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Diretor
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Conselho Editorial
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anais do
simpósiodepesquisaemmúsica2006
simpemus3
rogério budasz
(organizador)
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2006
simpósiodepesquisaemmúsica2006
comitê organizador
| Rogério Budasz | Norton Dudeque | Álvaro Carlini |
moderadores
| Acácio Tadeu Piedade | Álvaro Carlini | Maria Bernardete Castellán Póvoas |
| Maria Ignez Cruz Mello | Marcos Tadeu Holler | Maurício Dottori |
| Norton Dudeque | Rodolfo Coelho de Souza | Rogério Budasz |
| Rosane Cardoso de Mello | Roseane Yampolschi |
monitores
| Bernardo Grassi | Caio Nocko | Charlene Neotti | Daniella Gramani |
| Daniele Franco | Fernando Menon | João Marcelo Gomes | Lilian Nakahodo |
| Luís Bourscheidt |
apoio
realização
| sumário |
x | apresentação |
xi | programação |
| comunicações |
história
13 SAFO NOVELLA: a voz da poeta grega reapropriada por Barbara Strozzi (Veneza, 1619 – 1677)
- Silvana Ruffier Scarinci
análise
128 O uso do cromatismo como gerador de unidade na mazurka op. 68 de Frédéric Chopin
- Mauricy Martin e Tarcísio Gomes Filho
performance
166 Significação musical: produções a partir do ‘fazer musical’ e de histórias de relação com a música
- Patrícia Wazlawick
183 O papel das alturas numa abordagem composicional baseada em temporalidades musicais
- Ticiano Albuquerque de Carvalho Rocha
218 Schoenberg e o progresso: o projeto estético de Arnold Schoenberg segundo Theodor Adorno
- Valéria Muelas Bonafé, Marcos Branda Lacerda (orientador)
232 O que é (pode ser) música? uma análise fenomenológica das atitudes de escuta segundo
Pierre Schaeffer
- José Estevão Moreira, Rogério Costa (orientador)
284 O Fino da Bossa e Zimbo Trio: uma perspectiva histórica e suas repercussões na
moderna música popular brasileira (1965 - 1067)
- Cristina Gomes Machado
286 Pequeno panorama utilização da viola e da rabeca no fandango dos litorais sul de
São Paulo e norte do Paraná
- Daniella da Cunha Gramani
| conferência |
Rogério Budasz
Coordenador do SIMPEMUS3
| programação |
Resumo
O presente artigo busca relatar o desenvolvimento da cultura musical e pianística no Brasil, desde suas primeiras
manifestações até a primeira metade do século XX: o desenvolvimento da música na corte, a criação do Conservatório
de Música do Rio de Janeiro e do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, a escola de Luigi Chiaffarelli e as
trajetórias de Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro. O desenvolvimento da educação pianística no Brasil foi um
fator proeminente na criação de um novo padrão de ensino de música que repercutiu por décadas o esmerado
refinamento estético destas grandes pianistas, com a expansão de conservatórios e escolas de música altamente
especializadas.
Palavras-chave: Pesquisa histórica, memória musical, cultura pianística.
eclesiástico do Brasil com a transferência da corte – despontou como importante centro musical,
capital para o Rio de Janeiro. em uma época de significativo florescimento social
Minas Gerais foi outro centro significativo e cultural. O padre José Maurício Nunes Garcia foi
na vida musical do período colonial, cuja uma das figuras de maior destaque desse período,
produção musical da Escola de Compositores da ocupando a função de mestre de capela da Capela
Capitania Geral das Minas Gerais foi descoberta Real até a chegada do músico português Marcos
pelo musicólogo Curt Lange, que incorporou Portugal, que foi dominando a cena artística
novas fontes, fatos e documentos comprovando carioca. O padre José Maurício era mestre de
o dinamismo musical nessa região, com a música, compositor, regente, organista e, como
presença de músicos brasileiros natos − mestiços, educador musical, fundou um curso de música que
em sua grande maioria. Nessa época, o ensino da perdurou por aproximadamente vinte e oito anos,
música restringia-se a algumas iniciativas qualificando musicalmente algumas das figuras mais
particulares com os mestres de música em suas insignes do Rio de Janeiro: D. Pedro I, Francisco
residências. No interior destes “conservatórios Manuel da Silva e muitos outros.
privados” ou destas “escolas de música”, Faz-se relevante destacar que a vinda da
floresceram vários compositores e músicos missão francesa ao Brasil, por meio de solicitação
mestiços na Minas Gerais colonial. No final do do Conde da Barca, ministro de D. João, em 1816,
século XVIII, com o declínio da mineração, Minas concorreu para um rompimento dos padrões
foi vitimada pela decadência de suas atividades artísticos coloniais, influenciando de maneira
musicais e, no início do século XIX, o centro de categórica o desenrolar das artes brasileiras.
desenvolvimento artístico e musical passou a ser Devido a essas influências, já se esboçava um
o Rio de Janeiro. processo de laicização da música ainda na época de
Faz-se necessário reportar também as D. João VI, com o desenvolvimento da vida urbana.
atividades musicais realizadas no Pará, com um Entretanto, após o regresso de D. João a Portugal,
dos grandes músicos da catedral de Belém, o nível das atividades musicais sofreu um rápido
Lourenço Álvares Roxo de Potflix, que, em 1735, decrescendo: a sociedade fluminense com seus
criou uma escola de música para desenvolver ideais liberais possibilitou um crescimento no
aptidões vocais em meninos com o intuito de que processo de independência e, após esse
eles participassem no coro da catedral. acontecimento e o agravamento da situação
financeira do país, o declínio das atividades
No período colonial, São Paulo, por sua
musicais foi inevitável. A música sacra desgastou-se
vez, apresentou variações na expressividade
em relação à música profana, que se deflagrava
musical, atingindo o apogeu a partir de 1774,
pela nação. Desse modo, as atividades musicais que
com a importante presença do mestre de capela
se concentravam em comunidades sacras passaram
português André da Silva Gomes na nova Sé, o
a se transferir para os teatros. A iniciativa
qual havia vindo ao Brasil para organizar e dirigir
particular promovia uma educação musical elitista,
o coro da catedral. Ele deu uma contribuição
comumente importando professores e artistas
significativa ensinando música, inclusive para
estrangeiros.
crianças pobres, e criou obras importantes como
a Missa a 8 vozes e instrumentos, cujo Nesse momento de transição, com a
manuscrito foi descoberto por Régis Duprat. estagnação da produção musical nacional, surgiu o
gosto pela cultura pianística, reiniciando um novo
Destaca-se, portanto, que no Brasil
crescendo artístico. Após um período de fermata, a
colonial as possibilidades de aprendizado musical
música renasceu e difundiu-se por toda a nação. Na
estiveram ligadas primeiramente aos jesuítas;
capital fluminense, os pianos se tornaram ainda
depois com um mestre de solfa, nos seminários;
mais comuns, chegando até aos domicílios mais
posteriormente com um mestre de capela nas
modestos.
matrizes e catedrais; e, finalmente, com um
mestre de música independente. Nesse sentido,
Neide Esperidião (2003, p. 74) coloca que o O Conservatório de Música do Rio de Janeiro
ensino informal de música nas casas de famílias A criação do Conservatório de Música (1841)
abastadas foi uma tradição que se conservou até por Francisco Manuel da Silva (1795-1865), discípulo
o segundo Império. do compositor austríaco Sigismundo Neukomm e de
Marcos Portugal, foi uma contribuição ímpar para o
D. João VI e a música campo da educação musical, sistematizando a
estrutura pedagógica em sólidas bases. Vasco Mariz
Com a vinda de D. João VI para o Brasil
(2000) referenda que Francisco Manuel deve ser
(1808), a cidade do Rio de Janeiro – sede da
simpósio de pesquisa em música 2006 3
celebrado não somente pela composição do Hino Alberto Nepomuceno (1902-1903, 1906-1916),
Nacional, mas também pela intensa atividade Henrique Oswald (1903-1906), Luciano Gallet (1930-
que desenvolveu. Exemplo disso é a Sociedade 1931) e outros.
Beneficiente Musical por ele fundada, que
divulgou a música de 1833 a 1890. Essa
associação foi responsável por solicitar à
Assembléia Legislativa do Império a subvenção O piano em São Paulo
para a criação do Conservatório, apoiada por D. O segundo Império foi um momento particular
Pedro II. A concretização do projeto foi aprovada para a história do piano no Brasil com a vinda de
em 1841, mas tardou-se a realizar por falta de dois fundadores da virtuosidade pianística nacional:
fundos. Em 1948, após a realização de duas Artur Napoleão, que em 1878 fundou, associado a
loterias, seis docentes foram responsáveis pelo Leopoldo Miguez, uma casa de pianos e de músicas
início das aulas. Sete anos depois, os professores no Rio de Janeiro, e Luigi Chiaffarelli, o fundador
passaram a ser contratados por meio de da escola de piano em São Paulo.
concursos e os alunos mais destacados Na sociedade paulista, o piano só começou a
começaram a ser agraciados com viagens. Todo se tornar mais presente quando o café forneceu
esse processo foi encabeçado por Francisco recursos para sua importação. A questão cafeeira
Manuel, que, em gratidão ao imperador, foi bem posta por Ivan Ângelo (1998, p. 18): “os
dedicou-lhe um compêndio de música (MARIZ, negócios do café – abrir fazendas, plantar,
2000). exportar, financiar, beneficiar, comercializar -
Esse Conservatório, segundo Fernando de haviam mudado o estado, a capital, o trabalho e as
Azevedo (1971), passou por três fases: na cabeças”.
primeira fase (1841-55), foi autorizada a sua A valorização do piano, instrumento caro e
fundação por Francisco Manuel, mas apenas não-portátil, gerou novos hábitos sócio-culturais: o
começou a funcionar em 13 de agosto de 1848, surgimento de professores particulares (geral-
numa dependência do Museu Imperial e em mente imigrantes), de cursos, saraus, recitais de
conformidade com o decreto n°. 496 de 21 de piano, sociedades, lojas de música e a criação dos
janeiro de 1847. Conservou, porém, o caráter de conservatórios musicais.
instituição particular, reconhecida e A mulher neste início de século não tinha
subvencionada pelo governo. direito ao voto ou à participação política, e suas
Na segunda fase (1855-90), o Conservatório aptidões deveriam desenvolver-se apenas no que se
foi inteiramente reorganizado, passando de referisse a tarefas essencialmente domésticas:
instituição privada a instituição oficial, cozinha, bordados, crochês, familiaridade com a
incorporada à Academia Imperial de Belas-Artes. língua francesa e com a música, especialmente com
O Imperial Conservatório de Música continuou a execução pianística. A cultura paulistana
dirigido por Francisco Manuel até seu caminhou nos seus crescendi e diminuendi
falecimento (1865). Depois da proclamação da característicos de uma época de transição.
República, o velho Conservatório, desligado da A criação do Conservatório Dramático e
Academia de Belas-Artes, transformou-se no Musical de São Paulo, em 1906, inseriu-se exa-
Instituto Nacional de Música, com uma nova tamente na perspectiva cultural traçada por
organização, inspirada por Alfredo Beviláqua, Chiaffarelli e outros professores contemporâneos
José Rodrigues Barbosa e Leopoldo Miguez. O seus e ligados ao sonho de uma escola de música
Instituto Nacional de Música passou por nova consistente e paulistana.
reforma (decreto n°. 934, de 24 de outubro),
Luigi Chiaffarelli (1856-1923) nascera em uma
mas continuou a funcionar no mesmo local (Rua
família de músicos, na cidade italiana de Isernia;
Luís de Camões).
iniciara seus estudos sob a orientação de seu pai,
Na última fase (1890-1940), o Instituto foi dedicando-se intensamente ao estudo do piano, em
reestruturado em novas bases pela reforma Bologna com o prof. Gustavo Tofano, posterior-
Francisco Campos (decreto n°. 19.852, de 11 de mente transferindo-se para o Conservatório de
abril de 1931) e anexado à Universidade do Rio Stuttgart, na Alemanha, na classe do prof. Sigmund
de Janeiro, passando a denominar-se Escola Lebert. Chiaffarelli, segundo Maria Francisca
Nacional de Música, segundo a lei n°. 452, de 5 Junqueira (1982), optara pelo magistério e
de julho de 1937, que criou a Universidade do interrompera sua carreira de concertista, seguindo
Brasil. Este foi o período mais fecundo e para a Suíça, onde conhecera o casal Sebastiana e
brilhante dessa instituição. Foram seus diretores Francisco Paula Machado (fazendeiros de Rio Claro),
os grandes nomes: Leopoldo Miguez (1890-1902), que mais tarde convidaram-no para vir para o
4 SIMPEMUS3
porque nesses momentos ela tinha a Conservatório de Música do Rio de Janeiro tratou-se
oportunidade de receber tudo o que os alunos de um dos fatos mais relevantes para a educação
lhe ofereciam, segundo comenta. Magdalena musical e píanistica no Brasil, que se somou às
permanecia sempre atenta, buscando, de acordo chegadas de diversos professores europeus no
com a qualidade da execução do educando, tecer cenário artístico nacional. A criação do
comentários produtivos, fazendo conhecer o seu Conservatório Dramático e Musical de São Paulo
ponto de vista a respeito da interpretação de encarregou-se da difusão do piano por todo o
uma obra. estado. A escola de Luigi Chiaffarelli deu o primeiro
Tagliaferro interpretou muitos autores na- passo em direção à internacionalização do piano
cionais em primeira audição e se mostrava brasileiro, na medida em que dentre seus brilhantes
otimista com a música brasileira. Em suas discípulos formou a pianista Guiomar Novaes,
declarações solicitava que os compositores nunca desbravadora brasileira nas terras norte-
esquecessem da riqueza e da beleza de nosso americanas. Magdalena Tagliaferro, levando a
folclore. Foi uma das figuras mais pianolatria brasileira às terras européias e ao
representativas da música brasileira, levando-a Conservatório de Paris, desempenhou um
aos grandes salões de concertos e a um alto nível importante papel na história do piano no Brasil e
de reconhecimento na Europa. Sua pedagogia influenciou dezenas de intérpretes e professores.
criou uma nova escola pianística no Brasil e O desenvolvimento da cultura musical
desenvolveu discípulos que até hoje figuram possibilitou uma motivação a grande parte da
como grandes mestres do piano. Ela levou a população brasileira. Em especial, a divulgação do
pianolatria brasileira às terras européias e ao piano nacional e internacionalmente criou um novo
Conservatório de Paris, assumindo perspectivas desejo de busca pelo conhecimento musical.
pedagógicas que deram aos músicos nacionais um Motivo coadjuvante, a veiculação e o ensino
outro ritmo de desenvolvimento, uma outra de música (teoria musical, canto orfeônico, solfejo
esfera de compreensão do mundo musical, e outras noções básicas) nas escolas públicas e
adiantados no tempo e aperfeiçoados na privadas do Brasil, especialmente entre as décadas
estética, particularmente herdada dos mestres de 1940 e 1960, possibilitou aos seus discentes um
da escola parisiense. desenvolvimento cognitivo musical inicial, que, em
muitos casos, gerou impactos no desejo de
Considerações finais aperfeiçoamento em instituições especializadas,
como os conservatórios.
As primeiras manifestações musicais no
solo brasileiro se desenvolveram com a chegada Dessa forma, essas instituições educativo-
dos jesuítas e passaram a tomar um novo musicais puderam desenvolver-se durante décadas,
caminho com a chegada de D. João VI e com a divulgando o conhecimento musical e formando
produção do padre José Maurício. A criação do músicos destacados e amantes da música.
Referências
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ORSINI, Maria Stella. Guiomar Novaes: Uma vida, uma obra. Tese (Livre-Docência) - Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988.
A cantora Lapinha e a presença musical feminina no
Brasil colonial e imperial
Alberto José Vieira Pacheco, Adriana Giarola Kayama
Universidade Estadual de Campinas
Resumo
Esboço biográfico da cantora brasileira Joaquina Maria da Conceição da Lapa, ou Lapinha, à luz de documentos da
Biblioteca Musical do Paço Ducal de Vila Viçosa, periódicos portugueses e relatos de viajantes e cronistas no Brasil e em
Portugal de fins do século XVIII e início do século XIX.
Em finais do século XVIII e início do XIX, expressavam a admiração que causou a firmeza, e
viveu aquela que parece ter sido a primeira sonora flexibilidade da sua voz, reconhecida por
cantora brasileira a alcançar sucesso na Europa: uma das mais belas, e mais próprias para o
Teatro. Por tais testemunhos de aprovação deseja
Joaquina Maria da Conceição da Lapa, mais
ela por este meio mostrar ao Público o seu
conhecida por Lapinha. Segundo Ayres de
reconhecimento (Suplemento a Gazeta de Lisboa,
Andrade, não se tem notícia de outra cantora n. 5, 06/02/1795).
profissional naquela época. “É a única de quem a
História guardou o nome” (ANDRADE, 1967, v. 2,
p. 184). No mesmo mês do ano seguinte, a Gazeta
informa sobre sua apresentação na cidade do Porto,
Infelizmente, pouco se sabe sobre suas
onde teria feito dois concertos com grande sucesso:
origens. O local e a data de seu nascimento são
ignorados. Tampouco se sabe qual teria sido sua
formação musical e dramática. Na verdade, as Do porto avisam que no teatro daquela cidade
notícias mais antigas a seu respeito que se houvera a 29 de Dezembro um benefício a favor
da Célebre Cantora Joaquina Maria da Conceição
conhece são de quando a cantora já se
Lapinha, no qual todas as pessoas presentes
aventurava em Portugal. Trata-se de três notas
admiraram a melodia da sua voz, e a sua grande
da Gazeta de Lisboa que evidenciam seus execução, de sorte que ela a 3 de janeiro se viu
primeiros recitais públicos além-mar. A primeira, obrigada a voltar ao Teatro, prestando-se aos
de janeiro de 1795, anuncia um concerto da instantes rogos das pessoas, que por não caberem
brasileira no mais importante teatro português: ali da primeira vez a não tinham ouvido (Gazeta
de Lisboa, 02/02/1796).
Porto; temos notícia de ali haver agradado Nenhum de nós, antes de ouvir cantar a Catalani,
imensamente em dois concertos que deu no seria capaz de conceber que uma mulher pudesse
teatro, um em 29 de dezembro de 1795, e comparar-se em agilidade, em força e em
outro em 3 de janeiro de 1796 (BENEVIDES, suavidade a do célebre cantor castrado
1883, p. 48). Crescentini; e menos ainda que, em certos casos,
pudesse excedê-lo (RUDERS, 1981, p. 212).
Podemos citar ainda outros exemplos do cantarão ela, e a senhora Joaquina Lapinha a
repertório da cantora, guardados no Palácio mais bem escolhida musica dos melhores autores,
Ducal de Vila Viçosa, e listados por data de e tocarão os senhores Lansaldi, e Lami concertos
de rebeca, e executar-se-ão em grande orquestra
composição:
as melhores overtures de Mozart. Vendem-se
bilhetes em sua casa N. 8 rua de S. José a preço de
De 1808: Coro em 18081, composto pelo Pe. José 4$000 reix (Gazeta do Rio de Janeiro, N. 113 –
Maurício Nunes Garcia, para o benefício de Quarta-feira 11 de outubro de 1809, grifo do
Lapinha original).
Sem datas – Parte solista em Le Donne Cambiate de (SILVA, 1993, p. 26). A historiadora nos esclarece
Marcos Portugal. que era considerado dever das moças aprenderem a
- Primeiro soprano do Elogio da Senhora Rainha de “arte de prender” seus maridos. Ou seja, elas
Marcos Portugal. precisavam entreter e encantar os maridos, ou eles
- Demofoonte de autor desconhecido. iriam procurar diversão em outra parte.
1804 – Participação na farsa Gatto por Lebre de Assim, pode não parecer tão surpreende que
António José do Rego, em Lisboa. uma mulher pudesse ter a formação musical da
1808 – Parte solista no Coro em 1808 do Pe. José Lapinha, mas daí até ser uma cantora profissional
Maurício. havia uma grande distância. Mesmo como ouvintes,
Sem data de estréia2 – Gênio de Portugal no drama somente na segunda metade do século XIX as
heróico Ulissea do Pe. José Maurício, composto em mulheres começam a freqüentar as platéias do
1809. teatro. Uma mulher com carreira artística não era
18103 - Parte solista em O Triunfo da América do Pe vista com bons olhos, e certamente teria uma re-
José Maurício, escrita em 1809. putação bastante baixa. Seria algo realmente im-
1811 – Carlotta em L´Oro non compra amore de pensável para as moças da “boa família” carioca.
Marcos Portugal, no Teatro Regio, no Rio de Janeiro4.
Mesmo os homens brasileiros músicos
- Parte solista no Elogio de 17 dezembro de 1811 de profissionais eram geralmente das classes mais
Marcos Portugal
baixas, pois, como nos lembra Vasco Mariz (2002, p.
1811(?) – A Verdade em A verdade triunfante de autor 10), o músico “era nivelado socialmente aos criados
indeterminado, no Real Theatro da Corte do Rio de ou empregados”. Muitos deles eram mulatos que
Janeiro5.
viam na música uma ótima forma de inclusão
social. Assim, a condição de Lapinha como mulata
Não se sabe quando ela faleceu. No de origem provavelmente humilde explica sua
entanto, Andrade nos lembra que “depois da opção pela carreira musical. Caso fosse de família
inauguração do Real Teatro de S. João, em 1813, abastada, certamente não teria atuado
não mais o seu nome aparece nos anúncios dos profissionalmente como cantora. Na verdade, a
espetáculos líricos” (ANDRADE, 1967, v. 2, p. participação da mulher no meio musical brasileiro
185). Desta forma, talvez tenha falecido por da época é pouco estudada e talvez até
volta de 1812; ou se retirado para outra cidade, subestimada. Vejamos, por exemplo, o texto de
ou país; ou, quem sabe, até abandonou a uma carta escrita no Rio de Janeiro por Luiz
carreira artística em favor de um bom Joaquim dos Santos Marrocos a seu pai, em sete de
casamento. Afinal, a profissão de cantora não outubro de 1812:
era algo muito bem visto pela sociedade
conservadora luso-brasileira. Marcos António Portugal está feito hum Lord com
Por outro lado, o fato de Lapinha ter sido fumos mui subidos. Por certa Aria, q. elle
mulata pode nos explicar muito sobre sua compoz, pa cantarem Trez Fidalgas em dia
carreira. É fato bem conhecido que as mulheres d´annos de outra, fez-lhe o Conselh.ro Joaqm Joze
brasileiras daquela época, apesar de ter pouco de Azevedo hữ magnífico presente, q consistia em
acesso à educação formal, costumavam receber 12 duzias de garrafas de vinho de Champagne
(cada garrafa do valor de 2$800 res), e 12 duzias
alguma instrução musical. Segundo a historiadora
das de vinho do Porto (MARROCOS, 1812)
Maria Beatriz Nizza da Silva, a instrução mais
comum que recebiam era de coser e bordar. No
entanto, a historiadora ressalta que a música foi Vemos então que mesmo como intérpretes
o elemento que mais prevaleceu na educação amadoras, as mulheres influenciavam na produção
feminina. “Muitas moças sabiam tocar algum musical dos compositores mais importantes. Balbi
instrumento e se conseguiam prender os maridos cita também algumas brasileiras que teriam sido
em casa faziam-no certamente com sos seus boas músicas:
talentos musicais e disposição para a dança”
Dona Mariana é uma senhora renomada no Rio de
2
Cleofe Person de Mattos especula que esta peça talvez
Janeiro por sua grande habilidade ao piano, ele
nunca tenha sido cantada no Rio de Janeiro (MATTOS, mesma compôs belas modinhas6 [grifo do autor,
1970, p. 327). BALBI, 1822, v.2, p. ccxij].
3
A data da apresentação é dada pelo Padre Perereca
(SANTOS, 1943).
6
4
Informação retirada de CARVALHAES (1910) e KÜHL (2002). “Dona Marianna est une dame renommée à Rio-Janeiro pour sa
grande force sur le piano; elle a même composé de jolies
5
Informação retirada de KÜHL (2002). modinhas”.
simpósio de pesquisa em música 2006 11
_______________________________
7
«Madame Gardiner, fille du médecin Francisco Antonio
Pereira, et épouse du professeur de chimie de l´académie
militaire de Rio-Janeiro. Elle touche du piano presque aussi
bien que Dona Marianna, et a composé aussi quelques jolies
modinhas.»
Este artigo é resultado parcial de nossa pesquisa de doutorado em música no Instituto de Artes da UNICAMP. Esta
pesquisa conta com o apoio financeiro da FAPESP.
Referências
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Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
BALBI, Adrien. Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, comparé aux autres états de
l’Europe, et suivi d’un coup d’oeil sur l’état actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les
Portugais des deux hémisphères. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004.
_____ Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, comparé aux autres états de l’Europe, et
suivi d’un coup d’oeil sur l’état actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les Portugais des
deux hémisphères. Paris: Rey e Gravier, 1822.
BENEVIDES, Francisco da Fonseca. O real Theatro de S. Carlos de Lisboa, desde sua fundação em 1793 até a
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Garcia, Sigismund Ritter von Neukomm, Marcos Portugal. Rio de Janeiro: Funarte, 2002.
CARVALHAES, Manoel Pereira Peixoto d´Almeida. Marcos Portugal na sua música dramática. Lisboa:
Typographia Castro Irmão, 1910.
12 SIMPEMUS3
CRANMER, David John. O fundo musical do Paço Ducal de Vila Viçosa: surpresas esperadas e inesperadas.
Separata da Revista de Cultura Callipole, n. 13, 2005. Câmara Municipal de Vila Viçosa, Portugal.
KÜHL, Paulo Mugayar. A ópera da corte portuguesa no Rio de Janeiro – 1808-1822. Manuscrito. Campinas:
Instituto de Artes da Unicamp, 2002.
MARCONDES, Marcos (org.). Enciclopédia da música brasileira. São Paulo: Art Editora / Publifolha, 2000.
Disponível em: <http://cf.uol.com.br/encmusical/resultado.asp?srchtp=ver> Acessado em 18 de setembro de
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MARIZ, Vasco. A música clássica brasileira. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2002.
MARROCOS, Luiz Joaquim dos Santos. Carta de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, para seu Pai, no Rio de
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MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do Padre José Maurício Nunes Garcia. Rio de
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SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e D. João VI. 2. ed.
Lisboa: Referência/Stampa, 1993.
Resumo
O presente trabalho aproxima-se da obra da compositora seiscentista italiana Barbara Strozzi através de uma
ótica interdisciplinar e crítica, na qual sua música é vista como um texto que se entrelaça a outros textos,
buscando compreender significados culturais, sociais e ideológicos que permeiam toda sua obra. Sua forte
afirmação forse detta sarò Saffo novella (talvez chamada serei a nova Safo) - exórdio de toda sua produção –
leva-nos a compreender de que maneira sua obra ligava-se à voz da poeta grega.
O primeiro dos oito volumes de Cantatas de Longinus, Sobre o sublime2. Sua tradução para o
Barbara Strozzi inicia-se com um dueto para duas latim da Ode II circulou na Itália do século XVI,
sopranos e baixo-contínuo, no qual a assim como seu comentário a respeito do poema,
protagonista – mulher – canta: no qual elogia a capacidade de Safo em descrever
sensações físicas com total ausência de mediação.
Mercé di voi, mia fortunata stella, Não podemos concluir positivamente que
volo di Pindo in fra i beati cori
Barbara Strozzi conhecesse a tradução de
e coronata d’immortali allori
Robortello e os comentários de Longinus. Mas já há
forse detta sarò Saffo novella.
quase um século a sombra inspiradora de Safo
Graças a ti, minha estrela afortunada, fazia-se presente na vida intelectual veneziana e só
em vôo de Píndaro entre coros divinos assim a compositora poderia ter invocado o nome
e coroada com louros imortais, da poeta grega de forma tão contundente. Seu pai
talvez chamada serei - a nova Safo. revela intimidade com a poesia de Safo, ao citá-la,
na descrição de uma missa de Monteverdi em
Os textos do primeiro livro de Madrigais são memória do Grande Duque Cosimo II de’ Medici, em
de autoria do poeta e libretista Giulio Strozzi, abril de 1621: “As solenidades de luto começaram
pai elettivo1 de Barbara. É extremamente com uma queixosa sinfonia, capaz de arrancar
significativo o fato de Strozzi iniciar sua obra lágrimas, e ainda provocar pesar, imitando o antigo
anunciando-se como uma nova Safo, aquela a modo Mixolídio redescoberto por Safo na
quem o pai entrega uma voz, feminina, autora, Antigüidade” 3.
re-encarnando a voz da poeta grega. Sem poder Eis a seguir a Ode II traduzida para o
ignorar a força de tal exórdio, perguntamo-nos português4:
que significado esconde-se atrás da identificação
de Strozzi com Safo. Como se dá a recepção de Igual dos deuses esse homem
Safo na Itália seiscentista e que importância me parece: diante de ti
podemos inferir de sua forte afirmação? sentado, e tão próximo, ouve
À grandeza de Safo já se referia Platão, a doçura da tua voz,
que a chamava de “a décima musa.” O próprio
e o teu riso claro e solto. Pobre
Aristóteles dizia que ao passo que Homero era
de mim: o coração me bate
considerado “o poeta”, Safo seria “a poeta”, de assustado. Num ápice te vejo
“honrada pelo povo de Mytilene, apesar de ser e a voz me vai;
uma mulher”. As traduções das obras de Platão e
Aristóteles já circulavam na Itália desde o século
XVI, mas a verdadeira Safo é introduzida pela 2
Hoje sabe-se que a obra é de autor anônimo, porém, na época
primeira vez numa tradução de Francesco de Robortello, era conhecida como de autoria de Denys
Longinus (In: LEBÈGUE, H. Du sublime. Paris: Les Belles
Robortello (Veneza, 1554) do tratado de Lettres, 1997)
3
1
FABBRI, P. Monteverdi. Trad. Tim Carter. Cambridge University
Aos dez anos de idade, Barbara Strozzi é adotada pelo pai Press, 1994. Pg 179.
biológico, e este passa a se referir a ela como filha
4
elettiva. ALVIM, P. tr. Safo de Lesbos. São Paulo: Ars Poética, 1992.
14 SIMPEMUS3
10
Tu, por cujo valor as palmas e o orgulho fez
OVÍDIO, Carta XVIII, de Leandro a Hero.
reinar sobre mim a invencível inimiga,
11
GASPARA S., Ibid., p. 57. Se deste a morte ao coração, dás vida ao canto.
12
PHILLIPPY, P. ‘Altera Dido’: the model of Ovid’s Heroides
in the Poems of Gaspara Stampa and Veronica Franco.
Italica, v. 69, n. 1 (spring 1992), p. 1-18.
16 SIMPEMUS3
Em Marino, a tópica do abandono gerando Ligada através do pai à Academia degli Incogniti,
música/poesia se expressa claramente no final na qual Marino era admirado como o maior poeta
epigramático do Soneto, na linha 14. Um daqueles tempos, Strozzi pode ser mais bem
epigrama - uma solução engenhosa que explica e compreendida ao percebermos o que está em jogo
cria um clímax - revela a solução do que se na obra do inventor da meraviglia. Com Marino
anunciou no início do poema: à colocação surge uma mudança decisiva na perspectiva
antitética de morte (canti de Marte) e amor (I’ sentimental, íntima, psicológica e humana da
canto, Amor) surge a única possibilidade de vida, poesia. Aspectos jocosos e lúdicos permeiam a
a do canto poético, que se opõe à morte do poética marinista em oposição à antiga gravità e
coração. Alinhando-se com a tradição ovidiana, o mesmo piacevolezza de Petrarca. O grave e
poema declara uma poética que se opõe ao profundo tornou-se engenhoso, superficial, e
tradicional motivo épico: que outros cantem a aparente; o agradável e ameno tornou-se sensual,
guerra, aqui caberá cantar o amor. A guerreira coquete e sedutor. O autor maneirista não busca
de Marino distancia-se radicalmente da guerreira mais emocionar, mas provocar um prazer de ordem
de Tasso: Clorinda é uma personagem de intelectual; o espectador não “sente” determinadas
profundidade trágica, a guerreira de Marino é emoções, mas pensa e deleita-se quando
uma mulher anônima e sedutora que brinca com compreende o jogo da meraviglia.
um assunto anterior-mente tão grave, o amor. O último livro de Cantatas de Barbara Strozzi
Agora presenciamos, numa guinada jocosa e é repleto de exemplos desta ordem. Em seu
irônica, uma perda de subjetividade da L’Astratto, presenciamos o antigo topos do
personagem e da própria cena amorosa. A cena abandono, revestidos dos conceitos marinistas
passa a ser relatada pelo autor, que nos olha de traduzidos engenhosamente em sua música. Talvez
dentro do poema, com um meio sorriso, num a peça mais caracteristicamente maneirista de
gesto puramente teatral: istoria miserabile ma Strozzi, L’Astratto, justapõe a idéia da criação
vera. O amor transfigura-se em puro jogo poética/musical às dores do abandono amoroso:
erótico, no qual os sentidos substituem o Voglio sì, vo' cantar: forse cantando trovar pace
sentimento: a guerreira flerta com as armas de potessi al mio tormento! A roupagem musical que a
seu olhar, aprisiona com os próprios cabelos. A autora dá ao poema vai ainda além do que Marino
tendência na poesia marinista de transformar o fez em seu Proemio del Canzonieri. Estamos aqui
que era de âmbito interior em objeto exterior, assistindo a uma cena puramente teatral, na qual a
de usar imagens para acessar uma subjetividade presença de um eu narcíseo salta aos olhos
tão intelectualizada a ponto de se anular, fez (podemos dizer que salta mais aos olhos que aos
com que Marino fosse rotulado como “o poeta ouvidos, em função de seu forte apelo cênico). É
dos cinco sentidos”: o amor não era mais o possível pensar que L’Astratto constitui-se numa
estímulo para emoções interiores, mas uma fonte peça auto-referencial, correspondendo à tentativa
de delícias sensuais. O que está em jogo em de Stampa e seu Rime em criar uma obra exemplar
Marino não é mais a retórica introspectiva de da própria vida. Deparamo-nos com uma
Petrarca, que abrangia uma vasta gama de personagem que incansavelmente tenta encontrar a
nuances psíquicas. Mesmo alinhando-se a música certa para anular a dor, e nesta busca
tradições anteriores e ainda reproduzindo antigos incessante, descobre-se produzindo centenas de
topos, a sua obra inserese em uma nova estética. canções, mas nunca encontrando o fim de seu
O novo estilo cria uma relação ativa entre autor tormento.
e leitor. Agora vemos-nos obrigados a reagir
intelectualmente à nova poesia, decifrando seu
jogo artificial de meraviglia. O poeta passa a
observar furtivamente o espectador de dentro de
sua obra, tornando-se quase um voyeur desta
relação. Este fenômeno é recorrente na obra de
Strozzi e, como vimos, desde sua primeira peça
estabelece-se esta clara relação entre
autora/obra/espectador.
Barbara Strozzi encontra-se neste vértice
estético: no ambiente cosmopolita, sofisticado e
coquete da Serenissima, o gosto maneirista pelo
novo e artificial e o desejo de causar surpresa no
espectador marcam profundamente sua obra.
simpósio de pesquisa em música 2006 17
L'Astratto
O Distraído
Voglio sì, vo' cantar: forse cantando Quero sim, quero cantar: pois talvez cantando,
trovar pace potessi al mio tormento! encontrar paz poderia a meu tormento!
Ha d'opprimere il duol forza il concento. O poder da música oprimirá a dor.
Sì, sì, pensiero, aspetta: Sim, pensamentos, esperem:
a sonar cominziamo comecemos a tocar
e a nostro senso una canzon troviamo. e de acordo com nosso sentimento, uma canção
encontremos.
"Ebbi il core legato un dì “Estivesse meu coração preso um dia
d'un bel crin..." aos seus belos cabelos...”
La stracerei: subito ch'apro un foglio Já os rasguei: assim que inicio a página
sento che mi raccorda il mio cordoglio. sinto que só relembro minha dor.
"Fuggia la notte e sol spiegava intorno..." “Partia a noite e o sol espalhava sua luz...”
Eh sì, confondo qui la nott'e 'l giorno! E sim, confundo aqui a noite e o dia!
"Volate, o Furie “Voai, ó fúrias
e conducete e conduzi
un miserabile um miserável
al foco eterno!" ao fogo eterno.”
Ma che fo nell'inferno. Mas já estou no inferno!
"Al tuo ciel vago desio “A teu céu, meu belo desejo,
spiega l'ale e vanne a fè..." abre as asas e vamos com confiança...”
Che quel che ti compose Pois aquele que te criou
poco sapea dell'amoroso strale! pouco sabia da flecha do amor!
Desiderio d'amante in ciel non sale. Desejo de amante ao céu não sobe.
"Goderò sotto la luna..." “Gozarei sob a lua...”
Or questa sì ch'è peggio! Agora esta ainda é pior!
Sa il destin degl'amanti e vuol fortuna! Conhece o destino dos amantes e ainda espera
Misero! I guai m'han da me stesso astratto e sorte!
cercando un soggetto Infeliz! Meus problemas me distraíram de mim
per volerlo dir sol cento n'ho detto. mesmo, e
buscando um tema de canção,
encontrei uma centena.
Chi nei carcere d'un crine Quem no cárcere de melenas
i desiri ha prigionieri, Os desejos aprisionou,
per sue crude aspre ruine por sua crua e áspera ruína
nemmen suoi sono i pensieri. nem mesmo seus são os pensamentos.
Chi, ad un vago alto splendore Quem a um belo e inacessível esplendor
die' fedel la libertà entrega confiante sua liberdade
schiavo alfin tutto d'amore escravo total, ao fim, do amor
nemmen sua la mente avrà. nem mesmo sua a mente terá.
Quind'io, misero e stolto, Quando eu, miserável e estúpido,
non volendo cantar, cantato ho molto. sem querer cantar, muito cantei.
(Giuseppe Artale13)
contrastante com a abertura intimista e lírica, poderoso para seduzir do que um belo rosto em
exórdio de uma gravità que nunca se realizará. O lágrimas15.
verbo potere (poder), no condicional, aparece A música de Barbara Strozzi, sempre na voz
delineado musicalmente como uma pergunta masculina, coloca-a em diálogo estreito com os
pela frase ascendente, e o ponto de interrogação freqüentadores da Accademia degli Unisoni. As
é traduzido pela pausa de semicolcheia. O gesto academias de intelectuais em Veneza, com raras
é novamente afirmativo da presença de um forte exceções, não eram freqüentadas por mulheres. A
“eu”: um autor que sai de uma interioridade Accademia degli Unisoni, portanto, estabelecia-se
(indicado pelo uso implícito do dêitico “io” como um espaço de normas violáveis, ecoando o
[voglio]), de um monólogo interior, para clima transgressor da Accademia degli Incogniti. Os
distanciar-se, ironicamente, mirar o público e intelectuais que freqüentavam a academia da
sorrir coquetemente de sua própria dor (Fig. 1). Venere Canora, dedicavam seus poemas a ela.
O mesmo artifício é usado diversas vezes Barbara Strozzi responde a tais poemas musicando-
na peça: os repetidos rompimentos com o os e cantando-os. Apropria-se da voz masculina,
registro sério e uma súbita intervenção para fora estando ela mesma numa posição normalmente
desta interioridade auto-reflexiva e burlesca, reservada a um homem, ao presidir uma academia.
transformam a peça em puro exercício da Podemos ver esta apropriação, por um lado, como
arguzia marinista. Para suscitar maior uma afirmação deste lugar viril e afirmativo que a
meraviglia, o efeito do imprevisto é obtido com autora escolhe, de uma mulher que se vê como
as mudanças bruscas e inesperadas, a mobilidade sujeito que se auto-constrói. Por outro lado,
das situações e gestos dramáticos repentinos. Barbara Strozzi brinca com estes homens que lhe
Após outra frase que suspende o fluxo coerente dedicam tais poemas, responde-lhes jocosamente
do discurso pela intromissão da consciência do com uma música que provoca, seduz e reafirma
autor (Sí, sí, pensiero aspetta), começa a corajosamente seu lugar de cortesã. Outro exemplo
canção/ária em ritmo pendular, dançante claro desta forte presença autoral surge na Cantata
(compasso 20). A peça compõe-se de retalhos de Apresso ai molli argenti (Fig. 4).
situações, reminiscências e motivos musicais.
A autora existe – afirma e reafirma sua
Estes elementos superpostos, fragmentados e
existência, nos espia, num duplo flerte, de dentro
aparentemente casuais revelam um caráter
da sua obra: flerte com o autor do poema (Barbara
próprio do repertório maneirista14, num exercício
Strozzi, a cortesã, responde jocosa à provocação de
de meta-literatura, artificialmente construída
um homem que lhe dedica o poema da Cantata) e
sobre si mesma (Fig. 2).
com o espectador, que subitamente se depara com
A peça termina com uma confirmação um personagem inesperado na peça.
frenética do moto que permeia a tradição do
A música da Virtuosissima Cantatrice mostra-
abandono transformando-se em música: non
se profundamente autoral, desde sua primeira
volendo cantar, cantato ho molto (sem querer
obra, Mercè di voi até sua produção mais tardia e
cantar, muito cantei) (Fig. 3).
madura, como L’astratto. A música em geral, como
Como Safo, Stampa e tantas outras, a dor arte temporal e evanescente, possui um aspecto
do abandono em Strozzi transforma-se em fenomenológico particular em relação a outros
elemento propulsor de sua música. Aqui textos. Sua existência realiza-se somente no
transfigurada pela ironia maneirista, inserida no momento da performance, e intérpretes fortes
cenário intelectual dos Incogniti, a dor reverte- costumam usurpar o lugar do autor naquele
se em canto como na poesia de suas instante. Barbara Strozzi torna-se, portanto, dupla
antepassadas. No entanto, este canto surge autora: responsável pela criação original, recria sua
revestido de uma aparência jocosa e coquete, música a cada aparição pública. A superposição
com um sorriso sedutor mascarando uma particular dos papéis de cantora e compositora
interioridade que raras vezes se vislumbra. Não convida-nos a estratégias hermenêuticas distintas
poderia ser diferente, pois no ambiente de uma das que se abordaria com outros compositores: não
cortesã veneziana, como teria recitado a própria podemos ignorar como estas duas vozes tornam-se
Barbara Strozzi na “Polêmica do canto e das indissolúveis. Como vimos, o público que escutava
lágrimas”, um belo rosto cantando será mais sua música é o público da Accademia degli Unisoni,
14 15
Utilizo-me do termo “maneirista” a partir dos conceitos de Em minha tese de doutoramento, encontra-se este documento
Arnold Hauser em seu livro Maneirismo: a crise da traduzido, o qual relata um discurso sobre a polêmica entre o
renascença e o surgimento da arte moderna. São Paulo: poder do canto ou das lágrimas recitado na Accademia degli
Perspectiva, 1993. Unisoni, em Veneza, 1638.
simpósio de pesquisa em música 2006 19
homens da refinada intelligenza veneziana que papéis tradicionais e valores hegemônicos, banida
freqüentavam a academia para presenciar a de uma sociedade que simultaneamente a admira e
música da cortesã Barbara Strozzi. Música e inveja. L’astratto é, portanto, um manifesto de sua
autora tornam-se uma só, e os atributos da própria condição, expressando a uma só vez a longa
cortesania – inteligência, sedução, sofisticação tradição de vozes que transformam a solidão do
intelectual, coqueteria – fazem-se presentes em abandono em música com a bravura poética de uma
sua música. De forma similar a Gaspara Stampa, nova estética carregada de erotismo e sedução.
a obra de Strozzi torna-se assim uma obra
exemplar de sua própria vida. A cortesã é uma
mulher inerentemente abandonada, subvertendo
Fig. 1
Fig. 2
Fig 3a
20 SIMPEMUS3
Fig. 3b
Fig. 4
Referências
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O mito da música nas atividades da Companhia de Jesus no Brasil colonial
Marcos Tadeu Holler
Universidade do Estado de Santa Catarina
Resumo
A atuação musical dos jesuítas na América Espanhola deixou vários legados, como partituras, instrumentos
e representações iconográficas, o que permite uma reconstrução mais precisa da música do período. Por
esse motivo, geralmente se associa à Companhia de Jesus a imagem de uma ordem na qual a música
desempenhava um papel importante. Até que ponto essa imagem corresponde à realidade?
Algumas respostas a essa questão podem ser encontradas na própria documentação jesuítica referente ao
Brasil colonial. Para este trabalho foi realizado um levantamento de referências à música em textos
jesuíticos dos sécs. XVI a XVIII, em sua maior parte manuscritos, encontrados em acervos brasileiros e
europeus, sobretudo no Arquivo da Companhia de Jesus em Roma.
Referências
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26 SIMPEMUS3
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Evidências evolucionistas na historiografia musical sobre os jesuítas
Dalton Martins
Universidade Estadual Paulista
Resumo
Este texto pretende fazer algumas considerações sobre algumas evidências de um pensamento evolucionista
em textos de historiografia musical sobre os jesuítas. O período abordado é de 1908 à 1954, orientado em
função das fontes estudadas. O evolucionismo introduz-se no Brasil aproximadamente em 1870, oferecendo
pressupostos para a compreensão do “atraso” brasileiro em relação ás nações européias “civilizadas”. Após o
Modernismo, os pressupostos evolucionistas vão sendo substituídos por outros que privilegiavam a construção
de uma “cultura brasileira”. No entanto, mesmo após o advento do Modernismo, podemos permanecer um
traço evolucionista em nossa historiografia musical dedicada aos jesuítas, e, demonstrá-lo é o objetivo deste
texto.
Conclusão
Ao se concentrar na cronologia e
narrativa da vida dos “grandes homens” e dos
“formadores” do Brasil, a historiografia musical
brasileira, que surge no início do século XX,
1
“... la musica debba interessare in pari ogni spirito umano
di grado inferiori o superiori, nello svolgimento e
perfezione dell’arte che lo circunda”.
simpósio de pesquisa em música 2006 31
Referências
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ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira, 2. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1902.
Políticas públicas para cultura e produção musical em
Curitiba - 1971 a 1983
Ulisses Quadros de Moraes
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Este trabalho apresenta uma proposta metodológica de análise de fontes em relação às políticas públicas
para a área da música popular e para a produção musical curitibanas, no período que se estende entre os
anos de 1971 e 1983, com a utilização dos conceitos de campo, habitus e capital Simbólico, desenvolvidos
por Pierre Bourdieu. O recorte temporal definido se deve, principalmente, por ser relativo aos mandatos de
Jaimer Lerner (1971 a 1974), Saul Raiz (1975 a 1979) e novamente Jaimer Lerner (1979 a 1983), período de
implementação do que se tornaria conhecido por “lernismo” na capital paranaense, e que promoveu
profundas modificações urbanísticas e culturais em Curitiba.
A utilização dos conceitos de campo, habitus e capital simbólico, como norteadores teóricos da pesquisa, se
deram graças a contribuições dos professores doutores Dennison de Oliveira, meu orientador, e Judite Maria
Trindade e Luiz Carlos Ribeiro, professores do departamento de História da Universidade Federal do Paraná.
Durante toda a sua carreira intelectual, Bourdieu manteve estreitos laços com questões relativas à educação,
cultura, arte, comunicação e política. Suas obras As regras da arte, Economia das trocas simbólicas, O poder
simbólico e razões práticas, são onde o autor desenvolve com brilhantismo os conceitos aqui utilizados,
principalmente no que se refere à noção de práticas sociais, as relações de poder nelas existentes e os
limites e as regras de atuação individuais e coletivos.
De posse desses conceitos, vamos abordar nossas fontes dentro da perspectiva de Campo Artístico-Cultural
(onde nossos atores agiram) o qual abarcará os Sub-Campos Político (gestores públicos), Artístico e Cultural
(músicos populares e produtores) e da Imprensa (jornalistas ligados às artes e à cultura). Por fim, os
resultados práticos das políticas públicas Lernistas para a promoção da musica curitibana nos cenários local e
nacional serão analisadas à luz das fontes disponíveis.
7
“Uma das dificuldades da análise relacional está, na maior
Sobre o conceito de campo parte dos casos, em não ser possível apreender os espaços
sociais de outra forma que não seja a de distribuições de
A começar pela idéia bourdieuniana de propriedades entre indivíduos. É assim porque a informação
campo, vamos encontrar nas palavras de Roger acessível está associada a indivíduos. Por isso, para apreender
Chartier uma definição bastante elucidativa a o sub-campo do poder econômico e as condições econômicas e
sociais de sua reprodução [por exemplo,] é na verdade
respeito de sua amplitude conceitual, a sua obrigatório interrogar os duzentos patrões franceses mais
natureza relacional e sua abrangência importantes. Mas é preciso, custe o que custar, precaver-se
metodológica. Para Chartier contra o retorno à “realidade” das unidades pré-construídas.
Para isso, sugiro-vos o recurso a esse instrumento de
construção do objecto, simples e cômodo, que é o quadro dos
caracteres pertinentes de um conjunto de agentes ou de
Os campos, segundo Bourdieu, têm suas instituições: se se trata, por exemplo, de analisar diversos
próprias regras, princípios e hierarquias. São desportos de combate (luta, judô, aikidô, etc.) ou diversos
definidos a partir dos conflitos e das tensões no estabelecimentos de ensino superior, ou ainda diversos jornais
que diz respeito à sua própria delimitação e parisienses, inscreve-se cada uma das instituições em uma
linha e abre-se uma coluna sempre que se descobre uma
construídos por redes de relações ou de propriedade necessária para caracterizar cada uma delas, o
oposições entre os atores sociais que são seus que obriga a pôr a interrogação sobre a presença ou ausência
membros. (CHARTIER, 2002, p. 140). dessa propriedade em todas as outras – isto, na fase
puramente indutiva da operação; depois, fazem-se
desaparecer as repetições e reúnem-se as colunas que
Os campos são, pois, caracterizados por registram características estrutural ou funcionalmente
equivalentes, de maneira a reter todas as características – e
espaços sociais, mais ou menos restritos, onde as essas somente – que permitem descriminar de modo mais ou
ações individuais e coletivas se dão dentro de menos rigoroso as diferentes instituições, as quais são, por
certa normatização criada e transformada isso mesmo, pertinentes. Esse utensílio muito simples tem a
faculdade de obrigar a pensar relacionalmente tanto as
constantemente por essas próprias ações. unidades sociais em questão como as suas propriedades,
Dialeticamente, esses espaços, ou estruturas, podendo estas ser caracterizadas em termos de presença ou
de ausência (sim/não). Mediante um trabalho de construção
trazem em seu bojo uma dinâmica própria deter- dessa natureza – que se não faz de uma só vez, mas por uma
minada e determinante, na mesma medida em série de aproximações – constoem-se, pouco a pouco, espaços
sociais os quais – embora só se ofereçam em forma de
simpósio de pesquisa em música 2006 35
Faremos, assim, uma análise das relações era do que uma dentre outras tantas atividades a
entre os meios políticos, artísticos e culturais da serviço de uma ordem maior.
cena curitibana dos anos 70, procurando Mas como poderemos identificar a gênese do
entender a atuação de seus agentes, suas “mundo das artes” ou da autonomização de seus
limitações e suas estratégias para efetivar ações agentes, o que levou à elaboração ideológica do
visando interferir nos rumos da produção musical que entendemos hoje por arte e/ou artista? Uma
de então. Essa idéia nos auxiliará a definir resposta possível nos é dada por Bourdieu:
diferentes aglutinações de atores que
constituirão nosso conceito de campo. Assim,
o processo conducente à constituição da arte
nosso trabalho estará voltado para a construção
enquanto tal é correlato à transformação da
do campo artístico-cultural (onde nossos atores relação que os artistas mantêm com os não-
agiram) o qual abarcará os sub-campos político artistas e, por esta via, com os demais artistas,
(gestores públicos), artístico e cultural (músicos resultando na constituição de um campo artístico
populares e produtores) e da imprensa relativamente autônomo e na elaboração
(jornalistas ligados às artes e à cultura). concomitante de uma nova definição da função do
artista e de sua arte. (BOURDIEU, 2005, p. 101).
Nessa perspectiva, analisaremos as
relações entre as personagens dentro e fora
desse campo8, as tensões de seus diferentes Para ser possível a construção de um campo
agentes entre si, e, por fim, os resultados dessas artístico autônomo, foi necessária uma nova
relações para a construção de um ambiente de definição do artista e da própria arte na sociedade,
atuação artística e política visando à exposição e o que se deu como resultante da modificação
a valorização da produção musical de Curitiba. gradativa da idéia social da própria arte. Agora não
mais um ofício como outro qualquer, mas sim um
ofício com um status especial, ligado à erudição e a
Sobre o conceito de capital simbólico distinção.
Antes de falarmos sobre o capital Como conseqüência, essa elaboração tem de
simbólico, é necessária uma breve explanação ser observada num jogo determinado de poder,
acerca do processo de autonomização dos com suas ações e contradições. Se à força de uma
agentes artísticos. ação ou de um poder de ação para a efetivação
É sabido que as artes musicais não gozaram desse capital simbólico está vinculado seu
ao logo dos séculos do mesmo status que gozam enraizamento numa determinada estrutura – força
em nossos tempos. Até o século XVIII, a depen- essa aceita tanto pelos que a exercem quanto pelos
dência que os “trabalhadores dessas artes” que desse exercício sofrem suas influências – seu
tinham em relação à nobreza ou à igreja, reconhecimento por todos os agentes de uma
interferia sobremaneira em sua produção. Além sociedade é condição primeira para sua introjeção
disso, e com sua atuação limitada às como valor social.
necessidades de seus financiadores, os “artistas”
de então não possuíam ampla liberdade criativa9, O capital simbólico – outro nome da distinção – não
nem tampouco essa liberdade era requerida ou é outra coisa senão o capital, qualquer que seja a
almejada por eles. O fazer artístico nada mais sua espécie, quando percebido por um agente
dotado de categorias de percepção resultantes da
incorporação da estrutura da sua distribuição,
quer dizer, quando conhecido e reconhecido como
relações objetivas muito abstractas e se não possa tocá-los
nem apontá-los a dedo – são o que constitui toda a algo de óbvio. (BOURDIEU, 2003, p. 145).
realidade do mundo social”. (BOURDIEU, 2003, p. 29–30).
8
É preciso que entendamos que tanto no interior quanto na Aceito por todos como ingrediente natural da
órbita de nosso campo artístico-cultural, gravitam atores estrutura social, desse capital simbólico deriva um
com objetivos diversos. Se há, é certo, um esforço para a
manutenção das estruturas de poder e organização nos poder simbólico que é
seus mais variados aspectos dentro de cada campo, há
também esforços de agentes ainda excluídos desse campo,
no sentido de promover sua inserção e, por conseqüência, um poder que aquele que lhe está sujeito dá
participação efetiva na consolidação dessa estrutura. Um àquele que o exerce, um crédito com que ele o
jogo de forças, às vezes com objetivos similares, às vezes credita, um fide, uma auctoritas, que lhe confia
antagônicos, que constituem a natureza dos campos.
pondo nele a sua confiança. É um poder que existe
9
Podemos pensar que essa “liberdade criativa”, ainda não porque aquele que lhe está sujeito crê que ele
estava presente nos anseios artísticos. Pelo contrário, a
existe. (idem, p. 177).
autonomização das produções artísticas e intelectuais é
que viria a favorecer, mais adiante, o aparecimento do
chamado valor artístico como o entendemos hoje.
36 SIMPEMUS3
Novamente nos cabe recorrer à Bourdieu relações, que deve ser posto à prova como tal.
para entendermos o que é realmente esse poder (BOURDIEU, 2003, p. 32).
simbólico:
A construção de nosso modelo de pesquisa
O poder simbólico é um poder de construção da
está baseada, como já dissemos, em fontes
realidade que tende a estabelecer uma ordem documentais escritas, arquivos de áudio e
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, depoimentos orais (fontes orais). Abordaremos as
em particular, do mundo social) supõe aquilo a relações entre as políticas públicas para a música
que Durkheim chama o conformismo lógico, popular e as ações dos agentes artísticos (músicos,
quer dizer, “uma concepção homogênea do produtores e jornalistas culturais), no campo
tempo, do espaço, do número, da causa, que político-cultural curitibano, procurando entender o
torna possível a concordância entre as esforço conjunto dos atores de um tempo
inteligências”. (ibidem, p. 9).
determinado por nosso recorte, em construir um
mercado para a produção de seus bens simbólicos,
A esse poder simbólico, reconhecível e sem restringir nosso raciocínio a um pensamento
reconhecido pelos atores de seu tempo, cabem economicista. Pelo contrário, buscaremos nas ações
as análises mais cuidadosas, à luz das fontes sociais as práticas de seus diferentes agentes, seus
disponíveis. Quem exerce esse poder? Em nome objetivos, seus fundamentos e suas conquistas.
de quem? Sobre quem? Quais seus objetivos?
Dividimos nossas fontes em dois grandes
Quais suas limitações? Quais suas conseqüências?
grupos, a saber: fontes documentais, que se
Onde ele está localizado?
subdividem em fontes escritas e registros em áudio;
A todas essas questões, precisamos relacio- e fontes orais, que construiremos com entrevistas
nar o valor atribuído às ações dos agentes sociais realizadas com alguns dos nomes mais atuantes de
e o poder que dessas ações emana. Na nosso recorte temporal.
construção do campo artístico-cultural
abrangendo os gestores públicos, artistas e
produtores culturais e jornalistas ligados à arte e Fontes documentais
a cultura na Curitiba dos anos 70 e 80, As fontes documentais escritas que serão
investigaremos as condições em que esse campo utilizadas são bastante abundantes. Em relação às
se constituiu, suas conseqüências para a ações públicas municipais, os arquivos da Câmara
efetivação de práticas e valores políticos, Municipal de Curitiba disponibilizam toda a
artísticos e culturais e sua interferência nos legislação da capital paranaense desde 194710.
rumos das ações artísticas musicais de então. Contendo decretos legislativos, emendas à lei
Procurar o poder simbólico resultante das orgânica, leis complementares, leis ordinárias e
práticas sociais desses agentes e o real resoluções, os documentos são sinais importantes
significado desse Poder, suas origens e seu dos rumos da política cultural levada a cabo pelos
reconhecimento pelos atores de nosso “palco”. gestores públicos no período estudado. Os Anais da
Isso constitui, em última instância, a tarefa mais Câmara, documentos impressos disponíveis em
importante de nossa pesquisa. arquivos na Câmara Municipal de Curitiba, também
serão consultados como fontes sobre os debates
ocorridos acerca dos processos legislativos
Tipologia das fontes
concernentes ao nosso tema.
Nos arquivos da Casa da Memória - Fundação
Construir o objeto supõe também que se tenha,
Cultural de Curitiba - há uma vasta documentação
perante os factos, uma postura activa e
sistemática. Para romper com a passividade composta de publicações oficiais, relatórios anuais
empirista, que não faz senão retificar as pré- da Fundação Cultural e da Prefeitura Municipal de
construções do senso comum, não se trata de Curitiba, dentre outros. Nesses documentos, nossas
propor grandes construções teóricas vazias, mas atenções estarão voltadas para a visão dos gestores
sim de abordar um caso empírico com a sobre as características culturais da capital
intenção de construir um modelo – que não tem paranaense, sua relação com os demais órgãos
necessidade de se revestir de uma forma públicos (Secretaria de Estado da Educação e
matemática ou formalizada para ser rigoroso –,
Cultura e Teatro Guaira, principalmente) e a
de ligar os dados pertinentes de tal modo que
elaboração e efetivação de projetos para a música
eles funcionem como um programa de pesquisas
que põe questões sistemáticas, apropriadas a popular.
receber respostas sistemáticas; em resumo,
trata-se de construir um sistema coerente de 10
Disponível digitalmente no sítio <http://www.cmc.pr.gov.br>
simpósio de pesquisa em música 2006 37
Os gestores públicos municipais comporão, despendida pela imprensa local às investidas
portanto, nosso sub-campo político do período musicais curitibanas.
lernista, sobre o qual vamos proceder a um Não obstante Aramis Millarch ter sido apenas
estudo de práticas administrativas bem como de um dentre vários jornalistas a escreverem sobre
suas relações com outras esferas do poder música, seus textos requerem um cuidado especial
público. por sua paixão pelas artes e por sua ligação com a
No que diz respeito ao sub-campo artístico valorização dos movimentos artísticos e culturais
e cultural, concentraremos nossas atenções locais, além de seu nome ser um dos mais
também nos arquivos da Casa da Memória, além expressivos da imprensa local, lembrado com
do acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS), unanimidade por todos os atores, seus
este último vinculado à Secretaria de Estado da contemporâneos.
