los hombres que seguían viviendo dentro del hemisferio
occidental y los hombres que seguían viviendo dentro del hemisferio tradicional pero en una situación de
atroz sometimiento.” (Rama, 1982: 299)
10 CERIMÔNIAS DO ESQUECIMENTO
Restam poucos lugares para quem ama a paz para onde se fugir: coisas
estranhas e monstruosas estão continuamente invadindo o coração do
mundo, devorando as cidades, apertando os lugares. O mundo está
ficando cada vez mais pequeno. Só sobra o espaço do coração. Lá é o
sertão. (Dicke,1995: 107)
Nesse aspecto, novamente, surge a marca da transculturação, quando, no
romance, Cuiabá aparece não como um elemento de apenas um dos lados culturais. A
cidade não aparece apenas como a cidade modernizadora, pois não é uma grande
metrópole como Rio ou São Paulo, mas também não é de todo sertão. É esse o espaço
que Rama define como espaço da transculturação, como espaço mais propício à
plasticidade cultural: a cidade do interior, que mediatiza as incitações modernizadoras
das grandes metrópoles. (Rama, 1982: 210) Cuiabá é o espaço de fronteira entre a
cultura modernizadora universalista, representada em Dicke pelas metrópoles nacionais
Rio e São Paulo, e a cultura tradicional rural, representada pelo interior rural de Mato
Grosso. A cidade aparece, no romance de Dicke, da seguinte maneira:
77
Em Último Horizonte, Cuiabá também é o espaço do romance. Neste, no entanto, realçam-se os
aspectos urbanos e não os de fronteira entre a cidade e o interior.
referências constituintes do pensamento e da cultura. Ele só é possível no interior do
universo cultural ocidental, cuja tendência é universalizante e não tradicional. O autor
de transculturação não é o sertanejo, mas o erudito que toma partido da cultura
tradicional. É o mesmo que Rama revela em Arguédas:
No constryó su obra para los indígenas, sino para los cuales busco
reinsertar, persuasivamente, un conjunto de valores tenidos por
inferiores o espurios... Para eso reinterpreta cada uno de sus actos
dentro de la estructura cultural propria, porque sólo em ella pueden ser
convalidados, relegando los defectos a la acción pervertidora de los
dominadores (terratenientes, gamonales, sacerdotes, autoridades) de
modo que asistimos al doble movimiento de justificación y exculpación
mediante la restauración de la inocencia dentro de la peculiar estructura
cultural... (Rama, 1982: 205)
A obra de Dicke reflete um pensamento que flui entre o regional e todos os seus
problemas, mais os conhecimentos adquiridos na chamada literatura universal, que
influenciam fatalmente sua produção. É considerada de transculturação porque só pode
ser produzida por quem vive e vê a partir de uma perspectiva de fronteira, de alguém
cuja formação não se limita ao suposto hermetismo de uma cultura local, mas também
não reproduz inteiramente as imposições de uma cultura universalizante.
Essa condição inexorável está marcada, em Cerimônias do Esquecimento, na
ascendência do narrador da linha narrativa sem marcas. Este, em primeira pessoa, num
determinado momento assume, por exemplo, a linhagem indígena em contrapartida à
ascendência branca que também possui. Ele também é, portanto, um mestiço, que traz
em seu sangue a experiência da morte. O narrador se dirige a si mesmo usando um ‘tu’:
Lá é a memória da casa onde morava e tua avó cujo sangue vem dos
índios dizimados e espoliados pela civilização dos massacres que a tudo
engole e devora e vai formando uma bola de lama fétida que vai
descendo a montanha. No sertão todos sabem sua genealogia. Como
na Bíblia, tão velha. Estes são os homizios da civilização dos homens do
outro lado. (Dicke,1995:108-9)
O que se confirma ao longo do romance, neste caso, é que o ‘eu’ que fala, o
narrador dessa linha entre parêntesis, é Frutuoso Celidônio, o professor demitido da
universidade, que fala consigo mesmo utilizando um tu, a respeito de Anelinho Abbas, o
velho pai da noiva, designado pela terceira pessoa, que lhe conta a história de Saul78.
