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EVERTON ALMEIDA BARBOSA

A TRANSCULTURAÇÃO NA NARRATIVA DE
RICARDO GUILHERME DICKE

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT


Instituto de Linguagens - IL
Cuiabá
2006
EVERTON ALMEIDA BARBOSA

A TRANSCULTURAÇÃO NA NARRATIVA DE
RICARDO GUILHERME DICKE

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos


de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal
de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Estudos Literários e Culturais.

Área de concentração: Estudos literários e culturais


Orientador: Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT


Instituto de Linguagens - IL
Cuiabá
2006
DEDICATÓRIA

À minha família
Dorgival, Maria e Elisângela
AGRADECIMENTOS

a Aclyse, Marta e Raquel, pela amizade e pelos livros


a Valderez, especialmente, pelo estímulo e confiança em todo meu percurso intelectual
a Cristiane, pela paciência e carinho
À Hilda e Célia, pelas sugestões e questionamentos importantes
a Mario, pela orientação
Peida, justiça de Mato Grosso!
(Caieira)
RESUMO

BARBOSA, Everton Almeida. A transculturação na narrativa de Ricardo Guilherme


Dicke

Esse trabalho associa uma discussão acerca do foco narrativo com uma outra ligada à
questão da produção literária na América Latina. Ele caracteriza a questão do foco, nos
romances de Ricardo Guilherme Dicke, como um dos aspectos que o definem como
narrador de transculturação, conceito usado por Angel Rama. Conseqüentemente,
insere seus romances nas questões referentes aos conflitos locais e à produção da
identidade local como forma de resistência ao apagamento cultural devido ao contato
com uma cultura de tendência universalizante e modernizadora, de procedência
européia e norte-americana. O contato entre estas culturas de tendência universalizante
e culturas locais tradicionais gera produtos culturais que aproveitam aspectos tanto de
uma quanto de outra, processo que pode ser consciente ou não. Os livros de Dicke são
exemplos dessa produção. Este trabalho traça uma trajetória cuja intenção é evidenciar
a elaboração de um procedimento narrativo que não se apreende pelas categorias
tradicionais de autor, narrador e personagem, frutos da teoria literária de origem
européia. Essa maneira de narrar concorre para a dissolução do pensamento
maniqueísta, que também caracteriza a cultura ocidental, cujas formulações processam
a apreensão do mundo (e do fenômeno literário) através de oposições como
dominador/dominado, universal/local, regional/nacional etc. A análise dos textos de
Dicke mostra a inaplicabilidade dessas categorias nos textos de transculturação e
estende a discussão à própria elaboração da teoria, notando que na escolha da
tipologia estão também implicadas as relações culturais e identitárias.

Palavras-chave: cultura – identidade – regionalismo – foco narrativo - transculturação


ABSTRACT

BARBOSA, Everton Almeida. A transculturação na narrativa de Ricardo Guilherme


Dicke
This work associates a discussion about the narrative focus with other inserted in the
question of the literary production in Latin America. It characterizes the question of the
focus, in the romances of Ricardo Guillermo Dicke, as one of the aspects that define him
as a narrator of transculturation, concept used for Angel Rama. Consequently, it inserts
his romances in the questions referring to the local conflicts and the production of the
local identity as a form of resistance against cultural deletion due to the contact with a
culture of universal and modern trend, of European and North American origin. The
contact between these cultures of universal trend and traditional local cultures generate
cultural products that in such a way use to advantage aspects of one as of another one,
process that can be conscientious or not. The books of Dicke are examples of this
production. This work traces a trajectory whose intention is to evidence the elaboration
of a narrative procedure that is not apprehended for the traditional categories of author,
narrator and personage, products of the literary theory of European origin. This way of
tell concurs for the dissolution of the thought manichaeist, that also characterizes the
occidental culture, whose formularizations process the apprehension of the world (and
the literary phenomenon) through oppositions as dominator/dominated, universal/local,
regional/national etc. The analysis of the texts of Dicke shows the unaplicability of these
categories in the transculturation texts and extends the discussion to the proper
elaboration of the theory, noticing that in the choice of the tipology also the cultural and
indentity relations are implied.
SUMÁRIO

Dedicatória .................................................................................................................... iii


Agradecimentos ........................................................................................................... iv
Resumo ......................................................................................................................... vi
Abstract ........................................................................................................................ vii
1 Introdução ................................................................................................................... 9
2 O CONCEITO DE CULTURA ......................................................................................... 15
3 A IDENTIDADE E AS TERMINOLOGIAS ....................................................................... 23
4 LITERATURA E TRANSCULTURAÇÃO ........................................................................ 29
5 O AUTOR DO ESQUECIMENTO E O ESQUECIMENTO DO AUTOR............................... 37
6 OS PREFÁCIOS E AS PREVISÕES: REGIONALIDADE E FOCO NARRATIVO ............... 48
7 A SUPERAÇÃO DO REGIONAL E O ENTRE-LUGAR EM MADONA DOS PÁRAMOS .... 54
8 DICKE E AS MIGRAÇÕES PÓS-60 ............................................................................... 62
9 TRANSCULTURAÇÃO E FOCO NARRATIVO................................................................ 77
10 CERIMÔNIAS DO ESQUECIMENTO ........................................................................... 95
10.1 Tradição e modernização em Cerimônias do Esquecimento ............................ 97
10.2 Transculturação e foco narrativo em Cerimônias do Esquecimento .............. 102
11 Considerações finais ........................................................................................................ 115
Referências Bibliográficas .................................................................................................... 119
Bibliografia .............................................................................................................................. 122
1 Introdução

Dos primeiros aspectos notáveis nos textos de Ricardo Guilherme Dicke, já


anunciados em prefácios de alguns de seus romances, para além da virilidade da
linguagem, é a maneira como se apresentam os pontos de vista, caracterizada por um
uso aleatório das pessoas gramaticais e dos referentes de tempo e espaço. Essa
característica gera, na leitura, uma indefinição acerca da voz narrativa, que é
transmitida de uma a outra personagem sem marcação (aspas, travessão, mudança de
registro lingüístico etc.). O que seria, no entanto, uma simples questão de distribuição
do ponto de vista entre narrador e personagens, mostrou-se, ao longo das leituras e da
pesquisa, ser um problema acerca do próprio ato de narrar e sua implicação na história
literária e no contexto em que o romancista se insere.
Gilvone Furtado Miguel (2001), sobre um dos romances do autor, Madona dos
Páramos, define o problema como uma espécie de flutuação, uma mudança de ‘centro’
da voz do narrador para a das personagens. A partir dessa constatação da autora, que
pôde ser feita tanto em Madona dos Páramos, quanto em Cerimônias do esquecimento,
o primeiro passo deste trabalho foi conferir se o fenômeno se repetia em outros
romances. Nesse momento, esbarrei na primeira dificuldade que se encontra ao se
estudar Dicke: a falta de acesso a seus romances anteriores, Deus de Caim, Caieira,
Madona dos Páramos e Último Horizonte.
Superada essa dificuldade, constatei que todos os romances, sem exceção,
também apresentam a mesma configuração de foco narrativo, em maior ou menor grau,
o que me levou a querer identificar se havia mesmo um procedimento estilístico
marcado que caracterizasse a narrativa de Dicke. Essa ‘flutuação’ do foco narrativo é
mais tímida em Deus de Caim, seu primeiro romance, mas se mostra como uma
característica bem marcada em O salário dos poetas e, principalmente, em Cerimônias
do esquecimento. Optei, então, por traçar uma trajetória que tem este último romance
como ponto chave da questão do narrador1, porque nele esse procedimento estaria
diretamente relacionado com a própria temática do romance.

1
Cerimônias do Esquecimento não é o último romance publicado, sendo anterior a O Salário dos Poetas.
A análise do problema, então, partiu da observação dos romances e da
explicação que Gilvone Furtado Miguel dá, na sua análise de Madona dos Paramos,
para a questão do foco narrativo. Ela afirma que a ‘mudança de centro’ é produto da
escolha do autor, através da categoria do autor-implícito, conceito do teórico Wayne
Booth (apud Miguel, 2001), segundo o qual, independentemente do foco que se
expressa na obra, sempre há por trás de todos eles o pensamento do autor que
manipula toda a evolução do romance, se denunciando nas escolhas das palavras, dos
pontos de vista, de todos os aspectos que compõem uma obra literária. Este autor
implícito não é, no entanto, o autor em pessoa, mas uma espécie de alter-ego, um
personagem através do qual o autor fala na obra2.
Associar a palavra ‘autor’ a uma pessoa real e a palavra ‘narrador’ a uma
categoria fictícia é uma prática comum na teoria e na crítica literárias. Nos romances de
Dicke, no entanto, essa relação direta parece não resolver a questão, pois o problema
está, justamente, não nas categorias isoladamente, mas no uso que se faz delas na
elaboração das teorias acerca do fenômeno literário. É fácil aceitar a categoria de autor
quando se fala da ciência histórica, mas essa aceitação não é tão natural quando se
fala de literatura. Por quê essa diferença? Não seria possível responder ou mesmo
abordar essas questões a partir de uma única corrente teórica. A maioria das correntes
que se debruçam sobre o problema do foco narrativo, ou de uma teoria da narrativa,
parte de uma ou de outra categoria para fundamentar as suas considerações. Alguns
casos, ainda, aplicam os dois termos como se fossem um só e não colocam, portanto,
os conceitos de autor e narrador em questão3.
A discussão, então, enveredou pelo reconhecimento de que nas diferenças entre
as teorias sobre o narrador estariam implicadas diferenças culturais. Ao falar de
literatura, a teoria elabora conceitos de acordo com as categorias de pensamento de

2
Sobre o assunto, consultar Dal Farra, 1978, que compara o autor implícito aos heterônimos de
Fernando Pessoa.
3
Alguns trabalhos delimitam bem seu objeto, como os de Barthes, 1984, (sobre o autor), Benjamin, 1994,
(sobre o narrador) e Bakhtin, 1992, (sobre o autor). Barthes, como estruturalista, ‘mata’ o autor como
elemento exterior àquilo que escreve, pois a linguagem deve se comunicar por si mesma. Benjamin fala
do narrador propriamente oral ou daquele que consegue, na escrita, manter propriedades da narrativa
oral, diferenciando, assim, o narrador do romancista. Bakhtin fala do autor enquanto categoria do
discurso e não como indivíduo. Os três distinguem bem o que é propriamente lingüístico ou não e de
quem é a ‘propriedade’ do discurso. Suas referências ajudam a esclarecer questões acerca do narrador
do romance, especificamente.
que sua cultura dispõe para tal. Percebeu-se, nesse caso, que as teorias sobre o
narrador não se aplicariam plenamente às obras de Dicke porque estas escapariam às
categorias de percepção do fenômeno literário de caráter não-europeu, ou não
canonizado, o que deve ocorrer com muitas produções contemporâneas. Não se
trabalhou, aqui, no entanto, com toda a produção teórica a respeito do assunto: alguns
textos-chave ajudaram a entender as perspectivas, a partir das quais se observava o
fenômeno literário.
Para escapar aos conceitos europeus acerca do narrador e do autor, não
plenamente aplicáveis nos romances de Dicke, optou-se pela teoria da transculturação,
conceito usado por Angel Rama (1982) para abordar alguns romances latino-
americanos. Ele analisa três níveis da produção literária – o lingüístico, o composicional
e o da cosmovisão do escritor – em que se dão os processos de transculturação. A
questão do narrador faz parte do segundo nível. O teórico utiliza, inclusive, teorias
européias e norte-americanas ao abordar o assunto, mas também não as trata da
mesma maneira. Isso se deve ao fato de que seu interesse é mais crítico do que
teórico, focalizando mais as questões sociais referentes às relações inter-culturais que
ocorrem no seio da cultura latino-americana. Este trabalho inseriu a discussão acerca
do foco narrativo nos mesmos processos de transculturação apontados por Rama,
vendo quais relações culturais estão implícitas também na maneira como o foco se
apresenta nos romances do escritor mato-grossense.
O conceito de transculturação coloca o problema da produção literária em termos
do contato entre duas formas que a cultura toma no ocidente: o particularismo (que
assume nomes como regionalismo, localismo, diversidade), que tende a fixar uma
particularidade ou particularidades culturais, e o universalismo, cuja intenção é de que
alguns de seus valores sejam aplicados para todo ser humano. Rama define três
‘rasgos’ que geram as culturas regionais: o histórico, que leva em conta o fato de que a
localidade à qual pertence o escritor em questão havia sido um centro de cultura; o
geográfico, segundo o qual a região se manteve em isolamento durante um
determinado período; o sistema social imperante, em que um grupo subjugado
socialmente se aferra a seus valores como fator de sobrevivência. Mato Grosso
apresenta todos esses aspectos, se considerarmos as palavras de Póvoas (1982) sobre
a intensa atividade cultural de Cuiabá, quando comparada a outros grandes centros do
país no século XVIII, sobre seu isolamento até o momento posterior à segunda Guerra
Mundial e sobre o fato de que, em relação aos grandes centros e à invasão pela
migração latifundiária a partir de 1960, a região teve seus valores culturais
profundamente abalados. Esse abalo gerou, em parte dos agentes culturais, o
aferramento a seus elementos identitários, como no caso dos literatos da Academia
Mato-grossense de Letras.
A cultura de caráter particularista é designada por Rama como ‘rural’, ‘regional’,
‘tradicional’ e, às vezes, ‘local’. A de caráter universalista, por sua vez, é designada
como ‘universalizante’, ‘modernizadora’ e, muitas vezes, ‘urbana’. A primeira descende
da cultura dos grupos minoritários, violentados pelo processo de colonização da
América Latina, especialmente os indígenas. A segunda descende das culturas das
potências imperialistas européias, que constituíram o que se conhece como cultura
ocidental. Discutir o foco narrativo nos romances de Dicke sob a lente da
transculturação é identificar como o romancista lida com os dados dessas culturas, no
contexto da produção literária em Mato Grosso e na América Latina. É determinar como
a categoria do narrador se insere nas questões referentes aos conflitos locais e à
produção da identidade como forma de resistência à anulação da cultura local.
Estabeleceu-se, aqui, que os aspectos semânticos, lingüísticos e da cosmovisão, são
diretamente dependentes da composição. A escolha da maneira de narrar define as
opções culturais do romancista em suas produções.
Os dois primeiros capítulos discutem como os conceitos de identidade, de cultura
e de trocas interculturais se relacionam uns com os outros. Acredita-se, aqui, que toda
elaboração identitária e conceitual, inclusive a dos conceitos de identidade, se origina
dos contatos entre grupos sociais. Partindo de autores que fazem uma revisão histórica
dos conceitos de cultura (Cuche, 2002), e da tipologia relativa às trocas culturais
(Burke, 2003), a intenção é definir a ‘transculturação’, dentre diversos outros termos
utilizados ao longo da história da cultura, como o mais apropriado para se aplicar ao
estudo dos romances de Ricardo Guilherme Dicke. É importante dizer que essa escolha
também é, abertamente, uma opção por utilizar para análise o pensamento gerado a
partir do próprio contexto em que o objeto deste estudo se insere: a América Latina.
O terceiro capítulo desenvolve o conceito escolhido de ‘transculturação’,
aplicando-o à literatura, apoiando-se nas discussões de Angel Rama. Estabelecem-se
os critérios de análise, os níveis (lingüístico, da composição e da cosmovisão) em que
se opera a análise e a configuração do contexto em que a transculturação ocorre na
literatura.
O quarto capítulo, apesar de não tratar diretamente dos textos literários de Dicke,
situa o romancista em relação à produção literária de Mato Grosso. O autor se distancia
de uma produção mais tradicional, vinculada à Academia Mato-grossense de Letras,
cuja temática tende à exaltação do elemento local, ao mesmo tempo em que se
distancia da produção de escritores mais recentes. O capítulo trata, também, de uma
‘redescoberta’ de Dicke no espaço da literatura regional mato-grossense e na
apropriação de sua imagem como ícone dessa literatura.
Os três capítulos seguintes fazem uma revisão de textos que trazem informações
mais aprofundadas sobre a obra de Dicke. Compõem o conjunto desses textos os
prefácios a seus romances e os estudos acadêmicos de duas professoras, Gilvone
Furtado Miguel e Hilda Gomes Dutra Magalhães. Os textos das duas autoras
apresentaram notável compatibilidade com a teoria da ‘transculturação’, pois pensam a
obra de Dicke de maneira a escapar às determinações de uma visão regionalista que
só atribui valor à obra que registra traços locais. A reelaboração mítica, tema do
trabalho de Miguel, e a temática do conflito entre as culturas rurais minoritárias e a
invasão latifundiária, tema do trabalho de Magalhães, são aspectos imprescindíveis
para entender os processos de transculturação dentro da literatura. Os prefácios, de
maneira geral, trazem duas discussões importantes para pensar a transculturação na
obra de Dicke, em particular: a questão da regionalidade e a questão do foco narrativo.
O estudo do foco narrativo nos livros do romancista é o tema principal desta pesquisa.
Ele foi o elemento desencadeador do trabalho e é o elemento chave para a discussão
da transculturação nas obras do autor.
É a esse procedimento que se resumem os dois últimos capítulos. O penúltimo
vai tratar da relação entre transculturação e foco narrativo, exemplificando-a com
trechos dos romances, definindo o foco narrativo como principal aspecto para se
avaliar, em Dicke, as questões referentes às dicotomias regionalidade/universalidade,
verdade/ficção, autor/personagem, mito/realidade e muitas outras oferecidas pelo
repertório da cultura ocidental. A discussão sobre a transculturação visa, justamente,
relativizar essas dicotomias na literatura. O último capítulo vai operar os critérios
estabelecidos no penúltimo e aplicá-los ao romance Cerimônias do Esquecimento que
é, segundo a perspectiva adotada para este trabalho, o ponto alto dos processos de
transculturação no romancista. Neste ponto, discute-se uma dicotomia fundamental,
que é uma das bases da herança européia e que Dicke, através do peculiar
procedimento narrativo que adota, questiona de maneira profunda: a dicotomia entre o
eu e o outro.
2 O CONCEITO DE CULTURA

Denys Cuche (2002), etnólogo francês, faz uma revisão histórica do conceito e
do uso do termo ‘cultura’ no âmbito das ciências sociais. Seu texto se inicia com a
evolução do vocábulo ‘cultura’ na França, desde a Idade Média até o século XVIII,
passando pelo debate entre alemães e franceses acerca dos termos ‘cultura’ e
‘civilização’, entre os séculos XIX e XX, com suas aplicações e implicações. O autor
delineia, desde o início, uma bipolaridade que vai percorrer todas as outras discussões
das quais irá tratar em seguida, quando do surgimento da etnografia, da sociologia e da
antropologia:

O debate franco-alemão do século XVIII ao século XX é arquetípico das


duas concepções de cultura, uma particularista, a outra universalista,
que estão na base das duas maneiras de definir o conceito de cultura
nas ciências sociais contemporâneas. (Cuche, 2002: 31)

Inicialmente, a universalidade, implicada no conceito de ‘civilização’, de linha


francesa, e a particularidade, implicada no conceito de ‘cultura’, de linha alemã,
marcam, para Cuche, as duas perspectivas pelas quais irão se dar os estudos dos
grupos sociais posteriormente. Ambas refletem também as características dos próprios
grupos que os cunharam: a unidade política francesa e o fragmentado espaço alemão
do século XIX. No conceito francês de ‘civilização’, está implicado um processo de
evolução ininterrupto do qual todos os grupos sociais participam. Nesse processo,
alguns grupos (como a França) alcançaram um estágio avançado - de intelectualidade,
de estrutura social e política -, ao qual “todos os povos, mesmo os mais ‘selvagens’,
têm vocação para entrar” (2002, p.22). ‘Cultura’, termo escolhido pela intelectualidade
alemã para fazer frente à ‘civilização’ francesa, traz em si a experiência de um grupo
que “não conseguiu ainda sua unificação política” (2002, p.27), cabendo à cultura essa
unificação. Por isso, o conceito de cultura esteve, na Alemanha, vinculado diretamente
ao nacionalismo, à busca pela unidade política, frente a outras nações já constituídas,
como França e Inglaterra (2002, p.27-28). Em França, ainda no século XIX, ‘cultura’ e
‘civilização’ seriam usados como sinônimos e ‘cultura’ acaba se fixando, posteriormente,
como o termo definitivo, aplicável às ciências sociais.
Outro aspecto importante, nas discussões acerca da ‘cultura’, diz respeito à sua
constituição e estruturação em vista dos contatos culturais, da relação entre grupos.
Cuche, nessa discussão, parte dos primeiros conceitos etnológicos de cultura, de Tylor,
universalista, e Boas, particularista, passando pela antropologia cultural norte-
americana. Uma noção que percorre seu texto como um todo, e que está já na
introdução do seu livro, é a de cultura como um ‘todo coerente’, constituído pelos
modos de vida e pensamento que regulam as relações dos grupos e seres humanos
entre si e com a natureza (2002, p.11). Peter Burke (2003, p.16) usa um conceito muito
próximo, ao tratar de hibridismo cultural, caracterizando a cultura como “atitudes,
mentalidades e valores e suas expressões, concretizações ou simbolizações em
artefatos, práticas e representações”.
Ainda segundo Cuche, de início, a etnologia buscou a originalidade das culturas,
tentando encontrar aspectos, traços culturais intocados e, portanto, não modificados
pelos contatos entre grupos humanos:

A etnologia não somente cultivou a obsessão da busca do aspecto


original de cada cultura, mas também a da procura do caráter
absolutamente original de cada cultura. Nesta perspectiva, toda
mestiçagem das culturas era vista como um fenômeno que alterava sua
pureza original... (Cuche, 2002:111)

Somente com o desenvolvimento de estudos dos contatos interculturais4, numa


perspectiva particularista, é que essa concepção fechada de cultura foi modificada.
Nesses termos, já não se pode considerar a cultura sem se levar em conta que ela se
mantém e se modifica, tanto por movimentos internos quanto pelos contatos com outras
culturas. Um conceito problemático, mas usado de início, foi o de ‘aculturação’, termo
definido pela linha de estudos sociais norte-americana. Ele consiste no:

conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto


entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam
mudanças nos modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois
grupos.5

4
Os trabalhos da antropologia cultural norte-americana, de tendência particularista, somados à pesquisa
de Roger Bastide e outros, intensificaram o campo dos estudos interculturais. Cf. Cuche, 2002.
5
Conceito elaborado por um comitê composto por Robert Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits, no
Memorando para o estudo da aculturação. (apud Cuche, 2002: 115)
Note-se que a transformação dos patterns culturais pode se dar nas duas
culturas e não em uma só. O termo ‘aculturação’, no entanto, não manteve inteiramente
esse caráter de imparcialidade, problema contornado por outros termos como
‘hibridismo’, ‘mestiçagem’ e ‘transculturação’. A cultura passa a ser vista como algo
dinâmico, sujeita a alterações, assimilações, influências, ao longo do tempo.
Esta concepção do processo cultural se relaciona com outra discussão que toma
formas análogas: a questão da identidade. A ligação entre cultura e identidade está
vinculada com a nova maneira de se enxergar as relações culturais, pelos contatos
entre os grupos. A ‘moda’ da identidade, segundo Cuche, é:

o prolongamento do fenômeno da exaltação da diferença que surgiu nos


anos setenta e que levou tendências ideológicas muito diversas e até
opostas a fazer a apologia da sociedade multicultural, por um lado, ou,
por outro lado, a exaltação da idéia de cada um por si para manter sua
identidade .(Cuche, 2002:175)

Esse vínculo ocorre porque o contato intercultural está na origem da concepção


da identidade. Esse conceito também apresenta um percurso que vai desde uma noção
de identidade fechada, original e pura, a outra em que ela só se constitui a partir do
confronto entre indivíduos situados num mesmo contexto sócio-histórico-cultural; entre
indivíduos de diferentes culturas; entre coletividades distintas; entre épocas distintas
etc.6 A partir dessa última perspectiva, a diferença seria base para a constituição da
identidade. A presença de um elemento alheio, de fora, parece ser indispensável para a
constituição de uma interioridade. Essa concepção se aplica tanto ao indivíduo quanto à
coletividade: um grupo de indivíduos também pode conceber uma unicidade coletiva,
fator de coesão interna, diferenciando-se de outros grupos.
No entanto, apesar de andarem juntos, como “conceitos que remetem a uma
mesma realidade, vista por dois ângulos diferentes” (Cuche, 2002:14), ‘cultura’ e
‘identidade’ não têm o mesmo significado. A identidade está vinculada à posição
tomada por cada grupo ou indivíduo na situação de contato. Ela se constitui na escolha
dos elementos culturais que serão eleitos como representantes daquele grupo
específico. A identidade se compõe, portanto, das estratégias usadas pelos grupos ou

6
Este trabalho opta por esta segunda maneira de ver a identidade, de acordo com a opção pela cultura
como sendo constituída pelos contatos interculturais.
indivíduos, numa situação de contato, com determinados fins relativos à situação social
em que se encontram:

A identidade etno-cultural usa a cultura, mas raramente toda a cultura.


Uma mesma cultura pode ser instrumentalizada de modo diferente e até
oposto nas diversas estratégias de identificação. (Cuche, 2002: 201)

Essa maneira de ver a relação entre identidade e cultura se aplica, por exemplo,
ao caso descrito por Woodward (2000, p.8). Trata-se de um episódio da guerra entre
sérvios e croatas, em que a autora destaca as maneiras com que cada lado busca se
diferenciar do outro, em virtude da guerra, mas ao mesmo tempo reconhece
semelhanças entre si. No caso em questão, há uma busca por elementos culturais
(como o cigarro sérvio) que representem uma ‘natureza’, uma originalidade, da qual se
está em busca e que comprove que há uma diferença entre os grupos envolvidos no
conflito. A autora talvez tenha escolhido este caso como exemplo porque, nele, essa
escolha estratégica dos elementos culturais fica mais evidente, já que ambos os lados
são dissidências identitárias de uma mesma cultura inicial. Uma mesma cultura a partir
da qual se constituem identidades distintas7.
O contato entre grupos pode se dar de várias formas e suscitar diversas
variações na formação das identidades e dos produtos culturais. Em geral, ele se dá de
maneira que os grupos envolvidos não possuam as mesmas condições, concorrendo
no contato com diferenças de desenvolvimento tecnológico, contingente demográfico,
autonomia política, superioridade econômica etc. 8 Se pensarmos que no contato um
dos lados possui uma vantagem, exerce uma dominação sobre o outro, a constituição
da identidade já não pode ser vista da mesma maneira, pelo menos para um dos
grupos, o dominado: “a hierarquia cultural resulta da hierarquia social” (Cuche, 2002:
143). Nessa hierarquia, o grupo com menos condições, “em sua evolução, não pode
desconsiderar a cultura dominante” (2002, p.145), o que não quer dizer que ele se
anule, pois o que está em jogo é a cultura e não o grupo: um dos grupos está
submetido, mas suas maneiras de ser e pensar, bem como suas práticas, podem

7
Pelo menos como grupos que buscam se diferenciar de outros, mesmo pertencendo a uma mesma
cultura. Aqui, busca-se uma negação, a diferença pela negação de que se é semelhante.
8
Roger Bastide estabelece diversos fatores que podem influenciar as trocas culturais. (Bastide, 1960:
326)
modificar a cultura do dominador. Esse processo de dominação e sujeição é permeado
sempre pela constituição das identidades de um e outro.
No contato entre grupos, pode ocorrer, pelo menos aparentemente ou
temporariamente, a anulação das manifestações culturais de um dos grupos envolvidos
no contato. O grupo que possui uma posição de vantagem pode impor sua cultura e sua
identidade como prática de dominação. A imposição, bem como a própria constituição
da identidade, toma a forma de narrativa. A identidade é tratada por muitos teóricos
como um processo de narrativa, em que o grupo elabora um contar algo sobre si
mesmo, formando um conjunto de significantes que constituem um topos de onde se
fala, onde se territorializa:

identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-se
é, em última análise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo se
definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si
mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da
definição implícita na qual esta coletividade se encontra. (Ricoeur, apud
Bernt, 1992: 19)

A narrativa pode, ainda, ir além da história verbal, utilizando todos os elementos


de uma cultura que possam funcionar como símbolos. Cada grupo, portanto, elabora
sua narrativa e a partir dela reconhece os referentes para a definição de sua identidade.
A identidade é essencialmente uma questão de representação:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas


simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos
pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo
que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos
tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.
(Woodward, 2000:17)

No contato entre grupos, portanto, entra em jogo a representação, a narrativa de


cada grupo em questão. Esse contato pode ter várias repercussões para os grupos,
que vão da afirmação da narrativa de um deles como a verdadeira, até a
interpenetração e modificação das respectivas narrativas. Pode ocorrer, ainda, a
formação de uma terceira identidade que se compõe da união dos grupos envolvidos.
Por exemplo, a desigualdade entre os grupos europeus, no momento de sua
organização como nação, tem papel importante na formação de sua cultura e
identidade9. Já consolidados, no período colonial, e ainda mantendo uma hierarquia
entre si, esses grupos operaram a colonização em outras regiões fora da Europa.
Nesses processos é que muitos tentaram fazer com que suas narrativas, suas
representações, prevalecessem. Sendo eles os ‘superiores’, conquistadores, puderam,
em suas narrativas, excluir a identidade dos conquistados ou, melhor dizendo,
cristalizar algumas polaridades: dominador/dominado, civilizado/primitivo, etc. Até aqui,
é compreensível uma postura essencialista, na medida em que o contexto de conquista
se torna uma extensão do contexto do grupo conquistador. Sua identidade, sua cultura,
se mantém. Funciona a afirmação de Todorov:

A busca identitária, inevitável durante os períodos de crise, corre o risco,


contudo, de transformar-se em etnocentrismo, isto é, em erigir, de
maneira, indevida, os valores próprios da sociedade à qual se pertence,
em valores universais. (Todorov apud Bernt, 1992:17)

Alguns fatores vão contribuir para a alteração desse quadro e para a


problematização do conceito de identidade. Dentre eles, destacam-se a crise dos
estados-nação, nos fins do século XIX e início do XX, e a conseqüente crise da
modernidade:

as velhas estruturas dos estados e das comunidades nacionais entraram


em colapso, cedendo lugar a uma crescente transnacionalização da
vida econômica e cultural. A globalização envolve uma interação entre
fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões de
produção e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidades
novas e globalizadas.(Woodward, 2000:20)
a desintegração social e política do espaço nacional é cada vez mais
evidente. Indicativos como a crescente desigualdade social, a inserção
de instituições financeiras transnacionais que vão substituindo o Estado
no planejamento, a deteorização da esfera pública e de mecanismos de
coesão política cultural, entre outros aspectos, levam o autor a duvidar
da pertinência de categorias como nação e Estado para compreender as
experiências culturais contemporâneas.(Escosteguy, 2001: 158)

9
Veja-se o caso de Alemanha e França, por exemplo.
É preciso enxergar nos estados-nação a constituição de uma identidade que
pretende à unificação e homogeneização dos indivíduos. “A principal função das
culturas nacionais, que (...) são sistemas de representação, tem sido representar o que
é, de fato, uma amálgama étnica da nacionalidade moderna como a unidade primordial
de ‘um povo’” (Hall apud Escosteguy, 2001: 146). 10 O problema é que a estrutura
cerrada dessas sociedades, e conseqüentemente de suas culturas e identidades, se
desestruturou. Nessa desestruturação está implicada, dentre outras coisas, a
manifestação das minorias, constituídas dos grupos das regiões colonizadas e das
próprias classes desfavorecidas pela ‘narrativa nacional’.
O que ocorre, então, é que as minorias podem também incorrer no mesmo
essencialismo, usando o mesmo método conhecido para constituir sua própria
identidade, se fiando em referentes empíricos como cor, raça e território:

A identidade será, portanto, a princípio, simplesmente reativa, o oposto,


uma resposta ao colonizador, o que, conforme Glissant, constitui-se em
uma limitação. Porque, motivadas simplesmente pelo revide, as
identidades tendem à busca de uma pureza original que não é mais
possível ou a um fechamento da comunidade sobre si própria. (Bernt,
1992: 26)

As minorias, por sua vez, também fariam um esforço para criar, novamente, suas
próprias narrativas, buscando uma originalidade cultural que os diferenciaria dos
antigos conquistadores. Se isso acontece, é porque já há nessa cultura,
invariavelmente, elementos da antiga estrutura dos estados-nação. Eles servem de
modelo de constituição de identidade, senão para a coletividade, pelo menos para
quem opera a narrativa. Pode-se pensar, por exemplo, que a estrutura de governo,
jurídica e educacional mantém-se no local sob os moldes do antigo estado colonizador.
Pode ocorrer que já se constituiu aí, dentre outras coisas, uma diferença de classes. A
narrativa da minoria pode ser gerada já no seio de uma elite local.