Cultura do Paraná. Não podemos deixar de lado outro veículo de
Na Casa da Memória, há registros em comunicação da imprensa escrita que teve um
11
áudio de eventos ocorridos no Teatro do Paiol, papel importante em nosso recorte temporal.
que serão úteis para conhecermos as Falamos do periódico Gazeta do Povo, que também
características estéticas da produção musical guarda preciosidades relativas ao nosso tema.
curitibana, além de serem uma mostra do poder Com essa documentação, comporemos nosso
de aglutinação de público que essa produção acervo de fontes escritas, que será comple-
detinha. Alguns outros registros em áudio e uns mentado com a realização de entrevistas, conforme
poucos em vídeo estão sob responsabilidade do descrito a seguir.
Museu da Imagem e do Som, principalmente os
referentes a espetáculos realizados no auditório
Salvador de Ferrante. Essa documentação nos Fontes orais
dará indícios preciosos a respeito da produção da Após o levantamento prévio da documentação
música popular dos anos 70 e 80. mencionada, achamos que poderíamos ter um
Por último, ainda estarão sob nossos acréscimo de conteúdo mediante realização de
olhares os arquivos dos meios de comunicação da entrevistas com alguns dos protagonistas da cena
imprensa escrita, que comporão nosso sub-campo musical curitibana. Elaboramos um mapeamento de
jornalístico. As produções de seus agentes nomes que apareceram com mais freqüência nos
contêm pistas sobre sua relação com as textos jornalísticos e em cartazes e panfletos de
expectativas dos artistas e gestores públicos de divulgação de espetáculos musicais realizados no
então e sua contribuição para a exposição das Teatro Paiol, administrado pela prefeitura de
ações políticas voltadas para a música popular e Curitiba, e no Auditório Salvador de Ferrante14.
da produção musical dos talentos curitibanos. Elegemos num primeiro momento os artistas
Nesse sub-campo, elegemos como foco de nossas Paulo Vitola, Marinho Galera, Celso Pirata, Aderbal
atenções o jornalista Aramis Millarch12, um dos Fortes, Sergio Maluf, Euclides Cardoso, Gerson
mais importantes e atuantes profissionais da Fisben e Carlos Amaral15, todos eles personagens
área, que esteve em plena atividade nas décadas bastante atuantes na cena musical dos anos 70.
de 70 e 80. Já temos catalogados centenas de Desses, realizaremos entrevistas com Paulo Vitola,
artigos assinados por ele em diversos cadernos Marinho Galera, Celso Pirata e Sergio Maluf, por se
principalmente do jornal O Estado do Paraná, tratarem de nomes de destaque no Movimento
com boa parte de seus escritos disponíveis para Artístico Paiol – MAPA, foco artístico de nossas
consulta13. Esses textos nos darão um indício do atenções, e cujas obras obtiveram maior
volume das produções musicais do período em repercussão junto ao público e à critica
questão e serão bons exemplos da atenção especializada. Também realizaremos uma
entrevista com o ex-prefeito de Curitiba, Jaime
Lerner, cujo depoimento deverá acontecer no
11
primeiro semestre de 2007.
Estão disponíveis para consulta na Casa da Memória de
Curitiba, fitas de rolo e cassete com o registro em áudio de
muitos espetáculos realizados no Teatro Paiol desde sua 14
inauguração no final de dezembro de 1971. Além desses dois teatros, destacava-se também, nos anos 70 e
80, o Teatro do SESI. Localizado próximo ao passeio público,
12
Alem de jornalista atuante, Aramis Millarch foi o primeiro área central de Curitiba, o espaço foi destruído por um
presidente da Fundação Cultural de Curitiba, quando de incêndio no final dos anos 80.
sua fundação em 1973. 15
Mais dois nomes teriam presença obrigatória em nossas
13
Dos milhares de artigos escritos por Aramis Millarch ao entrevistas, não fosse o fato de terem prematuramente
longo de sua carreira, muitos foram já digitalizados e estão falecido. São eles Paulo Leminski e Palminor Rodrigues, o
disponíveis no sítio <http://www.millarch.org/> Lápis.
38 SIMPEMUS3
O que justifica nossa opção pela resultantes, são de suma importância para
elaboração de entrevistas com algumas das construirmos um panorama sobre um lado da
personagens dessa história, pode ser apreendido história curitibana ainda muito pouco explorado
pelas palavras de Robert Frank: pela historiografia. A exceção de artigos e
pesquisas acadêmicas publicadas recentemente
A história é, entre outras coisas, um inquérito sobre o tema16, pouco se sabe desse cenário.
quase no sentido policial do termo, com É nesse contexto que procederemos ao
indícios, depoimentos e testemunhas. O estudo das fontes, procurando decifrar os enigmas
depoimento oral não constitui necessariamente que nos propõe as ações políticas, musicais e
uma prova, mas pode ser uma boa contribuição jornalísticas na década de 70.
para a busca da prova ou das provas (FRANK,
1999, p. 106). Por último, vale lembrar que nossa pesquisa
não negligenciou a importância de outras vertentes
musicais. A música erudita, a música folclórica, a
Ao lado da análise das fontes documentais,
música regional ou sertaneja são extremamente
os depoimentos de agentes da cena musical
relevantes para uma construção mais fiel desse
curitibana dos anos 70 serão de extrema
passado. Entretanto, deixamos essa tarefa para
importância. De um lado, músicos e produtores
projetos futuros que, imbuídos do ideal de
culturais, com seus anseios, seus projetos de
entender a participação da produção musical
vida e sua relação com a burocracia, já que o
curitibana num contexto nacional, almejarem
MAPA também era uma associação que possuía
avaliar suas ações, suas limitações e, é claro, suas
uma estrutura organizacional que demandava
realizações, que foram muitas.
afazeres distintos – embora conexos – aos
artísticos. De outro os gestores públicos, com sua
visão administrativa “inovadora” e, obviamente,
detentora dos recursos financeiros e de infra-
estrutura disponíveis na Curitiba da época.
Assim, sabendo que
Resumo
O movimento Dekassegui – que em japonês significa ‘movimento daqueles que trabalham longe de casa’ – se
tornou popularmente conhecido em 1990, quando a lei de imigração japonesa permitiu a contratação de
nipo-descendentes para trabalhar em empresas japonesas. Apesar de haver um grande número de
trabalhadores brasileiros residindo atualmente no Japão, a adaptação à terra do sol nascente continua sendo
difícil para a maioria dos nipo-brasileiros, e o idioma japonês a primeira barreira. Assim que chegam ao
Japão, muitos nipo-brasileiros passam por uma profunda crise de identidade já que possuem características
físicas “japonesas”, mas são, culturalmente falando, uma mistura de japonês e brasileiro. Tais conflitos,
aliados às dificuldades inerentes a qualquer processo migratório, representam um desafio para a sociedade
japonesa. Considerando que a música exerce um papel importante na identidade, é importante
compreender seu papel na construção (e reconstrução) das identidades pessoal, cultural e nacional dos nipo-
brasileiros residentes no Japão. O presente estudo foi baseado em observações de campo e entrevistas
realizadas com crianças e adultos nas municipalidades de Kariya-Shi e Homi-Danchi (província de Aichi-Ken)
em julho e agosto de 2005, com financiamento da Fundação Japão. Os resultados sugerem que o uso da
música por dekasseguis está diretamente ligado a questões identitárias. Enquanto a música brasileira
pareceu servir como forma de preservação da identidade brasileira, a música japonesa esteve presente no
cotidiano dos dekasseguis somente quando foi percebida como sendo semelhante à música brasileira ou
quando foi vista como via de acesso à vida japonesa. Implicações do presente estudo para as áreas de
psicologia social e relações internacionais são apresentadas ao final do texto.
Palavras-chave: Dekassegui, música, identidade, relações internacionais Brasil-Japão
1
Kiken-kitsui-kitanai, ou, perigoso-pesado-sujo. 2
Também conhecidas como brokers.
simpósio de pesquisa em música 2006 41
• 1990: Data da modificação da lei de imigração identidade, já que possuem características físicas
japonesa, que permitiu a entrada de milhares japonesas3, mas são, culturalmente falando, uma
de trabalhadores nipo-descendentes (sobretudo mistura de japonês e brasileiro (LINGER, 1999;
brasileiros e peruanos) no Japão. MIYASAKA et al, 2002; ROTH, 2002). Como sugere
Sato (2003, p. 1), os dekasseguis são ‘japoneses
Segundo as estatísticas do Governo do aqui, brasileiros lá’. Tal conflito leva muitos
Japão, há aproximadamente 360.000 nipo- dekasseguis a um questionamento profundo acerca
brasileiros trabalhando nas fábricas do país. Por de suas identidades nacional, cultural e pessoal.
esta razão, diversos pesquisadores têm Mas como se definem a identidade japonesa e a
investigado o movimento dekassegui e seu identidade brasileira? Estas duas identidades podem
impacto sobre os indivíduos e sobre as mesmo co-existir?
sociedades japonesa e brasileira (CARIGNATTO, Murphy-Shigematsu (2004) argumenta que ser
2002; GALIMBERTTI, 2002; HIGUCHI & TANNO, japonês não é nem uma questão biológica ou de
2003; KAWAMURA, 2003; KITAGAWA, 1998; nacionalidade, mas sim uma questão de experiência
MIYASAKA et al, 2002; ROTH, 2002). Mais e de conhecimento cultural. Entretanto, sua visão
recentemente, alguns estudos têm investigado o contradiz todo o conceito de Nihonjinron – uma
ajuste das famílias nipo-brasileiras ao estilo de ideologia bastante controversa que enfatiza a
vida japonês (veja KAWAMURA, 2003; LINGER, homogeneidade japonesa e seu caráter singular em
1999). O que a maioria desses estudos sugere é todos os aspectos da vida (KANNO, 2000). Para
que, apesar de haver um grande número de muitos seguidores desta ideologia, os japoneses que
trabalhadores brasileiros residindo atualmente não se parecem japoneses são chamados de haafu4,
no Japão, a adaptação à terra do sol nascente muito embora tal descrição pouco tenha a ver com
continua sendo difícil para a maioria dos nipo- suas identidades (MURPHY-SHIGEMATSU, 2004). A
brasileiros. Isso ocorre porque, ao cruzar definição de uma identidade japonesa é ainda mais
fronteiras, o indivíduo carrega consigo traços difícil quando se consideram os indivíduos que têm
étnicos, lingüísticos, religiosos e culturais ascendência japonesa, mas não possuem
(KITAGAWA, 1998), que têm um impacto direto nacionalidade ou qualquer vivência cultural
sobre a identidade em pelo menos três níveis: semelhante àquela dos japoneses que habitam o
nacional, cultural e pessoal. Japão (como é caso de muitos nipo-brasileiros). Em
outras palavras, apesar de sua aparência
Definindo identidades monolítica, a identidade japonesa é muito mais
multifacetada do que se costuma pensar (MURPHY-
Ainda que as nações sejam facilmente
SHIGEMATSU, 2004).
traçadas num mapa geográfico, o mesmo não
ocorre quando o assunto é a identidade nacional No entanto, a tarefa se torna ainda mais
ou a identidade cultural. De acordo com Murphy- árdua quando o assunto é a identidade brasileira. A
Shigematsu (2004), a nacionalidade de um história do Brasil contribuiu para criar um país
indivíduo não é mais que um artefato legal. mestiço, com grandes variações culturais e muitos
Segundo Folkestad (2002), o conceito de naciona- contrastes (RIBEIRO, 1972/1994). Muitos antropó-
lidade é constituído a partir de um processo ‘de logos e historiadores têm escrito sobre o tempera-
cima para baixo’ e pode ser compreendido como mento e a identidade dos brasileiros. Buarque de
uma espécie de elo que mantém indivíduos de Hollanda (1936), por exemplo, descreve o brasileiro
diferentes origens culturais e étnicas num mesmo como sendo cordial; alguém que gosta de agradar a
grupo. Já a identidade cultural advém de um todo custo, e que não mede esforços para fazê-lo.
processo ‘de baixo para cima’ porque freqüen- Já Da Matta (2001) fala sobre o caráter malandro
temente se baseia em manifestações que são dos brasileiros, que são freqüentemente relapsos e
bastante tradicionais, e, em muitos casos, mais preguiçosos no trabalho, apesar de serem ótimos
antigas que muitos limites territoriais. Por esta amigos. É interessante notar, porém, que os nipo-
razão, fica fácil compreender o porquê de muitas brasileiros nem sempre combinam com as
pessoas possuírem mais de uma identidade definições supracitadas. No Brasil, são
cultural (FOLKESTAD, 2002). E como não poderia freqüentemente vistos como um grupo diferenciado
deixar de ser, a identidade pessoal refere-se a de brasileiros, com identidades e manifestações
atributos pessoais altamente idiossincráticos, tais
como personalidade, traços físicos e intelectuais, 3
Entende-se por características físicas japonesas todos os
entre outros (veja TARRANT et al, 2002). atributos que nos fazem reconhecer um japonês como tal (os
olhos puxados, o cabelo preto e a cor da pele, entre outros).
Assim que chegam ao Japão, muitos nipo-
4
Haafu vem do inglês half.
brasileiros passam por uma profunda crise de
42 SIMPEMUS3
pode oferecer pistas acerca dos estados ‘deslocamento temporal’, que acompanha o
psicológicos e possivelmente, das condições cotidiano de muitos imigrantes. A idéia de
sócio-econômicas dos participantes. Segundo deslocamento temporal vai de encontro com os
Higuchi e Tanno (2003), o perfil sócio-econômico estudos que sugerem uma mudança gradativa (e
dos dekassegui vem mudando consideravelmente muitas vezes drástica) na percepção que os
nas últimas décadas, com um contingente maior imigrantes têm de suas culturas e países de origem
de pessoas de classes mais desfavorecidas (vide BAR-YOSEF, 1968; HOLLERAN, 2003;
buscando por trabalho no Japão. RUMBAUT, 1997). Muitas vezes, as percepções que
É interessante notar que a maioria dos o imigrante passa a ter de sua terra natal tornam-
adultos que citou o gênero sertanejo como sendo se dicotômicas (idílicas ou detestáveis). Para se
o seu favorito, falou também de sua preferência sentir ‘em casa’, alguns entrevistados descreveram
por enka5, argumentando serem gêneros a necessidade de reviver – de alguma maneira –
‘praticamente idênticos’. Como disse um dos situações e eventos passados, inclusive de natureza
entrevistados: musical. Para eles, ouvir canções do passado
constituía-se muitas vezes como uma maneira de
voltar no tempo, e manter suas ‘identidades
Antes de vir para o Japão eu detestava enka
antigas’. A música pareceu prover ou até mesmo
porque eu achava muito cafona. Eu detestava
quando eu ia aos matsuris [festivais japoneses] facilitar o surgimento de uma zona de conforto,
na comunidade nikkei6 e todo mundo ficava através da qual os dekasseguis ‘podiam ser quem de
cantando. Eu achava meio ridículo. Como sou fato eram’ – sem restrições.
um grande fã do Amado Batista e do Zezé de
Camargo e Luciano, trouxe todos os meus CDs
deles comigo, e costumava ouvir o tempo todo.
Em busca de uma identidade musical brasileira:
Depois que eu aprendi algumas palavras em funções da música nacional e estereótipos
japonês e comecei a ir aos karaokês com meus Muitos dekasseguis que tinham algum
colegas da construção, eu comecei a perceber envolvimento na comunidade japonesa, também
que enka é muito parecido com sertanejo. descreveram usos diversos da música, que variavam
Então eu escuto de vez em quando. Eu ainda
de acordo com seus acompanhantes. Entre
prefiro o sertanejo do Brasil, mas enka também
brasileiros, eles se sentiam livres para explorar seus
é bom!
estilos favoritos. Entretanto, na presença de
Além de sertanejo e enka, outros gêneros colegas japoneses, alguns relataram uma
musicais foram citados pelos entrevistados. preferência por estilos que fossem mais
Porém, muitos deles encontravam-se defasados estereotípicos, como o samba, a bossa-nova, axés e
em relação às ‘paradas de sucesso’ da outros ritmos/canções sugestivos de movimentos
atualidade. Por exemplo, axé foi um gênero corporais sensuais (como no caso da canção ‘Na
altamente citado pelos participantes, e Daniela boquinha da garrafa’ do grupo É o tchan). Este
Mercury foi citada como sendo sua principal resultado está em sincronia com a idéia de duas
representante; nenhum participante citou funções para a música nacional em território
nomes de artistas da atualidade. É pouco estrangeiro: emblemática e catalítica (vide
provável que tal fato esteja relacionado ao HAMMARLUND, 1990 apud FOLKESTAD, 2002).
acesso aos recursos midiáticos, já que todos os Enquanto a função emblemática da música está
entrevistados possuíam TV brasileira (canal a direcionada para fora, isto é, para imprimir idéias
cabo com a programação atual da Rede Globo) e (e estereótipos) nacionais para aqueles que não
computador com internet. Tal fato pode estar pertencem àquela cultura, a função catalítica da
mais relacionado ao trabalho excessivo de grande música serve para produzir uma sensação de
parte dos entrevistados, que passam muito pertencimento de um indivíduo ou grupo de
tempo no interior de fábricas ou na construção indivíduos a uma nação. Ambas as funções
civil e têm pouco tempo livre ou interesse para apareceram no contexto da presente pesquisa, mas
explorar novos gêneros musicais. Contudo, a foi principalmente quando a música pareceu
explicação mais plausível pode residir no exercer uma função emblemática que emergiram
diversos estereótipos do Brasil e dos brasileiros. A
criação e o reforço de tais estereótipos parecem
5
Enka é uma balada sentimental japonesa, muito popular no seguir um modelo de causalidade circular ou
Japão e no Brasil, inclusive em versões cover (YANNO,
2005). Uma característica do gênero é a constante
retroalimentação (SOARES & PEREIRA, 2005),
repetição de motivos melódicos, além da hiper- conforme ilustrado na figura 1:
expressividade vocal.
6
Nipo-brasileira.
simpósio de pesquisa em música 2006 45
musical em casa, já que as crianças não eram
nascidas na época em que estas canções eram
populares. É bem provável que as crianças tenham
aprendido tais canções com seus pais e parentes
próximos que, possivelmente, usavam a música
como forma de acalmar a saudade e mantê-las mais
próximas do Brasil ou como forma de imprimir
idéias e sentimentos nacionais nas identidades de
seus filhos.
Comentários finais
De maneira geral, o presente estudo sugere
que a música exerce um papel importante na
manutenção da identidade brasileira dos
dekasseguis residentes no Japão. Além de criar uma
zona de conforto, a música constitui uma
importante forma de expressão, através da qual o
dekassegui expressa sua brasilidade. Entretanto, é
interessante notar que, enquanto a música
brasileira serve para preservar a identidade
brasileira do dekassegui, a música japonesa só
aparenta ser incorporada à rotina por aqueles que a
concebem como uma rota de acesso à vida e à
cultura japonesas (veja DeFERRANTI, 2002).
Figura 1. Modelo de causalidade circular dos Para muitos dekasseguis, a incorporação da
estereótipos de música nacional. música japonesa aos hábitos musicais cotidianos
parece representar um passo na direção da
Ainda em relação à música e à identidade adaptação ao Japão. Esses indivíduos geralmente
nacional, foi interessante notar que todos os apresentam expectativas e pensamentos mais
adultos optaram por cantar em português. positivos em relação ao Japão que seus
Somente uma criança se recusou a cantar; todas compatriotas, e vislumbram-se como membros da
as demais cantaram em português e a maioria comunidade local, o que, de acordo com Chavez
cantou também uma canção em japonês. A (1994), exerce uma influência enorme sobre o
análise do repertório documentado revelou sucesso de sua adaptação e fixação no país. Porém,
algumas surpresas. Com relação à música apesar da ascendência japonesa, a maioria dos
japonesa, as crianças que se definiram como dekassegui ainda passa por um grande choque
sendo completamente bilíngües cantaram cultural quando chega ao Japão (veja LINGER,
canções e vinhetas de abertura de animés7; as 1999). Talvez por falta de informações atuali-
demais cantaram canções aprendidas na escola. zadas, alguns viajam para o país esperando
Novamente, há uma indicação da importância do encontrar a terra que seus ancestrais deixaram
idioma no acesso à música (e, portanto, cultura), para trás – um Japão rural e estereotipado (e com
com as crianças bilíngües encontrando-se mais alguns aparatos tecnológicos) – que muitas vezes
aculturadas aos bens culturais comuns à infância tem mais a ver com a nostalgia de seus parentes do
japonesa da atualidade (vide KANNO, 2000). que com o país em si. Outros esperam encontram
Também vale notar que, ao registrar uma canção no Japão uma vida idílica, tanto em termos da
em português, vários adultos e crianças cantaram tranqüilidade cotidiana quanto em termos
canções patrióticas de épocas remotas, como Eu econômicos. No entanto, o Japão ‘ideal’ é
te amo meu Brasil e Este é um país que vai prá rapidamente substituído por um Japão ‘real’ – com
frente, que remontam ao governo militar (1964- todos os seus aspectos positivos e negativos. Esse
1984). Meihy (1998) encontrou resultados choque, que é ao mesmo tempo um choque de
semelhantes em sua pesquisa sobre os brasileiros expectativas e um choque cultural, cria um
residentes em Nova Iorque. Tais escolhas podem deslocamento temporal que tem um impacto direto
estar diretamente relacionadas ao ambiente sobre a identidade em seus diversos níveis.
O presente estudo reforça a idéia de que a
7
Animé é um tipo de desenho animado japonês, muito questão identitária é latente no caso dos
apreciado pelas crianças japonesas.
46 SIMPEMUS3
dekassegui. Como ficou dito, os dekassegui são reconceituação do termo cidadania. Segundo ele,
‘japoneses aqui e brasileiros lá’. Lidar com esta isso só é possível se estendermos nossos
‘mudança’ de identidade é uma tarefa difícil, pensamentos para além da idéia de
sobretudo porque ela implica no reconhecimento multiculturalismo8, chegando ao transnaciona-
do fato de que, em seu próprio país de origem, lismo9, que sugere uma ênfase na ação humana,
os nipo-brasileiros são freqüentemente vindo a ‘permitir’, inclusive, a coexistência de
considerados como um grupo à parte e que se múltiplas identidades em um único indivíduo.
encontra numa intersecção identitária entre Obviamente, a compreensão do mundo através de
brasileiro e japonês. Como não poderia deixar de um viés transnacional tem um impacto direto sobre
ser, isso se reflete também na indústria cultural, os conceitos de naturalização e cidadania.
já que há muitos ídolos dekassegui, como o Por se tratar de uma forma de arte bastante
cantor brasileiro Joe Hirata, que permanecem democrática, a música pode servir para fomentar o
pouco conhecidos dos brasileiros e dos pensamento transnacional e, possivelmente, ajudar
japoneses, mas que são idolatrados pela os dekasseguis (e muitos outros migrantes e
comunidade nikkei, aqui e lá. imigrantes pelo mundo afora), no infindável
Como sugere Kitagawa (1998), embora o processo de negociação, construção e reconstrução
conceito de fronteira/borda esteja se diluindo a de suas identidades.
cada dia, as bordas étnicas e culturais que
existem entre os indivíduos não desaparecem
assim tão facilmente. Por ser tão importante na
vida diária, o conhecimento da língua é
certamente um passaporte para a adaptação do
indivíduo e reconstrução de sua identidade em
um novo país, já que é através da língua que
muitas trocas simbólicas vão ocorrer. Além disso,
em tempos de globalização e de constantes ______________________
8
migrações humanas, o estudo da identidade em Multiculturalismo – a idéia de que nações ou estados
homogêneos e monoculturais não existem.
seus três níveis é demasiado importante, 9
Transnacionalismo – a idéia de que as diferenças só podem ser
sobretudo se considerarmos suas implicações compreendidas se ultrapassarmos as barreiras territoriais ou de
para as questões de imigração e cidadania. nação.
Castles (2004) nos provoca sugerindo uma
Agradecimentos
O presente estudo faz parte de um projeto de pesquisa intitulado Documenting songs and chants of Japanese and
Japanese-Brazilian children, financiado pela Fundação Japão (órgão cultural do governo japonês), que me concedeu o
‘Japan Foundation Fellowship 2005’, oferecendo todas as condições necessárias para a realização da pesquisa de campo
no Japão, entre julho e agosto de 2005. Sou grata à Dra. Yoko Minami (Universidade Kinjo-Gakuin de Nagoya), Kimi
Kodama (Escola Elementar de Homi-Danchi), Emi Antunes (Kariya-Shi) e Luciana Kimie Eguti (Birdo Studio) pelo auxílio
durante a coleta de dados. Agradeço ainda ao Prof. David J. Hargreaves (Universidade de Surrey-Roehampton, Inglaterra)
por seus inúmeros comentários a uma versão preliminar deste artigo.
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Globalization and Brazilian jazz artists
Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Abstract
The 90’s introduced to the world the reality of globalization where technologies like internet and digital
recordings became part of any mucian’s life musician, regardless the type of music created. There were
drastic changes in the way artists presented, sold and advertised their music. Almost as important was the
hope that, alongside with those changes, new opportunities would be presented for jazz artists who were
traditionally left out of the standard outlets for musical production. It was a time for expectations of
renewed. In Brazil, famous for its music, mostly non-classical, musicians were excited because globalization
could provide a chance to bring new audiences to their music; a process that started in the 60’s but had
come to a stall in the 80’s. Whichever these expectations were, globalization worked in the opposite way for
Brazilian jazz musicians. Those artists saw their opportunities shrink dramatically not only inside their own
country but specially abroad, where international jazz festivals started to fill their roasters with Brazilian
pop singers being touted as “jazz artists” when, strangely enough, they try to stay away from the label jazz
when performing in Brazil. What could be done to bring the real Brazilian Jazz once again to Europe?
national recording companies. CDs of Brazilian simply disregard, but what can they do? Basically
pop artists are being released in Europe by their nothing. When I sent a few friends an email asking
companies’ affiliates – most of the times as jazz if they want to send me a CD for me illustrate my
– while the subsidiaries in Brazil would cover presentation, I was surprised to be contacted by
some of the traveling expenses like plane tickets people that I had never had even met expressing
and even in some cases, housing, and musician’s sympathy and saying they wanted to be part of it. I
dues making those artists very attractive in the had not called anyone, but my email spread as
cost-benefit column. people forwarded it to each other traveled. People
Gradually even promoters that used to called me on the phone and even some Brazilian
bring Brazilian jazz artists to Europe to play in jazz musicians living and working abroad wanted to
the continent started to shift and in a short pitch in. Unfortunately, I had to travel light and
period of time the interest was only on singers, just chose just CDs that I could assemble in few
blocking the way for a whole new generation of days to bring in with me.
jazz artists from Brazil to play in European jazz
festivals. The situation got to a point that a Globalization and Brazilian jazz music
famous jazz drummer in Brazil who was trying to
At first globalization seemed to be, for a
book gigs in Europe for his band when
Brazilian jazz musician, a more democratic
approached the local representative of one of
approach to promote and sell their music, but what
the agents that book Brazilian acts received a
really happened is that globalization changed the
reply that said “Brazilian jazz has to have
perception of the Brazilian jazz music to something
vocals.” Strangely enough this was the same
not even close to jazz. If pop artists are now jazz
agent who brought Hermeto Paschoal and
musicians, what is, or how, an actual jazz musician
Egberto Gismonti to Europe in the seventies.
will be perceived? The answer is…, well, we do not
Apparently, he had a change of heart.
need to answer because they are not perceived at
all.
The Brazilian jazz musician situation There has been few Brazilian Jazz artists to
From the view point of a Brazilian jazz manage somehow to play in few venues in Europe
musician the most frustrating aspect of this but in most cases, they had to cover their own
situation is to see that pop artists are perceived expenses for traveling and touring can be a very
and labeled as jazz musicians worldwide, while gruesome experience due to lack of a local support.
inside their own country they go to incredible To change that we might have to start using
lengths to dissociate themselves from anything the globalization to do what it promised to do in
even remotely related to jazz. Sometimes even the first place, create a democratic venue to let
explicitly declaring in interviews their people who are not heard to develop a voice. The
completely dislike for jazz music. So, in Brazil jazz community is by definition a minority, sharing
they are pop artists but abroad they are jazz a small percentage of the global music market. So
musicians, how can that be? For a singer to be we need to connect this scattered minority to make
perceived as a jazz singer means less opportunity it a collective effort. Although jazz is also by
in performance venues and certainly almost no definition an open art form that survived and
chance to land a fat recording contract. There developed through the decades by accepting
are some singers that present themselves as jazz everyone with his/her own style and cultural
acts but in that case they will face the same background, making that probably the reason why
situation as any jazz musician, meaning less jazz is everywhere. By having a definition of jazz
opportunities and basically total independent that will not created an exclusion, but will rather
production, promotion, and managing of their draw a clearer line between pop and jazz, maybe
art. we can bring to the scene artists that are, right
For a Brazilian jazz musician, singer or now, truly excluded.
instrumentalist, who finance independently
his/her CD and has to be responsible for their
own booking, seeing that the same people that
despise jazz in their country having a chance to
perform in jazz festivals abroad and being
presented as jazz musicians is a terrible fact to
Juventude e seus referenciais rítmico-melódicos: estilos musicais
Rosemyriam Cunha
Faculdade de Artes do Paraná
Resumo
As experiências sonoras, rítmicas e melódicas que as pessoas vivenciam no decorrer de suas trocas sociais
podem se configurar em preferências que irão se circunscrever dentro de estilos musicais. Tais estilos não se
limitam apenas ao tipo de música que as pessoas gostam de escutar. Parece que a influência ultrapassa os
limites das estruturas musicais abrangendo a construção de valores, as posturas perante o mundo, as
maneiras de adornar o corpo, de vestir-se e de situar-se corporalmente no mundo. Essa escolha, porém, não
é arbitrária. Ela se constrói de acordo com os elementos sócio-culturais e afetivos com os quais a pessoa
interage no decorrer de sua vida. Em se tratando de jovens, estes buscam referenciais para a formação de
seus repertórios sonoro-afetivo-culturais nos ambientes onde transitam. O objetivo desse trabalho foi o de
conhecer os estilos musicais preferidos dos jovens e o significado do repertório musical por meio do qual eles
expressam esses estilos. Como resultado, encontramos que o grupo de rapazes estudado escolheu três estilos
musicais. As letras das canções que se inserem nos estilos aproximam-se da descrição da realidade em que
vivem, trazem elementos para o entendimento de contradições emocionais e ainda servem como base
rítmica para a expressão de sonoridades coletivas.
Palavras chave: estilo musical, jovens, musicoterapia
Este trabalho nasceu do pressuposto de tros. Boggdan e Biklen (1994) propõem esse tipo de
que a música com seus componentes ritmo, intervenção defendendo uma postura ativa do
intensidade e poesia, poderia se constituir em pesquisador que se envolve ativamente na ação das
um meio de expressão dos significados e sentidos pessoas traçando os objetivos de seu estudo.
que as pessoas constroem no decorrer se sua O primeiro encontro foi destinado a
trajetória histórica. entrevistas orientadas para o conhecimento das
Considerando a música como um elemento preferências musicais e das histórias das vidas dos
de expressão social e cultural do qual a rapazes. Os encontros subseqüentes, com fre-
juventude se apropria para falar de si e do qüência de duas vezes por semana, durando em
mundo em que vive, decidiu-se estudar o média uma hora e meia, se constituíram em
universo dos jovens e suas sonoridades. atividades criativas que tinham por base inter-
O objetivo que norteou essa pesquisa foi o venções e técnicas musicoterapêuticas. A expec-
de conhecer os estilos musicais preferidos desses tativa era a de estimular da expressão musical dos
jovens e o significado do repertório musical por rapazes de forma que eles se expressassem em
meio do qual eles concretizam esses estilos. atividades dirigidas à percussão de instrumentos
Para tanto foi planejado um processo científico musicais, audição de músicas gravadas e à
de musicoterapia que, de acordo com Bruscia expressão e interpretação de canções.
(2000), consta de um processo musicoterapêutico Os encontros se realizavam na sede do
com início e fim pré-determinados durante o programa. Dois estagiários do curso de musico-
qual o grupo interage por meio de atividades terapia colaboraram na coleta de dados e o edu-
musicias e o musicoterapeuta colhe os dados cador dos jovens permanecia na sala no decorrer
para seu estudo. Vamos entender musicoterapia dos encontros.
como a utilização científica da linguagem As sugestões e pedidos musicais dos jovens,
musical com o objetivo de “aumentar as sua expressões sonoras e rítmicas, seus depoi-
possibilidades de ação” da pessoa no âmbito mentos foram acatados e gravados em fitas K7 e
individual como social (RUUD, 1998). posteriormente transcritos. Todas as ações produ-
Os dados dessa pesquisa foram coletados zidas durante os encontros tiveram por base os
junto a um grupo de 18 rapazes, cuja idade conteúdos e interesses revelados pelo grupo.
variava entre 13 e 17 anos. Esses jovens eram O grupo e a musicoterapeuta se reuniam ao
egressos da rua e participavam de um programa redor do material preparado para o trabalho:
de sócio-educativo. Todos eles moravam com aparelho de som, instrumentos musicais, letras de
suas famílias e pertenciam a um nível sócio- canções e CDs. Alí tinham a oportunidade de tocar,
econômico baixo. cantar e sugerir suas músicas. Muitas vezes o
A coleta foi efetivada por meio da inves- pedido era o de ouvir. Recostavam-se nos tatames
tigação-ação num processo que somou 18 encon- ao chão, ouviam as canções e logo em seguida
52 SIMPEMUS3
refletíamos sobre a música e os temas que cena deixando de ser mencionadas ou requisitadas.
recordavam mediante a ação da escuta. Em meio a protestos e desqualificações
Suas solicitações de músicas e CDs foram manifestadas por adeptos de um ou outro estilo, ao
atendidas. A cada sessão, novos pedidos eram ter que escutar elementos não pertencentes ao
anotados e trazidos no encontro seguinte. Assim “seu território”, o que se estabeleceu foi uma
os rapazes puderam construir e se apropriar de tolerância na qual aceitava-se a presença sonora do
um repertório de musical que foi se formando outro, na expectativa de que o “seu território” logo
por meio de suas próprias sugestões. se faria presente.Também a linha que separava
Ao requisitar músicas específicas, cantores esses espaços foi virtual, pois alguns jovens
preferidos, conjuntos de seu interesse, o grupo transitavam entre os territórios, aceitando mais do
revelou sua vivência musical. Também revelaram que um estilo musical.
referências e escolhas por meio das canções que
interpretavam durante os encontros e das Os estilos
expressões verbais que realizaram.
Estilo, do grego stûlos ou coluna, pode ser
Todas as formas de expressão concretas entendido como o conjunto de tendências, gostos,
objetivadas no decorrer do processo foram consi- modos característicos de comportamento de um
deradas como dados relevantes para esta grupo, ainda, o conjunto de traços que identificam
pesquisa como ritmos, intensidades, letras de determinada manifestação cultural de acordo com
músicas, relatos orais e improvisações musicais. definição do Dicionário Houaiss (2001).
Os dados foram classificados em categorias O grupo de rapazes trouxe para as atividades
de codificações, analisados e interpretados sob o musicoterapêuticas, manifestações sonoro-musicais
apoio de teóricos da psicologia e da musicote- em diferentes estilos. Porém, no decorrer dos
rapia. Para a análise dos discursos sonoros foi encontros, três estilos se destacaram pela sempre
utilizada a perspectiva da reconstrução da presença configurando-se na opção dos jovens
emoção estética proposta por Vygotsky (1999), quanto a sua maneira de apresentar-se e expressar-
indicando um estudo dos elementos concretos e se ao mundo.
da estrutura que constitui a própria expressão,
Tanto é que, esses jovens adornavam-se em
passando para a análise funcional dos mesmos,
cortes de cabelo, adereços e vestimentas,
reconstruindo assim a emoção estética.
procurando imitar ídolos que representavam seus
Também Bauer e Gaskell (2002) estilos de preferência. Quando percebiam a
apontaram os passos para a análise das presença de seus territórios sonoros e musicais
manifestações musicais. Esses autores oferecem prediletos, adotavam posturas corporais diferen-
um enfoque que apresenta a música e o ruído ciadas, denotando talvez sua identificação. Nas
como dados sociais quando relacionados ao audições e interpretações do rap, os jovens que
contexto social onde são produzidos e acolhiam com mais ênfase esse tipo de música,
assimilados. Nesse sentido, a linguagem sonora é ficavam em pé, estufavam o peito e aumentavam a
considerada um indicador cultural que reflete os intensidade da voz enquanto cantavam as rimas.
valores e o mundo vivencial daqueles que a Quando o rock era solicitado e entrava em cena,
produzem. Os autores recomendam que, para recostavam-se nos tatames ao chão e sua postura
fins de análise, os eventos sonoros e suas assumia maneiras de cantar em voz suave, de
dimensões de ritmo, melodia e sonoridades pouca intensidade, confessando os versos que
sejam registrados e transcritos e, por fim, cantavam, numa atitude meditativa. Já quando o
relacionados ao grupo social que a produz (p. samba fazia presença, todos ficavam em pé e o
366). interesse era direcionado para a percussão intensa
Nos primeiros encontros o grupo deixou do ritmo sincopado.
claro, por meio de nove solicitações para o rap, Esses dados são confirmados por Maheirie,
quatro para o samba e sete para o pop rock, os estudiosa da música e suas implicações sociais,
estilos musicais que costumavam vivenciar. Esses quando indica que “o estilo é vivenciado em todos
territórios musicais previamente delimitados nos os setores da vida, inclusive na produção e
primeiros encontros foram se confirmando no desenvolvimento dos valores adotados pelo sujeito”
decorrer do processo. Dentre todo o conjunto de (2001, p. 71). Para oportunizar um maior
músicas citadas e interpretadas no decorrer da entendimento sobre esse assunto, segue uma
pesquisa, três raps, três rocks e dois sambas articulação entre a construção histórica dos estilos
permaneceram presentes em todos os encontros. preferidos desses jovens e de suas manifestações
Canções de outros estilos entraram e saíram de
simpósio de pesquisa em música 2006 53
enquanto expressavam-se por meio das canções identidades grupais, Ruud (1990) cita o rock como
que constituíam o seu repertório. uma proposta juvenil de contradição aos consensos
culturais. Explica que o sentido invertido de
estética, ou seja, com os sons distorcidos e
O rap
amplificados, grande parte da música do rock “
A origem musical do rap foi o canto falado criou o pânico necessário para sacudir o código de
da África ocidental adaptado à música jamaicana valores burgueses da estética do som” (p. 45).
da década de 1950 e à influência da cultura Nesse sentido o rock se constitui num ruído cultural
negra dos guetos dos Estados Unidos no pós que desmantela o vínculo entre o poder econômico
guerra. È considerado o estilo que iniciou a e a constituição ideológica da naturalidade das
constituição de uma identidade musical negra, já emoções despertadas por meio da música.
que serviu como forma de extravasar
Ao se impor como uma linguagem sonora
sentimentos de revolta.
eletrônica barulhenta, amplificada e distorcida, o
No Brasil, na década de setenta, surgiu a rock abalou o sentido de beleza na música. Os
primeira manifestação da juventude negra, nos ouvidos das gerações anteriores acostumados aos
subúrbios do Rio de Janeiro. O resgate da sons acústicos dos instrumentos estranhou aquela
identidade negra foi se infiltrando nos bailes da nova música. “Se alguém desafia meu sentido do
época inspirando a mistura de batidas brasileiras que é beleza em música, está desafiando as
ao soul e funk. Desse germe desenvolveu-se o verdadeiras raízes da minha identidade” (RUUD,
rap brasileiro evoluindo em temas que vão da 1990, p. 45). Essa suposição indica que a percepção
exaltação da cultura até a voz de protesto atual dos códigos musicais não é natural, neutra. A
(CASSEANO et al, 2001). Como resultado temos música está imersa em noções de classes sociais e
um estilo particular que funciona como estímulo culturais, razão pela qual as pessoas passam por
à juventude negra, veiculando informações que experiências emocionais diferentes quando
visam a formação de ouvintes críticos e enga- expostas ao mesmo estilo sonoro.
jados. O rap é um estilo de música que apresenta
No Brasil o rock vocal aparece mais marca-
frases declamadas e rimadas sobre uma base
damente no movimento Jovem Guarda, na década
rítmica instrumental. A base rítmica resulta de
de 70. Explodindo depois da Bossa Nova e do
técnicas específicas de discotecagem. As letras
Tropicalismo, vem para o cenário musical como um
falam de exclusão, violência social,
projeto dedicado quase que exclusivamente à
discriminação racial, descrevendo o dia a dia das
juventude, è a música de voz jovem. Os
favelas.
comentários de Tatit (1996) a respeito desse
A realidade que o rap desfila em suas rimas projeto apontam para o apelo mercadológico
marcadas é dura. Dentre os raps trazidos pelo associado à figura do ídolo, à vendagem de discos,
grupo, o mais solicitado foi Domingo no Parque, uma ênfase na concepção musical simples, no que
composto e interpretado pelo conjunto Os tange à harmonia e arranjo instrumental,
Racionais. A canção traça um paralelo entre o provocando estímulos diretos ao físico e exigindo
mundo dos brancos que se divertem nos parques pouca elaboração intelectual.
e o negro que não possui espaços de lazer nas
Em meados dos anos setenta, seguindo o
favelas. Denuncia o difícil acesso aos brinquedos
sucesso dos Beatles, grupos vocais proliferaram no
modernos e o fácil contato com as armas de
Brasil. Em 1985 refletindo o movimento punk,
fogo.
surgiu o conjunto Legião Urbana, trazendo uma
Foi difícil ingressar nesse mundo de mensagem musical caracterizada por gritos de
denúncias e protestos ao lado dos rapazes, quase independência, do faça por você mesmo, tirando
crianças. Retornando aos dados de suas histórias proveito de uma sociedade que precisava de ilusões
de vida, levantadas na entrevista inicial, para sobreviver e incluindo ídolos rebeldes.
entendemos que a mensagem veiculada nessas
Titãs, Paralamas do Sucesso foram bandas
rimas se assemelhavam aos fatos vivenciados nos
requisitadas para incrementar o repertório das
seus cotidianos. Havia uma relação entre a
canções. Mas, Legião Urbana foi a mais marcante
experiência concreta de suas existências e as
do processo. A canção Pais e Filhos foi solicitada no
letras cantadas nas poesias do rap (CUNHA,
sexto encontro sendo, daí em diante, cantada em
2003).
todas as reuniões.
A letra da canção traz o apelo da presença
O Rock dos pais, a necessidade de ser aceito e amado, a
Ao considerar que a música pode ser um problemática das relações familiares.
meio efetivo para comunicar valores e
54 SIMPEMUS3
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Alexandre Francischini
Universidade Estadual Paulista
Resumo
Este trabalho tem como objetivo fazer um breve levantamento biográfico e uma análise musical de suas
composições populares correspondentes ao período de 1949 a 1958, com o intuito de reconhecer os
elementos musicais que supostamente continham a gênese da Bossa Nova. Para isso, a pesquisa pretende
trabalhar com uma metodologia histórica, com um enfoque na análise musical. E como referencial teórico
buscaremos autores como Ruy Castro, José Ramos Tinhorão, Jomard Muniz de Britto, Walter Garcia, Marcos
Napolitano e outros autores que sob diferentes pontos de vista, analisam o “fenômeno” Bossa-Nova.
1
Refere-se trilha sonora do filme “The Magic Pear Tree", e
2
trata-se do único Oscar ganho por um brasileiro na história Músico brasileiro que inspirou Walt Disney a compor o
deste prêmio. personagem Zé Carioca.
simpósio de pesquisa em música 2006 57
Outro fato de grande importância para Laurindo Almeida é mais do que um violonista
Laurindo Almeida foi o seu ingresso como solista eclético, ele é o violonista mais completo de sua
na banda de Stan Kenton, uma das grandes geração, provavelmente do mundo inteiro. Ele
possuía toda técnica dos violonistas clássicos,
orquestras americanas da época.
além de ser um grande violonista de Música
Em seu livro O jazz do rag ao rock, o Popular Brasileira. O seu violão reproduzia todos
crítico musical Joachim E. Berendt relata este os valores rítmicos, todos os maneirismos de uma
fato da seguinte forma: música popular brasileira rica ao mesmo tempo
sendo um grande violonista de Jazz.
Outro guitarrista que ocupa uma posição toda Júlio Medaglia3
especial no jazz é o brasileiro Laurindo
Almeida, um músico do nível dos grandes
Do ponto de vista musical, sabe-se que,
concertistas deste instrumento – de um Andrés
Segovia ou Vicente Gómez. Almeida introduziu grosso modo, a Bossa Nova foi uma fusão de ritmos
a guitarra tradicional no jazz; melhor dizendo, brasileiros, especificamente do Samba com o Jazz
reaplicou a tradição da guitarra não- norte-americano.
eletrificada no jazz moderno. Quando Sob esta ótica, existe a hipótese – como dito
integrante da banda de Stan Kenton na anteriormente – de que Laurindo Almeida tenha
segunda metade dos anos 40, Laurindo Almeida
sido um dos precursores deste movimento, por já
realizou uma série de solos, os quais
misturar, muito antes de seu advento, ritmos
irradiavam tanto calor como poucas vezes se
viu em gravações desta orquestra (BERENDT, brasileiros com harmonias jazzísticas. Isto em
1975, p. 228) decorrência de já viver nos Estados Unidos desde o
começo da década de cinqüenta, sobretudo
quando integrante (solista) da orquestra de Stan
A partir de 1960, Laurindo Almeida
Kenton, uma das grandes orquestras que
montou sua própria banda, com a qual tocaria
influenciariam Tom Jobim e João Donato na fase
até pouco antes de sua morte. Este grupo, o
pré-bossa-nova.
L.A. Four, cuja característica principal era a
fusão de música erudita e jazz, gravou mais de Em depoimento ao documentário Laurindo
dez álbuns e tinha como integrantes o Almeida “Muito Prazer”, Oscar Castro Neves
saxofonista Bud Shank, com o qual Laurindo já afirma:
tocara desde o começo da década de cinqüenta,
o contrabaixista Ray Brow e o baterista Shelly É impossível se falar de Bossa Nova sem falar de
Manne, substituído depois por Jeff Hamilton. Garoto, de Radamés Gnattali, de Laurindo
Almeida... não só porque o Laurindo era um
Laurindo Almeida pertence a um grupo de
guitarrista de impecável técnica, mas também
elite de violonistas brasileiros que compuseram porque era um guitarrista moderno, já com
trabalhos importantes para este instrumento e, acordes de Jazz, vivendo dentro do Jazz.
juntamente com Canhoto (Américo Jacomino),
Paraguassú (Roque Ricciardi), Armandinho (Ar-
Ainda que estas afirmações restrinjam-se aos
mando Neves), Dilermando Reis e Garoto (Aníbal
aspectos musicais da obra de Laurindo Almeida
Augusto Sardinha), contribuiu para a emancipa-
que supostamente contribuíram para o surgimento
ção do violão, com status de merecedor de sério
da Bossa Nova, elas andam na contramão de tudo
estudo musical. Contudo, por algum motivo não
que se sabe a respeito das origens deste
teve o mesmo reconhecimento de seus contem-
movimento.
porâneos em nosso País. No Brasil, sua obra é
pouco conhecida e seu nome pouco divulgado, Em decorrência destes fatos, surgem
porém, exerceu grande influência, tanto em algumas perguntas, tais como: teria sido Laurindo
relação aos músicos brasileiros quanto aos ame- Almeida realmente um dos precursores da Bossa
ricanos, que o têm como precursor da bossa- Nova? Caso tenha sido, de que maneira especi-
nova, visto que dez anos antes de seu ficamente se deu sua contribuição para este
surgimento – atribuído a João Gilberto e Tom movimento musical? Por outro lado, quais os
Jobim – suas composições já sintetizavam ritmos fatores políticos, econômicos, sociais e musicais
brasileiros de várias localidades com o jazz que contribuíram para que Laurindo permane-
norte-americano. cesse esquecido em seu próprio País? Por que a
A grande polêmica 3
Depoimento transcrito do documentário Laurindo Almeida
“Muito Prazer”, escrito e dirigido por Leonardo Dourado, Rio
de Janeiro: Telenews, 1999.
58 SIMPEMUS3
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Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical
Acácio Tadeu de Camargo Piedade
Universidade do Estado de Santa Catarina
Resumo
O presente artigo pretende comentar a aplicação da “teoria das tópicas” em análise musical para o caso da
música brasileira. A retomada do plano expressivo-retórico na análise musical se deu recentemente, com
autores que se dedicaram ao período clássico da música européia, como Leonard G. Ratner, V. Kofi Agawu e
Robert S. Hatten. Esta perspectiva ilumina de forma importante a compreensão das músicas pelo fato de,
através da análise musicológica e da interpretação de pontos expressivos no texto musical, apresentar nexos
culturais da musicalidade em foco. O objetivo principal desta comunicação é discutir a aplicabilidade desta
teoria no campo da música popular brasileira.
dos gêneros musicais. Gêneros como o heavy A idéia de figura e de retórica musical
metal (WALSER, 1990) ou a canzona italiana pressupõe, portanto, uma compreensão da música
(FABBRI, 1982) são manifestações do mundo enquanto discurso. As unidades musicais deste
empírico que são compreendidas pelos nativos discurso são, muitas vezes, atribuídas de qualidade
como gênero. Como no mundo literário (DUCROT ou ethós, isto por meio de convenção cultural
e TODOROV, 2001), no universo musical gêneros (diga-se, histórica e tácita)7. O encadeamento
e estilos constantemente se formam ou se destas unidades compõe parte do discurso musical
transformam, sendo que análises sincrônicas e sua lógica. Para Meyer, por exemplo, o uso de
tornam a discussão muitas vezes infértil. Por convenções deste tipo se dá como controle da
isso, a perspectiva de tratar os gêneros musicais expectativa, da satisfação ou suspensão das tensões
da forma como Bakhtin trata os gêneros de fala musicais geradas nos processos formais da música
(BAKHTIN, 1986), ou seja, como discursos, tem- tonal, o que comprovaria a importância da emoção
se revelado uma ferramenta teórica interessante e do significado na música (MEYER, 1956).
para abordar o tema (ver PIEDADE, 1999). Nesta direção, recentemente retomou-se uma
perspectiva de compreender a música em sua
Retórica musical e tópicas dimensão retórica: destaco aqui o que alguns
autores denominam oportunamente topics, e que
No século XVII, muitos teóricos basearam-
envolve uma teoria da expressividade e do sentido
se nos escritos de Aristóteles e Cícero sobre
musical que se pode chamar de “teoria das tópicas”
Retórica para descrever a oratória da música,
(RATNER, 1980; AGAWU, 1991; HATTEN, 1994,
configurando uma disciplina que se chamou
2004). O universo estudado nestas obras é o da
Musica Poetica (principalmente com Joachim
música européia do período clássico, e algumas das
Burmeister). Estas idéias desembocaram, no
tópicas trabalhadas por estes autores são: alla
século seguinte, nos estudos da Teoria dos Afetos
breve, aria, brilliant style, empfindsamkeit,
(principalmente com Joahann Mattheson).
fanfare, hunt style, learned style, pastoral, Sturm
Fundamental na filosofia aristotélica é a noção
und Drang, entre outras. Trata-se aqui de tópicas
de topoï, entendidos como lugares-comuns (loci-
de um período refletindo a weltanschauung de uma
communes) produzidos acerca de silogismos
época. Há uma distância muito grande deste
retóricos e dialéticos. Os topoi formam a
universo de tópicas para o caso da música
“Tópica”, as fontes que estão na base de um
brasileira, pensada como uma unidade sócio-
raciocínio. Uma retórica musical sugere uma
cultural em consolidação ao longo dos séculos XIX e
visão da música como discurso, ancorando-se na
XX. Porém, creio que há aqui também uma visão de
idéia de figuras da retórica musical. Na retórica
mundo que permeia este longo período e este
tradicional, figura é todo fragmento de
território simbólico, e que esta teoria é uma
enunciado cuja “configuração aparente não está
interessante via para a compreensão da significação
conforme à sua função real”, resultando em uma
musical e da musicalidade em geral, sendo
transformação ou transgressão “codificada do
perfeitamente adequada para o estudo da música
próprio código” (ANGENOT, 1984, p. 97). A
brasileira, principalmente no âmbito da construção
retórica, sobretudo na elocutio, distingue as
de identidades. Resta encontrar as tópicas que
figuras de palavras (ou tropos) das figuras de
entram em ação neste universo.
pensamento, que intervêm mais diretamente na
organização do conjunto do discurso. Conforme Tópicas seriam, portanto, as figuras da
Moisés, figuras de palavras dizem respeito à retórica musical. Gostaria de enfatizar que as
formação lingüística e consistem na tópicas são também topológicas, ou seja, sua
transformação desta, por meio de categorias da plenitude significativa se dá não apenas por sua
adiectio, detractio, transmutatio, enquanto feição interna, mas também pela posição de sua
figuras de pensamento dizem respeito aos articulação no discurso musical. Entendo que deve
pensamentos (auxiliares), encontrados pelo haver alguma significação implícita na progressão
sujeito falante para a elaboração da matéria e, destas posições na cadeia sintagmática de um
por conseguinte, são, em princípio, objeto da discurso musical8. Isto tem implicações na análise
inventio. Estas últimas, portanto, distinguem-se
dos tropos, visto que estes implicam na mudança 7
Estou enfatizando o caráter simbólico, portanto, o que não
semântica dos vocábulos. As figuras de retórica quer dizer que não haja também significação de ordem
icônica ou indexical.
não são meros ornatus adjacentes ao
8
pensamento, mas um trabalho específico sobre a Configurando aquilo que Agawu chama de “plot”, ou seja, um
“roteiro”, “a coherent verbal narrative that is offered as an
própria significação (MOISÉS, 2004, p. 188). analogy or metaphor for the piece at hand” (AGAWU,
1994:33).
simpósio de pesquisa em música 2006 65
do processo temático, para além dos século XIX e início do XX, período de gênese do
desenvolvimentos de RETI (1951), ou seja, do choro, o flautista, solista do grupo, usualmente era
processo temático e desenvolvimento motívico o único músico que sabia ler partitura, e sua
em direção à unidade formal. Assim, pode-se performance era marcada por frases modificadas
supor que se pode recompor uma espécie de em relação ao original, como que desafiando seus
“roteiro”, ou esquema narrativo, que se acompanhantes a segui-lo (DINIZ, 2003). Alguns
encontra em um nível mais abstrato do que mecanismos e frases musicais revelam este lado
aquele do próprio motivo (MEYER, 2000). brincalhão, isto de forma a exibir algum virtuosismo
O trabalho de visualizar uma tópica instrumental. De fato, trata-se de um conjunto de
envolve uma hermenêutica que não é estrangeira tópicas que chamarei de brejeiro. O brejeiro na
ao campo da análise musical. Porém, o problema musicalidade brasileira é brincalhão, difere do
não se limita a encontrar, interpretar ou nomear gesto que se entende por scherzando, por seu
as tópicas encontradas no discurso musical, mas caráter menos infantil e mais malicioso e
a explicar como estes governam a sucessão dos desafiador. A figura do malandro na cultura carioca
afetos e gestos9. No caso de música escrita, a e brasileira em geral alude a este tópico: o
cadeia de tópicas expressivas se encontra malandro que ginga com os pés, é esperto e
determinada pela própria partitura, onde figuras competente (na ginga), desafiador (quem me
podem se articular diversas vezes em diferentes pega?). A expressão musical deste caráter da
momentos e ordenações. Já em improvisações, brasilidade se dá através das tópicas brejeiro, que
as posições das tópicas podem ser móveis, tendo envolvem transformações musicais presentes,
o caráter de espaço de possibilidade que se abre inicialmente, no choro. Os flautistas de choro e
em determinados pontos do discurso musical10. suas variações melódicas que desafiam seus
Creio que as tópicas de um discurso musical acompanhantes a não se perder na música, alguns
(entendido como posições estruturais dotadas de temas de Pixinguinha (o início e certas passagens
qualidade sígnica determinadas) são de “Um a zero”), Ernesto Nazareth (“Apanhei-te
experimentadas pelos próprios intérpretes na sua cavaquinho”; aliás, este título expressa a brejeirice
prática musical, bem como pela audiência. Os do cavaquinho). Muitas vezes está em jogo um tipo
estudos da retórica musical devem incluir, de “ataque falso” de nota, no qual um “deslize”
portanto, a esfera da recepção como nexo cromático no agudo faz crer que houve erro, e no
teórico (CANO, 1998). Enfim, tópicas são objetos entanto se trata de uma transformação brejeira.
analíticos da significação musical, signos que Outras vezes, o tópico se manifesta mais na
podem ser comparados ao que Tagg chama de dimensão rítmica, como é o caso de certas
museme, especialmente o que ele define como “quebras” e deslocamentos irregulares que
genre sinecdoche (TAGG, 2005). parecem brincadeiras rítmicas que,
desafiadoramente (para os acompanhantes e
Tenho me dedicado ao estudo das relações
ouvintes), atravessam os tempos como que
entre retórica, poética e música, bem como à
brincando, sem se deixar perder.
busca de possíveis tópicas da musicalidade
brasileira., isto através de análises de partituras Há um outro conjunto de tópicas, que estou
de música brasileira popular e erudita, bem designando “época de ouro”, no qual reinam os
como de transcrições de improvisações (PIEDADE, maneirismos das antigas valsas e serestas
2006). Comentarei aqui alguns conjuntos de brasileiras, impera a nostalgia de um tempo de
tópicas que venho estudando. simplicidade e lirismo, de ruralidade e frescura. Um
pouco do mundo lusitano está presente aqui, nas
evocações do fado e na singeleza das modinhas.
Em busca de tópicas da música brasileira Como se fosse um mito, manifesta-se aqui um Brasil
Há na musicalidade brasileira um estilo profundo, vindo do passado através de volteios e
simultaneamente brincalhão e desafiador, floreios melódicos (vários tipos de apojaturas e
exibindo audácia e virtuosismo, isto de forma grupetos), padrões rítmicos (maxixe, polka,
graciosa e, principalmente, interesseira, dobrado estilo “banda”) e certos padrões motívicos
individualista e maliciosa. Trata-se de um gesto (escala cromática descendente atingindo a terça do
profundo, impresso já na gênese de alguns acorde em tempo forte) que estão fortemente
gêneros, como o choro. Por exemplo, no final do presentes no mundo do choro e em vários outros
repertórios de música brasileira, tanto na camada
9
superficial quanto em estruturas mais profundas11.
Ver MEYER (2000:263).
10
Um exemplo é o que chamei de ‘citação em contexto’ (ver 11
Estruturas mais profundas no sentido da perspectiva
PIEDADE, 2005). schenkeriana, como aliás adota AGAWU (1991).
66 SIMPEMUS3
12
Ver NEVES (1981).
13
Neste caso, há um interessante artigo que busca levantar
tópicas afro no repertório pianístico brasileiro (CAZARRÉ,
1999).
simpósio de pesquisa em música 2006 67
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Relações de gênero e musicologia:
reflexões para uma análise do contexto brasileiro
Maria Ignez Cruz Mello
UDESC
Resumo
Este trabalho parte de uma discussão sobre música e relações de gênero no contexto da música indígena no
Brasil, passando por um recorte bibliográfico da literatura atual sobre questões de gênero na musicologia e
na teoria musical ocidental, inserindo tais reflexões dentro de uma perspectiva de crítica pós-moderna que
pretende se aproximar de uma análise feminista no campo musicológico. Trabalhos da área da antropologia,
como o de Maria Mello (2005), e da musicologia, como os de Susan McClary (1994) e Susanne Cusick (2001)
servem de base para esta reflexão, que ao final, aponta caminhos para futuras pesquisas que tratem da
dimensão das relações de gênero no cenário da música brasileira.
nas grandes narrativas3, formas exacerbadas de Frankfurt o impediu de ver a importância da música
exclusão social. Segundo Ellen Koskoff, a popular e das grandes mudanças que ocorriam no
construção de cânones - estes pensados como mundo da música ocidental.
conjunto de trabalhos que corporificam valores Já Charles Hamm (1995) detecta os modelos
que são medidos e controlados como um discurso narrativos modernistas sobre música popular que
- que advêm desta postura universalizante da têm sido construídos a partir dos fins do século
música ocidental por si só não representaria um XVIII, que se ligam às lutas e estruturas de classe
problema: a questão surgiria com o processo de européias. Estes escritos são construções que têm
canonização, ou seja, “the institutionalization of em sua base uma estrutura hierárquica e
certain works over others through the imposition excludente, que privilegia um gênero musical (e
of hierchies of self-invested values upon other sexual) em detrimento de outros. São narrativas
people and their musics” (KOSKOFF, 2001, p. como a da autonomia musical -ligada ao idealismo
547). germânico que explicita divisões como highbrow e
Dentro desta narrativa masculina da lowbrow-, a narrativa da cultura de massa -todos
musicologia estabelece-se implicitamente uma aqueles que produzem, criam e/ou consomem os
hierarquia na vida acadêmica musical que produtos de massa são de classe, etnia ou moral
sistematicamente desvalorizou a performance e “inferiores”-, as narrativas da autenticidade -
a educação musical em prol da valorização da valorização da música folclórica ou da música de
ciência da música. Os instrumentistas e culturas diferentes a partir de seu grau de “não-
educadores necessitariam de outros que contaminação”. Com o desvendamento destas
pudessem falar em seu lugar, ou seja, dos narrativas, torna-se possível perceber que elas
musicólogos. Estes, por sua vez, proclamariam o estão sendo articuladas ainda hoje em relação a
que deveria ser a mais alta forma de música, a diferentes fenômenos no mundo da música.
