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DIÁLOGO SOBRE O CONHECIMENTO

EDGAR MORIN
ALFREDO PENA-VEGA
BERNARD PAILARD

CORTEZ EDITORA
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edição brasileira

Pensamento Complexo e Pedagogia


in vivo — Uma experiência no
Ensino Médio na França

C/e/de Almeida Izabel Petraglia*

"saberíamos muito mais das complexidades da vida se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições em vez de perdermos tanto tempo com as identidades e as coerências, que essas têm obrigação de
explicar-se por si mesmas." "...o princípio nunca foi a ponta nítida e precisa de uma linha, o princípio é um processo lentíssimo, demorado, que exige tempo e paciência para se perceber em que direção ir, que tenteia o
caminho como um cego, o princípio é só o princípio, o que ele faz vale tanto como nada."
"o máximo a que talvez consiga chegar quando for cão velho é ao obscuro e vago sentimento de participar em algo arriscadamente complexo e, por assim dizer, de escorregadias significações, um todo
feito de panes em que cada uma é, ao mesmo tempo, a parte que é o todo de que faz pane..." "...em boa verdade a linha recta só existe na geometria, e ainda assim não passa de uma abstração."

• José Saramago — A Caverna

* Professoras do Programa de Pós-Graduação em Educação do ntro Universitário Nove de Julho — UNINOVE.


Coordenadoras e Fundadoras do NIIC — Núcleo Interinstitucio-il de Investigação da Complexidade e da Culturalidade e do Grupo : Pesquisa em Educação e Complexidade — GRUPEC.

Entre os meses de junho e julho de 2004, estivemos na França, para conhecer a experiência educacional relatada neste livro e, ouvir, conversar e entrevistar os participantes
do projeto como, professores, diretores e pesquisadores.1 É um trabalho que chamou nossa atenção pela atitude e pelo método, apresentando diálogos entre pesquisadores
e estudantes e que ocorreu no Liceu Jacques-Decour, em Paris, colégio em que Edgar Morin estudou e participa até hoje, pela Associação de ex-alunos.

1. Os depoimentos constantes deste texto são testemunhos obti-\ pelas


autoras, em entrevistas gravadas. Esta pesquisa foi realiza-«ta como uma
das atividades programadas resultantes do primeiro qüin-do NIIC —
Núcleo Interinstitucional de Investigação da Com-|li ikln.li e da
Culturalidade, por meio do GRUPEC — Grupo de i em Educação e
Complexidade.
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BALDOO SOBRE O CONHECIMENTO 11

A ideia de se desenvolver uma experiência edu- cacional respaldada na teoria da Complexidade de Morin, é levada a cabo, neste liceu, em 2001, por ocasião de um
símbolo forte que foi a comemoração de seu octagésimo aniversário. A preparação deste trabalho, no entanto, começou aproximadamente um ano antes de sua realização. Era
uma grande inquietação e indagação saber como as ideias que Morin desenvolve em sua obra, podem ser trabalhadas na prática, no contexto escolar. ^f&£."-X\"Si~v "
Edgar Morin, ao longo de sua obra, debruçou-se sobre a tarefa fundamental de explicar que o método que propõe não se aplica como uma metodologia, mas éjim método
que provoca e estimula, a elaboração de estratégias de conhecimento, aplicáveis às diversas áreas do saber, entendendo que não são lt neares e parceladas. "A ciência nunca
teria sido ciência se não tivesse sido transdisciplinar.". (Edgar Morin, s/d, p. 217)
O trabalho aconteceu também, em outras escolas francesas, a partir de 2001. Além das três turmas do Liceu zacques-Decour; duas turmas do Liceu de L'Essouriau, em
Lês Ulis (periferia de Paris); uma turma em Bobigny (periferia de Paris); duas turmas em Nantes e uma turma em Lê Mans (cidades da Bretanha).

A experiência foi idealizada por dois pesquisado-Ires: Alfredo Pena-Vega e Bernard Paillard, com a
cumplicidade de Edgar Morin, do Centro de Estudos Transdisciplinares, Sociologia, Antropologia e História
— CETSAH da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais — EHESS, associado ao Centro Nacional de
Pesquisa Científica — CNRS, da França. Esse projeto inseriu-se no quadro de um programa do CNRS,
intitulado "Paixão pela Pesquisa", que visava à aproximação de pesquisadores com jovens estudantes para

Liceu Jacques-Decour

estabelecer o diálogo e o interesse pela pesquisa. Contou também com o apoio da Radio France Culture que
registrou em áudio toda a experiência.