10
“O conceito (de soberania moderna) funcionou como pedra angular da construção do eurocentrismo.
Apesar de a soberania moderna ter emanado da Europa, ela nasceu e se desenvolveu em grande parte
por intermédio das relações da Europa com o exterior, e particularmente por intermédio do seu projeto
colonial e da resistência do colonizado. A soberania moderna surgiu, portanto, como o conceito da
reação européia e da dominação européia tanto dentro como fora de suas fronteiras”. (Hard & Negri,
2003, p.92).
O que acontece é que a condição de ‘ex-dominado’, de ‘ex-marginal’, já estaria
implícita na constituição mesmo da nova identidade que se forma. A relação, neste
caso, entre dominador e dominado, deve ser vista de outra perspectiva, pois já não é o
dominador que facilmente pode excluir ou inferiorizar o dominado em sua narrativa, mas
é o momento de o dominado criar a sua própria. Nesse momento, ele precisa reelaborar
a história de modo que ela pese favoravelmente para si. Como fazê-lo ao mesmo tempo
em que permanece o estigma da derrota? Como fazê-lo quando alguns componentes
da cultura do conquistador (como o pensamento maniqueísta que define a oposição
entre dominador e dominado) foram apropriados? É preciso lembrar que uma elite local
pode tanto assumir o partido das minorias quanto tentar conservar os padrões já
instituídos pelo antigo colonizador.
Esse contexto pós-colonial tem características muito peculiares, que se
configuram a partir de uma nova situação gerada pela decadência dos estados-nação.
Pelo menos dois tipos de cultura se apresentam e fazem lembrar os próprios conceitos
de cultura tratados no início deste capítulo: uma cultura de tendência universalista, ou
universalizante, descendente da cultura européia, ocidental, que se pretende um
modelo para o mundo; e outra cultura, remanescente de grupos nas sociedades
colonizadas que, não tendo o mesmo poder de difusão e influência da primeira,
procuram sustentar sua particularidade. Obviamente, essas culturas não estão isoladas
do contato entre si. Dentro do grupo, elas se manifestam em locais específicos, com
recursos específicos, com maior ou menor poder de disseminação.
Na América Latina, surgem produtos culturais que superam, consciente ou
inconscientemente, essa dicotomia entre culturas. Esses produtos se manifestam em
favor das culturas particulares, pois a universalista mantém seu status de verdade e de
essencialidade.
3 A IDENTIDADE E AS TERMINOLOGIAS

Um outro contexto se desenha em relação aos estudos dos contatos entre


culturas: além das ciências sociais, surgem também os estudos culturais. As culturas e
identidades transcendem os limites dos antigos estados-nação e se projetam como
‘universais’ e ‘modernizadoras’, operando, sobretudo, pela hegemonia econômica das
sociedades às quais correspondem. Por outro lado, os grupos antes colonizados
reestruturam sua cultura, de diversas maneiras. O contato agora se dá entre essas
culturas universalizantes, descendentes das antigas grandes potências coloniais, como
é o caso das potências norte-americanas, e as culturas particulares (menores, exóticas,
marginais) remanescentes do processo colonial. Essa bipolaridade não reflete, em
todos os casos, o predomínio daquelas sobre estas, mesmo no período colonial. Burke
cita, por exemplo, a ação missionária na China, em que os religiosos europeus foram
obrigados ‘a se adaptar à cultura nativa, a fazer concessões’ (Burke, 2003: 66), porque
eram minoria e não dispunham de recursos para impor a sua cultura. Em outros casos,
como os da América Latina, a situação favoreceu a imposição.
Deve-se ressaltar que, nessa abertura de fronteiras ocasionada pela crise dos
estados-nação e da modernidade, a cultura universalista não é característica de apenas
um grupo. Apesar disso, ela pode ser representada por um, de acordo com o momento
(a exemplo de França, Inglaterra ou Estados Unidos). Ela se constitui de tendências
que se projetam globalmente através dos mecanismos de divulgação disponíveis,
estabelecendo diversos níveis de contato e hierarquia entre os diversos grupos e suas
culturas. O espaço globalizado é o campo fértil dos contatos interculturais. Segundo
Canclini:

Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade moderna


quando criam mercados mundiais de bens materiais e dinheiro,
mensagens e migrantes. Os fluxos e as interações que ocorrem nesses
processos diminuíram fronteiras e alfândegas, assim com a autonomia
das tradições locais; propiciam mais formas de hibridação produtiva,
comunicacional e nos estilos de consumo do que no passado. (2003, p.
XXXI)
Canclini toca num ponto fundamental para tratar dos contatos interculturais num
mundo pós-moderno11: a autonomia das tradições locais está diminuída. Elas já não
estão protegidas pelo isolamento. Este foi vencido pelas estradas, pelo comércio e, por
fim, pelos meios de comunicação em massa. Canclini coloca o ‘hibridismo cultural’
como o conceito mais apropriado para se estudar esse espaço globalizado, se referindo
a outros termos – como mestiçagem, sincretismo e criolização – como “tipologia de
hibridações tradicionais” (2003, p. XXXII). De maneira análoga, Peter Burke (2003), em
vários momentos, usa o termo ‘hibridismo’ (que vai já no título de seu livro Hibridismo
cultural) como termo geral para os processos interculturais, apesar de ressalvar que ele
não se aplica da mesma maneira em todas as situações. Um conceito inicial de
hibridação dado por Canclini é bem amplo:

Parto de una primera definición: entiendo por hibridación procesos


socioculturales en los que estructuras o prácticas discretas, que
esxistían en forma separada, se combinan para generar nuevas
estructuras, objetos y prácticas. (Canclini, 2000)12

Essa definição, apesar da ressalva de Burke, tornou-se mais abrangente e


conseguiu sintetizar a idéia básica das outras terminologias: a formação de um produto
cultural diferente daqueles que o formam. Burke faz uma recuperação histórica do uso
de várias tipologias acerca dos processos interculturais, anotando que “todos os
termos... precisam ser manuseados com cuidado e que é mais fácil fazer isso se virmos
a linguagem da análise como sendo ela mesma parte da história da cultura” (Burke,
2003: 40). Com isso, ele insere a própria discussão teórica na esteira das trocas

11
O conceito de pós-moderno aqui é o sugerido por Canclini na mesma obra, quando diz que “a
modernidade não é só um espaço ou um estado no qual se entre ou do qual se emigre. É uma condição
que nos envolve, nas cidades e no campo, nas metrópoles e nos países subdesenvolvidos. Com todas as
contradições que existem entre modernismo e modernização, e precisamente por elas, é uma situação de
trânsito interminável na qual nunca se encerra a incerteza do que significa ser moderno... A essa altura,
percebe-se o quanto tem de equívoca a noção de pós-modernidade, se quisermos evitar que o pós
designe uma superação do moderno. Pode-se falar criticamente da modernidade e buscá-la ao mesmo
tempo em que estamos passando por ela? Se não fosse tão incômodo, seria preciso dizer algo assim
como pós-intra-moderno”. (Canclini, 2003: 356)
12
O híbrido é um elemento fundamental para os estudos culturais, no estudo do contato entre as
culturas: “Freqüentemente é nas regiões fronteiriças que as coisas acontecem, e hibridez e colagem são
algumas de nossas expressões preferidas por identificar qualidades nas pessoas e em suas produções”.
(Hannerz: 1997, p.8)
interculturais. Os conceitos usados para analisar a cultura são, eles mesmos, produtos
de cultura e de identidade.
Em vista disso, e em meio a tantas terminologias conhecidas13, ao analisar uma
situação de contato intercultural, deve-se lançar mão da teoria que se apresente mais
adequada. No caso do romance de Ricardo Guilherme Dicke, objeto deste trabalho, a
teoria mais adequada parece ser a da transculturação. Para falar dela, no entanto, é
preciso tratar também de outro conceito já mencionado anteriormente: o de aculturação;
pois é em oposição a este que Fernando Ortiz, teórico cubano, propõe o uso do termo
‘transculturação’.
‘Transculturação’ foi adotado por Ortiz para substituir expressamente o termo
‘aculturação’. A diferença entre o uso dos dois termos marca a diferença cultural dos
grupos aos quais pertencem os seus elaboradores. A diferença conceitual marca a
diferença entre uma tendência universalista e outra particularista. Cuche, francês, sobre
o termo ‘aculturação’, diz que:

A palavra não designa uma pura e simples deculturação . Em


aculturação , o prefixo não significa privação; ele vem
etimologicamente do latim ad e indica um movimento de aproximação.
(Cuche, 2002: 114)

Este termo é ‘resgatado’ por Burke em sua origem, nos trabalhos com índios dos
antropólogos do fim do século XIX, que têm por idéia fundamental “a de uma cultura
subordinada adotando características da cultura dominante” (Burke, 2003: 44). É o
mesmo conceito que Ortiz usa para criticar o vocábulo, chamando atenção para as
perdas e as reformulações que ocorrem em cada cultura envolvida no contato, e que o
conceito negligencia:

Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor o


processo de transição de uma cultura para outra, porque este processo
não consiste somente em adquirir uma cultura diferente, o que, a rigor,
significa o vocábulo anglo-saxão acculturation, porém o processo implica
também, necessariamente, na perda, no desenraizamento de uma
cultura anterior, o que se poderia chamar de uma desculturação parcial,

13
Cf. Burke, 2003. Não se quer, aqui, repetir o trabalho de Burke e outros que realizaram essa revisão
teórica dos conceitos. Trata-se, aqui, de, dentro dos processos reunidos sob o conceito de hibridação, ver
qual se identifica mais com os objetos culturais em questão.
e, além do mais, significa a criação conseqüente de novos fenômenos
culturais, que se poderiam denominar neo-culturação. (Ortiz, 1983)14

Na página 15 do presente trabalho, a definição de ‘aculturação’, no Memorando


para o estudo da aculturação, é bem menos carregada ideologicamente. As aquisições,
nele, se dão em qualquer sentido, em qualquer cultura que esteja envolvida no contato,
seja ela subordinada ou dominante. Cuche, analisando esse conceito, anota que a
dominação social implica uma maior tendência à prevalência da cultura do grupo social
dominante. No entanto, nesse processo, os grupos seriam apenas sustentáculos da
cultura, que pode se mover de um a outro grupo, dependendo da constituição de cada
um (Cuche, 2002: 145). Apesar da definição do Memorando, o vocábulo ‘aculturação’
parece não ter conseguido se desvencilhar do estigma inicial, elaborado no século XIX,
em que o subordinado assimila a cultura do dominador.
A definição de ‘aculturação’ do Memorando revela um caráter higiênico e
universalista, na medida em que, vinda de culturas de grupos hegemônicos,
privilegiados historicamente, não traz em si mesma a marca da derrota e da perda.
Elabora um conceito que se quer aplicável a todos os contatos humanos. A
transculturação surge como categoria para pensar a situação dos povos que antes
foram os dominados, colonizados, e agora são os que sofrem pela diferença econômica
e social, na América Latina e caribenha. É um termo cunhado a partir do ponto de vista
de uma cultura cuja sociedade sofreu perdas ao longo de anos. A elaboração dos
elementos identitários e do próprio conceito, nesse caso, reflete a necessidade da auto-
afirmação e da revelação de uma história das perdas e, principalmente, das conquistas.
A forma de resistir a essa perda não seria a simples conservação ou resgate dos
elementos tradicionais, mas a elaboração de novos, que mantivessem a unidade
cultural e identitária do grupo.
O fator que permite a positivação do processo de aculturação é a desvinculação
conceitual entre cultura, sociedade e identidade. O conceito de ‘cultura’ para a
aculturação guarda uma relativa independência do confronto entre os grupos sociais,

14
Ortiz usa termos como ‘transmutação’, ‘sincretismo’, ‘transmigração’ e ‘mestiçagem’ como equivalentes
de transculturação, além de determinar as fases do processo: desculturação, aculturação e, por fim,
transculturação. (Ortiz, 1983)
pois estes são suportes, entre os quais ela pode se transferir. Para a América Latina e
Caribe, no entanto, o processo violento de sua colonização e também de sua libertação
não permite essa abstração da cultura. A sua condição de sociedade subjugada que,
depois, se torna marginal, interfere na percepção de si mesma. A nova cultura, que
surge transculturada, surge também como produto da resistência, consciente ou
inconscientemente, à perda cultural, testemunho da sobrevivência15.
Não se pode considerar, no entanto, para este caso, expressões do tipo ‘cultura
dominada’ como metáforas (como faz Cuche a respeito da análise de Marx e Weber em
Cuche, 2002: 145), pois a dominação é parte constituinte dessa cultura. O que faz com
que o conceito de cultura se contamine pela experiência do grupo é justamente a
identidade16. A identidade constituída de grupo dominado interfere na elaboração do
conceito de ‘transculturação’, assim como a identidade de dominador (e de universal),
interfere na elaboração do conceito de ‘aculturação’. Essa polarização se transmuta,
como já se viu, na dicotomia entre cultura universalizante e cultura tradicional, no
período pós-colonial. Essa dicotomia ainda adquire outras implicações, principalmente
referentes ao desenvolvimento social e tecnológico. As culturas tradicionais carregam o
estigma de atraso, enquanto que as universalistas se apresentam como
modernizadoras. Estas têm como suporte as grandes cidades do mundo, nos países
política e economicamente hegemônicos e nos países em desenvolvimento. Aquelas
estão espalhadas nos espaços rurais ou periféricos. Este estigma se reflete na
constituição da idéia de cidade como símbolo da inovação, da modernização, enquanto
o meio rural assume a representação da tradição. Essa é a correspondência que
Raymond Williams estabelece para as relações entre campo e cidade na Inglaterra:

Por exemplo, é significativo que a imagem comum do campo seja agora


uma imagem do passado, e a imagem comum da cidade, uma imagem
do futuro. Se as isolarmos deste modo, fica faltando o presente, a idéia
do campo tende à tradição, aos costumes humanos e naturais. A idéia

15
Não no mesmo sentido de sobrevivência utilizado por Herskovits, para quem sobrevivências culturais
são ‘elementos da antiga cultura conservados idênticos na nova cultura sincrética’. (apud Cuche, 2002:
120)
16
Renato Ortiz, tratando d’O Guarani, de José de Alencar, como a construção de um mito de fundação
da brasilidade, diferencia as experiências românticas européias da brasileira: “No entanto, parece-me que
existe uma diferença entre a construção das nacionalidades na Europa... Os países europeus possuíam
um passado histórico que servia de alimento para a construção dos românticos.” (1988, p.261)
da cidade tende ao progresso, à modernização, ao desenvolvimento.
(Williams, 1989: 397)

Williams trata da constituição dos espaços do campo e da cidade nos discursos


histórico e literário, na Inglaterra. O contraste entre campo e cidade, no entanto, não
resolve o problema. Segundo ele:

num presente vivenciado enquanto tensão, usamos o contraste entre


campo e cidade para ratificar uma divisão e um conflito de impulsos
ainda não resolvidos, que talvez fosse melhor encarar em seus próprios
termos. (Williams, 1989: 397)

A diferença entre esta maneira de ver esse contraste e o ponto de vista da


transculturação é que, no caso da América Latina, o campo não representa somente
uma idéia de tradição, mas é o espaço identitário de grupos sociais de culturas
diferentes da cultura da cidade. O campo e a cidade não são faces de uma mesma
cultura, como no caso tratado por Raymond Williams. Sendo assim, a relação entre elas
será tratada, para o caso posto aqui em questão, sob o termo ‘transculturação’, com as
implicações atribuídas a ele por Angel Rama. Este autor discute algumas produções
literárias latino-americanas a partir da dicotomia entre cultura tradicional (denominada,
também, de rural e regional) e cultura modernizadora (denominada, também, de
universalizante ou universalista), no sentido atribuído a esses termos neste capítulo.
4 LITERATURA E TRANSCULTURAÇÃO

Essas relações também se encontram na literatura, já que ela é parte da cultura


e pode servir, em muitos casos, de instrumento de constituição da identidade. Quanto
mais a literatura for palco dessas questões, tanto mais importante ela é para a
sociedade e as culturas em questão. Segundo Angel Rama, na América Latina, o
conteúdo cultural das culturas locais:

só por intermédio da literatura alcançara sobrevivência, cancelando-se


sua ação eficaz, integradora, sobre o meio nacional, que aparentemente
não podia ser cumprida por outros canais pelo menos em seu nível
artístico. (apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 210)

As relações entre uma cultura universalizante e uma cultura particular via


literatura ganham, quando Rama adota o conceito de transculturação de Ortiz, outra
perspectiva de análise, em que entram a experiência da dominação colonial e da
inferioridade econômica e política. Daí o fato, segundo Rama, de a narrativa latino-
americana ter como aspectos ou intenções fundamentais a independência e a
originalidade:

Siempre, más aún que la legítima búsqueda de enriquecimiento


complementario, las movió el deseo de independizarse de las fuentes
primeras, al punto de poder decirse que, desde el discurso crítico de la
segunda mitad del siglo XVIII hasta nuestros dias, ésa fue la consigna
principal: independizar-se...
El critério de representatividad, que resurge em el período nacionalista y
social que aproximadamente va de 1910 a 1940, fue animado por las
emergentes clases medias que estaban integradas por buen número de
provincianos de reciente urbanización. (Rama, 1982: 11-15)

Nessa citação, dois aspectos são muito importantes no pensamento acerca da


literatura latino-americana: o desejo de se diferenciar da metrópole colonial e a maneira
como isso foi feito, tendo como aspecto fundamental o que o teórico chama de critério
de representatividade. Antonio Candido declara, na introdução à sua Formação da
Literatura Brasileira, essa mesma tendência que, a princípio, constituiu parte de um
projeto de independência em relação à metrópole e, depois, se desenhou numa
oposição universalismo/localismo. Seu livro “constitui uma história dos brasileiros no
seu desejo de ter uma literatura”. 17 (2000, p.25) Esse desejo de independer-se se
materializa, na literatura de início, na escolha do elemento local como aspecto
representativo fundamental no processo de diferenciação. Esse processo se aplica à
América Latina de maneira geral, incluindo o Brasil:

O regionalismo acentuava as particularidades culturais que haviam sido


forjadas em áreas ou sociedades internas, contribuindo para definir seu
perfil diferencial.(Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 211)

Rama faz, nessa passagem, dois apontamentos importantes: primeiro, que o


regionalismo incidia sobre as particularidades do local; segundo, que essas
particularidades foram forjadas, o que reitera a idéia do projeto de independência
literária, no Brasil e na América Latina, apontado por vários autores. A cor local não é
um dado natural, mas uma seleção de elementos que serão utilizados para representar
uma determinada cultura, para identificá-la. Regina Zilberman escreve que:

A história da literatura consolidava-se em conformidade com a estética


romântica, e essa se apoiava na noção de cor local.18 (Zilberman, 1999:
27)

Essa é a idéia de regionalismo com que se irá trabalhar adiante. O regionalismo,


na perspectiva de Rama 19 , consiste na representação artística de aspectos locais
escolhidos como ícones arquetípicos de uma cultura que se quer manter frente ao risco
do desaparecimento. Essa postura, no entanto, acaba por idealizar a relação entre a
‘cor local’ e a cultura que ela representa. Exemplo disso é o caso do índio no
romantismo brasileiro, que se aproxima muito pouco da realidade que intentava
17
Candido escreve: “Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo de construir uma
literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os europeus... Depois da
independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço de
construção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a
diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los.” (2000, p. 26). Conferir ainda o artigo
História da Literatura e Identidade Nacional, de Regina Zilberman (1999), assim como o artigo de Renato
Ortiz, já citado.
18
Um dos primeiros a colocar em discussão essa idéia de cor local, no Brasil, foi Machado de Assis, no
ensaio intitulado Noticia da atual literatura brasileira ou instinto de nacionalidade, em que o autor vai
chamar atenção para o fato de que a cor local não determina a qualidade literária de uma obra.
19
Gilvone Furtado Miguel (2001), estudiosa de Ricardo Guilherme Dicke, aponta em Candido esse
mesmo conceito de local, para afirmar que o romancista não se enquadra nesse conceito. O local, nesse
sentido, tem um efeito limitador para a obra artística, funcionando em Dicke apenas como pano de fundo,
como espaço inerte, cenário para o desenrolar da intriga. (Miguel, 2001: 9)
representar. Esse caráter de cor local visa a uma constituição do caráter particular
(neste caso, regional, em oposição ao nacional), em relação a algum valor posto por
uma tendência universalizante.
Em Rama, esse caráter reflete um anseio em afirmar uma identidade baseada na
tradição buscada nos meios interioranos da América Latina. Essa atitude tem como
objetivo confrontar a tradição com a cultura das formações urbanas, cuja tendência é
absorver a tradição, submetendo-a aos modelos universalistas urbanos dos grandes
centros que, por sua vez, enfrentam esse mesmo processo em relação às culturas
vindas das grandes metrópoles mundiais20. A metrópole latino-americana reproduz, na
sua relação com as culturas do interior, sua relação de conflito com as culturas
mundiais, difundindo também o modo de vida urbano:

La cultura modernizada de las ciudades, que se respalda em las fuentes


externas, traslada al interior de la nación un sistema de dominación (que
ha aprendido de su propria dependencia de sistemas culturales
mundiales) apelando a los nuevos eficaces instrumentos de que la dota
la tecnologia reciente, o sea, que no lo asocia a su evolución sino que
intensifica su sometimiento. (Rama, 1982: 20)

De maneira análoga, mas estabelecendo uma relação entre opressores e


oprimidos, centro e periferia, desenvolvidos e dependentes, Eduardo Galeano, outro
uruguaio como Rama, enxerga essas mesmas relações, de uma perspectiva político-
econômica:

A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento


da metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependências
sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo
também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países
pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada
país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre
suas fontes internas de víveres e mão-de-obra. (2002, p.14)

20
A Semana da Arte Moderna no Brasil foi um caso em que a intelectualidade brasileira pensou a
constituição da nacionalidade frente aos padrões europeus de cultura e pensamento, conflito que
suscitou o surgimento de um conceito importante, que se aproxima da idéia de transculturação, que é o
de Antropofagia.
No Brasil, as metrópoles nacionais que representam as culturas modernizadoras
são as cidades de Rio e São Paulo – bastante presentes na narrativa de Ricardo
Guilherme Dicke – representantes ícones do progresso devastador. A superioridade
econômica e tecnológica é imprescindível nesse processo.
Rama estabelece três reações das culturas dominadas em relação ao processo
modernizador vindo das metrópoles: a vulnerabilidade, a rigidez e a plasticidade
cultural. A primeira se caracteriza por uma renúncia às próprias particularidades; a
segunda por uma fixação nos produtos culturais próprios e a terceira, que caracteriza a
transculturação, reelabora o elemento externo a partir do interno e vice-e-versa. O que
Rama vai apontar nas narrativas de transculturação é que nelas os autores ‘resolvem’ o
problema através da assimilação das tradições locais, associando-as às novas
tendências e estruturas artísticas, caracterizando “‘a plasticidade cultural’ com sua
destreza para integrar em um produto as tradições e as novidades” (apud Aguiar &
Vasconcelos, 2001: 214). Essa plasticidade cultural se deu como relativização da própria
linha regionalista, que notou que a resistência radical implicaria em morte cultural,
operando então uma transmutação do regionalismo que salvou seus princípios
dominantes:

Um grupo de escritores viu com lucidez, que se o regionalismo fosse


congelado em sua disputa com o vanguardismo e o realismo-crítico,
entraria em agonia de morte. Esta interromperia um rico fluxo de formas
literárias, mas também acarretaria a extinção de um conteúdo cultural
muito mais amplo, que só por intermédio da literatura alcançara
sobrevivência, cancelando-se sua ação eficaz, integradora, sobre o meio
nacional, que aparentemente não podia ser cumprida por outros canais
pelo menos em seu nível artístico. (apud Aguiar & Vasconcelos: 2001:
211)

A tendência dos meios urbanos à universalidade e a tendência às migrações


internas em direção às cidades fazem com que a cultura de tendência universalista se
alastre. A literatura foi o único meio, segundo Rama, que manteve viva a identidade das
tradições rurais na América Latina, ou pelo menos teve essa intenção. Essa
manutenção, no entanto, não está calcada no resgate e preservação das tradições
rurais, senão na reelaboração dessa tradição a partir de elementos híbridos que,
aproveitando-se de aspectos da cultura universalizante, mantêm-se como material para
criação viva e não para apreciação museológica.
Rama estabelece três níveis para o estudo das narrativas de transculturação na
América Latina: o lingüístico, o da composição literária e o dos significados (ou da
cosmovisão). O primeiro nível caracteriza-se pela:

perda do uso das linguagens dialetais, rurais ou urbanas, e, claro, das


línguas indígenas, e mesmo no campo lexicográfico abandonam muitos
termos com os quais os crioulistas salpicavam seus escritos...
Compensam isso com uma ampliação significativa do campo semântico
regional e da ordem sintática. (apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 215)

Os estudos de Rama se centram na língua indígena, pois o contexto que aborda


é o do contato entre o espanhol, principalmente, e o indígena da América. Essa relação
é análoga no Brasil, tanto em relação ao indígena quanto ao negro e, posteriormente,
às comunidades rurais já descendentes de uma primeira transculturação, estabelecidas
no interior do país. Estas já configuraram, no momento em que chega a cultura
modernizadora através das metrópoles ou capitais próximas, suas práticas sociais e
culturais.
A língua forjada pelos romancistas da transculturação não seria nem a língua
dessas comunidades rurais, nem a usada nos centros urbanos. Seria uma elaboração
artística que utiliza ambas para efeito estético e, sem dúvida, ideológico, pois, em geral,
o romancista toma partido da cultura rural, que se vê cercada pela outra, possuidora de
meios de transmissão e manutenção mais potentes. O trecho a seguir, de um dos
romances de Dicke, ilustra bem essa característica. O ritmo da linguagem sertaneja
transcrita com a correção gramatical e pausas de oralidade grafadas em períodos
longos, prosaicos:

Quem sabia o que Damiano Belo pensava? Coisa mais difícil. Só


mesmo Deus. Porque das cinco ou seis mortes ou vidas ninguém sabe
das quais era dono, havia uma pobre velha, diabo de homem capaz de
matar velha, a verdade dói mais e dói tanto porque é verdade, velhinha
igualzinha à própria mãezinha dele, que morrera a tiro de esmo e de
acaso na beira do rio. Vinha diz que porque se fora foi para receber uma
herancinha antiga. (Dicke,1978: 10)
O segundo nível da transculturação é o da composição literária, em que as
inovações se dão no plano da narração. O autor da transculturação foge ao tipo de
composição tradicional do regionalismo, que possuía uma “concepção racionalizadora,
muito rígida, filha do sociologismo e do psicologismo do século XIX”, mas também não
usa o recurso do stream of consciousness, marca de muitas narrativas modernas.
Rama aponta que a saída encontrada para se produzir nessa região de fronteira
também foi buscada na tradição, para isso cita o monólogo interior, em João Guimarães
Rosa 21 e “o contar dispersivo das ‘comadres’, suas vozes sussurantes, em Pedro
Páramo, de Juan Rulfo, também composto de fontes orais, embora possa ser rastreado
até em textos do Renascimento”. (apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 221)
Esse aspecto é o mais importante em Dicke, pois é o que diz respeito ao ponto
de vista, ao modo de narrar. O romancista, no entanto, não se enquadra nestes dois
exemplos dados. Sua narrativa, além de se alternar entre diversas formas já conhecidas
de narrar, desenvolve uma manipulação do foco narrativo, investindo na alternância das
pessoas gramaticais e flexões verbais de maneira singular. Sua escrita se torna
labiríntica, dispersiva, exigindo uma atenção um pouco mais açulada.
O trecho a seguir foi retirado de O salário dos poetas, cujo personagem central é
um ex-ditador latino-americano exilado no interior de Mato Grosso, numa fazenda
chamada ‘Anhagá’. El general, como é conhecido, está prostrado numa cama por causa
de um tiro na barriga e, durante essa prostração, relembra seus tempos de governo e
se angustia pela sua incapacidade. Neste trecho, dá-se a passagem da terceira para a
primeira pessoa:

Espero que ninguém mais venha, sumiu, silêncio percorre agora a


fazenda Anhangá como sempre percorreu, percorrida por miriápodes de
silêncio de almas de assassinados que retumbam, aliás mas nem tanto,
e o general sente uma lancinante sensação de estar sendo observado,
olhos observadores que observam que estão sendo observados, azuis e
gélidos, alguém que não chega a ser tão familiar com Arbaces, o sempre
21
É importante frisar que há um senso comum de que a obra de Dicke mantém relações com a de
Guimarães Rosa. O autor mato-grossense deixa algumas marcas de intertextualidade com o autor
mineiro e possui um estudo sobre o Grande Sertão: Veredas, além de ter o autor mineiro como jurado de
um de seus romances premiados. Apesar disso, acredito que nem mesmo a idéia de ‘sertão’ é a mesma
nos dois, pois se em Rosa ele representa a busca existencial, em Dicke ele funciona como o espaço
alternativo para a vivência e resistência do pobre. Nessa medida, Dicke se aproxima muito mais da
experiência latino-americana, pois toma partido pela defesa explícita do oprimido. O seu sertão não é
filosófico como o de Rosa, ou não apenas.
fiel, examinado por penetrantes olhos que só podem ser do além , que
fendem a alma e lancinam o córtex, e quem terá contas que ver com o
além a não ser eu, quem fez do poder uma cloaca sem fim, num baraço
de enviar almas antes do tempo para o Além? (Dicke, 2000: 225)

Aqui, pois, as categorias de personagem, narrador, ou mesmo de personagem-


narrador não se aplicam perfeitamente. Ao mesmo tempo em que a voz que seria a do
narrador apresenta um certo distanciamento, que caracteriza a onisciência, logo em
seguida, na mesma frase, irrompe uma seqüência que claramente é uma fala do
general. As vozes não se fundem totalmente formando um narrador-personagem, mas
também não estão tão separadas para que se possa definir o momento em que cada
categoria exerce sua função. Essa indefinição se reforça pela homogeneidade
lingüística que o trecho e o romance como um todo, apresentam.
O terceiro nível é o dos significados. Aqui os romancistas da transculturação
escapam tanto do racionalismo lógico da narrativa regionalista, quanto da ilogicidade
defendida pela vanguarda. O elemento de descoberta (ou redescoberta), que torna a
produção desses autores inovadora, é o mito. Essa prática, no entanto, não consiste
simplesmente no resgate desses elementos:

mais importante ainda que a recuperação de elementos em estado de


incessante emergência é a descoberta dos mecanismos mentais
geradores do mito, o retorno a essa camada aparentemente sepultada ,
mas de enorme potencialidade, na qual se desenvolvem as ações
míticas.(Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 224)

O mito não se presta, nessa narrativa, ao resgate para sua apreciação e


preservação. Ele se torna novamente e de maneira nova, estrutura mental (ou pelo
menos literária) segundo a qual se interpreta a cultura modernizadora e mesmo a
tradição. Gilvone Furtando Miguel (2001), aponta a reatualização mítica como uma das
principais características do romancista.
A reatualização e a constituição míticas do pensamento servem como filtro para
se interpretar a relação econômico-cultural e o conflito entre a cultura tradicional e a
cultura universalista 22 , modernizadora. Os autores da transculturação buscam seus
recursos na tradição das culturas às quais pertencem, e só conseguem produzir assim
justamente porque também eles são produto do contato entre as culturas tradicionais e
as culturas universalistas, como se verá no caso de Dicke, adiante.