“música absoluta” ou a “música em si”, elevando Voltando à questão da autonomia da
a Forma Musical ao verdadeiro prazer que a musicologia em relação aos “encaixes” sociais, vê-
música pode oferecer, o prazer da mente. se que esta postura é amplamente aceita por
Toda esta discussão parece remontar às teóricos da música de um modo geral, e que todas
idéias de Adorno sobre música, que mereceram as narrativas e posturas por eles assumidas estão de
longa análise de Richard Middleton (1990). Este acordo com o proclamado ideal do “homem-branco
autor, ao mesmo tempo em que reitera a classe-média norte-americano ou europeu”, ou
importância do pensamento de Adorno para os seja, que através da objetividade e da exclusão da
estudos sobre música, critica duramente seu sensualidade, pode-se alcançar a “forma pura” e o
pessimismo diante do desenvolvimento das prazer que o entendimento desta provoca na
sociedades industriais e ataca sua utilização do mente. Fred Maus (1993), em seu ensaio sobre
“método imanente” para criar uma autonomia da teoria musical relacionada ao discurso masculino,
música em relação à esfera sócio-cultural, trata as idéias de Hanslick, descritas em seu
revelando sua perspectiva etno e eurocêntrica clássico livro O belo na música (HANSLICK, 1989),
(p. 44-45). Como exemplo da riqueza de um como que ressoando as poderosas características do
repertório repudiado por Adorno, Middleton patriarcado ocidental - exaltação da dominação
analisa uma canção da Tin Pan Alley - famoso masculina (heterossexual) sobre todas as outras
reduto nova-iorquino de produtores de hits das formas de relacionamento humano. Na crítica a
primeiras décadas do século XX - e avalia como o Hanslick, Maus observa que a “música absoluta”
etnocentrismo do pensador da Escola de deixa de fora de suas fronteiras toda música que
não corresponde ao modelo proposto. Márcia Citron
3
O termo “pós-moderno” aparece nos anos 80, para dar
(1991), por sua vez, também relaciona a idéia de
conta da exaustão dos pressupostos modernistas, como o “música absoluta” à representação cultural da
fim daquilo que Lyotard chama de grandes narrativas masculinidade, pois esta se caracterizaria por
(LYOTARD, 1986) e com mudanças na ordem da economia e
da produção industrial (HARVEY, 1993). Já GIDDENS (1991) considerar seus pressupostos como universais. Ela
afirma que o que vivemos hoje não corresponde ao fim da crê que cultuar a “música absoluta” é cultuar a
modernidade, mas sim a uma radicalização e masculinidade, ou seja, a experiência da “música
universalização das conseqüências da modernidade,
embora possamos ver relances da emergência de novos em si” não pode ser considerada inocente, livre das
modos de vida e formas de organização social. Algumas relações de gênero e livre da política que lhe dá
características desta modernidade radicalizada seriam: a
dissolução dos grandes relatos e, com eles, do
sustentação.
evolucionismo; o desaparecimento da teleologia histórica; Também para Cusick, destronar a “música em
o reconhecimento da reflexividade constitutiva da
modernidade; por fim, a evaporação da posição si” é um dos objetivos de uma musicologia
privilegiada do Ocidente. feminista, visto que cultuá-la significaria cultuar a
simpósio de pesquisa em música 2006 73
imagem da masculinidade. Para ela, este quais chamou de crítica e ideológica (HATTEN,
destronamento representaria uma ameaça à mais 2004). A primeira, representada por musicólogos
profunda crença das democracias capitalistas como Joseph Kerman, Leo Treitler e Leonard
ocidentais: a idéia de indivíduo liberal, aquele Meyer, buscou superar o positivismo e o formalismo
que se vê como livre para escolher o que quiser, em prol de análises e interpretações com uma
quando quiser. A experiência encorajada pelo crítica historicamente mais informada. Na segunda
culto da “música absoluta” é a de uma experiên- orientação, que envolve um posicionamento mais
cia estética onde o indivíduo pode imaginar a si ideológico, Hatten coloca Lawrence Kramer e Susan
próprio como um anjo, até mesmo um Deus, em McClary, envolvendo a crítica pós-moderna, a
um espaço que seria como o éter onde não desconstrução, a hermenêutica e o feminismo,
haveria gênero, sexualidade ou corpos (2001, p. revelando as construções de gênero, sexualidade e
494). Contudo, os musicólogos não se perdem no poder no texto musical (p. 4-5).
éter da fruição, pois eles são os guias das viagens Como se pode depreender do que foi escrito
musicais. Para Maus, a audiência, de um modo até aqui, esta comunicação centrou-se claramente
geral, pode ser descrita como bottom, os “de nesta segunda orientação, por concentrar autores e
baixo”, enquanto que os musicólogos seriam trabalhos que questionam as relações de gênero no
vistos como top, os “do alto”. Com isso, esta campo da música. Os dados apresentados sobre a
audiência (nós, a maioria) parece gostar de música indígena servem aqui de contraponto para
assumir uma posição de subordinada, de aprendiz nos ajudar a pensar questões que rotineiramente
dos superiores, ao mesmo tempo em que temos como claras e certas, como por exemplo: (1)
aprende a confundir sua subordinação com uma em geral se crê que sociedades indígenas não
participação imaginária na divindade através da possuem música estruturalmente elaborada,
identificação com a entidade chamada “música enquanto que na sociedade ocidental,
em si”. principalmente no meio da música erudita, falar de
Cusick, por sua vez, faz um paralelo entre tal elaboração é quase uma obviedade; (2) uma
esta relação da audiência com a “música em si” sociedade que coloca a “casa dos homens” em seu
e a leitura de novelas, afirmando que em ambas centro e proíbe as mulheres de freqüentá-la pode
existiria uma fantasia de mobilidade e controle ser vista como machista e autoritária, enquanto
social. A imobilidade física imposta pela sala de que a sociedade em que vivemos é tida como
concerto nos coloca na posição de top e bottom “idealmente” liberal e democrática. Contudo,
simultaneamente, momento em que há uma depois do que foi dito sobre a música ocidental e o
liberação de nossos rígidos papéis sexuais, papel das mulheres neste cenário, dificilmente
políticos, de etnia e de classe. Tudo estaria poderíamos comparar a atuação das mulheres na
projetado na “música em si”, que nos fornece o música erudita àquela das mulheres indígenas que
modelo sônico da imagem de Deus, nos termos tomam o centro da aldeia e impõe suas idéias e
como o indivíduo da classe média o concebe, anseios através das músicas que criam e executam
aquele indivíduo liberal descrito pela teoria publicamente. Neste contexto indígena, homens e
política clássica (p. 495). mulheres produzem, interpretam e absorvem a
Cusick apresenta, por fim, o que poderia música de forma equilibrada e entrelaçada,
ser uma musicologia feminista, observada em procurando expor e conter o que há de mais
dois planos explicitamente políticos de conflitante nas relações sociais, enquanto que na
salvamento do feminino na música: o primeiro, sociedade ocidental, através de um discurso
chamado de “Onde estão as mulheres?”, que universalizante, impõem-se significados claramente
busca retirar as mulheres compositoras e “generizados”.
intérpretes do obscurantismo. O segundo plano, A dimensão das relações de gênero no cenário
chamado de “Como as mulheres e o feminino brasileiro revela-se em estruturas institucionais que
têm sido representados?”, tem como intenção não têm sido estudadas sob esta perspectiva, tais
salvar o poder expressivo, sensual e erótico da como Academia Brasileira de Música, Sociedade
música. Neste sentido, a prática musical poderia Brasileira de Música Contemporânea, Sociedade
ser vista como relacionada ao aprendizado da Brasileira de Musicologia. Há uma carência de
prática erótica, dos relacionamentos sociais e pesquisas musicológicas produzidas no Brasil que
sensuais. problematizem pontos como: faixa etária das
Segundo Robert Hatten, toda a discussão mulheres que atuam no cenário da música
das últimas décadas em torno de uma busca do pop/rock, em grupos folclóricos e na música
significado musical foi orientada e afetada erudita; questões étnicas e raciais que perpassam
basicamente por duas correntes musicológicas às os grupos musicais; produções individuais e
74 SIMPEMUS3
coletivas; formas de organização dos grupos; passo importante a ser dado. O estudo da
visões da mídia sobre as mulheres na música, musicalidade brasileira revista sob tal perspectiva
entre outros. O estudo das trajetórias de vida de poderá revelar como o “feminino” e o “masculino”
mulheres emblemáticas da música brasileira, tais se projetam e se constroem através do discurso
como Chiquinha Gonzaga, Carmem Miranda, musical, tanto no nível das estruturas
Guiomar Novaes, Dolores Duram, revistas sob a composicionais, dos arranjos instrumentais e
ótica de uma musicologia orientada pelos vocais, bem como no plano das letras das canções.
estudos de gênero, representaria também um >|<
Referências
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WALSER, Robert, Running with the Devil: Power, gender, and madness in heavy metal music. Hanover, NH:
Wesleyan University Press, 1993.
Aspectos da oralidade na atual produção musical nordestina:
a relação palavra e música na obra de Elomar
Nivea Lazaro dos Santos
Universidade Federal Fluminense
Resumo
O trabalho propõe uma reflexão em torno da relação palavra e música na obra do cantor e compositor
Elomar Figueira. Partindo-se do conceito de oralidade, define-se a premissa sobre a qual se pensará a obra
deste compositor. Compreende-se que são duas as acepções da palavra: uma oralidade discursiva e outra,
formal. A obra elomariana é analisada respeitando-se tal distinção.
Do ponto de vista formal, observa-se como a linguagem escolhida por Elomar se relaciona com sua música.
Quanto ao discurso, a reflexão reside nos traços de oralidade presentes em sua obra. A análise realizada
aponta caminhos para uma melhor compreensão da relação entre composição e cultura e de como palavra e
música se imbricam atendendo às intenções do compositor.
Palavras-chave: oralidade; palavra; música; Elomar.
Houve um tempo em que a fronteira entre Do conceito de oralidade. Duas acepções a serem
literatura e música era tão tênue a ponto do observadas
ofício do poeta não denotar uma clara distinção Dentre as acepções do vocábulo "oralidade",
entre falar e cantar, o que indica a estreita podem-se encontrar tanto traços semânticos
relação entre as duas artes por via da voz. relacionados ao discurso e à condição do que é oral
Partindo-se desta asserção, neste trabalho em si. No artigo de Luciana Ferreira M. Mendonça
pretende-se mostrar a íntima relação entre sobre literatura e oralidade, por exemplo,
literatura e música da atual produção musical encontram-se os pares oralidade / audibilidade e
nordestina acentuando as marcas da oralidade na poeta / compositores. Tais relações podem ser
obra do compositor, cantador e violeiro Elomar manifestas na tradição temática da cantoria
Figueira como representante deste segmento nordestina e na performance desta.
musical. Os estudos de Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1993)
Seguindo a distinção no conceito de orali- sugerem que, houve um tempo, estas duas artes –
dade apresentada neste trabalho, a obra de literatura e música – não apresentavam contornos
Elomar se revela um exemplo peculiar (e bem rígidos e aparentemente estáticos como nos nossos
diferente dos cantadores pesquisados pelos dias. Em seu livro "A letra e a voz", Zumthor difere
pioneiros em folclore no Brasil). Apesar da os tipos de oralidade e enfatiza a funcionalidade da
aversão à exposição midiática, Elomar teve e voz em relação ao texto.
tem contato com diversos outros mundos. É Desta forma, o autor distingue os tipos de
homem estudado e, ao mesmo tempo, resgatador oralidade: oralidade primária, mista, segunda e a
das antigas lendas, contos, mistérios e valores dos meios de comunicação. Na oralidade primária,
que, não raro, ainda figuram o imaginário não há contato com a escrita e a base da
nordestino, sincretizando influências folclóricas e comunicação é exclusivamente oral. Na mista, há
eruditas em sua música. uma influência da escrita, mas tal influência é
Em vista dos estudos encontrados sobre parcial e externa. A oralidade segunda parte de
oralidade e música nordestina (em sua maioria, a uma cultura já letrada, apresentando um caminho
cantoria e seus estilos) cujo foco é quase que de retorno à oralidade. E a última refere-se à
exclusivo no aspecto discursivo desta relação, oralidade pertencente à cultura de massa. À luz
propõem-se aqui caminhos para uma análise não desta classificação, a música de Elomar será
restritiva ao aspecto discursivo do texto, mas observada sob a definição da oralidade mista.
uma análise que também considere os aspectos Diante destes conceitos de oralidade, é
formais da palavra e da voz como elemento que possível compreender o termo em vista de dois
dialoga com o significado musical de uma obra. aspectos: o discursivo e o formal. No primeiro, o
conceito em questão atrela-se à própria temática
da produção musical e no segundo, este se analisa
76 SIMPEMUS3
rítmica à qual se submetem os acordes que Elomar nasceu em Vitória da Conquista, Bahia
seguem dos versos sete ao dez acompanham as em 1937. Aos sete anos de idade, deixou a vida
sílabas das palavras concordando com esta urbana e rumou para São Joaquim de onde saiu
mesma tensão que coopera com o texto da apenas para estudar em Salvador. Entre suas
música. chegadas e partidas da terra natal, teve contato
Além destes elementos, outro parece ainda com a música dos cantadores Zé Krau, Zé Guelê e
mais marcante nesta canção e nas obras de Zé Serradô. Além dos cantadores é preciso
Elomar de modo geral: os solos que ocorrem no ressaltar, na sua infância, a presença das músicas
decorrer das estrofes acompanham a melodia da do hinário cristão de base evangélica (profissão de
música, reafirmando assim seu texto poético, fé de sua família por parte de mãe). Mas é na
unindo-o ainda mais à música. capital que descobre a música de câmara.
Tratou-se até esta etapa de uma oralidade Figueira Mello compõe desde os onze anos de
formal, intrínseca à música e ao texto. Uma idade, entretanto, é aos dezessete que inicia suas
oralidade que revela um movimento interno no "composições literárias e musicais" no formato que
poema-canção (ou canção-poema). se consolidou posteriormente. Já nessa época
adquire fluência na leitura musical, ao passo que
sua escrita musical precisa ainda ser desenvolvida.
Oralidade discursiva ou textual Somente no início da década de 80, abre mão da
A despeito da oralidade discursiva ou arquitetura como sustento no, passando a dedicar a
textual, considere-se uma breve interpretação maior parte do seu tempo ao exercício da
acerca de outra obra deste cantador: composição. Radicado em Vitória da Conquista,
além da música, Elomar ocupa-se de atividades
Cada pedaço desta canção, que se delimita agro-pecuárias em suas fazendas.
musicalmente em trechos de caráter diferente, Daí percebem-se traços distintivos entre os
se apóia na força ancestral e contundente da cantadores/ repentistas pesquisados por Cascudo,
tradição oral, transmite um clima de magia Mota entre outros folcloristas e músicos que se
permanente da primeira à última linha [...]
encaixariam em uma outra categorização como
Misteriosamente, como numa colagem, surge o Elomar. Contudo, observa-se que, o discurso
tema do veadinho branco, que aparece no
musical de Figueira remete ao mesmo legado da
mundo do romance de encantamento medieval
música dos cantadores.
e que é também transmitido pela História do
Imperador Carlos Magno, um dos textos A temática elomariana é predominante-
matrizes de nossa cultura popular e sertaneja. mente a respeito da vida do homem do campo, o
(FERREIRA, Jerusa Pires, apud XANGAI, 1984: homem sertanejo. A exemplo do que ele mesmo diz
Faixa 1). ao afirmar que trata de temas da sociedade rural.
Mas que temas, em sua obra, constituem amostras
Segundo, Cascudo, a História do Imperador do arcabouço da tradição oral nordestina?
Carlos Magno, ao lado de outras obras como a Em seu álbum solo, Cantoria Brasileira 3, a
Donzela Teodora, Lunário Perpétuo dentre primeira canção "Donzela Teodora" trata da história
outras, compõem fonte de erudição dos de uma donzela que desafiou todos os sábios de um
cantadores. Como o comentário sugere, o rei, obtendo por recompensa "mili dobra de oro".
compositor tem conhecimento das obras de base Segundo Cascudo, a origem árabe do conto é
da tradição folclórica do sertão. indiscutível e chegou a nós, via Espanha e Portugal,
Diz-se de Figueira Mello o seguinte: através da tradução de Carlos Ferreira Lisbonense
(CASCUDO, 1939). Tal narrativa encontra-se nas
edições do Lunário Perpétuo e do Manual
Daqui leu todos os poetas, escritores e profetas
hebreus; leu os mélicos e os clássicos gregos; os Enciclopédico (fontes literárias da cantoria
latinos, incluindo Esopo e o Fedro; os italianos, nordestina). A versão sertaneja está em verso,
franceses, ingleses, espanhóis, russos e, por enquanto as demais se mantêm em prosa. A
último, os alemães, tendo, é claro, antes disto respeito desta alteração, uma das motivações que
perpassado pelos essenciais patrícios. (ELOMAR, podem tê-la favorecido está na adequação da
2006) forma narrativa à música. Os registros mais antigos
da música ocidental (que datam da Idade Média)
No intuito de esclarecer tal afirmação é apontam a preferência da poesia, da versificação
preciso explicitar alguns dados biográficos do para a musicalização das estrofes (ZUMTHOR,
compositor. 1993).
simpósio de pesquisa em música 2006 79
Também desta forma, a relação entre sugerindo este clima de melancolia vivido pela
texto e música se estabelece. Trata-se de uma personagem.
melodia nos moldes descritos por Andrade, Os elementos religiosos presentes no texto
revelando o compromisso entre o recitativo e as remetem a uma das fontes da cantoria sertaneja:
estrofes, de acompanhamento instrumental que
conjuga acordes e sílabas tônicas. A música de
Menos lido, mas inseparável dos cantadores
Elomar comporta uma harmonia que sugere a
letrados, todos campeões do ortodoxismo católico.
influência da música medieval (CÂNTICOS, 1996). Os recursos de orações, explicações de fácil
Em História de Vaqueiros (XANGAI, 1986) o teologia... catecismo, regras morais, tudo vinha da
tema se aproxima mais do presente: uma espécie ‘Missão Abreviada’ (CASCUDO, 1939, p. 92).
de "louvação" aos heróis do sertão:
Em todo caso, não se desconsidere o his-
Mas foi tanto dos vaquero que rênô no meu sertão tórico familiar de Elomar, ascendente de uma
Qui cantano um dia intero num menajo todos não família de cristãos novos (daí o sobrenome
(XANGAI, 1986, Faixa 9) "Figueira").
Nesta parte da análise, é possível observar
que, a influência cultural da capital, não anulou em
É um mote revelador de traços que
Elomar as raízes de uma oralidade tipicamente
remetem às canções de gesta (um dos temas de
"sertaneza". Seja consciente (como ele afirmou ser)
base da cantoria tradicional). Uma narrativa da
ou não, suas canções revelam muito da vida, do
saga dos vaqueiros, contando o corpo a corpo dos
contexto do homem do campo cujo elo com o
heróis com animais (no caso, o boi) ou outros
legado colonizador europeu é mais evidente quando
elementos do imaginário nordestino (nesta
comparado ao "urbanóide" (usando a terminologia
canção, o lobisomem).
do próprio compositor). Tal elo se expressa no
Em se comparando esta canção com a diálogo entre temas e música. O jogo harmônico de
anterior, a primeira, aponta uma aproximação suas canções, os instrumentos utilizados em suas
maior das raízes medievais ibéricas, mas, ambas composições (todos à base da viola e do violão),
apresentam melodias recitativas. As duas heranças do contato com o europeu (SOLER, 1978 in
constituem narrativas, bem como grande parte RAMALHO, 2000), diferenciam-no da música urbana
da obra de Elomar. e o aproximam da produção ibérica medieval.
Considere a letra de Patra Véa do Sertão:
Considerações finais
Patra véa do sertão
Ao nos deparar com uma obra musical ou
Terra donde eu nasci literária, muitas vezes, surge a pergunta de como o
Teus campo de solidão compositor ou autor chegou àquela forma, qual o
Me alembra ôtro sertão significado dela, daquele conteúdo. Uma melhor
Qui a sagrada letra canta compreensão em torno da questão da oralidade
E muitu longiu daqui pode elucidar algumas respostas de como a
intenção de um intérprete (seja ele músico ou
Pl’as banda da Terra Santa
poeta) atua em uma determinada obra.
Nos campo de Abraão
Segundo Ramalho, "os estudos sobre tradição
No sertão do Rei Davi
oral e cultura escrita têm revelado aportes
(ELOMAR, 1991, Faixa 3)
importantes para se entender melhor a confluência
de modos de pensar com os quais convivemos no
O trecho corresponde a uma das árias de momento atual." Ratifico: os estudos sobre
Elomar. Trata-se de uma mulher que, após oralidade apontam diretrizes para a compreensão
aceitar a proposta de fuga de sua prima, lança do arcabouço ideológico do homem atual, tanto no
um lamento, um grito de dor despedindo-se de seu aspecto conservador, quanto no seu aspecto
sua terra. transformador.
Primeira observação de como o texto E, de um modo intrínseco, compreender
dialoga com o significado da harmonia da melhor a relação palavra/ literatura e música nos
canção, ocorre na tonalidade desta. É uma dá pistas de como o contexto histórico-social se
melodia triste com finalizações em intervalos manifesta nas características de um dado estilo
descendentes (PRIOLLI, 1979), cujo tom é menor musical, de um dado artista. A obra se revela,
então, um microcosmos de seu contexto social que,
80 SIMPEMUS3
através dos elementos próprios da arte (formais motivos que o levaram a regressar ao campo,
e discursivos como a denúncia e a descrição, por constituindo assim, um modo de chamar a atenção
exemplo), corroboram com uma melhor para o modus vivendi e o modo de pensar do
compreensão da ideologia que transmite. homem proveniente de uma região tão peculiar do
Em se tratando de oralidade, poderia se país?
pensar que a escolha de Elomar enquanto corpus Creio que é nesse aspecto que o cantador-
para a análise não constituísse um bom exemplo, violêro-poeta-compositor Elomar Figueira tem seu
por se tratar de um compositor que lugar, sua voz e vez de evidenciar a cultura
deliberadamente escolheu o linguajar de suas nordestina. Mostrando que nem só de reprodução
canções e seu modo de vida também, posto que vivem os cantadores, mas, criando e revisitando seu
teve opções outras que não a música. Mas, não imaginário, seu folclore, penetram em traços da
seria também justamente essa escolha pessoal alma brasileira que o homem "urbanóide" costuma
do cantor provocadora da reflexão sobre os sufocar.
Nota da autora: As partituras de Elomar não estão disponíveis para venda. Um songbook contendo cerca de dez óperas
escritas pelo compositor está sendo produzido pela Casa de Cultura de Vitória da Conquista. Um projeto de catálogo
digital de todas as suas gravações e outras partituras foi selecionado por um programa da Petrobrás e aguarda, somente,
a liberação do patrocínio para sua elaboração.
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Os estilos e as idéias em Villa-Lobos
José Ivo da Silva
Universidade Estadual Paulista
Resumo
A partir de conceitos estético-musicais lançados por Arnold Schoenberg em seu artigo “New Music, Outmoded
Music, Style and Idea”, presente no livro “Style and Idea”, procede-se a uma abordagem da obra de Villa-
Lobos com o objetivo de refletir sobre a pertinência de tais conceitos na obra do compositor brasileiro,
levando-se em consideração a contemporaneidade dos dois artistas e suas diferentes posturas frente à
música do século XX.
A síntese do artigo de Schoenberg e seus conceitos fundamentais sobre estilo e idéia é o primeiro passo.
Posteriormente, o dimensionamento do conjunto da obra de Villa-Lobos em seus aspectos composicionais e
estéticos, apoiados em análises, tese e dissertações sobre o compositor brasileiro, feitas por alguns
estudiosos e pesquisadores das últimas décadas. Por meio de reflexão sobre estes trabalhos serão
apresentados conceitos e tendências que delinearam as características do compositor Heitor Villa-Lobos, às
quais sublinham-se as convergências e divergências com o pensamento do criador do sistema dodecafônico.
O contexto histórico vivido pelo compositor brasileiro desempenha igual importância e propicia abordar
outros conceitos como o nacionalismo, o “manifesto antropofágico” do modernismo brasileiro e as
tendências contemporâneas modernas absorvidas em sua música. E por fim, conclui-se, baseado neste
exercício reflexivo, se esta apreciação tornaria os estilos e idéias de Villa-Lobos em Estilo e Idéia no âmbito
do pensamento universal.
1
em que os objetos do mundo não eram mais que
Trata-se da palestra intitulada “Neue und veraltet Musik
oder Stil um Gedanke”, proferida por Schoenberg no
aparências, meras sombras das coisas verdadeiras,
Kulturbund de Viena em janeiro de 1933 (W.R.). Seu texto as quais o homem não podia conhecer neste
está incluído nos escritos reunidos de Schoenberg, mundo, feito todo ele de representações
publicados por Leonard Stein, sob o título Style and idea. imperfeitas. Entendendo que para Platão as coisas
Possui, portanto uma versão em inglês (Belmont
Music/Faber & Faber) outra em francês (Buchet/Chastel) e
também em espanhol (Taurus). 2
Todas a citações em outras línguas foram traduzidas pelo
autor.
82 SIMPEMUS3
perfeitas e absolutas existiam no mundo das que difere dos modelos utilizados por Schoenberg,
idéias, onde as almas, antes de se encarnarem tido como conservador em relação ao aspecto
nos corpos, puderam vislumbrá-las. No mundo formal (SALLES, 2005, p. 77). Villa-Lobos, em várias
das idéias existe a beleza total e completa, mas
ocasiões, demonstra não ter uma busca formal
coisas belas do mundo eram belezas
preconcebida. O inusitado está presente como um
incompletas, eram apenas representações
imperfeitas da verdadeira beleza, que estava estigma de sua originalidade.
fora do alcance e da compreensão do homem. Para Schoenberg, a idéia, como fundamento
No entanto Schopenhauer pondera que existe mais importante de uma composição, moldará o
uma coisa absoluta que o homem conhece estilo. Nunca partirá de um estilo preconcebido: “O
totalmente: a vontade. [...] A vontade aqui estilo é a qualidade da obra e se baseia nas
nada tem a ver com a decisão racional por uma
condições naturais que definem quem as realizou.
opção de agir, mas trata-se de um ser absoluto,
Com efeito, aquele que conhece suas faculdades
essência primeira, a coisa em si, o noumeno,
que é irredutível e gera todas as coisas deste poderá dizer de antemão como será exatamente a
mundo (COBRA, 2003). obra terminada quando, todavia, não a está vendo
mais que em sua imaginação”. Aqui atribui ao
compositor, compreendido como verdadeiro artista,
Schopenhauer fazia parte da biblioteca de
o status de artífice e conhecedor da natureza do
Schoenberg. No entanto, Anton Webern, em uma
material com que trabalha. (SCHOENBERG, 1963, p.
de suas aulas reunidas em “O Caminho para a
80)
música nova”, comenta a busca de Schoenberg
por uma definição da palavra “idéia” inserida em Villa-Lobos, em suas inquietações, tinha
um contexto aplicável à compreensão deste presente essa responsabilidade de artífice e trazia
termo no universo musical. Isto aconteceu consigo o domínio do material musical. A
justamente quando ministrou a palestra quantidade e variedade de composições contidas
intitulada “Música Nova, Música Antiquada, Estilo em sua trajetória extrapolam qualquer expec-
e Idéia”, em janeiro de 1933. (WEBERN, 1984, p. tativa. Alguns musicólogos e pesquisadores
106-107) sublinham nesta obra, ao analisarem aspectos
composicionais, a multiplicidade estilística e sua
Mais adiante, neste capítulo, Schoenberg
inventividade temática como traços característicos
traça uma linha de compositores germânicos,
de seu trabalho composicional. Como, então,
começando com Bach e seguindo até alguns de
abordar estilo e idéia em seus procedimentos
seus contemporâneos, para demonstrar a
composicionais?
transformação musical de todo esse período. Ele
utiliza o termo “Variação em Desenvolvimento” Lisa Peppercorn expõe sua dificuldade em
para compreender a estrutura em sua comple- estabelecer um desenvolvimento na trajetória de
xidade de relações internas e construtivas da Villa-Lobos, porque não há uma linha contínua de
tradição musical. O conceito de “Variação em evolução em sua obra. A autora condiciona essa
Desenvolvimento” de Schoenberg traz consigo a dificuldade a fatores da personalidade do
idéia do universal, e é introduzido para ilustrar a compositor brasileiro e a outras razões de ordem
transformação homofônico-melódica do fim do externa:
Barroco para o Classicismo, que continua durante
o século XIX. Esse conceito fundamenta o Ele pode, por um tempo, aderir a certos estilos
princípio de unidade, coerência e inteligibili- ou subitamente pular para trás, utilizando uma
dade, considerados por Schoenberg necessários forma de expressão própria, aparentemente
para sustentar a qualidade artística da música abandonada, ou começar uma linha inteiramente
nova. Ele parece gostar de fazer o inesperado,
como obra de arte: “O que quer que aconteça
embora isto possa atualmente torná-lo intranqüilo
em uma peça de música não é nada além de
e impedi-lo de estar atado a algum estilo ou tipo
reestruturação infinita de uma mesma idéia especial por um longo tempo. Se chamado em
básica” (SCHOENBERG, 1984, p. 208). alguma ocasião para um novo trabalho, ele
Uma crítica comum feita à obra de Villa- responderia a este chamado, mesmo que isto
Lobos é a de utilizar uma sucessão de idéias sem significasse mudar completamente para uma nova
desenvolvimento, o que lhe confere um caráter forma ou deixar um trabalho inacabado
(PEPPERCORN, 1992, p. 16-17).
episódico. O emprego de estruturas não
reiterativas evidencia uma busca de modelos de
composição por músicos no início de século XX, O que ela quer dizer com estilos nesta frase?
principalmente com Debussy e Stravinsky. Isso Não parece se tratar de um traço da
envolve uma elaboração criteriosa de montagem individualidade artística do compositor, mas sim
simpósio de pesquisa em música 2006 83
uma roupagem que se molda conforme uma Ao se observarem esses procedimentos
necessidade premente, estabelecida por incluídos nesta listagem, constatam-se traços de
situações externas. uma prática importante de muitos compositores do
O estilo como conjunto de características início do século XX, entre eles Igor Stravinsky e,
de um autor ou de uma época é a acepção mais sem nenhuma dúvida, também Villa-Lobos.
comum que se encontra nos dicionários. No As inquietações de Stravinsky não corres-
trecho acima, Peppercon não deixa muito claro pondiam, contudo, às de Schoenberg estreita-
se essa mudança estilística na escrita musical de mente ligadas à tradição germânica. Em Stravinsky,
Villa-Lobos está ligada ao domínio da linguagem a riqueza rítmica irregular e a manipulação
musical, na história do compositor, para um tímbrica da massa sonora predominavam como
amadurecimento, quando diz que ele retoma características essenciais de sua música, ainda
algo não terminado, ou uma simples mudança no assim, ele trabalhava o material sonoro dialogando
tratamento musical dado às suas composições, com a tradição tonal, porém, criando uma
ou mesmo uma mudança de gênero. Nestes casos complexidade de sobreposição tonal. Suas
haveria uma diferença entre estilo ou estilos. repetições transformadas, organizadas em
Schoenberg diz mais sobre estilo: fragmentos, abriram possibilidades estruturais na
forma musical comparadas aos mosaicos cubistas de
Picasso. Alguns desses traços foram retirados dos
As regras positivas e negativas se deduzem de
caminhos trilhados pela música russa e francesa,
uma obra terminada como constitutivas de um
estilo. Cada pessoa possui suas próprias atingindo dessa maneira uma estética pessoal anti-
impressões digitais, e a mão do artífice tem sua romântica, negando a idéia de desenvolvimento
personalidade; fora dessa subjetividade se alinhada com a tradição germânica. Considera-se
estendem os traços que determinam o estilo do também em seu primeiro período criativo a
produto terminado. [...] De suas faculdades utilização de temas de caráter nacional.
naturais depende o estilo de tudo quanto faça,
Villa-Lobos, em sua trajetória de compo-
e seria um erro esperar que uma ameixeira
sitor, passou por essas duas escolas, porém fez sua
desse ameixas de cristal, ou pêras, ou chapéus
de feltro (SCHOENBERG, 1963, p. 79). escolha. O conceito de estilo, pensando-se na obra
de Villa-Lobos, agora consiste em uma espécie de
base de sustentação caracterizada por um conjunto
O conceito de estilo em Schoenberg de práticas estabelecidas em um determinado
acena para uma marca individual construída por período histórico, filtradas por escolhas pessoais
meio de um ambiente que propicie escolhas para resoluções de questões musicais de um
pessoais, às quais ele chamou regras positivas e compositor, perfazendo “suas impressões digitais”,
negativas de uma prática musical de um como diria Schoenberg.
determinado período. Antes de expor o conceito
Seguindo este raciocínio, Gil Jardim identifica
de estilo como marca individual, Schoenberg faz
em Villa-Lobos, na sua Bachianas 7, a presença de
uma listagem de características negativas
J. S. Bach, I. Stravinsky e L. V. Beethoven, em um
contextualizadas na época em que escreveu este
processo que denominou “Estilo Antropofágico”
artigo:
(JARDIM, 2005). Nesta abordagem, feita por meio
de análise dos procedimentos composicionais
Ao lado destas proibições oficialmente utilizados por Villa-Lobos na Bachianas 7, notam-se
autorizadas, tenho observado características
de Bach os aspectos formais e a textura
negativas, tais como: notas pedais (em lugar
contrapontística no último movimento “Conversa”;
dos baixos melódicos e harmonia resolutiva),
ostinatos, seqüências (em lugar de variações de Stravinsky, o material rítmico e uso do ostinato
progressivas), fugatos (com igual finalidade), da Tocata (Desafio), e finalmente, na aproximação
dissonâncias (para encobrir a vulgaridade dos formal do scherzo beethoveniano, a Giga (Quadrilha
motivos temáticos), objetividade (neue Caipira). No entanto, Jardim relaciona “Estilo
Sachlichkeit), e uma espécie de polifonia, Antropofágico” ao Modernismo brasileiro pensado
substitutiva do contraponto, a qual, por suas na figura de Oswald de Andrade em seu “Manifesto
imitações inexatas, tivera merecido Antropofágico”, quando enfatiza o caráter crítico
antigamente a repulsa, ao qualificá-la de
do primitivismo brasileiro a devorar e digerir a
“Kapellmeistermusik”, ou o que eu chamo de
cultura do colonizador, e vê o resultado disso em
“contraponto Rhabarber” (um contraponto
carente de significação temática). obras singulares como as de Villa-Lobos. Nesta
(SCHOENBERG, 1963, p. 78-79) mistura digestiva de estilos variados, a utilização
do material nacional traz unidade ao conjunto.
84 SIMPEMUS3
Pode-se, então, chamar este procedimento aspiram a conquistar o mercado, existe um traço
composicional de “estilo nacionalista”? comum apreciável em todos esses movimentos:
nenhum deles se preocupa de oferecer novas
Sabe-se que, quando Villa-Lobos chegou a
idéias, mas sim tão só de oferecer um novo estilo.
Paris, pela primeira vez, levando debaixo do (SCHOENBERG, 1963, p. 78)
braço suas composições e dizendo que não estava
lá para aprender, mas sim, para mostrar seu
trabalho, essa música era marcadamente de uma Quando Schoenberg fala de nações pequenas
estética francesa, mais precisamente influen- que aspiram a um mercado, referindo-se a afãs
ciada por Debussy. Mesmo tendo em sua nacionalistas, estabelece uma distinção entre a
produção peças de características nacionais, isso hegemonia musical universal de uma parte da
não era um diferencial em sua obra até aquele Europa, formada por Alemanha, Áustria, Itália e
momento. França, e uma Europa periférica, fora dessa
hegemonia, composta por Rússia, Escandinávia,
Paulo Guérios conta que, logo após a
Bohemia, Inglaterra e Espanha.
chegada de Villa-Lobos a Paris, houve um almoço
no estúdio da pintora Tarsila do Amaral, cercado Essa hegemonia consolidada na noção de
por pessoas como o poeta Sérgio Milliet, o “música absoluta” traz consigo o conceito idealista
pianista João Souza Lima, o escritor Oswald de da autonomia da música que, por sua vez, se opõe
Andrade, o poeta Blaise Cendrars, o músico e à música nacionalista, tida como dependente de um
compositor Erik Satie e o poeta e pintor Jean sistema musical externo. Com isto, o valor artístico
Cocteau, entre outros. Logo depois do almoço atribuído às obras nacionalistas sofre uma
houve uma conversa animada e o assunto se depreciação, independentemente de sua qualidade
desviou para a arte da improvisação musical. intrínseca, justificada por razões extramusicais, e
Villa-Lobos sentou-se ao piano e começou a definida por elementos de uma música de estilo
improvisar. Ao terminar, Cocteau criticou o que nacional extraídos da cultura de seu compositor.
ouviu, dizendo tratar-se de uma emulação dos Há na afirmação de Schoenberg sobre os
estilos de Debussy e Ravel, e prosseguiu-se uma “afãs nacionalistas” uma clara oposição entre
discussão acalorada. Guérios levanta a hipótese nacional e universal. Quando Carl Dahlhaus se volta
de que, a partir deste momento, Villa-Lobos ao classicismo vienense para confirmar este caráter
tenha percebido que um diferencial para sua universal, contextualizado no Iluminismo, constata
produção musical, em solo estrangeiro, seria sua desintegração causada por particularismos no
uma inflexão de caráter nacional. (GUÉRIOS, século XIX:
2003b)
Entretanto, esse fato isolado, embora A dialética do nacionalismo e universalidade na
significativo, tem por trás de si uma conjunção música não pode ser capturada em uma simples
de fatores que direcionará a obra villalobiana a fórmula. A noção de comunidade humana,
cosmopolitismo, nacionalismo e individualismo
seus estilos musicais ou estilo: a influência da
estão todos incluídos na estética musical no século
música popular urbana; o contato com outros
XIX, e isto é, precisamente, porque o pensamento
fenômenos regionais pesquisados ou não por ele, do século XIX foi circulando em volta destas
de uma incontestável variedade; várias categorias antropológicas, de forma que as
orquestras européias, no início do século XX, relações entre elas eram muito emaranhadas.
trazendo um repertório com obras de Debussy, Uma das características reivindicadas pelo
Stravisnky, Pucinni, Wagner, Strauss e Mahler; a século XIX refere-se à individualidade
participação na Semana de Arte Moderna em verdadeiramente original enraizada no ‘espírito
1922; os encontros com Darius Milhaud e Arthur nacional’. [...] Esperava-se que um compositor
Rubinstein e outras variantes que não se tem fosse original, levasse em frente o novo na
como identificar. Esse emaranhado de maneira que, ao mesmo tempo, manifestasse as
acontecimentos estaria em consonância com o “origens” de sua existência. Na estética de
Schumann, esta originalidade era oposta, de um
conceito de estilo de Schoenberg, caso se
lado, pelo epigonismo, e de outro, pela justa
pensasse que todos esses fatores estão na medida (juste milieu) musical, significando uma
construção de um estilo pessoal de Villa-Lobos. mistura cosmopolita de elementos de vários estilos
Schoenberg, no mesmo capítulo, faz o nacionais (DAHLHAUS, 1989, p. 37).
seguinte comentário:
Outro ponto importante tratado por
À parte os afãs nacionalistas em exportar Dahlhaus, a respeito do conceito histórico do
música com que até as pequenas nações nacionalismo no século XIX, quando situa a Europa
simpósio de pesquisa em música 2006 85
para fazer uma distinção entre estilo nacional e O século XX apresenta o nacionalismo gerado
nacionalismo: por um idioma popular, vindo ainda da música
folclórica, mas utilizando uma linguagem moderna.
O Nacionalismo, a crença no espírito de um Dentre os compositores destaca-se Béla Bartók ao
povo como uma ativa força criativa, é uma idéia lado de Villa-Lobos. O aproveitamento do material
com um caráter e uma função as quais é simples folclórico, utilizado por esses dois compositores,
para identificar com o fenômeno de estilo apresenta alguns aspectos comuns nos
nacional: em outras palavras, eles não serão procedimentos composicionais, um deles é o
com sucesso obrigados a uma definição pelo emprego de sistemas conjugados, nos quais
mero ato de descrever características musicais tonalidade, atonalidade e modalidade convivem no
tangíveis (apud BÉHAGUE, 1994, p. 147).
mesmo contexto composicional. Há, porém, um
método diferente na aplicação desses conceitos nos
O estilo nacional é visto pelo senso comum processos composicionais deles, como, por
como nacionalismo, o que impede que se veja exemplo, aproveitamento da “secção áurea” como
claramente tudo que inclui o conceito de um sistema composicional por Bartók (MOLINA,
nacionalismo musical. Essa maneira de ver pode 2004, p. 80-117).
funcionar em alguns casos, especialmente no Villa-Lobos, embora não articulasse clara-
Romantismo, no qual o nacionalismo estava mente uma metodologia de trabalho, possuía um
limitado ao estilo nacional. Contudo o fato de poder de assimilação incomum, voltado aos
Maurice Ravel ter escrito Bolero ou Rapsódia acontecimentos musicais que o cercavam, e dotava
Espanhola não faz dele um nacionalista, já que o a sua música de uma complexidade sempre
conceito de nacionalismo abrange uma maior atualizada com as manifestações musicais de seu
significação, inclusive ideológica. A idéia do tempo, claro que com particularidades que o
nacionalismo como um fator estético, colocado interessavam. Além disso, utilizava suas fontes
por Dahlhaus (p. 147), discute a aceitação dos musicais (música indígena, popular urbana,
ouvintes de uma obra musical feita por um regional, de origens africanas, música universal
compositor que deseje que ela seja nacional em como chamava música da tradição européia)
seu caráter, sendo que a história deve aceitá-la aparentemente, sem fazer reflexão metodológica.
como um fato estético, mesmo que uma análise Em conseqüência disto, quando interrogado sobre a
estilística fracasse para produzir evidências. presença de temas folclóricos em sua música, Villa-
Não se pode isentar Schoenberg de Lobos respondia: “o folclore sou eu”.
compactuar com essa visão hegemônica A constatação de que os modelos da música
configurada na tradição germânica. Sua famosa européia eram vistos por Villa-Lobos como
frase quando vislumbrou o sistema dodecafônico universais e de que houve uma intervenção direta
“Com esse sistema estaremos garantindo a ou indireta do folclore na sua música se encontra
hegemonia da música alemã por mais 100 anos” em um artigo na revista “Diapason”, feito por Maria
demonstra que a idéia nacionalista está presente Alice Volpe, quando ela cita uma classificação
em sua contextualidade. Em todo esse período realizada pelo próprio compositor sobre sua obra:
de predomínio germânico nos séculos XVIII e XIX
não faltaram em suas músicas temas populares
o musicólogo Adhemar Nóbrega [...] afirma que o
de suas regiões, como também não faltaram
próprio Villa-Lobos classificou a sua obra em
estruturas musicais européias com temas
cinco grupos, segundo o nível de aproveitamento
populares de outras regiões. do folclore, independentemente de uma
Não obstante, a noção de originalidade linearidade cronológica. No primeiro grupo, obras
presente na música de caráter nacional ou os “com intervenção indireta do folclore”, entre as
“afãs nacionalistas” eram vistos de maneira quais figuram o Ciclo brasileiro (1936); no
indistinta, tratados eufemisticamente como segundo, as obras “com alguma intervenção
direta do folclore”, entre as quais a Prole do
“exóticos”. Isto é, tudo o que estava fora dos
Bebê (1918, 1921); no terceiro, obras “com
paradigmas musicais europeus, neste momento, influência folclórica transfigurada e permeada
entrava em um cesto desqualificado chamado com atmosfera musical de Bach”, nas quais se
“exotismo”. As mais diversas escalas, incluem as Bachianas brasileiras e os Prelúdios
organizadas de maneiras distintas, a para violão; e, finalmente, obras “em controle
irregularidade rítmica, os instrumentos total do universalismo”, incluídas aí as Sinfonias
diferentes de regiões distantes dos centros n.º 6 e n.º 7 (1944, 1945) e várias obras
europeus, tudo entrava no mesmo camerísticas da década de 40 (VOLPE, 2006, p.
compartimento – o “exótico”. 33).
86 SIMPEMUS3
Embora sejam apresentados quatro grupos aqui expostos, no entanto apontam para um
de obras em vez de cinco, este trecho ilustra caminho estético diferente do assumido pelo
como Villa-Lobos pensava sua produção musical. compositor brasileiro, que é claramente
A denominação de uma parte de suas nacionalista permeado de modernidade.
composições como “controle total do O nacionalismo presente na obra de Villa-
universalismo”, pautada por formas tradicionais Lobos espelha um processo histórico definido por
tais como concertos, sinfonias, quartetos de uma opção pessoal consciente, mas também por
cordas, demonstra consciência dessa direção uma necessidade premente estabelecida por
formal para modelos clássicos. O período dos fatores de identidade. Já o sentido antropofágico e
últimos quinze anos de sua vida ficou marcado o nacionalismo eclético, sugeridos por Gil Jardim e
por encomendas, principalmente de entidades e Gerald Béhague, convergem para aspectos da
orquestras norte-americanas, período no qual há diversidade cultural apresentada ao século XX, e
uma grande quantidade de obras com essas indicam que todos estes aspectos somados
características. confundem o propósito de definir o estilo e a idéia
A distinção feita por Dahlhaus entre o na obra de Villa-Lobos, porque só ressaltam
estilo nacional, universal e o nacionalismo faz pluralidade. As fontes múltiplas que formam a
parte da reflexão feita por Béhague, quando cultura brasileira apontam para essa pluralidade:
aborda o conjunto de aspectos inclusos na obra desde materiais folclóricos, indígenas, música
de Villa-Lobos. Aponta para um compositor de urbana até herança européia. Contudo há um traço
um “nacionalismo eclético”, com uma linguagem característico que define o gesto villalobiano
moderna, principalmente no período de sua presente nas tintas de sua orquestração e
segunda estada em Paris, ocasião em que se deu instrumentação, na edificação de sua harmonia, na
o importante contato com Edgar Varèse, época criação de seus temas, no espelhamento descritivo
em que se vê uma preocupação com texturas da fauna e flora brasileiras, no alinhamento lúdico
musicais, e comenta a série dos Choros: da cultura infantil brasileira etc. Indica um estilo
pessoal marcado por uma variedade temática
construído gradualmente de um simples gênero incomum.
urbano (Choros n.° 1), as mais complexas A característica essencial de um compositor,
formas e expressões em uma amálgama de afirmada por Schoenberg, está presente em Villa-
pulsos e peças da tradição musical nativa e Lobos, isto é, a de um artífice que utiliza seu
afro-brasileira, melodias de cirandas das material com a consciência de um inventor, não só
crianças (cantigas de roda), outros gêneros de
pautado pelo instinto, imaginação e assimilação,
danças populares urbanas, acontecendo em uma
freqüente atmosfera carnavalesca, mas tudo
mas também por muito trabalho, assumindo as
com um decidido vocabulário técnico moderno contradições implicadas no fato de ter sido um
(BÉHAGUE, 1994, p. 156). homem de atitudes e não um formulador reflexivo.
Essas atitudes se transformaram em uma gigantesca
produção, na qual se encontram obras-primas
Arnold Schoenberg é uma referência
incluídas no repertório de orquestras de todo o
incontestável na música do século XX.
mundo, integradas ao repertório universal, que
Representa um investigador incansável de
ficaram como lições importantes para as gerações
questões musicais colocadas para o sedimentário
subseqüentes de compositores, brasileiros ou não.
histórico desta arte durante todo período que
viveu, seja no campo estético, seja na
composição musical, seja como professor. Os
conceitos de Schoenberg refletem algumas
características do idealismo alemão, são
pertinentes para a compreensão de alguns pontos
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A atualidade da estética musical de Adorno
Igor Tadeu Baggio da Silva
Universidade Estadual Paulista
Resumo
Trata-se de sugerir a atualidade e pertinência de algumas noções fundamentais da reflexão estética
adorniana sobre a música para o contexto atual de criação musical. Através das idéias de música radical e de
música informal, ambas centrais no pensamento de Adorno sobre a música da primeira metade do século XX,
será esboçado um questionamento acerca de alguns princípios norteadores da poética musical recente. O
foco desse questionamento será a implicação ideológica de algumas reflexões sobre música que se propõem
pós-modernas.
Palavras-chaves: estética musical, música contemporânea, modernismo, pós-modernismo.
essas obras tratavam o material musical de obras. A orientação estética desses dois compo-
maneira dialética visando uma depuração dos sitores, devido às suas posturas de exoneração
elementos tradicionais herdados que ainda subjetiva frente à história, é entendida por Adorno
possuíssem resquícios comunicativos passíveis de como diretamente advinda da estética própria aos
banalização. As outras três perspectivas são produtos e mercadorias da indústria cultural.6
exemplificadas pela música de Stravinsky, Uma perspectiva diferente da presente no
Bartók, Hindemith e Eisler. Perspectivas menos ensaio que se acaba de analisar é lançada pela
avançadas em relação ao uso dado ao material Filosofia da nova música de 1949, obra que
musical, afirma Adorno, mas que ainda assim são particulariza as idéias presentes no livro Dialética
consideradas como potencialmente críticas. Os do esclarecimento no âmbito da música. Nessa obra
procedimentos do Stravinsky neoclássico, por de 49, Adorno parece ver o panorama musical de
exemplo, são tratados como um objetivismo uma maneira drasticamente polarizada. Na
musical, algo como uma proposta irreal e introdução do livro temos que a única maneira de
impossível de ser levada a sério na sociedade abordar os problemas levantados pela Nova Música
cindida de então. Visando escapar ao estado de é através da análise de seus extremos através de
alienação que aflige a música, tais um método dialético. Assim, Schoenberg e
procedimentos irão buscar amparo em formas Stravinsky são colocados lado a lado como os
musicais arcaizantes na crença de que as mesmas epígonos das duas correntes mais representativas
escaparam ao processo de reificação, que seria da música daquele momento: a música
um fenômeno recente. Tal atitude é considerada dodecafônica e o neoclassicismo. Como pano de
uma ilusão devido ao fato de que, o compositor fundo para essa polarização está presente a idéia
que procedesse dessa maneira, em relação ao do progresso do material musical associada ao
material, teria em mente uma sociedade desdobramento de um conteúdo de verdade
reconciliada, que não existiu no passado e que (Warheitgehalt) através das composições. Por sua
está longe de ser a sociedade do presente, não vez, este conteúdo de verdade será o que garantirá
estando ao alcance de nenhuma forma estética o papel crítico da música dentro da lógica social
promover tal reconciliação por conta própria. Em que, agora, é vista por Adorno através de lentes
outras palavras, a arte não tem o poder de ainda mais negras. O que se coloca hoje como mais
romper o estado de alienação social que a separa importante, na interpretação da Filosofia da nova
dos sujeitos através de procedimentos criativos música, obra que é, sem dúvida, a mais mal
imanentes, restando a ela, arte, uma missão entendida das que Adorno escreveu sobre música, é
crítica. Bártok também é mencionado nessa o entendimento imparcial das teses ali contidas.
categoria, mesmo tendo sido considerado em Antes de tudo, é preciso entender que essa obra
escritos anteriores, do início da carreira de não se trata de uma defesa sem mais da música de
Adorno, como uma segunda opção, em termos de Schoenberg em detrimento da de Stravinsky. Ambas
potencial crítico, à música da segunda escola de as músicas são encaradas como caminhos distintos
Viena. A terceira possibilidade de composição é que levaram a uma mesma perspectiva de bloqueio
aquela apontada por Adorno como um tipo criativo e de fetichização através do
híbrido entre as duas formas de composição desenvolvimento lógico de suas potencialidades
mencionadas anteriormente. Misturando alguns composicionais. Schoenberg, depois da fase
elementos materiais avançados historicamente expressionista, onde efetua a emancipação do
com outros advindo da cultura popular compositor como “sujeito expressivo”7, se vê
administrada, o autor descreve tal música como compelido, seguindo a lógica desse material
guardando semelhanças com alguns emancipado, a objetivar essa nova possibilidade
procedimentos próprios ao surrealismo francês. expressiva através de um princípio construtivo
Essa é a categoria utilizada para explicar obras totalizante, desembocando assim na racionalização
como as da fase de L’histoire du soldat em do material através da técnica serial. Tudo isso
Stravinsky. Finalmente, as composições de visando a preservação da autonomia do sujeito
Hindemith e Eisler são enquadradas, respecti- através de procedimentos composicionais dialéticos
vamente, nas categorias de Gebrauchmusik e que visariam fazer frente às contradições sociais
Gemeinschaftsmusik5 por ignorarem as
exigências materiais e formais que são colocadas
imanentemente pelo processo de composição das 6
ADORNO, Theodor W. On the social situation of music. Trad.
Wes Blomster. In: LEPPERT, Richard (org.). Essays on music.
Berkeley: Cambridge University Press, 2002, p. 396-397.
5 7
Literalmente música para uso e música da comunidade ou PADDISON, Max. Adorno’s aesthetics of music. Cambridge:
comunitária, respectivamente. Cambridge University Press, 2001, p. 266.
simpósio de pesquisa em música 2006 91
encarnadas pelos diferentes aspectos do material se desvincular das propostas típicas da estética do
musical. Por outro lado, a música de Stravinsky é modernismo clássico.
apresentada como não dialética devido a não A propósito, hoje, em meio a um contexto
tomada de consciência, por parte do sujeito artístico dito pluralista, teria lugar na história uma
criador do compositor, de sua condição de música que se propusesse radical? A arte
alienação junto às possibilidades expressivas que imanentemente responsável, como concebida por
ele julgaria estar dando vazão. Adorno analisa a Adorno parece ter mesmo acabado, juntamente
postura deixada transparecer pelas composições com os movimentos das vanguardas, que já
neoclássicas do compositor se utilizando de tomamos como históricas. A relação problemática
categorias psicanalíticas como repressão e que muitas das obras contemporâneas estabe-
despersonalização. Esse sacrifício do sujeito, que lecem com a História parece ser sintomática. O
está contido de maneira programática no texto heroísmo da música de Schoenberg, contem-
da Sagração da Primavera, estaria baseado em porânea aos gritos expressionistas, mostra-se,
uma crença na possibilidade de se poder saltar muitas vezes, aos ouvidos de ecléticos
ao longo da história em direção a uma condição compositores pós-modernos, como algo anacrônico
social idealisticamente objetivada e e estereotipado. Como entender isso, já que as
caracterizada pela relação reconciliada entre o contradições sociais que essa música visava refletir,
homem, a coletividade e a natureza. Esse é o segundo Adorno, em sua lei formal mais íntima, não
quadro interpretativo dominante utilizado na foram resolvidas e sim incrementadas? A atualidade
Filosofia da nova música para entender os de uma obra como Erwartung, nesse sentido,
processos composicionais presentes ao longo da estaria garantida. Sendo assim, o que estaria sendo
produção stravinskyana. Tais processos seriam, refutado da estética musical de Adorno pelos
então, artificiosos, mas consistiriam, em última compositores do mundo ocidental pós-1950? A
análise, numa impossibilidade para aqueles que resposta possível passa pela reflexão de que talvez
não quisessem abrir mão de sua consciência o público nunca tenha estado preparado para
histórica e social. abdicar do caráter de linguagem da música,
Por último, como uma perspectiva prove- presente nela, como uma segunda natureza, graças
niente do fim da vida de Adorno, poderíamos ao uso sistemático do tonalismo ao longo de
mencionar o ensaio de 1961, Vers une musique trezentos anos de história. Essa reflexão encontra
informelle, no qual, o filósofo frankfurtiano faz eco nas atuais tentativas de se configurar uma
uma reflexão acerca das principais tendências estética pós-moderna que teria em vista obras
que despontam no contexto da música pós-1950, concebidas, quase que unilateral-mente, sob o
revisando seus conceitos de forma e material princípio da comunicabilidade do bem soar e de
musicais. Nesse momento, se faz presente um uma volta à figuração amparada em uma retomada
vislumbre de que talvez o paradigma iniciado do sistema tonal.
com o contexto descrito por Hegel, comentado Como réplica a essa postura, que parece
acima, aponte para uma nova direção. Nesse tomar o som de maneira fetichista, voltemos um
ensaio de 61, já se delineia uma resposta instante às palavras do próprio Adorno:
estética alternativa ao enrijecimento ocorrido na
música por conta do serialismo integral, por um
Os compositores têm a agonizante escolha. Eles
lado, e da música composta sob os princípios da
podem se fingir de surdos e continuar marchando
indeterminação, por outro. Mostra-se aqui um como se a música ainda fosse música. Ou eles
programa estético um pouco mais aberto em podem alcançar o nivelamento por conta própria,
relação a uma música que não se baseasse tão transformando a música em uma condição normal
estritamente na categoria do material, e que e no processo buscar por qualidade, quando
estivesse, portanto, mais voltada para a possível. Ou eles podem, por último, se opor a
liberdade subjetiva do compositor; uma proposta tendência com uma guinada ao extremo, com a
que aproximava-se do ideal expressivo daquelas perspectiva de mesmo assim serem incorporados e
nivelados apesar de tudo8.
criações da fase atonal de Schoenberg. Por
óbvio, não se tratava de retomar a estética
expressionista, mas sim, o espírito de renovação
presente em tal estética. Em um momento no
qual a relação com o público se tornava cada vez
mais problemática para os compositores 8
ADORNO, Theodor. W. The relationship of Philosophy and
vanguardistas, as reflexões de Adorno parecem Music Trad. Wes Blomster. In: LEPPERT, Richard (org.).
Essays on music. Berkeley: Cambridge University Press, 2002,
se voltar para aquelas músicas que começavam a p. 135-161. Tradução nossa.
92 SIMPEMUS3
A criação artística crítica e autônoma negação das relações existentes entre as diferentes
que Adorno defendia, não precisa ser entendida, formas de arte e as demais manifestações humanas
necessariamente, como uma categoria histórica e e sociais, como se a música e as demais artes
datada. Antes, deveria se constituir em um ponto constituíssem um setor isolado e incomunicável
passível de reflexão para todo e qualquer com o restante das instituições e práticas sociais.
compositor de qualquer época. A postura Essa comparti-mentação dos diversos setores da
contemporânea, em muitos momentos, parece vida social e cultural vivenciada atualmente,
aparentada daquela já descrita na Filosofia da parece levar, nesse caso, a uma forma pejorativa
nova música e que acaba escamoteando o sujeito de l’art pour l’art. Confundindo arte responsável e
na esperança de objetivar uma obra de arte que crítica com arte engajada, muitos compositores
teria o poder sobrenatural de solucionar, por correm para um abraço vazio com um público
conta própria, o estado de alienação que se hipotético com medo de serem tachados sob o signo
interpõe entre a sociedade e os fenômenos de um anacrônico vanguardismo.
artísticos.9 Claro está que as soluções desse Seria precipitado, pois, lermos os escritos que
problema fogem às possibilidades de qualquer compõe a estética musical de Adorno como
arte, estando, antes, no âmbito da própria reflexões limitadas ao contexto do modernismo
sociedade e de suas instituições constituintes. De artístico da primeira metade do século vinte. Sua
qualquer maneira, muitas escolhas estéticas reflexão acerca de uma música responsável,
maneiristas de hoje parecem se enquadrar na primeiro como uma música radical e,
segunda escolha possível apontada por Adorno no posteriormente, como uma música informal,
parágrafo citado acima. mostra que ele não mantinha uma postura
Como apontado logo no início desse texto, unilateral em relação às composições de
ao tratar-se da passagem dos Cursos de Estética Schoenberg, Berg e Webern, mas que estava alerta
de Hegel, a ilusão de uma extrema liberdade em para a dialética da história. Nesse sentido, sua
relação ao passado acaba por limitar ainda mais própria noção de autenticidade, quanto às
as verdadeiras opções estéticas de uma época e composições musicais, sofreu algumas alterações
pode levar toda uma geração, ou mais, de quantitativas ao longo de sua vida, como pode-se
artistas criadores a um estado de contínua crise depreender do estudo aprofundado dos seus
de identidade histórica. Porém, o ecletismo principais escritos sobre música. Para Adorno, que
elevado a estilo parece desembocar numa também fora compositor, se a sociedade se
concepção ideológica do que seria uma real fragmenta ainda mais, a música que surgir desse
estética contemporânea e a determinação de tal contexto deverá acolher imanentemente aspectos
postura como pós-moderna parece apenas dessa fragmentação de maneira a reflexionar essa
desabonar ainda mais a tentativa de se heteronomia social.11 Ou seja, a contradição entre
estabelecer algo como uma produção artística o material musical, que, desde Vers une musique
consciente de si mesma e plena de valor. Nesse informelle já era tomado como algo que se
sentido, vale à pena, uma última vez, a desintegrava e que perdia sua resistência frente ao
admoestação adorniana: domínio da técnica composicional e, a necessidade
de se compor novas formas musicais capazes de
O que outrora foi verdadeiro numa obra de arte estabelecer alguma noção de unidade através da
e foi desmentido pelo curso da história, só pode síntese entre os seus materiais continua atual.
de novo vir à luz quando se modificarem as Adorno oferece reflexões interessantes nesse
condições em virtude das quais aquela verdade sentido em suas monografias sobre Mahler e Berg.
foi liquidada: tão profunda é, no plano estético, Para o filósofo, esses compositores compunham
a penetração recíproca do conteúdo de verdade com ruínas, ou seja, com um material musical
e da história. 10 historicamente gasto. Mesmo assim, não abdicaram
da integridade subjetiva e, tampouco, da noção de
A atitude cética, em relação ao passado uma forma musical sintética e auto-reflexiva.
recente, que deixam transparecer alguns desses Para tornar mais concreto o que nesse
criadores aparentemente independentes de hoje, momento se questiona, é válida a receita do cozido
parece ser devida, em grande medida, a uma musical pós-moderno, dada pelo compositor belga
Boudewijn Buckinx:
9
ADORNO, Theodor. W. Filosofia da Nova Música. 2.ed. Trad:
Magda frança. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 109-165.