Pátio interno do Liceu Jacques-Decour

Kdc L*Essouriau — Lês Ulis


Bernard Paillard, Edgar Morin e Alfredo Pena-Vega.
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EDGAR MORIN

O contato inicial da equipe de pesquisadores do CETSAH foi mantido com a direção do liceu, cujo apoio foi fundamental para o desencadeamento do plano de trabalho.

"Nós começamos o trabalho com os alunos refletindo sobre o que é Pensamento Complexo e propondo as questões essenciais desse tipo de pensamento. O principal aspecto positivo que
vi nesse trabalho foi a entrada dos intelectuais na escola, com seus diversos pontos de vista, sobre temas tais como o desenvolvimento sustentável, a sociologia, o futuro da humanidade,
um olhar sobre a história etc., trazendo explicações mais claras sobre ideias difíceis." (Stéphane Du Crest — diretor do Liceu de UEssouriau — Lês Ulis)

"As questões da Complexidade nos interessaram muito e como foi constatado pêlos professores, criou-se um ambiente muito bom de trabalho, os alunos ficaram curiosos e sentiram-se
participantes de uma experiência dinâmica, em que puderam propor diversas questões, fazer pesquisa e encontrar com um pensador renomado como Edgar Morin, que foi nosso aluno."
(Jean-Pierre Lorenzati — diretor do Liceu Jacques-Decour)

O projeto foi desenvolvido no contexto dos progra


mas oficiais das disciplinas durante o ano letivo.
No liceu Jacques-Decour, por exemplo, participa
ram os professores das disciplinas Filosofia, His
tória e Geografia. ••>

Na sequência, o convite foi formulado aos professores, que decidiram sobre sua adesão ou não.

Jean-Pierre Lorenzati, Edgar Morin e Charles Bonize Stéphane Du Crest — Diretor do Liceu de UEssouriau — Lês Ulis

O projeto foi desenvolvido no contexto dos progra


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mas oficiais das disciplinas durante o ano letivo.
No liceu Jacques-Decour, por exemplo, participa
ram os professores das disciplinas Filosofia, His
tória e Geografia.

O trabalho foi iniciado com a apresentação da proposta aos alunos e teve um primeiro seminário, introdutório, sobre Pensamento Complexo.

"No primeiro seminário, sobre Pensamento Complexo, que foi realizado com os alunos, eles tiveram dificuldade de compreensão e foi possível perceber que a nossa linguagem não estava
adaptada à realidade deles. Temos uma linguagem que, muitas vezes, fica restrita ao círculo de pesquisadores. Isso nos fez alertar também, outros pesquisadores que iriam dialogar com os
jovens, na escola, sobre a necessidade de adaptar a linguagem à realidade dos alunos." (Alfredo Pena-Vega — pesquisador e organizador)
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Os encontros aconteciam quinzenalmente, com atividades diversificadas, como a proposição do tema de discussão pêlos alunos, leitura e interpretação de textos de autores
diversos, uma exposição do tema realizada por pesquisador convidado, seguida de debate com os alunos. Eram utilizados diversos recursos pedagógicos como documentos
escritos, audiovisuais e internet.

O tema surgia da discussão entre os estudantes, orientados pela equipe organizadora, a partir do interesse do grupo e eram articulados ao conteúdo programático da
disciplina coordenada pelo professor. O exercício do debate favorecia a aproximação1''' com outros olhares, suscitando novos temas, abordagens, interfaces e conexões
que permitiam religar j conhecimentos dispersos. Estavam postas na discussão as possibilidades de contato com ideias divergentes, contrárias e complementares.
Foi uma experiência de encontro sistemático de estimulação mútua, que abriu o diálogo com estudantes para uma educação para a vida contemporânea, considerando
a importância do exercício da reflexão e da crítica.