22
Usar-se-á sempre os termos ‘universalista’ ou ‘de tendência universal’ e ‘modernizadora’ ou ‘de
tendência modernizadora’, na tentativa de marcar que essas qualidades não são dadas, mas são um
discurso construído que se pretende universal, pois se alastra juntamente com o sistema capitalista e tem
a favor de si inúmeros instrumentos ideológicos que reproduzem a cultura de determinados grupos como
sendo um padrão para todas as outras culturas.
5 O AUTOR DO ESQUECIMENTO E O ESQUECIMENTO DO AUTOR

Ao realizar uma breve busca de informações a respeito de Ricardo Guilherme


Dicke na internet, percebe-se que há uma onda de homenagens e apologias ao autor,
que chega a ser considerado um dos maiores romancistas vivos do Brasil23. No entanto,
apesar de sua brilhante história literária, com prêmios para os que, hoje, são
considerados seus principais romances,24 o autor não goza, ou não gozava até pouco
tempo atrás (considerando-se o início de sua carreira em 68), de prestígio, tanto no
meio acadêmico, quanto, e principalmente, no meio editorial e popular. Do que se
escreve ou já se escreveu sobre o autor, destacam-se alguns gêneros de escrita como
notícias da mídia, resenhas ou críticas curtas (incluindo-se aí textos de orelhas de livro
ou resumos de capa), os prefácios das edições de seus livros e trabalhos acadêmicos,
estes ainda poucos.
As notícias e resenhas comprovam dois aspectos acerca de Dicke: o seu
isolamento e, mais recentemente, a sua valorização enquanto intelectual e grande
escritor de romances, acompanhados de pedidos de reedição ou algo do gênero. Há
críticos e artistas, como Leo Gibson Ribeiro e Glauber Rocha25, sempre chamando, ou
sendo citados para chamar, atenção para o autor de grande talento esquecido e isolado
no Mato Grosso, rogando a ‘urgência urgentíssima’ (palavras de Leo Gibson Ribeiro,
segundo Lorenzo Falcão26) de se reeditar os romances de Dicke.
As notícias também dão conta das homenagens e menções que Dicke começa a
receber por aqui, além de todas as premiações que já recebeu. As primeiras
manifestações de interesse por seu trabalho são as dissertações de Gilvone Furtado
Miguel e Hilda Gomes Dutra Magalhães, em 2001. Em 2002, foi criado o Grupo de
Estudos em Literatura e Cultura de Mato Grosso: RG Dicke, coordenado por Mário
Cezar Silva Leite. Em 2004, Dicke recebeu o título de doutor Honoris Causa, pela

23
Cf. site Tribuna da Imprensa, de 17/01/2005. http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2005/janeiro/
17/bis.aspbis= estante
24
Destaque para Deus de Caim, Caieira e Madona dos Páramos.
25
Que Lorenzo Falcão, jornalista e escritor, amigo e atual agente de Ricardo Guilherme Dicke, a
referência para os assuntos dickeanos no momento, resgata no seu texto sobre O salário dos poetas em
Falcão, 2006.
26
Lorenzo Falcão é jornalista e escritor em Cuiabá e tem atuado como agente de Ricardo Guilherme
Dicke, sendo um dos grandes colaboradores para a sua ‘redescoberta’.
Universidade Federal de Mato Grosso e uma Moção de Aplauso da Assembléia
Legislativa do Estado de Mato Grosso. Dois filmes foram produzidos a partir de seus
romances: Cerimônias do Esquecimento (do romance homônimo), num roteiro
premiado pelo DOCTV (2004), de Eduardo Ferreira, e Figueira Mãe (adaptação de
Madona dos Páramos), longa de Amauri Tangará, cineastas também mato-grossenses.
Dois de seus textos foram adaptados para o teatro: em 2003, a peça Belarmino e o
guardador de ossos, por Amauri Tangará, baseada no conto Banzo; em 2005, a peça O
salário dos poetas, baseada no livro homônimo, pela companhia portuguesa O Bando,
do diretor João Brites. Por fim, a homenagem na Literamérica I Feira Sul-Americana
do Livro, promovida em setembro de 2005 pela Secretaria Estadual de Cultura e pela
ONG AlimeMTo, Associação dos Amigos do livro Mato-grossense.
Essa mudança de postura em relação a Dicke, claro, reflete uma mudança de
configuração do contexto histórico-literário em Mato Grosso. O fato chama atenção,
principalmente, porque a situação de isolamento de Dicke se dá desde o início de sua
carreira, período durante o qual a produção de literatura em Mato Grosso e a
divulgação de seus autores continuaram funcionando.
O motivo mais aparente, que surge em meio a essa discussão, para esse
‘esquecimento’ do autor, tem a ver com um assunto que a cada dia vem tomando mais
corpo nas discussões acadêmicas e nas políticas culturais e leis de incentivo à cultura
no estado27: o regionalismo, na perspectiva já tratada anteriormente. Os estudos acerca
do regionalismo literário (e cultural) em Mato Grosso tomam grande impulso,
recentemente, com a instituição, pela Universidade Federal de Mato Grosso, do
Mestrado em Estudos de Linguagem, em 2003, que tem como uma das orientações
principais, na área da cultura, lançar um novo olhar para as produções culturais
produzidas em/sobre/por autores de28 Mato Grosso e suas relações com a cultura e a
sociedade local.

27
Na forma de estudos acadêmicos sobre artistas do estado, tanto da Universidade Federal de Mato
Grosso quanto da Universidade do Estado de Mato Grosso; na discussão acerca dos critérios para
aprovação dos projetos pela lei de incentivo à cultura e às políticas para o fomento cultural, como a
Literamérica, nas quais se avalia o que é mato-grossense ou não;
28
Essas três preposições são um ponto fundamental na discussão sobre o que define a literatura como
mato-grossense. Cf. o primeiro capítulo de Hilda Magalhães à sua Historia da Literatura Mato-grossense,
de 2001, e o ensaio de Mário Cezar Leite na coletânea Mapas da Mina, de 2005.
De acordo com a análise que se seguirá, Dicke não se enquadra nos paradigmas
literários elaborados pela produção regionalista mais tradicional (ou de Cuiabá, seu
espaço mais específico). Por outro lado, também não escapa mais, atualmente, a essas
questões acerca da cultura local, porque o espaço de seus romances é
impreterivelmente Mato Grosso, porque já é, há algum tempo, tema de interesse para
acadêmicos das universidades locais e, principalmente, porque, mesmo não se
enquadrando num discurso tradicional regionalista mato-grossense, caracterizado,
sobretudo, pelo ufanismo à terra e pela valorização das belezas naturais e culturais de
Mato Grosso, é tomado hoje como um dos grandes representantes da arte do Estado,
não somente pelos críticos e artistas nacionais, como o provam as referências, mas
pelos agentes culturais e pensadores locais.
Revisando a história literária de Mato Grosso, aparecem duas importantes
instituições, tomadas aqui como representantes de duas tendências que paralelamente
atuam no contexto literário do Estado: a Academia Mato-Grossense de Letras, mais
antiga, e que representa a tradição literária e o “panteão” das letras mato-grossenses; e
a Universidade Federal de Mato Grosso, calcada no estudo científico das relações
culturais 29 . Ambas, sob a denominação de Academias, têm, no entanto, papéis e
objetivos muito claros no meio em que atuam.
Mário Cezar Silva Leite, professor de Literatura da Universidade Federal de Mato
Grosso e incentivador dos estudos e produções literárias no Estado, acaba de publicar
um artigo sobre o regionalismo que envolve a Academia Mato-Grossense de Letras e o
movimento modernista em Mato Grosso. A partir de uma revisão dos conceitos de
regionalismo e identidade cultural, que vão desde Machado de Assis, com seu famoso
‘Instinto de nacionalidade,’30 passando por Antonio Candido31 e Lúcia Miguel Pereira

29
Representados pela primeira estão as instituições do tipo Instituto Histórico-Geográfico, a Fundação
Cultural de Mato Grosso; junto à segunda estão as instituições de ensino superior, com destaque à
Universidade do Estado de Mato Grosso, e as instituições e projetos culturais como SESC Arsenal e o
Projeto Palavra Aberta. Cf. em nota de rodapé de Leite, 2005: 233.
30
Cf. ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade. In
COUTINHO, Afrânio (org.). Machado de Assis. Obra completa. V III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992,
p.801-809.
31
Cf. Candido em seus livros ‘Literatura e sociedade’, ‘Formação da Literatura Brasileira: momentos
decisivos’ e ‘Silvio Romero: teoria, crítica e história literária’. Candido, procura sempre destacar a
necessidade de afirmação do local nas produções brasileiras, colocando o nativismo como um dos
aspectos definidores de nosso público leitor. Cf. Candido, 1967: 93-94 e 151.
(1988), que trata do regionalismo sertanista, Leite, mais do que a uma conclusão,
chega à constatação de uma fragilidade nas manifestações artísticas calcadas num
espírito regionalista, que consiste na concepção do indivíduo como síntese do meio:

Pela necessidade de elaborar uma personagem ou personagens que,


em tese, representem de algum modo uma coletividade, que engendrem
uma possível identidade coletiva relacionada diretamente ao local ou
região ou apenas eleger e exaltar as belezas naturais ou elementos
eleitos para tal esta literatura, via de regra, permanece num plano de
superficialidade criando muito mais tipos e estereótipos do que
personagens em seus traços pessoais e nas suas dimensões humanas.
(Leite, 2005: 231)

O regionalismo, aqui, tem a mesma fragilidade do regionalismo definido por


Angel Rama: é aquele que, incidindo sobre elementos culturais selecionados (forjados)
para representar o local, simplifica e reduz a cultura a esses símbolos abstratos. A
identidade cultural, como já se viu, está diretamente vinculada com a discussão sobre o
regionalismo. Ao lançar um olhar sobre textos de representantes da Academia Mato-
grossense e sobre livros de história da Literatura de Mato Grosso (exceto o de Hilda
Gomes Dutra Magalhães, que é apontado como o primeiro onde a ‘questão regional se
apresenta como uma questão a ser pensada’), o teórico destaca o caráter ‘regional’
desses textos a partir daqueles aspectos:

Parece que isto se dava porque seus trabalhos e publicações se


inseriam no conjunto de esforços para a construção da grandiosidade
das qualidades literárias e culturais falar sobre a produção local,
participar da construção das personalidades proeminentes etc. desde
que isso estivesse ligado e ressaltando as qualidades regionais. (Leite,
2005: 235)

E ainda:
Para a minha perspectiva nesta pesquisa e trabalho tanto a obra de
Rubens de Mendonça quanto a de Lenine Povoas também devem ser
pensadas como fundamentais participantes da criação do discurso
regionalista. (Leite, 2005: 233)
Leite vai mais além, ao pensar na produção dos modernistas, tendo como foco
32
central a revista Pindorama , que também se insere nesse mesmo discurso
regionalista, pelo elo com a geração anterior através de Rubens de Mendonça, que
‘encabeçava a revista’ e pelo próprio teor ideologicamente regionalista dessas
produções. Ressalta ainda a absorção dos novos escritores pela Academia Mato-
grossense de Letras, sinal de que não haveria um efetivo rompimento entre as
gerações, pelo menos no que diz respeito à ideologia e não à disputa pela renovação
estética (Cf. Leite, 2005: 247-248). A ideologia regionalista continuaria mesmo com os
vanguardistas.
O texto de Leite marca muito bem, na história literária de Mato Grosso, a
distinção entre um discurso regionalista tradicional, que abarca historiadores,
jornalistas, escritores, que têm como objetivo a edificação da grandeza mato-grossense
(cuiabana, mais especificamente) e um outro científico (universitário), que debate
justamente essa postura edificadora. O primeiro está ligado à Academia Mato-
grossense de Letras e o segundo às universidades, entre as quais se destacam à
Universidade Federal de Mato Grosso e à Universidade do Estado de Mato Grosso, em
particular, ao curso de Letras, pois há, na AML, professores das universidades de
outras áreas, como Direito ou Medicina, seguindo uma tradição dos escritores
brasileiros. Ambos os discursos produzem tanto a literatura quanto a crítica e a história
referentes à arte no Estado. Durante muito tempo, esses dois discursos se mantiveram
paralelamente.
Houve, e ainda há, dessa forma, em Mato Grosso, um alheamento entre essas
classes produtivas, pelo menos no que concerne ao discurso científico-histórico. Pode-
se constatar tal ocorrência pelo fato de que um livro recentemente lançado por Carlos
Gomes de Carvalho, da Academia Mato-grossense de Letras, 2004, não cita
referências a trabalhos universitários contemporâneos de outros que figuram nas suas
notas,33 apesar de contar com um texto de Lucinda Persona.

32
E outros periódicos produzidos como Sarã, Ganga e o Manifesto do Movimento Graça Aranha.
33
O livro de Carvalho, intitulado ‘Panorama da literatura e da cultura em Mato Grosso’, dá conta de textos
históricos que são também utilizados em textos como os de Leite (2005) ou Magalhães (2002), mas não
há referências a trabalhos universitários como o de Hilda, da área de linguagens, em suas considerações
iniciais. Cf. Carvalho, 2004: 13-29.
O ‘lado’ universitário não se mostra tão estanque assim, haja vista os trabalhos
de Magalhães e Leite, talvez porque a questão regional não seja um problema para os
acadêmicos da Academia Mato-grossense. Para estes, o problema (e o objetivo), ainda
segundo Leite, é elevar a ‘legítima’ cultura mato-grossense à esfera representativa
nacional. Mesmo assim, percebe-se também que há uma leva de escritores recentes
publicando literatura por uma também nova leva de editoras, nacionais e locais. Autores
como Lucinda Persona, Aclyse e Gabriel de Mattos, Wander Antunes, a própria Hilda
Magalhães, Marta Helena Cocco, Marilza Ribeiro, Teresa Albues; editoras como
TantaTinta e Cathedral; revistas como a revista eletrônica (hospedada no site da UFMT)
Prosa Virtual e outras como Versoeprosa e Dazibao e, principalmente, a revista Vôte,
instrumentos de divulgação que instauraram uma espécie de boom literário mato-
grossense34. Vinculam-se à ‘cultura mato-grossense’ de uma maneira diferente, menos
apologética e ufanista, daquela mantida pela Academia Mato-grossense.
Apesar disso, mesmo essa ‘nova geração’, de uma maneira análoga ao que Leite
aponta para os vanguardistas, parece também estar ideologicamente absorvida por um
discurso regionalista identitário. A revista eletrônica Prosa Virtual35, hospedada no site
da Universidade Federal de Mato Grosso, se apresenta da seguinte maneira:

Vivemos um grande momento para produção literária em Mato Grosso,


resultado obtido em parte pelo uso que os escritores têm feito das leis
de incentivo à cultura para publicação de seus livros e revistas, para
realização de projetos de divulgação e intercâmbio com autores de
outros Estados, e do resultado da articulação de uma comunidade de
escritores e editores que trançam juntos o tecido de uma nova realidade
editorial para Mato Grosso... E se essa apresentação vai tomando ares
de manifesto, porque é necessário pensar estratégias que superem essa
alienação do Mato Grosso em relação a suas obras, temos que
consolidar nosso sistema literário, reforçar essa tríade, que hoje é
esquálida, de leitores, crítica e autores. Devemos propor políticas
públicas para a literatura e formação de leitores que complementem os
benefícios das leis de incentivo à cultura. E esse sítio "Prosa virtual" é o
espaço, a arena em que essa discussão deve ser travada, que a
comunidade de escritores criou para alçar vôo para além do labirinto, da
muralha, da cegueira branca que arruína nosso tempo... Somos o

34
Não se colocará o adjetivo ‘mato-grossense’ em discussão aqui. Leva-se em conta essa denominação
pois ela é adotada em jornais, encontros, coletâneas de textos literários e científicos etc.
35
Esta revista está temporariamente fora de atividade.
quente desejo de incendiar o cerrado de livros, para fazer nascer a
autonomia editorial de Mato Grosso.36

Teríamos então três gerações: a primeira geração da Academia Mato-grossense,


a geração vanguardista posterior, que também fez presença na Academia, e a geração
mais atual. Elas estariam divididas em duas vertentes acadêmicas: a regionalista
tradicional e outra que poderíamos chamar de contemporânea37. Ambas estariam, em
tese, envolvidas num discurso regionalista que busca, ou a afirmação dos valores mato-
grossenses, ou a constituição de um mercado e um sistema literário38 mato-grossense
forte.
Rama descreve uma disputa, no seio da cultura dominante, entre os intelectuais
já afirmados nela e os que ainda estão fora desse círculo dominante da cultura. (1982,
p.205) Não parece ser possível aplicar essa dicotomia em Mato Grosso, pois ambos os
lados tratados acima constituiriam um ciclo dominante da cultura, e ambos possuem o
seu público definido e seus meios de divulgação, cada qual com seu projeto e atuação.
Dicke seria o intelectual que, antes de sua integração a essa cultura dominante, estaria
fora desse ciclo, com a diferença de que não é sua intenção, como é para Arguédas,
segundo Rama, levar à cultura dominante, a experiência do dominado. (1982, p.25)
A ‘ascensão’ de Dicke está associada, não à tradição literária regionalista da
Academia Mato-grossense de Letras, mas àquele novo boom de escritores e editoras.
Seu ‘resgate’ do esquecimento acompanha as ações de outros escritores (como
Lorenzo Falcão e Juliano Moreno). Estaria associada também à busca, dos acadêmicos
e professores das universidades locais (como Hilda Gomes Magalhães, Mário Cezar
Leite, Gilvone Furtado Miguel e Juliano Moreno), por autores ainda não descobertos no
âmbito da crítica literária, no intuito de revelar novas personalidades literárias, sair do
âmbito do cânon nacional já exaustivamente trabalhado (a exemplo de Guimarães
Rosa) e, porque não, incentivar a pesquisa local, e a revelação de qualidades literárias

36
Site Prosa Virtual (http://cgi.ufmt.br/prosavirtual/quem_somos.htm), em que aparecem os nomes dos
artistas e intelectuais ligados ao grupo universitário.
37
Contemporâneo, aqui, não tem caráter de corrente estética, mas de termo de diferenciação com a linha
tradicional da produção literária. Esta linha contemporânea é composta por autores que se aproximam de
estéticas mais atuais.
38
Entenda-se sistema literário a partir de Candido (1967): formado pela interação entre autor, obra e
público.
locais. Dessa forma, inverte-se a situação colocada por Rama, em que o regionalismo
tradicional é que precisou se modificar para sobreviver.
O romancista, apesar de ter seus livros publicados antes de 1970, época de
renascimento das atividades artístico-culturais no Estado, tanto pelo advento da
Universidade Federal de Mato Grosso quanto da Fundação Cultural de Mato Grosso,
correspondentes, respectivamente, aos discursos contemporâneo e regionalista acima
tratados, e sendo ainda premiado em seus romances de 68 (Deus de Caim), 77
(Caieira) e 82 (Madona dos Páramos), só vem ter reconhecimento efetivo e público há
muito pouco tempo. Os motivos desse reconhecimento ainda não se revelaram
totalmente.
Mário Leite, em nota de rodapé (Leite, 2005: 233), aponta que a literatura em
Mato Grosso só veio ter movimentação mais intensa no fim da década de 90, tempo em
que Dicke ganha mais um prêmio nacional, com Cerimônias do Esquecimento, 1995,
publicado pela Editora da UFMT. O autor, depois disso, publica mais três livros (O
salário dos poetas, Rio abaixo dos vaqueiros e Coincidência Opositorum) pela Lei
Estadual de Incentivo à Cultura do Estado de Mato Grosso. Ao que parece, é a partir da
publicação de Cerimônias do Esquecimento que a ‘sorte’ do autor começa a mudar,
auxiliada em parte, pela atividade de seu agente Lorenzo Falcão, intermediário em
todos os processos artísticos/publicitários que envolvem o seu nome.
Recentemente, houve a criação de uma associação de pessoas interessadas em
literatura, preocupadas em discutir uma lei não regulamentada que obrigava as escolas
a oferecem as disciplinas referentes à cultura local:

A AlimeMTo foi criada no dia 15 de abril de 2004, a partir de uma


discussão sobre uma lei que obrigava as escolas ensinarem as
disciplinas de geografia e histórias de Mato Grosso no ensino básico,
além de literatura mato-grossense, porém a lei não foi regulamentada.
No início, a AlimeMTo foi composta por Mário Cézar Leite, professor da
UFMT, Juliano Moreno (poeta), Elizabeth Madureira, também professora
e pesquisadora da UFMT, entre outros. Hoje já passam de 50, o número
de pessoas associadas a AlimeMTo e segundo o presidente da
AlimeMTo, Gabriel de Matos, qualquer pessoa pode fazer parte da
família, afinal se tratam de amigos do livro.
(http://www.literamerica.com.br)
A AlimeMTo é uma criação que sinaliza o novo contexto literário mato-grossense,
pois é uma iniciativa conjunta das duas classes acima mencionadas, contando com a
participação de Carlos Gomes de Carvalho, atual presidente da Academia Mato-
grossense de Letras. A Associação está sediada na Casa Barão de Melgaço, onde
funciona também a Academia. Foi criada com a intenção de fomentar as publicações no
Estado, intentando ampliar o público leitor, estabelecer convênios que favoreçam essa
ampliação e a divulgação da produção mato-grossense, dentro e fora do Estado,
organizando eventos como a Literamérica, Feira Sul-Americana do Livro em Mato
Grosso, junto com o Governo do Estado 39 . Estes objetivos estão muito próximos
daqueles destacados na apresentação da revista Prosa Virtual, com a diferença de que
a AlimeMTo é uma ação conjunta de nomes ligados às duas vertentes acima
trabalhadas. É o momento mais evidente em que as duas vertentes se unem para
compor um novo quadro literário no Estado. A ONG surge tendo como uma de suas
pautas a implantação da disciplina literatura mato-grossense nas escolas. Essa medida
é reforçada pela cobrança da literatura regional no vestibular, fato que obriga os
‘terceirões’ e ‘cursinhos’ a também trabalharem com o assunto.
Pensando em Dicke, que está sendo cada dia mais valorizado no Estado, é
preciso, no entanto, detectar se todas essas medidas garantiriam a formação de um
público leitor, ou se sustentariam um novo sistema literário que se dividiria em dois
grupos: um grupo menor (de escritores e críticos) que entende e admira o volume da
obra de Dicke; e um grupo maior, que conhece o nome, as características do autor, mas
não chega a lê-lo, apesar de aceitá-lo como representante de sua cultura. É o que
ocorre com Silva Freire segundo Mário Leite. Dada a dificuldade de leitura dos poemas
de Freire, Leite se pergunta:

como entender a transformação de um escritor em ícone regional mato-


grossense que apresenta, em sua obra, um raro grau de dificuldade de
leitura e compreensão para o grande público? (Leite, 2005: 250)

Dicke também apresenta um certo grau de dificuldade de leitura em seus


romances, principalmente em Cerimônias do Esquecimento e O salário dos poetas,

39
Ver estatuto no site da associação: http://www.alimemto.org.br/quem/estatuto.asp?detpage=4
mais recentes. Ele também está sendo transformado em um novo ícone da literatura
mato-grossense. Deve-se notar se, a exemplo do que Leite já dissera sobre Dom
Aquino, José de Mesquita e Silva Freire, Dicke não seria a nova personalidade regional
capaz de representar a literatura de Mato Grosso, mesmo sem ser lido ou entendido
pelo grande público mato-grossense 40 . Alguns aspectos podem contribuir para isso:
elementos locais como a fala do sertanejo ou o espaço mato-grossense que aparecem
nos seus textos; o fato de que ele é essencialmente romancista, gênero que reflete
mais adequadamente o tipo de sociedade em que vivemos e que é, na literatura, o que
possui melhor status; os prêmios que recebeu; o fato de ainda viver em Mato Grosso
etc41.
De tudo isso, resta mais uma pergunta do que uma conclusão: a regionalidade e
representatividade de Dicke vêm calcados (justificados) nas críticas nacionais, nos
prêmios e não por um esforço de valorização ou inserção locais, tanto por parte dele
mesmo, quanto por parte da Academia e dos órgãos relacionados à literatura?42 O que
parece acontecer é que os primeiros apelos (ou pelo menos os mais significativos)
anteriores às homenagens vêm da crítica nacional e não de um esforço local. Dicke
mesmo, vivendo na região, busca guarida em críticos estrangeiros e, ele próprio,
corrobora com as opiniões acerca de seu isolamento e esquecimento. Vejam-se suas
palavras, em entrevista a João Ximenes Braga, do jornal O Globo, sobre o mercado
editorial local:

Sim, aqui a gente pula atrás de editores. Como não há o que fazer,
temos que esperar que nos descubram nos grandes centros. Tenho oito
livros prontos para publicar. Nenhum plano porque aqui é a minha
Finisterrae. (Dicke, 2004: 2)

40
Leite se apóia numa citação de Lúcia Miguel Pereira, que diz que faltou ‘um homem de prestígio e de
coragem que chefiasse um movimento literário de franca mudança de rumos’ (Pereira, apud Leite, 2005:
231)
41
Para efeito do que se diz aqui, a Feira de livros Literamérica, já mencionada, homenageia
principalmente Manoel de Barros, Wladimir Dias Pino e Ricardo Guilherme Dicke. Dos três autores, Dicke
é o que menos possui repercussão nacional e local.
42
Abre-se a possibilidade, aqui, de se estudar o consumo de ‘literatura regional’ pelo viés das ações do
mercado editorial em conjunto com a Universidade Federal de MT, pela exigência da literatura regional
nas escolas e, principalmente, cursinhos, legitimando a literatura pelo vestibular. Quem traz essa
possibilidade, ao refazer um percurso histórico do segundo grau (ou tantos outros nomes que esse nível
já adquiriu) no Brasil, é Regina Zilberman, 1991.
O autor não publicou seus títulos pelos mesmos canais que os da Academia e só
seus romances mais recentes foram publicados com incentivo do Estado, fatos que já
podem ser considerados frutos das mudanças que estão levando Dicke à possível
situação de ícone regional.
Concomitantemente a essas relações político-culturais identitárias envolvendo o
romancista, que dizem respeito à situação do escritor no meio literário local, há ainda a
questão estética da obra de Dicke. Ele não pertence a nenhuma das duas vertentes de
artistas tratadas anteriormente. Não se pode afirmar que ele é um regionalista
tradicional, como os escritores da Academia Mato-grossense, pela ausência dos
elementos apologéticos às belezas e aos tipos da região43, mas ele também não se
insere totalmente na nova geração de escritores, por ser de um outro contexto histórico-
social, que determina sua produção de maneira totalmente diversa. O que o aproxima
do segundo grupo não é propriamente sua estética (que também o distancia do
primeiro), mas a movimentação do meio literário mato-grossense pelo grupo
universitário, que investe na sua redescoberta para a consolidação de um sistema
literário em Mato Grosso.