10 11
ADORNO, Theodor. W. Teoria estética. Trad: Artur Morão. PADDISON, Max. Adorno’s Aesthetics of Music. Cambridge:
Lisboa: Edições 70, [s.d.], p. 54-55. Cambridge University Press, 2001, p. 275-276.
simpósio de pesquisa em música 2006 93
? Então o pomo fez um grande cozido com um q A estética musical de Adorno conseguiu
de expressionismo, um q de neoclassicismo, um alcançar o que nenhuma outra reflexão teórica
q de vanguarda, um q de modernismo anterior conseguira, no âmbito da música, ao
moderado?
desvelar o mecanismo complexo das inter-relações
* Um q de romantismo, um q de classicismo, um e dependências existentes entre a música e a
q de barroco, um q de Idade Média, um q sociedade histórica que a vê nascer. Nesse
oriental, um q de cultura africana, um q de pop
processo, entendeu que as artes e, principalmente
e de rock. 12
a música, possuem um papel social muito grande
frente às contradições existentes entre os estados
Depois desse banquete, a autonomia das de desenvolvimento intelectual e material da
composições que visavam refletir a heteronomia humanidade. Antes de acatarmos irrefletidamente
social passa a afirmar tal heteronomia como se a proposta de uma estética musical pós-moderna,
essa constituísse o seu em-si. Há, assim, uma nada melhor que voltarmos aos Musikalischen
renúncia ao caráter sintético e auto-reflexivo da Schriften (Escritos musicais), que constituem quase
forma musical e do momento de possibilidade metade de toda a obra adorniana, para dar-lhes sua
crítica, na composição musical, em troca de um merecida atenção. Se não por outro motivo, ao
caráter de pastiche, que se acredita menos para que possamos seguir em frente em
comunicativo e que acaba sendo incorporado busca de uma verdadeira identidade estética
como entretenimento junto ao público, mesmo contemporânea.
quando muitas dessas composições ostentam
alguma pretensão mais séria. Aqui, se tornam
oportunas as palavras de Rainer Rochlitz em seu
ensaio sobre Adorno e o modernismo: “A
modernidade artística é assim um teste para a
integridade do sujeito estético frente ao
insignificante e ao não-estético”.13
para uma atitude despreocupada frente à
história da primeira metade do século XX e, que
toma o material musical de maneira pré-crítica
como algo dado pelo simples rótulo estilístico das
mais diversas experiências estéticas de épocas
passadas, seria necessário que as antinomias
presentes em todos os domínios da música e,
principalmente da sociedade, ao fim desse
período, tivessem sido resolvidas. Sabemos que
em muitas instâncias isso não aconteceu. A
arbitrariedade composicional acaba por se erigir
em estilo pessoal e tal atitude acaba por se
cristalizar em músicas cuja pretensão a um valor
estético reside, unicamente, no fato de essas
acreditarem estar manifestando o espírito dos
tempos e um retorno a um estado anterior de
proximidade junto ao público. Ao se tomar
aparência estética heterônoma por conteúdo
histórico e social autônomo, a arte perde não só
sua pretensão à verdade, mas, principalmente,
sua pretensão crítica contra a incorporação como
entretenimento.
12
BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo: ou a história da
música do pós-modernismo. Trad: Álvaro Guimarães. São
Paulo: Ateliê, 1998, p. 128.
13
ROCHLITZ, Rainer. Language for One, Language for All:
Adorno and Modernism. Trad. Roberta Brown. In: RAHN,
John (org.). Perspectives on Musical Aesthetics. New York:
Norton, 1994, p. 27. Tradução nossa
94 SIMPEMUS3
Referências
ADORNO, Theodor W. Essays on music. Trad. Wes Blomster. Berkeley: Cambridge University Press, 2002.
_____ Filosofia da nova música. 2. ed. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1989.
_____ Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, [s.d.].
BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo, ou a história da música do pós-modernismo. Trad. Álvaro Guimarães.
São Paulo: Ateliê, 1998.
HARRIS, Laurence. Forças produtivas e relações de produção. In: BOTTOMORE, Tom. (org.). Dicionário do
pensamento marxista. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: EDUSP, 2000.
_____ Enciclopedia de las ciencias filosoficas: lógica, filosofia de la naturaleza, filosofia del espíritu. Trad:
Eduardo Ovejero y Maury. Ciudad de México: Juan Pablo, 1974.
PADDISON, Max. Adorno’s Aesthetics of Music. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
ROCHLITZ, Rainer. Language for One, Language for All: Adorno and Modernism. Trad. Roberta Brown. In:
RAHN, John (org.). Perspectives on Musical Aesthetics. New York: Norton, 1994.
A Bar Form nas canções de Nepomuceno
Rodolfo Coelho de Souza
Universidade de São Paulo
Resumo
Tomando como ponto referência a "Bar Form" - uma forma poético-musical característica da canção alemã -
este trabalho discute a hipótese de que Nepomuceno teria utilizado modelos europeus para o
desenvolvimento de um projeto de canções brasileiras de câmara. A análise de duas canções, "O wag'es nicht"
e "Coração indeciso", estabelece a existência de uma ponte de ligação entre as formas utilizadas nos
repertórios compostos em língua estrangeira e em português. Essa constatação circunscreve alguns limites
para a referida hipótese.
Palavras-chave: Música Brasileira, Análise Musical, Forma Musical
que utiliza o modelo Bar Form. Trata-se da As duas primeiras estrofes repetem seus
canção Coração Indeciso, publicada em vida do materiais musicais com variações mínimas. A
compositor pela Editora Sampaio Araujo & Cia do mudança mais sugestiva é, no compasso 28, a
Rio de Janeiro, como seu Op.30 No.2, sobre o introdução de um Fá# como ponto culminante da
poema de Frota Pessoa transcrito abaixo. melodia da segunda estrofe, realizada como
apogiatura superior. A linguagem harmônica é
francamente tonal, com muito menos recurso aos
Ao princípio era apenas simpatia,
já bem perto do amor, cromatismos wagnerianos que a canção em alemão.
e minha alma vibrava; a alma fulgia A estrutura tonal alterna, nas duas primeiras
num festivo esplendor. estrofes, os modos menor e maior da tonalidade de
E tu tão meiga e doce Mi. A terceira estrofe, que se inicia com um
e terna eras então... desenho igual ao das duas estrofes anteriores, já no
Tomei como se fosse segundo compasso apresenta um desenho melódico
meio sim, meio não! diferente, embora a harmonia continue sempre
semelhante. A frase final, cujo equivalente na
Depois já era mais que simpatia,
Stollen contrastava pelo modo maior, sugerindo o
muito mais, era amor
um palpitar perpétuo; a alma sofria sentimento de esperança do sujeito, na Abgesang
num perpétuo terror. permanecerá em menor, para acentuar a desilusão
Mas teu olhar espera! do sujeito. Afora o uso ocasional de antecipações e
dizia. E que expressão! suspensões que turvam sutilmente a clareza
Comigo tinha que era funcional dos acordes, e uma passagem cromática
meio sim, meio não! não-funcional no compasso 16, pouco há para
comentar a respeito da inventividade harmônica
Finalmente foi mais que simpatia
desta música. Embora não se possa generalizar a
e foi mais do que amor;
partir de um único caso, verifica-se nesta canção a
foi paixão, desvario; eu não vivia
senão por seu favor. validade de nossa hipótese de que a complexidade
Mas tu quando eu por fim do tecido harmônico-melódico de Nepomuceno se
te abri meu coração, rarefaz nas canções em português, compara-
não me disseste sim tivamente à ambição aventurosa das primeiras
nem me disseste não. canções em línguas estrangeiras.
Referências
BAS, Julio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires: Ricordi, 1947.
CORRÊA, Sergio N. A. Alberto Nepomuceno: catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte, 1985.
GROUT, Donald e PALISCA, Claude. A history of Western music. New York: W.W. Norton. 5a.ed, 1996.
HANCOCK, Virginia. Johannes Brahms: Volkslied/Kunstlied. In: HALLMARK, Rufus (org.) German Lieder in the
nineteenth century. New York: Schirmer, 1996.
KRAMER, Lawrence. Hugo Wolf: Subjectivity in the Fin-de Siècle Lied. In: HALLMARK, Rufus (org.) German
Lieder in the nineteenth century. New York: Schirmer, 1996.
MARIZ, Vasco. A Canção brasileira de câmara. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.
MUSGRAVE, Michael. The Music of Brahms. Londres: Clarendon, 1985.
PIGNATARI, Dante; COELHO de SOUZA, Rodolfo (org.). Alberto Nepomuceno: Canções para Voz e Piano. São
Paulo: EDUSP, 2004.
Partituras analisadas
Resumen
El desarrollo histórico del concepto de textura en la teoría de la música despliega contenidos relevantes para
su determinación ulterior, el primero de los cuales está dado por su origen. El concepto cuenta con una
doble génesis. La transposición del término desde su acepción plástica al metalenguaje musical se produjo
en dos momentos históricos distintos, en lenguas distintas y, presumiblemente, de modo independiente en
cada una de ellas.
La “primera” génesis del concepto se produjo en el ámbito de la crítica musical inglesa hacia comienzos del
sigo XX, por parte de críticos como C. Hubert Parry y George Dyson. Parry (1911) caracteriza la textura como
un entramado que puede incluir su correspondiente armonización: la textura remite así a una simultaneidad
no necesariamente “consistente”. Dyson (1923) identifica el concepto con las propiedades armónicas de las
sonoridades de la música moderna. La textura ocupa el lugar tradicionalmente asignado a la armonía en la
caracterización de las propiedades de la música. Estos enfoques establecen las líneas generales sobre las
cuales será caracterizado en adelante el concepto en la musicología de habla inglesa.
La “segunda” génesis del concepto de textura se produce en el ámbito de la teoría de la música en lengua
alemana, en el marco de las discusiones del círculo de Darmstadt sobre la música post-serial. Se reiteran
aquí los dos rasgos característicos de la introducción del concepto en el ámbito de la musicología
anglosajona: su vinculación con la problemática de la música contemporánea, así como la doble perspectiva
de que es objeto. La representación de la simultaneidad musical será interpretada mediante los conceptos
de Struktur y Textur.
György Ligeti (1960) introduce estos conceptos en el marco de una reflexión crítica de la composición serial y
de sus consecuencias formales. Con Helmut Lachenmann (1970) estos conceptos se integran en una tipología
jerárquica de materiales. Gianmario Borio (1993) ubica esa contraposición en el marco de la renovación de
materiales y procedimientos compositivos desarrollada hacia fines de la década del ‘50, en el contexto de la
música informal. La textura se constituye como concepto general de los materiales musicales.
de 19803), donde se lo emplea sólo como líneas melódicas, sino que pueden incluir su
traducción del vocablo italiano “tessitura” en su correspondiente armonización, posibilidad ilustrada
sentido corriente – a falta, según Henry Collins con fragmentos de Ein Heldenleben y Elektra de
Deacon, el autor de la entrada correspondiente, Richard Strauss. Se presenta así el caso, expresado
de un equivalente directo en inglés.4 en términos figurados, de un entramado de
La representación teórica de la armonías.
simultaneidad había estado caracterizada hasta En segundo lugar, la textura remite a una
entonces por una orientación tipológica, basada simultaneidad musical no necesariamente “consis-
en un reducido conjunto de “categorías tente”:
estilísticas” (en la denominación de Guido
Adler)5 tales como polifonía, homofonía, entre [L]os desarrollos más extremos de la textura que
otras. La formulación del concepto de “textura” se presentan ahora con frecuencia son tales que
en el contexto de la crítica inglesa puede varias melodías o figuras representativas corren
entenderse como resultado de la inadecuación simultáneamente sin consideración alguna del
de las categorías tradicionales de escritura hecho de estar en la misma tonalidad, o de
musical para dar cuenta de sonoridades nuevas, representar armonías consistentes. Los
propias del lenguaje del postromanticismo compositores alemanes han arribado a la más
extrema extravagancia en lo que podría
alemán.6 Esas nuevas texturas pusieron en
denominarse verdaderamente un libertinaje
evidencia tanto la inadecuación de las categorías
positivo en la aplicación de los principios de la
estilísticas existentes, como la insuficiencia del textura, los cuales han evolucionado hasta nuestro
conjunto de todas ellas para su representación tiempo. Ellos seguramente no lo consideran como
teórica. un problema de textura; sin embargo, su posición
En 1911 el crítico Charles Hubert Parry es fundamentalmente explicable sobre esa base.
tituló “Texture” dos capítulos de su libro Style in Las varias partes que componen la textura están
tratadas con tal independencia que parecen ir por
musical art, originado en clases dictadas en la
su cuenta sin consideración alguna de lo que las
Universidad de Oxford.7 El sentido que el término otras están haciendo. […] la tendencia parece ser
asume entonces es actual en más de un aspecto. no sólo hacer que las varias líneas individuales
En primer lugar, Parry caracteriza la prosigan sus cursos independientes, sino
textura, en coincidencia con la etimología del adjuntarse las armonías que les corresponden, y
término, como un entramado, como “el modo en emplear sucesiones de acordes como ingredientes
de la textura, sin poner la menor consideración en
el cual las hebras se entretejen”8. Sin embargo,
las falsas relaciones y choques de notas
tales “hebras” no se identifican sin más con
subordinadas que resultan [de este modo] 9
3
The New Grove dictionary of music and musicians. Stanley Pueden reconocerse dos elementos de
Sadie org. Londres: Macmillan, 1980. Cf. ‘Texture’, v. 18,
p. 709. actualidad en el concepto de textura de Parry. Por
4
Cf. DEACON, H. C. Tessitura. A dictionary of music and
un lado, el valor agregado que el concepto
musicians, v. 4, p. 94. El término no aparece tampoco en representa con respecto a las categorías esti-
diccionarios como los de CARMICHAEL, S. (A new dictionary lísticas tradicionales (categorías como polifonía,
of musical terms. With a short prefatory explanation of
the elementary rules of music. Londres, Augener, 1878) o homofonía, etc., definidas siempre con presu-
BAKER, T. (A dictionary of musical terms, 9. ed. New York: puestos lineales), valor dado por la posibilidad de
Schirmer, 1905). Como en el caso del Grove, se lo representar un entramado compuesto de elementos
identifica con la tesitura en diccionarios como los de
WOTTON, T. (A dictionary of foreign musical terms and no lineales. Por otro lado, la legitimación de la
handbook of orchestral instruments. Leipzig: Breitkopf & simultaneidad en cuanto tal, independientemente
Härtel, 1907, p. 199) y DUNSTAN, R. (A cyclopaedic
dictionary of music. Londres: J. Curwen, 1908, p. 429).
de la consistencia mutua entre sus elementos
5
componentes.10 La caracterización de Parry
ADLER, Guido. Der Stil in der Musik. Leipzig: Breitkopf &
Härtel, 1911. Reimpresión de la 2 ed. de 1929: (Walluf:
Sändig, 1973). 9
Ibíd., p. 204-205.
6
La música de Richard Strauss desempeña un papel 10
La presentación simultánea de materiales cuya relación
significativo en este contexto: contaba a comienzos del aparece como no consistente en música de la primera década
siglo XX en Inglaterra como representación paradigmática del siglo XX está tematizada por Guido Adler en el contexto de
de lo contemporáneo. una universalización del término ‘heterofonía’. Cf. ADLER, G.
7
PARRY, C. H. Texture. Style in musical art (Londres: Über Heterophonie. Jahrbuch der Musikbibliothek Peters für
Macmillan, 1911), p. 173-206. 1908 (1909), p. 17-27. Véase asimismo las consideraciones de
E. J. Dent sobre la autosuficiencia de las sonoridades
8
PARRY, op. cit., p. 185. Las citas fueron traducidas ‘modernas’, ‘consideradas por sí mismas’. Cf. DENT, E.
expresamente. Agradezco a Gerardo Sachs su revisión de Harmony. A dictionary of modern music and musicians (Arthur
mis traducciones del alemán. Eaglefield-Hull [org.] Londres: J. M. Dent, 1924), p. 215.
simpósio de pesquisa em música 2006 107
destaca, de este modo, el elemento de aquellas de un cuarteto, puede no haber reales
multiplicidad del concepto. partes en el sentido contrapuntístico del término.
Todo está sujeto a exigencias verticales y
Una década más tarde, en un artículo
armónicas. [...] Explotamos masas y contrastes, y
denominado “La textura de la música moderna”, el medio es el color más que la línea; la trama es
George Dyson identifica el concepto con las empapelado más que tapicería. Y la efectividad
propiedades armónicas de las sonoridades de la del discurso de un compositor contemporáneo
música moderna.11 La textura ocupa el lugar puede depender casi exclusivamente de la
asignado tradicionalmente a la armonía en la delicadeza u osadía de sus métodos armónicos. 14
caracterización de las propiedades de la
música.12 La metáfora que sustituye la tapicería por el
Al igual que en Parry la música moderna se empapelado pone en evidencia un elemento de
caracteriza como un desarrollo de la textura,13 ilusionismo en la textura, en la cual la sonoridad
desarrollo cuyo antecedente se retrotrae a la desempeña un papel más importante que el
música de Johann S. Bach. Ambos momentos his- entramado.15 El énfasis en el enfoque de Dyson está
tóricos se distinguen, no obstante, en el carácter dado por las nuevas sonoridades de la música
en última instancia horizontal de la textura contemporánea. Esta concentración en el contenido
bachiana, contrapuesto al carácter de altura de los materiales conduce, signifi-
esencialmente vertical de las texturas cativamente, al problema de la consistencia entre los
contemporáneas. elementos componentes de la textura. Mientras que
Parry formulaba el problema de la consistencia a
La textura moderna es normalmente vertical, partir de una concepción de la textura entendida
armónica, una trama [fabric] de salpicaduras de como entramado, Dyson llega al mismo como
sonido. Las partes orquestales parecen ahora resultado de su tratamiento de la múltiple
secciones horizontales cortadas a través de un tonalidad.
paisaje. Son como las líneas de contorno de un
mapa de artillería. Aparecen cuando la trama
Strauss podía hacer a menudo modificaciones
alcanza un grado particular de elevación.
detalladas en sus sucesiones de acordes a efectos de
Desaparecen cuando la textura es delgada. Su
producir el efecto total dentro de una distancia
función en la técnica es ocasional, casi casual.
comparativamente respetable de lo que solía
Incluso cuando el aparato orquestal es
llamarse armonía. Nuestros contemporáneos no
relativamente constante, como en las partes de
tienen esas reservas. Las columnas armónicas siguen
cuerda de una orquesta, o, verdaderamente, en
atrevidamente su propio curso, e ignoran o desafían
las buenas maneras tradicionales del mismo modo
11 como lo hicieran los primeros pioneros del
Cf. DYSON, G. The texture of modern music. Music &
Letters, v. 4, n. 2, 1923, p. 107-18; n. 3 (1923), p. 203-18; contrapunto.16
y n. 4 (1923), p. 293-312. Dyson emplea indistintamente
los términos ‘moderno’, ‘nuevo’ y ‘contemporáneo’, los
cuales asumen de este modo un valor estrictamente La remisión a los orígenes del contrapunto se
cronológico, desprovisto de significación estética. sigue de la analogía que establece Dyson entre el
12
Esto se pone en evidencia todavía más claramente en la desarrollo de este “contrapunto armónico”
reedición del artículo, al año siguiente, en el contexto de moderno y “los experimentos tentativos que
un libro dedicado a la música moderna. Cf. DYSON, G. The
new music (Londres: Oxford University Press, 1924), p. 55- elaboraron el organum a partir del canto llano, y el
116. Allí, el capítulo sobre textura aparece a continuación contrapunto a partir del organum.”17
de un capítulo sobre “Melodía y ritmo”, y en forma
inmediatamente anterior a un capítulo sobre forma, El contrapunto armónico, ejemplificado con
denominado “Problemas de arquitectura”. El capítulo está pasajes de Salome de Strauss, está definido como
dividido por su parte en tres fragmentos, tal como había
aparecido en Music & Letters, fragmentos que serán ahora
una textura en la cual “las fibras melódicas de los
denominados “La expansión de la tradición”, “Múltiple contrapuntistas han devenido corrientes armónicas
tonalidad” y “Cromatismo”, respectivamente. Dyson
volverá a publicar partes completas del trabajo, así como
algunos de los ejemplos musicales, en el artículo 14
“Harmony” en la tercera edición del Grove. Cf. DYSON, G. Ibíd., p. 109. Los subrayados son nuestros.
Harmony. Grove’s dictionary of music and musicians, 3. 15
Ese elemento de ilusionismo ligado a la textura reaparece en
ed., (H. C. Colles [org.], Londres: Macmillan, 1927), v. 2, enfoques posteriores como los de de Jonathan DUNSBY (Cf.
p. 527-39. Considerations of Texture. Music & Letters, v. 70, n. 1, 1989,
13
Cf. DYSON, G. The Texture of Modern Music, p. 108. La p. 46-57.) y Federico MONJEAU (Cf. Forma. La invención
caracterización de la música moderna por su desarrollo de la musical. Ideas de historia, forma y representación. Buenos
textura se corresponde con una caracterización del ‘período Aires: Paidós, 2004, p. 69-127.).
sinfónico’ por su ocupación con los problemas de arquitectura 16
Ibíd., p. 215.
musical, y del ‘período del drama musical’ con los del
17
tematismo. Cf. ibíd., p. 108. Ibíd., p. 213.
108 SIMPEMUS3
compuestas, las cuales pueden aproximarse y vinculación del concepto con la problemática de la
retirarse, combinarse o chocar, tal como lo música contemporánea, así como la doble
hacían las partes individuales de la polifonía”.18 perspectiva de que el concepto es objeto. Esta
En síntesis, los enfoques de Parry y de dualidad de perspectivas obtiene aquí una
Dyson establecen las líneas generales sobre las correspondencia inmediata en la terminología.21 La
cuales será caracterizado ulteriormente el representación de la simultaneidad musical será
concepto de textura en la musicología de habla interpretada mediante los conceptos de Struktur y
inglesa.19 Se trata, en el caso de Parry, de una Textur.22
caracterización de tipo formal, centrada en la György Ligeti, en un ensayo escrito en 1959 y
representación de la constitución en sí de la titulado “Metamorfosis de la forma musical”,23
simultaneidad musical, y en el otro, de una introduce estos conceptos en el contexto de una
caracterización del contenido de los materiales; reflexión crítica del estado de la composición serial
en el caso particular de Dyson, de su contenido y de sus consecuencias formales. En ese marco, y
de altura. con una consideración relativamente marginal,24 la
“estructura” queda caracterizada como un
entramado [Gefüge] cuyos elementos constitutivos
La “segunda génesis” del concepto: El
son distinguibles, y que se conforma como producto
pensamiento musical alemán
de las interrelaciones entre aquellos. El concepto
La “segunda génesis” del concepto de de “textura” designa en cambio un complejo más
textura se produce en el ámbito de la teoría de homogéneo, menos articulado, en el cual apenas
la música en lengua alemana, en el marco de las pueden discernirse sus elementos constitutivos.25
discusiones del círculo de Darmstadt sobre la Mientras que la estructura se analiza en términos
música post-serial.20 de sus componentes, la textura se describe en
Se reiteran aquí los dos rasgos carac-
terísticos de la introducción del término en el 21
Hasta entonces, la terminología musical alemana presentaba
ámbito de la musicología anglosajona: la como equivalente aproximado de texture un término cargado
de la misma duplicidad. Tal es el caso del término Satz,
considerado en algunas de sus acepciones, aquellas
18
Ibíd., p. 213. homologables a las del término texture, y con exclusión de
aquellas otras, en las cuales es entendido como categoría
19
Más allá de las recurrencias de un empleo del concepto formal. El término remite por una parte a problemas de
simplemente como denominación comprensiva del contenido, cuando alude a aspectos ligados a diferentes
conjunto de categorías estilísticas. figuraciones instrumentales (como en Klaviersatz), o, en un
20 sentido general, a la disposición del material musical. (Satz
Al igual que en el caso de la crítica musical inglesa, se como musical setting. Cf. LEUCHTMANN, H. Dictionary of
registra al menos una mención anterior del término en la Terms in Music = Wörterbuch Musik [5ta. ed. Stuttgart, 1998],
literatura musical alemana. En 1832, en el contexto de un p. 263.) Remite por otra parte a elementos ligados al número
debate sobre la logicidad armónica de la introducción del de partes involucradas en la textura (como en
Cuarteto en do, K. 465 de W. Mozart, Gottfried Weber Zweistimmigensatz) así como a la relación entre éstas en
introduce el término Textur para designar un entrelazado términos fundamentalmente rítmicos (en los casos de
completo de melodía y armonía: “Un comprehensivo Homophonensatz, o Polyphonensatz). Cf. DRABKIN, W. e I.
análisis de toda la textura armónica y melódica del pasaje PFINGSTEN. Satz. The New Grove Dictionary of Music and
en cuestión nos permitirá identificar todas esas causas, Musicians (2. ed. Stanley Sadie org., Londres: Macmillan,
tanto individuales como en sus relaciones, y asimismo dar 2001), v. 22, p. 322-23.
cuenta de qué es esto, que con esas resonancias tanto nos
22
extraña y llama la atención tan rudamente a nuestro El término Struktur asume en la terminología musical alemana
oído.” WEBER, G. Über eine besonders merkwürdige Stelle múltiples sentidos, entre ellos uno vinculado a la lógica
in einem Mozart’schen Violinquartett aus C. Caecilia v. 14, compositiva, sentido que, si bien no es completamente
n. 53-54, 1832, p. 10. (Los subrayados son de Weber.) independiente del que se relaciona con el problema de la
Sobre los protagonistas y las vicisitudes del debate, cf. simultaneidad musical, no es tampoco homologable con éste.
VERTREES, J. Mozart’s String Quartet K.465: the History of Sobre la multiplicidad de sentidos del término Struktur, cf. ,
a Controversy. Current Musicology, v. 17, 1974, p. 96-114. E. Was heißt strukturell? Melos, v. 31, n. 6-7, 1964, p. 220-26;
El empleo no parece haber tenido precedentes ni y Zum Terminus ‘Strukturell’. Terminologie der neuen Musik
continuidad inmediata en la tradición crítica alemana. De (Berlin: Merseburger, 1965); y KROPFINGER, K. Bemerkungen
hecho, el término aparece en el contexto de un uso zur Geschichte des Begriffswortes ‘Struktur‘ in der Musik. Zur
pronunciado de expresiones latinas, lo que Ian Bent asocia Terminologie der Musik des 20. Jahrhunderts (H. Eggebrecht,
a una remisión por parte de Weber al paradigma retórico org. Stuttgart: Musikwissenschaftliche Verlags-Gesellschaft,
como instancia explicativa del pasaje. (Weber habla de la 1974), p. 188-204.
‘significación retórica del pasaje’.) Cf. BENT, I. Music 23
analysis in the nineteenth century, v. 1: Fugue, Form and LIGETI, G. Wandlungen der musikalischen Form. die Reihe 7,
Style (Cambridge: Cambridge University Press, 1994), p. 1960, p. 5-17.
157-60. Es sugestiva, no obstante, la recurrencia de un 24
La distinción se formula en una nota al pie de página. Cf.
patrón: la introducción del término parece asociada en ibíd., p. 13.
todos los casos (tanto en éste, como en el caso de Parry y
25
el de Ligeti, que se trata a continuación) al problema de La distinción de Ligeti refigura para los materiales
representar simultaneidades musicales impropias con contemporáneos esa antigua distinción, establecida por la
relación a las categorías analíticas vigentes en cada musicología histórica en el marco de las categorías lineales,
momento histórico y para cada tradición. entre las einstimmige y las mehrstimmige Kategorien.
simpósio de pesquisa em música 2006 109
términos de rasgos estadísticos generales.26 material complejo, pero en última instancia
Con Helmut Lachenmann la contraposición homogéneo.29 En la “estructura”, en cambio, las
entre los conceptos de Textur y Struktur propiedades parciales adquieren una función en el
adquiere valores adicionales. En su ensayo “Tipos resultado global del material.
sonoros de la nueva música”, escrito en 1966,27
estos conceptos se integran como los grados Esa originalidad se debe más bien precisamente al
superiores de una tipología jerárquica de hecho de que en tales estructuras de sonido
materiales. A los parámetros tradicionales de [Klang-Struktur] no son las puras cualidades de los
descripción tales como la altura, el timbre, la sonidos detallados las que vuelven a su efecto
duración y la intensidad, Lachenmann agrega una heredado, sino que esos detalles son funciones de
un orden y miembros de disposiciones precisas, y
distinción entre los conceptos de sonoridad como
como tales despliegan entre ellas una diversidad
“estado” y de sonoridad como “proceso”. inmediatamente efectiva de parentescos y
Caracteriza a la “sonoridad-textura” relaciones de contraste de diferentes niveles, y a
[Texturklang] el hecho de que puede cambiar partir de tal interdependencia se comprenden y
continuamente desde el punto de vista de sus comunican en forma totalmente nueva. De la
particularidades acústicas sin recurrencias de interacción intencional de tales relaciones de
ninguna clase, lo que la distingue de la sonidos resulta ese carácter global único e
“sonoridad-fluctuación” [Fluktuationsklang], inconfundible de una estructura [Struktur-klang].30
emplazada un escalón más abajo en la jerarquía
de materiales, cuyas modificaciones son, de una La diferenciación entre textura y estructura
u otra forma, recurrentes. La textura, si bien se manifiesta asimismo en lo relativo a sus
prolongable discrecionalmente, se constituye no respectivas propiedades temporales. La
obstante como un material estático, en la temporalidad propia [“Eigenzeit”] de la textura,
medida en que esas modificaciones operan en el como la de la sonoridad-timbre [Farbklang] y de la
plano de los elementos componentes y no de su sonoridad-fluctuación, es todavía independiente de
resultante global. Esa distinción entre la duración efectiva de que los materiales son
propiedades parciales y globales de la textura da objeto. Estos tres materiales se ordenan en una
lugar a una especificación ulterior del material. escala en la cual su duración efectiva ocupa un
Las propiedades globales derivan de una lugar de relevancia creciente. En la sonoridad-
combinación estadística de las propiedades estructura [Strukturklang] la ensambladura
parciales de la sonoridad. La resultante global de temporal interna del material se vuelve tan
la textura es, en consecuencia, más pobre que diferenciada, que éste adquiere implicancias no
los elementos particulares que la componen. sólo sonoras sino formales. La sonoridad-estructura
se constituye como proceso, y su duración efectiva
la característica general de una textura no es ya se vuelve una propiedad esencial de su constitución
en ninguna parte necesariamente idéntica a las en tanto que material. Su temporalidad propia se
características de los detalles audibles en ese vuelve idéntica de su duración efectiva. En virtud
momento, excepto en el sentido negativo de de estas dos propiedades, la funcionalización de sus
que el carácter general, calificado como momentos parciales, así como la incidencia
resultado estadístico, se sigue del nivel de los efectiva del tiempo, la estructura se presenta como
detalles – así como precisamente la masa es
síntesis posible del dualismo entre sonoridad
más primitiva que sus miembros individuales.28
(material) y forma.
La distinción de Lachenmann entre los
Se trata, como en el caso de Ligeti, de un
conceptos de textura y estructura pone en juego de
26 este modo un conjunto complejo de elementos. Por
La textura se va a constituir en el pensamiento compositivo
alemán como designación de cierto tipo de materiales un lado, mantiene la oposición formulada por Ligeti
musicales. Karlheinz Stockhausen emplea el término por entre materiales homogéneos (la textura) y
esos mismos años para caracterizar los materiales que
componen su obra Gesang der Jünglinge, materiales
materiales estratificados (la estructura). Esa
entendidos como unidades formales. Cf. STOCKHAUSEN, K. oposición adquiere en Lachenmann
Musik und Sprache III. In: Texte, v. 2: Aufsätze 1952-1962 determinaciones ulteriores, con la oposición entre
(Köln: DuMont, 1964), p. 58-68.
la constitución puramente estadística de la textura
27
Cf. LACHENMANN, H. Klangtypen der neuen Musik.
Zeitschrift für Musiktheorie , v. 1, n. 1, 1970, p. 21-30.
29
Reimpreso en LACHENMANN, H. Musik als existentielle Lachenmann menciona como ejemplo de una textura el final
Erfahrung. Schriften 1966-1995 (J. Häusler org. de Sonant, de Mauricio Kagel.
Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1996), p. 1-20. 30
Ibíd. Lachenmann menciona como ejemplo de estructura la
28
Ibíd., p. 28. pieza completa Structure Ia para dos pianos de Pierre Boulez.
110 SIMPEMUS3
37
La doble génesis descubre asimismo una constante
epistemológica. En ambos casos el concepto resulta de una
inadecuación de las categorías existentes para dar cuenta
de una nueva concepción de la simultaneidad y los
materiales musicales. Incluso el caso aislado de Gottfried
Weber, considerado en la nota 20, se ajusta a esta
constante.
38
Cf. la crítica de esta presuposición en FICKER, R. Primäre
Klangformen. Jahrbuch der Musikbibliothek Peters für
1929, v. 36, 1930, p. 21-34.
39
CZERNY, Carl. School of Practical Composition. Trad. de J.
Bishop. (Londres: R. Cooks, c1848) 3 Vols. op. 600. Cf. la
reseña del parágrafo “Of Unusual Combinations of
Different Instruments” en TODD, R. Orchestral texture and 1986), p. 191-226; y RATNER, L. New Sounds. Romantic Music.
the art of orchestration. The orchestra: Origins and Sound and Syntax (New York: Schirmer, 1992), p. 1-129.
transformations (Joan Peyser, org. New York: Scribner,
112 SIMPEMUS3
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18; v. 2, n. 4, 1923, p. 293-312.
LACHENMANN, H. Klangtypen der neuen Musik. Zeitschrift für Musiktheorie v. 1, n. 1, 1970, p. 21-30.
LIGETI, G. Wandlungen der musikalischen Form. Die Reihe v. 7, 1960, p. 5-17.
PARRY, C. H. Texture. In: Style in musical art. Londres: Macmillan, 1911, p. 173-206.
Forma musical e referencialidade: uma análise comparativa entre
Mortuos Plango, Vivos Voco de Jonathan Harvey e
Points de Fuite de Francis Dhomont
Arthur Rinaldi e Edson Zampronha
Universidade Estadual Paulista
Resumo
Neste artigo apresentamos os resultados de uma análise comparativa feita entre as obras eletroacústicas
Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan Harvey, e Points de Fuite, de Francis Dhomont. Primeiro
comentamos cada obra individualmente, e em seguida comparamos os resultados obtidos. As características
mais relevantes encontradas são: ambas apresentam uma íntima relação entre a referencialidade das fontes
sonoras e forma musical; ambas empregam uma construção formal similar próxima às construções
tradicionais, e ambas usam sons específicos com o objetivo de articulação de seus segmentos. Conclui-se
realizando breves considerações sobre o uso da relação íntima entre referencialidade e forma musical na
música contemporânea recente.
Palavras-Chave: Forma – Referencialidade – Análise – Música Eletroacústica
Referências
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Uma aproximação matemática para variações de agógica em frases:
Furtwängler e os scherzos de Beethoven
Ricieri Carlini Zorzal
Universidade Federal da Bahia
Resumo
Neste artigo é proposta uma aproximação polinomial para a variação agógica que ocorre em frases
selecionadas nos scherzos de Beethoven, na interpretação de Furtwängler. A metodologia está fundamentada
na proposta de Mazzola e Beran (1998) e emprega duas ferramentas computacionais, o Sound Forge 8.0 e o
Excel 2003. Concluímos que a flutuação agógica apresentou um comportamento polinomial de pelo menos
quarta ordem e que a interpretação de cada frase guarda suas particularidades em seus inícios e fins.
Figura 2
Figura 4
Ajustes cujo R2 ficaram abaixo de 0,7, que
é o valor mínimo aceitável, demonstram fraca
relação polinomial entre os andamentos ao longo A tabela mostra o valor de R2 de cada ajuste
do tempo. A segunda frase da Sinfonia 2, no polinomial com grau igual a 6. Entre parênteses
gráfico abaixo, foi o pior ajuste. estão os valores para ajustes de quarta ordem.
Percebemos que a variação de R2 não é constante,
alguns ajustes perdem muito com a redução da
ordem polinomial, outros nem tanto.
Referências
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Controlling Creative Processes in Music. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998, p. 37-67.
Dahlhaus e a análise de segunda ordem
Antenor Ferreira Corrêa
Universidade de São Paulo
Resumo
Neste artigo tive um duplo objetivo: apresentar a análise de segunda ordem, abordagem esboçada pelo
musicólogo alemão Carl Dahlhaus e explanar a respeito dessa proposição analítica, buscando seu
entendimento e avaliando suas possibilidades de aplicação. Justifica-se essa empreitada pela
disponibilização de conhecimento na disciplina de análise musical, área de estudo indispensável à formação
do músico.
Palavras-chave: Análise musical. Teoria da Música. Harmonia. Estética. Dahlhaus.
4
Sobre uma conceituação mais detida sobre esses
procedimentos ver Estruturações harmônicas pós-tonais
(2006), capítulo 5.
simpósio de pesquisa em música 2006 125
quanto é nos métodos de camadas ou de complementaridade, foi relegado em favor de
estratificação desenvolvidos por Stravinsky. relações acórdicas complementares subjetivas. “O
(DAHLHAUS, 1990, p. 69).
cromatismo dinâmico-processivo é substituído por
uma complementaridade estática-estrutural tais
Enquanto desenvolvimento continuado, o como as existentes entre as notas ou complexo de
discurso harmônico consistiria de um conjunto de notas de uma série dodecafônica:
etapas ordenadas com um objetivo a ser complementaridade cuja característica estética
atingido: a consecução tonal. Além disso, essencial é poder, em princípio, ser revertida no
compreendido historicamente, isto é, no tempo” (p. 70). A possibilidade desta reversão no
conjunto seqüencial do fluxo do pensamento tempo deve-se ao fato de que não há uma
musical, a harmonia deixa transparecer a direcionalidade implícita nos agregados “atonais”
concomitância entre o pensamento de época e as como há no discurso tonal.
modificações ocorridas no decurso temporal. A
É possível notar que Dahlhaus não
passagem de um estágio para outro (por
acreditava no retorno da forma processual:
exemplo, no acolhimento de dissonâncias ou uso
funcional renovado) é entendida linearmente e
não de forma abrupta. Esse percurso teve no Uma posterior objeção à tentativa de reviver uma
cromatismo seu principal elemento dinâmico, forma dinâmica da harmonia é o simples fato de
que a atmosfera de a-historicidade [...] é unida à
expressivo, integrador e impulsionador. Essa
tendência de considerar todas as coisas como
condição processual, no entanto, foi substituída utilizáveis e de jovialmente empilhar camada
pela noção mais perene e atemporal de um sobre camada de um todo heterogêneo
conjunto de elementos interconectados por constituído de diferentes fragmentos estilísticos e
atributos quaisquer, um sistema de interações5. citações. O resultado virtualmente inevitável
disto tudo é um efeito que em Stravinsky foi uma
A dinâmica implícita na resolução de tensões, técnica precisamente calculada que claramente
pelos movimentos de sensível, é suprimida nos estabeleceu suposições estéticas designadas para
sistemas não hierárquicos como o serial, em que neutralizar o elemento processual, mas que no
as doze notas da gama temperada são similares presente geralmente parece não ser mais que um
cego agarramento a uma lata de biscoitos do
no que se refere a primazias funcionais. No
passado (p. 70).
discurso pós-tonal, de um modo geral, a
propensão dinâmica dos cromatismos é nivelada, E ao mesmo tempo admitia a possibilidade
anulando a expectativa gerada pela resolução dos novos complexos acórdicos serem
das tensões cromáticas. Dahlhaus aponta que isto compreendidos intelectual e perceptualmente:
é válido tanto para Stravinsky quanto para
Schoenberg, pois
Certamente, se desejamos fazer justiça estética
ao complexo de técnicas de superposição na
Enquanto a tensão interna do que nós Sagração da Primavera [...], devemos não falhar
chamamos de harmonia estática stravinskyana ao apreciar que a neutralização da funcionalidade
é devido a esse elemento dinâmico suprimido, tonal dos acordes não deve ser entendida como
a harmonia de Schoenberg (como a determinadas (um fato auto-contido que nós
sistematização da técnica dodecafônica pode temos que aceitar pelo que ele é), mas como um
ser interpretada) é conseqüência [...] do procedimento que pode ser compreendido.
cromatismo do Tristão, e similarmente Quando uma tônica é mutilada funcionalmente
representa um fenômeno de neutralização. A por ter uma dominante colocada sobre ela, o
conexão entre acordes, em que um segundo ouvinte deve tornar-se consciente que isto é o
acorde apresenta as notas da escala cromática resultado de um conflito e não apenas um fato
ausentes no primeiro, está baseada sobre o mudo. (p. 69).
princípio da complementaridade, a adição de
partes para compor um todo, e também, sobre
o movimento de sensível nas vozes, ou seja, Essa articulação via complementaridade é
sobre um elemento expressivo e dinâmico demonstrada no exemplo a seguir (Ex. 3).
(DAHLHAUS, 1990, p. 69).
5
O acorde-centro de Scriabin é um exemplo deste tipo de
pensamento harmônico.
126 SIMPEMUS3
Referências
CORRÊA, Antenor Ferreira. Estruturações harmônicas pós-tonais. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.
DAHLHAUS, Carl. Analysis and value judgment. Trad. Siegmund Levarie. New York: Pendragon Press, 1983.
_____ Che cos’è la musica?. Trad. Angelo Bozzo. Bologna: Sociedade Editrice IL Mulino, 1988.
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_____ Fundamentos de la historia de la música. Trad. Nélida Machain. Barcelona: Gedisa, 2003.
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ROBINSON, J. Bradford. “Carl Dahlhaus”. Grove Music Online. 2000. Disponível em: <www.grovemusic.com>
O uso do cromatismo como gerador de unidade na
mazurca op. 68 de Frédéric Chopin
Mauricy Martin e Tarcísio Gomes Filho
Universidade Estadual de Campinas
Resumo
O presente artigo realiza um recorte enfocado na análise da Mazurca op.68 n.3 em Fá maior de Frédéric
Chopin (1810 – 1849), considerada por historiadores como a sua última obra. Tem como objetivo demonstrar
como o compositor, utilizando o cromatismo, trabalha a unidade estrutural da peça. Este trabalho é parte de
outro maior e fruto da parceria, em desenvolvimento, entre professor e orientando no curso de Doutorado
em Música da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, na linha de Práticas Interpretativas, na qual
outras peças do repertório pianístico e tipos de análise são pesquisados. Trabalhos de Arnold Schoenberg e
Ralph Turek subsidiam os comentários analíticos, e estes apontam para questões referentes à estrutura
formal, harmonia e caracterização das linhas melódicas. A conclusão destaca informações obtidas pela
análise e que contribuem para um melhor entendimento da obra.
Palavras-chaves: Chopin, Mazurca, Análise, Harmonia.
Harmonia
Seção A
A Seção A inicia com uma ambigüidade
tonal, uma vez que a nota dó, na qual a melodia
é introduzida, pode ser ouvida como tônica ou
como dominante. Além disso, a entrada dos
acordes no segundo tempo ainda não produz uma
sensação de estabilidade harmônica, uma vez o
compositor utiliza o acorde na primeira inversão.
Exemplo 1. Compassos 1 e 2
2
Termo utilizado por Ralph Turek “Chord Mutation” para as
alterações cromáticas que vão ocorrendo, simultaneamente,
em um determinado acorde durante uma passagem musical
(TUREK, 1996, p.242).
130 SIMPEMUS3
Exemplo 4. Compassos 23 - 31
Exemplo 3. Compassos 15-20
Linhas melódicas
Na tabela 1, apresentada no inicio do Na Seção A, ao analisar as notas dos primeiros
trabalho, verifica-se que a Seção B está, segundo tempos de cada compasso na linha do soprano e os
Schoenberg,3 em um centro tonal indireto. acordes da linha do baixo, é possível visualizar uma
Utilizando o “Quadro de Regiões em Menor,” do passagem cromática descendente. Com isso Chopin
mesmo autor, conclui-se que se trata da região reforça a ambigüidade tonal estabelecida no
da mediante maior aumentada, como mostra a primeiro compasso.
figura a seguir4.
Exemplo 5. Compassos 1 – 7
3
SCHOENBERG, Arnold. Funções estruturais da harmonia. São
Paulo: Via Lettera, 2004.
4
No quadro de Schoenberg entende-se por: m = Mediante
menor, sm = Submediante menor, Sub T= Subtônica, M = Exemplo 6. Compassos 9-14
Mediante maior, SM = Submediante maior, v = Quinto
menor, t = Tônica menor, sd = Subdominante menor, D =
Dominante, T=Tônica, SD = Subdominante, m# = Mediante A Seção B apresenta um desenho cromático
menor aumentada, sm# = Submediante menor aumentada, ascendente e apesar do material utilizado se
M# = Mediante maior aumentada, SM# = Submediante
maior aumentada e NP = Napolitana (SCHOENBERG, 2004, configurar em Lá Maior, distante da tonalidade
p.38 - 49). original, possui a mesma extensão da Seção A.
simpósio de pesquisa em música 2006 131
dominante. Neste momento, com um “da capo”
indicado há um retorno à seção A.
É interessante também observar o contorno
melódico predominante nas seções:
A – conjunto
A’ - disjunto
B – conjunto
C – disjunto
A – conjunto
A – conjunto
Exemplo 7. Compassos 15-20 A’- disjunto
Referências
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TUREK, Ralph. The elements of music: concepts and applications. New York: McGraw-Hill, 1996.
Poucas Linhas de Ana Cristina de Silvio Ferraz: a performance da clarineta e
suas transformações em contexto eletroacústico
Flávio Ferreira da Silva, Maurício Alves Loureiro, Sérgio Freire
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
As transformações musicais ocorridas durante o século XX exerceram grande influência sobre a Performance
Musical. O surgimento da gravação musical transformou a performance principalmente pelas alterações
provocadas na escuta e nos padrões de referência. A música eletroacústica mista trouxe importantes
novidades como a interação com sistemas eletrônicos e alto-falantes, necessidade da manipulação de
interfaces pelas quais o intérprete controla a eletrônica e a exigência da compreensão da parte eletrônica
não notada. A peça Poucas Linhas de Ana Cristina, para clarineta e eletrônica, de Silvio Ferraz pode ser
tocada com e sem eletrônica e foi utilizada neste trabalho como objeto para observação das diferenças que
o intérprete encontra ao tocar em contexto eletroacústico. Através da análise da eletrônica e de sua relação
com a clarineta podemos observar e apontar elementos como articulação, dinâmica e duração de notas
longas que devem receber tratamentos distintos em ambas as situações.
primeiro programa, realiza o processamento sem transposição (window size), o que gera uma espécie
defasagem entre o som direto e o processado de eco. Como a clarineta tem notas mais longas do
(delay = 0) e utiliza os três saltadores com ryth1, que no início, ao invés dos blocos sonoros iniciais,
formando blocos sonoros a partir da transposição podemos ouvir pequenas melodias criadas pela
do som da clarineta e gerando uma massa sonora eletrônica que fazem contraponto com a clarineta.
disforme com grande densidade textural. Em Comparando-se estes dois momentos, percebe-se
seguida, a clarineta retorna à repetição da terça uma diferenciação de graus de importância da
inicial, que leva a um segundo momento da eletrônica no resultado sonoro final. Se
peça, menos movido e que passa a explorar o inicialmente a massa textural da eletrônica deve
registro agudo da clarineta. Neste trecho, a permanecer em segundo plano, permitindo a
parte da clarineta apresenta uma polifonia clareza do movimento interno criado pela
virtual em dois planos, um construído a partir da clarineta, no segundo momento, a eletrônica forma
terça menor inicial em três oitavas diferentes e o melodias que dialogam com a parte instrumental,
outro a partir de um cromatismo que vai do Fá passando para um plano de igualdade com a
sustenido 6 ao Lá bemol 6 no registro agudíssimo, clarineta. Apresenta-se aqui uma diferenciação
tudo em uma dinâmica que varia de pp a mf, significativa entre as versões com e sem eletrônica,
como pode ser visto na Figura 3. Aqui a devido ao maior cuidado que deve ser observado
eletrônica já executa o seu segundo programa, com o equilíbrio de intensidade entre as notas
cuja única alteração em relação ao primeiro é agudas acentuadas da clarineta e as melodias da
um grande aumento no tamanho da janela de eletrônica.
Figura 2. Início da peça com repetição da terça menor, desembocando nas escalas acentuadas.
Em seguida, passa a ser explorada uma (ms) e os saltadores têm velocidades e taxas de
sonoridade da clarineta que aparece pela transposição diferentes, o que faz com que eles
primeira vez no trecho da Figura 2: um som sejam mais independentes e gerem melodias
multifônico onde o instrumentista canta uma diferentes das do programa 2. Neste caso, o
nota ao mesmo tempo em que toca outra. Aí, intérprete deve atentar-se para que, durante os
inicialmente o clarinetista toca estes multifônicos longos, as melodias da eletrônica
multifônicos longos em dinâmica ppp e, em apareçam com clareza em plano principal, e que,
seguida, uma melodia com bastante exploração durante a melodia microtonal, ela passe para
microtonal, que é uma citação da peça Ninphea segundo plano como uma massa textural aguda que
para oboé solo do mesmo compositor. acompanha a melodia. O trecho das escalas
Simultaneamente, a eletrônica executa o seu acentuadas da Figura 2 retorna, mas agora com
terceiro programa que apresenta diferenças em algumas modificações influenciadas por elementos
relação aos dois anteriores: o som processado que apareceram no decorrer do percurso musical,
aparece com um atraso de 360 milissegundos tais como as variações microtonais (Figura 4).
simpósio de pesquisa em música 2006 137
Identifica-se aqui uma intenção clara do entre as duas possibilidades de performance. No
compositor de retornar a momentos que, caso de performance com eletrônica, as notas da
baseado na filosofia de Gilles Deleuze, ele clarineta devem ter uma duração tão longo quanto
denomina de território. (FERRAZ 1998a; 1998b; o necessário para uma boa realização do glissando,
2005). Para Silvio Ferraz, o importante em uma para que ele seja percebido com clareza, mas
composição musical é a criação destes podem ser mais curtas quando tocadas sem a
territórios, que trazem diferentes tipos de eletrônica. Após este glissando, uma melodia ainda
sensação. O território é um centro estável em estática e cíclica é tocada pela clarineta enquanto
torno do qual a peça gira e que deve ser a eletrônica funciona realizando pequenas
retorcido e deformado, deve conduzir a outras desafinações ainda em caráter de glissando,
sensações e tornar-se outro território, e depois passando novamente para segundo plano.
retornar como o território inicial, mas
deformado. A similaridade destas escalas
(Figuras 2 e 4) e de mais outra que será vista
mais adiante sugerem a formação de um
território, sendo os demais elementos
deformações e incrustações que interferem na
sua estabilidade.
Figura 5. Terça menor inicial construída a partir de um
espelho rítmico que pode ser observado comparando a
e b.
Referências
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v. 10, n. 3, 1962.
Transformações e funções motívicas: uma análise do enérgico – 1º movimento
da Sonata Breve para piano de Oscar Lorenzo Fernandez
Maria Bernardete Castelan Póvoas
Universidade do Estado de Santa Catarina
Resumo
Este artigo faz parte de uma pesquisa maior que abrange a análise global da Sonata Breve para piano (1947)
de Oscar Lorenzo Fernandez. A escolha desta obra justifica-se em dois aspectos: a relevância do material
nela contido para o aprofundamento de questões estruturais e musicais, e a carência de estudos analíticos
sobre as composições do compositor supracitado. O objetivo deste estudo foi levantar aspectos analíticos
sobre a utilização do motivo em uma obra musical e mostrar a estrutura do primeiro movimento da sonata, o
Enérgico, visando sua realização instrumental. A estrutura do Enérgico foi determinada a partir do exame de
um motivo básico. Foram destacados e analisados elementos derivados e recapitulados, e discutidas relações
os contextos: melódico, rítmico e harmônico decorrentes de modificações e transformações do motivo. Como
referencial teórico, optou-se por realizar a análise a partir das teorias variação progressiva e transformação
temática de Arnold Schoenberg e Rudolf Reti, respectivamente. A análise revelou que o motivo básico é
gerador do desenvolvimento do Enérgico e fator de unidade estrutural. Os resultados da análise mostraram
que a compreensão da estrutura de uma composição é essencial para a sua interpretação e realização
músico-intrumental. Com este trabalho pretende-se contribuir para a produção crítica e analítica sobre a
música brasileira.
interna que compreende a formação melódico- Chamamos motivo algum elemento musical seja
rítmica mais o esquema harmônico. “Há, ele uma frase melódica ou fragmento ou até
contudo, [...] outras qualidades essenciais mesmo apenas uma característica rítmica ou
dinâmica que, por ser constantemente repetida e
necessárias para moldar agrupamentos musicais
variada através de um trabalho ou secção, assume
dentro do todo arquitetônico, [...] que nada mais
um papel no ‘design’ composicional (RETI, 1951,
são do que as relações temáticas e motívicas” p.11).
(RETI, 1951, p.109).
Para Frisch (1984, p.22) Reti provou,
O design diz respeito ao esboço estrutural,
através da análise de inúmeras obras, que a
aos pontos que interligam os conteúdos. Para o
grande maioria das composições musicais
autor, “na maioria dos trabalhos da literatura
significativas “de Bach até Debussy evoluem
musical os diferentes movimentos de uma
organicamente de um simples motivo [...] e que
composição estão conectados pela unidade
a “Transformação Temática” de Reti equivale à
temática” (RETI, 1951, p.11) que, por sua vez, é
“Variação Progressiva” de Schoenberg. Segundo
operacionalizada pela formação de temas idênticos
Epstein (1980, p. 208), “Schoenberg manifesta
e não somente por uma afinidade de modo. E esta
sua convicção de que a unidade composicional
unidade estabelece a homogeneidade entre os
surge dos relacionamentos entre as propriedades
temas de um movimento, entre os movimentos de
das formas motívicas”. Dunsby e Whittal (1988)
uma peça de estrutura maior ou entre peças de um
tratam destas teorias como uma evolução no
opus ou série.
pensamento reducionista da análise de relação
entre tema e estrutura. Sendo o motivo básico uma célula condutora
e, portanto, fator de projeção do discurso musical
A análise processou-se através de estudos
preponderante em uma obra musical, torna-se
realizados no fac-símile da Sonata Breve. Foram
indispensável considerar-se seus componentes
destacadas modificações, transformações e
melódicos, rítmicos e harmônicos nos planos
funções exercidas pelo motivo no
horizontal, vertical e direcional. Um modelo básico
desenvolvimento do Enérgico nos contextos:
cumpre a função de fator de identidade entre
melódico, rítmico e harmônico, mostradas
estruturas musicais através da sua recorrência
relações existentes entre o motivo básico e as
exata, modificada ou transformada. A música, na
linhas temáticas e levantados aspectos
sua condição primordial, consiste das mais
referentes à articulação, ao timbre e à textura.
primitivas repetições, e o elemento que funciona
como fator unificador [...] o motivo, pode
O motivo manifestar sua presença somente através da
O termo motivo tem sua origem na palavra repetição” (SCHOENBERG, 1975, p.265). Sendo a
latina motivu, “que move [...] pode fazer repetição um meio e não somente um fim, as
mover”.(FERREIRA, 1987, p. 949). Schoenberg formas mais artísticas obscurecem este fato por
(1980, p.15) definiu motivo como sendo “uma uma variedade de caminhos. [...] A repetição é o
unidade que contém uma ou mais características estágio inicial da técnica formal da música, a
de intervalo e ritmo. [...] Sua prática consiste de variação e o desenvolvimento seu mais alto estágio
repetições freqüentes, algumas delas sem de desenvolvimento” (op. cit. p.265). Tem-se,
mudanças e, a maioria delas variadas”, desta forma, uma compreensão do que Schoenberg
responsáveis pela produção de novas formas do trata por variação progressiva.
motivo que são os “materiais para continuidades, Sobre a transformação temática, Reti (1951,
contrastes, novos segmentos, novos temas ou p. 67) esclareceu que as possibilidades são
novas secções dentro de uma peça”. Schoenberg inumeráveis e que o compositor, ao utilizar-se da
(1983, p.9) ampliou este enunciado dizendo que técnica temática, não só “inverte, aumenta, ou
“as características do motivo são intervalos e simplesmente varia os contornos, mas transforma-
ritmos, combinados para produzir um [...] os no sentido pleno da palavra”. Ele determinou
modelo ou contorno que implica usualmente em como categorias de transformação a inversão, a
harmonia inerente”. interversão e a reversão: inversão, movimento
Para a compreensão da função do motivo contrário e retrógrado. A interversão consiste na
como força direcional da linha estética de uma troca entre sons de um contorno motívico ou
composição musical, aplica-se a definição de temático e resulta na produção de novas
Reti: configurações.
A recorrência de um motivo ou de suas
características assegura a ordem e a coerência
simpósio de pesquisa em música 2006 141
formal e quando adotada como princípio de
construção musical “deverá produzir inter-
relação, coerência, lógica, compreensão e
fluência [...]. Tudo depende do seu tratamento e
desenvolvimento” (SCHOENBERG, 1983, p. 9).
Tais condições fazem do motivo um agente do
inter-relacionamento entre contornos. Para Reti
(1951, p.4), demonstrar a unidade entre
diferentes movimentos ou partes deles, suas
inter-relações mais profundas, além daquelas
relacionadas às afinidades de estilo, modo ou
tonalidade é questão primordial. Da força
Figura 2. 1º Segmento, fragmentos x e y (FERNANDEZ,
gravitacional exercida pelo motivo depende o 1968, p. 1).
equilíbrio entre os dois sentidos direcionais que
formam o design de uma composição, o
horizontal e o vertical, através dos quais é O primeiro segmento, funciona como
gerado o material sonoro. proposta motívico-temática e detém as relações
intervalares que servem de base ao segundo
segmento e demais procedimentos melódicos
O Enérgico: o motivo básico e suas subseqüentes, presentes no contorno horizontal do
recorrências Enérgico.
Primeiro contorno temático
O Enérgico inicia com a apresentação de
um primeiro contorno temático formado por dois
segmentos. O segmento inicial, A, contém dois
fragmentos (Figura 2). O primeiro fragmento (x)
é apresentado em uníssono e corresponde a um
motivo inicial, modelo básico (Figura 1) que, no Figura 3a. Relações intervalares, Segmento temático
decorrer do discurso musical do Enérgico, A, fragmento x.
aparece no estado original, modificado e
transformado melódica, rítmica e
harmonicamente.