"Cada vez mais, nas sociedades ocidentalizadas, há um consumo cego, cujo exemplo mais triste é a 'macdolnadização’. É um consumo fundado sobre os elementos exteriores do sabor, em
que as crianças e os jovens tomam coca-cola e essa bebida os remete aos Estados Unidos e à obesidade generalizada. Há uma educação para o consumo, fundada na qualidade dos produtos,
dos objetos e na qualidade de vida, com repercussões sociais e que favorece, por exemplo, a agricultura biológica.
Há também uma educação para a conservação, como reação contra o consumo de tudo o que é descartável. Hoje, descartamos aparelhos fotográficos, relógios, sapatos, computadores
etc. Não se conserta mais nada! E eu penso que é importante incentivar a educação para a reparação dos objetos. É uma educação para a civilização." (Edgar Morin)

Foi uma experiência que procurou sensibilizar os jovens sobre as grandes questões do nosso tempo e da história, ressaltando os desafios que enfrentamos para a construção
cotidiana do mundo e de uma ciência com consciência. Teve como objetivos:

• incentivar a reflexão por meio da aproximação entre pesquisadores e estudantes;


• levar em conta a curiosidade e os questiona-mentos dos estudantes;
• estimular o espírito crítico e criativo;
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• incentivar o trabalho coletivo;
• abordar conhecimentos de maneira trans-disciplinar.

Pudemos perceber que esses objetivos foram atingidos, na medida em que temas que não eram direta-mente privilegiados no contexto das disciplinas, mas que estavam presentes
no cotidiano dos alunos emergiram como problemas para reflexão e debate.
"Por exemplo, a discussão sobre religião aparece mesmo no contexto de uma escola laica, num momento em que estava em evidência o debate sobre o islamismo e o uso ou não do véu nas
escolas. A questão religiosa também esteve presente quando se discutiu a questão da vida. Ao falar de vida, imediatamente apareceu a questão da criação. Como foi criado o mundo? Uns
diziam que foi Deus, mas qual Deus? Foi feita, então, uma discussão sobre a criação e o lugar da religião. Outros temas foram: violência, cidadania, origem da vida, cosmos, mundialização."
(Alfredo Pena-Vega — pesquisador e organizador)

As turmas participantes, com 30 alunos em média, eram compostas de jovens entre 16 e 18 anos, que tinham características multiculturais diversas, ou seja, eram filhos de
imigrantes de várias nacionalidades. Observou-se que no início dos debates, apesar de estarem motivadas, as turmas participavam pouco e as meninas se pronunciavam mais
que os meninos. Os jovens tinham receio de errar e de expor suas ideias, diante de questões e conceitos, por eles pouco conhecidos.

"Vocês sabem como são os adolescentes: Eles têm medo de falar bobagens sobre temas que não conhecem ou que conhecem mal." (Charles Bonizec — professor)

Cada turma apresentava uma dinâmica de trabalho, sendo uma mais lenta, outra mais expansiva, outra mais inibida, guardadas as peculiaridades individuais.

Alunos do Liceu Jacques-Decour

Um aspecto que nos foi apontado refere-se à fragilidade da formação docente, no que diz respeito à dificuldade dos professores, em promover e desenvolver o debate e de
elaborar uma auto-avaliação:
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"Um professor sabe muito bem realizar seu curso; ele sabe colocar questões e avaliar as respostas, mas gerir um grupo de trinta pessoas, com personalidades diferentes, é mais difícil. Ele
não sabe fazer, porque falta na sua formação o exercício da comunicação em grupo." (Charles Bonizec — professor)

"Nós temos a impressão de que somos empurrados pela ação a agir continuamente e não há tempo, sequer, para a reflexão. Esse momento pedagógico foi uma grande oportunidade para
avaliarmos a nós mesmos." (François Beautier — professor)

Outra dificuldade percebida foi a resistência dos professores à mudança, tendo em vista a necessidade de planejar novas ações e de interagir com pessoas de fora do quadro
institucional. O projeto pressupunha preparação, não só porque as atividades exigiam, mas também porque os alunos não tinham hábito de estudo. Como nos foi salientado:
"Os alunos não tinham método de trabalho e eram dispersos. Era preciso que eles se organizassem." (Charles Bonizec — professor)
"As dificuldades são bem menores em relação aos ganhos, considerando as possibilidades que vivemos com este tipo de experiência. As dificuldades são de duas ordens. Uma é a estrutura
da máquina escolar, que reúne os jovens pela idade e não pelo desejo de estar juntos e a outra é que o sistema não é só formal para os estudantes, mas também para os professores que,
recebem classes que não escolheram." (François Beautier
— professor)

Mesmo com as dificuldades encontradas, a avaliação feita com os alunos mostrou à equipe organizadora que este projeto possibilitou:
— a ampliação do diálogo entre professores e alunos;
— a compreensão de que para entender um pro
blema não basta pensá-lo somente dentro de
uma disciplina; .,.
— a importância da elaboração do conhecimento como condição necessária para a construção de uma identidade cidadã.