43
Este trabalho corrobora, aqui, com as idéias de Leite:2005.
6 OS PREFÁCIOS E AS PREVISÕES: REGIONALIDADE E FOCO NARRATIVO

A leitura dos prefácios dos romances de Dicke é bastante elucidativa e


prenunciadora do que posteriormente foi elaborado acerca do autor em trabalhos mais
detalhados. De maneira geral, além da temática específica dos romances que
prefaciam, os prefaciadores parecem sempre querer chamar atenção para a questão da
regionalidade. Eles procuram tratar o assunto de maneira a afirmar que Dicke
representa a vida regional sem possuir, no entanto, uma falsa ‘mato-grossidade’, como
é o caso de Antônio Olinto quando prefacia Deus de Caim, primeiro romance do autor:

Lidando com toda uma simbologia a que ele dá um sopro vital fora do
comum, Dicke não deixa coisa alguma de fora. Seu enredo é de vida
primitiva, com personagens que, revelando uma existencialidade mato-
grossense, estão no ar, soltos e livres, não comprometidos com uma
possivelmente falsa mato-grossidade, humana e literariamente
disponíveis. (Dicke, 1968: 13)

Além da relação que o autor estabelece entre ‘vida primitiva’ e ‘existencialidade


mato-grossense’, sugerindo um atraso característico da região, há uma outra dicotomia,
não esclarecida, mas também sugerida, que se dá entre uma verdadeira e uma falsa
‘mato-grossidade’. Olinto, citando Marcuse, fala do absurdo como característica da
produção de Dicke. Grosso modo, o absurdo seria a superação da dicotomia entre
oposição e aceitação. Dicke, para Olinto, se posicionando frente à tradição literária
brasileira, ‘não é bem comportado..., ‘não se submete a um estado definido de nossa
ficção’ (Dicke, 1968: 12). Dicke, nesse caso, não aceita nem se opõe à tradição,
produzindo algo para além dessa bipolaridade. Apesar de afirmar a superação de
dicotomias, Olinto, gerindo outra dicotomia (talvez muito mais problemática), afirma que
existe uma falsa mato-grossidade. Ele, no entanto, não está sozinho nessa opinião.
Dante Martins de Oliveira, prefaciando Último horizonte, discorre sobre o mesmo
assunto, falando agora de ‘cuiabanidade’:

O romance retrata o imaginário vivido hoje em Cuiabá, o crescimento


acelerado da cidade, a ocupação dos espaços físicos, onde o cuiabano
vê a cada momento a desmontagem de um universo conhecido (e por
isso mesmo seguro), para participar da construção de uma nova
cuiabanidade. (Dicke, 1988)
Último horizonte, assim como um dos núcleos do romance Deus de Caim, fala
não de Mato Grosso em geral, mas da capital em particular. Sobre a relação com o
local, ao invés de ‘falsa’, no entanto, Oliveira gera uma outra dicotomia, entre ‘nova’ e
‘velha’ cuiabanidade. Ambos, Oliveira e Olinto, falando, respectivamente, sobre
cuiabanidade ou mato-grossidade, supondo a velha pela nova ou a verdadeira pela
falsa, estariam lançando diferenças essenciais entre uma literatura que já existiria em
Mato Grosso, mas cuja relação com o local ou é forjada ou é ultrapassada. ‘Falsa’ e
‘velha’ seriam qualidades de uma literatura que, no mínimo, não corresponderia mais ao
contexto em que é produzida.
Aproximando essa discussão da que realiza Mário Leite, já trabalhada no
capítulo anterior, há possibilidade de que essas duas qualidades destacadas nos
prefácios em questão estejam associadas à literatura que, segundo o teórico, apresenta
aquele regionalismo frágil, que busca ‘falar sobre a produção local, participar da
construção das personalidades proeminentes etc. desde que isso estivesse ligado e
ressaltando as qualidades regionais (Leite, 2005: 235). As antigas e falsas
cuiabanidade e mato-grossidade seriam frutos do projeto de construção da identidade
regional por parte da tradição literária, idealizada pelos autores da Academia Mato-
grossense de Letras, fixando-se, portanto, em apologias, a qualidades mais desejadas
do que existentes. Falsas, porque forjadas voluntariamente, velhas porque tradicionais.
Oliveira dá indicações do que seria o ‘novo’ na literatura de Dicke: a reprodução
do imaginário a partir da modificação dos espaços da capital por um ‘crescimento
acelerado da cidade’; ao contrário de uma produção tradicional, que não traz a nova
realidade como temática e estrutura de suas produções, preservando o espírito ufanista
e encerrando o antigo ‘universo conhecido e seguro’ em si mesmo.
Tomar os conflitos locais como material para a produção estética parece ser o
principal aspecto dessa nova literatura que traz Dicke. Helio Pólvora, também em um
prefácio, escreve palavras análogas às de Oliveira, para falar, não de Cuiabá, mas de
Mato Grosso:

Romance típico de fronteira, de lugares ainda por se desenvolverem,


Madona dos Páramos mostra como a terra vai sendo ocupada
irregularmente, e de que forma a modernização súbita de uma
sociedade política e culturalmente imatura, em vez do desenvolvimento
pausado e normal, cria conflitos. (Dicke, 1981: 6)44

Pólvora reitera a opinião de Olinto, de uma ‘cultura primitiva’, ‘ainda por se


desenvolver’, mas pontua a ocupação desenfreada e acelerada da região. Não se
preocupa com a questão da regionalidade em Dicke, apenas afirma a relação deste,
com o espaço em que está inserido. Esse espaço, renovado, invadido, modificado
rápida e conflituosamente, denunciado por Pólvora, será uma constante em todos os
romances de Dicke.
Depois de Madona dos Páramos, terceiro romance do autor, outra abordagem
parece se desenhar sobre a obra de Dicke. Esta, agora, se preocupa, em contrapartida
à afirmação de uma verdadeira e nova mato-grossidade, em afirmar a superação do
regional e o alcance do universal. Essa abordagem se respalda por uma crítica nacional
não identificada:

O Bem e o Mal, a Ciência e a Reflexão se apresentam neste universo


denso, levando o autor a transcender os limites do regional, conforme
assegura a crítica literária nacional. (Dicke, 1988)

Esse tipo de comentário, presente posteriormente em praticamente todas as


discussões que se travam acerca de Dicke, vem de uma preocupação (que parece
ainda não estar presente no prefácio de Oliveira) em alçar o romancista à esfera dos
grandes autores do Brasil, ou mesmo da chamada Literatura Universal. Essa
preocupação sugere uma desvalorização do elemento regional através da valorização
do universal, como se a obra artística só tivesse valor quando conseguisse superar os
limites do localismo. A idéia de localismo, aqui, provavelmente é uma reiteração da
idéia do regionalismo frágil já citado, velho e falso. Esse discurso regionalista, no
entanto, parece voltar à tona, quando Dicke é assumido naturalmente como local. Num

44
Pólvora investe nessa relação, estabelecendo a aproximação com os locais de fronteira: ‘Madona dos
Páramos é o relato dos jagunços do Mato Grosso do Sul e do Norte, e das regiões fronteiriças com o
Paraguai e a Bolívia.’(Dicke, 1981: 7) Apesar do deslize geopolítico, Pólvora sugere algo que será aqui
discutido: a relação entre a produção de Dicke e a produção latino-americana, dada a grande recorrência
de elementos hispano-americanos e seus romances.
prefácio mais recente, de O salário dos poetas, Amorim trata Dicke da seguinte
maneira:

Enfim chega ao público a obra que pode ser saudada como o mais
seguro para se penetrar no vasto e complexo universo literário do autor
mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke...
O escritor Ricardo Guilherme Dicke é o principal autor mato-grossense
no terreno da ficção. (Dicke, 2000)

Assume-se Dicke como mato-grossense, não pelo viés da sua relação com a
modificação do espaço local, da repercussão dos conflitos locais em seus textos, mas já
por um discurso regionalista assimilado, que naturalmente identifica o autor com a
região, sem problematizar essa relação, como fazem mais abertamente Olinto e
Pólvora.
Todos esses aspectos acima relacionados aparecem, de uma maneira ou de
outra, nas críticas mais especializadas acerca do romancista. Sugere-se aqui, desde já,
pelas informações do capítulo anterior e pelas impressões dos autores dos prefácios,
que, enquanto há um discurso regionalista apologético em Mato Grosso, calcado no
ufanismo à natureza local, há outro que está mais sintonizado com as modificações em
todo contexto social.
Outro aspecto recorrente, e talvez o elemento estético mais relevante, na
produção literária de Ricardo Guilherme Dicke, consiste na maneira como o autor
manipula os pontos de vista e os narradores em suas narrativas. Os prefácios de seus
romances também sinalizam sobre esse ponto diferencial. No prefácio a Deus de Caim,
Antonio Olinto diz:

Como seus personagens se misturam sem causar confusão ao escorrer


da história, os ângulos da narrativa também mudam sem que o leitor
perceba que tudo se transformou. É a primeira pessoa e não é, é
terceira e não é, numa boa loucura de narração em que avulta uma
completa comunicabilidade. (Dicke, 1968: 14)

Curiosamente, Hélio Pólvora, em prefácio a Madona dos Páramos, também


chama atenção para a configuração da maneira de narrar dickeana:

Este romance é parente distante do Grande Sertão: Veredas. A exemplo


de João Ubaldo Ribeiro, em Sargento Getúlio, Dicke utiliza também o
monólogo rosiano, aquele fluxo típico de uma narrativa onisciente, mas
que não passa de falsa primeira pessoa, tamanha a sua objetividade e o
poder de transmutação de personalidades. Ou vice-versa, falsa terceira
pessoa, como acontece aqui. (Dicke, 1982: 5)

O que se constata nesses dois trechos é a impressão volúvel dos dois autores
acerca dos ângulos da narrativa, ou do narrador. Apesar de as pessoas gramaticais não
serem imprescindíveis para a definição do ponto de vista, ou do ângulo 45 , como
denomina Olinto, é basicamente a partir da observação desses elementos nos
romances que se pode depreender em quê o processo narrativo de Dicke se torna
diferente de uma narrativa mais tradicional. Pólvora, associando o romancista mato-
grossense a João Ubaldo Ribeiro e Guimarães Rosa, no que diz respeito ao
procedimento narrativo, qualifica como monólogo aquilo que acontece em Dicke.
O que ocorre, no entanto, no caso de Rosa, é que, apesar das digressões e falas
de outros personagens que Riobaldo apresenta na sua narrativa, ele é o narrador
definido e definitivo da história. Não se perde de vista a presença tanto dele quanto do
ouvinte de sua narrativa, o ‘senhor’ a quem ele dirige suas palavras. Em Dicke, por
outro lado, acontece com o narrador exatamente o que afirmam (ou não conseguem
afirmar) Pólvora e Olinto em seus textos: o falseamento ou, ao menos, uma
desorientação na definição do foco narrativo. Não se pode definir claramente se os
romances são de terceira ou primeira pessoa, nem que uma destas predomina sobre a
outra.46
Nas seções seguintes, abordar-se-ão esses dois aspectos no decorrer da obra
de Dicke: a temática que abrange as alterações sócio-culturais na região por causa do
grande fluxo migratório em direção a Mato Grosso após os anos 60 e a elaboração de
um procedimento narrativo diferenciado, que indetermina, através da alternância das

45
Vários teóricos que tratam sobre o assunto não vinculam o ponto de vista ao uso da pessoa gramatical.
O que sugere, por exemplo, uma visão ‘com’, no caso de Pouillon, ou a ‘dramatização’, de Lubbock, bem
como as diferentes formas de narrar de Friedman e outros, não são as pessoas gramaticais, mas vários
aspectos que se inter-relacionam. Uma narrativa de terceira pessoa, por exemplo, pode tanto se dar na
visão ‘com’, como na visão ‘de fora’, se ela perscruta a mente do personagem ou somente o descreve
exteriormente. Essas posições são medidas, por exemplo, pela apresentação do personagem, por aquilo
que ele consegue perceber à sua volta, pelo grau de conhecimento que ele tem de si e dos outros na
história etc. (Cf. Sallenave:sd)
46
Hilda Magalhães afirma que Caieira é um romance de terceira pessoa, justificando que esse
procedimento aumenta o alheamento em que os personagens se encontram no romance. Caieira, no
entanto, apresenta também o mesmo uso das pessoas gramaticais que aparece nos outros romances.
pessoas gramaticais que marcariam o tipo de narrador, o ponto de vista inscrito nos
textos.
7 A SUPERAÇÃO DO REGIONAL E O ENTRE-LUGAR EM MADONA DOS
PÁRAMOS

Gilvone Furtado Miguel (2001), se insere nessa mesma discussão acerca do


regionalismo literário. O foco central de seu trabalho, analisando o romance Madona
dos Páramos, é a reatualização mítica dos arquétipos na literatura (p.18), em que
demonstra como Dicke rearticula histórias conhecidas no mundo ocidental, pagãs e
cristãs – em especial a história de Maria e dos apóstolos -, invertendo, no entanto, sua
qualidade e conclusão. Para isso, a autora opera um estudo estruturalista, descrevendo
os processos composicionais de foco narrativo, personagens, espaço-tempo, enredo e
linguagem, somados a um estudo acerca da polifonia e do imaginário na obra.
Dois livros de Hilda Gomes Dutra Magalhães também abordam o mesmo
romance: a História da literatura de Mato Grosso (2001), já citado, e As relações de
poder na narrativa da Amazônia legal (2002). Nesses livros, a autora não trata somente
do romance Madona dos Páramos, mas traz, em ambos, informações importantes
acerca da questão regional. O segundo livro, de caráter menos geral que um livro de
história como o primeiro, aborda os dois romances mais conhecidos de Dicke: Caieira e
Madona dos Páramos. Junto com estes, seu estudo ainda abrange outros autores da
região: Teresa Albues, Dom Pedro Casaldáliga, José Vilela, de Mato Grosso; e Márcio
Souza, do Amazonas. Sua preocupação é mostrar como a literatura da década de 60
refletiu o processo de ocupação da região norte do Brasil, fato já brevemente
denunciado em Dicke na seção anterior, tanto por Oliveira como por Pólvora, como se
viu.
As duas autoras procedem a análises distintas: enquanto Miguel realiza um
trabalho descritivo do romance, numa perspectiva especificamente literária, Magalhães
vai, em seus trabalhos, abordar a produção de Dicke de uma perspectiva mais
sociológica, na qual os romances estabelecem relação direta com o contexto sócio-
histórico em que são produzidos.
O trabalho de Miguel reitera parte da discussão feita anteriormente, em que a
relação entre regional e nacional se dá através da tentativa de superação dos aspectos
regionais na literatura como elemento limitador. Ao mesmo tempo, busca a valorização
da literatura regional no âmbito nacional. Na apresentação de seu trabalho, Miguel se
isenta da discussão acerca da regionalidade, procurando delimitar o conceito de
regional com que vai trabalhar em sua obra, afirmando que o regionalismo não seria a
questão principal do seu texto.

Os procedimentos estabelecidos para o cumprimento deste projeto de


estudo não visam à incursão nos campos teórico-críticos que discutem a
literatura regional ou o regionalismo na literatura; antes, porém, traçam
caminhos para, ao adentrar a obra, revelar o valor da construção
estrutural e temática. (2001, p. 11)47

Apesar disso, coloca Dicke como representante local no nível nacional, da


mesma forma que o fazem algumas notícias e resenhas, como já foi mostrado. Nesse
intuito de superação do regional, há uma marcada preocupação da autora em afirmar
que Ricardo Guilherme Dicke é um autor que, apesar de mato-grossense e de usar o
espaço e os tipos mato-grossenses, tende à universalidade, por conta dos temas,
personagens e, principalmente, da presença do elemento mítico em suas obras.

O objetivo que, mais diretamente, norteará a realização deste estudo


crítico pretende-se à intenção de desvendar a arquitetura da trama
narrativa do romance Madona dos Páramos cujo autor, Ricardo
Guilherme Dicke, deve preencher, com méritos, o espaço da
representatividade da literatura regional, produzida em Mato Grosso, no
cenário nacional. Dicke, em sua escritura, ultrapassa o território regional
de Mato Grosso e abarca outras diversas regiões, considerando-se que
há, nas mitologias, o registro dos aspectos culturais particulares de
outras regiões do mundo. (2001, p.8)

Em Dicke, segundo a autora, há modificações textuais nas histórias, porém com


a manutenção dos valores religiosos, afetivos e angustiantes dos homens ‘em todos os
tempos’. A autora cita Mielietinski como referência para falar de mito:

Mielietinski define uma poética da mitologização na literatura do século


XX, dissecando este método artístico de criação semelhante ao mito. A
constituição simbólica do mito permite à literatura alcançar a
representação dos valores universalmente humanos; o mito se firma

47
Na seqüência, cita Helio Pólvora para reiterar a idéia de que o romance tem identidade de épico do
sertão, assim como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Pólvora, no entanto, ‘resguarda-o
(Dicke) de ficar à sombra dos já consagrados autores citados’ (Rosa, João Ubaldo Ribeiro e Euclides da
Cunha), novamente demonstrando uma preocupação com o valor nacional de Dicke.Cf MIGUEL: 2001 P
11.
como fonte de formação da narrativa. A este processo Mielietinski
chama de remitologização. (2001, p.89)

A remitologização é o processo pelo qual o escritor, mesmo que usando a cor


local, consegue alcançar a representação dos valores universais. Nessa cor local é que
consiste o conceito de regional que a autora leva em consideração na sua análise. Ela
cita, em nota, Antonio Candido para definir esse conceito que consiste na presença da
‘cultura, descrição geográfica, social e da ocupação da terra, além dos tipos humanos’
(Candido, 2000: 15). Dicke, segundo a autora, ‘arregimenta esses elementos,
transformando-os em ‘patamar’, em pano de fundo para histórias que poderiam se
passar em qualquer lugar’:

Em sua narrativa, os limites da região, do sertão mato-grossense, se


perdem como dado local , ou melhor, são transladados para a
imensidão do mundo, adquirindo facetas universais e integradas na
concepção do imaginário universalizante. Também o homem deixa de
ser o jagunço forasteiro, típico de Mato Grosso, para se conformar nos
moldes gerais e comuns de todo ser da humanidade, da
coletividade sem fronteiras... A arregimentação dos elementos locais
caracterizadores da região de Mato Grosso relativamente à cultura,
à descrição geográfica, social e da ocupação da terra, além dos
tipos humanos é fator que viabiliza a abordagem dos valores
unversalizantes que sobressaem na inquietação que a condição humana
provoca no ser do escritor. Assim, os elementos locais/regionais
formam o patamar sobre o qual se assentam, no trabalho da
criação literária, as angústias, as dúvidas, as aflições que atingem a
universalidade dos homens ao experimentarem situações
conflitivas. A ficção romanesca de Dicke privilegia o local ao situar seus
personagens na região de Mato Grosso e, especialmente, nas
peculiaridades do sertão mato-grossense, ao mesmo tempo que
consegue, com mestria, dar relevância incondicional aos
questionamentos existenciais da humanidade revelados num imaginário
singular,que vai se manifestar em feixes simbólicos. (grifo meu. 2001,
p.9)

Mais adiante, a autora cita Helio Pólvora em seu prefácio ao romance,


escrevendo a seguinte sentença: ‘Este é o cenário do relato das desventuras dos
jagunços, homens matadores, de índole indomável, homens típicos da região do Mato
Grosso’(2001, p.17). A informação, que no prefácio de Pólvora se dá como sinalização
de uma característica dos romances de Dicke, e que Hilda Magalhães vai destacar
como ponto fundamental na narrativa do romancista, em Miguel é reduzido como
simples dado local. Além disso, tem-se a impressão de que Miguel concorda com
Pólvora na afirmação de que os jagunços são típicos de Mato Grosso, o que contradiz
sua afirmação anterior, de que os personagens superam essa condição.
Por outro lado, a própria autora acaba incidindo sobre um sentimento
regionalista, quando procura alçar a produção local a um nível mais ‘elevado’. Ela
evoca a própria presença no local, bem como a do romancista, e destaca o
desconhecimento da literatura da região, aspectos já mencionados acima:

A escolha desse autor, bem como a seleção da obra centralizada na


crítica a ser desenvolvida, fazem parte dos objetivos mais amplos que
são a expressão do desejo de contribuir com a produção crítica do
estado de Mato Grosso, desenvolvendo a pesquisa voltada para os
valores regionais, ainda escassamente estudados. A determinação
destes objetivos está ligada à condição de professora da Universidade
Federal de Mato Grosso, o que tem possibilitado perceber, na prática do
ensino do Curso de Letras e nos estudos paralelos, a necessidade de
priorizar a construção da fortuna crítica dos autores de Mato Grosso,
vencendo as barreiras impostas pelo desconhecimento da obra
fora do estado48. Dessa forma, os critérios que guiaram a escolha do
autor são justificados pelo fato de ser Ricardo Guilherme Dicke nascido
e residente no estado de Mato Grosso, sendo, assim, vivenciador e
participante da realidade local, além de, principalmente, produzir
uma literatura que procura dar conta dos valores peculiares à
região, ao mesmo tempo que faz pulsar mais forte a expressividade
do universal do ser humano. (grifo meu. Miguel, 2001: 10)

É sobre esse sentimento e vontade de produção e constituição de um contexto


literário local desenvolvido que Candido fala em seus textos, tanto na Formação da
Literatura Brasileira quanto em Literatura e Sociedade. O regionalismo, ou nativismo, no
caso de Candido, é fruto de um desejo de se diferenciar e, nesse desejo, a opção pela
cor local se apresenta como uma das soluções mais imediatas.
Em seu texto, Miguel estabelece sempre o contraponto entre a presença de
elementos da cultura regional/local e a superação desses elementos em direção à
universalidade, fato que se apresenta como um aparente paradoxo: ao mesmo tempo
em que define o regional como limitação, pois a função deste é ser um patamar para a
realização do universal, procura contribuir para a elevação e o reconhecimento dos
valores regionais, para vencer as barreiras impostas pelo desconhecimento da obra
48
Idéia reforçada pelo próprio Dicke em várias entrevistas.
fora do estado. Segundo Candido, na passagem citada por Miguel, a presença de
elementos regionais denota uma resistência da intelectualidade brasileira frente aos
padrões universalizantes europeus (2000, p.15). A dicotomia universal/local não
estabelece, neste caso, uma hierarquia de valores, mas uma diferença de poder.
Assim também pensa Angel Rama, quando afirma que, no contato com as
metrópoles modernizadoras, que tendem a uma universalização da cultura (ou de uma
cultura), os escritores partidários das culturas regionais, marginais, buscam (elegem)
seus elementos locais como uma forma de resistência e sobrevivência. Essa busca se
dá através de, pelo menos, duas formas: uma apologética, cujo objetivo é encerrar a
cultura local num invólucro paralisante e conservador; outra dinâmica, de
transculturação – conceito tratado acima-, em que se produz, a partir de procedimentos
estéticos recebidos pela cultura universalizante, uma nova forma de elaboração estética
do elemento e do contexto regional. (Cf. Candido, 1967:147)
Diferentemente de Miguel, Hilda Magalhães enfoca o local como aspecto
fundamental para entender e ver a produção de Dicke, pois sua temática circula, como
se verá melhor na seção seguinte, num contexto de conflito entre os moradores da
região amazônica da década de 60 e o grande fluxo migratório com instalação dos
grandes latifúndios, alterando significativamente as relações sociais na região.
Magalhães, no entanto, realiza sua análise, em Caieira e Madona dos Páramos, a partir
de uma discussão sobre o absurdo e não na perspectiva da transculturação.
Olinto também, em seu prefácio a Deus de Caim, caracteriza Dicke como um
autor do absurdo, numa perspectiva marcusiana, segunda a qual, o autor foge à
apreensão por um sistema de oposição/situação, que força o sistema a ruir e se
modificar, estabelecendo um não-lugar, ou um entre-lugar:

Acha ele que, diante da irracionalidade da sociedade industrial


contemporânea, a única atitude certa é a de provocar a desordem nessa
sociedade e contribuir, com isso, para que ela caia. A fim de atingir esse
propósito, não poderá pessoa alguma assumir gesto que signifique
aceitação. E oposição seria aceitação.(Dicke, 1968: 11)

Olinto usa o conceito de absurdo para falar da posição de Dicke frente à tradição
literária brasileira, afirmando que o autor tenta destruir, até certo ponto, a situação da
literatura no Brasil, estética e ideologicamente, sem fazer oposição, mas sim escapando
a essa dicotomia, propondo algo novo e independente. Exemplo disso é o que aponta
Miguel em Madona dos Páramos, quando diz que a narrativa dickeana supera, nos
temas pelos quais circula, dicotomias do tipo bem/mal, real/sobrenatural,
material/sonho, (Miguel, 2001:15-16).
Magalhães considera o absurdo por outro viés, a partir dos conceitos de Camus
e José Fernandes. Para ela, o absurdo é uma resignação que impede a ação do
marginalizado frente a seu opressor, quando não consegue defini-lo. Diz, ainda que,
dificilmente, um personagem consegue ter a consciência de sua opressão e, quando a
tem, torna-se ainda mais absurdo, pois conhece também a amplidão de sua impotência
(2002, p.47). É dessa forma que a experiência do absurdo, na perspectiva de
Fernandes, que é a teoria pela qual, por fim, a autora parece optar, é vivida antes pelo
leitor que pelo personagem. Como este não tem consciência de sua situação, é o leitor
quem compõe, pela leitura, a imagem de absurdez do mundo. (2002, p.17)
A partir daí, Magalhães define duas posturas distintas na literatura da Amazônia:
uma que condena os personagens a uma eterna letargia, mesmo quando, ao final, o
elemento mítico pune o opressor, instaurando o irracionalismo (2002, p.50) - nesta
postura se inserem Dicke, Teresa Albues e José Vilela; outra que traz uma visão mais
consciente e revolucionária, pois não sujeita seus personagens à situação de absurdo.
Desta fazem parte Dom Pedro Casaldáliga e Márcio Souza. Os autores da primeira
linha apenas se ‘contentam em ilustrar os dramas da exploração, sem empreender um
debate sobre os problemas’, ao passo que os da segunda não ilustram a mesma
inconsciência dos personagens em relação aos opressores, nem a do leitor em relação
ao contexto em que se insere, no caso, o de subdesenvolvimento local e exploração
pelas grandes empresas do capitalismo. (Magalhães, 2002:131) Importante, no entanto,
é entender que, para Magalhães, algumas produções literárias, incluindo a de Dicke,
não escapam a uma discussão acerca do local, pois os conflitos que nele ocorrem são
materiais para a elaboração estética e, em última instância, definidores de sua
estrutura.
Apesar de concordarem em alguns pontos49, Miguel e Magalhães apresentam
conclusões diferentes. A segunda se aproxima das idéias de Candido e Rama, apesar
de não usá-los como referência, quando se debruça sobre a obra de Dicke, enfocando
aquilo que nela se pode detectar do conflito entre culturas. Magalhães não destaca, em
seu texto, a qualidade dos ‘jagunços’ em Madona dos Páramos. Miguel os coloca como
lutadores, positivamente (Miguel, 2001:17), enquanto Magalhães os pinta como
assujeitados sem rumo e sem força para escapar ao domínio do poder desconhecido
(representado pela fazenda do Batovi, ou O Desolado). (Magalhães, 2002:17)
Essa diferença de opinião, talvez a mais evidente na comparação, vem da
diferença de postura das duas autoras em relação ao aspecto regional. Ambas não
colocam o problema em foco, apesar de seus trabalhos estarem permeados por esse
assunto. A diferença entre as autoras é que Miguel não se propõe voluntariamente a
essa questão e Magalhães não chega a discuti-la porque, segundo sua perspectiva, a
relação dos romances de Dicke com o contexto sócio-histórico é um pressuposto e sua
análise, dessa forma, escapa ao maniqueísmo entre o regional e o universal. Em
Magalhães, o que compõe o aspecto regional são critérios ou características que
marcam a opção dos produtores em relação ao jogo de poder entre as culturas. Neste
caso, o aspecto local é mais ativo e menos superficial do que em Miguel, que o
considera apenas como patamar para o desenrolar dos fatos.
Mesmo Antonio Candido, quando trata das relações entre localismo e
universalismo, afirma que, no Brasil, as produções mais significativas são aquelas em
que estas relações estão implicadas (Candido, 1967:151). Angel Rama, por sua vez,
afirma que o regionalismo veio para ficar na América Latina (apud Aguiar &
Vasconcelos, 2001: 137) e se torna elemento indispensável para análise. Rama ainda
observa que, no confronto entre as culturas rurais do interior e as culturas
modernizadoras das grandes metrópoles nacionais, o discurso frágil do regionalismo
tradicional serve à prática de dominação da cultura pois, ao conservar puros os
elementos dessa cultura, impede o seu desenvolvimento (Rama,1982:169).

49
Concordam em alguns aspectos. Miguel, citando Magalhães, se refere à consciência que o
personagem tem de sua fragilidade, de sua incapacidade frente à opressão ou ao mistério da vida e do
sofrimento. (Miguel, 2001:15-16)
Em Dicke, o local se traduz na reelaboração literária (e mítica) do conflito social
e, portanto, é indispensável na análise, pois, mesmo tratando-se de temas
universalizantes (e não universais), estes só ganham materialidade e sentido quando
incorporados à cultura local, quando reelaborados por ela.
8 DICKE E AS MIGRAÇÕES PÓS-60

O processo de contato entre a cultura tradicional e a modernizadora se desdobra


em dois processos: um entre os camponeses e indígenas do interior do Estado com a
capital; outra da capital com as metrópoles nacionais. A produção literária em Mato
Grosso pode ser pensada em dois momentos: antes e depois da intensa migração que
o Estado sofre no meio do século XX, entre os anos 60 e 70, quando da instauração de
programas de incentivo agroindustrial, fomentando o latifúndio na região (Magalhães,
2002: 21). No primeiro período, de maneira geral, a arte busca a exaltação da riqueza e
da grandeza mato-grossenses, no intuito de alcançar, através das letras, o status
universal e uma equiparação aos níveis dos grandes centros do país50. Nesse período,
Mato Grosso gozava de uma vida cultural intensa. Durante o século XVIII, o Estado era
considerado ‘a Capitania em que mais peças teatrais foram encenadas’ (Carvalho,
2005: 18). E ainda, ‘embora houvesse uma exploração intensiva e predadora, típica das
características do sistema colonial... as atividades culturais não deixaram de ter relevo
na ação dos governantes’ (2005, p.19). Ainda no século XX, essas impressões se
mantêm:

Enquanto Cuiabá esteve isolada dos grandes centros do país... vive ela
a fase mais brilhante de seu desenvolvimento literário...
A partir da Segunda Guerra Mundial, justamente quando a maior
facilidade de comunicações e transporte, pelo rádio, pelo telefone, pelas
rodovias e pela via aérea colocaram Cuiabá mais próxima dos grandes
centros, segue-se um período de estagnação em suas atividades
culturais.( Póvoas, 1982:16)51

Cuiabá, por estar na rota da migração para a Amazônia – onde se estabeleceram


os grandes latifúndios que trouxeram consigo a marca da modernização – e ser a
capital do Estado, também sentiu as influências da cultura modernizadora. Mesmo não
50
Nesse sentido foram criados o Centro Mato-grossense de Letras e a Academia Mato-grossense de
Letras, já mencionados anteriormente, cuja formação e papel na formação da identidade mato-grossense
já foram comentados por Leite, 2005.
51
Rama, fala também do isolamento do centro do Brasil, comparando-o com o que Arguédas também
encontrou em seu meio: ‘del mismo modo que ocurrió com Claude Lévi-Strauss, quien fue uno de los
últimos antropólogos em percibir, a la altura de 35, el aislamento em que estaban las regiones internas
Del Brasil antes de que fueran subvertidas por los planes carreteros, Arguédas conoció la epoca de
encierro defensivo y su transmutación. Rama, 1982: 168. As estradas são um elemento importante em
Cerimônias do Esquecimento.
sendo uma cultura autóctone, indígena (assim como não o são boa parte das classes
mais diretamente ligadas ao conflito social e cultural gerado pela instalação latifundiária,
como os colonos e posseiros), os intelectuais e artistas locais pensam na sua própria
cultura como pura, legítima.
Esses contatos, curiosamente, têm como resultado aquilo que Rama coloca para
o caso peruano: as culturas mais resistentes se anulam e se entregam à aculturação52
de maneira muito mais efetiva, em que há uma redução da produção dada a presença
dos elementos da modernização; as outras, menos resistentes por diversos motivos53,
não apagam totalmente características próprias, não se anulando por completo frente à
cultura modernizadora.