O acorde de nona e outras formações primeira modificação rítmica do motivo (Figura 6).
verticais decorrem da agregação de uma ou mais A segunda parte da exposição contém o segundo
notas, ou são resultantes da coincidência vertical tema (compassos [15]-[22], Figura 16) e a transição
do movimento dos planos horizontais. (compassos [23]-[29], Figura 24) para o
desenvolvimento. A secção do desenvolvimento tem
duas partes: 1a- compassos [31]-[42] e 2a-
Enérgico: macro estrutura
compassos [43]-[59] com uma extensão cadencial
O Enérgico segue os princípios formais do (compassos [38]-[42], Figura 19) entre elas.
allegro de sonata, apresentando secções de
A primeira parte da recapitulação (compassos
exposição (compassos [1]-[23]), desenvolvimento
[59]-[73], Figura 19) apresenta material do segundo
(compassos [23]-[59]), recapitulação (compassos
tema (m.d.) apoiado em repetições do motivo
[59]-[94]) e coda (compasso [95]). Sua textura
básico, estas intercaladas por sons repetidos e
geral é densa, definida pelo tratamento
seqüências (compassos [60]-[67]) de acordes de
melódico-harmônico e polifônico, com livre
sétima sem terça (Figuras 13.c, 20). A segunda
utilização de contraponto. No decorrer das três
parte (ver Figura 20), caracterizada pela permuta
secções há constantes mudanças de compassos.
entre padrões motívicos, tem início no ponto de
Na exposição, dos compassos [1] ao [14]),
elisão com o término da primeira parte (compasso
observa-se a alternância das fórmulas 6/♪ e 9/♪.
[73]). Há ênfase no motivo básico ritmicamente
Do compasso [15] até o [29] há alteração da
diminuído (m.e.), aumentado (d.m.) e modificado
métrica e do andamento, modificação esta
(m.d.). A terceira parte (compassos [80]-[94])
preparada pela indicação do rallentando no
apresenta uma maior concentração de trabalho
compasso [11] e definida pela citação "tranqüilo"
sobre material do primeiro contorno temático. As
(compasso [15]), Figura 16, e na passagem de
interrupções do movimento horizontal, provocadas
conexão ao desenvolvimento (compasso [30]). A
pelas pausas, têm significativa força rítmica e
métrica de subdivisão ternária é retomada e
imprimem um caráter definitivamente enérgico e
mantida até o compasso [58], onde inicia a
brilhante. Estas características são reiteradas pelo
recapitulação. Esta nova secção retorna à
jogo sonoro, resultado da exploração dos timbres
métrica simples, com base nas fórmulas 2/4 e
grave-médio e médio agudo. A recapitulação
3/4 que se alternam. A coda final não apresenta
termina com uma extensão cadencial de três
indicação métrica nem barra de compasso, mas
compassos (parte na Figura 11) que prepara a coda
detém subdivisão simples. Na figura seguinte
final em termos de dinâmica (ff -pp) e de
pode ser visto um esquema geral do Enérgico.
andamento. Esta coda é caracterizada por
contrastes de ritmo, dinâmica, andamento e
caráter, com apresentação do segundo contorno
temático no registro médio no registro grave do
piano e o modelo básico nos registros médio-agudo.
A dinâmica indicada para o contorno temático é p-
mf-p e para as chamadas do motivo básico é fff
com diminuição gradativa até o ppp. A expansão
rítmica do motivo, nas duas últimas apresentações
auxilia o decrescendo final.
Conclusões
O Enérgico foi construído segundo o princípio
composicional da recorrência motívica. Este
processo construcional está determinado pela
Figura 24. Esquema geral do Enérgico. manipulação do motivo básico, apresentado no
início deste primeiro movimento da Sonata Breve.
A exposição (compassos [1]-[30]) tem seu O discurso musical adquire impulso no
primeiro contorno temático motívico direcionamento melódico ascendente e suspensivo
apresentado nos quatro primeiros compassos e do motivo básico: lá, mi b, ré, projetado a partir da
prioriza os sons lá -ré. Os compassos [10]-[12] sétima maior, esta adotada como cor tímbrica do
completam a primeira parte da exposição. Os contorno melódico-harmônico. O desenvolvimento
compassos seguintes, dois, fazem a conexão da composição é decorrente da reprodução dos
entre as partes da exposição e caracterizam a materiais melódicos, rítmicos e harmônicos,
simpósio de pesquisa em música 2006 149
inerentes ao motivo, através de suas recorrência aos parâmetros tradicionais de movimento e de
no estado original, modificado e transformado, resolução harmônica e politonal, a exemplo da
aos quais se agregam os efeitos promovidos por Figura 19. O delineamento melódico está
procedimentos como expansão e contração construído em sólidas bases tonais, mas apoiado em
melódica e rítmica, polirritmias e acentuações. A um contorno harmônico livre. A análise mostrou
esta metamorfose motívica aliam-se as que a ocorrência de acordes de nona e demais
diferentes funções que o modelo básico assume agregados está invariavelmente submetida ao
como responsável por aspectos de ordem acorde de sétima maior com terceira maior ou
estética: variedade textural, tímbrica e menor.
articulações que influem diretamente na A compreensão do texto musical através do
expressividade. O motivo básico promove a processo analítico foi essencial na decodificação do
evolução do movimento, imprimindo suas texto musical e com reflexos no nível do
características na formação estrutural nos desempenho instrumental, tanto no aspecto técnico
diferentes níveis do espaço sonoro. quanto no musical. São necessários mais estudos
O Enérgico pode ser situado no limiar entre para o aprofundamento desta análise.
o tonal porque as funções não estão totalmente
descaracterizadas, atonal porque não obedece
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A preparação do ambiente da livre improvisação: antecedentes históricos, as
categorias do objeto sonoro e a escuta reduzida
Rogério Luiz Moraes Costa
Universidade de São Paulo
Resumo
Este texto busca explicitar os pressupostos necessários para a realização de uma proposta de livre
improvisação musical. O autor baseia suas reflexões em uma prática experimental onde os conceitos aqui
apresentados foram vivenciados, analisados e testados. Para construir sua argumentação o autor começa
explicitando os antecedentes históricos que tornam possível a realização de performances de livre
improvisação e termina assinalando o papel fundamental exercido por uma nova atitude de escuta baseada
nas categorias de objeto sonoro e escuta reduzida - criadas por Pierre Schaeffer no âmbito de suas
pesquisas sobre a música concreta - para que, num ambiente aparentemente desprovido de sistemas de
referência explícitos como é a livre improvisação, a interação entre os músicos se estabeleça.
7
"Por fato de código explícito, existem condicionamentos dos
sons musicais praticados, por exemplo, por uma
coletividade num contexto evidentemente histórico e
geográfico. Opera-se assim um afastamento deliberado do
evento sonoro (sem deixar de ouvi-lo) e das circunstâncias
que ele revela em relação à sua emissão, para apegar-se à
mensagem, ao significado, aos 'valores' de que o som é
portador." (SCHAEFFER, 1993, p. 106).
156 SIMPEMUS3
Referências
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Emoção: a essência da expressividade na performance musical
Márcia Kazue Kodama Higuchi
Universidade de São Paulo
Resumo
Esta pesquisa faz um paralelo entre elementos observados no meio musical, assim como dados coletados
em musicologia com um levantamento de informações a respeito da expressividade, na psicologia
cognitiva, e a neuropsicologia, visando o entendimento do papel da emoção no processo de transmissão de
idéias e/ou sentimentos através da interpretação musical.
O levantamento de informações interdisciplinares referentes à expressão das emoções permitiu elaborar
uma teoria no qual possibilita entender de que forma a emoção do interprete no decorrer da performance
musical, pode influenciar o processo da transmissão expressiva musical.
Palavras-chave: Música, expressividade, emoção.
com musicalidade inata, ele sentia uma grande muitas áreas cerebrais supérfluas, facilitando a
felicidade. distração.
Portanto, ao que parece, Chopin não exigia Na verdade, pensar demais no que está
de seus alunos uma interpretação definida. Mas acontecendo causa interrupção do fluxo – até a
esperava deles uma interpretação simples e idéia ‘Como estou fazendo isso maravilho-
samente’ pode interromper o fluxo. [...] O sinal
natural de acordo com suas inspirações do
característico do fluxo é uma sensação de alegria
momento, ou seja, sempre cambiantes de acordo
espontânea, e mesmo de êxtase. Por ser tão bom,
com seu estado de espírito. Pois ao exigir é intrinsecamente compensador... As pessoas em
simplicidade, espontaneidade e sinceridade para fluxo exibem um controle absoluto sobre o que
conseguir a expressividade, provavelmente estão fazendo, as reações perfeitamente
Chopin acreditava que a expressividade estaria sincronizadas com as cambiantes exigências da
vinculada à espontaneidade. tarefa. E, embora atuem no ponto mais alto
quando em fluxo, não se preocupam com seu
Atualmente, alguns dados conhecidos pela
desempenho, com a questão de sucesso ou
psicologia indicam a hipótese da real existência
fracasso - o que as motiva é o puro prazer do ato
desse vínculo. Durante duas décadas, o psicólogo em si. (GOLEMAN, 1995, p.104).
Mihaly Csikszentmihalyi coletou histórias de
máximo desempenho, no qual centenas de Esses dados coletados por Csikszentmihaly
profissionais de várias áreas, inclusive a musical, coincidem com algumas experiências vivenciadas
descreveram momentos em que se superavam por mim. Muitas vezes ao tocar piano, senti algo
em uma determinada atividade. que pode ser descrito como êxtase, pois uma
emoção intensa parecia envolver-me totalmente.
Nós entramos num tal nível de êxtase no qual As emoções sentidas foram desde uma grande
parece que não existimos. Tive essa sensação alegria até uma tristeza profunda, mas mesmo
várias vezes. Minha mão parece ser assim, ao tocar, tinha a sensação que uma beleza e
independente de mim, e nada tenho a ver com
um prazer imensos seqüestravam toda minha
o que se passa. Simplesmente fico ali
mente. As mãos pareciam não ser comandadas por
observando, em estado de respeito e
encantamento. E a coisa simplesmente flui por mim, adquirindo capacidade própria para tocarem
si mesma. (Mihaly Csikszentmihalyi apud sozinhas, realizando fraseados, nuanças de
GOLEMAN,1995, p.102). dinâmica e rubatos inusitados. Os dedos
conseguiam tirar timbres lindos, alguns dos quais
Essa descrição retrata o estado de um nunca tinha sequer ouvido, e todas essas mudanças
compositor nos momentos que ele julga que sua soavam naturais. E era como se cada nota
arte atinge o máximo de seu desempenho, e essa expressasse com uma profunda fidelidade, a
descrição é semelhante à de outras centenas de emoção que estava sentindo. Nesses momentos,
pessoas pesquisadas. O estado que descrevem é não tinha a menor noção de tempo ou espaço e
chamado de “fluxo” por Csikszentmihaly mesmo quando a emoção envolvida era de tristeza,
(GOLEMAN, 1995). por alguns momentos, uma grande felicidade se
Segundo Goleman (1995) quase todas as manifestava.
pessoas algumas vezes experimentam o fluxo, Quando esse fenômeno ocorria, parece que
sobretudo quando atingem o máximo do seu simultaneamente acontecia uma transmissão de
desempenho ou ao conseguirem transpor os seus sentimentos através da música. Mesmo as pessoas
limites. que, em circunstâncias normais, costumavam
No fluxo, a pessoa consegue se concentrar ignorar as execuções pianísticas, quando ouviam a
totalmente na atividade que está desenvolvendo música sendo tocada naquele estado de êxtase
e toda a emoção é dirigida e canalizada para a freqüentemente vinham comentar muito
realização daquela tarefa. Assim, ela perde emocionadas dizendo “que música bonita”.
noções de espaço e de tempo. A qualidade da Em contrapartida, quando durante a
atenção em fluxo é relaxada, mas altamente execução, ao invés do sentimento de prazer, a
concentrada. O cérebro se encontra num estado mente estava repleta de preocupações – relacio-
frio, e as tarefas são executadas com um nadas a qualquer aspecto — desde pessoal (horá-
dispêndio mínimo de energia mental, ativando rio, problema de saúde, etc), até técnico-inter-
apenas circuitos neurais sintonizados com a pretativo (dinâmica, articulação, etc) ou mesmo a
demanda do momento. Uma concentração preocupação em impressionar o ouvinte – a
forçada e contaminada de preocupações ativa interpretação soava artificial, a emoção era inibida
e a recepção do ouvinte não era comovida. Quando
simpósio de pesquisa em música 2006 159
havia um elogio, geralmente referia-se à atividade, dirigindo e canalizando toda a sua emoção
execução (técnica motora), e não mais à música para execução daquela tarefa (GOLEMAN, 1995).
em si. • A qualidade da atenção em fluxo é relaxada. As
tarefas são executadas com um mínimo dispêndio de
No começo, esses fatos eram percebidos energia mental, ativando apenas circuitos neurais
como simples coincidências. Entretanto o au- sintonizados com a demanda do momento
mento da freqüência fez com que essas mani- (GOLEMAN, 1995).
festações deixassem de ser ocasionais passassem • Portanto, se em fluxo as atividades psico-motoras e
a ser relevantes, desencadeando uma observação a emoção da pessoa estão concentradas na tarefa e
mais apurada para verificar se haveria ou não um são ativados apenas os circuitos neurais sintonizados
vínculo entre o estado de prazer e a expres- com aquela demanda, isto significa que a emoção,
sividade musical. fruto legítimo daquela expressão, estaria isenta de
fingimento, seria autêntica. Assim, toda a emoção
Por mais de sete anos, foram realizadas sentida estaria explicitamente representada por
comparações empíricas entre o estado de envol- cada gesto, toque e feição da pessoa que a estivesse
vimento emocional — manifestado por músicos, manifestando.
professores e alunos — e a qualidade expressiva • Para inibir, fingir ou exagerar uma emoção, seria
de suas execuções. necessária uma concentração forçada, o que
necessariamente interrompe o fluxo expressivo.
Com raras exceções, a capacidade expres-
Portanto seria razoável concluir que, para atingir o
siva tanto dos músicos profissionais como dos fluxo em uma performance musical, é necessário
estudantes, parece ser proporcional a seu estado que essa execução ocorra isenta de preocupação, ou
de prazer, assim como a inibição emotiva parece seja, o mais espontâneo possível.
ser proporcional ao estado de preocupação
enfrentado tanto pelos alunos, como dos Assim, podemos deduzir que Chopin sabia o
professores e intérpretes. que exigir de seus alunos para que conseguissem
Os alunos, após tocarem expressivamente atingir a expressividade. Possivelmente por essa
uma peça, ao serem questionados sobre quais razão ele tenha repreendido seu aluno por um
seriam os pensamentos envolvidos durante a esforço de imitação de sua própria execução. Além
execução, respondiam que estavam compro- disso, é ainda provável que, na sua opinião, esse
metidos emocionalmente com a música em si, caminho não levaria o aluno a atingir a
sem se preocuparem com notas, tempo, expressividade desejada.
dinâmica, ou qualquer outro aspecto. E uma Ao exigir simplicidade, espontaneidade e
observação muito interessante diz respeito ao sinceridade para obter a expressividade na
fato que, nestas ocasiões, estes estudantes execução, Chopin também provavelmente acredi-
tocavam de uma forma peculiar. tava que a expressividade estivesse vinculada à
As dinâmicas nem sempre eram tocadas espontaneidade.
como foram estudadas, e uma enorme variedade
de rubatos, fraseados e nuanças timbrísticas que A expressão das emoções
não tinham sido trabalhados em aula, fluíam de
Sempre gostei do velho e sábio ditado que
uma forma simples e natural, sem qualquer
diz: “ninguém nasce sabendo”, mas hoje eu sei que
exagero, e cada nota possuía seu próprio
ele está incompleto. Na verdade está faltando a
significado dentro do contexto musical. Todas
esse provérbio, um verbo no final da frase, como
essas variações ou nuanças não pareciam
por exemplo: “Ninguém nasce sabendo falar” ou
premeditadas. Ao contrário, qualquer tentativa
“ninguém nasce sabendo tocar piano”, etc... Se o
de controle poderia interromper a
provérbio se restringir a essas três palavras, ele se
expressividade. Muitas vezes, um erro bastava
tornará incorreto pois, na realidade já nascemos
para que toda aquela magia dissipasse, e
sabendo e muito. Na verdade, apenas uma parte da
voltasse tudo ao seu estado normal, pois a
capacidade dos seres humanos é passível de um
preocupação invadia a mente dos alunos e
aprendizado. Ninguém ensina um recém-nascido a
perturbava todo o seu estado de prazer.
mamar. Quando nascemos, o nosso organismo já
Estas observações demonstraram haver conhece todas as funções vitais básicas necessárias
indícios de que a expressividade esteja, de para a nossa sobrevivência e nenhuma dessas
alguma forma, vinculada com o estado de funções é aprendida. A capacidade mental de um
prazer, pois: recém-nascido é muito restrita, assim como o seu
controle motor. Por esta razão, a natureza tratou
• O fluxo é um estado no qual a pessoa consegue de automatizar todas estas funções vitais e ainda
concentrar-se e integrar-se totalmente à sua
as tornou subconscientes. E, portanto, este é o
160 SIMPEMUS3
motivo pelo qual o nosso corpo já nasce a mesma emoção do executante. Esse é
sabendo, pois caso contrário não seria possível a possivelmente o canal pelo qual o pianista transmite
nossa sobrevivência. suas idéias e emoções ao ouvinte.
reconhecer o “tom do sentimento” (SACKS, 3. Uma interpretação condizente com esse propósito
2001). Apesar das pessoas sem afasia não terem 4. A identificação pelos ouvintes dos elementos
esse dom tão desenvolvido quanto os afásicos, expressivos presentes na música
5. A empatia por parte do ouvinte.4
esse dom é natural a todos os seres humanos.
Conclusão
Empatia: via de transmissão da emoção O poder da música em expressar senti-
Na empatia encontramos mais uma mentos é reconhecido desde a antiga Grécia,
possibilidade de explicação do processo da porém uma composição musical com elementos
transmissão de sentimento do intérprete para o expressivos não seria suficiente para que as idéias
ouvinte. Uma vez que a emoção do intérprete é e os sentimentos imbuídos na música fossem
reconhecida pelo ouvinte através do tom, a transmitidos aos ouvintes. Para possibilitar essa
empatia viabiliza naturalmente a transmissão transmissão, seria necessária uma interpretação
dos sentimentos. Segundo Darwin: condizente com esta proposta.
Apesar da questão cultural e a racionalidade
influir diretamente na expressividade, os dados
O sentimento de empatia é normalmente
interdisciplinares apresentados nesta pesquisa
explicado pelo fato de que, quando vemos ou
sabemos do sofrimento de alguém, a idéia do levam-nos a compreender que a expressão humana
sofrimento é tão fortemente evocada que nós está alicerçada nas mudanças fisiológicas
mesmos sofremos... é surpreendente como a resultantes da emoção do intérprete, e este
empatia pelo sofrimento alheio pode despertar terreno é também comum e dá origem à
as lágrimas mais facilmente do que a nossa expressividade interpretativa musical, reforçando a
própria aflição... Causa ainda mais impressão idéia defendida por vários educadores musicais de
que a empatia pela felicidade ou sorte daqueles que a emoção no momento da execução musical é
que amamos ternamente provoque em nós essa
fundamental para uma interpretação expressiva,
mesma reação...
não é mito ou folclore, mas é real.
Portanto, pelo que foi tratado até agora,
para que uma música tenha capacidade para
influenciar partes “ocultas da alma” e das
“esferas sentimentais” dos ouvintes, são
necessárias: __________________
4
Embora a questão da parte da empatia do ouvinte seja um
1. Músicas que contenham elementos expressivos assunto de extrema relevância, a sua abordagem foge ao escopo
2. A compreensão desses elementos pelos desta pesquisa, pois trata-se de um tema muito complexo,
intérpretes profundo e extenso.
Referências
CHRISTIANI, Adolf. F. The principles of expression in pianoforte playing. New York: Da Capo Press, 1974.
DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
GARDNER, Howard. Estruturas da mente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. Rio de Janeiro: Objetiva. 1995
EIGELDINGER, Jean-Jacques. Chopin pianist and teacher. Nova York: Cambridge University Press, 1986. In:
MEYER, Leonard. The Meaning of Emotion in Music. Chicago: University of Chicago Press, 1956.
SACKS, Oliver. O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
2001.
SCHERER, K. R.; EKMAN, P. Approaches to Emotion. Hilsdale: Lawrence Erlbaum, 1984.
Estrelinhas brasileiras: um paralelo entre canções folclóricas brasileiras e
internacionais
Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Resumo
O trabalho aqui apresentado começou no início da década de 1990, em um estudo minucioso sobre o paralelo
a ser estabelecido entre as peças contidas no primeiro livro para piano do Método Suzuki, que é composto
por dezenove canções folclóricas internacionais, e a adaptação de sua harmonia e tonalidades a dezenove
músicas folclóricas brasileiras.
O título Estrelinhas Brasileiras é devido ao fato de que Estrelinhas é o nome de uma peça emblemática do
repertório do Método Suzuki. É uma conhecida melodia do folclore francês, tendo inclusive sido adaptada
pelo compositor Wolfgang Amadeus Mozart com o título: “12 Variações sobre: Ah! Vous dirai-je, Maman” KV
265.
Shinichi Suzuki (1900-1999), músico japonês criador do método que leva seu nome, também fez variações
sobre o tema das Estrelinhas (em inglês Twinkle, twinkle little stars), e os diferentes ritmos são utilizados
como exercícios técnicos de grande valor no desenvolvimento pianistico.
Suzuki (1983) organizou as músicas de seu primeiro volume, com um grau progressivo de adiantamento de
forma que ao ultrapassarem as dificuldades técnicas das peças musicais, os alunos evoluam no domínio do
instrumento.
Estrelinhas Brasileiras é portanto, uma coletânea de melodias folclóricas do nosso cancioneiro, adaptadas
para o estudo de piano para principiantes, com aspectos similares aos encontrados no Volume I do Método
Suzuki, aproveitando deste, conhecimentos e habilidades adquiridas e dificuldades já vencidas nos
acompanhamentos, tonalidades e melodias.
Estreitar o contato com nossas raízes musicais, procurando divulgar as canções folclóricas brasileiras no
âmbito nacional e internacional, sobretudo nos paises onde o Método Suzuki é adotado, é ainda outra
intenção do livro Estrelinhas Brasileiras.
Algumas considerações sobre o Método Suzuki Defendia ainda o músico japonês que as
ou Método da Educação do Talento Musical habilidades naturais aparecem através da prática: o
O método da educação do talento musical, recém-nascido ouve sua mãe e familiares falando, e
Método Suzuki, foi criado no Japão pelo com um ano de idade aproximadamente, começa a
violinista e pedagogo Shinichi Suzuki (1900- repetir as primeiras palavras como “mamãe,
1999), na década de 1950 e é baseado nos papai”, até começar a formular pequenas frases.
princípios do aprendizado da língua materna. Então, por volta dos dois anos de idade, já possui
um vocabulário bastante extenso, e aos quatro anos
O termo Educação do Talento é uma
começará a ter as primeiras noções da escrita e
alusão ao fato de que a aquisição dos
leitura de sua língua materna.
conhecimentos da língua materna é acessível a
qualquer criança. O aprendizado musical segundo O mesmo processo é aplicado no Método da
o modelo do Método Suzuki, é semelhante ao do Educação do Talento Musical, ou Método Suzuki; as
aprendizado da língua materna, o que levou o crianças criadas num ambiente musical adequado,
músico a acreditar que “talento não é um acaso poderão adquirir habilidade musical e chegarão a
do nascimento” (SUZUKI, 1983, p. 9), pois trata- dominar seu instrumento, com a mesma facilidade
se de educar e lapidar o talento natural que cada com que aprendem a sua língua materna.
ser humano traz dentro de si. As crianças que iniciam cedo o estudo de um
Suzuki, (1983), costumava dizer “no Japão instrumento pelo Método Suzuki, têm encontrado
todas as crianças falam japonês!” (p.11), idioma rápido domínio do aprendizado, pois sua didática é
complexo, como qualquer outro, mas tão fácil facilitadora da aquisição da prática instrumental.
para as crianças japonesas. Ele observou que Os recursos indicados por essa metodologia
todas as crianças aprendem a falar a língua incluem ouvir e praticar o repertório,
materna, por mais difícil que seja; falam e desenvolvendo em primeiro lugar o ouvido musical,
entendem com desenvoltura e naturalidade seu a coordenação motora e habilidades técnicas no
idioma, num processo gradativo e sem grandes instrumento. “Nenhum talento é pequeno demais
dificuldades. para uma tentativa” (SUZUKI, 1993, p. 38).
164 SIMPEMUS3
Referências
FERGUSON, Marilyn. A Conspiração Aquariana. Rio de Janeiro: Record, 1995.
FONTOURA, Mara; SILVA, Roberto Lydio. Cancioneiro Folclórico Infantil: um pouco mais do que já foi dito.
Curitiba: Cancioneiro, 2001.
KOPPELMAN, Doris. Introducing Suzuki Piano. San Diego: Dichter Press, 1978.
SUZUKI, Shinichi. Educação é Amor. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1983.
SUZUKI, Shinichi. Suzuki Piano School. Tokio: Zen-on Music, 1978.
TEIXEIRA, Maria Ignês Scavone de Mello. Estrelinhas Brasileiras. Curitiba: Editora UFPR, 1997.
Significação musical: produções a partir do “fazer musical” e de histórias de
relação com a música
Patrícia Wazlawick
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
O objetivo deste texto é discutir a significação musical ao tecer uma interface interdisciplinar entre aspectos
da Musicologia, Musicoterapia e Psicologia Histórico-Cultural. Trabalhamos com aportes teóricos de Reimer,
Meyer, Martin, Stige, Ruud, Vygotski e Luria. Neste “interjogo” enfatizamos que a significação musical pode
ser tecida a partir da relação dinâmica entre os elementos propriamente musicais ao estarem atrelados à
construção de significados e sentidos, por sujeitos em relação, a partir de suas vivências e experiências nos
contextos histórico-culturais. Os significados e sentidos da música demonstram sua utilização viva e a
constante movimentação de sujeitos implicados com a atividade musical, que constituem esta atividade
enquanto ela também se faz constituinte deles.
Palavras-chave: significação musical; significados e sentidos da música; perspectiva histórico-cultural.
do autor. O verdadeiro sentido de cada palavra A posição absolutista indica que a signifi-
está determinado, em definitivo, pela cação musical encontra-se exclusivamente no
abundância dos elementos existentes na próprio trabalho de arte, nas relações estabele-
consciência referidos ao expresso pela palavra
cidas intrinsecamente na composição musical. Esta
em questão. Segundo Pauhlan, o sentido da
posição prima por um significado abstrato,
Terra está no Sistema Solar, que complementa
a idéia de Terra; o Sistema Solar tem sentido na intelectual, intramusical (MEYER, 1956). Reimer
Via Láctea e o sentido da Via Láctea..., quer (1970) complementa que no absolutismo o
dizer que nunca abarcamos o sentido completo significado da obra está nela mesma, é para ser
das palavras. A palavra é uma fonte inesgotável encontrado dentro dela.
de novos problemas, seu sentido nunca está A posição referencialista explica que a música
acabado. Em definitivo, o sentido das palavras comunica significados que se referem ao mundo
depende conjuntamente da interpretação do extra musical dos conceitos, estados e caráter
mundo de cada qual e da estrutura interna da
emocional, idéias, atitudes, eventos que a obra se
personalidade (VYGOTSKI, 1992, p. 334).
“refere”, ou seja, significados que seriam
encontrados fora de seu contexto, fora de suas
Sendo assim, o “sentido” requer e
qualidades puramente artísticas. A função da obra
pressupõe que exista “relação”. Aí vários
de arte seria ajudar a entender, fazer vivenciar
movimentos são possíveis: as palavras podem
algo que está “fora” dela.
dissociar-se de seu sentido; podem mudar de
A posição absolutista admite outras duas
sentido; os sentidos podem modificar as
posições: a formalista e a expressionista. O
palavras; o sentido pode separar-se de uma
formalismo absoluto diz que o significado da música
palavra e pode somar-se a outras; as palavras
é puramente intelectual, existindo a partir da
podem ser substituídas sem alterar-se o sentido.
percepção e da compreensão das relações musicais
Movimentos que apontam para relações entre
na composição. Os sons na música significam
sentido e palavra, no plano que interliga estes
“somente eles próprios” (REIMER, 1970, p. 20). Por
signos, e que são possíveis graças aos
reconhecer e apreciar a “forma pela forma” prima
movimentos engendrados por sujeitos que estão
apelo aspecto do significado advindo de uma
em relação, articulando-os em contextos de
compreensão intelectual-racional. “Os sentimentos
vida.
e emoções definidos não são suscetíveis de serem
Nesta dinâmica entre significados e senti-
personificados na música. Ao contrário, as idéias
dos, a dimensão objetiva não pode ser descolada
expressas pelo compositor são inicialmente e
da dimensão subjetiva. O sujeito existe e
principalmente de natureza puramente musical” (p.
relaciona-se no todo das dimensões objetivas e
21).
subjetivas, que se entrecruzam, que se afirmam,
O expressionismo vinculado ao absolutismo
que se formam uma na outra, que se negam,
defende a idéia de que o significado da música
onde suas ações são sentidas, significadas, onde
reside na percepção e compreensão das relações
existe a estreita relação entre pensamento,
musicais do trabalho artístico, sendo estas relações
emoção e sentimento, onde a vida se realiza e só
capazes de estimular sentimentos e emoções no
é possível nesta totalidade dialética.
ouvinte (MEYER, 1956). Concorda com o formalismo
quando diz que o significado e o valor da obra de
Significação em Música
arte é para ser encontrado nas qualidades estéticas
Concepções advindas da área da
da obra. Não aceita os significados extra-musicais
Musicologia e Estética sobre a experiência
do referencialismo, mas aponta que a relação da
musical remetem ao fato de que a música tem
arte com a vida deveria ser reconhecida (REIMER,
um significado e que este significado é
1970). Os expressionistas absolutos acreditam que
comunicado para quem a faz e para quem a
“os significados emocionais expressivos emergem
ouve. Meyer (1956) ao estudar o tema das
em respostas à música e que estes existem sem
emoções e significados na música retoma as
referência ao mundo extramusical de conceitos,
conhecidas idéias estéticas sobre as posições
ações e estados emocionais humanos” (MEYER,
absolutista e referencialista do significado
1956, p. 4).
musical.
Os expressionistas referenciais dizem que a
Reimer (1970) compartilhando das idéias
expressão emocional depende da compreensão do
de Meyer (1956) ressalta que os termos
conteúdo a que a música se refere fora dela.
“absolutismo” e “referencialismo” indicam
Mesmo com todas estas tentativas de
“onde ir” para encontrar o significado e o valor
explicação sobre o que a música venha a significar,
da obra de arte.
percebe-se que não existem significados universais
simpósio de pesquisa em música 2006 169
da música. Ao se considerar a existência de Então, de que forma se pode olhar esta
significados específicos exclui-se as caracterís- questão? Como compreender os aspectos de
ticas culturais bem como espaços-temporais significação e comunicação em música? O
presentes nos diversos momentos da história direcionamento destes estudos aponta que é
humana. Além disso, não se pode esquecer que importante centrar a análise nos elementos
estes estudos acerca da significação musical musicais e também nos significados e experiências
baseiam-se no mundo sonoro da música afetivas a partir da relação vivida com a música.
ocidental. Talvez seria o momento de se voltar para a
Alguns pontos falhos podem ser construção pessoal e social do significado musical,
encontrados nestas posições. Meyer (1956), para as ações que cada pessoa, em relação com a
salienta que a posição expressionista absolutista música, estabelece ao longo de sua vida. Nesta
não conseguiu explicar os processos nos quais perspectiva, é preciso atentar para os aspectos que
padrões sonoros percebidos são experenciados permitem compreender que a música tem
enquanto sentimentos e emoções. Já os formalis- significado para cada pessoa na medida em que se
tas apresentam dificuldade de explicar como vincula à experiência vivida, passada, presente e
uma sucessão abstrata, não-referencial de notas, do porvir, e quando proporciona articular o vivido
torna-se significativa, ou seja, não conseguem junto aos sentimentos e emoções à própria música.
explicar em que sentido tais padrões musicais Em termos de construção social do significado
podem ter significado, ao mesmo tempo em que musical, Martin aponta que “os significados da
não explicam a relação que possa existir entre a música não são nem inerentes nem reconhecidos
passagem do significado musical para o intuitivamente, mas emergem e tornam-se
significado em geral. estabelecidos (ou transformados, ou esquecidos)
Meyer indica que uma possibilidade para como uma conseqüência das atividades de grupos
este impasse seria de as duas posições – de pessoas e contextos culturais particulares”
absolutista e referencialista – deixarem de ser (MARTIN, 1995, p. 57).
oponentes e tornarem-se aliadas, uma vez que As pessoas em relações, de acordo com
“os mesmos processos musicais e comporta- contextos histórico-culturais atribuem e constroem
mentos psicológicos similares originam ambos os significados à música, a partir de suas vivências e
tipos de significado, sendo que ambos deveriam experiências. Salienta Martin (1995), que são os
ser analisados caso se queira entender as sujeitos, como seres humanos criadores e sociais,
variedades da experiência musical” (MEYER, que dotam as coisas - e também os sons e a música
1956, p. 4). - com significados, em um processo onde a
Contrapondo a estas posições, percebe-se construção da realidade acontece a nível coletivo e
que os sentimentos e as reações despertadas singular.
pela música não são iguais para todas as pessoas A música, enquanto uma produção, enquanto
nas diversas épocas e lugares, mas que seriam resultado da ação criadora do homem no meio
produtos do experenciar humano. É difícil haver sócio-histórico e cultural deve ser compreendida
uma generalização que explique a comunicação e em todas as instâncias desta trama, construída pelo
a significação musical, já que este processo é fazer humano, impulsionada por suas necessidades,
dialético e acontece inserido na dimensão cultu- mas também pela busca de beleza, criatividade,
ral, por meio da ação dos sujeitos. permeada pela dimensão afetiva e pelo sentir. Não
Esta idéia também pode ser verificada em se pode se restringir ao olhar uni direcionado da
Maheirie (2003). De acordo com a autora, “as partitura musical de modo técnico enquanto única
músicas, na medida em que provocam no e exclusivamente estrutura musical, pois junto dela
fisiológico determinadas reações, podem, a encontra-se um mundo de movimentos, de
partir daí, nos remeter a estados emocionais dinâmicas e de significados construídos pelo
intensos, em que só as ações poderão lhes dar sujeito, que vibram nele próprio e onde a música
uma significação. Esta, não sendo estabelecida a toca, os quais busca compreender.
priori na música, também não o é nas emoções,
posto que o que nos emociona não emocionará A construção dos significados e sentidos da
necessariamente os outros” (p. 150). música no contexto social
Aponta Meyer que, “em um sentido geral, Aqui se parte da compreensão do Dr. Brynjulf
teóricos da música se preocupam mais com a Stige (1998), musicoterapeuta norueguês, junto de
gramática e a sintaxe da música do que com seu Ludwig Wittgenstein (1975), quando este estudou
significado ou a experiência afetiva que emerge aspectos da linguagem, das palavras e do
de tal experiência” (1956, p. 6). significado em sua obra Investigações Filosóficas,
170 SIMPEMUS3
acerca do uso das palavras. Wittgenstein dizia que a música sempre está em um contexto e, como
que a função principal da linguagem não era tal, é uma parte de um processo produtor de
nenhuma representação lógica, e sim a significado. O significado da música tem como foco
comunicação social. “Se tivéssemos que nomear a situação particular dentro do contexto cultural
qualquer coisa que é a vida da palavra, do signo, particular (RUUD, 1998).
nós deveríamos dizer que era o seu uso” Como dizia Wittgenstein (1975) o significado
(Wittgenstein citado por STIGE, 1998). Para depende do “jogo”, pois é uma construção social.
Wittgenstein os sinais, os signos adquirem vida Assim, o significado da música depende do jogo, da
no uso. A palavra no jogo da linguagem adquire o cena, do cenário, do contexto, dos personagens,
seu significado como um movimento em um dos músicos, instrumentistas, cantores, ouvintes,
processo comunicativo. A linguagem depende dos suas canções e suas narrativas. Depende do sujeito
usos que as pessoas, os grupos, as comunidades e que utiliza a música, que se relaciona e com ela
sociedades fazem. está implicado, que constrói seus significados em
Wittgenstein (1975) via o significado base a esta relação. Existe uma construção social e
vinculado ao uso, ou seja, o significado não era particular do significar em música, sempre em um
compreendido por ele como algo pré-fixado, contexto social.
rígido, imutável, universalizado. O significado da Strathern (1997), ao discutir as idéias de
palavra, justamente pelo seu uso devia ser Wittgenstein, diz que a linguagem da arte é
entendido como algo dinâmico, em constante metafórica. “Sendo metafórica, uma obra de arte é
movimento. Ao se perguntar pelo significado fixo ao mesmo tempo ela própria e algo mais. Dizer de
da palavra, tomado como único, estar-se-ia uma obra de arte que o que ela exprime é
paralisando a investigação. A questão seria de se inexprimível é uma contradição” (p. 36). Por
voltar para os sentidos atribuídos pelas pessoas, perceber a obra de arte e “este algo mais”, que
pelos grupos, de acordo com suas formas de vida. pode se relacionar com os seus sentidos, o sujeito
Seriam estas “formas de vida” que levariam aos constrói o significado da música, onde a música “é”
“jogos de linguagem”, de acordo com os usos das para ele, faz parte de sua vivência, significa para
palavras, que não são os mesmos entre as ele.
diferentes comunidades. Trabalhar-se-ia, então, Stige (1998) destaca da obra de Wittgenstein
com significados permeados pelos sentidos um trecho onde este filósofo ao invés de sublinhar
atribuídos pelas pessoas de acordo com o uso das diferenças entre palavras e música, indicou
palavras, em seus contextos. semelhanças entre elas: palavras e música
Assim, Stige (1998) aponta que a linguagem poderiam ser polissêmicas, abertas e preservar a
e o contexto não podem ser separados, e que o possibilidade de um significado que muda. Palavras
significado é um conhecimento local. O autor faz e música apresentam construções mútuas de
este novo percurso teórico, especificamente para significados. São vários significados, cambiáveis,
compreender a significação da música na Musico- não fixos, abertos, condizentes com os sentidos do
terapia articulada ao contexto social, onde sujeito.
então, poder-se-ia compreender que a música Para Maheirie (2003) a música carrega um
terá o seu significado, assim como a linguagem, a significado social por estar em relação com o
partir de seu uso, a partir do contexto, do jogo e contexto social onde está inserida, ao mesmo
dos jogadores que trazem para estes contextos tempo em que possibilita aos sujeitos a construção
de jogos de sons, de vibrações, de ondas sonoras, de múltiplos sentidos singulares e coletivos.
de canções e músicas a sua utilização, os seus
significados e sentidos. A música teria o seu O sentido da música [...] é sempre permeado pela
significado local em nada descolado do seu afetividade. Em primeiro lugar, percebemos sua
sonoridade, depois degradamos um saber anterior
contexto.
que tenha uma relação com os elementos
O significado como uso, seja das palavras
percebidos deste som para, em seguida,
que da música é um significado social e também transformarmos este saber e constituirmos um
singular (sentido), construído, criado e re-criado sentido àquela música. Posteriormente,
nas relações e ações pessoais e sociais estabelecemos, de forma singular, um significado
condizentes com o que é vivido e experenciado. para a música, compactuando ou não com seu
O Dr. Even Ruud, musicoterapeuta norue- significado coletivo. As características daquela
guês, compartilha da idéia de Wittgenstein sonoridade surgem como um complexo
(1975) acerca do significado da música. Segundo representativo que aparece determinado pela
Ruud, a filosofia de Wittgenstein é pertinente
para a compreensão do significado musical, visto
simpósio de pesquisa em música 2006 171
consciência afetiva3, a qual, por sua vez, lhes 2003). É de modo emocionado que o sujeito
dá nova significação (MAHEIRIE, 2003, p. 150). constrói os significados da música em sua vivência,
a partir de seus sentidos, objetivando sua
Para compreendermos a significação subjetividade, tornando-a “audível” para ele e para
musical na Musicoterapia, precisamos fazer a os outros. Os significados e sentidos ressoam nas
leitura a partir do resgate dos movimentos e vivências do sujeito e são construídos na sua
momentos que compõe a história de vida de um relação com a música. Estes significados partem
sujeito. Este resgate permeia o vivido, ou seja, a das vivências afetivas do sujeito, demonstrando a
dimensão do passado, o presente e as projeções utilização viva da música, uma vez que mudam, se
futuras. Nesta temporalidade histórica, a partir desconstroem e são recriados, porque também são
do discurso verbal e musical do sujeito, pode-se constituídos pelos sentidos, ligados ao uso da
aproximar dos significados compartilhados música de modo idiossincrático e em relação.
coletivamente por estes sujeitos, e dos sentidos
singulares construídos para suas vivências
pessoais nas histórias de relação com a música,
que passam a configurar uma significação
musical que é construída, é histórica, é
temporal, é provisória, e diz respeito a este
sujeito, que vivencia determinadas relações em
um determinado contexto sócio-histórico e
cultural de vida. Isto permite identificar que a
significação musical é sempre “local” e depende
das vivências que o sujeito estabelece com a
música, em sua história.
Na prática da Musicoterapia esta
compreensão é fundamental. Para “conhecer” o
sujeito pode-se lançar mão deste recurso que
permite conhecê-lo a partir das narrativas que
constrói sobre sua história de relação com a
música. Também com esta compreensão é
possível aproximar-se de forma mais coerente de
seus significados e sentidos, a partir do modo
como vivencia a atividade e experiência musical
em um contexto musicoterapêutico. Lembrando
que a compreensão desta dinâmica deve levar
em conta a leitura da música e da dimensão
afetiva no contexto cultural, onde o sujeito
encontra-se situado historicamente. Ou seja, não
basta que o profissional musicoterapeuta faça
análises musicais centradas apenas na partitura
para conhecer a relação do sujeito com a música
e como isto se dá em sua vida, mas que articule
a esta análise a dinâmica entre significados e
sentidos construídos na história de vida do
sujeito, que também contempla uma história de
relação com a música.
As emoções e os sentimentos, integrantes
da atividade humana junto do agir e do pensar,
configuram a construção dos significados singu-
lares da música, de acordo com a vivência do
sujeito e de sua própria reflexão acerca de si e
de suas experiências. A música despertando a
afetividade pode construir a forma como o
sujeito significa o mundo que o cerca (MAHEIRIE,
3
Consciência afetiva: verificar Sartre (1936/1965) e Maheirie
(2002, 2003).
172 SIMPEMUS3
Referências
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A voz na arte e a sensualidade na expressão
Lara Janek Babbar
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Um estudo acerca da expressividade da voz sob o prisma da sensualidade no âmbito da fruição e da criação
artística. Na primeira discussão, a voz é apresentada como importante ferramenta de expressão do ser
humano. São apresentados alguns parâmetros que discriminam índices de comunicação. A seguir, analisa-se a
voz como veículo de conteúdos estéticos que, consolidado à sensualidade, torna sua manifestação artística
expressiva e sensual.
Introdução
Esta pesquisa apresenta um panorama
acerca da expressividade e da sensualidade a obra de arte é expressiva enquanto é forma, isto
relacionadas ao uso da voz como fenômeno é, organismo que vive por conta própria e contém
artístico. Evidencia-se a voz como importante tudo quanto deve conter. Ela exprime, então, a
meio da expressão humana, rica em sonoridades personalidade do seu autor, não tanto no sentido
de que a é, e nela até a mínima partícula é mais
que informam ao interlocutor situações
reveladora acerca da pessoa de seu autor do que
específicas. São estabelecidos alguns parâmetros qualquer confissão direta, e a espiritualidade que
vocais que, articulados, constituem ferramentas nela se exprime está completamente identificada
de comunicação fortes. A seguir, apresenta-se o com o estilo. A forma é expressiva enquanto o seu
conceito de sensualidade que, na esfera artística ser é um dizer, e ela não tanto tem quanto, antes
ou cotidiana, contribui para um sentido mais é um significado. (PAREYSON, 1989, p. 30)
elaborado.
A voz humana é uma maravilhosa
Expressividade e voz manifestação da expressividade. Na contingência
de uma adaptação do aparelho digestivo e
No âmbito da expressão faz-se necessário o
respiratório, é o resultado do desenvolvimento
treinamento dos modos mais diversos de uso dos
muscular e nervoso muito elaborado. Por
sentidos para a proposição e para a compreensão
conseqüência, tem-se a voz como uma sonoridade
dos conteúdos. Ao artista cabe um estudo
do ser humano que apresenta índices expressivos
criterioso sobre o comportamento humano em
muito significativos para a sua manifestação.
todas as esferas da vida, para que no momento
da arte, sua representação sugira veracidade. A literatura existente sobre a voz é escassa,
principalmente em se tratando do seu uso artístico.
Como ponto de partida para a discussão
Os limites das discussões cobrem aspectos de
acerca de expressão, recorre-se a Alfredo Bosi
tessitura, de velocidade, seu mecanismo de
(1995, p.50): “A idéia de expressão está
sustentação. As questões dedicadas à estética vocal
intimamente ligada a um nexo que se pressupõe
e de interpretação artística via voz são rasantes e,
existir entre uma fonte de energia e um signo
de um modo geral, em forma de críticas. Não existe
que a veicula ou a encerra. Uma força que se
uma organização dos recursos, das possibilidades,
exprime e uma forma que a exprime”.
que permita uma criação artística da voz.
A expressão se manifesta por meio de uma
Por exemplo, a mentalidade vigente em
linguagem e atende a uma demanda interna,
algumas escolas tradicionais de canto operístico é a
elaborada via intelecto, sustentada por uma
de que os cantores devem tratar seu timbre como
correspondência psíquico-emocional, ou pela
entidades estanques, sua identidade vocal
forma em si. Como bem exposto por Luigi
imaleável. Em função disto, no item repertório, tais
Pareyson (1989, p. 30): “Toda operação humana
cantores se vêm na condição de sonorizar
contém a espiritualidade e personalidade de
personagens que se adaptem à sua voz, e não do
quem toma a iniciativa de fazê-la e a ela se
contrário. Com tal mentalidade, o trabalho de
dedica com empenho; por isso, toda obra
expressividade vocal, e o resultado artístico,
humana é como o retrato da pessoa que a
apresenta-se muito deficitário.
realizou.” Em arte, contudo, Pareyson
condiciona a expressão de modo especial:
174 SIMPEMUS3
Referências
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PAREYSON, L. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
O instrumentista interface
Fabiana Moura Coelho
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
O presente artigo propõe o estudo de técnicas da flauta aplicadas à música contemporânea. Aborda também
o desenvolvimento de um conjunto de gestos sonoros com o objetivo de dirigir a ação do instrumentista em
performances interativas. No contexto desta pesquisa, o músico terá participação fundamental na construção
do material sonoro agindo como interface do processo criativo.
Palavras-Chave: flauta, interface, gesto sonoro, interatividade, computador.
Figura 1
3
Veja http://www.ircam.fr/ Tocar e cantar
4
A pesquisa original analisou também gestos sonoros Este gesto sonoro é obtido através da
referentes a som percussivo, ataque percussivo,
harmônicos, glissando, frulatto, bend, tocar e cantar,
emissão vocal de uma nota ao mesmo tempo em
whistle tone, sons eólios, multifônicos. Contudo, a que outra é executada na flauta.
dimensão do presente artigo tornou imperiosa a exposição
de apenas três deles.
simpósio de pesquisa em música 2006 181
Verifica-se, através do sonograma apresen- A tabela acima demonstra, comparativa-
tado, que há uma mistura homogênea dos sons. mente, a intensidade dos parciais produzidos em
Desse modo, o instrumento, ao ser estimulado dois efeitos estudados. Dessa maneira, fica
pela voz, gera um timbre muito específico, que explicitada a considerável diminuição de intensi-
pode ser estudado pelo compositor para dade relativa dos parciais produzidos no gesto
obterem-se os resultados desejados. Há estudos whistle tone. A diferença de intensidade entre o 4º
que mencionam a utilização de modelos parcial e o 2º parcial (G7 e G6) é de 56 dB. Assim, o
matemáticos para mensurar a interação da voz 4º parcial, G7, é aproximadamente 105,6 vezes
com o instrumento. menos intenso que o 2º parcial, G6. Isso significa
que soam simultaneamente duas notas, uma delas
398107,17 vezes mais intensa que a outra.
No caso do gesto denominado “harmônicos”,
o espectro demonstra a diminuição gradativa da
intensidade dos parciais. Pode-se perceber uma
redução linar de 7 dB entre o 2º e o 3º e entre o 3º
e o 4º parciais. O 4º parcial é 102,3 vezes menos
intenso que o 2º parcial, o que indica que, do ponto
de vista do conteúdo espectral, o timbre de cada
um dos efeitos estudados está relacionado à
intensidade dos harmônicos produzidos.
Desta forma, o gesto sonoro denominado
Figura 4
“whistle tone” provoca a sensação de som puro,
pois seus harmônicos são muito mais atenuados,
Conclusão tornando-se quase inaudíveis. O gesto sonoro
denominado “harmônico” provoca uma sensação de
parciais 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º incorporar um conteúdo espectral mais denso, pois
G5 nota G6 D7 G7 B7 D8 F8 G8 A8 o conteúdo espectral resultante é mais complexo e
a coloração é mais intensa.
intensidade - - - - -
Através da visualização nos sonogramas dos
whistle
30 96 86 100 104
dB dB dB dB dB gestos sonoros estudados, foi possível obter
E4 nota E5 B5 E6 G#6 B6 D7 E7 F#7 informações menos subjetivas e mais concretas a
intensidade - - - - 75 - respeito da mudança dos parâmetros para obtenção
32 49 56 dB 77 de sonoridades específicas para a flauta. Mesmo
Harmônicos
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O papel das alturas numa abordagem composicional baseada em
temporalidades musicais
Ticiano Albuquerque de Carvalho Rocha
Universidade Federal da Paraíba
Resumo
Esta comunicação expõe alguns dos procedimentos utilizados pelo Autor na criação de um discurso musical
que toma como referências temporalidades musicais distintas, algumas das quais baseadas no universo da
música indígena brasileira. Os procedimentos, em especial aqueles referentes à organização das alturas,
estão sendo aplicados na composição de uma peça musical para orquestra de câmara que constituirá parte
dos requisitos para a conclusão do curso de mestrado em composição pelo Autor.
Palavras-Chave: Tempo musical; temporalidades; música indígena; organização de alturas.
Para Kramer (1988, p. 19), existem ainda percepção momentânea (durante a execução da
as várias possibilidades temporais intermediárias peça), e outra, a percepção posterior (após a
entre linearidade e não-linearidade. Além do audição da peça). Para o primeiro movimento foi
mais, segundo ele, virtualmente toda música se pretendido que entre esses dois modos de
utiliza de ambos os processos, em maior ou percepção houvesse um contraponto a ser
menor grau. configurado como uma percepção momentânea
Essas características estão, de certo modo, não-linear contra uma percepção posterior linear.
presentes em algumas visões do tempo próprias Para o segundo movimento uma percepção
de determinadas culturas indígenas brasileiras. momentânea linear é colocada contra uma
Na tribo Kamayurá, do Alto Xingu, por exemplo, percepção posterior não-linear. Além disso, cada
o tempo é relatado de dois modos distintos: um seção tem uma predominância temporal particular,
deles refere-se a um “tempo histórico” (com seja ela linear ou não-linear.
características lineares) e um outro, a um
“tempo mítico” (com características não- Metodologia
lineares):
Nesta peça, uma das abordagens utilizadas
para tornar possível essa representação temporal
Para o Kamayurá há dois sistemas diferentes e parte dos conceitos apresentados pela Teoria da
complementares de morõneta, ‘explanação’, Informação e interpretados por Barry. Para ela o
das coisas do mundo, cada um deles estando
tempo percebido é proporcional ao esforço
colado num tempo de referência próprio, a
exercido pela mente humana para processar as
saber, no ãng, ‘tempo histórico’, ou no mawe,
‘tempo mítico’ (MENEZES BASTOS, 1972, p. informações musicais. Para quantificar esse
109). processamento de informações, e consequen-
temente a percepção temporal, ela leva em conta
dois fatores, a velocidade (andamento) e a
O tempo histórico é o tempo das durações
quantidade de informações. Em sua “Teoria de
prováveis, no qual os eventos têm começo e fim.
Densidade/Andamento” (1990, p. 167) afirma que,
O tempo mítico é o tempo da mitologia
em um mesmo andamento, a duração percebida
Kamayurá, no qual está a origem para todas as
aumenta à medida que o conteúdo informacional
definições. As duas temporalidades existem
aumenta além do usual. O aumento da duração
simultaneamente em todas as coisas, pois tudo
percebida também ocorre quando uma quantidade
pode ser explicado tanto no “tempo mítico”
de informações abaixo do usual é apresentada para
quanto no “tempo histórico”. Menezes Bastos
o ouvinte, essa baixa quantidade de informações
conclui afirmando:
demanda um maior esforço mental para relacionar
e processar informações que se encontram esparsas
Se, assim, portanto, o ãng é o tempo no discurso musical. Dessa maneira ocorre o mesmo
experimental, memorial e esgotavelmente efeito de expansão da duração percebida criado
atual, o mawe é, definidamente, o tempo pela grande quantidade informacional. Para a
cosmológico, imemorial e daquilo que sempre
autora existe entre esses dois pólos o nível usual de
acontece de forma inesgotável, de um lado,
pois, se colocando o acontecido, o discreto, de
informações, no qual as durações são mais
outro, o que pode acontecer, o contínuo fielmente percebidas.
(MENEZES BASTOS, 1972, p. 110). Essa percepção de duração estendida tem
ligação direta com o tempo não-linear de Kramer.
As decisões estruturais da peça são Pois é nesse tempo musical de maior duração
tomadas em função das referências temporais. percebida que o ouvinte não consegue estabelecer
Isso significa que, na organização de parâmetros conexões, devido a grande quantidade de
como altura, ritmo, forma, textura, etc., estes processamento. Seja a taxa de informações alta ou
estão subordinados a um objetivo maior – criar baixa. Há também uma ligação entre o tempo mais
um discurso musical cujos agentes principais são fielmente percebido e o tempo linear descrito por
duas temporalidades musicais relacionadas, Kramer, já que nesse tempo os eventos musicais
nesse nível, especificamente ao tempo mítico e ocorrem em uma frequência média que possíbilita a
ao tempo histórico dos Kamayurá. compreensão dos sons na medida em que estes
ocorrem para o ouvinte.
A aplicação dessas temporalidades no
conteúdo formal da peça foi elaborada de Podemos então verificar que não apenas o
maneira a estabelecer dois tipos de percepção material, mas principalmente os procedimentos –
temporal que interagem entre si. Uma sendo a
simpósio de pesquisa em música 2006 185
modos de aplicação – são essenciais para o convencionais, tais como fragmentos melódicos,
objetivo de uma representação temporal. padrões rítmicos e progressões harmônicas, como
guias do discurso musical. Consistência timbrística
refere-se ao uso mais comedido de variações
Partindo desses conceitos alguns procedi-
timbrísticas, visando dar maior unidade aos agentes
mentos foram desenvolvidos visando representar
de um mesmo nível do discurso musical.
diferentes temporalidades.
Entre os procedimentos utilizados para a
criação do tempo não-linear, estão: baixa Alturas
incidência de recorrências, alta densidade O sistema de alturas tem por base dois modos
harmônica, alta densidade rítmica, complexidade diferentes, dos quais são formadas três tabelas de
textural e modulações timbrísticas. Baixa referência: nas duas primeiras, é levado em
incidência de recorrências refere-se ao uso consideração o princípio de equivalência de oitava
limitado de recorrências de organizações (as alturas são classes-de-notas), e na terceira, o
intervalares, rítmicas, texturais e timbrísticas princípio de registro fixo (as alturas são notas).
específicas, visando à supressão de unidades O primeiro modo, escolhido por suas
formais identificáveis. Alta densidade harmônica propriedades intervalares assimétricas, faz parte do
é a aplicação de várias organizações escalares universo da música indígena Xavante. O segundo
distintas, de acordo com as operações do sistema modo foi criado artificialmente, pelo autor, a partir
de alturas descrito abaixo, tendo em vista a do primeiro, buscando-se estabelecer uma
criação de conteúdos harmônicos densos e organização intervalar mais simétrica. O Exemplo 1
heterogêneos (cromáticos e microtonais). Alta apresenta os padrões intervalares de cada modo.
densidade rítmica corresponde à utilização de
ritmos complexos e sobreposição de métricas
distintas. Complexidade textural caracteriza a
criação de faixas texturais ricas e/ou modo 1 < 1 1 1 4 2 3 >
simultâneas, para funcionarem como unidades modo 2 < 3 2 1 1 3 2 >
(de larga escala) de um discurso sem referências Exemplo 1
óbvias a eventos passados ou futuros. Modulações
timbrísticas referem-se ao procedimento que faz
uso de variações constantes de timbre (em
termos de instrumentação e orquestração), A primeira tabela, da qual são geradas as
objetivando a acentuação de nuanças variadas de outras duas, é formada pelo cruzamento desses dois
colorido tonal nas unidades texturais. modos. Suas alturas são originadas a partir de
Para a criação do tempo linear, os transposições do modo 2 (dispostas horizon-
seguintes procedimentos são utilizados: alta talmente), determinadas pela organização inter-
incidência de recorrência, subtração contextual, valar das alturas do modo 1 (dispostas vertical-
densidade rítmica mediana, simplicidade mente), como mostra o Exemplo 2. Os padrões
textural e consistência timbrística. intervalares dos modos estão representados pelos
números situados entre as linhas e colunas de
Alta incidência de recorrência caracteriza
alturas.
o procedimento de uso estendido de recorrências
de organizações intervalares, rítmicas, texturais
e timbrísticas específicas, de tal modo que
unidades formais identificáveis sejam reconhe-
cidas e processadas. Subtração contextual é o
procedimento aplicado a um determinado
agrupamento denso de alturas (vertical, horizon-
tal ou diagonal), que consiste na gradual
subtração dessas alturas, à medida que o
agrupamento sofre desdobramentos ou recorrên-
cias no tempo até a emergência de materiais
referenciais (unidades formais identificáveis).
Densidade rítmica mediana refere-se à utilização Exemplo 2
de métricas regulares e definidas. Simplicidade
textural significa a utilização de texturas simples
que permitam a criação de unidades e eventos
186 SIMPEMUS3
Exemplo 3
Conclusão
Essas manipulações de alturas constituem
apenas uma parte do conjunto de procedimentos,
referido anteriormente, utilizado na tentativa de
concretizar as diferentes representações tempo-
rais. Todos os passos para a criação desse sistema
1
de alturas foram guiados para tal fim, partindo da
referência da música indígena até o método de
simpósio de pesquisa em música 2006 187
aplicação das alturas ao longo da peça. Cada Os procedimentos composicionais aqui
parâmetro musical não explorado nesta relatados vêm sendo testados em computador
comunicação foi submetido a uma linha de utilizando softwares sintetizadores e, em condi-
planejamento semelhante. ções específicas, vêm apresentando resultados
positivos no que se refere aos objetivos almejados.
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Atribuições de aspectos musicais nos efeitos sonoros
André Luis Battaiola, Daniel Avilez
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Uma característica da indústria nacional de Jogos Eletrônicos é a proporção programador/Artista menor que
um, diferente da proporção, em média dois, que se encontra em mercados consolidados como Estados Unidos
e Europa (“A Industria de Desenvolvimento de Jogos Eletrônicos”, Abragames, 2004). Os artistas referidos na
pesquisa englobam os game designers, os modeladores 3D e os ilustradores. Os profissionais de áudio, em
geral, não são contabilizados porque há um número pequeno deles presentes na indústria referida e, em
geral, não se dá o devido valor à produção do áudio de um jogo.
Estes fatos, bem como, a exclusão dos profissionais do áudio no processo de design de um jogo, o que inclui:
produção do roteiro, definição de personagens, interfaces, etc, ocasiona uma dissociação entre imagem e
som. Note-se que a trilha sonora é, em geral, muito valorizada na produção de um filme, onde profissionais
altamente capacitados trabalham em concordância com o restante da equipe, por outro lado, a produção da
trilha sonora de um jogo pode se tornar muito mais complexa devido aos efeitos relacionados à interação.
Por exemplo, associar uma música a uma cena é relativamente simples, pois o próprio fato de ser uma
música já demonstra que há organização e coerência nos materiais empregados, neste caso sons. Para a
criação de uma música, em geral, se respeitam regras e formas bem conhecidas, porém, um efeito sonoro, o
qual deve ser repetido várias vezes no processo de interação entre o jogador e o jogo, precisa ser muito bem
planejado para não causar stress no jogador e nem diminuir a sensação de ação e reação.