Durante as entrevistas, foi enfatizado que esta experiência favoreceu uma (pedagogia ativ^ tanto para
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os professores como para os alunos. Era possível viver uma nova relação com os estudantes e todos participaram de um enriquecimento em relação ao conhecimento e ao contato
com a pesquisa científica.
"Significou uma janela aberta e uma tomada de consciência de que o que eu ensino não dá uma visão suficientemente completa do mundo. Faltava o ponto de vista do sociólogo, do filósofo,
do astrofísico, do biólogo- etc. e todos estes pontos de vista eram aportes importantes que nos permitiam situar-nos num campo de saberes complexos. Permitiam também motivar os
estudantes a perceberem que o que eu ensinava a eles não era a totalidade do mundo, mas que havia outros pontos de vista acessíveis que eles poderiam tratar. Através desta experiência,
eu não estava sendo visto como um simples cozinheiro ou servidor de pratos feitos por mim mesmo, mas participava de um banquete em que todos estavam convidados. A noção de ban-
quete tem uma ideia festiva e é isto que eu guardei desta experiência." (François Beautier — professor)

"É preciso mostrar aos jovens dos meios populares — como são os da minha cidade — que a pesquisa científica é importante e é um meio de prolongar o que eles aprendem na escola e
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de saber que o conhecimento não está só numa perspectiva escolar, mas também na vida e na ciência. É preciso destacar que uma função da escola é formar cidadãos capazes de julgar e
decidir sobre o que é bom e o que não é, sobre o que eles crêem e sobre os valores que eles defendem ou contestam." (Paul Loridant — senador da República Francesa e prefeito de
Lês Ulis)

Este (espírito de comunhão expresso na metáfora do banquete explica a ação de compartilhar ideias e atitudes, o que pressupõe a solidariedade dos saberes em contraposição
à solidão disciplinar. O trabalho nas escolas articulou-se em três momentos: diálogos entre disciplinas; ação reflexiva e acompanhamento.
Para Morin (2000, p. 105): "A DISCIPLINA é uma categoria organizadora dentro do conhecimento científico; ela institui a divisão e a especialização do trabalho e
responde à diversidade das áreas que as ciências abrangem (...) uma disciplina tende naturalmente à autonomia pela delimitação das fronteiras, da linguagem em que ela se
constitui, das técnicas que é levada a elaborar e a utilizar e, eventualmente, pelas teorias que lhe são próprias ".

Assim, uma disciplina não é suficiente para dar conta de todos os problemas tocantes a ela, pois há noções que "circulam e, com frequência, atravessam
clandestinamente as fronteiras, sem serem detectadas pelos 'alfandegueiros'". (idem, p. 108) Afinal, noção alguma é restrita a um único campo disciplinar, mas todas elas são
'noções migradoras!,Entendemos, pois, que o pensamento complexo é um tipo de pensamento, que pressupõe atitude e método complexos, e considera a transdisciplinari-
dade, como caminho para a reforma do pensamento e_esta para aquela.