En esas condiciones, las culturas más tradicionales, más puras, eran las
que se revelaban más inermes para defenderse, las que se entregaban
al proceso de aculturación que las despojaba de su identidad,
celosamente custodiada por siglos. (Rama, 1982:169)

O primeiro caso ocorre, em Mato Grosso, com as produções que tem como
referente a cultura da capital e não a do interior. As produções que têm como centro a
capital Cuiabá, diminuem e são suprimidas pela modernização, como podemos
depreender pelo texto de Póvoas, acima, ao passo que as produções que remetem ao
espaço do interior do Estado (obviamente, nem todas elas), adquirem significativo
material estético. O que vai acontecer na Capital, num período posterior, é uma ação de
cunho regionalista, na tentativa de resgate e preservação de um patrimônio cultural
original. Esse fato colabora mais com o sistema de dominação da cultura
modernizadora, que se transfere dos grandes centros para as pequenas cidades do
interior, do que com a resistência dessa cultura resgatada:

A cultura modernizada das cidades, que se apóia em fontes externas,


transfere seu sistema de dominação para o interior da nação, o que não
quer dizer que o associe ao seu desenvolvimento, senão que o submete.
Em termos culturais, consente o conservadorismo folclórico tradicional,

52
‘Aculturação’, neste caso, tem o sentido que lhe é dado por Burke: a aquisição, pela cultura
subordinada, dos valores e características da cultura dominante. Cf. p. 24 deste trabalho.
53
Hilda Magalhães lembra, ao tratar da amazônia legal, a ‘ausência de tradição de luta de classes no
Brasil, a falta de formação dos antigos cultivadores, o isolamento geográfico desses últimos e dos
indígenas’ (Magalhães, 2002: 26) A esses aspectos, poderia se acrescentar a falta, no caso dos colonos
da região, de uma identificação mais efetiva de si enquanto grupo.
ao menos por um tempo, o que já é uma maneira de matar a cultura,
ao dificultar sua criatividade e renovação, para depois substituí-la pela
homogeneidade urbana. Normalmente propõe às regiões internas uma
escolha macabra: ou retroceder ou morrer.(Rama apud Aguiar &
Vasconcelos, 2001:191)

O resgate folclórico coisifica a cultura e enfraquece a possibilidade de


plasticidade cultural. Ele capitaliza, nos moldes das culturas modernizadoras, o
elemento regional, de maneira que este perde sua significação cultural para servir como
discurso que favorece uma determinada classe, ou é usado para determinados fins,
como a captação de recursos para a produção de livros, álbuns musicais, bens culturais
de maneira geral, no processo eleitoral etc. A cultura tradicional, quando ‘resgatada’,
não possui o mesmo caráter representativo de antes do conflito com a modernizadora,
pois já está absorvida pelo sistema desta.
Escapa a esse ‘resgate’ o grupo dos autores trabalhados por Hilda Magalhães
(2001) em seu livro: Ricardo Guilherme Dicke, Teresa Albues, Dom Pedro Casaldáliga e
José Vilela, mato-grossenses; e Márcio Souza, do Amazonas; tem como tema as
relações de poder surgidas com a invasão da Amazônia pelo capitalismo latifundiário,
revelando focos de resistência cultural não num movimento de resgate e
conservantismo estático, mas num movimento que evidencia as alterações sociais que
prejudicam a organização local e suprimem suas manifestações. O fluxo modernizador
gera, nesses casos, uma agitação e não uma estagnação na produção artística.
A resistência cultural se caracteriza como um protesto estético, de um grupo de
artistas que toma partido das culturas marginalizadas no conflito. Esse protesto toma
uma forma diversa em cada escritor. No caso da análise de Hilda Magalhães, ela opõe
o romance O fim do terceiro mundo, de Márcio de Souza, e os poemas de Dom Pedro
Casaldáliga, aos demais textos trabalhados em seu livro. A diferença entre eles é a de
que ambos revelam uma atitude revolucionária mais consciente do que os restantes,
frente aos problemas locais. O primeiro põe em cheque o uso do discurso ressentido do
terceiro mundo acerca de seu subdesenvolvimento, acusando o uso desse discurso
para a obtenção de privilégios pelas classes dominantes. O segundo, cujo autor é
missionário católico da Teologia da Libertação, transforma seus poemas em denúncia
social e protestos contra a opressão.
Para Magalhães, Dicke, assim como os autores restantes, pára na ‘constatação
das moléstias’ locais, nacionais ou humanas (Magalhães, 2002:125), não abordando
criticamente o problema. É possível, no entanto, tomar o fato por um outro viés: o da
resolução através do mito. Dicke, em seus romances, ‘pune’ os opressores através da
narrativa mítica, em que os capitalistas, os estrangeiros, a cultura modernizadora das
metrópoles nacionais, os donos de fazenda, os padres, os ditadores sofrem as
conseqüências de seus atos opressores através da atuação de um elemento sobre-
humano. Em Deus de Caim, Caieira, Cerimônias do Esquecimento e O salário dos
Poetas, o que prevalece ao fim é sempre a superioridade dos setores marginalizados,
cuja representação da consciência do mundo não se dá pelo pensamento lógico-
racional54, mas pelo mítico. O mito é a forma pela qual pensa o oprimido. É a maneira
pela qual ele percebe e entende o conflito. Nesse sentido, o trabalho de Miguel também
coincide com o de Rama, quando aponta a reelaboração mítica como um dos principais
aspectos da obra de Dicke55.
No conflito entre a cultura modernizadora e a tradicional, em Mato Grosso, um
dos principais aspectos a ser levado em conta é o econômico. Toda questão aqui se dá
por causa do estabelecimento do grande latifúndio capitalista com apoio do governo,
que toma as terras dos colonos e indígenas. Esse aspecto é, em Magalhães,
indispensável para pensar a produção cultural na região da Amazônia legal, no que
concerne à questão da terra. Como o próprio título de seu estudo assinala, as relações
de poder na região, a partir da migração em grande escala, e de grandes latifúndios, na
década de 60, vão marcar profundamente a literatura de alguns escritores56. O objetivo
da análise da autora é, a partir de alguns textos de escritores dessas regiões,

Identificar não apenas os agentes do Poder, como também a visão de


mundo dos dominados e suas reações diante das transformações
socioculturais de seu ambiente. (Magalhães, 2002: 9)

54
É o que predomina nos dois autores destacados pela autora: Pedro Casaldáliga e Marcio Souza.
55
Cf. Miguel, 2001.
56
Assim como Magalhães trabalha com autores de Estados distintos (Amazonas e Mato Grosso),
agrupando-os numa mesma região cultural, Rama supera os limites entre América hispânica e lusa pelo
processo de colonização que, apesar de suas diferenças, situa as duas Américas no plano de colônia
explorada. A cultura extrapola os limites da divisão política.
A questão incide sobre a mudança da perspectiva a partir da qual se conta, se
narra a história. Enquanto tradicionalmente o ponto de vista se detém no olhar do
dominador, o tipo de literatura analisada por Magalhães reflete a perspectiva, ou do
próprio dominado, ou de alguém que toma partido de seu sofrimento e de sua situação,
e usa a literatura como arma de denúncia, como espaço para a punição ou caminho
para a libertação. A autora, mantendo essa postura, chama atenção para a
recaracterização do espaço amazônico e a reflexão desse processo na literatura
produzida na região, indicando os participantes dos conflitos sociais. Na segunda seção
do primeiro capítulo, Magalhães percorre a trajetória de ocupação da região por
grandes latifundiários subsidiados pelo governo e as conseqüências dessa ocupação.

Enormes pedaços de terras indígenas ou devolutas eram vendidos ou


grilados e se encontravam em mãos de grileiros ou de grandes
fazendeiros e empresários. Os antigos proprietários ou habitantes eram
expulsos ou transformados em mão-de-obra quase gratuita. (Ianni, apud
Magalhães, 2002: 25-26)

É o que Dicke expõe claramente na voz do índio Bernal dos Beovulfos,


personagem de O salário dos poetas, que canta, da perspectiva do oprimido, a
colonização/exploração no norte de Mato Grosso que o obrigou a uma vida errante:

O índio Bernal dos Beovulfos contava como viera do Xingu:


- Fazendeiros incendiaram as aldeias, morreram crianças e velhos, os
que não morreram foram enchidos de balas, hoje são apenas caveiras,
ficaram donos das terras, como eles sempre fazem. Aproveitaram-se
das moças, enchendo-as de doenças, nós que éramos sem contato com
o homem branco, só com os nossos deuses, hoje sem pátria, sem terra,
sem deuses, sem nada, como todos nosso irmãos do Brasil, do planeta,
os perseguidos, os desaparecidos sem que se dê nos jornais e na TV. O
branco é a grande maldição da Terra, a maior maldição de todas as
maldições, sua cultura mata, reduz tudo a latas vazias e a sucata de
plástico velho, sujo. Hoje estou aqui, falando a língua de vocês, não me
importa se me matam ou não como fizeram com os hippies que
protestavam à sua maneira, que me importa a civilização branca? Morrer
é melhor do que perder a identidade e ficar vagando perdido pelo mundo
que outrora foi nosso e que agora é deles, com sua merdosa civilização
sem nome... Alma suja e tecnológica que se apossou do mundo...
(Dicke, 2000: 371)
Na voz do índio desterrado, a cultura do branco é marcada pelo progresso
tecnológico de tendência universalizante (”que se apossou do mundo”), mas, em
contrapartida, pela degradação e morte que espalha por onde passa. Todos os
romances de Dicke dão testemunho e ênfase a esse aspecto deturpado e deturpador
da civilização. São os valores que sufocaram a tradicional maneira de ser dos
habitantes locais.
Da mesma forma, em um trecho de Caieira, a viúva de um sertanejo emite um
legítimo grito de excluído, cuja vida foi ocupada e transformada pelo latifúndio
estrangeiro:

Estou em minha terra. Terra minha sim, senhor. Este terreno é meu,
meu finado marido Cachambão foi me deixou de herança e esse maldito
americano vindo não sei de onde, que as piranhas lhe comam os ossos
um dia, vindo do inferno de sua riqueza foi que nos fez a nós, pobres,
mais pobres ainda. Esse doutor coisa nenhuma doutor em desgraça dos
outros, doutor em maldição... esse doutor de fel e sangue nos roubou
toda essa terra que ele diz que é dele, porque é americano e mora lá na
cidade, amigo do governador e de toda essa gentaria importante, passa
sua vida no bom aproveitando a miséria de todos nós. (Dicke,1978: 30)

A cultura universalizante que entra em choque com a cultura local, nos romances
de Dicke, é a americana, de maneira mais significativa do que a Européia, que talvez
seja a referência maior em Deus de Caim, em que os personagens mais ricos viajam ou
já viajaram a diversos países daquele continente. A TV, nesse processo, é a grande
difusora dessa cultura, em contrapartida aos cantadores, poetas, ciganos, que
compõem os canais transmissores e sustentadores das informações e narrativas de
uma cultura local. O processo de exploração da cultura local gera seus contingentes:

No decorrer dos anos, colonos e indígenas são explorados e


marginalizados e, sem saída, procuram a cidade, onde viverão em
péssimas condições sociais, na promiscuidade ou na criminalidade.
(Magalhães, 2002: 26)

As obras analisadas pela autora em seu livro trazem, além do próprio conflito
entre latifundiários e antigos ocupantes, na década de 60, a prostituição, a
marginalidade, a promiscuidade e a violência, que permeiam as novas relações sociais
vividas pelos participantes do conflito. Pensando na produção de Dicke, seus
protagonistas podem ser vistos, em grande parte, como provenientes da massa
marginalizada resultante desse processo. Essa massa se tornou mão-de-obra para o
grande capital, como em Caieira, por exemplo, em que os empregados da caieira Nova
Esperança são mantidos num regime de semi-escravidão por um empresário
americano. Ela compõe o grupo excluído dos privilégios do sistema – bêbados, loucos,
professores desempregados, ciganos, trabalhadores braçais, jagunços, prostitutas,
bandidos, garimpeiros, índios, peões de gado e tantos outros estereótipos da
marginalidade, na cidade grande ou em áreas rurais. Esses estereótipos estão
presentes, sem exceção, em todos os livros de Dicke.
Há, ou houve nesse momento, portanto, em Mato Grosso, uma divisão básica
entre o grande capital que chegava, trazendo com ele a modernização das técnicas
agrícolas, dos transportes, com as estradas57, da vida em geral, e as populações que
aqui já se encontravam antes dessa migração. Em Dicke, as estradas, como pontes que
ligam o interior às grandes metrópoles, são representativas da cultura universalizante, e
marcam novas relações espaciais. Veja-se esta passagem de Deus de Caim, que
descreve o espaço da cidade em que se situa o palacete de Isidoro, que é uma das
personagens centrais:

(o palacete de Isidoro) Um pouco afastado do centro da cidade, ficava


entretanto numa rua que dava para a estrada real rumo de Campo
Grande e cidades do sul, transitada por toda sorte de veículos que iam e
vinham. Por ali também era o passo para Coxipó, o balneário elegante
dos cuiabanos, sobre o rio Coxipó, e aos domingos era um ir e vir de
carros neuróticos que bem atestava a novel importância da nova via
aberta ao movimento. (Dicke, 1968: 91)

Note-se que o espaço das personagens urbanas também é afastado do centro, o


que a torna mais próxima do interior, mas não a distancia do contato com a cultura
universalizante. O palacete de Isidoro, estando no subúrbio, traz elementos da cultura
européia, as novidades da moda, acompanhando as maneiras de pensar lançadas
pelos centros hegemônicos. As estradas são um canal importantíssimo de difusão da
cultura modernizadora, pois reorganizam as relações interculturais e as noções de
espaço e tempo. José Maria Arguédas escreve que, no Peru:
57
Rama também fala das estradas como elemento importante no contato entre as culturas rurais e
metropolitanas nos países da América Latina.
Hace apenas unos veinte años que las antiguas áreas culturales que
fueron respetadas durante la admnistración colonial, están siendo
destrozadas y reordenadas por las carreteras... (apud Rama, 1982:168)

Com as estradas, o acesso a lugares antes isolados se torna mais viável e as


trocas culturais mais intensas:

La modernización se había instalado, por asalto, dentro de los antiguos


bastiones de los Andes. Ya las montañas no preservaban la llegada de
las avanzadas de la cultura occidental ni servían para reducir el tiempo
que la separaba de la indígena, a los efectos de una progresiva
apropiación de elementos nuevos. (Rama, 1982:169)

Junto com as estradas, a TV, elemento presente em muitos dos romances de


Dicke, também é o veiculador das novas referências culturais, assim como das
catástrofes que estas trazem consigo. Ela também realiza, no seio da cultura rural, a
difusão da cultura universalista. Nos romances de Dicke, ela está no bar (também muito
freqüente nos textos) em que os personagens se reúnem dia a dia:

Será mesmo a noite mais fria do ano, como a televisão do bar Nínive
sempre mastigando sua pirada perversão de anúncios sobre tratores,
moto-serras, facões e machados anunciou? (Dicke, 2000: 81)
a TV desilusionada do bar Nínive ia vomitando tratores, motoserras e
machados e facões e outros monstros, entre caras de aureolados
presidentes e governadores e os capotes se faziam surdos da surdez
das imagens que se desilusionavam na TV do bar Nínive, tudo era
possessa surdez extraordinária... (Dicke, 2000: 427)

Segundo Magalhães, o processo de ocupação se deu com a mesma


agressividade com que se deram as migrações anteriores a 60, desde os tempos do
Brasil colônia, mas em proporções diferentes e conseqüências diferentes58. A migração
de 60 está mais relacionada à implantação do sistema capitalista modernizador das

58
Se nos primeiros tempos da Colonização a ocupação da Amazônia estava diretamente ligada à
necessidade de se garantir a soberania da Coroa Portuguesa sobre as terras do Norte brasileiro, no
Século XX as políticas de integração da Amazônia visam, de um lado, a afirmação da soberania brasileira
sobre a Amazônia, ameaçada pelos projetos de internacionalização apresentados principalmente pelos
Estados Unidos, e, de outro, elevar a taxa de exportação de produtos agropecuários a partir da
implantação na Amazônia Legal das chamadas ‘fazendas-empresas’. Cf. Magalhães, 2002: 20-21.
metrópoles nacionais que, por sua vez, reproduzem, no contato com metrópoles
regionais ou com culturas rurais, a sua relação com as metrópoles mundiais. São os
processos de transculturação entre a metrópole nacional e a cidade interiorana que
permitem maior plasticidade na elaboração local do material estrangeiro:

el segundo (processo de transculturação) el que habría de proporcionar


las mayores garantías de uma construcción com más notas
diferenciales, además específicamente americanas, em aquellos casos
em que por obra de la plasticidade cultural se consiguiera integrar
dentro de las estructuras próprias rearticuladas, las incitaciones
modernizadoras que las ciudades habrían mediatizado. (Rama, 1982:
210)

Assim como na região andina, na Amazônia, a intensa migração para a região


gera conflitos e apropriações, pois traz novas maneiras de se relacionar com a
produção social, cultural, bens de consumo etc. Magalhães descreve a situação da
seguinte maneira:

Para o empreendedor, a terra tem um valor de acumulação, quantitativo,


enquanto que para o posseiro, ela tem um valor qualitativo. Para o
capitalista recém-chegado na Amazônia, a terra vale o que ela pode
produzir para fins de exportação. Aos olhos do colono ou indígena, a
terra e o instrumento que garante sua sobrevivência. (Magalhães,
2002:80)

É como aparece o personagem Mr. Filler, latifundiário americano no romance


Caieira, quando enxerga, na sua maneira de lidar com a terra, a superioridade em
relação ao trabalho do sertanejo:

Terras que rendem, terras que são dinheiro... essa gente não prestava,
não trabalhava, para que queria terra. Ele não, estava ali, pronto para
trabalhar, fazer aquilo tudo crescer, para fazê-la parir frutos e frutos sem
fim, cornucópia inestancável. Lá estava ele, e todas as terras eram dele,
todas, todas, o mundo se possível, o orbe todo, só sua raça sabia
penetrar o segredo alquímico delas, só ele era homem, e mais que
homem, uma espécie de super-homem com o qual ninguém podia, povo
nenhum, muito menos estes famintos, podres, rastejantes, miseráveis,
hediondos, os ignorantes, os indesejados de terras...(Dicke, 1978: 31)

Magalhães ainda arremata:


Ora, duas concepções econômico-culturais tão distintas não podem
coexistir sem choques. Instaura-se na Amazônia então uma espécie de
crise da significação, advinda de um violento choque cultural. (2002,
p.80)

Os grandes latifúndios se inserem bruscamente no seio de culturas tradicionais


estabelecidas na região que, pela falta de elementos que as ligassem direta e
significativamente às culturas modernizadoras das grandes metrópoles do país, como
as estradas, haviam se mantido em condição de relativo isolamento, como bastiones
amazônicos 59 . Essa oposição – reiterada nas dicotomias do tipo rico e pobre,
trabalhador e patrão, sertanejo e citadino, local e estrangeiro – é bem marcada no
conteúdo dos romances.
Deus de Caim trata da trajetória de uma família que está dividida entre o campo
e a cidade, respectivamente, entre pobres e ricos. É evidente o tratamento dado a cada
um desses contextos, em que a cidade se apresenta como palco para a libertinagem e
para a deturpação dos valores morais. Os familiares da cidade têm contato direto e
freqüente com a cultura modernizadora da Europa enquanto que os do interior se
mantêm afastados dela. Esses contatos se revelam nas orgias, incestos, corrupções de
toda a ordem que apresentam os habitantes da cidade. O interior também apresenta
problemas, mas não da mesma ordem, e não tão abertamente. Só um elemento destoa
nesse campo de relações: Jônatas, um dos gêmeos protagonistas da história. Sua
discussão com o irmão Lázaro e a tentativa de enganar Minira, se passando por
Lázaro, tem como conseqüência uma fuga para a cidade e o seqüestro de Minira que,
ao final, acaba se entregando a ele e mantendo uma linhagem de “Cains”. Por fim, o
incêndio queimando a mansão é a purificação e punição que dá termo aos elementos
corruptos, inclusive Jônatas. Isidoro, personagem urbano, por outro lado, passa pelo
processo inverso, em que passa de uma decadência (marcada por uma deficiência
física) a uma pureza de espírito, no amor por sua sobrinha, não morrendo no incêndio.
Em Caieira, as personagens vivem num espaço em que o contato que travam
com uma cultura modernizadora se dá pelos passeios de lancha do empresário
americano e pelas notícias que recebem por diversas vias. Os países estrangeiros são

59
Isolamento relativo aos grandes centros e à forma de produção econômica e cultural destes centros, é
importante frisar.
vistos como mundos muito distantes e imaginários, ou se formam no imaginário dos
trabalhadores da Caieira através da pouca informação a que têm acesso. Faz-se uma
imagem tanto positiva como negativa do estrangeiro, de acordo com a relação que se
têm com ele. A visão negativa é a do explorador, como já se viu, o que consome as
forças e as vidas dos indivíduos em função do acúmulo de capital. A visão positiva é a
do progresso:

O doutor bem que podia melhorar um pouco, modernizar, ele que é de lá


daquelas bandas famosas, daquelas terras modernas de onde vem tudo
quanto é bom, onde os homens são mais inteligentes e de onde vem a
natural dominação do mundo pelo talento pessoal. (Dicke, 1978:111)

No romance, Mr. Filler, o americano explorador, dono da caieira, morre pelas


mãos de Pignon, personagem negra, das Guianas, que se configura como um mito
representante da liberdade e da força da natureza local em contrapartida à civilização
tecnológica estrangeira (o cipoal prende o barco a motor e as cobras matam Mr.
Filler)60.
Em Madona dos Páramos, as personagens são bandidos que fogem da cadeia e
partem em busca de uma terra prometida onde não há desigualdade ou preconceito.
Essa terra fica no interior que, a princípio, está ainda a salvo dos problemas e das
corrupções da civilização urbana. No entanto, no meio da viagem, as personagens se
defrontam ainda com o elemento estrangeiro, representado pelos protestantes da
fazenda Batovi, ou o Desolado. Aqui, assim como em Caieira, a presença do americano
(cultura com a qual se estabelecem os conflitos) está marcada pelos vestígios de
opulência ou opressão mais do que pela própria presença (em Caieira, Mr. Filler
aparece no final). O preso, o marginal da cidade, tenta se auto-afirmar quando sai dela,
com outros valores, estabelecendo uma diferença entre si e os opressores:

- Sim, vejamos. O esquecimento deles que é? Esquecimento da lei,


titica. E o nosso? Ecos dos oprimidos, mundo revoltado, guerra
perpétua, céu furioso, insurreição. Eles são os bons, que valor tem o
esquecimento deles? Urros de onça, perigos fortes, mortes e roubos, o
risco sempre, céus e loucuras, o desafio, o mar, o Demo, o mundo dos
inícios. Rugidos de onça parida, gritos dos diabos esquecendo-se de
que não existe nem bem nem mal: nós. (Dicke, 1982:106)

60
Cf. Magalhães, 2002.
Nessa oposição, marca-se o americano como o outro, assim como em Caieira,
como o opressor capitalista, representado pelos protestantes da fazenda Batovi, os
sucessores de Cristo que se aproveitam de sua situação:

- Cristo hoje mudou de casaca. É cabra capitalista...


- Meu irmão, Cristo era carpinteiro, amigo de pescadores, nunca teve
nem em que descansar a cabeça.
- Mas seus sucessores, representantes ou o que lá sejam, têm
travesseiros de outro, riquíssimo. (Dicke, 1982: 81)

O enredo de O salário dos poetas destoa um pouco dessas relações para se


aproximar de uma problemática latino-americana61, em que um ex-ditador - Augusto
Barahona - de um país imaginário da América do Sul - o Chileraguay - se refugia,
depois de ser derrubado do poder, numa região denominada Portos de Cabras. O
general sofre um atentado e passa o longo romance de mais de quinhentas páginas
refletindo suas ações passadas, sofrendo o medo da morte, a dor e o incômodo da bala
alojada na barriga. O texto evidencia a sua relação com o restante dos países da
América Latina, numa seqüência de nomes de romances e autores latino-americanos
que têm como personagem principal a figura do ditador:

Eu o Supremo, como me chamou Augusto Roa Bastos, eu o Outono do


Patriarca como se me insinuou Gabriel Garcia Márquez, eu o Tirano
Banderas de Valle-Inclán, eu A Morte de Artêmio Cruz de Carlos
Fuentes, eu o Recurso do Método de Alejo Carpentier, eu em Cabezas
Cortadas de Glauber Rocha ou eu em El Papa Verde de Miguel Angel
Asturias... (Dicke, 1999: 155)

Neste romance, também, as personagens se dividem entre marginais, pobres


moradores e trabalhadores dos Portos de Cabras, e a elite que acompanha o general.
O padecimento deste se dá pela mão dos pobres, como uma vingança por todo o
tempo de opressão e pelas injustiças cometidas durante o governo em seu país.

61
Aliás, Dicke se aproxima do universo latino-americano através de seus temas, de personagens
paraguaios, bolivianos, índios etc., cantigas que fazem referência a países da América do Sul, que estão
sempre presentes nos seus romances. Essa relação é sugerida por Aclyse de Matos, num conto
chamado Tigres de Borges, Tigres de Cortazar, que tem Dicke como personagem, no site Prosa Virtual.
Pode-se perceber, a partir daqui, que a oposição entre pobres e ricos, que
corresponde à oposição entre o local e o estrangeiro, o tradicional e o moderno, é um
elemento recorrente nos textos de Dicke. À exceção de Madona dos Páramos, em
todos os outros há a punição – pelo fogo em Deus de Caim, pelo ataque mítico da
natureza em Caieira e pela bala de prata em O salário dos poetas. Em Cerimônias do
Esquecimento, ela se dá pelo próprio esquecimento – do elemento modernizador,
aquele que transfigura a realidade para algo decadente ou se mostra como grande
ameaça à sobrevivência da cultura local.
A ‘cultura rural’, termo usado por Rama para indicar as culturas locais,
autóctones, seria, no caso da Amazônia, representada por índios e camponeses, de
forma análoga à situação andina:

Y no existian em esas regiones sino dos fuerzas casi nitidamente


enfrentadas: la comunidade indígena, integrada por analfabetos
tenazmente mantenedores de sus antiguas costumbres o el hacendado,
dueño de índios colonos que trabajaban em forma practicamente
gratuita para el terrateniente, que no tiene ambición mayor que la de
reducir a la condición de colonos a todos los índios de las comunidades,
colindantes o no colindantes suyas. El mestizo y el pequeño proprietário
son mínimas fuerzas, necessariamente aliadas o al servicios de los
hacendados, pues no tienen otra forma de continuar subsistiendo.
(Rama, 1982:166-167)

Têm-se, dessa forma, três classes diferentes neste espaço: o índio, o fazendeiro,
o mestiço e os pequenos proprietários, estes dois últimos formando uma só classe. Vê-
se que as idéias de Rama e Magalhães se aproximam, pois ambos procuram sinalizar
quais produções literárias se inserem nesse conflito entre as culturas modernizadoras e
as tradicionais e que indicações elas trazem dele. Rama trata da questão de como
alguns autores, a exemplo de José Maria Arguédas62, trazem à tona a linguagem, a
cultura tradicional, mesclada, e não resistente ou rígida, à cultura modernizadora,
universalizante. Arguédas não se mantém resitente ao processo de modernização, mas
busca nele também elementos que façam perdurar a cultura rural. Seu elemento central
é o índio que, no Brasil, também aparece como importante material para a elaboração
estética, ao lado do sertanejo, do trabalhador do campo e outros tipos.