Esse procedimento é um tanto comum em narrativas, quando os personagens se
dirigem a si mesmos, à sua consciência. No entanto, em um dado momento dessa linha
narrativa, as personagens, representadas pelas referências ‘eu’ e ‘tu’, se alteram,
gerando uma dúvida acerca de quem fala e de quem ouve a história:
78
‘Pensas na figura de um velho que te vai contando a história de um homem que vestido de armadura
se prepara para uma viagem desconhecida.’ (Dicke,1995: 76)
Ou serei eu mesmo com esta cerveja enevoada?... Quem me conta essa
história? Só sua voz pesada e sincopada, entre copos de cerveja.... As
pessoas reunidas no pátio do fundo da casa do pai da noiva conversam.
(Dicke,1995: 58)
Aqui a diferença entre narração e fala não é tão nítida, dando a impressão de
que o que muda é o foco narrativo optado pelo mesmo narrador. Considerando esse
fato como mudança de foco e não como instauração de uma fala de personagem, essa
dúvida vai percorrer todo o romance no interior das três linhas narrativas.
A seqüência narrativa sem marcas (ou seja, sem aspas nem parêntesis), por sua
vez, parece ser predominantemente de terceira pessoa. Nela não há dúvidas acerca do
narrador, pois as passagens em primeira pessoa são facilmente identificadas como
falas. A impressão que se tem é de que há um personagem central da narrativa,
denominado João Ferragem. Um novo elemento surge, sem denominação específica.
Esse outro, sendo o professor Celidônio, aparece designado pela terceira pessoa,
enquanto personagem, mas em primeira pessoa, enquanto narrador. Observe-se este
longo trecho:
Ah, o amigo do meu filho Jônatas, aquele que cantará e dançará para o
Senhor diante do Arco da Aliança... como eu o odeio, ele vai se casar
com minha filha Micol... (Dicke,1995: 55)
Não é difícil notar que o primeiro “eu” é o personagem que é tratado por “tu” na
narrativa, enquanto o outro “eu” é o próprio narrador. Há um outro momento ainda em
que o autor usa um recurso em que a fala do interlocutor está inserida na do narrador,
através de perguntas e respostas:
Ao contrário do que parece, essa fala não é do narrador, mas é uma fala de João
Ferragem, que também foi inserida sem marcas dentro da narrativa que se inicia na
página 105. Essa mudança brusca de referentes causa uma desorientação significativa
na leitura, porque a cada inserção de fala e a cada mudança de foco, pode-se perder o
fio da meada. Na seqüência do trecho aparece, ainda, um interlocutor marcado pelo
pronome ‘vós’, que não é o mesmo indicado pelo pronome ‘tu’, usado para se dirigir
diretamente ao personagem João Ferragem. Provavelmente, o narrador se dirige aos
outros personagens, assim como faz Rosaura, a prostituta, em outro trecho da mesma
narrativa. Aqui, as marcas referentes aos personagens são claras, para cada um sendo
usada uma pessoa:
Um trecho seguinte, da narrativa entre aspas, também insere, sem marcas, uma
primeira pessoa numa narrativa de terceira:
Nesse caso, percebemos que os dois pontos marcam uma citação feita pelo
próprio narrador e não uma fala do personagem. Na narrativa entre parêntesis, o
professor Celidônio se denuncia como narrador e interlocutor, numa narrativa que
compõe um complexo jogo de pessoas gramaticais, de perguntas e respostas:
79
Benveniste é o primeiro e principal teórico a abordar essa noção do “eu” no discurso. Cf.
BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. e
BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989.
noite: as horas do lado de cá e as horas do lado de lá, bem no meio
passa uma fronteira: o eu: isso é que é preciso extirpar, fazer secar
como uma plantinha venenosa. (Dicke,1995: 248-249)
Este trabalho teve como preocupações lançar um olhar sobre o que se tem
produzido acerca da obra de Ricardo Guilherme Dicke e discutir questões culturais
implicadas tanto nos seus romances quanto nas críticas a eles, bem como na própria
teoria usada para a discussão. Ele realiza, também, uma descrição do foco narrativo e
das relações culturais entre a cidade e o interior, de maneira a compor uma espécie de
roteiro de leitura para estes dois aspectos, que são centrais na obra do romancista.
O pouco material disponível atesta o esquecimento a que o autor foi relegado.