A produção de efeitos sonoros pode apresentar apresenta os seguintes problemas: dissociação entre o nível
da ação e o impacto do som (p.ex, ação suave e som agressivo); desconexão do efeito sonoro com a música,
o que pode ocasionar uma ruptura do jogador com o clima da cena do jogo; falta de harmonia estética e de
intensidade entre musica, efeito sonoro e ação; e diferenças gritantes entre os efeitos sonoros (p.ex, o som
de um tiro de um jogo simples, em princípio, deve manter a simplicidade coerente com os outros sons e a
própria interface).
Nota-se que muitos destes problemas estão atrelados a desconsiderações musicais em relação aos efeitos
sonoros. Então para a organização e composição dos efeitos sonoros propõem-se que atribuições musicais
sejam empregadas a estes, em especial o processo e pensamento da música concreta.
Objetivos Introdução
Nota-se que a estética e as características A potencialidade do áudio como interface é
da música eletroacústica ainda não foram inegável. Segundo Heilig (1992) a ênfase humana
absorvidas pelo grande público e nem pelos com respeito aos sentidos usualmente é de 70%
desenvolvedores de jogos. A utilização da música pela visão, 20% pela audição, 5% pelo olfato, 4%
eletroacústica por parte do meio audiovisual vem pelo tato e 1% pelo paladar.
sendo aplicada principalmente pelos projetistas Um artifício interessante que é muito
de áudio, porém, a apropriação que vem explorado pelos artistas do radio, teatro e cinema
ocorrendo está centrada principalmente na para a integração e a potencialização dos dois
questão técnica, de uma vertente da música sentidos – visão e audição – é a utilização da
eletroacústica, a música concreta. impressão sonora de um ambiente, a Paisagem
A presente pesquisa tem o objetivo de Sonora desenvolvida por Murray Schafer na
estudar e aplicar a técnica e o pensamento Universidade Simon Fraser no Canadá. A paisagem
estético composicional da música concreta, sonora propõe uma escuta musical de todos os sons
sobre dos efeitos sonoros e ruídos dos presentes que nos rodeia, percebendo seus desenvolvimentos
em Jogos Eletrônicos. Expondo assim, a e suas características. No livro O Ouvido Pensante,
potencialidade e a ampla gama de aplicações Murray Schafer propõe o ensino da musica através
deste estilo musical, fato este ainda pouco da paisagem sonora, explorando cada som,
conhecida e explorada por profissionais do áudio. despertando assim nos alunos uma visão totalmente
livre e desprovida de preconceitos sobre o que é
musica.
simpósio de pesquisa em música 2006 189
Desde cedo, os encenadores souberam tirar musica eletroacústica, na composição da trilha
proveito dos aperfeiçoamentos das técnicas de sonora de um jogo.
reprodução e difusão do som. Um espaço, com
A produção da trilha sonora de um jogo pode
efeito, não se define apenas pelos elementos
visuais que o constituem, mas também por um se tornar muito mais complexa devido aos efeitos
conjunto de sonoridades características ou relacionados à interação. Por exemplo, associar
sugestivas, que tecem para o ouvido uma uma música a uma cena é relativamente simples,
imagem cuja eficiência sobre o espectador foi pois o próprio fato de ser uma música já demonstra
mil vezes comprovada. Sabe-se, aliás, que a que há organização e coerência nos materiais
audição é um veiculo de ilusão mais sensível empregados, neste caso sons. Para a criação de
que a visão. (ROUBINE, 1998). uma música, em geral, se respeitam regras e
formas bem conhecidas, porém, um efeito sonoro -
Na produção de um jogo, em geral, não se repetido várias vezes no processo de interação
dá o devido valor ao processo de sonorização. O entre o jogador e o jogo - precisa ser muito bem
produto é tido como acabado sem a planejado para não causar stress no jogador e nem
implementação do áudio, pois raramente é diminuir a sensação de ação e reação.
designada uma função importante no processo de A produção de um efeito sonoro muitas vezes
funcionalidade do jogo. A não inclusão dos apresenta os seguintes problemas:
profissionais do áudio no processo de design de
um jogo, o que inclui: produção do roteiro,
1. dissociação entre o nível da ação e o impacto do som
definição de personagens, interfaces, etc; pode
(p.ex, ação suave e som agressivo);
ocasionar uma dissociação entre imagem e som.
2. desconexão do efeito sonoro com a música (falta de
Um dos fatores responsáveis por esse harmonia estética), o que pode ocasionar uma ruptura
problema é a desinformação dos designers de do jogador com a cena do jogo;
jogos perante as possibilidades da mídia sonora. 3. grande diferença de intensidade entre a música e o
A citação abaixo contida no documento “A efeito sonoro;
Indústria de Desenvolvimento de Jogos 4. diferenças gritantes entre os efeitos sonoros (p.ex, o
Eletrônicos no Brasil”, elaborado pela Abragames som de um tiro de um jogo simples, em princípio, deve
em 2004, revela dois aspectos interessantes: manter a simplicidade coerente com os outros sons e a
própria interface);
Um ponto curioso é que as desenvolvedoras 5. utilização de sons padrões, comuns à internet e a
brasileiras apresentam uma proporção jogos eletrônicos antigos, que pela sua familiaridade
programadores/artistas (ilustradores e perdem o interesse.
modeladores 3D), diferente de mercados
consolidados no desenvolvimento como Todos esses problemas estão atrelados à falta
Inglaterra e Estados Unidos. Nesses países,
de comprometimento entre os sons e a música. Uma
normalmente, existem dois artistas para cada
programador. Pode ser que a proporção esteja
forma de suprir esse problema é a utilização da
diferente porque existem muitos cursos de música concreta, pois a sua estética prevê a
graduação em Ciência da Computação que construção da música pela inserção de ruídos ou
estimulam o desenvolvimento de jogos. Talvez, efeitos sonoros.
as empresas ainda não estejam dando a ênfase
necessária na parte visual dos jogos.
Atribuição de aspectos Musicais nos efeitos
sonoros.
Esta citação revela que se o aspecto visual
Na música ocidental dos últimos dois séculos
de um jogo ainda carece de maior atenção, a
foram e ainda são trabalhados principalmente
questão do áudio é praticamente desconsi-
elementos como: Melodia, Harmonia, ritmo.
derada. Note-se também que o conjunto de
Somente a partir do século XX e, em especial, no
profissionais que participam da produção de um
pós-guerra é que tais elementos começaram a
jogo foram enquadrados nas seguintes
serem extrapolados. Para poder entender essa
categorias: Programador, Game Designer,
extrapolação desse “novo” tipo de música é
Modelador 3D, Ilustrador, Gerente de projetos,
necessário primeiramente conhecer os principais
Administrador, Outros. Dentre elas, não aparece
parâmetros envolvidos na qualidade de um som,
nenhum profissional relacionado à área de áudio.
pois é com a possibilidade de controle total na
Para tentar minimizar esse problema, esta manipulação desses parâmetros, com o auxílio da
pesquisa, em andamento, analisa a possibilidade tecnologia, que a música eletroacústica trabalha
de uso da música contemporânea, em especial, a para organizar os sons.
190 SIMPEMUS3
as metas planejadas para a trilha sonora problemas. Observou-se que estes problemas estão
(incluído a música) tinham sido alcançadas pela mais atrelados à concepção estética dos efeitos
composição através dos efeitos sonoros. sonoros do que aos problemas técnicos, o que
O resultado da sonorização desta animação motivou a pesquisa sobre música eletroacústica
pode ser escutado e entendido como uma música descrita neste documento.
concreta. Despertando, assim, a percepção da Para o desenvolvimento da pesquisa, foram
relação entre efeito sonoro e a música. estudados conceitos e realizadas diversas
experiências em música eletroacústica, o que
proporcionou uma visão abrangente sobre o tema e
Conclusões
uma ampliação das possibilidades de aplicação.
A análise da incorporação do áudio as
O acréscimo das linhas de pesquisa de
interfaces dos jogos de computador evidenciou
cognição, semiótica e linguagens musicais, sem
os problemas descritos na Introdução deste
dúvida, seria de grande valia para continuação
relatório.
desta pesquisa. Que como apresentado nos tópicos
Na elaboração das trilhas sonoras de duas anteriores apresenta resultados novos e
animações (Edugraph e abertura do Congresso consistentes.
SBGames) e de quatro jogos (EEHouse e fases 1,
2 e 3 do Edugraph), procurou-se evitar esses
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Gesto & interpretação mediada para marimba
César Adriano Traldi, Jônatas Manzolli
Universidade Estadual de Campinas
Resumo
A pesquisa aqui descrita vincula a interpretação musical e a interação do músico em processos de mediação
tecnológica com o objetivo de ampliar a sua percepção sonora e a sua capacidade de interagir com a
diversidade de gestos e sonoridades vinculados à música contemporânea. São apresentados dispositivos e
parâmetros de interação que ampliam as possibilidades da interação em tempo real nas obras para marimba
e eletrônicos ao vivo.
Palavras-chave: Marimba, interação, sensores, interfaces, gesto
emitido pelo aparelho. Desta forma, criou um intrinsecamente ligado ao gesto sonoro e de forma
meio de interação com a tecnologia e ampliada, ao movimento corporal do
especializou seu gesto de modo a tornar-se uma percussionista.
virtuose do instrumento. O gesto sonoro foi também conceituado por
Guardadas as devidas proporções, o que se Iazzetta (1997b): “Trata-se da significação do
pretende fazer, a partir da interação com os movimento, que está intimamente ligado à ação
computadores, é repetir a experiência realizada musical. Aplicado aos conceitos de técnica e
por Clara Rockmore. Para que o gesto possa ser tecnologia, intensamente utilizados em música a
utilizado como meio de ligação entre intérpretes partir do começo do século XX, o gesto sonoro
e dispositivos de interação ao vivo como passou a englobar não somente a emissão do som,
computadores, sensores e outros, ele deve ser como também a técnica empregada e a tecnologia
estudado, compreendido e ampliado, uma vez aplicada”.
que além de ser o fio condutor da interação O gesto sonoro nada mais é do que os
homem-máquina, ele será o elemento diferentes caminhos sonoros possíveis de serem
fundamental na conexão direta entre o material produzidos nos instrumentos. Escalas, glissandos,
eletrônico e a geração sonora dos instrumentos acordes, notas longas, notas curtas são alguns
no momento da interpretação. exemplos de gesto sonoro. Após a captação dos
Raul do Valle ao estudar o gesto ligado à gestos sonoros através de sensores como,
técnica instrumental menciona: “Um gesto é um microfones ou sensores piezo-elétricos, esses dados
movimento que envia um sinal a um observador. são enviados a computadores que podem
Para tornar-se gesto, um ato deve ser visto e reconhecê-los através de softwares como o
comunicar uma informação” (VALLE, 1996). Max/MSP e PD. Essas informações podem ser
O Gesto será por nós tratado nesse utilizadas para definir as ações do computador.
trabalho em duas formas: Nesse trabalho, realizamos oficinas onde
estudamos essas interações, de maneira a elucidar
aos intérpretes quanto à importância de sua
1.Gesto Sonoro;
execução nessas obras. Um gesto sonoro executado
2.Gesto Físico, subdividido em duas de uma maneira inadequada poderá transmitir
vertentes: informações inadequadas ao computador,
Gesto Físico Incidental ou Residual transformando o que deveria ser um dialogo entre
Gesto Físico Cênico intérprete e máquina, numa confusão de
informações, onde não existe coerência entre
perguntas e respostas.
O enfoque será no sentido de observar e
estudar os movimentos, a técnica e as
disposições cênicas, que são gerados e estão Gesto físico incidental ou residual
diretamente envolvidos na performance Segundo Frank Kumor (2002), o movimento e
instrumental. Raul do Valle (1996) fala da a música instrumental possuem uma relação
importância de que os gestos sejam claros, sem inseparável. O movimento quando acompanhado de
equívocos e impossíveis de se confundir, um significado é denominado de gesto. O gesto
exprimindo força, amplitude e velocidade iguais incidental é o movimento natural e inevitável do
a cada uma de suas manifestações. intérprete, na execução instrumental.
O gesto incidental nas músicas para percussão
Gesto sonoro é mais importante e mais facilmente evidenciado
do que em obras compostas para outros
Segundo Iazzeta (1997): “A música sempre
instrumentos, isso é devido à grande extensão
esteve relacionada ao gesto do intérprete, porém
espacial necessária para a execução dos
a sua importância e significação apenas nas
instrumentos de percussão ou de obras que
últimas décadas passaram a ser estudadas”. A
requerem configuração de diferentes instrumentos.
partir desta observação não é difícil verificar que
A movimentação neste espaço, junto com o grande
se trata então da relação instrumento/
movimento muscular na performance desses
instrumentista e o som por eles gerado, num
instrumentos, cria uma intrigante e sutil “dança”,
movimento contido no espaço-tempo ou no
segundo Kumor (2002) esta “dança” ocorre com a
processo dinâmico gerado pelo músico. Assim, na
mudança de posição do músico, com o ato de se
performance musical, o som percebido depende
estender e inclinar-se no instrumento, e na
dos caminhos gestuais do instrumentista, estando
movimentação de braços, pulsos e mãos no controle
simpósio de pesquisa em música 2006 195
das baquetas ou das próprias mãos que serão tornando-se também uma arte que se expressa por
utilizadas para produzir os sons nos meios visuais. Na próxima seção vamos tratar
instrumentos. especificamente do que Kumor denomina de Gesto
O estudo e a compreensão do movimento Cênico.
residual ou incidental utilizado na execução da
técnica instrumental devem ser parte regular do Gesto cênico
vocabulário de percussionistas. O gesto musical
No séc. XX ocorreu um grande crescimento na
está diretamente ligado com a produção sonora
experiência com música para percussão. Os
do instrumento. Muitos estudos têm sido feito
compositores passaram a ver os instrumentos de
com respeito à eficiência do movimento corporal
percussão como instrumentos com grande potencial
incorporado à técnica de execução instrumental.
como solistas e em música de câmara. Somado a
O percussionista deve utilizar-se de técnicas e
isso, alguns compositores adicionaram novos
métodos de estudo que desenvolvam eficiência
elementos na performance, a descrição do
física para o melhoramento da performance.
movimento ou o gesto cênico (movimento com
Devido a importância do gesto residual significado).
inerente à performance da marimba, esta
A inclusão da ação cênica em trabalhos para
pesquisa desenvolveu uma busca pela
percussão atuais e a performance com desafio
compreensão deste gesto de maneira que ele
técnico não é ainda parte do padrão curricular de
possa servi como meio de comunicação entre
percussionistas e esse trabalho tem como objetivo
intérprete e máquinas. O gesto residual do
aproximar intérpretes dessa nova linguagem
intérprete poderá ser captado através de
musical.
sensores de movimento e transformado em
informações para o computador. Para que isso O Movimento físico com significado recebe o
possa ocorrer com sucesso, o intérprete deve ter nome de gesto cênico e deve ser pensado portanto,
consciência da importância e das inúmeras como o movimento do corpo que é descrito pelo
possibilidades gestuais existentes de maneira a compositor, um movimento específico, planejado e
padronizar movimentos para que possam ser que é um elemento integrado na performance. Isto
captados e compreendidos pelos meios não deve ser confundido com o gesto residual que é
eletrônicos. Os diferentes tipos de qualidade produzido naturalmente em execução instrumental,
sonora causada pelo gesto residual também o gesto residual, também é um gesto pensado e
podem ser captados através de microfones e com significado, mas a sua utilização é apenas
servirem como meio de interação. pensada para a melhor produção sonora. Já no
gesto cênico seu significado é visual e está
Para que o gesto residual possa ser
diretamente ligado ao movimento físico do
utilizado como meio de interação é necessário
intérprete e não à geração sonora.
seu estudo e entendimento, para isso realizamos
oficinas onde as diferentes possibilidades foram Problemas de interpretação e performance
testadas. O objetivo é formar um padrão gestual imprecisas surgem quando o percussionista é
que possa ser captado pelos meios eletrônicos e requisitado para tocar estes gestos descritos pelo
que ao mesmo tempo não comprometa a compositor. Isto ocorre por que o percussionista é
performance e a geração sonora do instrumento. geralmente treinado para o gesto incidental
necessário na técnica de execução do instrumento,
Ao falar sobre o movimento incidental,
mas não é treinado para movimento gestual
Frank Kumor (2002) diz: “O movimento inciden-
desenhado, a adição do gesto cênico como um
tal produzido na performance de instrumentos de
elemento na performance de uma composição
percussão cria uma dança única em várias
acaba por confundir o percussionista e, portanto
composições, e compositores como John Cage
representa um problema físico e musical.
tiveram consciência dessa condição”. Vários
compositores que observaram este fenômeno Portanto, este trabalho tenta auxiliar os
consideraram o movimento corporal como sendo intérpretes a entenderem e notarem a importância
parte integral na performance em suas do gesto nas obras em que executam,
composições. Alguns compositores passaram a principalmente nas obras contemporâneas que
dar tal importância ao gesto dos instrumentistas utilizam gestos desenhados. O gesto é estudado e
que algumas obras só podem ser apreciadas e descrito através das oficinas, de maneira a
compreendidas quando são assistidas em demostrar a importância gestual para a produção
performances ao vivo, nessas obras a música sonora e para a performance visual da obra. No
deixou de ter apenas um caráter auditivo, contexto de obras interetivas, o gesto muitas vezes
terá que ser alterado para que os diferentes
196 SIMPEMUS3
dispositivos e sensores possam captar e transmi- Este conjunto de informações será fornecido de
tirem as informações para os computadores. alguma maneira para o computador digital através
de interfaces apropriadas. Em particular este
trabalho apresenta três processos de interação
Processamento em tempo real
homem-máquina nos quais foram estudados e
O desenvolvimento de novos dispositivos e construidos diferentes modelos de interpretação.
meios eletrônicos nas décadas de 60, 70 e 80 Portanto, podemos dividir o processo em três fases:
possibilitaram uma ampla rede de inter-relações
entre a dimensão instrumental e a
eletroacústica, surgindo a possibilidade da a) captação da informação através de sensores que
a convertem em sinal elétrico (analógico);
interação em tempo real, driblando a questão do
tempo fixo do suporte magnético que se b) conversão do sinal analógico em digital para
interpretação através de software dedicado;
defrontava com a inevitável maleabilidade do
gesto instrumental. É nesse contexto que se c) interpretação e processamento computacional.
inserem as obras que fazem uso de eletrônicos ao
vivo (live-electronics), ou seja, com a Apesar dos sensores terem sido criados para
transformação sonora ao vivo dos sons outras finalidades parafraseando (BOULEZ, 1977),
instrumentais, com a flexibilização da dimensão podem ser utilizados como veículo de comunicação
temporal através da determinação operante do entre instrumentistas e computadores.
intérprete no ato da execução, com a interação
entre instrumento e meios eletrônicos ocorrendo
em tempo real, surge flexibilização do tempo em Princípio de funcionamento e propriedades
duas vertentes: físicas
Intuitivamente o princípio de funcionamento
de um sensor pode ser descrito da seguinte forma:
1.Sons produzidos pelo instrumento sendo
transformados ao vivo; o valor de estado de uma grandeza que caracteriza
um parâmetro medido no meio ambiente é
2.Técnicas em tempo real onde a execução
instrumental leva à produção de estruturas quantificado por outra grandeza física como
sonoras controladas por computadores, que intensidade de luz, calor e som ou grandezas
não necessariamente dependem, direta- mecânicas como posição, velocidade e força. De
mente, dos sons produzidos pelos maneira geral, estes parâmetros são relacionados
instrumentos. com variação temporal, pois a base fundamental da
música é o tempo. Em síntese, uma variação da
O equipamento mais utilizado atualmente grandeza física provoca no sensor uma variação do
para o processamento em tempo real é o seu sinal elétrico de saída.
computador com a utilização de softwares como A partir deste princípio fundamental é
Max/MSP e PD. Esses softwares possibilitam uma possível classificar e caracterizar os sensores
enorme variedade de efeitos timbrísticos, a segundo os seguintes critérios:
utilização de diferentes dispositivos de captação
para a interação com o intérprete e a reprodução faixa operacional (range): faixa de medida em que
de sons ou trechos musicais que podem ser os valores são válidos.
previamente gravados ou captados durante a resolução: menor incremento da grandeza medida
performance da obra. que provoca mudanças na saída do sensor.
sensibilidade: relação entre a variação da
Sensores grandeza de saída (tensão, corrente, etc) e a
variação da grandeza medida.
Para que haja alguma forma de interação
linearidade: se a razão entre as variações das
entre o instrumentista e eletrônicos e, em
grandezas medidas pelas variações das grandezas
particular, o computador, são necessários de saída são constantes, o sensor é linear. Em
dispositivos capazes de capturar variações de instrumentos analógicos, isto corresponde a
parâmetros provocadas pela ação do intérprete. escalas lineares. Uma outra possibilidade, muito
Estes dispositivos são denominados, de forma freqüente, é ter-se uma escala logarítmica, o que
geral, neste trabalho de sensores. De forma indica um sensor usando uma conversão de energia
intuitiva, os sensores coletam informações do exponencial.
meio ambiente sobre parâmetros físicos histerese: fenômeno em que ao se alterar uma
relacionados com o instrumento e ações, como o grandeza num sentido (por exemplo, de um valor
gesto aqui estudado, produzidas pelo intérprete. baixo para um valor alto), a medida segue uma
simpósio de pesquisa em música 2006 197
curva que ao se alterar a mesma grandeza no Sensores de velocidade
sentido contrário, a curva de medida é Radares de ultra-som: baseados no efeito Dopper,
diferente. um sensor de som junto com um emissor de ultra-
exatidão ou erro: diferença absoluta entre o som pode determinar a velocidade de um objeto.
valor medido pelo sensor de uma grandeza
física e o valor real dela.
Interpretação mediada e marimba
relação sinal/ruído: relação entre a potência do
sinal entregue pelo sensor e a potência do Uma das primeiras obras que encontramos no
ruído, isto é, a potência de saída caso a repertório para Marimba e eletrônicos ao vivo é
grandeza medida não troque nenhuma energia Daydreams (1991) de Philippe Boesmans. O
com o sensor. percussionista Robert Esler (2003) comenta as
resposta em freqüência: as freqüências das dificuldades de execução dessa peça naquela época
variações da grandeza medida que o sensor é e até mesmo nos dias atuais no que tange a
capaz de acompanhar. Geralmente, complexidade da tecnologia utilizada através de
representado por um diagrama ganho vs.
inúmeros dispositivos eletrônicos aplicados à
freqüência, diagrama de Bode.
interação entre o intérprete e o computador. A
interface utilizada foram sensores piezoeléctricos
Sensores de presença nas teclas da marimba, a informação recebida era
Nesta classe de sensores as medidas são enviada para um conversor MIDI analógico, e o
relacionadas à interferência que a presença de computador transmitia a informação apropriada
objetos feitos de materiais específicos criam em baseado em uma seqüência de eventos progra-
feixes de luz, como infra-vermelha, campo madas em uma antiga versão do Max.
magnético ou diodos emissores de luz (LEDs).
Microfones e sensores de movimento
Micro-switches: pequenas chaves elétricas. São Algumas peças mais atuais utilizam alguns
colocadas nos pontos onde se deseja
dispositivos mais modernos na interação
estabelecer a presença de algum objeto.
intérprete/computador, um exemplo é A Gravidade
Reed switches: chaves com contatos em
Liberta (2003), para marimba e eletrônicos ao vivo,
material ferro-magnético que se fecham com a
do compositor espanhol Ricardo Climent. Nessa
proximidade de um campo magnético (imã).
obra, o computador reage em tempo real aos
Sensores óticos: a emissão e a repecpção de
estímulos provocados pelo intérprete de forma que
diodos emissores de luz (LEDs) e/ou foto-
transistores é interrompida pela presença de ao tocar o instrumento o computador capta os sons
algum objeto. gerados, através de microfones, e o transmite com
alterações utilizando alguns efeitos como:
duplicação, repetição, distorção e alteração
Sensores de posição timbristica.
De uma forma geral, os sensores de posição Ampliando as idéias reativas encontradas na
também podem ser usados como sensores de peça Daydreams. Além de o intérprete conseguir
presença, embora o contrário seja falso. estabelecer tal interação com o computador
através do ato de tocar, ele também tem a
Sensores potenciométricos: uso de resistências possibilidade de interagir com a maquina e
com um cursor metálico que acompanha a interferir nos sons que estão sendo gerados através
posição de um objeto. de gestos das suas mãos onde estão sensores numa
Encoders: também são chamados de luva que captam esses movimentos e provocam
codificadores, são sensores de posição novos estímulos ao computador fazendo com que
constituídos de um ou mais sensores óticos de ocorram alterações no som que está sendo gerado.
barreira que detectam a passagem de
alterações em uma superfície constante.
Apesar dos diferentes meios tecnológicos de
interação em tempo real utilizados em Daydrems e
Sensores de Ultra-som: usam um emissor de
A Gravidade Liberta, podemos notar que em ambos
ultra-som, tipicamente, um cristal piezo-
elétrico, e um receptor, um microfone. Uma os casos é exigido do intérprete um conhecimento e
onda de som ultra-sônica, acima de 20 kHz é familiarização com a tecnologia utilizada que não
emitida e refletida por um obstáculo, através faz parte da grade curricular convencional. Essas
do cálculo do tempo de ida e volta é possível duas peças demonstram algumas das inúmeras
determinar a presença dos obstáculos e a sua possibilidades de dispositivos de interação entre
posição. intérprete e eletrônicos ao vivo, mas também
198 SIMPEMUS3
Resumo
Buscamos neste artigo descrever o modo como o processo de produção musical em estúdio desenvolveu-se,
paralelamente ao surgimento das diversas tecnologias de gravação, produção e reprodução sonora, até
estabelecer-se nas fases hoje praticadas pela indústria fonográfica. Definimos inicialmente os papéis do
produtor fonográfico e do engenheiro de som, figuras fundamentais neste processo. Descrevemos, em
seguida, cada uma de suas fases: pré-produção, gravação, edição, mixagem e masterização. Explicamos
algumas técnicas de produção atualmente utilizadas, discutindo suas vantagens e desvantagens, levando em
consideração os resultados musicais desejados e a concepção artística e musical que se tem em mente. Para
isto, utilizamos referências diversas, entre elas Bahia (1998a, 1998b), Burgess (2002), Dias (2000), Vidal
(1999), Monteiro (1999) e Martin (2002). Em seguida discutimos algumas importantes questões de natureza
musical, que influenciam o modo como o processo de gravação deve ocorrer, explicando alguns fatores
musicais e estilísticos que devem ser levados em consideração ao se gravar estilos baseados na performance
grupal, como a música clássica e o jazz. Em seguida explicamos alguns procedimentos específicos utilizados
na produção de música eletrônica, usando, entre outras referências, Schrank (2002). Por fim, concluímos com
algumas observações referentes às transformações trazidas pelas diversas tecnologias no processo de
produção sonora, acentuando, especialmente, a fragmentação do processo em várias fases e o surgimento de
inúmeros agentes envolvidos na produção e na tomada de decisões referentes ao trabalho que está sendo
criado. Chamamos a atenção, também para a diversidade de técnicas hoje disponíveis e para a necessidade
de sua adequação à concepção musical que se tem em mente para se chegar a bons resultados.
1 2
“Gravação completa de uma música ou de uma parte de “Gravador que pode gravar e reproduzir mais do que duas
uma música. Equivale à tomada de uma cena de um filme” pistas (tracks) de áudio, simultânea e independentemente”
(OLIVEIRA In. BURGESS, 2002, p. 3 - N. do T.). (RATTON, 2004, p. 101),
simpósio de pesquisa em música 2006 201
artista. Quando é um profissional autônomo, ele suas fases. Projetos de música eletrônica, de
intermédia a relação entre o artista e o música pop, de rock, de jazz ou de música erudita
mercado, ou entre aquele e as gravadoras que necessitam de equipamentos e salas diferenciadas.
possam estar interessadas na sua contratação. Além disso, para um mesmo projeto podem ser
Segundo Dias (2000, p. 92), o produtor precisa utilizados vários estúdios diferentes.
ter “conhecimento musical, do mercado, do A pré-produção deve considerar os recursos
público e, sobretudo, dos detalhes técnicos que orçamentários disponíveis para o, bem como definir
poderão transformar um disco e um artista num os prazos de realização, lançamento, distribuição,
produto musicalmente sofisticado, ou de divulgação e vendas. O mercado trabalha a partir
sucesso”. Além disso, precisa ter habilidades de uma coordenação de diversos setores e
especiais no trato com as pessoas. “O produtor é profissionais, e para que tudo funcione bem, este
o catalisador na química que é coordenar pessoas planejamento deve ser feito e seguido de forma
em torno de um projeto”, afirma Bahia (1998a, mais precisa e objetiva possível.
p. 84).
O produtor trabalha diretamente com o
Gravação
técnico ou engenheiro de som, cujo papel é
traduzir em som as idéias daquele, viabilizando Nessa fase a execução musical será
tecnicamente suas concepções e observando transferida para a máquina de gravação. O mais
sempre a qualidade da gravação. Nas gravadoras importante é fazer uma captação do som com a
independentes e pequenos estúdios é comum o melhor qualidade técnica e musical possível. Bons
produtor e o técnico serem a mesma pessoa. Nas equipamentos, ambiente adequado e um bom
gravadoras e estúdios profissionais, as duas técnico são essenciais. Também é fundamental
funções geralmente são desempenhadas por conseguir que os músicos tenham uma boa
pessoas diferentes, o que libera o produtor para performance, o que se consegue realizando um
se concentrar nos aspectos propriamente artís- bom trabalho de pré-produção, a escolha adequada
ticos da produção. As etapas técnicas – gravação, dos músicos e a criação de um ambiente favorável.
edição, mixagem e masterização – sempre neces- A fase da gravação pode ser realizada, hoje,
sitam do trabalho do engenheiro de som, e um de três maneiras diferentes: ao vivo, em overdub e
mesmo profissional – em princípio – pode ser através de computadores ou seqüenciadores.
responsável por todas as fases, porém o mais Diversos fatores devem ser levados em
comum hoje – pelo alto nível de especialização – consideração ao se optar por uma delas, entre eles
é se utilizar técnicos diferentes para cada uma a instrumentação e os arranjos, a qualidade dos
das fases da produção. ambientes de gravação, a disponibilidade dos
músicos e a própria concepção musical do projeto.
A pré-produção
É a primeira fase da produção. Nela se Gravação ao vivo
desenvolvem todos os processos prévios para a É a forma mais antiga. Nela, os músicos
execução do projeto artístico, que o transfor- tocam juntos ao vivo e grava-se a performance do
marão, enfim, em um produto fonográfico. É grupo. De acordo com Monteiro (1999, p. 89),
uma etapa fundamental para o bom andamento “existem muitas formas de se gravar ao vivo no
de um projeto, pois é aí que o trabalho começa a estúdio, e é importante compreendermos que o
tomar forma. Fazem parte dela: termo ao vivo diz respeito a um grupo de músicos
tocando juntos ao mesmo tempo e, preferen-
A escolha do local de ensaio. Encontros com cialmente, avistando-se uns aos outros”.
compositores. Audição e seleção de repertório. Inicialmente, esse tipo de gravação era
Concepção, criação e desenvolvimento dos realizado com um único microfone captando todo o
arranjos [...]. Escolha do(s) estúdio(s) e do(s)
técnico(s). Levantamento das técnicas ou conjunto. Com o surgimento dos primeiros mixers3
tecnologias a serem empregadas no projeto e da tecnologia estereofônica4 tornou-se possível
[...]. Estimativa mais realista de custos. Esboço utilizar vários microfones ao mesmo tempo, mas,
da estratégia e do projeto de marketing para o
produto (BAHIA, 1988b, p. 80). 3
Mesas de som de múltiplas entradas que permitem o ajuste e o
equilíbrio de várias fontes sonoras (microfones).
Basicamente, um estúdio precisa ter os 4
“Sistema de reprodução sonora em duas vias (canais)
equipamentos, o ambiente e o técnico separadas, posicionadas uma de cada lado do ouvinte, de
adequados à realização do projeto ou de uma de forma a lhe dar a sensação de posicionamento espacial
(linear) do som” (RATTON, 2004, p. 61).
202 SIMPEMUS3
ainda com os músicos tocando juntos e com o O controle individual sobre cada uma das
registro sonoro sendo feito do conjunto. Com o partes gravadas é muito maior e podem-se realizar
surgimento dos gravadores multipistas, tornou-se edições, processamentos e adição de efeitos para
possível a gravação do conjunto ao vivo, com cada trilha considerada individualmente, bem como
cada um dos instrumentos utilizando diferentes substituir partes já gravadas ou adicionar novas
pistas de gravação. Monteiro (1999, p. 90) partes ao arranjo. Atualmente, a gravação em
considera como vantagem desta técnica o fato overdub é a mais utilizada na indústria fonográfica,
de que ela preserva “toda a mágica e especialmente em música pop, rock e música
espontaneidade, além de oferecer durante a popular em geral.
mixagem toda a flexibilidade de que o produtor e Embora ao término da gravação muitas
o engenheiro necessitarão para tratar individual- decisões referentes ao resultado final já tenham
mente a voz e os instrumentos musicais”. Mas sido tomadas, é comum se gravar várias versões de
mesmo com a microfonação múltipla, e um mesmo instrumento ou voz, ou mesmo versões
utilizando-se gravadores multipistas as alternativas de partes instrumentais e vocais
possibilidades de edição ainda eram bastante específicas, que poderão estar ou não presentes na
limitadas, especialmente devido aos edição final.
vazamentos5. Este limite foi superado com o
surgimento do overdub e das gravações ao vivo
realizadas em salas isoladas acusticamente6. Edição
A vantagem da gravação ao vivo é que ela A fase de edição consiste na seleção dos
mantém a interação entre os músicos, o que dá à melhores trechos de cada uma das partes gravadas
música uma atmosfera mais convincente e mais e na montagem desses trechos em uma versão
natural. “Quando tocam juntos no estúdio, final. Pode ser feita após a gravação de cada uma
mesmo sem se verem, os músicos da banda das partes, de um certo número delas ou de todas.
sentem, por empatia, as oscilações dinâmicas e Nesse processo podem ser realizados também
de tempo que acontecem de forma orgânica”, outros procedimentos técnicos, como eliminação de
afirma (2002, p. 87). Também Martin (2002, p. ruídos e vazamentos, pequenas correções de ritmos
340-1) observa que “engenheiros e músicos mais fora do tempo, eliminação de trechos de silêncio e
jovens estão chegando à conclusão de que a utilização de afinadores eletrônicos7. Martin (2002,
qualidade de uma gravação “ao vivo”, com vários p. 342) descreve os benefícios da edição em
instrumentos juntos, acrescenta tensão e multipistas:
emoção ao som, ainda que seja mais difícil lidar
com ela”. procuro guardar todas as execuções que puder. Às
vezes, uma única frase maravilhosa surgirá de uma
interpretação sem graça [...]. Se eu colocar cinco
Gravação em Overdub execuções lado a lado no multipista, poderei então
selecionar a melhor parte de cada execução [...].
Surgiu como uma conseqüência da possibi- Dessa maneira, uma execução completa poderá ser
lidade de se realizar gravações adicionais sobre montada como o produto de vários takes.
um material já gravado. A técnica – criada por
Les Paul, em torno de 1950 – revolucionou o Com o surgimento do áudio digital, foram
processo de produção em estúdio, definindo suas desenvolvidas várias ferramentas que ampliaram
diversas fases. Agora, não era mais necessário muito as possibilidades de edição do material
que os músicos estivessem juntos em um mesmo gravado. Ao final da edição, têm-se as trilhas
ambiente para que a música fosse gravada. definitivas que serão utilizadas na versão final,
“Agora era possível captar múltiplos takes prontas para serem mixadas.
tocados pelos mesmos músicos. Músicos e
instrumentos podiam ser gravados separada-
mente, em momentos diferentes e em ambientes Mixagem
sonoros diferentes” (BURGESS, 2002, p. 3). Segundo Vidal (1999, p. 54), “é o processo
pelo qual se busca o equilíbrio correto e a melhor
5
“Sons indesejáveis que são captados por um microfone. combinação de timbres entre as diferentes fontes
Exemplo: quando um microfone é posicionado em frente a
um instrumento, e capta também o som de outros
sonoras já gravadas”. Na mixagem se realiza o
instrumentos no ambiente, esses outros sons são equilíbrio de volume entre os vários sons,
vazamentos” (RATTON, 2004, p. 150).
6
Esta, uma das técnicas mais interessantes, pois preserva a
7
interação entre os músicos, permitindo, também, edições Processadores em hardware ou software que permitem a
e acréscimos posteriores. afinação de vozes desafinadas.
simpósio de pesquisa em música 2006 203
juntamente com o tratamento e processamento desde os anos 60, o padrão da indústria
individual de cada uma das trilhas, bem como o fonográfica8.
posicionamento de cada som no campo estéreo.
Muitos dos recursos utilizados nesta etapa podem
Masterização
ser empregados na gravação, mas seu uso na
mixagem permite um maior controle – e que se A última fase do processo é a masterização,
teste várias opções – antes de se chegar ao também chamada de pós-produção. É uma das
resultado definitivo. etapas mais técnicas da produção em estúdio, e
consiste na preparação das matrizes que serão
O trabalho de mixagem envolve um nível
enviadas à fábrica. A masterização deve levar em
considerável de conhecimento técnico e domínio
consideração a mídia final na qual a gravação será
no uso de vários equipamentos, processadores,
comercializada – disco de vinil, fita magnética, fita
efeitos, bem como um treinamento auditivo que
digital, CD, DVD –, pois cada uma delas possui
possibilite perceber bem os resultados destes
características específicas.
procedimentos sobre o som. Envolve também
uma boa dose de sensibilidade artística e de Na masterização é definida a ordem das
conhecimento musical, influenciando não apenas músicas, os fade in e fade out9 e o intervalo entre
o aspecto técnico da música como também seus as faixas. São utilizados os mesmos recursos da
aspectos artísticos. Por isso a mixagem deve ser mixagem, só que, agora, ao invés de se trabalhar
acompanhada pelos responsáveis pelas tomadas sobre as trilhas consideradas individualmente,
de decisões referentes ao projeto, de modo a trabalha-se sobre a gravação como um todo. Assim,
imprimir nele a concepção que se tem em busca-se uma homogeneidade de timbre, volume e
mente. sonoridade para todas as faixas.
Muitas vezes, o que se pretende em uma A masterização é também um processo de
mixagem é uma clareza maior na gravação e um finalização artística do trabalho realizado nas fases
alto nível de fidelidade em relação ao som anteriores, e pode alterar radicalmente o resultado
original. Em outros casos, busca-se alterar final. Por isso deve ser acompanhada pelos
intencionalmente este som para que possa se responsáveis pelo projeto. Ao final, tem-se a
adequar a alguma proposta estética os idealiza- matriz, que será enviada para a fábrica para que
dores têm em mente. Na mixagem, é importante seja reproduzida em série.
que todos os elementos estejam a serviço de
uma linguagem expressiva. Comparando a música Algumas considerações referentes ao estilo
com a pintura, Bahia (1988c, p. 34-35) observa musical
que:
Essas cinco fases podem sofrer algumas
variações, especialmente na gravação de música
expressão [...] artística depende muito mais da clássica e jazz. A produção de música eletrônica,
composição como um todo do que do traço ou
por sua especificidade, será tratada adiante.
do realismo objetivo dos detalhes. Assim como
encontramos a genialidade na perfeição No caso da música clássica e outros
matemática de Da Vinci, que retrata as imagens agrupamentos acústicos – big bands, por exemplo –,
com perfeição e fidelidade, também a o produtor tem um papel mais restrito que na
encontramos nos borrões e no movimento dos
traços nervosos e rítmicos de Van Gogh [...] a música pop ou no rock. Se nestes estilos o produtor
genialidade também está presente nas imagens pode ter uma influência bastante grande na
lisérgicas e não lineares de Salvador Dali. concepção artística do trabalho, naqueles ele tem
uma influência bem menor; e seu trabalho consiste
A mixagem envolve uma grande dose de basicamente no registro da performance do músico
criatividade e pressupõe uma coerência com a ou do conjunto.
proposta estética do artista. Mixar uma música Devido ao caráter de espontaneidade pre-
pop, romântica, punk ou eletrônica envolve sente no jazz e à interação entre os músicos
conceitos e procedimentos diferentes. Ao final
da mixagem, a gravação multipistas é reduzida 8
Com o surgimento do sistema Surround os formatos com mais
para o formato final no qual será comercializado, de dois canais chegaram ao mercado, sendo implementados,
geralmente em dois canais (estéreo) que é, por exemplo, nos home theaters.
9
“Ato de se aumentar/diminuir gradativamente o nível (volume)
de um sinal de áudio. Muito usado em mixagens” (RATTON,
2004, p. 62). Os fade in e fade out são também utilizados na
masterização, especialmente nos finais de músicas que
terminam com o desaparecimento do som (fade out).
204 SIMPEMUS3
durante a execução ser fundamental, é qual, diversos loops – ou samples13 – são sobrepostos
recomendável que se grave ao vivo. Um dos mais uns aos outros a fim de realizar toda a parte de base –
importantes produtores de jazz, Orrin Keepnews ou mesmo todas as partes – de uma música. Muitas
(apud SHUKER, 2002, p. 226), observa: “creio que vezes estes loops são extraídos de discos de outros
há casos em que acreditarei na validade de artistas, procedimento bastante usual no rap e na
overdubbing e layering10. Mas também acho que música tecno em geral, sendo a técnica de mais
o uso pode ser exagerado, afetando e reduzindo utilizada pelos produtores DJs.
a espontaneidade, que é uma parte importante Outro procedimento básico na música eletrônica
do jazz”. é a utilização de timbres gerados a partir de
Pode-se considerar que, em qualquer gênero sintetizadores, em hardware ou software. Muitos
musical, quando um produtor quer manter a destes funcionam como instrumentos convencionais,
interação entre os membros de um grupo musical, comandados por teclados ou outros tipos de
deve realizar a gravação ao vivo. Se a intenção é controladores. Neste caso, são gravados como qualquer
captar o ambiente original – uma sala de concertos, outro instrumento acústico ou elétrico, ou seja,
um teatro ou outro –, a gravação deve ser feita no baseados na performance do instrumentista. Podem
local. Se a intenção é captar apenas a interação também ser utilizados através da programação de
entre os músicos, a gravação pode ser feita em salas seqüenciadores ou computadores. A utilização dos
isoladas – preferencialmente mantendo o contato diversos timbres sintéticos, bem como a variação em
visual entre os músicos – ou tratadas com anteparos tempo real de parâmetros de efeitos aplicados sobre
entre os músicos, para minimizar o vazamento. O estes timbres estão entre os principais procedimentos
nível de possibilidades de manipulação do material utilizados na produção de música eletrônica.
na fase da mixagem pode variar, dependendo do Um outro recurso fundamental é a utilização de
modo como é feita a gravação, sendo maior na seqüenciadores e baterias eletrônicas, que podem
gravação em salas isoladas, e menor em ambientes comandar sintetizadores e instrumentos eletrônicos
compartilhados por todos os membros do grupo. diversos. Com estes equipamentos é possível a
realização de efeitos e programações que não podem
A música eletrônica ser realizadas através da performance, ou que, mesmo
que sejam possíveis, estejam fora da possibilidade de
Com o grande desenvolvimento das
execução instrumental do programador.
tecnologias de produção sonora, ocorrido após os
anos 1950, surgiu a música eletrônica, que pode ser O processo de produção da música eletrônica
definida como aquela que se utiliza exclusivamente possui certas peculiaridades, não seguindo as etapas já
– ou em larga escala – de várias destas tecnologias. clássicas da produção musical. De acordo com Schrank
(2002, p. 56):
A música eletrônica nem pode ser
apropriadamente definida como um gênero, pois se
caracteriza mais pelas tecnologias empregadas em O que pode ser observado é que o processo de criação
de uma canção eletrônica reúne edição, gravação e
sua produção do que por considerações de ordem mixagem no mesmo momento [...] sua pós-produção é
estética. Assim, vários estilos musicais, que têm sempre necessária. Ela consiste em abrir a mixagem
muito pouco em comum, são agrupados sob um no computador e alterá-la com efeitos como cortes,
mesmo rótulo por se utilizarem de forma aberta e viradas e filtros. Muitos momentos de uma música
evidente destes recursos. eletrônica são desenvolvidos desta maneira.
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Improvisação & interpretação mediada
Cleber da Silveira Campos, César Adriano Traldi, Jônatas Manzolli
Universidade Estadual de Campinas
Resumo
Descrevemos neste artigo um estudo sobre performance mediada por processos tecnológicos. O objetivo da
pesquisa foi estabelecer um aprofundamento no estudo do processo de composição de obras “semi-abertas”
na qual os participantes buscam novas sonoridades através da interação entre improvisação, instrumentos de
percussão e tratamento computacional em tempo real. A metodologia adotada faz parte da pesquisa de
mestrado em andamento onde são estudadas técnicas de interpretação mediada. O processo de interação
aqui descrito culminou com a composição da obra “Sinergética”, que engendra o conceito de colaboração,
alvo do estudo aqui reportado.
Palavras-Chave: Improvisação, interação, eletrônicos, sinergia, cooperação.
1
Software desenvolvido pelo IRCAM (Institut de Recherche et
Coordination Acoustique/Musique)
2
Instrumento tradicional do norte do Brasil, que produz som
através da fricção de um barbante em um cabo de
madeira, sendo amplificado através de um cilindro de
papelão preso na outra extremidade do barbante.
Figura 1. Imagem do Patch - Max/MSP utilizado na obra.
Metodologia
A metodologia foi dividida em três etapas: A interação entre intérpretes e eletrônicos
nessa obra tem um fluxo recorrente onde os
intérpretes geram sinal para o computador e
1. Criar, selecionar e utilizar os modelos sonoros
que irão formar a estrutura da obra, observando respondem as sonoridades produzidas pelo mesmo.
as diversas características dos instrumentos na Pode-se ampliar este processo, pois há também
execução das oficinas; uma troca de informação entre os dois
2. Fomentar aptidão com as percussionistas, onde a interação entre ambos é
interfaces/processamentos sonoros implicados estimulada pelo processamento sonoro gerado pelo
na mediação dos processos tecnológicos computador.
utilizados;
3. Explanar o escopo das sonoridades desses
instrumentos e adequá-las ao processo de
composição, ampliando assim a paleta tímbrica
utilizada no processo de improvisação.
Figura 2. Ilustração do sistema de interação entre percussão múltipla e computador utilizado.
Agradecimentos
Esta pesquisa tem o apoio da FAPESP e CAPES, através de bolsa de mestrado e do CNPq através de bolsa de
produtividade em pesquisa.
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Implementação de um visualizador algorítmico de notação musical
microtonal para o programa Pure Data
Marcus Alessi Bittencourt
Universidade Estadual de Maringá
Resumo
Desde que foram criados os programas para Computer-Assisted Composition (CAC) e para Digital Signal
Processing em tempo real, sempre se tentou reunir as funcionalidades básicas destes em um só aplicativo,
unindo seus aspectos composicionais e performáticos (PUCKETTE, 2002 e 2004). Esta comunicação apresenta
um software que criei para acrescentar a visualização de dados sonoros em notação musical à funcionalidade
básica do programa Pure Data de Miller Puckette.
Palavras-chave: Composição Musical, Computação Musical, Composição Algorítmica.
NoteViewer Z_visualizer
Este corresponde ao GUI (graphical user Este consiste em um objeto/elemento
interface), a ser invocado de dentro do Pure externo de biblioteca confeccionado para o Pure
Data. Construído em linguagem C com as Data, a ser instanciado dentro de um pd patch. Este
bibliotecas gtk+ 1.2 e Cairo graphics, o GUI é a objeto recebe mensagens (message boxes) de
parte do software que realiza a tarefa de dentro do Pure Data e as repassa interpretadas via
desenhar numa scrolled window a notação UNIX socket para o GUI NoteViewer. As mensagens
elaborada pelo NotatorCore. São também interpretáveis pelo Z_visualizer são:
incluídos no GUI alguns controles clicáveis para
navegação e ajuste da imagem, mais um botão
[connect] : abre uma janela com o
para salvar o arquivo eps fabricado pelo
NoteViewer e estabelece um socket de
NotatorCore. O programa mantém uma matriz de
comunicação com este.
quadras na memória (cada quadra como antes:
tempo, duração, frequência e amplitude de uma
nota-evento) e, cada vez que esta matriz é [disconnect] : fecha o socket de comunicação
alterada, ele aciona o NotatorCore, que então com o GUI e fecha a janela deste.
prepara a notação do novo estado atual desta
matriz de eventos e lê o eps formado
[empty] : esvazia a notação de eventos.
desenhando-o na scrolled window. O NoteViewer
comunica-se com o Pure Data via um UNIX
socket, recebendo uma nota-evento (quadra) de [send COMMAND time dur freq amp], sendo
cada vez, junto com um comando básico, dentre este command ou "add" ou "resetadd",
os seguintes possíveis: "add" que adiciona o segundo explicação acima.
evento à matriz existente, e "resetadd", que zera
a matriz primeiro e depois adiciona a esta o A figura seguinte exemplifica o processo. A
evento. O programa também recebe notação corresponde ao resultado quando do
internamente mais dois comandos: "quit", para acionamento do bang button do pd patch.
desconexão do socket e fechamento de sua
janela, e "empty", para zerar a matriz.
Figura 3. Exemplo de uso do objeto visualizador [Z_visualizer] no PureData, com a janela do GUI NoteViewer.
simpósio de pesquisa em música 2006 215
Possibilidades de Utilização
No melhor da tradição da Computer-
Assisted Composition (CAC) (ver LAURSON 1989,
BARRIÈRE 1990, ASSAYAG et al. 1993 e 1999,
XENAKIS 1971), este software é especialmente
útil para a visualização de dados musicais
gerados por algoritmos e análise FFT. A
visualização pode ser impressa com qualidade Figura 5. Visualização de uma série harmônica de
superior (o eps é também facilmente conversível fundamental C2.
em formato pdf Acrobat Reader por meio do
programa eps2pdf de Sebastian Rahtz), podendo
Considerações finais
assim ser juntada aos materiais de estudo e
esboços do compositor. À quantização rítmica Este programa foi criado inicialmente como
tradicional dos programas de CAC preferiu-se um proof-of-concept primeiro de um desejo que eu
optar por uma notação de tipo proporcional, ainda tenho de tornar o programa OpenMusic do
baseada na progressão natural do tempo. Uma IRCAM obsoleto pela absorção das funções deste ao
"barra-de-compasso" pontilhada em cinza é Pure Data, um programa gratuito, peça de
desenhada a cada segundo para auxílio à leitura. software-livre e amplamente utilizado e apreciado
em todo o mundo. Tendo adquirido em diversas
Sendo que o Pure Data integra
outras ocasiões e projetos de programação muitos
eximiamente as funções de cálculo matemático e
conhecimentos sobre a linguagem postscript, a
de Digital Signal Processing (e em tempo real),
programação de sockets, de GUIs em gtk+ e de
não há quebra entre os processos de cálculo,
externals para Pure Data, o uso deste arsenal
análise, ressíntese e visualização de dados
técnico na confecção de um aplicativo que serviria
musicais. Por exemplo, o notório objeto para
efetivamente como auxílio à pesquisa para criação
análise FFT [fiddle~], de Miller Puckette, pode
sonora foi uma tentação à qual não resisti. No
ser facilmente utilizado para agenciar uma
entanto, apenas o uso em projetos reais de criação
notação musical dinâmica, em tempo real, da
e pesquisa musicais confirmará a utilidade do
evolução do espectro de frequências de um som
aplicativo.
digitalizado:
Quanto a possibilidades futuras de
desenvolvimento deste projeto, a biblioteca Cairo
dá amplas possibilidades de extensão da
visualização à plotagem de ondas sonoras, e ao
desenho e uso de maquetes, no espírito mesmo
original do OpenMusic. Interações via clicagem do
usuário por sobre o GUI e por sobre os elementos
desenhados podem ser facilmente capturáveis e
transferidas de volta ao Pure Data para que sirvam
de controle para alguma tarefa qualquer. Adicionar
Figura 4. Visualização de instantes da análise do
capacidades de processamento de mensagens MIDI
espectro de freqüências de dois gongos javaneses.
também não é difícil. Enfim, há muitas
possibilidades. Que venham as idéias.
Em outra experiência, requisitei a simples
visualização de uma série harmônica:
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ZICARELLI, David. How I learned to love a program that does nothing. Computer Music Journal, v. 26, n. 4,
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Documentação sobre o PureData: http://www.crca.ucsd.edu/~msp/Pd_documentation/index.htm
Miller Puckette: http://crca.ucsd.edu/~msp/
Max/MSP: http://www.cycling74.com/
simpósio de pesquisa em música 2006 217
IRCAM - Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique: http://www.ircam.fr/
jMax: http://freesoftware.ircam.fr/rubrique.php3?id_rubrique=14
OpenMusic: http://freesoftware.ircam.fr/rubrique.php3?id_rubrique=15
Manual de referência: Cairo Graphics API: http://www.cairographics.org/manual/
Tutorial GTK+: http://www.gtk.org/tutorial/
Tutorial UNIX Sockets: http://www.cs.rpi.edu/courses/sysprog/sockets/sock.html/
Guia para o PostScript: http://www.cs.indiana.edu/docproject/programming/postscript/postscript.html/
| simpósio de alunos de graduação e iniciação científica |
Schoenberg e o progresso:
o projeto estético de Arnold Schoenberg segundo Theodor Adorno
Valéria Muelas Bonafé, Marcos Branda Lacerda (orientador)
Universidade de São Paulo
Resumo
A segmentação e a diversidade, que caracterizam o trajeto composicional de Arnold Schoenberg, tornam
bastante complexa a compreensão do seu projeto estético. Em seu texto Schoenberg e o Progresso, de 1941,
Theodor Adorno apresenta uma reflexão crítica a respeito da nova música, mais especificamente sobre
Arnold Schoenberg e a técnica dodecafônica. Obra já amplamente comentada é suporte importante para a
compreensão do pensamento filosófico de Adorno, bem como para a discussão do projeto estético de
Schoenberg. Buscamos neste artigo iluminar alguns pontos que consideramos de grande valia para o
esclarecimento do percurso traçado por Adorno em seu texto, na tentativa de nos aproximar desta
importante leitura do projeto estético de Arnold Schoenberg.
Palavras-chave: estética, música, Theodor Adorno, Arnold Schoenberg, expressividade, Aufklärung.
Schoenberg foi um dos principais protago- Em 1920 começa a compor as Cinco Peças
nistas no desenvolvimento do pensamento para Piano Op. 23 que são publicadas em 1923. Na
musical ocidental no século XX, tendo influen- última dessas cinco peças, a Walzer, apresenta pela
ciado importantes compositores não só da sua primeira vez o seu sistema dodecafônico. Dessa
época, como seus alunos Anton Webern e Alban forma inicia sua terceira fase, caracterizada por
Berg, mas também muitos outros que se composições dodecafônicas, como a Serenata Op.
seguiram, como Pierre Boulez, Karlheinz 24 e a Suíte para Piano Op. 25.
Stockhausen, Henri Pousseur, Luciano Berio, Diferentemente dos períodos anteriores, é
Hans-Joachim Koellreutter, Cláudio Santoro, difícil delimitar quando se encerra essa fase
Willy Corrêa de Oliveira, entre outros. estritamente dodecafônica e se inicia a fase
Além de compositor, se dedicou também às chamada aqui de “híbrida”, onde faz uso ora de
atividades de professor, publicando importantes sistemas seriais, não necessariamente com doze
trabalhos como Harmonia, Fundamentos da sons, e ora retorna ao sistema tonal. Tanto
Composição, Exercícios Preliminares de Leibowitz quando Boulez comentam sobre esse
Contraponto, Funções estruturais da Harmonia, momento coincidir com sua mudança para os
entre outros. Estados Unidos, em 1933:
necessidades na natureza” (FREUD, 1974, p. esclarecimento veio para marcar essa distinção,
111). Para Freud, essa fase científica não chegou separando homem e natureza. Porém, para Adorno,
de fato a se concretizar já que “um pouco da esse processo de racionalização se generaliza numa
crença primitiva na onipotência ainda sobrevive razão instrumental6, que passa a dar conta de
na fé dos homens no poder da mente humana, todas as esferas de valor (incluindo a estética, as
que entra em luta com as leis da realidade” (p. artes e, portanto, também a música) utilizando a
111). submissão através do cálculo, da unificação e da
Portanto, o raciocínio de Adorno parte da atribuição de denominadores comuns ao que, em
idéia de que a tentativa de dominação da principio, não possui nem mesmo semelhanças
natureza e de emancipação (passagem do estado (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 23). É importante
anímico para o estado religioso) leva o notar que, para Adorno, esse processo de submissão
compositor a criar uma linguagem que propicie a só é possível a partir da ruptura entre sujeito e
dominação integral do material (técnica objeto. Para ele, quanto mais o sujeito se afasta de
dodecafônica), mas, tão logo esse processo é um objeto, maior sua possibilidade de dominação
totalizado e levado ao extremo, a linguagem se sobre esse objeto. Porém, como conseqüência, é
torna autônoma e o domínio se inverte: o sujeito também exatamente nesse afastamento que o
sucumbe à linguagem por ele criada (estado sujeito percebe sua alienação. Adorno ainda insiste
religioso). Isso significa dizer que na tentativa de no fato de que, ao submeter o objeto à razão
dominação da natureza, o sujeito subordina o instrumental para poder assim dominá-lo, o sujeito
material a si mesmo, ou seja, à sua razão nega a história. Simplesmente porque, para
matemática. Inversamente, tal tentativa resulta Adorno, as possibilidades de transformação do
num compêndio de regras que degrada o sujeito objeto estão dentro do próprio objeto e não fora
a escravo do material. É dessa forma que Adorno dele.7 Essa reflexão nos permite compreender,
conclui que a razão dodecafônica se inverte em finalmente, porque para Adorno a categoria de
não-razão. Este processo de dominação do historicidade dos materiais, parece orientar grande
material inicialmente “permite ao sujeito parte da crítica contida em Schoenberg e o
romper a barreira da matéria natural em que até Progresso.
agora estava confinada a história da música”, Após essa breve digressão, podemos retornar
mas, como conseqüência, essa “dessensibilização com maior clareza ao ponto onde tínhamos parado:
do material, forçado no cálculo da série, a razão que se inverte em não-razão. Para Adorno,
contribui justamente para esta abstração de má a solução de tal problemática se coloca da mesma
lei, que logo o sujeito sente como auto- forma que em Freud: a necessidade de passagem
alienação” (ADORNO, 2004, p. 96). para o estado científico. Para isso, o compositor ao
identificar essa auto-alienação precisa admitir sua
O preço que os homens pagam pelo aumento pequenez frente à linguagem: é “em meio a seu
de seu poder é a alienação daquilo sobre o que horror pela linguagem musical alienada, que já não
exercem poder. O esclarecimento comporta-se é sua, que o sujeito reconquista sua
com as coisas como o ditador se comporta com autodeterminação [...] A música torna-se
os homens. Este conhece-os na medida em que consciente de si mesma, como é consciente o
pode manipulá-los. O homem da ciência conhecimento” (ADORNO, 2004, p. 96). Essa auto-
conhece as coisas na medida em que pode alienação, resultante da dissolução da identidade
fazê-las (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 24).
entre sujeito e objeto, possibilita, portanto, o
surgimento da obra de arte fragmentada em
É nesse momento que podemos oposição à obra de arte fechada8. A obra de arte
compreender com maior clareza o porquê da
afirmação de Adorno no prefácio a Filosofia da 6
"Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um
Nova Música: “O livro está concebido como uma instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva,
digressão à Dialektik der Aufklaerung” (ADORNO, sublinhada pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência
a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental,
2004, p. 11). Temos aqui, demonstrada na esfera sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a
musical através da análise do projeto estético conteúdos heterônomos. A razão tornou-se algo inteiramente
schoenberguiano, toda a reflexão desenvolvida aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu
papel de domínio dos homens e da natureza tornou-se o único
na Dialética do Esclarecimento. Vale a pena, critério para avaliá-la” (Horkheimer, 2001, p. 29).
portanto, abrir aqui um breve comentário apenas 7
Assim como Marx, Adorno olha o movimento histórico como
para lembrarmos, em linhas gerais, o que estava continuidade e ruptura. Para ambos, o objeto já carrega em si
em jogo em tal reflexão: no mito não havia sua própria negação.
distinção entre cultura e natureza. O 8
O conceito de obra de arte fechada de Adorno se assemelha
com o conceito de obra de arte aurática, de Walter Benjamin.
simpósio de pesquisa em música 2006 223
fechada guardava a identidade entre sujeito e continuamente, com cada modificação de seu
objeto e, com sua natureza intuitiva, tendia à procedimento, o que ele antes possuía” (ADORNO,
aparência. Portanto, “somente a obra de arte 2004, p. 99). É justamente essa capacidade de
transtornada abandona, junto com seu caráter negar continuamente que Adorno reconhece como
compacto, a natureza intuitiva e com ela a característica fundamental do projeto estético de
aparência” (p. 100). Schoenberg, que “durante toda a vida se deleitou
A reconquista da autodeterminação do em cometer heresias contra o ‘estilo’ cuja
sujeito e da autoconsciência musical como implacabilidade ele mesmo criou” (p. 98).
resposta ao horror à alienação é o que Adorno É esse raciocínio que leva Adorno a afirmar
reconhece na última fase de Schoenberg: a que os grandes momentos de Schoenberg são
obrigação do sistema acompanhada da alienação justamente os de sua última fase9, resultantes de
“induz o sujeito a separar-se novamente de seu “aquisições feitas tanto contra a técnica
material, e esta separação constitui a tendência dodecafônica, como em virtude dela [...] Porque o
mais interior do último estilo de Schoenberg [...] espírito que a concebeu continua sendo bastante
Precisamente porque o material, tratado exterior dono de si para continuar pesquisando
e superficialmente, já não lhe diz nada, o ininterruptamente a estrutura de suas espirais,
compositor obriga-o a dizer o que ele quer” (p. parafusos e roscas, como se por fim estivesse
96). disposto a destruir catastroficamente a sua obra-
prima técnica” (p. 61). Para Adorno, é o
esquecimento a força motriz schoenberguiana. O
Considerações finais
esquecimento possibilita a salvaguarda da tradição
que é nada mais do que o “esquecido que está
É essa força de esquecer que Schoenberg tem sempre presente” (p. 100) e simultaneamente
(ADORNO, 2004, p. 99). “deixa valer a potência da imaginação” (p. 100).