62
José Maria Arguédas, peruano, antropólogo, no romance Los Rios profundos.
Resta saber como Dicke realiza essa hibridação entre a cultural local e a cultura
modernizadora. A partir dos trechos dos romances já citados, o que se pode
depreender é que eles defendem o local atacando a cultura estrangeira, denunciando
seus desvios e a decadência que trouxe à comunidade local. A opção pela defesa da
cultura do marginalizado é clara. Esta postura não constitui, no entanto, a
transculturação. Ela ocorre, em Dicke, principalmente nos níveis da composição literária
e da cosmovisão mítica.
Quanto ao nível lingüístico, em que a transculturação incide sobres os aspectos
sintáticos e morfológicos da língua, aparecem palavras, expressões locais, bem como
estruturas sintáticas que buscam simular aspectos da fala local. Apesar disso, o que
predomina é uma linguagem de aspecto culto, formal, mas entremeada de expressões
coloquiais que denotam uma ascendência local sem ser exoticizante. Pela linguagem,
às vezes, é possível identificar um narrador que não seja personagem. No entanto, a
maneira como o foco narrativo é operado faz com que a linguagem culta se mescle à
linguagem sertaneja por serem, a momentos, pertencentes textualmente a um mesmo
personagem, embora possamos identificar ou supor aspectos que seriam ou só do
narrador (como a linguagem culta e o eruditismo) ou só do personagem (como as
expressões coloquiais e a cosmovisão mítica).
Quanto ao nível da cosmovisão, essa alternância acontece da mesma maneira
nos romances iniciais (como Deus de Caim, Caieira e Madona dos Páramos) em que
um tipo de narrador mais tradicional ainda se mostra com nitidez em alguns momentos.
Nos últimos romances (Ultimo Horizonte, Cerimônias do Esquecimento e O Salário dos
Poetas), no entanto, a visão mítica prevalece em toda a narrativa. Em relação a esse
nível, em que o mito como forma de apreender a realidade é expressão da cultura local,
o trabalho de Miguel, 2001, é bastante expressivo, mostrando como Dicke se apropria
da tradição e dos mitos ocidentais reintroduzindo-os no espaço de seus romances.
Este trabalho tem como objeto o foco narrativo, que se inclui no nível da
composição literária, pois acredita que a análise do processo de transculturação nos
níveis lingüístico e da cosmovisão dependem fundamentalmente do nível da
composição. É ele, através do foco narrativo, que irá indicar em que medida, nas
personagens e no narrador, o romancista se torna um escritor de transculturação,
apresentando um híbrido da cultura local com a universalizante.
9 TRANSCULTURAÇÃO E FOCO NARRATIVO

Gilvone Miguel (2001), em sua análise de Madona dos Páramos, faz


observações acerca do foco narrativo no romance e destaca o seu procedimento
estético, que consiste basicamente em alterar o ponto de vista da terceira para a
primeira pessoa ou vice-e-versa. O primeiro caso é mais freqüente e caracteriza um
movimento constante em que, iniciando-se o texto com o narrador, este não se sustenta
em terceira pessoa. O personagem, então, assume a primeira pessoa e toma os
diversos procedimentos do próprio narrador, como narrar, comentar, fazer uma
introspecção etc. Esse procedimento, colocado dessa forma, parece um tanto comum.
Leia-se, no entanto, a seguinte passagem, do romance Madona dos Páramos:

Nas perneiras as pernas, na cabeça o quepe sem resguardo, no corpo a


farda pegajosa e suada, os cardados de Djanira, e o corpo sob a osseira
do cavalo a trotar... e o peso por cima, José Gomes, derreado, as
pernas trançadas sobre a barriga que mostra as costelas magras, como
este cavalo anda tanto, meu Deus do céu, se me contassem eu não
acreditava, a estradinha arcaica que nem é estrada mais, a adustão sem
fim, as cigarras tontas de calor, os casançãs que se queimam... (grifo
meu. Dicke, 1982:14-15)

O que acontece nesse trecho é a passagem, no mesmo período, do foco


narrativo da terceira pessoa, em que José Gomes é uma personagem observada à
distância, para a primeira, em que a mesma personagem fala. Não há diferenças
notáveis entre a linguagem de um (narrador) e de outro (personagem), não há
travessões ou quaisquer outras marcas gráficas para indicar que houve a passagem.
Esse fato só permite identificar a personagem que fala algum tempo depois, a não ser
que já se esteja habituado à linguagem de Dicke.63 Um outro aspecto que dificulta a
identificação do personagem que fala (ou, em contrapartida, a identificação do narrador)
é o fato de que essa mudança não ocorre, na maioria das vezes, em um intervalo
relativamente curto de texto, como é o caso da citação acima. O que acontece é que,
após um longo trecho em terceira pessoa, à qual o leitor se habitua, essa primeira

63
Ainda assim, em muitos casos a identificação não é imediata.
pessoa irrompe na narrativa sem nenhuma preparação, sem nenhum índice gráfico,
sintático ou semântico, o que gera um estranhamento. As primeiras considerações de
Miguel sobre o assunto não são acerca do foco narrativo especificamente, mas das
relações que se estabelecem, a partir dele, entre narrador, leitor e personagem:

A narrativa de Madona dos Páramos é estruturada de forma a aproximar


o leitor, o narrador e os demais personagens, pois, por intermédio do
narrador, o leitor é levado a infringir os limites da intimidade ou da
consciência dos personagens. (Miguel, 2001: 5)64

A categoria do narrador, aqui, representa tanto a categoria textual, quanto a voz


do ‘ficcionista’, Dicke, como se verá adiante. Segundo Miguel, então, o foco narrativo
em Madona dos Páramos mantém escritor e leitor num movimento de aproximação ou
distanciamento da consciência da personagem ou do narrador/personagem, processo
que se dá de maneira variada, de acordo com a necessidade da narrativa:

O ficcionista escolhe e constrói uma forma de narrar, deixando, às


vezes, implícita ou explicitamente na narrativa, a sistemática que, para
ele, melhor se adaptou à sua ficção. O processo narrativo expressa a
consciência do ser, exposta pela intromissão da onisciência possibilitada
pela criação literária, na opção feita pela pessoa verbal utilizada pelo
narrador. Dentre as várias possibilidades que se oferecem ao ficcionista,
a narrativa em terceira pessoa é um tanto destituída de vida, por sua
impessoalidade e distância. Por outro lado, a narrativa estruturada em
primeira pessoa permite ao narrador-personagem evocar as suas
recordações e lembranças, reviver, pelos artifícios da memória,
acontecimentos do passado, introduzindo as reflexões, os pensamentos
e meditações sobrevindos da experiência (re)vivida. O narrador de
terceira pessoa pode permanecer constantemente no exterior das
personagens, descrevendo somente o visível externo, ou pode penetrar
no interior do personagem, limitando-se a perceber somente o aspecto
que esse personagem percebe. (Miguel, 2001: 28)

Miguel dá explicações intratextuais para o foco narrativo do romance em


questão. A alternância entre as vozes do narrador e dos personagens explica a
necessidade da expressão interior dos personagens em Madona dos Páramos, a

64
Fraçois Guyon diz: “A propósito da ausência ou da presença do autor na narrativa (pois o narrador que
aqui se analisa deve ser identificado com o autor implícito de Booth), são ainda as mesmas questões que
se põem: comunicação com o leitor,... diferenças entre os modos de apresentação, papel das visões ou
centros de orientação no interior da narrativa, etc.” (Sallenave, sd: 36). Perceba-se que, aqui, assim como
em Miguel, o narrador é a representação do autor, é a manifestação direta do autor implícito.
conseqüente aproximação do leitor com a consciência de cada um deles, a expressão
de seus sentimentos e suas dúvidas acerca da personagem denominada “moça sem
nome”, cuja figura misteriosa é a referência para as reflexões dos jagunços.65 Nas duas
passagens a seguir, José Gomes, que no romance também se chama Urutu, sendo
personagem referida em terceira pessoa, assume a primeira para falar de si:

José Gomes continua pensando em Tabita. Mais esta velha. Todas são
irmãs de sua mãe. Podem estar onde estejam e serem o que forem,
todas as velhas são irmãs de minha mãe, e a razão delas não tem fim.
(Dicke, 1982: 45)

Aqui, há o jogo referencial entre os pronomes ‘sua’ e ‘minha’, que são os


elementos indicadores de que se trata, nas duas frases, da personagem em questão.
Na primeira frase, sua referência é a terceira pessoa, na segunda, a primeira. Este
outro trecho se refere ao aspecto levantado por Miguel, em que o personagem Urutu
(José Gomes) realiza a introspecção a partir da visão da moça sem nome:

Urutu sente um desgarrar-se no peito ao espreitar a moça sem nome e


reparar nos desenhos da calcinha, as formas exuberantes e sumarentas
no vestido de seda, as carnes que transparecem no vestido, como que o
corpo transcende a roupa, na mulher que é bela logo de seda, meu
Deus. Aqui neste mundo do diabo, essa moça exibindo tudo isso que
Deus e o Demo lhe deram impunemente, essa coisa perigosa, proibida,
pecaminosa, enigmática, assombrosa, monumental, que é a beleza do
corpo feminino... Esse sexo que tão pouco te custou, moça... E a gente
tem de agüentar. Por que fui escolher um vestido de seda para dar-lhe.
(Dicke, 1982: 300)

Elementos fundamentais para discutir a questão do foco narrativo em Dicke são


três: o uso das pessoas verbais66, dos tempos verbais e dos dêiticos referentes a lugar.
No caso destes últimos, há uma predominância do presente sobre o passado e do
“aqui” sobre o “lá”. Dessa forma, muitos dos textos apresentam um narrador que parece

65
‘O uso da primeira pessoa na voz narrativa contribui para o efeito da credibilidade aos olhos do leitor -
ninguém sabe melhor de sua própria história do que aquele que a viveu -, portanto, o autor faz de seus
personagens narradores dignos de confiança: “[...] segundo ele mesmo, porque aqui ninguém sabe nada
de ninguém a não ser o que a pessoa mesma diz, que fica sendo a sua verdade. A gente tem que
acreditar no que dizem com sua própria boca...” (Dicke, 1982: 41-2)
66
É importante porque, em alguns críticos como Percy Lubbock, o ponto de vista não depende da pessoa
verbal utilizada. Cf Lubbock, 1976: p.49.
estar presenciando os fatos narrados, apesar de não marcar sua presença enquanto
personagem diferente das que já existem. Em Caieira, mesmo sendo o único romance
que parece não apresentar a oscilação entre as pessoas verbais, mantendo um foco de
terceira pessoa em todo o romance, há passagens como a seguinte:67

Hoje, sábado, com dinheiro do salário semanal recebido, alguns deles


não voltarão tão cedo às suas casas, foram-se, debandaram-se.... Ali
mesmo na Esperança foi que se passou. Não faz lá muito tempo.... Mas
é verdade porque aconteceu. Que aqui, verdade que foi verdade que foi
aqui... (Dicke,1978: 8)

O narrador, mesmo estando em terceira pessoa, se situa no presente e


espacialmente próximo em relação aos personagens. Note-se ainda, a relação entre os
dêiticos “aqui” e “ali” designando o mesmo espaço da caieira Nova Esperança. O
romance Caieira não apresenta oscilação marcante de pessoas verbais, mas de índices
espaço-temporais. Há casos em que, apresentando a narrativa um aspecto mais
tradicional, o narrador, cujo foco está em terceira pessoa, se denuncia através de
opiniões em primeira, como acontece, dentre outros, no romance Deus de Caim:

Mas ele sabia, o Cardeal não fizera nada de mais, simplesmente, ele
Jônatas havia enchido as tipas de pinga e nesse estado depois da briga,
não havia visto nada, pensando como estava, que Lázaro morrera
irremediavelmente... Era um caso de choque, de catalepsia, de não sei o
quê... (Dicke,1968: 82)

Esse tipo de intervenção pode ser visto em romances tradicionais do século XIX,
em autores como Machado de Assis. Da mesma forma acontece em Madona dos
Páramos, em que a primeira pessoa se apresenta no plural através da locução a gente.
A personagem referida em terceira pessoa, aqui, é José Gomes:

quando a tocara ao ajudá-la a subir ao cavalo, sua pele se arrepiara


como quando a gente vê uma sucuri de perto, saindo da água... Lembra-
se do dia ainda hoje, ao passar por um córrego, viu na outra margem um
tuiuiú pensativo, numa perna só... (Dicke, 1982:226)

67
Hilda Magalhães diz: “O personagem absurdo não é consciente de si mesmo no tempo e no espaço,
não pode também exercer o poder da palavra, motivo pelo qual a narrativa é realizada em terceira
pessoa” (Magalhães, 2002: 43). Caieira, apesar do apontamento de Hilda Magalhães, apresenta, em
menor grau, a mesma característica narrativa tratada aqui.
A alternância do foco narrativo entre a primeira e a terceira pessoas é uso
comum na narrativa ocidental, pois, de acordo com o desenrolar da trama, o narrador
onisciente pode passar, por diversos motivos, a narração para algum personagem. Em
Dicke, essa problemática não consiste somente na narração, mas na diferenciação
entre a narração e o diálogo, em que, muitas vezes, o que ocorre é não a transmissão
da voz narrativa para o personagem, mas apenas a sua fala inserida diretamente no
período narrativo, sem marcação gráfica. A afirmação de que há mudança de foco vem,
na verdade, do fato de que essa fala em primeira pessoa pode se estender por muitas
páginas, narrando ou não.
A mudança de foco narrativo em um texto é sentida de várias maneiras, seja pré-
anunciada, ou vindo separada da fala do narrador por quaisquer sinais de pontuação
(ou mesmo pela ausência deles), ou marcando-se na diferença de linguagem entre
narrador e personagem, ou ainda pela própria estruturação sintática e uso do tempo
verbal e dos dêiticos que permitem, mesmo sem marcação, a identificação das
fronteiras entre personagem e narrador. A diferença entre esse tipo de procedimento e
o que ocorre em Dicke é que a mudança, muitas vezes, não está marcada e ocorre no
fluir de uma mesma oração. Na seguinte passagem, o general Augusto Barahona, de O
salário dos poetas, vem designado por terceira pessoa até que irrompe falando em
primeira:

o filho coronel Gustavito se foi, sua mulher Filomela se foi em silêncio,


as criadagens e seguranças castrenses se foram... fica finalmente a sós,
sob a lua amarela que difundem as lâmpadas alimentadas pelos
geradores que zumbem nos fundos da casa... luz que segundo ele tem
qualquer doença, por exemplo, parece maleita, ou talvez luz sifilítica que
pousa na pele e amarfanha os nervos como uma descicatrização
purulenta, sim, esta luz doente tem qualquer coisa da pulverulência dos
vermes negro-amarelos daquele cavalo morto sobre o qual tombei
quando aquela bala de prata me atingiu, e ele sente um ingurgitamento
intransitável na boca do estômago... (Dicke, 2000: 223)

Note-se que as pessoas oscilam, deslocando-se o ponto de vista da terceira


pessoa do narrador para a primeira do personagem e deste para o narrador novamente.
O interessante nesse processo é que essa passagem se apresenta de maneira natural,
quase imperceptível na fluência do texto, a não ser justamente pela alteração da
pessoa verbal. Vários elementos permitem esse deslocamento natural: a não diferença
entre as linguagens do narrador e do personagem, que faz com que se leia a narração
como se fosse de uma só voz; a maneira prosaica e hipotática da escrita, que une
orações e períodos que, a princípio, poderiam estar separados graficamente por pontos
finais, dois pontos ou travessão (como acontece em muitas outras passagens), e que
vêm, no entanto, separados apenas por vírgula. Tal característica estimula uma leitura
corrida, unindo todo o conteúdo num mesmo período mais longo, sob a primeira
referência de pessoa, tempo e lugar, que se altera para uma outra. A leitura de trechos
como esse carecem de atenção maior. Essa alternância de pessoas pressupõe uma
alternância de vozes no romance cuja identificação, nem sempre imediata, cabe ao
leitor. A explicação de Gilvone Miguel para tal fenômeno é a seguinte:

Há que se considerar a dupla relação, implícita ou explícita, estabelecida


na estrutura da obra narrativa, de um lado, entre o autor e o leitor, de
outro, entre um narrador onisciente e um narrador personagem. Este
processo possibilita o jogo de alternância verbal da voz da narrativa, ora
em primeira pessoa, ora em terceira pessoa, cabendo ao leitor, em
muitas situações, decifrar a quem pertence aquela voz, se ao narrador
em terceira pessoa ou ao personagem num monólogo interior. Esses
deslocamentos do foco narrativo marcam os indícios da presença do
autor implícito que opta por apresentar, na voz do narrador onisciente,
os personagens externa e internamente, ou conferir a um personagem a
voz da narrativa para que apresente a si mesmo e aos outros numa
visão interior. O autor pode até usar de artifícios para fazer parecer que
os personagens são autônomos e vivem por si mesmos, porém o que
fica patente ao leitor atento é a tentativa de [...] controle constante
exercido pelo autor . São manifestações das várias vozes do autor no
texto. (Miguel, 2001: 29)

Essa passagem evidencia a opção teórica de Miguel para explicar o fenômeno


que ocorre em Dicke. A teoria do autor implícito foi proposta por Wayne Booth (1961)
como uma crítica às colocações de Henry James (1964) e Percy Lubbock (1976), que
afirmavam que o autor deveria ao máximo se afastar, se imiscuir da obra, buscando
uma dramaticidade e não deixando indício de que há uma mente por trás da narrativa e,
principalmente, das personagens. Booth, em contrapartida, afirma que, invariavelmente,
o autor está implícito em todas as ações, falas, arranjo de intrigas etc. que venham a
compor uma obra literária.68 É nessa perspectiva que a narrativa, não estando a cargo
de uma personagem, será a representação direta do autor na obra:

Nas remembranças de cada um, vê-se traída a voz do autor que se


revela de forma intensa nas meditações, nas considerações e análises
que brotam no pensamento dos personagens quando revivem os fatos
passados de sua vida. (Miguel, 2001: 31)

A presença do autor, aqui, é medida pelas observações e palavras expressas


por alguma personagem. Para Gerard Genette, 1976, isso se resolve pensando na
distinção entre discurso e narrativa, em que o primeiro responde pelas referências
externas – de lugar, de tempo etc. – ao texto, e o segundo consiste no desenrolar da
ação. Para o teórico estruturalista, nem se discute a questão do autor na obra, este é
um dos referentes externos que compõem o contexto em que ela é produzida. O texto
prescinde, dessa forma, do autor, pois, no momento em que este o termina, já não
possui domínio sobre ele. Citando Benvenieste, ele define a presença ou não de
‘alguém’ no texto de acordo com o gênero em questão:

No discurso, alguém fala, e sua situação no ato mesmo de falar é o foco


das significações mais importantes; na narrativa, como o diz Benveniste
com força, ninguém fala, no sentido de que em nenhum momento temos
de nos perguntar quem fala (onde e quando, etc.) para receber
integralmente a significação do texto. (Genette: 1976, p.270)

Em Dicke pesa o fato de que, ao se medirem quantitativamente os gêneros


discurso e narração nos seus romances, o primeiro supera em muito o segundo,
estando ele a cargo do narrador ou do personagem. Nesse sentido, já que predomina o
discurso, a presença de “alguém”, para usar as palavras de Genette, é pressentida e,
para Booth e Miguel, esse alguém é sempre o autor:

Na retórica de Madona dos Páramos, nenhum fato chega ao leitor sem


mediação. Dicke, na composição de sua narrativa, conduz o narrador
que, no exercício da onisciência, vai, gradativamente, sendo
dramatizado, tornando-se personagem e, vice-versa, o personagem
tornando-se narrador na terceira pessoa. (Miguel, 2001: 32)

68
Cf. Sallenave: sd, p.31.
A idéia de que há um autor por trás do texto, ou de que existe a possibilidade de
o autor marcar, de uma maneira ou de outra, sua presença no texto69, é produto de uma
corrente de pensamento que tem como fundamento a linguagem como expressão do
pensamento. Roland Barthes, estruturalista assim como Genette, associa a idéia de
autor a uma perspectiva racionalista/positivista, cuja ênfase recai no indivíduo. O autor
também é uma criação, surgida num determinado contexto social:

O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa


sociedade, na medida em que, ao terminar a Idade Média, com o
empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela
descobriu o prestígio pessoal do indivíduo, ou como se diz mais
nobremente, da pessoa humana . É pois, lógico que, em matéria de
literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia
capitalista, a conceder a maior importância à pessoa do autor. (Barthes,
1984: 49)

Barthes faz uma crítica à importância dada à noção de autor exterior ao texto,
enquanto pessoa, enquanto indivíduo. Como estruturalista, ele dá mais ênfase à
linguagem em si do que a um sujeito externo a ela. Na verdade, o sujeito para Barthes
está situado dentro da própria linguagem, como categoria da enunciação, discriminada
no discurso e não na realidade, ou melhor, a realidade do sujeito é uma realidade
lingüística:

Lingüisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que


escreve, tal como eu não é senão aquele que diz eu: a linguagem
conhece um sujeito , não uma pessoa , e esse sujeito, vazio fora da
própria enunciação que o define, basta para fazer suportar a
linguagem, quer dizer, para a esgotar. (Barthes, 1984: 51)

Barthes, no entanto, não elimina simplesmente o autor da narrativa. Ele elimina a


instância produtiva que se situa fora dela e que influencia a sua recepção. Uma
perspectiva que leva em conta a presença do autor na narrativa, orienta a leitura para a
descoberta desse autor, para sua decifração, para uma interpretação fechada e

69
E boa parte da crítica acerca do foco narrativo, compreendendo principalmente as linhas inglesa e
francesa, trabalha nessa perspectiva. Jean Pouillon (sd), com as visões narrativas, também se enquadra
nesse mesmo psicologismo, que consiste na representação da mente do autor ou do personagem. Nessa
perspectiva, o narrador onisciente sempre será uma representação do pensamento do autor, da figura
que ele mentalmente elabora para criar suas histórias.
acabada. Barthes vai, então, substituir o autor por uma outra instância que denomina de
scriptor, que seria um sujeito presente na enunciação, que se constitui no momento
mesmo do acontecimento do discurso:

o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de
modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua
escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o
predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o
texto é escrito eternamente aqui e agora. (Barthes, 1984: 51)

Barthes, através de sua percepção do autor como pessoa, esclarece certos


‘equívocos’ das teorias do ponto de vista que conhecia até então, associando a fonte da
narrativa à essa noção positivista que contamina a percepção da categoria do narrador
pela pessoa do autor:

ver no narrador e nos personagens pessoas reais, vivas (é conhecida a


indefectível potência desse mito literário), como se a narrativa se
determinasse originalmente em seu nível referencial... (Barthes, 1976:
48)

O teórico quer esclarecer, para efeito da análise estrutural, o que pertence e o


que não pertence à linguagem, o que compete ao lingüístico e ao não-lingüístico:

Ora, ao menos em nosso ponto de vista, narrador e personagens são


essencialmente seres de papel ; o autor (material) de uma narrativa não
se pode confundir em nada com o narrador desta narrativa; os signos do
narrador são imanentes à narrativa, e por conseguinte perfeitamente
acessíveis a uma análise semiológica; mas para decidir que o próprio
autor (que se mostre, se esconda ou se apague) disponha de signos
com os quais salpicaria sua obra, é necessário supor entre a pessoa e
sua linguagem uma relação signalética que faz do autor um sujeito pleno
e da narrativa a expressão instrumental desta plenitude: a isto a análise
estrutural não se pode resolver: quem fala (na narrativa) não é quem
escreve (na vida) e quem escreve não é quem é. (Barthes, 1976: 48)

O estruturalismo defende a conscientização de que, apesar de tudo, a narrativa,


principalmente na forma de texto escrito, está separada, como linguagem que emana
de uma fonte. O que se encarna no papel (e a presença da escrita é fundamental nesse
processo) não pertence mais ao ‘emissor inicial’. Essa separação é fundamento para a
elaboração das categorias da análise estrutural, que pretende, ao descrever a língua
como sistema e o texto como parte dela, identificar a função de suas partes. O narrador,
neste caso, é uma delas, e o autor é exterior ao seu funcionamento. Idéia semelhante
nos dá Dal Farra em seu texto O narrador ensimesmado, cujo intuito, dentre outros, é
provar a existência do autor implícito, teoria de Booth, referindo-se praticamente ao
mesmo momento da história da teoria do ponto de vista, o momento de James e
Lubbock:

Todo o mal-entendido nascia da convicção de que, no romance, a voz


que detém a narração seria a do autor a do poeta objetivo que
subscreve os originais. Mas a voz, a emissão através da qual o universo
emerge, se desprende de uma garganta de papel, recorte de uma das
possíveis manifestações do autor. Como narração, ela emana de um ser
criado pelo autor que, dentre a galeria das suas posturas as
personagens elegeu-a como narrador. Máscara criada pelo demiurgo,
o narrador é um ser ficcional que ascendeu à boca do palco para proferir
a emissão, para se tornar o agente imediato da voz primeira. (Dal Farra,
1978:19)

Há, aqui, uma aproximação aparente entre as idéias de Barthes e as de Booth.


Segundo a interpretação de Dal Farra: em ambos, o termo ‘autor’ se refere ao
ficcionista. O ‘autor’ de Barthes está fora da narrativa, assim como o ‘autor’ de Booth. A
diferença entre os dois está relacionada, basicamente, à interferência ou não desse
autor na obra. Booth opta pela interferência, através da categoria do autor-implícito, e
Barthes não. Neste caso, a crítica que Barthes faz à teoria do século XIX, que supõe
que no texto haja um referente (psicológico) identificador do escritor, se aplica também
a Booth. A corrente estruturalista dos estudos literários estabelece essa diferença, essa
independência entre uma pessoa externa e uma categoria interna ao texto. Esse
contraponto de opiniões acerca da relação entre autor e obra e, mais especificamente,
entre autor e narrador (a dúvida se este é ou não a representação do autor), pode
explicar, por exemplo, a confusão que alguns autores demonstram ao usar as duas
categorias de maneira indiferenciada, para designar o mesmo referente, textual ou
extratextual.70

70
Leia-se, por exemplo, textos como os de Lígia Chiappini (2002) e Fraçoise Guyon (sd.) que,
percorrendo a discussão acerca do foco narrativo na literatura ocidental, em vários momentos usam
indiferenciadamente as categorias autor e narrador para designar a mesma coisa.
Bakhtin (1992 e 1997) elabora uma teoria que abre outras possibilidades de
olhar a questão do foco narrativo. Ele não trabalha com essa relação entre autor e
narrador, abordando o texto literário a partir da relação entre autor e herói. Nesse caso,
o narrador se configura, diretamente, ou como voz do autor ou como voz do
personagem. O narrador é uma instância discursiva assumida de acordo com as
necessidades do romancista71. Essa maneira de ver o processo narrativo não coincide,
como poderia parecer, com a teoria do autor implícito, pois no caso de Bakhtin, o autor
não consegue captar a plena consciência de mundo do herói. A noção de autor implícito
marca a predominância de uma só voz camuflada, metamorfoseada em outras,
estabelecendo o que Bakhtin chama de monologismo. Para o teórico russo, isso
caracteriza apenas um certo tipo de produção, que ele chama de monológica e que
representa uma estética e uma filosofia específicas, que são o idealismo e o
positivismo:

Os princípios do monologismo ideológico encontraram na filosofia


idealista a expressão mais nítida e teoricamente precisa. O princípio
monístico, isto é, a afirmação da unidade do ser, transforma-se, na
filosofia idealista, em princípio da unidade da consciência. (Bakhtin,
1997: 79)

A relação entre autor e herói se dá de maneira com que um não possa captar
plenamente a completude, a totalidade do outro, de sua consciência. Essa totalidade só
consegue ser estabelecida pela atividade estética, que consiste em visualizar o outro
lhe dando um pano de fundo, uma moldura que permita criar uma completude estética
exterior, mas que não corresponderá nunca à totalidade do ser e não compreenderá
totalmente a visão e a consciência desse outro. O que o positivismo fez foi reduzir, pelo
olhar monocular, pelo discurso monológico, “definitivamente a um denominador comum
o eu e o outro...” (Bakhtin, 1992: 76)
Essa distância, que na literatura se configura na distância entre autor e herói,
caracteriza o que Bakhtin (1992, p.34) denomina de exotopia. Obviamente, as idéias de
Bakhtin estão impregnadas do socialismo (do marxismo) que caracteriza a linguagem

71
Para Cristóvão Tezza, o narrador em Bakhtin consiste no ponto de vista gramatical que estabelece a
narrativa e pode, portanto, ser assumido por qualquer uma das duas categorias passíveis de assumirem
a voz narrativa, autor ou narrador. Cf. Tezza, 2003: 206.
não como expressão do ser, mas como um produto das interações humanas, como
espaço para interação social. Dessa forma, sua análise não coincide com a
estruturalista de Barthes, pois esta está calcada na separação sistemática entre língua
e indivíduo, e, por outro lado, também se torna incompatível com a idealista monológica
de Booth. Apesar disso, consegue mostrar, como Barthes, que a teoria que procura
discutir a presença ou não do autor na obra é específica de um determinado contexto
sócio-histórico, que não limita outras possibilidades de interpretação do fato literário.
A presença do autor para Bakhtin é ponto passivo, com a diferença de que esse
autor não tem pleno conhecimento do seu herói, estabelecendo com ele uma relação
de diálogo, dialógica e não monológica, e com a diferença de que este também não é
um autor real. Segundo Faraco, Bakhtin diferencia o autor criador do autor real, em que
o primeiro é uma instância do discurso estético que o segundo pode ocupar:

Ele é entendido fundamentalmente como uma posição estético-formal


cuja característica básica está em materializar uma certa relação
axiológica com o herói e seu mundo. (Faraco: 2005, P.38)72

Dessa forma, ele destaca dois tipos de produção, a monológica e a dialógica,


cuja diferença exemplifica na maneira de narrar de dois autores:

Liéskov recorria ao narrador em função do discurso social de um outro e


da mundividência social de um outro, e, já pela segunda vez, em função
do skaz verbal (tendo em vista que estava interessado no discurso
popular). Já Turguiêniev fazia o contrário; procurava no narrador
precisamente uma forma verbal de narrativa, porém em função da
expressão direta de suas idéias. É-lhe de fato inerente a orientação
centrada no discurso falado e não no discurso de um outro. (Bakhtin,
1997: 192-3)

A teoria do autor implícito, de Booth, bem como a de Lubbock, Pouillon e outros,


que busca identificar e justificar a presença ou ausência do autor na obra, tendo como
referência a autoconsciência, o psicologismo do autor, se aproxima muito dessa
segunda maneira de organizar o discurso.