Esse fato contrasta com sua recente redescoberta pela intelectualidade local. O terceiro
capítulo tentou, numa análise do contexto literário mato-grossense atual, detectar não
os motivos dessa redescoberta, que me parece ainda não se definiram ou se
declararam, mas a formação dos grupos produtores da cultura e do pensamento mato-
grossense e suas intenções em relação à produção cultural local. A posição de Dicke
no movimento literário atual é a de ícone da literatura regional, graças aos esforços de
uma classe específica que se respalda na premiada trajetória do romancista.
Essas questões me parecem ser mais relevantes do que a própria análise
literária em si, pois um pensamento se insinua como conclusão: esta dissertação
concorre também para a caracterização de Dicke como um ícone literário. É por isso
que é importante dizer que, mais do que ressaltar qualidades do seu trabalho literário, o
objetivo de minha pesquisa foi identificar as relações culturais envolvidas na sua
produção.
A obra de Dicke está inserida em uma cultura que vive constantemente a
questão do regional, a necessidade de afirmação das coisas locais, e que procura
reforçar sua identidade calcando-se em programas de conservação e incentivo às
produções que trazem a cor local. Lendo seus textos, no entanto, não se nota nenhuma
preocupação a esse respeito. Essa é uma evidência de que a produção de Dicke
efetivamente mantém viva a cultura em que se insere, e que não podemos definir nem
como mato-grossense, nem como universal. Essas categorizações têm o único efeito
de limitar a extensão que um texto literário pode alcançar.
Dicke escapa a essas limitações nos seus textos, mas parece que caminha para
representar a regionalidade que não ostenta e que pode, no entanto, determinar o
destino de sua imagem e mesmo de sua interpretação a partir desse momento. Esse
fato está na base de todas as discussões realizadas aqui: ele revela questões de
identidade cultural vinculada a relações de poder (editoriais, acadêmicas, políticas etc.).
Que sua produção tem evidentes traços híbridos, de transculturação, parece claro. Mas
que produção, em todos os tempos, não os tem? Definições como tradição,
modernidade, local, universal, são, antes de qualquer coisa, categorias de
interpretação, categorias de pensamento. Assim como elas, diversas outras surgem:
dominador/dominado, autor/narrador, narrador/personagem, realidade/ficção e tantas
outras.
Esta pesquisa teve a intenção latente de inserir, na questão que ela discute,
todas as partes envolvidas na discussão. Explica-se: ao debater os efeitos do contato
entre culturas, não só os produtos culturais, como a literatura, mas também os termos
da produção crítica e teórica, como o conceito de transculturação, se tornam objeto de
análise. Essa idéia se fundamenta, por exemplo, na maneira como Rama articula seu
pensamento com a intenção de superar os modelos de análise definidos pela cultura
que ele chama de universalizante. O teórico usa de uma abordagem maniqueísta, entre
cultura modernizada e cultura rural, para tratar de produtos culturais que escapam tanto
a uma, quanto à outra cultura. Talvez, no nível de discussão que ele estabelece, ainda
não seja possível para a crítica lidar com seu objeto sem incidir sobre esse
maniqueísmo, mesmo apontando para algo fora dele.
As elaborações teóricas estão diretamente vinculadas à cultura em que são
produzidas, é o que se depreende das palavras de Cuche, Burke e outros tantos
teóricos. Rama, portanto, escreve de uma perspectiva em que o pensamento
bipolarizado ainda se mostra como ferramenta útil para descrever os objetos que
analisa. Não se pode, no entanto, dizer o mesmo dos próprios objetos, pelo simples fato
de que sua cosmovisão, como bem aponta Rama, já não funciona pela lógica
dicotômica descendente do pensamento ocidental, que pode ser definido como um
pensamento branco judaico-cristão positivista. Será possível o paradoxo de uma teoria
formulada a partir de uma outra modalidade de pensamento que não essa? Pois a
própria idéia de teoria nasce desse pensamento que separa, dicotomicamente, teoria e
prática, como separa o dominador do dominado, o moderno do tradicional, o regional do
universal etc. Como a academia, produto desse pensamento, pode escapar dessa
categorização do mundo? A análise do foco narrativo em Dicke aponta a saída, mas
ainda não dispõe de categorias suficientes para que seja perfeitamente descrita. Talvez
sejam necessários outros termos, outras palavras, outra categoria de pensamento que
não seja o maniqueísmo e outros conceitos que não sejam produtos direto dele, como é
o de transculturação. A análise dos romances de Dicke mostra que ele ‘deslegitima’ a
força do pensamento dicotômico, como o descreve Santaella:
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