Para Adorno, essa força de esquecimento foi
Já no fim do seu artigo, após ter cumprido conservada até a última fase de Schoenberg, onde
sua trajetória de crítica (análise - apontamento e o compositor renegou o que ele próprio havia
localização de contradições - discussão de fundamentado: a fidelidade à onipotência do
possibilidades e soluções), percorrendo toda a material. Adorno vincula intimamente o
obra de Schoenberg, Adorno tece ainda alguns esquecimento à transcendência da subjetividade:
comentários sobre o projeto estético “no esquecimento, a subjetividade transcende
schoenberguiano de maneira geral, fornecendo- incomensuravelmente a coerência e a exatidão da
nos uma peça fundamental para completar a imagem, que consiste na recordação onipresente de
montagem do nosso quebra-cabeça. si mesmo” (p. 100).
Adorno comenta que Schoenberg transitou São essas considerações sobre o
entre obras dodecafônicas (“desde o quinteto de esquecimento - peça fundamental para a
sopros até o Concerto para Violino”), obras compreensão do projeto estético de Schoenberg -
tonais (“algumas obras para coro, a Suíte pra que permitem Adorno afirmar na conclusão do seu
Cordas, o Kol Nidre e a Segunda Sinfonia de artigo que: “como artista, Schoenberg reconquista
Câmara”), obras com fins funcionais (cita a para os homens, através da arte, a liberdade” (p.
Música de acompanhamento para uma cena de 100).
filme e a ópera Von heute auf Morgen),
instrumentações de obras de Bach, Brahms e
Haendel, entre outras coisas, e que isso só foi
possível devido sua capacidade de esquecer: “em
nada se distingue talvez tão radicalmente
Schoenberg de todos os outros compositores
como na capacidade de censurar e negar
Referências
ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004.
_____; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica in Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1).
BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 1995.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Obras psicológicas
completas; v. 13).
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2001.
LEIBOWITZ, René. Schoenberg. São Paulo: Perspectiva, 1981.
SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: UNESP, 1999.
SAFATLE, Vladimir Pinheiro. Curso de estética III: a filosofia da música de Theodor Adorno. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2005.
_____ Depois da culpabilidade: figuras do supereu na sociedade de consumo. In: DUNKER, Christian; AIDAR,
José Luis, Zizek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo: Hacker, 2005.
Razão e nostalgia: o lugar da música no pensamento moderno
Enrique Valarelli Menezes
Universidade de São Paulo
Resumo
A composição musical pode ajudar-nos a esclarecer problemas filosóficos modernos, assim como tais
problemas podem orientar-nos em uma interpretação da história da música. Frente à discussão sobre o lugar
da racionalidade no pensamento ocidental, autores como S. Freud o T.W. Adorno procuraram demonstrar
como os modos de funcionamento da razão ainda ocorrem sobre bases irracionais. Essa dicotomia
razão/irrazão, sempre presente na discussão filosófica da modernidade, pode encontrar uma figuração
interessante no objeto musical, já que a música, na história da estética, sempre foi colocada como a mais
"irracional" das artes, apesar de tecnicamente possuir uma histórica de progressiva racionalização.
Palavras-Chave: Modernidade, racionalidade, nostalgia, composição.
retira da linguagem sua existência orgânica necessária à dura formação do indivíduo moderno,
outrora existente. Depois da separação, a e as estruturas racionais tentam deixar para trás o
vontade de conciliar novamente as coisas em um que há de obscuro do Eu. Contudo, a primazia da
Todo pleno de sentido é sempre nostálgica. "O razão não é total, e o esquecido pela racionalidade
abismo que surgiu com a separação, a filosofia continua existindo, apesar de escondido. O seguinte
enxergou-o na relação entre a intuição e o comentário de Adorno apresenta a música como
conceito e tentou sempre em vão fechá-lo de uma figuração dialética interessante para nosso
novo: aliás, é por essa tentativa que ela é referido problema: "Por seu puro material a música
definida. Na maioria das vezes, porém, ela se é a arte em que os impulsos pré-racionais e
colocou do lado do qual recebia o nome" miméticos se afirmam irredutivelmente, entrando
(ADORNO, 1985, p. 31). ao mesmo tempo em constelação com as
Tal abismo é também o que leva os tendências ao progressivo domínio da natureza e
teóricos a refletirem sobre o estado da música e dos materiais" (ADORNO, 1983, p. 262).
da linguagem. De modo geral, o fazem
comparando o estado de sentido na arte de sua A reconciliação com o Todo
época com o de uma época ideal, na qual o Todo
No história estética do pensamento musical
não se separava em diferentes acontecimentos, e
autônomo, a busca nostálgica de uma reconciliação
assim constituia a unidade anterior ao abismo.
com o Todo é constante. Como consequência de sua
Para o homem que faz essa projeção, separação da palavra, a música revela sua
noutros tempos, a vida e as coisas estavam assemanticidade, sua incapacidade de expressar
impregnadas do sentido que ele não cansa de conceitos fechados, e porisso é tomada muitas
procurar, e parece que esse só se retirou das vezes como inferior às artes racionais, mas também
coisas na medida em que aquele iniciou sua como capaz de comunicar-se diretamente com a
busca: num mundo dotado de mais sentido, essência, subtraindo assim a mediação humana.
anterior ao abismo, não se pensaria na distinção
Para alguns teóricos antigos, as melodias já
entre vida e essência, palavra e coisa, pois
existiam na natureza, plenas de virtuosismo e
seriam conceitos idênticos. Muitos teóricos
beatitude. A representação artística que as
idealizaram, desse modo, a Musiké grega, que
respeitasse estaria de acordo com a essência do
articulava sobretudo música, poesia, dança e
Universo. Boécio, por exemplo, em seu De
mímica como um mesmo acontecimento não
Institutione Musica, do século V, afirma que os
separado em diferentes termos: as partes
movimentos orbitais dos astros estariam vinculados
constituíam um todo orgânico, repletas de um
a uma relação perfeita e bem combinada, e que
sentido prontamente existente. Assim como para
suas diferentes velocidades consistiriam numa
Lucáks em sua Teoria de romance, também para
ordem racional de movimentos. Segundo ele, a
Rousseau e Rameau - em sua concepção
harmonia uniria as diferentes e contrárias potências
iluminista da música - o passado anterior à
dos quatro elementos que, juntos, formariam cada
divisão carregava um sentido imanente: a
corpo e organismo. A música humana é entendida
totalidade estava impressa em cada
como o universo e o si mesmo, já que o corpo
particularidade, e cada particularidade era
humano também é dotado de diferentes
expressão do todo. "Eis porque os tempos
componentes unidos, formando um único organismo
afortunados não têm filosofia, ou, o que dá no
que produz uma consonância. Não é à toa que não
mesmo, todos os homens desse tempo são
se assinavam as composições dessa época – para
filósofos, depositários do objetivo utópico de
eles, a música já estava escrita nas leis naturais,
toda filosofia." (LUKÁCS, 2000, p. 26). O sentido
bastava imitá-las. Era a concretização singularizada
da vida seria imanente, ou seja, o trabalho
- no homem, na matemática, na arte etc. – de um
filosófico dos modernos seria algo tão
Uno essencial e indiviso. Essa concepção de mundo
simplesmente óbvio que não teria razão de ser.
unívoca é que permite para a antiguidade uma
Na Modernidade, a existência de não-sei-o- segura imanência de sentido, sua organicidade
quê obscuro indica que aquela totalidade já não positiva; e para o homem moderno, um lugar para
está mais presente, e também que há anseios do projetar um mundo de sentido ideal.
sujeito burguês que não se ligam a
Batteux, em ensaio de 1747 entitulado Les
representações racionais. Em conseqüência dos
beaux arts réduits à um même principe, trata
progressos de seu racionalismo, o irracional sobra
também da imitação da natureza nas artes, e na
como um escondido esquisito, proibido pela
música inclusive. A arte imita a natureza, diz
razão, e a sensação de perda retorna de modo
Batteux, mas a supera e aperfeiçoa por selecionar
sintomático. O desamparo surge como seqüela
simpósio de pesquisa em música 2006 227
suas melhores características, descartando tudo sentimentos de modo mais completo. Em outras
o que de feio e desagradável possa apresentar a palavras, em sua origem as palavras eram
realidade. Em sua concepção, a poesia é a acentuadas musicalmente, e foi um desafortunado
"linguagem do espírito", enquanto que a música é efeito da civilização que causou a perda da
a "linguagem do coração": aqui já aparece a melodiosidade original e ficaram aptas somente
ruptura irreparável entre razão e sentimento, para expressar racionalizações; por outro lado, os
que se fará cada vez mais profunda. Para sons musicais que em outros tempos constituiam o
Batteux, "o que pertence ao coração entende-se acento da linguagem e representavam sua causa
imediatamente: basta sentir, não é necessário vital tornaram-se isolados e empobrecidos em sua
nomear [...] O coração tem sua própria capacidade expressiva." (FUBINI, 1971, p.39). Para
inteligência independente de palavras." Sem Rousseau, o canto melódico restituiria aquela
necessidade de mediação, a música aparece em unidade perdida. Em sua projeção ideal, "não havia
seu ensaio como uma linguagem universal, livre outra música que a melódica, nem outra melodia
de convenções, reconciliada com o todo através que o som modulado da palavra; os acentos
de sua especificidade. Entretanto ela já aparece formavam o canto, e falava-se tanto mediante os
separada das outras artes, e a possibilidade de sons como pelo ritmo e articulaçoes das vozes".
transcender a mediação e encontrar-se com o Entretanto, essa reconstituição da unidade
Todo só pode se dar através dessa despedaçada só poderia ocorrer na linguagem que
especificidade. não tivesse perdido completamente sua
Rameau, em seu Tratado de harmonia originalidade musical: as orientais e meridionais
reduzida a seu princípio natural, procura reduzir (árabe, persa e sobretudo o italiano). As linguas
a ruptura que começa a surgir entre arte e nórdicas seriam precisas, exatas, duras e
razão. Através de um perfil fisico-matemático articuladas, se prestariam a serem escritas e lidas,
calcado na tradição pitagórica, busca reinserir a falariam à razão, perdendo para esta sua
música em um lugar privilegiado na escala das musicalidade. Harmonia, contraponto, fuga e
artes. "Meu fim é o de restituir à razão os outros procedimentos técnicos seriam invenções
direitos que perdeu no campo musical". Explica a não-naturais, fruto de meras convenções sociais.
harmonia através de um princípio natural e
original, portanto racional e eterno, a teoria dos O sistema tonal: matriz artificial doadora de
harmônicos. A música causa deleite sentido
precisamente porque expressa, com sua
O anseio pela reconciliação com o Todo
harmonia, o divino de ordem universal, a
converte-se não só em nostalgia e desamparo, mas
natureza mesma. Para Rameau, a música
também em arquétipos artificialmente formados,
expressa não só emoções e sentimentos, mas
cuja intenção é semelhante ao da projeção ideal do
também a divina e racional unidade do mundo.
passado: a imanência orgânica do sentido. Em
Entre razão e sentimento, intelecto e
música, o tonalismo é uma forma artificial de
sensibilidade, natureza e lei matemática não há
grande importância. Por ter elaborado uma
nenhum contraste, mas sim uma perfeita
interpretação completa de tal sistema, usaremos
consonância: esses elementos devem, pois,
para o nosso entendimento a reflexão de Arnold
cooperar harmonicamente, num todo parecido
Schoenberg em seu Tratado de harmonia. Sua
com o que imagina Boécio.
primeira afirmação sobre o modo maior, baseada
A idéia de "reconstituir" algo que se perdeu na teoria dos harmônicos, é categórica: "A nossa
também está presente no pensamento de escala maior, a seqüência do-ré-mi-fá-sol-lá-si,
Rousseau. A concepção da Musiké aparece de cujos sons se baseiam nos modos gregos
modo fantasmático, como algo que deve ser eclesiásticos, pode ser explicada como uma
reestabelecido na expressão, tanto para Batteux imitação da natureza." (SCHOENBERG, 2001, p. 61).
e Rameau quanto para Rousseau. Assim, em seu É um raciocínio no qual se podem perceber ecos
Ensaio sobre a origem das linguas, Rousseau pitagóricos da concepção musical.
defende a composição vocal em detrimento à
Assim, "Se a escala é a imitação do som
instrumental: concebe a música únicamente
horizontalmente, em sucessão, os acordes são a
como canto, pois apenas desse modo ela voltaria
imitação vertical, simultânea. A escala é a análise
a encontrar-se em seu estado de natureza
do som, assim como o acorde é a síntese." (p. 67).
original. "Em um passado mítico, quando o
O sistema tonal, entendido nessas bases, seria
homem estava em estado de natureza, música e
então uma representação da natureza na música,
palavra constituiam um nexo indivisível, e o
como acontecia com o pensamento grego.
homem podia expressar suas paixões e
228 SIMPEMUS3
Figura 1
quer fugir, aparece como inevitável e talvez um forma através de uma "variação progressiva" à
pouco paródica; como se não resolver a maneira de Brahms desses "materiais
polarização inicial tirasse dela o sentido, mas impossibilitados" (no caso, a terça, retirada do
também como se usar essa forma cadencial contexto tonal), construindo assim uma peça
tirada de seu contexto tonal pleno causasse uma fechada e coerente, calcada na tradição alemã. A
sensação de saturação. fratura entre eu e mundo verte o que era
Na segunda peça do Opus 19 - já imerso no pressuposto formal em material composicional.
atonalismo - o que vemos é um manuseio da
Figura 2
Quanto às obras de sua fase dodecafônica, música como um entrave, carregado de força
é Pierre Boulez quem nos aponta a continuidade expressiva.1
da mesma antinomia (embora para chegar a Em Gustav Mahler, a situação desmantelada
conclusões diferentes): “A série intervém, em da linguagem aparece juntamente com uma certa
Schoenberg, como um mínimo denominador ausência de identidade. Seu romantismo levado ao
comum para assegurar a unidade semântica da limite faz retornarem à composição temas
obra; mas os elementos da linguagem assim folclóricos, imagens nostalgicas, produtos de
obtidos são organizados por uma retórica
preexistente.” (Boulez, 1981, p.244). Essa 1
Algo parecido acontece em Alban Berg em sua suíte lírica ou no
retórica preexistente é o que entendemos como concerto para violino, onde formas e gestos de extremo
lirismo, típicos do auge romântico do tonalismo, aparecem
aparição fantasmática do tonalismo, cristalizada exagerados e impossibilitados de acontecerem tal como eram,
no caminho das inovações técnicas racionais da por ocasião de estarem ligados não mais a uma gramática
tonal mas sim a seu inverso: o dodecafonismo.
simpósio de pesquisa em música 2006 231
lembranças arcaicas do compositor, misturadas à brasileiras quanto da tradição européia que aqui
erudição histórica tradicional da harmonia e do chegou. Composições como o seu trio para palhetas
contraponto, adquiridas em sua formação. Tal carregam uma certa "esquizofrenia", uma identida-
aproximação entre a música popular e a erudita, de que se confunde entre brasileiro popular e
antes de significarem um retorno à linguagem europeu erudito - definida, aliás, exatamente por
orgânica do passado, atestam, para o autor, a meio desse quiproquó. A melodia de caráter
impossibilidade tanto de uma quanto de outra. O folclórico aparece organicamente misturada a um
terceiro movimento de sua primeira sinfonia, por contraponto de tradição européia em passagens
exemplo, é construído sobre a tradicional canção abruptas, onde o tratamento dado aos materiais
popular "Frère Jacques", retrabalhada ao gosto não é o da tradição tonal, como em Mahler.
do criador. Tradicionalmente em tonalidade Também o desenvolvimento harmônico aparece
maior, Mahler transpõe o tema para a tonalidade impedido em sua acepção tradicional por essa
de ré menor. O tratamento contrapontístico confusão de uma coisa com outra, costurando e
estrutura o movimento, contradizendo a essência tecendo a noção de um sujeito artístico envolto por
popular do tema. duas tradições que pouco têm em comum. Essa
Em nossas terras também surgem saídas maneira de compor o encaixa em um novo modo de
para o problema. Como compositor nascido em aparição da Nova Música, que surge agora sob a
um país no qual a grande música clássica é forma objetiva da ostentação do fracasso tonal por
estrangeira, Heitor Villa-lobos não precisa compositores que, apesar de envolvidos com sua
colocar-se como participante de sua tradição. lógica, estão fora de sua formação tradicional e
Retira material tanto de festas folclóricas histórica.
Referências
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_____ Idéias para a sociologia da música. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 259-268.
_____ Filosofia da nova música; São Paulo: Perspectiva, 1989.
BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz; São Paulo: Perspectiva, 1981.
FUBINI, Enrico. La estética musical del siglo XVIII a nuestros dias; Barcelona: Barral, 1971.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance; São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2000.
SCHOENBERG, Arnold. Harmonia; São Paulo: Editora da UNESP, 2001.
O que é (pode ser) música? uma análise fenomenológica das atitudes de
escuta segundo Pierre Schaeffer
José Estevão Moreira, Rogério Costa (orientador)
Universidade de São Paulo
Resumo
As contribuições de Pierre Schaeffer no campo teorético da música são de grande importância para além
mesmo de seu propósito na música concreta. Schaeffer perscruta por longos caminhos e territórios do
pensamento na tentativa de fundamentar e justificar seus experimentos musicais na rádio francesa – bem
como o seu conceito de objeto sonoro – tecendo relações com diversas disciplinas do conhecimento
(semiótica, fenomenologia, física, psico-acústica...). Deste modo, nos conduz a rigorosos questionamentos
sobre conceitos e posicionamentos acerca da música e da própria concepção do que é (pode ser) música. Tais
reflexões revelam-se muito valiosas quando tomadas como ponto de partida para a pesquisa em diversas
frentes da atividade artístico-musical: desde a composição, tecnologia, filosofia, passando ainda pela
sociologia e educação.
O presente texto – parte resumida de pesquisa de Iniciação Científica – busca, justamente, subsídios para um
exame das intenções e atitudes de escuta na obra de Pierre Schaeffer baseando-se, para tanto, no Tratado
dos Objetos Musicais (1966).
audição, não poderiam ser distraídos pela visão e objetivas e/ou subjetivas. Assim, fundamentar-se-
ainda, teriam um aumento da “curiosidade pelas á, segundo Schaeffer, o mínimo necessário para o
causas” (p. 83). A este respeito, descreve o entendimento do conceito de Objeto Sonoro:
seguinte: “à força de escutar objetos sonoros “tendo em vista que o objeto percebido (como
cujas causas [...] estão mascaradas, somos unidade intencional) corresponde a uma estrutura
induzidos a ouvir estes [...] e interessarmo-nos (da experiência perceptiva), temos sempre a
por objetos. A dissociação da vista e do ouvido tendência de separar esses dois aspectos: o objeto,
favorece aqui outra maneira de escutar: a escuta que estaria de um lado, e a experiência, que
das formas sonoras, sem outro propósito que de estaria do outro: ou ainda, a estrutura percebida e
escutá-las melhor, a fim de poder descrevê-las a atividade constituinte. Sabemos que isso de fato
através de uma análise do conteúdo de nossas já significa arruinar a noção de objeto, esquecer a
percepções” (p. 85). autenticidade da percepção. Mas tomar consciência
A esta escuta Schaeffer refere-se como de tal experiência é assumir um novo objeto de
Acusmática, ou seja, uma projeção sonora cuja pensamento, é exercer um certo recuo sobre a
procedência não é visível; um claro exemplo é do percepção para melhor examinar o mecanismo. Não
alto-falante, com o qual se pode ouvir qualquer é mais ouvir, é ouvir-se ouvindo. Por sua vez, esse
som que seja (re)produzido sem ter a referência mecanismo, se chego a analisá-lo, é em virtude de
visual do causador do som ouvido, que pode ser uma estrutura da consciência reflexiva, que por sua
originado de uma fonte que não se encontra no vez me permanece oculta... E assim por diante, ao
mesmo local onde é percebida - podendo infinito” (p. 255).
proceder de alguma gravação ou transmissão.
O Registro é de grande importância no As Quatro Escutas
sistema de Schaeffer, pois além de fundamental Schaeffer apresenta no Tratado, reflexões
para o propósito da música concreta, e de sua sobre: (1) o “fazer e o ouvir”, (2) objetos e
escuta acusmática, “a gravação auxilia de duas estruturas, (3) análise física do som e (4) problemas
maneiras: ao esgotar esta curiosidade – [das filosóficos e semânticos2. Esta seqüência relaciona-
causas de um som] – nos impõe pouco a pouco o se com a segmentação proposta por Schaeffer aos
objeto sonoro com uma percepção digna de ser processos da escuta, para uma análise sistemática
observada por si mesma; por outro lado, em do fenômeno sonoro/musical. Estas quatro escutas
virtude de escutas mais atentas e refinadas, ela são partes integrantes na análise aprofundada do
nos revela progressivamente a riqueza desta conceito de objeto sonoro, no concernente à
percepção” (p. 85). “O gravador permite fixar a percepção, tendo em vista que o próprio conceito
atenção sobre um som em si mesmo, sobre sua de objeto sonoro (e/ou musical) disposto no
matéria e a sua forma” (p. 41). Tratado não pode prescindir de uma escuta ativa,
Ainda na definição do conceito de objeto, participativa, que se posiciona em relação ao
o Tratado também aponta alguns equívocos acontecimento sonoro.
quanto ao que não é objeto sonoro: (a) o objeto A seguir, enumeramos os conceitos das quatro
sonoro não é o instrumento que tocou; (b) não é escutas (p. 89-110), sobre os quais Schaeffer erige
a fita magnética - ou seja, não é o meio material o seu sistema analítico: (1) escutar, (2) ouvir, (3)
de armazenamento; (c) os mesmos poucos entender e (4) compreender.
centímetros de fita magnética podem conter
Escutar - é perceber pelo ouvido, atitude
uma quantidade de objetos sonoros diferentes -
passiva. Para ilustrar, imagine-se uma “paisagem
conclusão decorrente da anterior; (d) o objeto
sonora” (SCHAFER, 1991) onde se escutem diversos
sonoro não é um estado de alma - ou seja, não é
acontecimentos, porém sem que se preste atenção
subjetivo, particular, incomunicável e sim
a qualquer deles, de maneira que se configure um
objetivo, descritivo, analisável (p. 87-88).
“background” sonoro sem qualquer “objeto”
Porém, estes dados preliminares são específico em destaque. Pode-se pensar, em uma
apenas introdutórios visto que, no cidade, o barulho de diversos acontecimentos
desenvolvimento de seu sistema, Schaeffer simultâneos como: sons de pessoas, buzinas,
promove uma “escuta da escuta”, ou seja, motores, helicópteros, aviões, sirenes, etc. Deste
analisa os processos pelos quais os objetos modo, escuta-se o que se chega à percepção, sem a
sonoros são percebidos e, também, em um outro
momento, põe em questão problema do
julgamento das impressões obtidas no
2
conhecimento perceptivo, que podem resultar Encontramos esta organização implícita na apresentação do
tratado (p. 19-20).
simpósio de pesquisa em música 2006 235
focalização de qualquer elemento constituinte Aplicando-se o esquema à música, em uma
da “cena”. situação onde se propaga o som de uma invenção
Ouvir - é o direcionamento da escuta à para piano de Bach, por exemplo, em uma situação
fonte de um som. A partir do exemplo dado, um de escuta acusmática: (1) Escuta-se um som –
determinado som pode ser “buscado”, focalizado constata-se assim, uma audição, ou seja, uma não
- tal qual a visão, que pode mirar determinadas surdez fisiológica. (2) Ao dirigir-se a atenção para
características de uma imagem - seja pelo desejo este som, ouve-se o som. (3) Três pessoas com
de ouvir-se determinado objeto ou ainda pela experiências bastante distintas – um técnico de
surpresa de seu aparecimento, caso seja estúdio, um músico e um amador – estão ouvindo o
repentino. mesmo som, ou seja, o mesmo objeto, e retirando
cada qual, impressões diferentes que dependem de
Entender - exame dos dados obtidos pela
intenções de escutas diferentes: “estas
escuta. Após a escuta ativa, que seleciona um
qualificações variam, como a própria escuta, em
acontecimento, a natureza do som é
função de cada experiência anterior e de cada
identificada. Prosseguindo a contextualização
curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que
anterior, um som que se apresenta na forma de
torna possível essa multiplicidade de aspectos
um “zigue-zague” que vai do grave ao agudo,
qualificados do objeto, subsiste sob a forma de uma
“escorregando” (utilizando termos musicais
auréola de percepções, por assim dizer, às quais as
tradicionais, um glissando) e faz o caminho
qualificações explícitas fazem implicitamente
inverso, insistentemente repetindo este
referência. Assim, quando eu concentro minha
processo. Entende-se então o som de uma sirene.
percepção qualificada sobre o detalhe de uma casa
Compreender - é o campo semântico, dos - janela, escultura sobre a porta - nem por isso a
significados atribuídos a um objeto sonoro ou casa deixa de estar presente e eu vejo essa janela
musical. Concluindo o exemplo, as informações ou essa escultura como pertencentes a ela” (p.
obtidas no Entender, acerca dos sons escutados e 101).
ouvidos, dão indícios para a compreensão de que
O técnico atenta, por exemplo, para as
o som ouvido – isto é o insistente glissando do
qualidades físicas do som (timbre, intensidade,
agudo para o grave e vice-versa – é uma sirene e
reverberação), segundo seu ofício; o músico analisa
que, dependendo da contexto/cultura na qual
a qualidade da interpretação e do som pianístico,
estão inseridos o ouvinte e a sirene, tem
não necessariamente como o técnico; o amador
diferentes significados: pode, por exemplo,
“aprecia” a música de acordo com seu gosto. (4)
representar uma ambulância e, por
Cada ouvinte é levado a compreender diferentes
conseqüência, suscitar angústia pelo
significados, também de acordo com os seus
entendimento de que uma vida está em jogo;
referenciais: o técnico de som pode deduzir que a
pode representar, em uma fábrica, a hora de
sala não é apropriada para gravação, ou mesmo que
intervalo para almoço; ou ainda, um toque de
o instrumento não se encontra em boas condições,
recolher. Ou seja, compreender é relativo aos
ou ao contrário, ambos são ótimos; o músico pode
significados agregados a determinados sons e é,
ponderar acerca da qualidade do pianista, bem
por conta disto, cultural.
como o estilo de sua escola de interpretação e seu
Com a delimitação de processos da escuta, nome; o amador pode referir-se a obra como
Pierre Schaeffer tem a intenção de “descrever os dramática, tensa e, supondo que não o saiba de
objetivos que correspondem a funções início, realizar classificações estilísticas - no caso,
específicas da escuta” (p. 97). Encontra-se no música barroca - e ainda a obra - invenção x - e o
Tratado o seguinte quadro: nome do compositor - Bach.
Embora o quadro acima apresente
seqüências, Schaeffer adverte no Tratado que “não
se deve inferir das divisões e numerações nem uma
cronologia nem uma lógica, a que se devesse
conformar o nosso mecanismo perceptivo” (p. 101).
Isso se verifica como um “artifício de exposição,
que com certeza não implica nenhuma sucessão
temporal, de fato, na própria experiência
perceptiva. A análise da percepção efetua-se
Figura 1
instantaneamente, colocando em jogo os quatro
segmentos ao mesmo tempo” (p. 103).
236 SIMPEMUS3
3. Entender 2. Ouvir 2 e3
- para mim - para mim percepções brutas, Experiência
esboços do objeto Interior
percepções qualificadas
- diante de mim Escuta Prática
- diante de mim
objeto sonoro qualificado objeto sonoro bruto
Seleção de certos aspectos articulares do som Recepção do som
Qualificação do Objeto Identificação do objeto
3 e 4: 1 e 2:
ABSTRATO CONCRETO
Escuta Cultural Escuta Natural
Figura 1
Schaeffer aponta que “o músico muitas ruídos, ficam rejeitados ao exterior desse domínio”
vezes ignora até que ponto a sua escuta prática (p. 110). Esta predisposição se vale também para as
opera um deslocamento e uma seleção dos demais qualidades de ouvintes contribuindo para
significados, criando um domínio reservado de uma dificuldade de compreensão encontrada pela
objetos ditos musicais. Os “não-valores”, ditos
simpósio de pesquisa em música 2006 237
música experimental, ou qualquer música da percepção com relação as sensações, visto que
estranha a uma determinada prática/cultura. estas impressões subjetivas se dão através de
Fenomenologia aparatos nervosos, componentes de um sistema
nervoso que por sua vez, não obstante, faz parte
Novamente, reportamo-nos ao início do
deste mundo, da matéria. À crença da ciência nos
Tratado a fim de levantar noções introdutórias
sentidos, Husserl denomina uma fé ingênua: a
fornecidas pelo autor acerca dos objetos
époché – ‘colocação entre parênteses’, ‘espanto’ –
sonoros: “na realidade, nós não percebemos os
seria justamente a tentativa de não subjugar aos
objetos, mas sim as estruturas que os incorporam
ditames dos sentidos e das sensações, a
[...]. Dos objetos às estruturas, e das estruturas
averiguação do objeto; tão pouco seria uma espécie
à linguagem, há, portanto, uma cadeia contínua
de dúvida metódica cartesiana explicando que “pôr
– tanto menos discernível quanto mais nos é
em dúvida a existência do mundo exterior, é ainda
familiar, espontânea – à qual estamos inteira-
tomar posição com relação a ele, substituir por
mente condicionados” (p. 40). A partir deste
outra tese, a tese de sua existência. [Assim] a
momento a atenção se volta para o objeto em si
époché é a abstenção de toda tese” (p. 241-242).
mesmo – após a fundamentação do processo da
“Se deixo de identificar-me com a minha
escuta – e deste modo deparamo-nos com as
experiência perceptiva, que me apresenta um
questões da percepção. Assim, “a noção de
objeto transcendente, torno-me capaz de
objeto sonoro, aparentemente tão simples,
surpreender essa experiência, bem como o objeto
obriga bem depressa a apelar para a teoria do
que ela me fornece” (p. 242).
conhecimento, e para as relações do homem com
o mundo” (p. 237), visto que, no campo da Este problema se constata quando, por
percepção todo julgamento transita no limiar exemplo, diferentes ouvintes ouvem o mesmo som
entre o subjetivo e o objetivo – o conhecimento e cada um compreende aquilo que for imanente às
de um fenômeno se dá pela interação destes dois suas experiências particulares, fazendo com que a
planos – sendo assim um profícuo campo para a percepção e definição do objeto sonoro em si
Fenomenologia (ORLANDI, 1980). mesmo não seja possível. Por exemplo, um músico
e um técnico de estúdio ouvem a “nota” lá do
Schaeffer recorre, então, à Lógica formal e
diapasão que pode ser classificada como uma onda
transcendental, onde Edmund Husserl afirma: “o
de 440 Hz. Neste caso, as duas classificações –
objeto é o pólo de identidade imanente às
“nota lá” e “440 Hz” – podem estar conjugadas;
vivências particulares e, todavia, transcendente
entretanto, podem estar completamente alijadas,
na identidade que ultrapassa essas vivências
pois que, para a música tradicional, este som já
particulares” (apud SCHAEFFER, 1993, p. 238):
carrega consigo o arquétipo de “nota musical”
podendo inclusive ser ouvido em oitavas diferentes
Essas vivências particulares são as múltiplas e instrumentos diferentes. Já a onda 440 do
impressões visuais, auditivas, táteis, que se diapasão, uma onda com timbre específico – sendo
sucedem num fluxo incessante, através das
o timbre resultado de infra-alterações da
quais eu tendo para certo objeto, eu o ‘viso’, e
os diversos modos segundo os quais eu me
freqüência – que não ocorre em outros instrumentos
relaciono com esse objeto: percepção, e/ou outra oitava. “Mas em que ele se distingue do
lembrança, desejo, imaginação etc (p. 238). sinal físico? [...] Ocorre que o sinal físico, na
realidade, não é ‘sonoro’, se por tal entendermos o
que é captado pelo ouvido. Ele é o objeto da física
Porém, “o objeto transcende não apenas
dos meios elásticos. A sua definição relaciona-se
os diversos momentos da minha experiência
com as normas e com o sistema de referência
individual, mas o conjunto dessa experiência
desta, sendo tal ciência, como toda física,
individual: ele se coloca em um mundo que eu
fundamentada na percepção de certas grandezas:
reconheço como existente para todos” (p. 239).
no caso presente, deslocamentos, velocidades,
Esta transcendência do objeto, então, permite
pressões” (p. 245). Nos dois casos não há objeto
uma imensa possibilidade de pontos de vista
sonoro, pois ambas concepções estão imbuídas de
distintos (subjetivo) – e não o esgotam. “A
significados e o mesmo acontecimento então opera
consciência do ‘mundo objetivo’ passa pela
diferentes valores significantes (p. 243). Deste
consciência do outro como sujeito, a supõe como
modo,
prévia” (p. 240).
Ainda sustentando-se em Husserl, Pierre
Schaeffer alude ao conceito de “époché”, quanto mais hábil me tornei para interpretar
índices sonoros, tanto maior a minha dificuldade
quando pondera sobre a limitação dos sentidos e
de entender objetos. Quanto mais fácil
238 SIMPEMUS3
compreender uma linguagem, tanto mais difícil Esta premissa norteou nosso olhar por dentre
ouví-la [grifos nossos] [...] e antes que um novo as reflexões de Pierre Schaeffer para que enfim
treinamento me seja possível e que possa ser pudéssemos chegar, não a uma conclusão, a uma
elaborado um outro sistema de referências,
resposta, porém sim, a outro ponto deveras
desta vez apropriado ao objeto sonoro, eu
complicado. Um questionamento filosófico, no qual
deveria libertar-me do condicionamento criado
por meus hábitos anteriores, passar pela prova a conclusão dele extraída se faz determinante para
do époché. Não se trata de forma alguma de um as condutas e posturas em relação ao fazer musical
retorno à natureza. Nada nos é mais ‘natural’ e para as atitudes e intenções de escuta, atuando
do que obedecer a um condicionamento. Trata- as primeiras sobre as últimas, e vice-versa, numa
se de um esforço ‘antinatural’ para perceber relação de reciprocidade. Contudo, tal
aquilo que antes determinava a consciência questionamento somente se faz possível e legítimo,
inadvertidamente (p. 246). na medida em que se submeta a um exercício
intencionado de afastamento da própria realidade,
Conclusão do xeque às noções mesmas, de uma audição da
escuta para, ecoando em seguida, em tom de
Conforme frisado na introdução pode-se
descoberta, ouvir-se: “O que é (pode ser) música?”.
constatar a polivalência dos escritos de Pierre
Schaeffer, que se apresentam de uma forma
abrangente pelas searas da música, lingüística, ________________
semiótica, filosofia, sociologia, educação e 3
Encontramos em "http://pt.wikipedia.org/wiki/alteridade
antropologia. Buscou-se aqui a realização de uma citação de François Laplantine “A experiência da alteridade (e a
série de apontamentos de passagens do Tratado elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem
teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar
dos Objetos Musicais de Pierre Schaeffer nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que
concernentes às questões da escuta onde, apesar consideramos ‘evidente’. Aos poucos, notamos que o menor dos
de recortados do texto original – como procede, nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações
inclusive, a própria música concreta – tais afetivas) não tem realmente nada de ‘natural’. Começamos,
então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós
excertos atendem a uma perspectiva animada mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa
por um espírito de alteridade1. cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras
culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma
cultura possível entre tantas outras, mas não a única”.
Referências
ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1989.
ORLANDI, Luís. Voz do intervalo: introdução ao estado do problema da linguagem na obra de Merleau-Ponty,
São Paulo: Ática, 1980.
SCHAFER, Murray. Afinação do mundo, São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
SCHAEFFER Pierre. Tratado dos objetos musicais. Brasília: Editora da UnB, 1993.
Comentários sobre o choro atual
Adriano Maraucci Réa, Acácio Tadeu de Camargo Piedade (orientador)
Universidade do Estado de Santa Catarina
Resumo
O presente artigo pretende discutir aspectos do mundo do choro enfocando especialmente as novas
tendências e suas tensões em relação ao choro mais tradicional e ao jazz brasileiro. Apresentaremos uma
visão geral da história do choro e comentaremos alguns momentos cruciais da trajetória deste gênero,
destacando aspectos da construção da identidade no mundo do choro.
Quando se pensa em choro, logo vêm à transformações pelo choro. Neste período de
cabeça violões, cavaquinho, pandeiro e um passagem entre os séculos XIX e XX, formaram-se
solista na flauta, bandolim ou saxofone: ou seja, na cidade do Rio de Janeiro grupos como o “Choro
lembra-se logo da sonoridade do chamado Carioca” (considerado um dos primeiros), que se
“regional”, que tem uma presença muito forte tornaram muito populares em festas caseiras,
na música brasileira desde o início do século XX. transformando-se em um marco inicial do gênero.
Essa formação remete imediatamente a melodias Gostaríamos de ressaltar uma característica
conhecidas por muitos brasileiros, sendo logo importante da musicalidade chorística que surge
relacionadas a um Brasil antigo. Esta atmosfera nesta época, relacionada a seu caráter virtuosís-
nostálgica característica do choro relaciona-se a tico. Segundo DINIZ (2003), geralmente o único
um conjunto de símbolos que se associaram ao músico que sabia ler partituras, nos regionais, era o
gênero, mas também deve-se ao fato do choro flautista, que era o solista e o responsável pela
ser, realmente, um gênero antigo. qualidade e formação musical dos acompanhantes,
A historiografia da música brasileira1 pois os desafiava ritmicamente, tentando “quebrá-
mostra que o choro surgiu no final do século XIX, los” com frases modificadas, a fim de testar e
como uma das conseqüências artísticas de uma treinar o acompanhamento. Esta característica se
série de fatos importantes. Com a abertura dos manteve durante várias épocas e, pode-se dizer, é
portos no inicio do século XIX, o acesso à cultura recorrente até hoje não mais como um desafio do
européia - suas orquestras, partituras e danças flautista para os outros músicos, mas como um
de salão - passam a ser mais intensos. Das caráter “brincante” e ao mesmo tempo virtuo-
práticas musicais que se consolidaram ao longo sístico, que aliás está presente não só no choro,
do século XVIII e XIX vem o chamado “trio de pau mas em outros gêneros da música brasileira.
e corda” (cavaquinho, violão e flauta, que na Dentre os nomes da história do choro,
época era de madeira de ébano). Desta formação Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth ocupam
surge o choro, que inicialmente designava esta lugar importante: foram compositores pianistas
própria formação instrumental. Somente após contemporâneos deste momento inicial do choro,
este momento inicial é que a palavra choro co-responsáveis pela sua fixação enquanto gênero
passou a designar uma certa forma de tocar as através de músicas que se tornaram famosas na
músicas européias em voga: o choro passou a ser época e o são até os dias de hoje, tais como
entendido como uma interpretação peculiar das Atraente, Corta-Jaca, Apanhei-te Cavaquinho,
melodias já consagradas nos salões de dança Brejeiro e Odeon. Ambos compuseram peças
europeus, que passaram a ser executadas pelos escritas para o piano que tem importante papel na
conjuntos de choro, ao invés de orquestra de música brasileira. Nazareth era um pianista virtuoso
baile, e isto de forma mais sincopada e ao e compunha peças consideradas tecnicamente
mesmo tempo mais leve e brincalhona. Um difíceis de se tocar na época. Seu repertório
exemplo disto é a polca, que havia chegado da representa, de certa forma, a autonomia do choro
Europa em meados do século XIX e que virou uma em relação à música erudita e, ao mesmo tempo,
verdadeira febre, tendo logo sofrido estas sua interligação. Sua música somente foi bem
interpretada somente décadas depois, por músicos
1
As considerações históricas nesta parte inicial do artigo como Garoto, Jacob do Bandolim e Radamés
estão embasadas em CAZES (1999), TINHORÃO (1991), Gnatalli que, por sua vez, representam uma
BESSA (2005) e REILY (2000). geração do choro que já incorporara a importância
240 SIMPEMUS3
consolidando elementos a partir dos quais se exemplo: um exímio clarinetista que estudou no
apoiará toda uma tradição estética nos anos mundo das bandas e depois foi aprender choro e
seguintes. jazz, acabando por desenvolver uma sonoridade
Passados mais ou menos 30 anos dessa muito pessoal e um estilo reconhecido. Mais
prática estandardizada, no final dos anos 50 o atualmente, Hamilton de Hollanda é um nome de
choro iniciou seu período de “adormecimento”. destaque: bandolinista virtuose, usa elementos de
Relacionam-se a este fenômeno fatos como a improvisação jazzística e tem um repertório
globalização cultural e a crise do modernismo abrangente, mantendo-se fiel a uma identidade de
(PIEDADE, 2003, 2005), a chegada poderosa da chorão, talvez devido à formação do grupo que o
televisão e o aumento na velocidade de acompanha e ao uso do bandolim, instrumento tão
transferência da informação, e as fortes ondas típico solista de choro pelo menos após Jacob do
do estrangeiro, como os movimentos hippie, o Bandolim. Depois dos instrumentistas fenomenais
rock’n’roll, enfim, há vários fatores que da “época de ouro”, esses jovens músicos da nova
causaram esta retração não apenas no choro, geração queriam tocar choro, mas ao seu modo.
mas que sufocaram também o samba e o bolero8. Muitos deles também tocaram e gravaram bossa
nova instrumental e ouviram gravações dos
A Bossa Nova conquistava, nestes anos
jazzistas norte-americanos, deixando-se influenciar
turbulentos, seu espaço internacional através de
e trazendo novidades formais para o choro, como o
um hibridismo rítmico-harmônico, que tem um
formato chorus de improvisação, aproximando-se
pé na história do samba e do choro. Relutante
do universo da música instrumental (ver BASTOS
aos modismos e às “modernidades”, os chorões,
PIEDADE, 2005).
que, na sua maioria, eram senhores de meia
idade, iniciam um processo de resistência Surgem a partir de meados dos anos 80
através de um verdadeiro culto da tradição, grupos que começam a arranjar temas clássicos do
marcada por uma existência familiar e isolada. A choro, isto através de substituições harmônicas e
partir destes guetos familiares, os chorões novos caminhos contrapontísticos, menos lineares e
trabalharam para divulgar sua música e conseguir tonais (ZAGURY, 2005), além de utilizarem, na
mais adeptos, como uma família que busca instrumentação, baixo elétrico, guitarra e bateria,
aumentar sua rede de laços sociais. Mesmo esta como o grupo “Nó em pingo d’água”, (iniciado em
postura de conservação e reprodução, caracterís- 1978).
tica deste período, impregnou o mundo do choro Durante os anos 90, o Brasil fez parte da onda
e está presente na constituição de sua imagem mundial de valorização das identidades tradições
hoje, fazendo parte de uma espécie de portfólio locais, após a desterritorialização e a fragmentação
que os músicos devem compartilhar para se identitária causada pela globalização (ver
enquadrarem na categoria de chorão, embora APPADURAI, 1994; HARVEY, 1993; ORTIZ, 1988).
hoje o cenário esteja bem mais aberto que Jovens músicos buscaram as fontes da musicalidade
naqueles duros anos. brasileira nos repertórios que estavam abandonados
Os músicos da geração que surgiu a partir pela mídia e pelos estudos musicais: gêneros
dos anos 80 tiveram mais acesso a uma formação nordestinos como frevo, baião e maracatú, gêneros
musical mais ampla, através do contato e estudo afro-bahianos como afoxé e samba-de-roda, entre
de outras músicas. Por exemplo, o grande muitos outros. Surgiram várias fusões, como o
violonista Raphael Rabello, talvez o maior Mangue Beat, e grupos que procuram executar os
virtuose desta geração, estudou e gravou música repertórios “autênticos” da música brasileira, como
erudita, teve intensos contatos com o violonista o choro. Curiosamente, o conservadorismo chorís-
Paco de Lucia e a música flamenca. Nos anos 80 tico encontrou, neste olhar “recuperador”, uma
e 90, os músicos de choro não tinham tanta força para o restabelecimento de seu tempo mítico,
resistência ao externo, aceitavam mais algumas anterior às experimentações e aberturas dos anos
mudanças e aglutinavam às suas interpretações 80: o velho choro consolidado na época de
novas particularidades. Paulo Moura é outro Pixinguinha voltou com tudo, e a sonoridade do
“regional” volta a agitar a cultura brasileira, e
8
Pode-se dizer que o samba “não morreu”, ao contrário, cresce o interesse dos jovens por este rico mundo
também renasceu por volta dos anos 80, com o pagode. conservado, “autenticamente” brasileiro.
Este gênero, também associado ao tropo “fundo de
quintal”, veio a fortalecer-se enormemente no início do Os grupos de choro mais recentes, como o
século XXI, dominando a mídia e atraindo o público jovem. “Trio Madeira Brasil”, parecem preservar apenas a
Já o bolero, que foi tão apreciado e que desempenhou um
importante papel no samba-canção e na música brasileira instrumentação como legado do “choro-raiz”, pois
em geral (ver ARAÚJO, 1999) parece que ainda não tocam músicas de muitos compositores não
“acordou” do choque dos anos 60. considerados chorões. Já o grupo carioca “Tira a
simpósio de pesquisa em música 2006 243
Poeira”, realiza a provocação de seu nome com o fortalecimento identitário, que retomou uma
executando choros clássicos com a sonoridade certa tradição conservadora do choro, e com estas
clássica, porém como inovações musicais no fronteiras nubladas que dividem os gêneros. Uma
âmbito das improvisações e na inserção de forma de detectar estas tensões é a realização de
seções novas. Muitos violonistas atuais tocam etnografia e análise do discurso nativo.
choro com viola caipira, pandeiristas acompa- O choro atual saiu de seus obscuros anos 60
nham cantores de MPB e tocam em trios de jazz; e 70 com uma nova força: o interesse jovem. Da
hoje se toca jazz com instrumentos do choro, resistência e da estratégia de sobrevivência
música erudita na viola, etc. Alguns instru- baseada em núcleos familiares à conquista de um
mentistas atuais, como Hamilton de Holanda, público fiel, à idealização do choro como patri-
Rogério Caetano e Gabriel Grossi, tiveram sua mônio musical do Brasil, ao surgimento de
iniciação musical no choro, mas depois gravadoras exclusivas (como a carioca “Biscoito
expandiram seus repertórios: é possível vê-los Fino”), bem como de uma fatia do mercado
acompanhando velhos mestres do choro, mas editorial (os songbooks e métodos). Atravessador de
também tocando com ícones da musica séculos, o choro passou da condição de trio de pau
instrumental brasileira, como Hermeto Paschoal e corda para um modo de tocar, saiu do quintal,
e Guinga (CAMPOS, 2005). Esta circulação é consolidou-se na musicalidade brasileira, resistiu às
característica da época atual, embora haja forças inimigas no seio da família e, hoje, está
muitas tensões entre estes dois gêneros: o choro sendo estudado, tocado e apreciado por um público
e a música instrumental. Esta tensão tem a ver crescente.
Referências
APPADURAI, Arjun. Disjunção e diferença na economia cultural global. In: FEATHERSTONE, Mike (org.),
Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 311-27.
ARAÚJO, Samuel. The politics of passion: the impact of bolero on Brazilian musical expressions. In: Yearbook
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Acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano:
três níveis de desconfiguração
Tadeu Paccola Moreno
Universidade Federal do Paraná
Resumo
O Canto Gregoriano conceitua-se, via de regra, como prática puramente vocal. No entanto não são raros os
exemplos em que se alia à melodia um acompanhamento instrumental, tradicionalmente organístico. O
presente artigo tem como objetivo lançar um breve olhar sobre tal acompanhamento, enfatizando a
desconfiguração de três das principais características sonoras canto em questão causada por tal prática.
O Canto Gregoriano pode ser brevemente conceituado como prática monódica, modal e ritmicamente ligado
ao texto. Incluir a essa realidade um acompanhamento instrumental desfaz a monodia em hetero ou
polifonia, desconfigura o modalismo com a inclusão, nos exemplos abordados, de tríades e traz um problema
ao ritmo que depende da palavra. Sendo o Canto Gregoriano uma prática musical de função definida, tais
desconfigurações poderiam ser obstáculos em sua inclusão no rito do qual faz parte. Assim faz-se necessário
um estudo sobre a posição da Igreja quanto à inclusão de instrumentos em seu culto, o que pode ser
realizado por meio de documentos eclesiásticos. Enfim será abordado um exemplo ilustrativo dos níveis
propostos de desconfiguração presentes no acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano por meio de
uma partitura para órgão do século XVIII.
volta da qual a melodia parece circular".3 Sua necessidade de desviarem o número crescente de
qualidade modal também determina que "não se convertidos de tudo que os ligava ao seu passado
admite a nota sensível" (MARIE-ROSE). É comum pagão” (GROUT). A permissão dos instrumentos
que se atribua os nomes dos modos gregos, como musicais é atribuída ao papa Vitalino (657-672),
dórico ou mixolídio, aos modos utilizados no mas "por uma razão ou outra, as referências de
Canto Gregoriano. Porém tal atribuição ignora as órgãos presentes ou usados em igrejas antes do séc.
qualidades específicas - a nota de recitação, por IX definitivamente não são confiáveis".5 Pode-se
exemplo - dos modos em questão e, portanto, observar a admissão gradativa dos instrumentos no
não é completamente fiel. rito católico à medida que o passado pagão torna-
No que diz respeito à duração das notas no se mais distante. Ao observar-se os documentos
Canto Gregoriano, considera-se que "o ritmo eclesiásticos do séc. XX pode-se notar tal mudança
gregoriano difere do ritmo da música moderna" comparando a simples permissão dos instrumentos
(MARIE-ROSE). Tratar do ritmo no canto grego- em 1903 à sua recomendação e elogio no Concílio
riano é uma tarefa árdua, uma vez que, segundo Vaticano II, sessenta anos depois.6
CARDINE, "mais que sobre o ritmo, os teóricos Quando se trata de Canto Gregoriano é
modernos discutiram sobre a modalidade do comum tomá-lo como prática puramente vocal,
Canto Gregoriano". Comenta o autor que "deve- visto que a organização deste repertório, atribuída
se procurar a base do ritmo gregoriano na ao Papa Gregório Magno, deu-se numa época em
estreita ligação que une as melodias ao texto que não se admitiam instrumentos na Igreja. No
latino". Esta abordagem é argumentada pelo fato decorrer de doze séculos, porém, a Igreja Católica
de que em notações antigas mesmas inflexões mudou e também mudaram as práticas musicais,
melódicas têm grafias diferenciadas dependendo como se vê na carta encíclica sobre música sacra
da palavra em que são empregadas, o que faz do publicada pelo Papa Pio XII: "O próprio canto coral,
ritmo de tais inflexões dependente do texto. que, pelo nome do seu restaurador, São Gregório,
MARIE-ROSE comenta que, equivocadamente, começou a chamar-se “Gregoriano”, a começar dos
houve tentativas de se colocar um metro no séculos VIII e IX, em quase todas as regiões da
ritmo gregoriano, ou seja, notá-lo num sistema Europa cristã, adquiriu novo esplendor, com o
proporcional, próprio da música moderna. acompanhamento do instrumento musical chamado
Abordar influências da música moderna no 'órgão'".
cantochão como equívocos ilustra o fato de que Apesar do "novo esplendor" trazido pelo
"os admiradores do dialeto gregoriano do órgão, trata-se de um elemento externo à liturgia
cantochão encontram nele uma perfeição e, portanto, sempre foi abordado com certo
clássica e pureza de estilo".4 o que mostra que cuidado pelos documentos oficiais. "Como o canto
qualquer das características acima mencionadas deve ter sempre o foco principal, o órgão e outros
que se modifique poderia desconfigurar em instrumentos devem meramente sustentá-lo e
algum grau a "pureza de estilo" da prática do nunca oprimi-lo" (PAPA PIO X).
Canto Gregoriano. Tal desconfiguração torna Tal tipo de recomendação encontra-se
necessário um resgate de documentos eclesiás- presente nos documentos eclesiásticos desde o séc.
ticos que tratam do assunto, uma vez que a XVIII, na encíclica Annus Qui, do papa Bento XIV
concepção original desta prática designa que ela que autoriza os instrumentos "contanto que estes
seja desacompanhada. venham a ser usados exclusivamente para sustentar
o canto da palavra" (PAPA BENTO XIV). A encíclica
O tratamento da Igreja sobre os instrumentos Instrutio de Musica Sacra et Liturgia, de 1958,
musicais - documentos eclesiásticos. também traz limitações ao uso dos instrumentos,
determinando que se leve em consideração o
Sabe-se que a presença dos instrumentos
momento da missa, o dia singular e o tempo
musicais na Igreja Cristã foi primariamente
litúrgico. Tal constante retorno à instrução de que
banida visto que “certos aspectos da vida
musical antiga [anterior à igreja cristã] foram
liminarmente rejeitados [...] por que sentiram a 5
Ibid., verbete ‘Organ’.
6
"Embora a música própria à Igreja seja puramente vocal,
3
Ibid., verbete ‘Plainchant’. O conceito de tenor, ou corda música com o acompanhamento do órgão é também
de recitação, é mais aprofundado por CARDINE, que a permitida". - PAPA PIO X
define como "grau da escala modal sobre o qual se situa a
salmodia quando, durante a missa ou ofício, uma antífona "Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos,
é acompanhada de versículos salmódicos." instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às
cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar
4
Ibid., verbete ‘Gregorian chant’. poderosamente o espírito para Deus. " PAPA PAULO VI.
simpósio de pesquisa em música 2006 247
a prática instrumental não ultrapasse sua função caráter musical, não textual. A notação da clave e
pode ser um forte indício de que os das notas é própria da escrita neumática, porém a
instrumentistas tiveram alguma tendência a linha melódica se distribui num pentagrama, não
exageros dentro do rito litúrgico. num tetragrama. O uso da sensível (dó sustenido) e
a freqüência do si bemol indicam uma influência do
tonalismo na escolha dos acordes - incluindo, por
Acompanhamento instrumental do Canto
exemplo, a dominante com sétima no baixo. Assim,
Gregoriano
neste exemplo, temos elementos próprios do
Mesmo como parte oficial das possibili- cantochão - a melodia e a notação - e elementos
dades de música sacra católica, a execução de que podem ser relacionados às melodias
acompanhamento instrumental ao Canto acompanhadas da época - acordes próprios do
Gregoriano ainda hoje não encontrou um padrão tonalismo, pentagrama e barras de compasso.
definido. Uma possibilidade de tal instabilidade
dá-se no fato de que aplicar um acompanha-
mento polifônico ou heterofônico a uma prática
concebida como monódica traz a necessidade de
uma escolha entre características de uma ou de
outra criando, ao final das contas, um híbrido
entre as duas práticas.7
O modalismo da prática gregoriana, como
visto, não prevê acontecimentos sonoros
distintos da monodia vocal. Portanto qualquer
acompanhamento instrumental já é estranho à
natureza sonora em que o repertório foi
Exemplo 1
concebido. Assim não há como encontrar na
estruturação gregoriana subsídios para decisões
acerca de quais intervalos harmônicos executar A escritura de uma linha grave sobre a qual se
no acompanhamento. erguem acordes em notação numérica pode ser
Foi com base nas melodias do cantochão comparada a um baixo cifrado de uma melodia
que a heterofonia, sob a forma de organum, acompanhada. A diferença é que melodia acompa-
começou a existir (KIEFER, 1968). Assim pode-se nhada é um procedimento musical baseado numa
atestar que uma possibilidade coerente de estrutura de duração proporcional das notas. A
acompanhar o cantochão seria recorrer à prática determinação de durações de dobro, metade ou
que derivou diretamente dele, sobrepondo sob e terça parte de um pulso fixo foi uma ferramenta
sobre as notas da melodia intervalos de quarta, importante para que se pudessem unir conco-
quinta e oitava. Porém vê-se que é comum, mitantemente na cultura ocidental aconteci-
como por exemplo no Mosteiro de São Bento de mentos musicais distintos.8 Talvez tenha sido por
São Paulo e na Igreja da Ordem em Curitiba, o tal razão que o autor preferiu utilizar-se da nota-
uso de um acompanhamento triádico, baseado ção neumática, que não tem nenhum vínculo com
em acordes maiores e menores formados com tal proporcionalidade de duração. Há edições em
base no modo do canto executado. uso hoje de cantochão transcrito para a notação
moderna, com colcheias e semínimas, como no
Para ilustrar esta prática de acompa-
exemplo a seguir:
nhamento triádico pode-se recorrer a um exem-
plo: o Acompanhamento de Hinos, Seqüências e
Cantochão - organizado no séc. XVIII para se
executar em Portugal, nas missas e ofícios da
Basílica de Nossa Senhora e Santo Antonio (Ex.
1).
Numa breve descrição do que se dá no
exemplo abaixo, temos a melodia a ser acompa-
nhada transcrita para clave de fá. Para cada nota
Exemplo 2
há um ou dois acordes escritos em cifras numé-
ricas. As barras de compasso separam frases de
8
Pode-se aqui traçar um paralelo entre o exemplo abordado e os
7
BORBA conceitua hibridismo como “associação de elementos recitativos operísticos, por exemplo, mas não é o objetivo
de procedências distintas”. deste breve artigo aprofundar-se em tal questão.
248 SIMPEMUS3
Os signos utilizados no exemplo são Nota-se que no terceiro acorde temos o que
próprios da notação proporcional e são dificil- seria a subdominante da tonalidade de ré menor e,
mente dissociáveis da idéia de dobro e metade, o a partir dela, traça-se uma cadência da forma como
que pode levar o executante a cantá-las, mesmo ocorre na música tonal. Há também um retardo
se tratanto de cantochão, tendendo a seguir um utilizado no penúltimo acorde. Tais elementos
pulso fixo. mostram uma forte influência da música tonal que
Pode-se encontrar na mesma edição do se praticava na época, mesmo assim não se pode
exemplo 1 a seguinte instrução: "Recomenda-se falar de música tonal baseada numa melodia de
muito aos organistas que em todo o cantochão cantochão, uma vez que se mantém o ritmo ligado
que acompanharem levantem sempre as mãos do à palavra.
órgão nas vírgulas ou pausas que encontrarem Assim vê-se como a textura monofônica, o
pelo meio das missas, hinos ou qualquer outra modalismo e o ritmo dependente do texto são
cantoria para irem juntos e conformes com o modificados pela adição de um acompanhamento
coro" (SANTO ANTONIO, 1761). O que é outro instrumental ao Canto Gregoriano. Tais descon-
indício que a notação neumática tenha sido figurações podem se estender além do exemplo
escolhida para que os organistas sigam o mesmo abordado a toda proposta similar. Assim abre-se um
ritmo dos cantores nas músicas, e não o caminho possível de estudo das práticas de inclusão
contrário. de instrumentos no Canto Gregoriano, investigação
Sobrepondo os acordes descritos à linha que se pretende fazer futuramente. Outro aspecto
melódica do "baixo cifrado" (a própria melodia) que se deve ponderar é o destaque do canto sobre
tem-se uma possibilidade da música proposta: os instrumentos, uma vez que, como trabalhado no
início do artigo, os instrumentos dentro da igreja
são permitidos sob a condição de não oprimirem o
texto a ser cantado.
Exemplo 3
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No Mosteiro de S. Vicente de Fora, 1761.
Código Morse em música
Samantha Batista
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Há anos a música vem sendo relacionada a códigos e padrões rítmicos, utilizados em alguns casos para
criptografar mensagens em composições.