72
Cf. ainda Bakhtin, 1997: 184.
Ao que parece, nenhuma dessas correntes em particular - a idealista, a
estruturalista e a marxista – servem isoladamente para entender a narrativa de Dicke.
Os romances, por momentos, se alternam entre estas três maneiras (e outras) de
narrar. Por vezes, os textos apresentam caráter monológico e, em outras, um caráter
dialógico. Essas alterações se dão, no caso de Dicke, com as alterações do foco
narrativo pela mudança das pessoas e tempos verbais durante a narrativa.
Na tentativa de identificar qual é a voz do narrador e qual é a do personagem,
observa-se, como já foi dito, a predominância de uma indiferenciação lingüística entre
ambos. Ela é cada vez mais predominante a cada romance do escritor. Ao observar a
relação entre os tempos verbais e os dêiticos utilizados, como referência para a
diferenciação, ver-se-á que é possível esboçar uma separação que, no entanto, pela
maneira como o fato acontece, é fugaz, efêmera. As pessoas verbais, ao se alterarem
num mesmo parágrafo e, por vezes, num mesmo período, instauram uma dúvida não
sobre a personagem, pois ela, afinal, deterá a voz em primeira pessoa, mas sobre o
narrador. A partir do momento em que a voz da personagem (ou o que seria a voz da
personagem) irrompe no texto, tudo o que ficou para trás fica sob suspeita, seja
narração ou discurso. Em alguns momentos a diferença é um pouco mais evidente
porque os personagens são tratados em terceira pessoa, nomeados, para, em seguida,
falarem, como é o caso de alguns exemplos já citados. Para Bakhtin:

Do ponto de vista da lingüística pura, entre o uso monológico e


polifônico do discurso na literatura de ficção não se devem ver quaisquer
diferenças realmente essenciais. Por exemplo, no romance polifônico de
Dostoievski há bem menos diferenciação lingüística ou seja, diversos
estilos de linguagem, dialetos territoriais e sociais, jargões profissionais
etc. do que em muitos escritores de obras centradas no monólogo...
(Bakhtin, 1997: 182)

A indiferenciação lingüística, no caso de Dicke, é acompanhada, por vezes, por


uma indiferenciação referencial, em que não se sabe ou, às vezes, se tem dúvida sobre
quem está narrando. 73 Segundo a teoria do autor implícito, essa indiferenciação
indicaria a presença de uma consciência onisciente, a do autor, percorrendo toda a

73
Essa dúvida é um dos temas centrais do romance Cerimônias do Esquecimento, que será tratado
adiante.
obra. Segundo Bakhtin, ela pode ser entendida como polifonia do discurso, em que,
mesmo havendo recorrências de idéias, palavras, estilos, as consciências do autor e do
personagem não formam uma consciência única e indivisa (como no caso do autor
implícito).
Angel Rama, ao realizar a análise de Los Rios Profundos, de Arguédas, marca o
distanciamento entre autor e personagem, que assumem cada qual o papel de narrador
a seu tempo, com uma função e características específicas. Esse distanciamento, no
texto, se dá através dos tempos verbais que cada um usa em sua fala, bem como a
postura – de etnólogo de um (Arguédas) e de narrador popular de outro (Ernesto) – que
cada um assume, trazendo elementos da cultura popular quéchua e de uma cultura
erudita. Apesar de usar referências como Benvenieste e Weinrich, a definição da
distância entre autor e personagem é muito semelhante à definição de dialogismo e
exotopia de Bakhtin:

La ficta independência del personaje Ernesto repecto al autor, repercute


em el narrador adulto, sobre cuyas circunstancias, vida, constumbres,
educación, Arguédas gurarda estricto silencio. (Rama,1982: 276)

Por outro lado, se em Arguédas há essa diferenciação bem marcada, não é o


que vai acontecer em outros autores e romances abordados pelo viés da
transculturação. Em alguns textos, há uma aproximação entre a linguagem do narrador
e a dos personagens, como acontece em Dicke. Rama aponta as seguintes
características, para os autores da transculturação:

Reduzem sensivelmente o campo dos dialetismos e dos termos


estritamente americanos, desentendendo a fonografia da fala popular,
compensando-o com uma confiante utilização da fala americana própria
do escritor... E além disso se encurta a distância entre a língua do
narrador-escritor e a dos personagens, na crença de que o uso dessa
dualidade lingüística rompe o critério de unidade artística da obra. (apud
Aguiar & Vasconcelos, 2001: 267)
Essa reaproximação, o procedimento estético desses autores, vem estabelecer
um contraponto com a estética herdada da burguesia européia pelo regionalismo
tradicional que:

Funcionava, em relação à matéria distante que elaborava, a mesma


distância que a língua culta do narrador mantinha em relação à língua
popular do personagem... Ao se recusar o discurso lógico-racional,
produz-se novamente o retorno do regionalismo a suas fontes locais,
alimentadoras, e inicia-se o exame das formas dessa cultura segundo
seus praticantes tradicionais. (Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001:
277)

O afastamento entre o autor e sua produção é uma característica européia


novecentista, lógico-racionalista, cujo fundamento é a observação indiferente e
imparcial da realidade. O que o romancista faz não é um tratado da linguagem local,
como fazem, por exemplo, os românticos no Brasil, forrando suas páginas de glossários
e explicações. A língua não é colocada como objeto observável, mas como material
literário pelo qual se produz a arte.
Dicke reforça essa aproximação em seus romances através da indiferenciação
do próprio foco narrativo, cuja instabilidade entre primeira e terceira pessoas gera uma
confusão sobre as individualidades da obra (inclusive as do narrador), sobre quem
narra ou fala em determinado momento do texto. No momento em que se supera a
relação lógico-racional de distanciamento entre autor e personagem, abre-se espaço ao
mito como forma de apreensão da realidade. Como fruto dessa superação, certas
inverossimilhanças se anulam, principalmente acerca da sabedoria que certas
personagens, sendo estereótipos da marginalidade e da ignorância, demonstram ter. A
língua nos romances, semelhante para o autor e as personagens, é uma reelaboração
que leva em conta a relação mítica com o elemento local, em que pesam uma mistura
entre língua culta (do escritor) e popular (local) e a experiência do próprio escritor, como
indivíduo que também vive a fronteira entre essas duas cosmovisões. Dicke se
enquadra no tipo de intelectual, já filho de culturas distintas (pai alemão e mãe cafuza),
que, vivenciando a experiência local na sua cosmovisão (mítica, tradicional), se forma
nos grandes centros universalistas, modernizadores, de outra cosmovisão (lógico-
racionalista). Essa situação limítrofe se reflete no texto de um escritor de
transculturação.74
Pensando na relação autor/personagem, portanto, pôde-se perceber que as
palavras de Bakhtin e Barthes concordam no seguinte aspecto: a noção de autor como
uma personalidade externa à obra é produto do pensamento lógico-positivista europeu
do século XIX. O autor, nesta perspectiva, é uma entidade individualizada, separada da
obra, gerada pela necessidade de objetivação do ‘eu’ do pensamento lógico-
racionalista. Esse distanciamento, tanto em relação ao ‘eu’ quanto do autor em relação
à obra (ao narrador e às personagens) é minado pela produção literária de muitos
autores. No caso da narrativa latino-americana, essa ‘proximidade conquistada’ entre o
escritor e seu texto, elaborada esteticamente, coloca-o como parte de um sistema social
e literário, com sua função social e política, que não pode e não consegue se distanciar
das palavras do texto porque são as suas mesmas e refletem a estrutura social
conflituosa que ele vivencia. Daí o fato de que, na narrativa latino-americana de
transculturação, o aspecto biográfico tem caráter natural, necessário à própria estrutura
dos textos.
Nesse ponto, a experiência do escritor na América Latina se contrapõe às
opções destacadas acima, instituindo uma oposição entre América (local) e Europa
(universal), não sendo passível uma aplicação plena daquelas teorias: não pode ser
interpretada pela teoria estruturalista, que vê a obra em si mesma sem a referência do
autor; nem pela diferença que Bakhtin estabelece entre autor real e autor criador, que
também se relativiza, pois a criação de transculturação estaria diretamente vinculada à
experiência pessoal, testemunhal, do escritor; nem pela teoria do autor implícito
também, pois ela também estabelece um espaço entre autor real e autor implícito. No
seguinte trecho de Madona dos Páramos, por exemplo, Miguel abandona a teoria do
autor implícito, pois estabelece, numa leitura biográfica, uma relação direta entre autor
(Dicke) e personagem (Melanio Cajabi):

Melanio Cajabi personifica a voz do autor na ficção de Dicke; foi


escolhido para ser reflexo imaginário do autor na obra, na escritura

74
Rama lembra a migração dos intelectuais do interior para as metrópoles. (Aguiar & Vasconcelos,
2001: 263).
literária, inclusive na manifestação das reflexões metalingüísticas.
(Miguel, 2001: 40)

Hilda Gomes Magalhães, sobre o romance Último Horizonte, também aponta


uma relação direta entre o escritor e o personagem:

Uma das características mais singulares de Guilherme Dicke é, sem


dúvida, a sua capacidade de entabular, numa linguagem densa e em
tramas fortes, temas caríssimos à literatura... É o que nos informa o
personagem-autor de Último Horizonte. (Magalhães, 2001: 7)

As proposições de Magalhães e Miguel para os romances em questão se


referem ao fato de que o narrador se denuncia explicitamente como narrador e traz
referências incontestáveis da biografia de Ricardo Guilherme Dicke, marcadas em
alguns personagens, como o professor de filosofia formado no Rio de Janeiro e
demitido da universidade em que lecionava – que aparece explicitamente nos romances
Último Horizonte, Cerimônias do Esquecimento e O Salário dos poetas, e veladamente
nas personagens Melânio Cajabi, em Madona dos Páramos, e no Grego de Deus de
Caim. As referências dizem respeito aos pais dos personagens (exceto do Grego de
Deus de Caim) e muitas outras informações que são dados da vida do romancista. Em
Madona dos Páramos, tem-se:

A casa de pedras, o sitio do meu pai, lá na Raizama, perto de Chapada


dos Guimarães... (Dicke, 1982: 388)
O grande cavaleiro alemão, cortês e metafísico e maçon de todos os
respeitos... bem casado com sua mulher cafuza descendente de índios e
negros cuiabanos, os sangues perdidos desde os ancestrais dos
ancestrais dessa grande árvore genealógica... (Dicke, 1982: 391)
música que eu me lembro, música da alegria, quando eu freqüentava um
certo bar na cidade, quando voltei do Rio de Janeiro depois de me
formar... (Dicke, 1982: 394)

Em O salário dos poetas:

patas que bruacam na tempestade das telhas de barro ainda dos


tempos da infância dos bisavós vindos dos sertões da Chapada dos
Guimarães... (Dicke, 2000: 46)
Eu, ex-professor de Filosofia despedido da famosa Universidade
Selvática, centro propagador de Cultura (dizem), infiltrado pelo mais
baixo clero do mundo e pelo mais ultrajante militarismo, menestrel das
causas da sagrada Poesia: eu: uma idéia madura em mim, maior que as
próprias idéias: o sonho divino Sonho cuja transmutação metamorfoseia
as feiúras do mundo no outro alquímico dos mistérios que correm da
água viva da fonte da Filosofia Perene... (Dicke, 2000: 182)

A interpretação ‘testemunhal’, biográfica, de Dicke (e, possivelmente, da


narrativa latino-americana de transculturação) nivela as abstrações elaboradas pelo
pensamento lógico-racional europeu: o scriptor barthesiano; o autor implícito, de Booth;
e o autor criador de Bakhtin; como categorias não plenamente compatíveis com o tipo
de relação estética estabelecida entre o escritor e sua obra. A cosmovisão mítica não
compreende o distanciamento entre o artista e sua arte, não abstrai essa relação,
gerando um personagem, uma instância discursiva. O autor de transculturação deve ser
observado da perspectiva a partir da qual escreve, buscando-se o que for possível para
garantir sua interpretação e entendimento,75 cruzando a informação universalista com o
ponto de vista local, em termos específicos, as maneiras mítica e lógica de narrar, com
predominância estrutural da primeira.76

75
Como sugere Antonio Candido em seu prefácio para Literatura e Sociedade.
76
Mesmo o marxismo, no caso de Arguédas, é tomado como crença: “El socialismo no fue para él
simplemente una teoría ni un método, sino preferencialmente una creencia sostenida sobre una
explicación persuasiva del funcionamiento de la sociedad... El socialismo, por lo tanto, funcionó como un
mecanismo eficaz para religar los dos hemisferios culturales en que se movió Arguédas. Gracias a él
podía encontrarse una comunicación entre los hombres que seguían viviendo dentro del hemisferio
occidental y los hombres que seguían viviendo dentro del hemisferio tradicional pero en una situación de
atroz sometimiento.” (Rama, 1982: 299)
10 CERIMÔNIAS DO ESQUECIMENTO

Cerimônias do Esquecimento é, para efeito desta análise, o mais representativo


dos romances de Dicke nos processos acima mencionados. Nele, as relações entre
cidade e interior, entre cultura universalizante e tradicional, são fatores fundamentais e
têm como aspecto mais relevante o foco narrativo. A questão do narrador, de quem
narra a história, é a todo instante colocada. Há uma busca pela fonte da narrativa, pela
voz responsável por ela.
A estrutura do romance é composta de três linhas narrativas que dialogam a todo
o instante no decorrer do livro. Essas linhas são marcadas por índices gráficos. Uma
delas é marcada por parêntesis, outra por aspas e outra não possui marcação. Elas não
aparecem em seqüência no texto, como três partes distintas que se sucedem, mas se
desenvolvem paralelamente, simultaneamente, inclusive porque se autoreferem o
tempo inteiro no romance e se complementam na construção da interpretação, no
sentido de que, às vezes, a informação que falta em uma é dada em outra.
Dessas linhas, duas (a entre parêntesis e a sem marcas) têm como espaço o bar
Portal do Céu, um bar do Coxipó da Ponte, bairro que se situa nos limites entre Cuiabá
e o sertão mato-grossense. A narrativa tem o intervalo de uma noite (que não finda no
romance) em que algumas pessoas se reúnem ali para participar de uma cerimônia de
passagem entre duas eras da humanidade: de uma de decadência e morte para uma
de esperança e paz. No bar, as personagens se entorpecem com cerveja, que funciona
como veiculador de um transe que as leva para um tempo imemorial, em que se
recordam de vidas passadas e se reconhecem como participantes do ritual chamado
Noite da Predestinação, que irá marcar aquela mudança de eras. O ritual se dá na casa
de uma das personagens.
A terceira linha reconta a história do rei Saul, suas conseqüências e sua trajetória
até chegar também àquele bar. Nessa linha, a personagem também se recorda de
tempos passados e de sua missão em relação ao ritual. Este consiste na união sexual
de um casal, já prenunciada no início, quando se fala de uma festa de casamento
ocorrida no dia anterior.
A primeira linha narrativa (entre parêntesis) é centrada na visão de uma
personagem, Frutuoso Celidônio, um professor de Filosofia despedido da Universidade,
que supostamente ouve uma história contada por um outro personagem, um velho, pai
da noiva de um casamento do dia anterior, chamado Anelinho Abbas. A história
contada por esse velho, e que se passa na segunda linha narrativa, entre aspas, é a
história do personagem bíblico Saul, cuja trajetória atravessa o tempo em encarnações
das quais a última coincide com o tempo dos outros personagens. A segunda é a
narrativa que dá conta das seqüências dos fatos que antecedem e sucedem ao ritual da
Noite da Predestinação. Ela apresenta um grau de linearidade e objetividade maior que
as outras duas. Esta última, junto com a primeira, compõe a narrativa do ritual, de
pontos de vista distintos. A segunda conta a trajetória de Saul.
A narrativa entre parêntesis é uma espécie de ponto de amarração entre as três
linhas, pois, ao mesmo tempo em que reflete sobre os fatos narrados pela narrativa
sem marcas, também o faz acerca da narrativa entre aspas. Ela funciona esclarecendo
ou obscurecendo as informações dadas nas outras linhas. As três narrativas se cruzam,
ao final, quando Saul, personagem da narrativa entre aspas, se torna também
integrante da cerimônia, relatada nas outras duas, em especial pela narrativa sem
marcas.
Um dos problemas colocados desde o início pelo romance é a respeito do
narrador da história de Saul. Problema que, na verdade, vai se estender para as outras
narrativas, já que as histórias se fundem no final. Essa questão constitui todo o jogo
que o romance faz com o foco narrativo e será tratada aqui à luz do exame do uso das
pessoas verbais, como já foi feito anteriormente com os outros romances, e dos
processos de transculturação envolvidos na escrita desse livro.
Os personagens do romance são: João Valadar, um ferreiro; João Ferragem, um
rabequeiro andarilho; João Bergantim, um louco evadido do hospício; João Quatruz, o
dono do bar Portal do Céu; Isabel, a esposa do dono do bar; Rosaura do Espírito Santo,
uma prostituta; Frutuoso Celidônio, um professor demitido da faculdade; Manuel das
Velhas e Manuel dos Velhos, dois índios cegos violeiros; Johannes von Lippe und
Holstein, um príncipe; um Catrumano; rei Saul e Anelinho Abbas, o velho pai da noiva.
Ao longo do romance, algumas identidades vão se confundindo, tanto pela sua
caracterização, quanto pela história contada acerca deles e pela maneira como o foco
narrativo se apresenta.
10.1 Tradição e modernização em Cerimônias do Esquecimento

Em Cerimônias do Esquecimento, o espaço escolhido para o romance é o


intermédio entre Cuiabá e o sertão de Mato Grosso, não é inteiramente nem um, nem o
outro. O sertão aparece, no romance, como identificador da tradição, da pureza perdida
quando a civilização, representada pelo capital que chega das metrópoles nacionais,
com seu caráter progressista e modernizador, transforma os costumes e os valores da
cultura tradicional. Nesse espaço há tanto elementos representantes do interior quanto
da cidade. Alguns deles são, ainda, elementos dos dois espaços concomitantemente,
acentuando mais o caráter de diversidade e hibridismo. O autor define essa fronteira
em que a história acontece:

Aqui são os chamados limites da cidade...(Dicke,1995: 35)

Diferentemente dos outros romances, o espaço aqui é a fronteira. Nos outros, o


espaço será sempre o interior, que entra em contato com a cultura modernizada através
de determinados elementos (a caieira Esperança em Caieira, a fazenda Batovi em
Madona dos Páramos, o coronel e a comitiva de artistas em O salário dos poetas). No
caso de Deus de Caim, os dois elementos aparecem separadamente e o contato entre
eles se dá pelo deslocamento das personagens, pelo parentesco entre elas ou por
eventos sociais que geram a migração, em geral, do interior para a cidade. Em
Cerimônias do Esquecimento, sertão e cidade não estão separados, unidos pela
constituição dos personagens ou pela presença de elementos de um, no outro: o
espaço, os elementos estão na própria fronteira. Tudo o que se diz é dito a partir dela e
não de um ou outro espaço.
Durante todo o texto, reproduzem-se as relações entre esses dois universos,
representantes da cultura tradicional e da modernizadora, retratando a expansão
urbana universalista que avança para o interior rural. A diferença é que, nessa
reprodução o autor focaliza sempre os elementos negativos do modo de vida urbano,
assim como também já foi visto nos outros romances, demonstrando revolta contra as
injustiças provocadas por essa cultura:

O monstro da civilização que devora o que não devia ser devorado é o


que produz as vertigens nebulosas do sono do esquecimento. O sertão
é recordação ao vivo... (Dicke,1995:.109)
Ah, isso de Tirésias e de Homero são coisas da Grécia e nós não
estamos na Grécia e sim na divisória entre sertão e cidade desta
perdida e medíocre civilização que perdeu a Filosofia e a Religião,
civilização dessacralizada e moribunda, que antes de morrer de uma vez
por todas vai morrendo devagar, se entornando para a morte e para o
fim... (Dicke,1995:121)

Essa expansão é marcada, como já se viu, pelas rodovias, pelo asfalto,


associados no romance a uma ‘serpente negra’ (p.65), representante do progresso que
traz morte e decadência. Em Cerimônias do Esquecimento, a história se desenrola à
beira de uma rodovia, onde se situa o bar Portal do Céu, e o texto, a todo o momento,
refere-se a ela e aos caminhões que passam levando as riquezas do local, deixando
cães e gatos esmagados pelo caminho:

Daqui quase não se ouvem os caminhões que passam carregados de


artigos que vão desde toneladas de pacus secos até madeira em toras
imensas, da nossa terra rumo a São Paulo e ao Rio de Janeiro, rumo ao
lucro, com pressa enorme e ruidosa, deixando cães e gatos esmagados,
que se desfazem pelas estradas... (Dicke,1995: 51)

Na perspectiva da perda do espaço sertanejo, não corrompido pela civilização


urbana, apela-se para uma abstração que, no fim, tenta associar o sertão não a um
espaço, mas a uma maneira de ser, que pode existir em qualquer lugar, em qualquer
momento. O sertão constitui um aspecto da cosmovisão local, se torna uma maneira de
resistir à invasão urbana que só gera tragédias e desarticulações:

Restam poucos lugares para quem ama a paz para onde se fugir: coisas
estranhas e monstruosas estão continuamente invadindo o coração do
mundo, devorando as cidades, apertando os lugares. O mundo está
ficando cada vez mais pequeno. Só sobra o espaço do coração. Lá é o
sertão. (Dicke,1995: 107)
Nesse aspecto, novamente, surge a marca da transculturação, quando, no
romance, Cuiabá aparece não como um elemento de apenas um dos lados culturais. A
cidade não aparece apenas como a cidade modernizadora, pois não é uma grande
metrópole como Rio ou São Paulo, mas também não é de todo sertão. É esse o espaço
que Rama define como espaço da transculturação, como espaço mais propício à
plasticidade cultural: a cidade do interior, que mediatiza as incitações modernizadoras
das grandes metrópoles. (Rama, 1982: 210) Cuiabá é o espaço de fronteira entre a
cultura modernizadora universalista, representada em Dicke pelas metrópoles nacionais
Rio e São Paulo, e a cultura tradicional rural, representada pelo interior rural de Mato
Grosso. A cidade aparece, no romance de Dicke, da seguinte maneira:

É o espírito do sertão que não quer abandonar esta cidade de igrejas


antigas. E o tempo não passa. Há uma gravitação de instantes perdidos,
uma imantação de agulhas de bússolas consumidas. Paz consumida
com tanta reza todo esse tempo sem memória. Profundo silêncio como
uma cidade do sertão que vai se tornando estranha cidade moderna.
(Dicke,1995:104)

Essa passagem testemunha a posição em que o autor situa Cuiabá. Se nos


outros romances, ela era a capital, vista de uma maneira distanciada pelo sertanejo,
cuja idéia era constituída por um imaginário composto de alguns indícios de civilização
modernizadora e que representava por si já a cultura modernizadora, aqui ela é o ponto
de onde se fala, de onde se enxerga a relação entre o tradicional local e o moderno
universalista77. Essa diferença de representatividade se dá pela diferença de ponto de
vista: em Cerimônias do Esquecimento se fala a partir de Cuiabá e não do interior, o
imaginário que este compõe daquela, não se aplica aqui sozinho.
O que fica da leitura é uma profunda aversão à civilização e ao progresso
tecnológico. Mesmo assim, a opção pelo sertão não implica necessariamente uma
postura resistente às inovações modernizadoras, o que afastaria o autor daquilo que
Rama define como narrativa de transculturação. O fato é que, por mais que haja um
discurso anticivilização, esse discurso é produzido com uma linguagem e a partir de um
ponto de vista que têm também a civilização e o progresso tecnológico, como

77
Em Último Horizonte, Cuiabá também é o espaço do romance. Neste, no entanto, realçam-se os
aspectos urbanos e não os de fronteira entre a cidade e o interior.
referências constituintes do pensamento e da cultura. Ele só é possível no interior do
universo cultural ocidental, cuja tendência é universalizante e não tradicional. O autor
de transculturação não é o sertanejo, mas o erudito que toma partido da cultura
tradicional. É o mesmo que Rama revela em Arguédas:

No constryó su obra para los indígenas, sino para los cuales busco
reinsertar, persuasivamente, un conjunto de valores tenidos por
inferiores o espurios... Para eso reinterpreta cada uno de sus actos
dentro de la estructura cultural propria, porque sólo em ella pueden ser
convalidados, relegando los defectos a la acción pervertidora de los
dominadores (terratenientes, gamonales, sacerdotes, autoridades) de
modo que asistimos al doble movimiento de justificación y exculpación
mediante la restauración de la inocencia dentro de la peculiar estructura
cultural... (Rama, 1982: 205)

O romancista, a partir dessa linguagem e dessa perspectiva, lança mão do


pensar mítico, nas crenças dos personagens, na percepção cíclica do tempo, em que
as épocas se substituem e se renovam, nas manifestações religiosas, na aplicação dos
elementos míticos a novas situações e novos contextos. Em Cerimônias do
Esquecimento, os elementos míticos são mais explícitos, não estão diluídos na
narrativa ou subvertidos em formas que requerem um desvendamento na leitura, uma
descoberta. Eles estão lá, como Baco e Dionísio, para atuar novamente, não na
sociedade em que funcionavam, e sim para, agora também mudados, transculturados,
influenciarem os homens de um outro momento.
Dicke, em sua obra, deixa em evidência a sua extensa história de leitura, em
especial o seu conhecimento religioso, que vai desde as religiões ocidentais, à Bíblia e
à mitologia grega, passando por seitas gnósticas. Ele tenta atravessá-las com um olhar
que vê, em todas, aspectos elementares como, por exemplo, a crença no sobrenatural
e o sexo. Seu texto é cortado de paralelismos, de analogias sugeridas, que aproximam
culturas que seriam totalmente diversas, criando um produto que, se de início seria
universalista, foi transformado a partir da perspectiva local, para ser aplicável a ela.
Esse efeito é gerado no momento em que ele cria uma zona intersticial, cujos
elementos fronteiriços, são seus próprios conhecimentos:
Um menino louro, de traços delicados, quase um homem, de formas
gentis, onde certamente mora o espírito do Senhor, músico e poeta,
segundo as palavras de Samuel o profeta enviado de longes terras pelo
Senhor. Ou será Merlin? Sim, ele e Merlin são a mesma coisa, ele o
espírito abençoado que me dita as palavras com que comporei o meu
outro livro (Dicke,1995:55)
era o sagrado pajé morubixaba mais antigo da nossa tribo, o homem
santo, aquele que dividia com Deus os seus segredos, Anhã-Anhagá...
(Dicke,1995: 61)
doce tabaco a filtrar-se no espírito, assentando-se como limo e
sedimento de paz nas camadas da alma, convidando-a a sonhar com o
impossível dos gozos sidéreos, onde se erguem os tronos, as
potestades e as dominações, os serafins e os querubins, os arcanjos,
formações de nuvens onde se assentam como em profundas poltronas
fofas, maravilhosamente macias e suaves Govinda e Brahma e Gopana
e Elohim e Tupan e Allah... (Dicke,1995: 101)

Esses trechos demonstram como o pensamento do autor é atravessado de


diversidades, como ele elabora um produto cultural que manipula as referências a favor
do efeito estético. Essa mistura é, notadamente, qualidade de um pensamento que não
funciona e não respeita limites fechados na interpretação cultural e reflete muito da
formação do escritor, bem como da transformação que ele provoca nas informações
assimiladas ao longo de sua trajetória:

pode-se comprovar que os produtos resultantes do contato cultural,


nesse plano narrativo, não podem se parecer com as criações da
modernização urbana, nem com o regionalismo ou com a narrativa
social, com os quais compartilhava certas raízes. O sucesso do
processo derivou, parcialmente, das elaborações culturais intermediárias
a que chegara a América Latina, ou seja, do acrioulamento das
mensagens artísticas européias e de sua hibridação ao longo de
extensos períodos.(Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 224)

A obra de Dicke reflete um pensamento que flui entre o regional e todos os seus
problemas, mais os conhecimentos adquiridos na chamada literatura universal, que
influenciam fatalmente sua produção. É considerada de transculturação porque só pode
ser produzida por quem vive e vê a partir de uma perspectiva de fronteira, de alguém
cuja formação não se limita ao suposto hermetismo de uma cultura local, mas também
não reproduz inteiramente as imposições de uma cultura universalizante.
Essa condição inexorável está marcada, em Cerimônias do Esquecimento, na
ascendência do narrador da linha narrativa sem marcas. Este, em primeira pessoa, num
determinado momento assume, por exemplo, a linhagem indígena em contrapartida à
ascendência branca que também possui. Ele também é, portanto, um mestiço, que traz
em seu sangue a experiência da morte. O narrador se dirige a si mesmo usando um ‘tu’:

Lá é a memória da casa onde morava e tua avó cujo sangue vem dos
índios dizimados e espoliados pela civilização dos massacres que a tudo
engole e devora e vai formando uma bola de lama fétida que vai
descendo a montanha. No sertão todos sabem sua genealogia. Como
na Bíblia, tão velha. Estes são os homizios da civilização dos homens do
outro lado. (Dicke,1995:108-9)

O problema, a partir daqui, é esclarecer que o processo narrativo neste romance


vincula essas características ao próprio Dicke ficcionista. A questão não se resume em
saber se o narrador representa o ficcionista ou não, pois essa é uma impossibilidade da
própria categoria do ‘narrador’. A questão é saber qual a maneira com que o romance
se relaciona com o contexto em que se insere e como a transculturação se dá a partir
do procedimento narrativo adotado nele. Para entender as relações acima, entre a
cultura tradicional e a universalizante, é preciso entender a questão elementar que está
na raiz mesma daquela dicotomia: a dicotomia entre o eu e o outro. Essa última
dicotomia é o cerne do entendimento da produção de cultura e identidade, pois ela
revela o nível essencial do conflito entre grupos distintos: o conflito entre o interior e o
exterior. Essa reflexão deve ser feita sem perder de vista que a dicotomia entre o eu e o
outro é, acima de tudo, uma categoria da linguagem e do pensamento da cultura
universalizante. Isso quer dizer que os romances de Dicke vão, de alguma maneira,
escapar à apreensão por essa categoria. Não é possível, portanto, dizer que o romance
é biográfico, ou que o narrador tem semelhanças com o autor, porque essas
conclusões só podem ser feitas a partir do pensamento dicotômico que separa, dentre
outras coisas, autor e narrador, narrador e personagem, ficção e realidade, eu e outro
etc.

10.2 Transculturação e foco narrativo em Cerimônias do Esquecimento

Salvatori D’Onofrio (1978, p.37) define as diversas variações da noção de foco


narrativo. Basicamente há uma relação dual, em que ele estabelece uma primeira
diferença “entre romances que apresentam ou fazem referência ao seu narrador e os
que simplesmente o pressupõe”. Embora ele aponte que esses últimos sejam romances
narrados em terceira pessoa, esta não é uma simples diferenciação entre focos
narrativos. Há uma segunda especificação, que diz respeito à onisciência desse
narrador, independentemente se de primeira ou de terceira pessoa. (D’Onofrio,1978:
37)
Quem lê o romance Cerimônias do Esquecimento, de Ricardo Guilherme Dicke,
percebe, logo de entrada, uma diferenciação. Na narrativa entre parêntesis, marcada
nas terminações verbais, está uma fala em que predomina, não a primeira nem a
terceira pessoa, que são as pessoas mais comuns de se encontrar em uma narrativa,
mas pela segunda, um “tu”. Claro que pode se pressupor, a partir desse “tu”, um “eu”
que fala. Comecemos a examinar os trechos do romance:

Vieram da igreja, foste o padrinho da noiva, eles eram meio parentes


teus, dizem, acharam que tu eras o homem certo, um professor da
universidade... (Dicke,1995: 9)
quase seria solitário, a ouvir a história que te contava o homem de olhos
enevoados: seria o pai da noiva? Ou talvez foste tu mesmo quem a
inventaste? Ou foi teu pai? (Dicke,1995:15)

O que se confirma ao longo do romance, neste caso, é que o ‘eu’ que fala, o
narrador dessa linha entre parêntesis, é Frutuoso Celidônio, o professor demitido da
universidade, que fala consigo mesmo utilizando um tu, a respeito de Anelinho Abbas, o
velho pai da noiva, designado pela terceira pessoa, que lhe conta a história de Saul78.
Esse procedimento é um tanto comum em narrativas, quando os personagens se
dirigem a si mesmos, à sua consciência. No entanto, em um dado momento dessa linha
narrativa, as personagens, representadas pelas referências ‘eu’ e ‘tu’, se alteram,
gerando uma dúvida acerca de quem fala e de quem ouve a história:

Quem me conta esta história, és tu, de olhos neblinantes, que olhas a


noite como quem vem cansado dela e do seu peso estrelado sobre os
ombros, peregrino entre as sombras como eu, viandante da noite,
escutando a tua história. Deves ser tu. Se não fosses tu, que seria?...