Edgar Morin e Alfredo Pena-Vega

Os diálogos sobre o conhecimento realizados nos liceus, referem-se a um método complexo que estimula a reflexão e propõe estratégias de conhecimento. Método é uma
sucessão articulada de procedimentos, ferramentas e técnicas, utilizados para a pesquisa e para a resolução de problemas. O espírito do método cartesiano é analítico, que
compreende decomposição e recomposição.
"O método não se aplica só ao saber, mas também à ação, ao saber fazer. Por exemplo, o enfermeiro que dá injeção e o engenheiro que constrói pontes, utilizam efetivamente o método
neste sentido. A perspectiva de Edgar Morin, quando emprega a palavra 'método' é de atribuir um sentido e um conteúdo conceituai mais amplo. Mesmo no método de Descartes já havia uma
filosofia, uma visão de mundo, em que as representações dos fenómenos da vida, da ação e da sociedade eram orientados de maneira estática. Aí, o tempo era excluído ou desconsiderado.
Dito de outro modo, para os cientistas lógico-racionalistas, o tempo é um fator de complicação e de degradação. Morin se interroga sobre o método. Ele tem uma outra visão de mundo,
que é o produto de sua história, de sua cultura e de suas particularidades pessoais. Ele se interessa menos pelo método como um procedimento racional, que permite a resolução de problemas
do que pelo método como uma compreensão global da sociedade, da ciência e de seu tempo. Na perspectiva de Morin, há uma posição mais hologramática, dialógica ou dialética que em
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Descartes, que tinha uma visão linear.
No entanto, não se trata, de substituir um método por outro, porque há várias maneiras de olhar a realidade, os fenómenos e os problemas. E, para alguns problemas, o método cartesiano é
satisfatório. Como por exemplo, para se instalar um gancho na parede, a geometria euclidiana é suficiente." (Jacques Ardoino — professor, pesquisador em Educação e consultor do projeto)
O pensamento complexo é um tipo de pensamento capaz de ligar, contextualizar e globalizar. Morin afirma que menos importa "uma cabeça bem cheia" que acumula e empilha
saberes, do que "uma cabeça bem feita" que é aquela que reflete e trata os problemas, organiza e religa conhecimentos e a eles confere sentido. (2000, p. 21). Um problema é
constituído por múltiplas facetas, o que implica em ações inter-felacionadas. Como o termo latino Complexus indj-ca: o que é tecido junto._
Ao explicar a reforma do pensamento, Morin discorre sobre a transdisciplinaridade como uma perspectiva que a acompanha e que considera a inseparabilidade do múltiplo e
do diverso. (Trata-se da superação da causalidade unilinear e unidirecional em direção a uma causalidade circular e multirreferencial que integra, ao mesmo tempo, noções
antagónicas e complementares como a ideia da relação das partes no todo e do todo nas partes. Entende que o conhecimento avança pela capacidade atitudinal de conceituar e
globalizar, para a resolução de problemasTl (1999, p. 13-14)

Muitas vezes, precisamos desaprender conceitos fechados e obsoletos que algum dia aprendemos e reservamos nas prateleiras da consciência, para aprendermos novas
possibilidades dos novos cenários que se delineiam e redesenham na multiculturalidade planetária. Cenários complexos, que nos apontam para as incertezas, imprevisibilidades e
contradições da existência, nos exigindo novas maneiras de reaprender, como pudemos perceber nessa vivência dos liceus. '"•• '•'•'' • ' -
Outro aspecto que já havia chamado nossa atenção era de que esta experiência, no âmbito da escola, trazia uma abordagem aproximativa do "método in vivo", desenvolvido
na comunidade de Plodémet.2
No começo dos anos 60, a comissão de ciências humanas da Delegação Geral de Pesquisa Científica e Técnica (DGRST) da França conduziu uma grande investigação
pluridisciplinar, escolhendo a pequena cidade bretã de Plodémet, para desenvolver um trabalho de campo. Havia uma ambição de organizar e mobilizar atividades em torno
de grandes programas de cooperação. Seguindo as orientações da DGRST e sob seu patrocínio, organismos públicos de pesquisa como o Museu do Homem, o Instituto
Nacional de Estudos Demográficos, a 6a secção da Escola Prática de Altos Estudos e o Centro de Estudos Sociológicos do CNRS — Centro Nacional de Pesquisa Científica,
repartiram este trabalho.

2. Plodémet é o pseudónimo de Plozévet.


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A diversidade de Plodémet, um microcosmo singular, ao mesmo tempo marítimo, rural e urbano motivou a escolha. Em 1964, Georges Friedmann convidou Edgar Morin para
realizar a tarefa de uma sociologia do presente, Plodémet tornou-se, então, o suporte de uma reflexão sobre a modernidade na França.
O método in vivo procurou manter um diálogo constante entre o investigador e a realidade pesquisada, privilegiando a flexibilidade e compreendendo que rigor não se
confunde com rigidez. Utilizou técnicas variadas de observação, entrevista aprofundada e autodesenvolvimento progressivo do sistema de interpretação por meio de trocas
das anotações de pesquisa.