O Código Morse é muito popular entre radioamadores pela facilidade de transmissão de mensagens a longa
distância com equipamentos simples e com baixo sinal tanto de transmissão quanto de recepção. É
representado através de marcas (ou tons) curtas e longas, tendo nas marcas curtas (também chamadas de
“ponto”) a base rítmica da transmissão de uma mensagem.
Associando o código Morse à música podemos tanto analisar quanto compor peças apenas transformando o
alfabeto Morse em padrões rítmicos.
Muitos compositores já se utilizaram deste recurso para ocultar mensagens em músicas (tanto no meio
erudito quanto no popular), em músicas para jogos, filmes e programas de tv.
Palavras-chave: Código Morse, padrão rítmico, mensagem oculta.
Código Morse
Criado por Samuel Morse em 1835, o código A .- T - Ponto [.] .-.-.-
Morse é um sistema que se utiliza de durações B -... U ..- Vírgula [,] --..--
temporais para representar letras, números e Dois pontos ou sinal
C -.-. V ...- ---...
pontuações. Foi desenvolvido para transmitir de divisão [:]
mensagens a longa distância através do telégrafo Ponto de
elétrico. A idéia inicial era que o código D -.. W .-- interrogação ou sinal ..--..
de repetição [?]
transmitisse apenas números e as mensagens
E . X -..- Apóstrofo ['] .----.
fossem traduzidas com a ajuda de um dicionário;
Traço de união ou
mais tarde sofreu uma expansão para que F ..-. Y -.-- -....-
sinal de subtração [-]
representasse também letras e pontuações. O
Barra de fração ou
aparelho receptor da mensagem criava G --. Z --..
sinal de divisão [/]
-..-.
marcações em uma fita de papel que depois
Parêntese à esquerda
eram traduzidas em mensagens. Ao mover-se H .... É ..-.. -.--.
[(]
dentro e fora da posição de marcação da fita, o Parêntese à direita
aparelho receptor da mensagem fazia o som de I .. -.--.-
[)]
um “click” que foi aprendido pelos operadores Aspas (antes e após
J .--- 1 .---- .-..-.
como “início” e “fim” das marcas, tornando o as palavras) [“ ”]
uso da fita de papel desnecessário. O código K -.- 2 ..--- Sinal de igual [=] -...-
morse foi muito utilizado também no rádio e por L .-.. 3 ...-- Compreendido ...-.
radioamadores, já que necessitava de equipa- M -- 4 ....- Erro ........
mentos simples, largura de banda menor (entre Cruz ou sinal de
N -. 5 ..... .-.-.
100 e 150 Hz) que comunicações vocais (4000 Hz) adição [+]
e por poder ser utilizado em lugares com O --- 6 -.... transmita -.-
bastante ruído e com baixo sinal de recepção. P .--. 7 --... espera .-...
Em 1848, Friedrich Clemes Gerke criou o código Q --.- 8 ---.. Final de transmissão ...-.-
morse internacional moderno. Desde então o Sinal de início de
código não havia sofrido alterações, até o dia R .-. 9 ----. -.-.-
transmissão
vinte e quatro de maio de dois mil e quatro Sinal de
S ... 0 ----- -..-
(24/05/2004) – sessenta anos depois da primeira multiplicação
transmissão telegráfica – quando foi adicionado o
caractere “@” (arroba) como um “AC” juntos –
Tabela 1
primeira adição ao código desde a I Guerra
Mundial.
Código Morse e Ritmo
O código morse é representado por marcas –
ou tons, se for transmitido pelo rádio – curtas
250 SIMPEMUS3
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Acesso em 9 de setembro de 2006.
As obras de Alberto Nepomuceno compostas entre 1890 e 1894
Igor Simões Correia, Norton Dudeque (orientador)
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Esta pesquisa apresenta a análise de algumas das obras de Alberto Nepomuceno (1864–1920) compostas
entre 1890 e 1894, período em que esteve estudando na Alemanha, mais especificamente em Berlin e
Viena. Durante este período, Nepomuceno esteve primeiramente na Hochschule fur Musik, onde ingressou
em 1890 e estudou com Heinrich Herzogenberg (1843–1900), e entre 1892-94 no Sternsches Konservatorium
der Musik. Alberto Nepomuceno é reconhecido como tendo sofrido grande influência da música de Richard
Wagner (1813–1883) e da escola germânica, no entanto outras influências podem ser notadas na sua obra
além da esfera wagneriana. Uma destas refere-se ao que Nepomuceno observou e aprendeu em seus
estudos em Berlim e Viena. Mais precisamente, Nepomuceno pode ter sido também influenciado pela
música de Johannes Brahms (1833–1897), uma suposição que vai de encontro à convicção geral de que
Wagner exerceu a maior influência sobre a sua obra. Outras implicações desta hipótese podem ser
inferidas: um dos métodos de composição preferidos por Brahms e observado por Arnold Schoenberg (1874–
1951) em "Brahms The Progressive" (1947) faz referência ao conceito de variação progressiva o qual
tipificou grande parte da produção composicional de Brahms. Nepomuceno possivelmente pode ter
adotado esta técnica de composição em algumas das obras selecionadas para esta pesquisa. Este talvez
seja o principal ponto de interesse para este trabalho, ou seja, a de demonstrar que Nepomuceno adotou
uma técnica composicional típica da produção brahmsiana em detrimento da crença geral de que Wagner
sempre foi o modelo inspirador para a sua música.
Romântico, representada por Richard Wagner Romântico. A última sinfonia de Brahms havia sido
(1813–1883), sendo as duas derivadas de Ludwig composta apenas nove anos antes da sinfonia de
Beethoven (1770-1827). Este tipo de classificação Nepomuceno. Estas obras orquestrais de Brahms,
sempre levanta problemas de generalização das assim como a do compositor brasileiro, são clássicas
obras dos compositores envolvidos, evidente que em vários aspectos, como por exemplo, todas elas
estas eram apenas tendências da época e um estão dentro do arquétipo de quatro movimentos, e
trabalho poderia ter características de ambas. cada qual possui uma forma reconhecível dentro
No entanto pode-se dizer que determinado dos padrões clássicos; o uso de técnicas de contra-
compositor ou obra pode ter sido influenciado ponto e de desenvolvimento motívico; e o fato de
mais ou menos por uma escola definida (GROUT, não desfrutarem de um programa, como nas sinfo-
1980, p. 594). Tendo como professor de nias de Hector Berlioz, ou de um nome sugestivo
composição, a partir de 1890, Herzogenberg, para as peças (a sinfonia de Alberto Nepomuceno é
estudando no conservatório onde a tradição conhecida apenas como Sinfonia em Sol menor).
pedagógica de A. B. Marx ainda era forte, é bem Apesar destas características clássicas, os
possível que as obras de Nepomuceno durante dois compositores apresentam também um típico
este período tenham adquirido um caráter vocabulário musical romântico: as harmonias idio-
germânico específico, o caráter da música de maticamente românticas; a utilização de uma or-
Brahms e consequentemente de Beethoven. questra e de um colorido orquestral maior1; a or-
ganização das tonalidades entre os movimentos2; e
Discussão a construção da forma a partir de pequenos mo-
O primeiro sinal de um Nepomuceno mais tivos, através de variação progressiva, um roman-
clássico é a escolha da forma para sua expressão tismo neste caso, mais característico de Brahms.
musical, dentre as peças selecionadas para esta A utilização de sentenças na apresentação de
pesquisa pode-se notar uma sonata para piano e temas foi uma técnica empregada por Beethoven e
uma sinfonia nos moldes de Beethoven e Brahms, Brahms em muitos de seus trabalhos, Alberto
além da própria Suíte Antiga Op.11 contendo Nepomuceno também fez uso desta técnica em
peças estilizadas do período barroco, período o algumas de suas composições, os temas principais dos
qual Brahms tinha imensa afinidade, sendo até primeiros movimentos da Sinfonia em Sol menor, do
colecionador de música antiga. Estas peças já Quarteto n. 3 e da Sonata para Piano em Fá menor são
apontam para uma direção diferente da tomada alguns dos exemplos. Estas sentenças, codificadas por
por Richard Wagner, quem sempre tentou criar a Schoenberg, geralmente aparecem na música clássica
obra de arte do futuro, de quem as obras mais como partes de grandes formas, na configuração de
importantes foram óperas e quem era contra a uma apresentação e um pequeno desenvolvimento da
música absoluta, aquela feita por Brahms, por idéia musical completa. (SCHOENBERG, 1996, p. 48).
estar longe de suas origens, a fala e a dança. Uma sentença é geralmente constituída de oito
(DAHLHAUS; DEATHRIDGE, 1988, p. 85). Segundo compassos, trazendo em seus dois primeiros, o que
Grout, a história da sinfonia no século XIX tem pode ser chamado de idéia básica, esta idéia traz em si
dois caminhos, os dois derivados das obras o material fundamental do tema, em geral alguns
sinfônicas de Beethoven. Sendo a quarta, a motivos. Logo após segue uma repetição da idéia
sétima e a oitava sinfonias a inspiração para os básica, que não precisa ser literal, e que, segundo
compositores de música pura, ou música absoluta William Caplin, deve manter um prolongamento da
nos padrões da música do período clássico. O tônica principal da peça. Podemos chamar estes quatro
caminho distinto tem como maiores modelos a compassos então de frase de apresentação, já que
quinta, a sexta e a nona sinfonias de Beethoven. agora foi “apresentada” ao ouvinte a idéia básica. Para
Apesar desta diferenciação, é muito explicar a frase de continuação um exemplo clássico de
problemática a delimitação de fronteiras ou o sentença na música de Beethoven pode servir para um
emprego de títulos incondicionais a estes melhor entendimento:
compositores. Apesar disto, depois de 1860, a
história criou duas escolas composicionais opos- 1
Este colorido difere dos “coloristas” a quem Rimsky-Korsakov
tas, o Classicismo Romântico, tendo como maior se refere, Delibes, Bizet, e Borodin sendo alguns deles, para
ele, a música de Brahms não se voltava para as cores, assim
expoente Brahms, e um tipo especial de como esta sinfonia de Nepomuceno. (RIMSKY-KORSAKOV,
radicalismo Romântico, sendo Richard Wagner 1964, p. 2)
(1813-1883) o principal representante. (GROUT, 2
Na primeira sinfonia de Brahms temos o seguinte esquema de
1980, p. 593-594). tonalidades entre movimentos: Dó menor; Mi maior; Láb e Si
maior; Dó menor e maior. Na sinfonia de Alberto Nepomuceno
A sinfonia de Alberto Nepomuceno o esquema segue sendo: Sol menor; Dó maior; Sib Maior e Ré#
pertence aos moldes e à escola do Classicismo menor; Sol menor e maior.
simpósio de pesquisa em música 2006 255
1
Seus dois compassos da primeira parte da continuação estão
defasados com os compassos realmente escritos, ou seja,
compassos absolutos.
Ex. 3. Nepomuceno, Sonata para piano Op. 9 – comp. 1-11
A continuação da sonata também traz relaxamento que havia sido previamente negado.
semelhanças e diferenças entre essas três peças (MORGAN, 2003, p.15-16).
discutidas. Em Beethoven logo após o término da
sentença a música segue para a transição em Nepomuceno, assim como Brahms, também
direção ao segundo grupo temático fazendo uso oferece certo “conforto” depois da brusca parada
dos motivos a e b, buscando um afastamento da de sua sentença na dominante, o ritmo e a melodia
tônica1. No quarteto de Brahms, porém, sofrem uma aumentação, o que ajuda a refletir
acontece de diferente maneira, sobre uma uma sensação de relaxamento, uma melodia que
intervenção entre a primeira sentença do anda mais devagar. No entanto, todo o resto dos
quarteto e a transição para o segundo tema fatores parece elevar a tensão proporcionada no
Robert P. Morgan afirma que: final da sentença, como por exemplo, a harmonia,
que continua a mudar duas vezes por compasso
A fraca, quase seqüencial extensão que segue (apesar de agora apresentar uma nota pedal). No
(compassos 9 e 10) mina ainda mais a chegada término da sentença não há um desvio para a
da dominante, convertendo-a em um mero subdominante, portanto, a função desta
caminho até a subdominante. [...] O modelo intervenção se difere um pouco da de Brahms.
de Beethoven repensado por Brahms, é crucial
Nepomuceno prolonga a dominante fazendo um
para o entendimento da extensão que ocorre
modelo e seqüência na mão esquerda, seu modelo e
do compasso 11 ao 22, a qual adquire um
propósito lírico, e de conforto claro, como uma seqüência passa pelas tonalidades de Dó maior, Mib
resposta a este começo incomum e intenso. Maior e Sol maior, ou seja, as três notas que
Movendo-se devagar, regularmente de dois em formam a tríade da dominante menor de Fá menor,
dois compassos (até o compasso 19), mesmo tonalidade principal da peça. Além disso, a melodia
com uma textura contrapontística, o trecho é “comprimida” e “expandida” durante o trecho e
carrega a música do desvio em direção à é deslocada do modelo e seqüência encontrado no
subdominante, para a dominante, provendo, baixo, criando assim um tipo de síncope estrutural
assim, um balanço tonal e formal. Aqui está o
(Ex. 4).
Há claramente uma ambigüidade funcional
nesta intervenção de Nepomuceno, pois à primeira
1
No entanto, em Beethoven, o afastamento da tônica pode vista parece ser uma seção aonde a tensão irá, e
começar já na apresentação do tema, como na sonata Op.
53, “Waldstein”. (ROSEN, 1998, p. 68).
precisa, ser diluída, no entanto, as técnicas usadas
simpósio de pesquisa em música 2006 259
pelo compositor apresentam um acúmulo de aparecem depois de um corte brusco na sentença,
energia. Depois da intervenção a peça apre- e a diferença funcional entre as mesmas, enquanto
senta, finalmente, a transição para o segundo uma tem função, além do relaxamento, de retorno
grupo temático, com uma utilização clara do à harmonia de dominante, a outra sublinha a
tema b. harmonia de dominante e o relaxamento acontece
O mais interessante aqui é a similaridade apenas superficialmente.
estrutural entre a intervenção no Quarteto de
Brahms e a Sonata de Nepomuceno, que
Sobre a escrita para piano, Nepomuceno piano, mas para todos os outros meios musicais.
também apresenta algumas características da Podem ser observadas também, todas estas
escrita de Brahms para piano. A escrita pianística qualidades na música para piano de Alberto
do compositor alemão era mais densa que a de Nepomuceno; o exemplo 4 demonstra as melodias
Beethoven, em suas peças utilizava figuração de dobradas em oitava, com utilização de terças e
acordes quebrados, ocorria o freqüente uso sextas ocasionais; o exemplo 5 demonstra o
dobra da melodia em oitavas, terças e ou sextas deslocamento métrico característico de Brahms e o
e, além disso, apreciava muito o efeito do exemplo 6 apresenta este deslocamento empregado
deslocamento métrico. Essa última característica por Nepomuceno:
era muito marcante em sua música, não só para
260 SIMPEMUS3
Das quatro variações seguintes apenas uma O primeiro movimento do quarteto, porém,
não apresenta um estilo contrapontístico tão parece ser de longe o mais bem elaborado, mesmo
presente, a segunda. A primeira é um pequeno assim, ainda fica aquém do primeiro movimento de
fugato, a terceira apresenta um pequeno jogo sua Sinfonia composta três anos mais tarde, onde
canônico e a quarta, e última, é um retorno ao as técnicas composicionais aprendidas por
estilo coral. Por estas características, este movi- Nepomuceno parecem ser usadas em função da
mento principalmente, tem um caráter de exer- música e não o contrário.
cício de contraponto, onde existe uma preocu- Por motivo de comparação, serão mostrados
pação quase que única com esta técnica. Os o primeiro tema do primeiro movimento do
outros movimentos também apresentam caracte- quarteto n. 3 e o primeiro tema do segundo
rísticas contrapontísticas fortes, principalmente movimento da sinfonia, respectivamente:
o quarto movimento que começa como uma fuga.
melhor do que a outra pode abrir espaço para mui- pensamentos, adaptando-os e utilizando-os em sua
tas discussões, mas pode-se dizer que as técnicas música.
aprendidas por Nepomuceno foram mais bem No entanto, uma questão preocupante é a
empregadas nas obras que se aproximam do fim sua maneira como alguns compositores são rotulados, como
estadia em Berlim. já foi dito, a música do Nepomuceno deste período não
é uma cópia da música nem de Beethoven e nem de
Conclusão Brahms, algumas das idéias destes compositores foram
adaptadas aos propósitos de Nepomuceno. Além disso,
A principal conclusão alcançada nesta
quatro anos é um período muito curto na vida de um
pesquisa é que os processos composicionais de
compositor, não se pode analisar toda sua obra
Alberto Nepomuceno se assemelham bastante aos
baseado apenas nessas peças compostas durante este
processos utilizados por Beethoven e Brahms,
período. Por isso, pode-se dizer que este é um trabalho
porém, esses processos são utilizados de maneira
que está apenas começando, pois Alberto Nepomuceno
bastante pessoal, sem que se torne uma mera cópia
viveu até 1920 e depois de 1894 sabe-se que sua
da música destes dois compositores alemães. Seria
música tomou outras direções, e seria necessária outra
ilógico pensar o contrário, pois estas idéias faziam
pesquisa como esta para descobrir certamente que
parte do ambiente e das pessoas que o rodeavam e
rumo a mesma teria tomado.
Nepomuceno acabaria absorvendo estes
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março de 2006.
Análise de improvisações na música instrumental:
em busca da retórica do jazz brasileiro
Marina Beraldo Bastos, Acácio Tadeu Piedade (orientador)
Universidade do Estado de Santa Catarina
Resumo
Este artigo apresenta trata da análise musical de temas e trechos de improvisações no âmbito da chamada
música instrumental brasileira, ou jazz brasileiro. A partir de estudos prévios, nos quais buscamos
compreender este gênero da música brasileira em sua dimensão sócio-cultural, pretendemos agora
adentrar no texto musical para adensar sua compreensão musicológica. A análise se pautou na busca de
padrões musicais que cristalizam gestos expressivos recorrentes, entendidos como tópicas de uma retórica
musical do jazz brasileiro.
chamar de “teoria das tópicas”, que explici- improvisações trazem à tona os diversos estilos
taremos abaixo. Antes, porém, apresentaremos individuais, reconhecidos pela audiência, e que por
uma breve discussão sobre o debate da vezes fazem referências culturalmente comparti-
musicologia e análise da música popular. lhadas muito significativas, como por exemplo no
caso de paródias e citações5. Porém, não é este
aspecto que nos interessa aqui, embora ele também
Análise de Música Popular
esteja presente. A natureza da improvisação em
Após vários debates e confrontações ao música, no barroco europeu, na música tradicional
longo do século XX, a música popular se tornou o indiana, no jazz (ver BAILEY, 1993), enfim, em
objeto de estudo legítimo da musicologia todas as culturas musicais, é tal que o aspecto
contemporânea (entendendo-se o campo da individual está permeado por um discurso anterior e
musicologia no seu sentido amplo, incluindo a mais profundo: a cultura. Membro de uma cultura,
etnomusicologia). A partir dos anos 60, o indivíduo é o agente que “fala” na improvisação,
investigações sobre música popular da área porém sua expressividade depende do uso de
multidisciplinar dos Estudos Culturais mostravam fórmulas “sintáticas” que propiciem a comuni-
a riqueza deste repertório e apontavam a cação. Além disso, a improvisação é um fenômeno
inadequação da Musicologia tradicional. Esta, de temporal, envolvendo, assim uma dimensão
sua parte, respondia com insultos, desprezo ou simbólica que é interpretada pela audiência e pode
silêncio em relação aos nascentes estudos de ser compreendida pelo analista (IMBERTY, 1981).
música popular (MIDDLETON, 1993). O debate, Portanto, para dar conta destas considerações,
naquele momento, resultava de uma definição nossa hipótese é que a improvisação (no jazz
de Musicologia que foi construída desde o brasileiro) envolve o uso de signos musicais
momento de formação da disciplina, no século convencionais que apontam para uma referen-
XIX, segundo a qual esta área restringe seu cialidade no sentido da uma retórica musical,
objeto de estudo à música erudita ocidental. manifesta através de “tópicas”.
Seus métodos típicos, como os recursos de
análise e teoria musical, revelavam sua
preferência pelo texto musical, em detrimento Retórica e tópicas
de aspectos sociológicos e culturais. Ao mesmo O que estamos chamando de tópicas aparece
tempo, grande parte da chamada Etnomusi- na semiótica defendida por AGAWU (1991): este
cologia radicalizou a investida na direção oposta, autor parte do princípio de que o repertório da
desprezando (até recentemente) o sentido intra- música clássica européia (aproximadamente de
musical (MORAES e PIEDADE, 2005). Atualmente, 1770 a 1830, objeto deste trabalho) é
as fronteiras entre disciplinas estão submetidas a explicitamente orientado para o ouvinte. Agawu
desconstruções constantes, e pode-se falar em propõe uma teoria da música clássica instrumental
termos de uma Musicologia ampla, que inclui os com duas principais dimensões comunicativas:
estudos de música popular, especialmente expressão e estrutura. As unidades de expressão
aqueles que abarcam a análise do texto musical. interagem dentro de uma estrutura definida pelos
O principal problema dos métodos de termos convencionados da retórica musical. Agawu
análise em geral, no caso de sua aplicação para comenta um exemplo interessante: o uso da
os estudos de música popular, tem sido a expressão “alla turca” por Mozart em trecho da
tendência ao formalismo. Uma solução para a ópera Die Entführung aus dem Serail, que estreou
análise de música popular seria tentar trazer o em 1782. Na cena, a personagem está furiosa, mas
nível de significação intra-musical para o Mozart escreveu no estilo alla turca para injetar um
primeiro plano sem que a análise torne-se toque de comédia. Ora, está em jogo a
meramente formal (MIDDLETON, 1993). A comunicação com o público da época, no texto
abordagem expressiva das “tópicas” é uma opção musical sendo utilizados códigos compartilhados
nesta direção (ver a seguir). Quando se trata de daquele contexto: menos de cem anos antes da
analisar improvisações, em geral a análise se estréia da ópera, os vienenses haviam expulsado os
orienta no sentido da compreensão do estilo turcos de Viena, e então os turcos às vezes eram
individual de um músico4. No caso do jazz, as tema de diversão popular, sendo considerados
4 5
De fato, a análise estilística é uma abordagem importante, Sobre paródia no jazz, ver MONSON (1994). Muitas vezes há
e LARUE (1980) é um suporte teórico muito conhecido na citações em referência a estilos de outros instrumentistas,
Musicologia. Exemplos recentes produzidos no Brasil: sobre como quando o saxofonista Joe Henderson cita Charlie Parker
o pianista Bill Evans, ver GIMENES (2003); sobre o (ver MURPHY, 1990). Para um enfoque do jazz europeu, ver
guitarrista Alemão Stockler, ver PRESTA (2004). WILSON (1999).
simpósio de pesquisa em música 2006 267
divertidos e exóticos. Em adição à capacidade de
Mozart no domínio destes códigos extra-musicais
está sua capacidade musical, a forma como o
compositor manipula o texto musical a fim de
atingir o resultado comunicativo. Agawu mostra
que, desta forma, o gênero “alla turca” torna-se
uma espécie de categoria músico-cultural,
presente em outras obras do período, que é o Brejeiro
que Agawu chama de topics. No esquema Este conjunto tem relação com o jogo musical
analítico de Agawu, a cadeia de topics aponta o que existe, particularmente no mundo do choro,
plano expressivo da música, enquanto que o envolvendo a questão do desafio, da “quebração”
plano estrutural é abordado através de rítmica, da ambigüidade melódica e da malícia. No
diferentes perspectivas estruturalistas (Schenker, samba também há várias dimensões do brejeiro,
Rosen, Ratner e a do próprio Agawu, “começo- evocado pela figura do “malandro” e sua ginga.
meio-e-fim”). Este jogo envolve também uma competição entre
A adaptação deste modelo para a música os próprios músicos: é comum entre os chorões um
popular brasileira é uma forma de lidar com o tipo de brincadeira onde um músico solista tenta
aspecto expressivo da musicalidade brasileira em “derrubar” o outro utilizando padrões difíceis. Este
suas várias faces. Acreditamos que eles estão é um fato histórico, profundamente arraigado na
presentes não apenas na música escrita como musicalidade chorística: no início do século XX, os
também nas improvisações, e nesta comunicação flautistas chorões sabiam ler partitura e faziam
trataremos especificamente deste plano das estes desafios musicais com muita virtuosidade
improvisações, pois acreditamos que há ali (DINIZ, 2003). No “Um a Zero”, de Pixinguinha e
tópicas que sendo utilizadas pelos músicos no sua Benedito Lacerda, marcado como “choro vivo”, o
busca de comunicabilidade com o público. brejeiro se apresenta logo de início na ambigüidade
entre a nota fá e a nota sol. Outra “brincadeira” é
desenvolvida através dos deslocamentos rítmicos
Análises
nos compassos 8-11, onde um padrão melódico
Através da análise de trechos de constituído no âmbito de três colcheias “atravessa”
improvisações, previamente transcritos por nós, o dois por quatro, de forma necessariamente
apresentaremos aqui elementos de conjuntos de irregular.
tópicas que pudemos recolher. A estes conjuntos
chamamos de: nordestino, brejeiro, época de
ouro e bebop6.
Nordestino
Estas tópicas remetem à musicalidade do
nordeste brasileiro. Destaca-se o uso da escala
mixolídia e, em menor escala, dórica. Há um
número muito grande de tópicas neste conjunto,
dada a importância desta musicalidade na música
brasileira. Pudemos recolher e nomear algumas,
que estarão nas análises abaixo. Por ora,
apresentamos aqui um elemento claramente
empregado de forma retórica no jazz brasileiro
(e em muitos outros repertórios), que podemos
chamar de “cadência nordestina”: trata-se de
uma frase cadencial com estrutura 2-1-6-1-1.
Época de ouro
Chamamos de “época de ouro” este conjunto
de tópicas que remete a um sentimento de nostal-
gia ligado ao Brasil do passado e à musicalidade de
gêneros antigos, tais como modinha, valsas e
serenatas. Há diversas configurações melódicas
6
Para um maior aprofundamento teórico sobre estas tópicas, para as tópicas época de ouro (EO): grupetos,
ver PIEDADE (2006) e o artigo de PIEDADE neste volume. apojaturas, certas aproximações cromáticas
268 SIMPEMUS3
faz adiante, após um trecho outside, nos c. 22- jazz. Evidentemente, como salientam estes
24, apresentando a citação; esta é repetida autores, as transcrições são desde sempre
obsessivamente nos c. 25-27, trazendo uma nova interpretações parciais e limitadas, já que somente
surpresa na cadência para a nota lá natural. A alguns elementos podem ser destacados em
improvisação continua, mas o trecho em toque partitura, e mesmo assim muitas vezes de forma
nos serve de exemplo suficiente para mostrar o precária. A transcrição musical é uma técnica muito
uso de tópicas. empregada na Etnomusicologia, e por isso mesmo
nesta disciplina ela tem sido largamente discutida
(ver BARZ e COOLEY, 1996; NETTL, 1964). Ao
Comentários Finais
mesmo tempo, afirmamos o rendimento de
Para concluir esta comunicação, podemos investigações da dimensão expressiva da música
afirmar que constatamos o interesse teórico- brasileira no nível das improvisações, em busca de
metodológico da transcrição de improvisações gestos expressivos compartilhados, configurados
para posterior análise, bem como da aplicação como tópicas. O estudo da retórica musical
da “teoria das tópicas” para estudo do jazz subjacente às improvisações através da teoria das
brasileiro. No primeiro caso, podemos dizer que tópicas é uma avenida interessante para a
se trata de um procedimento que já vem sendo compreensão da musicalidade brasileira, podendo
realizado de forma interessante por BERLINER contribuir significativamente para a Musicologia
(1994) e MONSON (1996) em seus estudos sobre o Brasileira.
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Conservação e restauração de partituras:
a problemática da coleção Renée Devrainne Frank de música paranaense do
Museu da Imagem e do Som de Curitiba
Charlene Neotti Gouveia Machado
Universidade Federal do Paraná
Domingos Nascimento
“Himno do Paraná” para
canto e piano
A tabela construída privilegia as canções, que Mas o desinteresse no acervo Renée Frank e a
são em sua totalidade poemas simbolistas impossibilidade de iniciativa pública de construção de
musicados por compositores paranaenses – entende- um acervo digital para as obras, fica mais evidente
se por paranaenses compositores nascidos aqui ou quando visitamos o site do Museu. Neste, no link que
que se estabeleceram na então capital emancipada. direciona o pesquisador a uma breve descrição das
São hinos, óperas, operetas e canções, com coleções que o arquivo reúne e abriga, nem mesmo
construções musicais clássicas, que nos fazem sucintamente o acervo de partituras é citado. O
questionar o uso que faziam dessa música. A referido site limita-se a numerar os acervos
simplicidade da forma musical nos faz entender que fotográficos, de vídeo, cinematográfico e de áudio.
a música servia como veículo de propagação das Sobre as publicações diz que possui poucas com
idéias agregadas aos poemas empregados nessas “informações sobre música” e outras áreas do
obras vocais, figurando de forma secundária. conhecimento artístico.2
Sempre com caráter de marcha, eles parecem Vale reiterar a preocupação com o término do
anunciar uma revolução, instituir uma mudança na processo de identificação desse acervo. Muitas das
forma de pensar, embutindo idéias do pensamento obras que constam no catálogo não foram
de Pitágoras, dos gregos e egípcios, e agindo encontradas, e outras tantas lá presentes não estão
“visualmente” para a disseminação de idéias anti- listadas no referido Caderno de Documentação Musical
clericais. Outra informação que confirma essa da Secretaria de Cultura. Somente o término da
intenção política é o alcance social que algumas sistematização documental dará mais subsídios para
dessas obras tiveram. O Hymno à Primavera, de afirmar com precisão o valor histórico desses
Dario Vellozo e Luiz da Silva Bastos, datado de 22 impressos musicais, as escolas composicionais e o
de setembro de 1912, gozou de grande repercussão verdadeiro propósito dessas músicas no cenário de
e foi executada durante anos na Escola Normal uma Curitiba com pouco mais de 50 mil habitantes.
durante as aulas de música e em todas as três
edições da Festa da Primavera (1911, 1912 e 1913).
Além da análise, identificação, descrição e
restauração desse acervo, faz-se necessário um
novo arranjo físico. Uma das sugestões que trago
com este trabalho é a acomodação desse material pela Petrobras, no ano de 2005. Deste trabalho resultou um
digitalmente, como já realizado com o Acervo do site que disponibiliza parte das imagens recolhidas
(www.acmerj.com.br) e um DVD-Rom, que além de conter as
Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro1, em 2005. ilustrações do site, também disponibiliza outros documentos.
2
1
Site do Museu da Imagem e do Som
Projeto com a participação dos musicólogos Antonio Campos (http://www.pr.gov.br/mis/acervo.html)
Monteiro Neto, Marcelo Hazan e André Cotta, patrocinados
simpósio de pesquisa em música 2006 275
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Anais..., Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, 2006, p.85-94.
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1991. 654p.
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Devrainne Frank. Cadernos de Documentação Musical. Curitiba: Departamento de Imprensa Oficial do Estado,
1992. 75p.
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Documentação Musical: Bento Mossurunga (1879-1970). 1982. 62p.
PARANÁ. Augusto Stresser. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Curitiba. 1992. 32p.
RIO DE JANEIRO. Acervo Musical do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Movimento
Produções Artísticas, 2005. 1 DVD-ROM.
Música: linguagem formadora de identidades sociais
Auro Sanson Moura
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Para a maioria das pessoas, não há dúvidas. Ouvir música é um dos grandes prazeres que se pode ter. Mas que
poder é esse que a música tem de emocionar as pessoas ? O que faz com que um punhado de notas, sons ou
ruídos, possa ser tão atraente aos ouvidos? O que é que a música tem de tão especial? Ou ainda, que relação
temos com a música, que a faz tão importante para cada um de nós? Será que ela pode ser considerada uma
forma universal de linguagem? E mais ainda, será que a música pode mesmo ser considerada uma linguagem?
Por que ela une algumas pessoas ao mesmo tempo em que é motivo de discórdia entre outras? Como podemos
sentir a intenção do compositor quando ouvimos uma obra? Ou como é que podemos interpretar o que
ouvimos?
Além de expressar nossos sentimentos, a música pode também evocar estados afetivos e comportamentais,
como lembranças (emoções) da infância, de momentos que tiveram alguma importância na vida da pessoa, ou
no caso dos estados comportamentais, algo que pode estimular a pessoa a ter determinadas reações, como
alegria, melancolia, euforia, entre outros. Qual seria sua relevância na formação de nossa identidade? Até
que ponto ela pode nos influenciar?
Se pudermos pensar na música como uma forma ativa de linguagem, que pode transmitir informação,
podemos fazer uma ponte entre essas informações e o gosto musical. A vivência musical é com certeza um
dos caminhos (não o único) para o aumento do nível cultural da população e talvez um dos mais acessíveis,
apesar de ainda ser, de certa forma elitizada. É possível que a escola seja utilizada também como um meio
de atingir o aluno no ponto certo, a vontade de aprender sobre assuntos de seu interesse.
Um exemplo específico aqui abordado será o dos surdos; como e onde se situam nessa busca interminável por
uma própria identidade. A música pode ser usada nesse processo de inserção do indivíduo à sociedade e os
profissionais podem (e até devem) ter isso como objetivo. Mas além das crianças em situação de risco, pode-
se utilizar técnicas que envolvam música, para crianças e/ou pessoas com deficiências das mais variadas, no
processo de socialização e formação da identidade desses indivíduos.
Para a maioria das pessoas, não há dúvidas. algum embasamento. Infelizmente, não só na
Ouvir música é um dos grandes prazeres que se música, somente poucos têm tido a chance de se
pode ter. Apesar de algumas diferenças, todos beneficiar de obras e/ou peças importantes da arte,
concordam que a música exerce um papel muito que acaba sendo vista como de “posse” de uma
importante em suas vidas, seja acompanhando os elite intelectual. A educação, de um modo geral,
trabalhos do dia-a-dia, seja como objeto de pode alterar esse panorama.
estudos mais aprofundados, ou mesmo quando se Este trabalho pretende criar uma relação
trata da principal fonte de renda de um músico entre a música e a formação da identidade pessoal
profissional. e também da identidade social, isto é, a identidade
Além desses apontamentos, ainda pode-se individual no contexto de determinados grupos.
fazer uma distinção de classes através do Também pretende verificar a função da música
repertório musical escolhido. Por exemplo, como meio de melhoria de nível sócio-cultural,
normalmente, os indivíduos mais instruídos, com inserção na sociedade, ou apenas como forma de
uma melhor formação cultural, terão preferência lazer das pessoas em geral. Um exemplo específico
por gêneros musicais melhor construídos, com aqui abordado será o dos surdos; como e onde se
maior carga de informação e, assim dizendo, situam nessa busca interminável por uma própria
mais complexos. Por outro lado, as pessoas com identidade, não a de deficiente, mas sim a de
menor nível de instrução tendem, na maioria das criança, de adolescente e de cidadão.
vezes, a preferir gêneros musicais de fácil
compreensão. Isso não pode ser afirmado como
Definindo identidade e linguagem
uma verdade absoluta, mas é o que tem sido
observado na maioria das vezes. Muito Segundo John Sloboda, “as crianças sim-
provavelmente, isso ocorre devido ao próprio plesmente adquirem o conhecimento através de
acesso à informação, pois as pessoas podem suas experiências sociais diárias. Conseqüente-
escolher o que ouvir, entre vários estilos e com mente, tal conhecimento tende a ser universal em
simpósio de pesquisa em música 2006 277
uma cultura, e constitui a base sobre a qual as há costumes diferentes. Seria interessante explanar
habilidades mais específicas serão construídas”1. sobre o conceito de cultura, citando algumas definições
A partir dessa afirmação, podemos tentar cabíveis. Citando Geertz, quando diz que “a cultura é
melhor vista não como complexos de padrões de
entender a construção dessas habilidades
comportamento [...], mas como um conjunto de
específicas (por exemplos os processos cognitivos
mecanismos de controle [...] para governar o
realizados para aquisição de linguagem, fala, comportamento”, pode-se entender a cultura como
modelos comportamentais, entre outros) como uma maneira interpretar os acontecimentos, um modo
um passo para a formação de uma identidade, a de possibilitar que o homem encontre “sentido nos
partir do momento em que a pessoa, criança, acontecimentos através dos quais ele vive”2.
adolescente, começa a descobrir novas maneiras • A identidade étnica, que varia de acordo com as
de se comunicar, através dessa nova habilidade descendências e características físicas é algo imutável.
adquirida. Para tanto, teremos que compreender Mais do que apenas características genéticas, a
o termo identidade de uma maneira um pouco identidade étnica depende da cultura familiar, ou até
mais abrangente, como fatores que determinam a mesmo da identificação do indivíduo com sua terra, seu
maneira com que a pessoa se relaciona, age ou povo, ou dos seus descendentes.
pensa. Outra maneira de compreender o conceito • A identidade nacional é relativa ao país de origem ou
de identidade é imaginar que vários outros tipos residência por tempo prolongado, continente e
de identidades acabam por formar uma características geográficas, entre outras. Difere da
identidade étnica por não se basear tão fortemente em
identidade geral do indivíduo. Alguns estudiosos
características como raça, descendências, entre outras.
como Folkestad e Hargreaves, entre outros, já
mapearam alguns tipos, como identidade pessoal,
identidade social, identidade cultural, identidade A soma de todas estas identidades irá
étnica, identidade nacional, que serão constituir a identidade pessoal do ser humano.
sucintamente definidos a seguir: Dependendo da situação e do momento da vida, um
tipo de identidade pode se sobressair. A linguagem
e a música estão diretamente ligadas à questão da
• Identidade pessoal (características idiossincráticas) é
identidade e, por esta razão, são discutidas a
talvez a mais complexa de ser descrita, mas é ela
que normalmente se sobressai às outras, devido aos seguir.
seus fatores determinantes para a caracterização
e/ou diferenciação dos indivíduos. A música é linguagem?
• A identidade social é normalmente formada a partir
A função primordial da linguagem é a
de grupos de convívio, através de interesses comuns,
comunicação, e é através fala, a maneira mais
ou amizades. É provavelmente nesse nível de
identidade que a música possa ter um papel comum de comunicação entre os humanos, que
fundamental, principalmente em fases como a estamos acostumados a obter informações, nos
adolescência, em que as descobertas são muitas e comunicar com outros da mesma espécie. Mas ela
muito intensas, quando há uma propensão maior à não pode ser encarada como a única forma, já que
influência dos outros, já que a identidade pessoal temos consciência da existência de outras formas
ainda não está totalmente formada. Podemos dizer “não-faladas” de comunicação. É o caso da
que a identidade social se trata das características linguagem de sinais, que utiliza símbolos para
que as pessoas adquirem a partir de relações sociais,
representação de fatos e/ou objetos e que nada
no convívio com outras pessoas.
tem em comum com a língua (aqui no caso a língua
• A identidade cultural depende de fatores muitas portuguesa) falada, tanto que a oralização de
vezes mais antigos do que a própria civilização
deficientes auditivos que se utilizam dessa
(ILARI, 2006), sendo possível, inclusive, que um povo
tenha mais de uma identidade cultural (FOLKESTAD,
linguagem, é extremamente difícil, não só pela
2002), já que algumas culturas são muito mais deficiência, mas pelo desconhecimento das signifi-
antigas que as próprias nações. Também porque uma cações das palavras e sons. Para Vygotsky, “a
cultura pode ser formada a partir de outras várias atividade [...] de criação de significado é a
culturas, e em cada grupo social, em cada família, precondição para a criação de linguagem” 3.
1
“Children simply acquire the knowledge through their
everyday social experiences. In consequence, such
knowledge tends to be universal in a culture, and is the 2
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
ground on wich more specialized skills may be built.” Ed. LTC, 1989.
SLOBODA, John A. The musical mind; The cognitive
psychology of music. – Music as a cognitive skill. New York:
Oxford University Press, 1985. Tradução do autor. 3
NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky – cientista
revolucionário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 131.
278 SIMPEMUS3
surdos? Eles ficam alheios realmente a esse tipo da cultura, além de uma outra função, a de integra-
de mensagens subjetivas? Estão à margem dessa ção na sociedade, que remete aos movimentos
constituição de identidade própria? sociais, como o caso daqueles apoiados na cultura
Em uma experiência de convívio com Hip Hop, ou mesmo em trabalhos desenvolvidos em
adolescentes surdos, nota-se que em suas vidas locais como ONG’s. Esses movimentos tem como
falta algo que é muito importante na formação objetivo tirar das ruas, ou apenas do ócio, crianças
de todo jovem: a música. Normalmente é através ou jovens que demonstrem interesse pela música,
de gostos comuns, como time de futebol, bandas ou que vejam na mesma uma oportunidade de
preferidas, prática de esportes, que a maioria melhoria de vida, tendo em vista principalmente o
dos adolescentes forma seus grupos de amigos e aspecto cultural, dentre outros.
não raramente, é influenciada em seus gostos
pessoais. A música normalmente define alguns Música, identidade e trabalho social
dos grupos em locais como escolas e bairros,
A idéia de identidade e formação de
entre outros, mas no caso desses jovens surdos,
indivíduos pode remeter a uma forma de se tentar
em que falta uma parte importante da formação
dar melhores condições para pessoas com
inicial (a vivência musical), como se dá esse
problemas gerados pela má distribuição de renda,
processo? Percebe-se que eles são muito
desigualdade social, entre outras situações que se
suscetíveis à programação de TV, à moda,
fazem presentes na vida cotidiana do Brasil.
informações visuais, em geral. E é claro, o
Trabalhando música com crianças, jovens, ou
conteúdo da televisão, assim como a música pop,
mesmo adultos que normalmente não teriam acesso
nem sempre é composto de material de alto
a esse tipo de informação, pode-se ter muitas boas
nível, e isso ligado à memória quase que
surpresas, melhoria de vida, não somente de renda,
unicamente visual desses indivíduos, pode causar
mas também a questão de acesso à cultura, de
uma maior dificuldade de formar uma identidade
novas expectativas na vida de um cidadão, uma
própria, o que ocorre sim, mas de uma maneira
nova visão de mundo.
típica dos portadores dessa deficiência, muitas
vezes exaltando uma característica dos Algumas experiências tiveram êxito ao
adolescentes em geral, uma condição submissa conseguir fazer com que crianças muito pobres, ou
de aceitação de informações da mídia, e no caso mesmo jovens em situação de risco, como usuários
dos surdos, de informações visuais que pouco de drogas ou envolvidos com o tráfico e/ou
acrescentam às suas pessoas. criminalidade, tivessem acesso ao estudo de
música, e conseqüentemente, pudessem vir a
encontrar melhores condições de vida, incentivo ao
Música suas funções na sociedade estudo, bom desenvolvimento em outras áreas,
De acordo com Allan Merriam (1964), a melhor convívio familiar, e a própria dedicação a
música pode ter diversas funções na sociedade, uma causa, tendo o aprendizado musical tanto
como por exemplo, a função de comunicação, em como um meio de se chegar a algum lugar, ou
que o autor diz que a música não é uma forma mesmo uma finalidade. Como sugere Mário de
universal de linguagem, mas uma linguagem Andrade:
direcionada a pessoas de uma mesma cultura.
Quando Merriam cita a função de validação ainda não se percebeu na nossa terra que a cultura
das instituições sociais e dos rituais religiosos, o é tão necessária como o pão, e que uma fome
autor sugere que é a música é um dos elementos consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem
que ditam o adequado e o impróprio na felicitou qualquer país14.
sociedade, além de ter o papel de divulgar
lendas, mitos e preceitos religiosos. A música, Essa “fome” de cultura pode ser saciada
nesses casos, pode servir como uma forma de coletivamente, reunindo grupos de uma comunidade
doutrinamento, principalmente em se tratando e oportunizando a integração, como diz Merriam:
de funções religiosas. Em algumas religiões, por
exemplo, há muitos casos de uso de melodias
A música, então, fornece um ponto de
famosas com letras reescritas, citando passagens convergência no qual os membros da sociedade se
bíblicas, ou ainda promovendo a crença em reúnem para participar de atividades que exigem
algum tipo de religião, como ocorre
freqüentemente em igrejas evangélicas.
Merriam cita o papel da música na 14
ANDRADE, Mário de. Oração de Paraninfo. In: Aspectos da
contribuição para a continuidade e estabilidade música brasileira. São Paulo: Martins/MEC, 1974, p. 245.
simpósio de pesquisa em música 2006 281
cooperação e coordenação do grupo (MERRIAM, adolescente, criança ou adulto (dependendo do
1964, p. 226). período da vida em que estejam).
Todos esses fatores tornam a formação de
Esse tipo de trabalho com função social uma identidade consolidada muito mais difícil, já
pode ser desenvolvido com base na aprendizagem que todos esses conteúdos da televisão são
coletiva, usando a oralidade como meio de se momentâneos, desaparecendo na mesma velocidade
chegar aos indivíduos, e fazer com que o e proporção com que surgem, deixando o indivíduo
aprendizado ocorra através da vivência musical, mais suscetível à variação de comportamento
isto é, pela prática de música. estimulada pela mídia e criando um padrão
A arte não é a única forma de se realizar comportamental questionável, tanto no surdo
trabalhos com uma função de socializar quanto nos indivíduos em geral, o que é péssimo
indivíduos, ou simplesmente dar nova motivação para a sociedade, que necessita de cidadãos
para viver. No entanto, é através dela e também pensantes e contestadores.
do esporte que se tem obtido bons resultados,
principalmente nos países mais pobres, com o Considerações finais
mérito de não somente doutrinar, mas também
A música como linguagem parece ser algo tão
dar chance de uma profissão e incentivar o
óbvio, mas ao mesmo tempo tão complexo de se
cuidado com a saúde, além de incentivar a busca
explicar por meio de palavras. Quem nunca ouviu
por novos conhecimentos, o auto-conhecimento,
uma música e se emocionou? Ou como é que às
inclusive.
vezes podemos entender o que a seqüência de notas
A música pode ser usada nesse processo de de uma música instrumental está nos dizendo? Nem
inserção do indivíduo à sociedade e os tudo parece necessitar de explicações teóricas,
profissionais podem (e até devem) ter isso como embasadas em milhares de teorias nada musicais,
objetivo. Mas além das crianças em situação de mas o homem parece gostar de complicar as coisas,
risco, pode-se utilizar técnicas que envolvam ditando normas para que as pessoas precisem saber,
música, para crianças e/ou pessoas com por exemplo, que uma das formas de linguagem
deficiências das mais variadas, no processo de mais acessíveis para a transmissão da cultura entre
socialização e formação da identidade desses diferentes povos (a música) não é linguagem. Claro
indivíduos. que trata-se de uma definição mais subjetiva da
linguagem, mas ainda assim, muito eficiente.
Música e crianças especiais A vivência musical é com certeza um dos
Muito tem se estudado sobre o ensino de caminhos (não o único) para o aumento do nível
música para crianças com algum tipo de cultural da população e talvez um dos mais
deficiência, ou melhor dizendo, portadores de acessíveis, apesar de ainda ser, de certa forma
necessidades especiais. No entanto, é na escola elitizada. É possível que a escola seja utilizada
especial que se nota a falta de preparo dos também como um meio de atingir o aluno no ponto
professores, e consequentemente, o baixo certo, a vontade de aprender sobre assuntos de seu
aproveitamento por parte dos alunos, que muitas interesse.
vezes sequer percebem o despreparo dos As funções da música podem ser inúmeras,
profissionais. Uma das causas para tal desde o prazer que sentimos por simplesmente
despreparo, é a idéia de que as aulas de música, ouvir uma música da qual gostamos, ao papel da
principalmente nos casos de alunos deficientes, música para a sociedade. Pode-se pensar em
são apenas momentos de recreação. relação à transmissão de cultura, a possibilidade de
Quando se fala no ensino de música para utilizá-la como ferramenta poderosa para
indivíduos portadores de necessidades especiais, integração de deficientes ou pessoas em situação de
geralmente exclui-se naturalmente os surdos, risco a um grupo melhor estruturado, dentre outros.
visto que para os mesmos, a música parece não Todos esses certamente já seriam motivos mais do
ter utilidade. Como estão praticamente alheios à que suficientes para que a estudássemos muito mais
música, acabam por ter outros estímulos como a fundo.
ponto de referência durante o processo de
formação de identidade. Tais estímulos
(geralmente visuais) acabam determinando a
formação de suas identidades, a de surdo e a de
282 SIMPEMUS3
Referências
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SINCAM, Curitiba, 2005. Anais..., Curitiba: Editora do DeArtes, 2005.
FOLKESTAD, G. National identity and music. In: MACDONALD, R.A.R.; HARGREAVES, D. J.; MIELL, D. E.
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989.
MACDONALD, R.A.R.; HARGREAVES, D. J.; MIELL, D. E. Musical identities. New York: Oxford University Press,
2002.
NESTROVSKI, Arthur. O livro da música. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000.
NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky: cientista revolucionário. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
ROEDERER, J.G. Introdução à física e à psicofísica da música. São Paulo: EDUSP, 1998.
SCHAFER, Murray R. O ouvido pensante. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.
SEKEFF, Maria de Lourdes. De música e educação. Revista da Academia Nacional de Música, v. 14, 2003.
SLOBODA, John A. The musical mind: the cognitive psychology of music. New York: Oxford University Press,
1985.
SNYDERS, Georges. A escola pode ensinar as alegrias da música? São Paulo: Cortez, 1992.
VOLOSHINOV, Valentin (Em nome de BAKHTIN, Mikhail). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo:
Editora Hucitec, 1986.
| sessão de pôsteres |
Esta pesquisa em andamento tem como tema central a aplicação de elementos da música modal com
crianças entre 7 e 9 anos de idade. A investigação pretende verificar a utilização destes elementos como
forma de ampliar as possibilidades musicais e o universo sonoro dessas crianças, hoje freqüentemente
restrito aos modos Maior e menor. Por meio deste trabalho, busca-se discutir a pertinência desse tipo de
material musical, questionando o que ele pode acrescentar ao ensino da música e à prática musical. Também
serão analisados e descritos os aspectos cognitivos da percepção destas escalas modais nas crianças, num
contexto de prática instrumental e vocal. Assim sendo, serão utilizados basicamente os métodos Orff e
Orff/Wuytack, por se adequarem perfeitamente a este tipo de sonoridade. A metodologia utilizada será a
Pesquisa-ação, tendo como categorias de análise a criação, a apreciação e a interpretação. Para a pesquisa
empírica, serão planejadas 8 aulas onde estes elementos serão aplicados – conforme as categorias acima – e,
posteriormente, os dados serão analisados e descritos em forma de relatório. A coleta de dados se dará pela
observação das aulas e através de entrevistas semi-estruturadas com as crianças do grupo.
Música é ritmo, som e magia. Ritmo é pulsação vital, expansão e contração. Som é energia, vibração.
Ritmo e som dão vida, expressão e espírito à música. A música convoca o espírito criador, a magia. Da magia
original nasceu a ciência, a religião e a arte.
Em muitas religiões, o som pode ser um elo de comunicação do mundo material com o mundo
espiritual e invisível. Ele tem um poder mediador e hermético. Assim, os instrumentos musicais são vistos
muitas vezes como objetos mágicos. Os instrumentos são vozes. E são sagrados.
O maracá é um instrumento de feitiçaria indígena e possui significado místico. Seu som imita uma
cascavel. A maior parte dos grupos indígenas associa seu som a poderes mágicos. São, portanto, os
instrumentos preferidos dos pajés, mediadores entre o mundo humano e o sobrenatural. Nas sociedades
indígenas, magia e religião estão interligadas.
284 SIMPEMUS3
O maracá é um instrumento religioso, que sinaliza poder espiritual, se usado num contexto ritual, em
comunicação com entidades espirituais. Nas práticas de cura, enxota do corpo da vítima os espíritos
malignos, sendo um importante elemento da comunicação xamânica.
No Maranhão existe um ritual associado a práticas terapêuticas, curativas, a cura maranhense, tambor
de curador ou pajelança de negro. Um conjunto heterogêneo de práticas e representações que reúne
elementos do catolicismo popular, das culturas indígenas e do Tambor de Mina.
Em São Luís é também chamado de “Brinquedo de Cura” e é realizado pelo Mestre, Pajé ou Curador.
Perseguidos pela polícia até a década de 50, os curandeiros eram chamados de feiticeiros e acusados
de fazer “magia negra”, e o curandeirismo era encarado como uma prática ilegal da medicina.
Segundo a cosmologia de várias religiões afro-brasileiras, existem na natureza entidades não visíveis,
constituídas de energia e com grandes poderes. No Maranhão, os caboclos encantados são agrupados em
“linhas”, conjunto de espíritos de uma mesma família. As linhas se dividem em água salgada, da mata, água
doce e astral – domínios da natureza. A “linha de cura” é a linha de água doce e os pajés são chamados de
“batedores de maracá”.
Na pajelança maranhense a música é essencial, sem ela não há pajelança. Os instrumentos usados são
pandeiros, cabaça e maracá, junto com as palmas. Existe uma recorrência de perfis rítmicos e melódicos e
um estilo vocal característico. O ritmo da pajelança se chama toque e a música e letra, doutrina.
Usado pelo curador quando recebe seu mestre de cura ou um caboclo curador, o maracá é o símbolo
maior da pajelança, que também é conhecida como linha de maracá.
O presente trabalho tem a intenção de apresentar nosso projeto de pesquisa em andamento que irá
analisar a participação do grupo Zimbo Trio no programa O Fino da Bossa no período de 1965 a 1967, tendo
em vista a Moderna Música Popular Brasileira (MMBP).
Primeiramente, julgamos necessário conhecer o momento histórico e a reestruturação que a indústria
cultural brasileira passou na década de 60, pois nesse contexto a música passa a ser um veículo de discussão
ideológica. Serão abordadas questões como: a necessidade de reorganizar as bases de expressão e circulação
social da música popular, a simultaneidade de uma explosão criativa procurando não negar a tradição (samba
urbano dos anos 30), a dúvida de qual tradição a ser seguida, as contradições do engajamento político
perturbado pelas demandas da indústria cultural, a preocupação dos compositores e intelectuais com a
Jovem Guarda inserida no mercado musical e como os efeitos do novo circuito comercial musical da canção
engajada e nacionalista faziam parte desse cenário, levando a uma conquista de autonomia no campo
musical popular.
O pensamento intelectual de esquerda deste período foi marcado pelo debate sobre o papel do
nacional e do popular na cultura brasileira. As esquerdas acreditaram ser possível atingir uma transformação
radical pela via revolucionária através da conscientização das camadas populares e esta seria alcançada
tendo a cultura como seu principal instrumento. Caberia às artes e aos artistas politicamente “engajados” a
tarefa de levar o conhecimento crítico ao povo incentivando-o a lutar pela revolução. A idéia de “revolução
brasileira”, tendo como base a ação dos camponeses e das massas populares marcou o debate político e
estético entre os anos de 1964 e 1968.
Vale dizer que não pretendemos fazer um estudo detalhado, mas apenas apontar dados
imprescindíveis para um melhor entendimento do contexto.
Por outro lado, é fundamental entender o que é a Moderna Música Popular Brasileira, sua proposta e
implicações: derrubadora dos mitos tradicionais da música popular brasileira, sempre representados nas
canções louvando a beleza do morro e do sertão, da vida simples e plena do favelado e do sertanejo, numa
empostação retórica nacionalista. Como contraponto, tínhamos um público que se apresentava com um gosto
mais refinado e constituído em sua maior parte por universitários, intelectuais, jornalistas, familiarizado
simpósio de pesquisa em música 2006 285
com as questões políticas e sociais tais como a injustiça e a desigualdade, abrindo novas propostas e novos
horizontes na sua construção e historicidade
Também não podemos nos furtar de mencionar a idéia da “linha evolutiva” ou a busca de uma
evolução orgânica da MMPB como conceito na Música Popular Brasileira. Essa idéia expressa pelo compositor
Caetano Velloso em 1966, em entrevista à Revista Civilização Brasileira, remete à Bossa Nova como
referência moderna nessa "linha" na medida em que, rompendo com o tradicionalismo, esse movimento
legitima e revitaliza a MPB, dando continuidade à sua tradição (QUINTELA, 2004).
Por fim, cabe situar o programa O Fino da Bossa, lugar eleito como palco da consagração da MMPB
como um fenômeno “de massa”, atingindo um público eclético, amplo e variado, assim como seu impacto e
importância no cenário artístico musical e suas reverberações até os dias de hoje. Citando Marcos
Napolitano:
O Fino da Bossa abria caminho para a superação do impasse de conciliar comunicação e expressão,
qualidade e popularidade, mercado e engajamento, levando a uma solução momentânea as dicotomias
lançadas pela eclosão da Bossa Nova. (1998: 303)
É importante notar os pólos norteadores da conduta musical aplicada no repertório dos programas e
adotada pelo Trio, sendo este co-participante na elaboração dos números musicais da cantora Elis Regina e
outros artistas, compositores e intérpretes convidados.
Tal análise será feita a partir de entrevistas com os próprios músicos do Zimbo Trio e demais
participantes do programa, e da eleição de alguns temas musicais analisados sob o ponto de vista de arranjo
e concepção musical daquele momento, valendo-nos basicamente de três CDs: Elis Regina no Fino da Bossa –
Vol. I, II, III, coletânea de alguns programas (gravação ao vivo).
Referências
AMORIN, Edgard Ribeiro de. Televisão – a fase musical da TV Record. Revista D’art, n. 8, 2001.
CAMPOS, Augusto de. Informação e redundância na música popular de vanguarda. In: Balanço da bossa e outras bossas,
São Paulo: Perspectiva, 1978.
GALVÃO, Walnice N. MMPB: uma análise ideológica. Saco de gato: ensaios críticos. São Paulo, Duas Cidades, 1976.
LINS E BARROS, Nelson. Música popular e suas bossas. Movimento, n. 6, 1962.
_____ Bossa nova: colônia do jazz. Movimento, n. 11, 1963.
MELLO, Zuza Homem de. Programa do Zuza e O Fino da Música. São Paulo, 1981.
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Anna
Blume, FAPESP, 2001.
_____ O conceito de MPB nos anos 60. História: Questões e Debates, n. 31, 1999 (2000), p. 11-30.
_____ A canção engajada no Brasil: Entre a modernização capitalista e o autoritarismo militar (1960/ 1968). Revista
Ciência Hoje, 24/25, ago/1998.
_____ A arte Engajada e seus Públicos (1955/1968). Estudos Históricos, Rio de janeiro, n. 28, 2001.
_____ A idéia de linha evolutiva na música popular brasileira – 1962/1967. II SIMPÓSIO LATINO-AMERICANO DE
MUSICOLOGIA, Curitiba. Anais..., Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1998.
PAIANO, Enor. O berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. Dissertação (Mestrado
em Comunicação Social) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1994.
286 SIMPEMUS3
Também são encontradas na região três afinações, chamadas “pelo meio”, “pelas três” e
“intaivada”, onde a diferenciação não está somente na afinação das cordas, mas também no posicionamento
dos dedos no braço da viola. Vale ressaltar que no fandango basicamente são utilizados os acordes de função
tônica e dominante e a tonalidade pode variar.
A rabeca é utilizada para acompanhar a melodia ou para realizar pequenos contracantos.
Normalmente só há uma rabeca tocando por vez. Assim como a viola, possui especificidades em cada região.
Outros instrumentos também utilizados no fandango da região: pandeiro, adufo, tamanco, surdo,
timba, ganzá, triângulo, zabumba, machete, bandolim, cavaquinho e violão.
Os dados aqui apresentados foram coletados em uma pesquisa realizada entre maio e julho de 2005 pela equipe do
Projeto Museu Vivo do Fandango, um projeto realizado pela Associação Caburé. A equipe do projeto era composta por
Alexandre Pimentel e Joana Correa (coordenação geral), Daniella Gramani (coordenação Paraná), Dauro Marcos do Prado
(coordenação São Paulo), Rogério Gulim e Osvaldo Rios (direção musical). Fotos: Felipe Varanda
Referências
BRITO, Maria de Lourdes da Silva; RANDO, José Augusto Gemba (org.) Fandango de mutirão. Curitiba: Gráfica Mileart,
2003.
CÕRREA, Joana; GRAMANI, Daniella; PIMENTEL, Alexandre (org). Museu vivo do fandango. Rio de Janeiro: Associação
Caburé, 2006.
DIEGUES, A. C. (org.) Enciclopédia Caiçara. Volume 5: Festas lendas e Mitos caiçaras. São Paulo: HUCITEC, NUPAUB,
CEC/USP, 2006.
| conferência |
Elizabeth Travassos