78
‘Pensas na figura de um velho que te vai contando a história de um homem que vestido de armadura
se prepara para uma viagem desconhecida.’ (Dicke,1995: 76)
Ou serei eu mesmo com esta cerveja enevoada?... Quem me conta essa
história? Só sua voz pesada e sincopada, entre copos de cerveja.... As
pessoas reunidas no pátio do fundo da casa do pai da noiva conversam.
(Dicke,1995: 58)

O leitor se habitua, na leitura, a identificar o ‘eu’ e o ‘tu’ como Frutuoso Celidônio


e o ‘ele’ como Anelinho Abbas. O que acontece, nesse caso, é que o ‘tu’ passa a
designar Anelinho Abbas subvertendo, portanto, a ordem de leitura instaurada
anteriormente. É ao pai da noiva que se atribuem os ‘olhos neblinantes’, desde o início
do texto. Nessa passagem, no entanto, o ‘tu’ pode continuar sendo Frutuoso Celidônio,
pois ele também se pergunta se quem conta a história é ele mesmo e não outro. O
velho pode ser, no contexto da noite e do bar, apenas uma miragem, uma imagem
elaborada de sua própria consciência para narrar a história. O romance, de maneira
geral, vai oscilar o foco narrativo entre um e outro procedimento: um procedimento mais
tradicional, em que as referências pessoais se mantêm mais regularmente; e outra em
que esse tipo de processo vai acontecer. Observe o seguinte trecho, que pertence à
narrativa entre aspas:
grandes tufos que pareciam enormes púbis de poderosas virgens, de
que tinha tanto orgulho: decerto que sou um patriarca, um profeta
daqueles tempos, senão não me chamariam de dom Saul... (Dicke,1995:
19)

Aqui um procedimento também comum: há uma narrativa em terceira pessoa e


uma fala introduzida por dois pontos. Apesar de não haver travessão, que seria próprio
à situação, a diferença entre as vozes está marcada. A linha narrativa entre aspas
ocorre, a princípio, dessa forma: em terceira pessoa; e as falas, em que aparece a
primeira pessoa, são instauradas ou por travessões ou dois pontos. Mais à frente, no
entanto, a linha se inicia sem marcas e em primeira pessoa:
Onde andará o pequeno Davi? Dizem que ele é meu filho, dizem que
fiz filhos em todas as fêmeas que moram nos meus domínios tão
vastos... (DICKE: 1995, p.23)

Levando-se em conta que a narrativa entre aspas se iniciou em terceira pessoa,


há duas possibilidades aqui: ou mudou-se o foco narrativo, ou a fala foi instaurada sem
nenhuma marca. Essa segunda opção também se confirmará durante o romance para
diversos outros personagens. Veja-se que, na mesma narrativa sem aspas, uma fala
em primeira pessoa irrompe sem marcas durante uma narrativa em terceira:

Tomou metade daquele imenso bule de café, um café saborosíssimo


feito pelas sábias mãos de Delagracia, que o fazia amar a terra e
reconciliar-se com ela, capaz de produzir frutos e filhos como aquele
café delicioso, negro, doce e quente. Uma planta certamente do Jardim
do Éden, onde corriam os quatro rios fabulosos. As paixões não são da
terra? de onde, então, pois, senão da terra negra, como a noite ardente,
filha da imensidão cósmica, com estas mesmas tripas que se enroscam
como sobras em cio dentro dos dédalos do meu profundo ventre,
profunda terra das paixões e dos excrementos...(DICKE: 1995, p.26)

Aqui a diferença entre narração e fala não é tão nítida, dando a impressão de
que o que muda é o foco narrativo optado pelo mesmo narrador. Considerando esse
fato como mudança de foco e não como instauração de uma fala de personagem, essa
dúvida vai percorrer todo o romance no interior das três linhas narrativas.
A seqüência narrativa sem marcas (ou seja, sem aspas nem parêntesis), por sua
vez, parece ser predominantemente de terceira pessoa. Nela não há dúvidas acerca do
narrador, pois as passagens em primeira pessoa são facilmente identificadas como
falas. A impressão que se tem é de que há um personagem central da narrativa,
denominado João Ferragem. Um novo elemento surge, sem denominação específica.
Esse outro, sendo o professor Celidônio, aparece designado pela terceira pessoa,
enquanto personagem, mas em primeira pessoa, enquanto narrador. Observe-se este
longo trecho:

Caminha para lá lentamente, que certamente João Ferragem, o homem,


estará cansado... Chega, olha as duas sombras que tocam naquela
solidão viva, olha-as nas caras onde dá luz e sombra das lâmpadas
mortas... olha o outro sozinho naquele canto que dá para a rua, é um
homem distinto, de barbicha, que bebe, com a cara baixa, cara de
sombra também, uma solidão comprida como um túnel, ele não espera,
senta-se numa cadeira ao lado deles perfazendo um quadrado, tira a
rabeca para encostar as costas na cadeira, põe-na de pé na sua caixa
junto à amurada descascada... fuma, olha os dois, olha o outro, ouve-os
que tocam, como que estas vozes apareceram ali de longe, de onde
estava, tão fortes, mas agora que estou aqui junto deles, parecem tão
fracas, sumidas, engolidas pela noite...(Dicke,1995: 36)
Esse “outro” aparece descrito mais adiante, a partir de suas características,
como o professor Frutuoso Celidônio, que é o narrador da narrativa entre parêntesis e
também dessa narrativa sem marcas. O que acontece então: o narrador, em primeira
pessoa, trata de si como um outro, em terceira pessoa, na mesma seqüência. Essa
alteração de pessoas verbais é acompanhada da alteração dos dêiticos de lugar: ali e
aqui. Esse procedimento também não é incomum na literatura, mas ele não se dá de
maneira tão volátil e não a ponto de se apresentar na mesma frase. Isso faz com que
se olhe para a linguagem e, principalmente, para a noção de indivíduo de uma maneira
diferente.
Na narrativa entre aspas há um trecho que traduz muito a incerteza quanto ao
narrador e quanto à própria diferenciação entre fala e narração. Vejamos os trechos a
seguir, que compõem uma seqüência:

Pega um rolo de manuscritos enrolados, em caracteres hebraicos:


- Quem foi Ibn Gabirol?...Todos os domingos ele (David) vem. O filho da
terra de Belém, e assenta aqui nesta cadeira de alto espaldar, tauxiada
de bronze e ferro em lavor da terra de Jerusalém, herança dos meus
ancestrais de alto poder entre os clãs, além dos mares e das terras, por
sobre as águas e por sobre os horizontes, vem David, o pastor, o
matador do gigante filisteu, e toca nessa harpa o que eu não sei nem
nunca aprenderei a tocar...( Dicke,1995: 54)

Na primeira frase o narrador está em terceira pessoa. O travessão, no entanto,


instaura uma fala que é narrativa, em primeira pessoa, cujo narrador, a princípio, é o rei
Saul. Depois de três falas marcadas com travessão, inicia-se novamente uma narração
sem marcas, tendo aparentemente o mesmo rei Saul como narrador, em primeira
pessoa, já que fala explicitamente de seu filho Jônatas, usando a primeira pessoa.
Convencionalmente falando, essa narrativa deveria dar seqüência àquela que se inicia
com a primeira frase do trecho anterior, em terceira pessoa, mas não o faz:

Ah, o amigo do meu filho Jônatas, aquele que cantará e dançará para o
Senhor diante do Arco da Aliança... como eu o odeio, ele vai se casar
com minha filha Micol... (Dicke,1995: 55)

Outra passagem, relativa a outros personagens, mostra a passagem sem marcas


entre pessoas verbais e pontos de vista. A importância dada aos pronomes aqui se
deve justamente ao fato de não haver outros sinais que possam ajudar a identificar as
categorias do romance. Vejamos o trecho a seguir, pertencente à narrativa sem marcas,
em que o foco passa de terceira para primeira pessoa sem marcação. O trecho é
referente a um dos cegos violeiros. Ele seria o próprio narrador de sua trajetória neste
ponto, mas ao invés de se iniciar a narração já em primeira pessoa, o procedimento
usado nas outras linhas narrativas se repete:

-Dormiu lá entre as vacas e os bois, no alto campo, quase junto à linha


do horizonte profundo, perto do circo e dos acampamentos dos ciganos
que armavam suas tendas sob as estrela e depois entoaram uma
canção muito bonita, com violões de cordas que pareciam de prata e
ouro, música que me ficou como que gravada na minha idéia...
(Dicke,1995: 58)

O ‘me’ indica o próprio cego. Aqui percebemos claramente a mudança de foco no


interior de uma frase. Há uma passagem, ainda na narrativa sem marcas, em que o
autor joga com o uso de dois ‘eus’ distintos numa espécie de diálogo. Um deles é o
interlocutor, tratado como ‘tu’, e o outro é o narrador, que aparentemente também está
em primeira pessoa:

Direis: chegar do sertão, mas onde é isso que eu não compreendi


direito? Ah, eu te digo, o sertão não se compreende, se sente...
(Dicke,1995: 107)

Não é difícil notar que o primeiro “eu” é o personagem que é tratado por “tu” na
narrativa, enquanto o outro “eu” é o próprio narrador. Há um outro momento ainda em
que o autor usa um recurso em que a fala do interlocutor está inserida na do narrador,
através de perguntas e respostas:

Tem que se aprender as lições, em particular. Se as estrelas sabem?


Só a lua ilumina nessas horas? Ah, as estrelas sempre brilharam... Se o
sol nasce sempre numa beleza imensa? O sol é como um pai, a lua é
como uma mãe...( Dicke,1995: 111)

Aqui a voz do interlocutor aparece citada na sua repetição na voz do narrador.


Num outro trecho da narrativa sem marcas, que se inicia na página 105, há uma
narração que tem como personagem João Ferragem. Sabe-se que essa narrativa está
em primeira pessoa, dados os trechos anteriores. Se na seqüência da leitura já se está
habituado a identificar o narrador como de primeira pessoa, o que pensar quando no
meio da narrativa encontramos a seguinte passagem:

Isso penso assim, porque eu sou de minhas teologias, não das


teologias calculistas dos homens do outro lado, sou homem que não
pensa duas vezes, uma errada e outra certa, não ponho duas tábuas
para alcançar, ponho uma tábua só para alcançar o que quero.
(Dicke,1995: 110)

Ao contrário do que parece, essa fala não é do narrador, mas é uma fala de João
Ferragem, que também foi inserida sem marcas dentro da narrativa que se inicia na
página 105. Essa mudança brusca de referentes causa uma desorientação significativa
na leitura, porque a cada inserção de fala e a cada mudança de foco, pode-se perder o
fio da meada. Na seqüência do trecho aparece, ainda, um interlocutor marcado pelo
pronome ‘vós’, que não é o mesmo indicado pelo pronome ‘tu’, usado para se dirigir
diretamente ao personagem João Ferragem. Provavelmente, o narrador se dirige aos
outros personagens, assim como faz Rosaura, a prostituta, em outro trecho da mesma
narrativa. Aqui, as marcas referentes aos personagens são claras, para cada um sendo
usada uma pessoa:

Deus: ele marca os homens, ele se conserva aqui, no cerne do sertão,


onde tudo é água fresca num pote no canto da sala humilde de
visitas...que vem vindo como Deus de repente vem andando de muito
longe em grandes passos como esses profetas do Velho Testamento...
que vem vindo dentro da Bíblia que se conserva dentro de nós para
sempre e se vós perguntais: de onde vindes, Senhor? Ele responderá
apenas: do sertão...
tão desconhecido como se fosse a primeira vez que o vemos e a última
que o encontramos, suas sandálias rasgadas, um cansaço que lhe
dobra a espinha, uma fadiga que lhe recurva os ombros, os olhos que te
olham sem dizer nada, apenas procurando em ti as marcas com que
nascestes... (Dicke,1995: 111)

Aqui há o locutor falando de João Ferragem (usando ‘ele’, ‘o’ e ‘lhe’) e se


dirigindo a um interlocutor (‘tu’), que também é João Ferragem. Este, no trecho a seguir,
se dirige ao próprio narrador, marcando a presença do mesmo, como um personagem
da história, e não exterior a ela. Após a fala de João Ferragem, segue-se a narração
sem marcas. Nessa narração, o narrador se denuncia de primeira pessoa e participante
da história:

O sertão é a inocência. Eu olho para noite, eu ouço uma música: me


vêm lágrimas porque reconheço o segredo. E vejo chegar o mendigo
maltrapilho, andarilhando incógnito, anônimo, o viandante vagabundo
que conhece todos os caminhos, e me pergunta com seus olhos de
sombra: Tua alma é uma cloaca imunda ou é um jardim florido?
(Dicke,1995:113)

Um trecho seguinte, da narrativa entre aspas, também insere, sem marcas, uma
primeira pessoa numa narrativa de terceira:

Destino dos reis. Sob o ferro destas armaduras, Saturno premeditando a


batalha que se aproxima no cerco das horas da noite. Diziam que Saul
era profeta, alguns duvidavam por causa de seus acessos. E não o era,
coroado pelo profeta Samuel? Como podia não ser? Pois não foi dito:
Eis Saul entre os profetas de Israel? Só não era poeta da talha de David,
autor dos Salmos. E se roía. Café e tabaco do meu tabacal e do meu
cafezal: café superior e cigarrilha superior.(Dicke,1995:115)

Nesse caso, percebemos que os dois pontos marcam uma citação feita pelo
próprio narrador e não uma fala do personagem. Na narrativa entre parêntesis, o
professor Celidônio se denuncia como narrador e interlocutor, numa narrativa que
compõe um complexo jogo de pessoas gramaticais, de perguntas e respostas:

Sem saber pensas numa mulher, sua beleza permanece intocada no


fundo de tua lembrança mutável, da tua alma úmida pelo álcool...
Voltarei para Pascoal Ramos. Para onde? Para onde Deus quiser.
Talvez Rio de Janeiro escrever tua tese de mestrado. (DICKE: 1995,
p.120)

Mais à frente, confirma-se definitivamente que ele é um narrador que fala


consigo mesmo usando um “tu”, ao mesmo tempo em que fala de si usando “eu”:

O diretor da universidade de onde fui despedido. (Dicke,1995:121)


Essa sentença dialoga com uma outra que aparece logo no começo do romance,
que diz que o interlocutor tratado por tu fora demitido pela universidade. Só nesse
momento essa relação é claramente revelada.
Na seqüência, como numa espécie de revelação, a narrativa que sucede é a sem
marcas, que traz logo de início o uso de um “tu”, se aproximando do recurso usado na
narrativa entre parêntesis. Esse tu, no entanto, diferentemente da narrativa entre
parêntesis, designa marcadamente João Ferragem, indicado pelo vocativo. Mesmo
assim fica a sugestão de um paralelismo estético que desorienta o leitor logo que entra
na leitura do trecho, mesmo que essa desorientação seja passageira:

No quintal da casa de tua avó, se tiveste a benção de ter uma avó, um


poço: águas negras, luas verdes...(Dicke, 1995:123)
Um carro desconhecido, uma C-10 branca parou do outro lado da
esquina, dela saltou um homem pequeno, magro, que veio caminhando
até o bar onde tu, João Ferragem, falavas sem saber que falavas...
(Dicke,1995:125)

À página 171, inicia-se uma narrativa em que o professor parece ser,


definitivamente o personagem principal. Essa fala continua trazendo os mesmos
recursos estéticos do “diálogo interior”, em que o professor se dirige a si mesmo. Um
momento crítico na narrativa entre parêntesis é o momento em que seu narrador, o
professor Frutuoso Celidônio, ao narrar se refere a si mesmo em primeira, segunda e
terceira pessoas ao mesmo tempo:

E pensei de repente: sem saber a razão: eu sabia árabe e esqueci...


Te recordaste de um trecho do Deutsches Requiem de Brahms e
disseste...
E então ele se lembrou do Rio de Janeiro dos tempos em que estudava
Filosofia. E na aula de Estética perguntaste ao professor o que era
tiranismo...(Dicke, 1995: 192-193)

Na narrativa entre aspas acontece a mesma coisa: o narrador, se referindo a um


momento em que Saul e David estão ou estarão juntos, se trata em primeira, segunda
(do plural) e terceira pessoas também:
que horas serão, será já de madrugada, que faz tanto silêncio?, mas que
madrugada tão comprida, meu Deus, nunca nos dias da minha inteira
vida, vi uma madrugada assim, mas por que esta preocupação pelo vão
Tempo que passa e apenas passa, se ele passa para sempre e não já
necessidade nenhuma de saber as horas, para que saber as horas se
não vais sair desta prisão a domicílio... Amanhã de manhã virá o rei
David tocar-lhe harpa com seus dedos delicados e brancos, e ficarão
um ouvindo o silêncio do outro, ou trocando palavras sem nexo, e então
minha fúria e meu furor que renascem vagamente e turvam a minha
fisionomia... (Dicke, 1995: 208)

Há aí um uso concomitante de pessoas gramaticais distintas para indicar a


mesma coisa, a mesma entidade no romance. Ao final deste, e só ao final, o professor
aparece como narrador da narrativa sem marcas. Confirma-se isso pelo aspecto formal
e pelo conteúdo. Ele inicia a narrativa da mesma maneira utilizada na narrativa entre
parêntesis:

Olhavas ou dormias? O mar: será que estou dentro dos preceitos


estabelecidos pelo mestre Bachus Dyonisios? Não o sei. (Dicke,1995:
273)

E mais à frente, num vocativo que denuncia mais explicitamente:

Pensaste, professor João...(Dicke,1995: 278)

O desfecho da seqüência se dá com o encontro dos dois narradores (o narrador


da narrativa entre parêntesis com o da narrativa entre aspas). Esse encontro se dá na
narrativa entre parêntesis, cujo narrador é o professor, que usa, neste momento, a
primeira pessoa. Para esse professor, pode-se aplicar a mesma reflexão e leitura
biográfica já realizadas, acima, nos outros romances. Quem fala primeiro é Saul:

-Como se tivesse atravessado o Tempo, eis-me aqui, professor.


-Olhei: era o rei Saul (Dicke,1995: 255)

Deve-se perceber que há dois cruzamentos: o cruzamento das duas narrativas,


mas também um cruzamento temporal, em que o passado, do rei Saul, se cruza com
um possível presente, do professor. Confirma-se também que dom Saul e rei Saul são
uma só personagem, que atravessa os séculos para presenciar a cerimônia, e as
lembranças de ambos se confundiam justamente por causa disso. No momento em que
se revela que os dois “Sauls” são um só, e que ele se torna personagem efetivo da
narrativa sem marcas, o livro faz uma ponte entre passado e presente, e outra entre um
“eu” e um “ele” (no caso de Saul), ou entre “eu” e “tu”, condensando todas as pessoas
numa só, dispersando a noção de individualidade e finitude que insiste em prevalecer
na idéia de cada um.
Esse procedimento do escritor escapa à análise lógica e linear da narrativa, que
prevê um narrador ou narradores definidos, delimitados. Há aqui, talvez, a abertura do
discurso a uma voz que vem de todos ou não vem de ninguém, de nenhum “eu”
específico. Para isso, o discurso não pode partir de um narrador em primeira pessoa
somente, nem pertencer a um narrador em terceira, subentendido no texto, e que
muitas vezes não aparece textualmente marcado, mas sabe-se que ele está lá. O
discurso, o mesmo discurso, tem de partir de todas as vozes simultaneamente, como
acontece em Cerimônias do Esquecimento. Um dos grandes esquecimentos do
romance é justamente o esquecimento do “eu”, esse elemento que existe mais (ou
unicamente) como pessoa de discurso do que como fato concreto79. Ele e todas as
outras pessoas gramaticais. E a maneira com que Dicke reflete esse esquecimento do
“eu” na própria linguagem é mostrando que é possível se referir a uma mesma entidade
usando as três pessoas verbais simultaneamente.
Há um momento crítico, dentre outros, desse aspecto, quando o narrador da
narrativa entre parêntesis, o professor, realiza um monólogo interior (que poderia ser
também um diálogo, já que existe um tu) em que diz:

E assim penetrarei no Empíreo e serei Nirvana, na paz do Nada,


despido do eu, ausência de presença e presença de ausência, liberado
dos desejos e superadas as oposições, tudo de nada e nada de tudo,
despido do verbo querer, no Summum Bonum, além do além de todos
os contrários vertiginosos, livre da liberdade no Absoluto Eterno... Nada,
nada mais quero, estou contentado infinitamente no Vácuo.
Compensado de tudo. Nada quero saber, nada, nada. Não sei, mas
conheço... Todas as sombras da noite se reúnem para fazer a meia-

79
Benveniste é o primeiro e principal teórico a abordar essa noção do “eu” no discurso. Cf.
BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. e
BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989.
noite: as horas do lado de cá e as horas do lado de lá, bem no meio
passa uma fronteira: o eu: isso é que é preciso extirpar, fazer secar
como uma plantinha venenosa. (Dicke,1995: 248-249)

Como proposta estética que corresponde à proposta filosófica do romance, o uso


das pessoas verbais e a falta de marcação distintiva entre personagens e narrador
geram esquecimento e dispersão na própria leitura, na vontade de entendimento lógico
que o leitor geralmente carrega consigo quando se dispõe a ler uma obra literária. Em
outras palavras, há uma vontade de entendimento monológico, para citar Bakhtin, em
que há um investimento no ‘eu’, representado pela primeira pessoa no discurso, como o
organizador que submete o seu texto à sua percepção monoconsciente do outro, do
mundo, representado pela terceira pessoa:

O mesmo que é individual, que distingue uma consciência da outra e de


outras consciências, é cognitivamente secundário e pertence ao campo
da organização psíquica e das limitações da pessoa humana. Do ponto
de vista da verdade não há consciências individuais... Ao indivíduo não
se fixa qualquer juízo verdadeiro; este se basta a um certo contexto
sistêmico-monológico uno... No ideal, uma consciência e uma boca são
totalmente suficientes para toda a plenitude do conhecimento: não há
necessidade de uma multiplicidade de consciências nem há base para
ela. (Bakhtin, 1997: 81)

Essa plenitude de conhecimento é minada nos romances de Dicke, em especial


em Cerimônias do Esquecimento, a partir do momento em que se alteram as pessoas
verbais, que são elementos do discurso que designam a relação entre eu e o outro,
sendo esse outro designado por ‘tu’ ou por ‘ele’. Essa relação entre eu e outro pode se
dar, segundo Bakhtin, de duas formas: uma monológica, em que prevalece a visão e a
consciência desse eu, em que este conhece todos os labirintos da consciência e da
história das personagens; e uma dialógica, em que a perspectiva do outro é levada em
conta, com o mistério que sua visão de mundo guarda para o eu:

É graças a uma percepção da minha vida na categoria do outro que meu


corpo pode tornar-se esteticamente significante e não no contexto da
minha vida param mim mesmo, no contexto da minha autoconsciência.
(Bakhtin, 1992: 77 )
Quando Dicke dispõe as três pessoas gramaticais para designar o mesmo
elemento da narrativa, ele relativiza a prevalência do eu como fonte do discurso, como
consciência plena, onisciente ou delimitada, fechada e completa em si mesma. O foco
narrativo dispõe o eu se percebendo na perspectiva do outro, em segunda e terceira
pessoa.
Pensando na transculturação, essa opção, a superação do eu, se torna um
processo que, na literatura, se opõe ao legado monológico que o positivismo
novecentista europeu deixou e que repercutiu nas colônias. Se afastar do monologismo
é se aproximar de uma outra maneira de enxergar o mundo, de uma outra cosmovisão,
que dilui o eu num universo coletivo e mítico. A prevalência da individualidade, marcada
no eu, se perde na perspectiva do grupo e, por mais que haja um narrador
declaradamente em primeira pessoa, ele procura se superar, se objetivando em outras
personagens, não tendo plena consciência nem delas, nem do mundo.
Cerimônias do Esquecimento torna-se um texto chave na leitura dos romances
de Dicke como romances de transculturação. Tanto as questões referentes à
cosmovisão mítica, quanto à opção pela marginalização e à situação de fronteira entre
as culturas local e universalista, vinculadas ao foco narrativo que anula o eu como
legado positivista-racionalista da cultura modernizadroa, são colocadas como matéria
central e não secundária no romance. A questão recorrente, ‘Quem narra a história?’,
traz implicadas em si outras questões. É possível afirmar que há, no texto, uma
separação entre uma cultura modernizadora, que traz a decadência e uma cultura local
que guarda valores mais honrosos. É possível afirmar que há uma oposição entre
oprimidos e opressores. É possível definir o que é de domínio do mito e o que é do
domínio do logos. A única coisa impossível de se determinar efetivamente é o quanto
de cada termo dessas dicotomias está presente nas personagens. O que torna isso
impossível é o fato de que a maneira com que o romance é narrado não permite a
determinação das individualidades de maneira absoluta. Não permite a dicotomia entre
eu e outro, que nos instrumentaliza para definir o que é próprio do autor, do narrador,
ou do personagem e quem são eles. Se não se sabe exatamente que palavras são do
narrador ou do personagem, não se pode dizer, como Rama soube dizer de Arguédas,
qual deles é o representante da cultura universalista ou da tradicional. Se não se
consegue definir, no texto, quem representa os valores universalistas e tradicionais, é
porque essa dicotomia já não tem mais aplicabilidade e já não serve para descrever
esse romance.
13 Considerações finais

Este trabalho teve como preocupações lançar um olhar sobre o que se tem
produzido acerca da obra de Ricardo Guilherme Dicke e discutir questões culturais
implicadas tanto nos seus romances quanto nas críticas a eles, bem como na própria
teoria usada para a discussão. Ele realiza, também, uma descrição do foco narrativo e
das relações culturais entre a cidade e o interior, de maneira a compor uma espécie de
roteiro de leitura para estes dois aspectos, que são centrais na obra do romancista.
O pouco material disponível atesta o esquecimento a que o autor foi relegado.
Esse fato contrasta com sua recente redescoberta pela intelectualidade local. O terceiro
capítulo tentou, numa análise do contexto literário mato-grossense atual, detectar não
os motivos dessa redescoberta, que me parece ainda não se definiram ou se
declararam, mas a formação dos grupos produtores da cultura e do pensamento mato-
grossense e suas intenções em relação à produção cultural local. A posição de Dicke
no movimento literário atual é a de ícone da literatura regional, graças aos esforços de
uma classe específica que se respalda na premiada trajetória do romancista.
Essas questões me parecem ser mais relevantes do que a própria análise
literária em si, pois um pensamento se insinua como conclusão: esta dissertação
concorre também para a caracterização de Dicke como um ícone literário. É por isso
que é importante dizer que, mais do que ressaltar qualidades do seu trabalho literário, o
objetivo de minha pesquisa foi identificar as relações culturais envolvidas na sua
produção.
A obra de Dicke está inserida em uma cultura que vive constantemente a
questão do regional, a necessidade de afirmação das coisas locais, e que procura
reforçar sua identidade calcando-se em programas de conservação e incentivo às
produções que trazem a cor local. Lendo seus textos, no entanto, não se nota nenhuma
preocupação a esse respeito. Essa é uma evidência de que a produção de Dicke
efetivamente mantém viva a cultura em que se insere, e que não podemos definir nem
como mato-grossense, nem como universal. Essas categorizações têm o único efeito
de limitar a extensão que um texto literário pode alcançar.
Dicke escapa a essas limitações nos seus textos, mas parece que caminha para
representar a regionalidade que não ostenta e que pode, no entanto, determinar o
destino de sua imagem e mesmo de sua interpretação a partir desse momento. Esse
fato está na base de todas as discussões realizadas aqui: ele revela questões de
identidade cultural vinculada a relações de poder (editoriais, acadêmicas, políticas etc.).
Que sua produção tem evidentes traços híbridos, de transculturação, parece claro. Mas
que produção, em todos os tempos, não os tem? Definições como tradição,
modernidade, local, universal, são, antes de qualquer coisa, categorias de
interpretação, categorias de pensamento. Assim como elas, diversas outras surgem:
dominador/dominado, autor/narrador, narrador/personagem, realidade/ficção e tantas
outras.
Esta pesquisa teve a intenção latente de inserir, na questão que ela discute,
todas as partes envolvidas na discussão. Explica-se: ao debater os efeitos do contato
entre culturas, não só os produtos culturais, como a literatura, mas também os termos
da produção crítica e teórica, como o conceito de transculturação, se tornam objeto de
análise. Essa idéia se fundamenta, por exemplo, na maneira como Rama articula seu
pensamento com a intenção de superar os modelos de análise definidos pela cultura
que ele chama de universalizante. O teórico usa de uma abordagem maniqueísta, entre
cultura modernizada e cultura rural, para tratar de produtos culturais que escapam tanto
a uma, quanto à outra cultura. Talvez, no nível de discussão que ele estabelece, ainda
não seja possível para a crítica lidar com seu objeto sem incidir sobre esse
maniqueísmo, mesmo apontando para algo fora dele.
As elaborações teóricas estão diretamente vinculadas à cultura em que são
produzidas, é o que se depreende das palavras de Cuche, Burke e outros tantos
teóricos. Rama, portanto, escreve de uma perspectiva em que o pensamento
bipolarizado ainda se mostra como ferramenta útil para descrever os objetos que
analisa. Não se pode, no entanto, dizer o mesmo dos próprios objetos, pelo simples fato
de que sua cosmovisão, como bem aponta Rama, já não funciona pela lógica
dicotômica descendente do pensamento ocidental, que pode ser definido como um
pensamento branco judaico-cristão positivista. Será possível o paradoxo de uma teoria
formulada a partir de uma outra modalidade de pensamento que não essa? Pois a
própria idéia de teoria nasce desse pensamento que separa, dicotomicamente, teoria e
prática, como separa o dominador do dominado, o moderno do tradicional, o regional do
universal etc. Como a academia, produto desse pensamento, pode escapar dessa
categorização do mundo? A análise do foco narrativo em Dicke aponta a saída, mas
ainda não dispõe de categorias suficientes para que seja perfeitamente descrita. Talvez
sejam necessários outros termos, outras palavras, outra categoria de pensamento que
não seja o maniqueísmo e outros conceitos que não sejam produtos direto dele, como é
o de transculturação. A análise dos romances de Dicke mostra que ele ‘deslegitima’ a
força do pensamento dicotômico, como o descreve Santaella:

As tradicionais indagações sobre o nosso continente, oscilando entre a


busca e perda da identidade, centro e periferia, nacional e internacional,
inclusão e exclusão, autonomia e dependência, enfim, todas essas
dualidades que nos foram tão inculcadas e estão tão internalizadas ao
ponto de terem atingido uma naturalização que torna quase impossível
questionar a sua legitimidade. (Pinheiro, 1994)
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