Na visão de Morin, a sociologia do presente não respeita as fronteiras entre as disciplinas e exige a consideração da historicidade. Interroga os acontecimentos, a
ruptura e a crise, dando atenção às mudanças e ao devir. "Em termos gerais, a sociologia do presente visa dar-se conta de um fenómeno. Ela se esforça para fazer o
fenómeno emergir por todos os meios adequados possíveis, descobrindo as articulações internas e externas e, finalmente, formulando um discurso inteligível que ao invés de
dissolver e encobrir o singular concreto, possa revelá-lo ". "(1967, p. 15)

No nosso entender, a experiência vivida nos liceus, e as obras específicas de Morin sobre educação, tais como "Os sete saberes necessários à educação do futuro" e "A
cabeça bem-feita" trazem preocupações que estavam presentes em seu trabalho, desde a década de 1960. E a pesquisa desenvolvida em Plodémet foi uma etapa significativa
para lançar algumas raízes de seu pensamento.
Nestas situações há um princípio de não-diretivi-
dade, em que o diálogo desencadeia o movimento
do pensar e vice-versa. Há um socratismo educacio
nal que leva os sujeitos a interrogar sobre seus pro
blemas e um movimento de troca em que alunos,
professores e pesquisadores vivenciam uma mudan
ça do modo de ler o mundo, dito de outra forma,
trata-se de uma pedagogia in vivo. ,
E hoje, essa experiência ainda continua.

Bibliografia

MORIN, E. Commune em France: La Métamorphose de Plodémet. Paris, Fayard, 1967.


____. Complexidade e Transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: EDUFRN,
1999.
11
MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
____. Journal de Plozévet. Paris, éditions de 1'Aube, 2001.
____. Ciência com Consciência. Lisboa, Europa-América, s/d.

Introdução

Jean-Pierre Lorenzati (diretor) — Por ocasião do seu octogésimo aniversário, Edgar Morin, nosso ex-aluno, virá nos visitar. Ele estudou aqui da sixième} até o baccalauréat,2
de 1931 a 1938, na época em que o liceu Jacques-Decour ainda tinha o nome do chanceler Rollin. Ele virá dialogar com vocês, alunos da première3 e da terminale
philosophie.4 Esse homem faz parte da atualidade de vocês e do que lhes diz respeito hoje em dia. Grande testemunha da segunda metade do século XX, Edgar Morin nasceu
em 1921, logo depois da Primeira Guerra Mundial. É um pensador conhecido, sobretudo por causa de seu grande interesse pela construção dos saberes. O diálogo que ele
terá com vocês será muito proveitoso, pois os temas de sua reflexão entram, de alguma forma, no programa escolar. Bernard Paillard e Alfredo Pena-Vega, pesquisadores
do CNRS e amigos de Edgar Morin, vão ajudá-los a se familiarizar com os seus escritos e seu pensamento.

Alfredo Pena-Vega—A escolha do liceu Jacques-Decour tem os seus motivos: estimular a curiosidade dos alunos com a ajuda do pensador da complexidade. Ao lhes mostrar
que Edgar Morin, filho de imigrantes, conheceu as mesmas ruas, estudou nas mesmas classes e seguiu os mesmos cursos, nós o tornamos mais próximo e mais familiar.

Bernard Paillard — Isso permitirá que ele volte ao seu passado, à sua trajetória pessoal e intelectual.

Alfredo Pena-Vega — Nossa intenção é observar a receptividade dos jovens aos temas que Edgar Morin lançou por ocasião da reforma do ensino nas escolas.
Bernard Paillard — Na classe de première littéraire,5 da professora de história e geografia Elizabeth Brisson, Alfredo Pena-Vega adotou o novo molde dos TPE
(trabalhos pessoais dirigidos), que parece deixar alunos e professores desnorteados. Visando o encontro com Edgar Morin, os estudantes optaram por trabalhar sobre o tema
das fronteiras interétnicas, sem dúvida motivados por problemas que eles próprios encontram. Os trabalhos foram baseados em informações sobre racismo, apartheid,
direitos humanos, cidadania...

Alfredo Pena-Vega — O professor da terminale philosophie, Jean-Pierre Gauthier, apresentou Edgar Morin de forma global, abordando uma variedade de temas, seu
itinerário sociológico e político, suas concepções do imaginário e do cinema, sobretudo aquelas relativas à complexidade. Essa expressiva introdução ao homem e a sua
obra, enriquecida com a projeção de vídeos, possibilitou livres debates conosco.
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Bernard Paillard — Com os alunos da première économique et sociale e o professor de história e geografia, Charles Bonizec, usamos como pretexto o programa de
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educação cívica, jurídica e social. Partindo de excertos de textos extraídos dos livros de Edgar Morin, trabalhamos sobre temas como ecologia, globalização, papel da escola
etc. As sessões começavam com uma leitura conjunta, seguida de perguntas e comentários.

1. Equivalente à 5a série do ensino fundamental no Brasil (N.T.).


2. Exame que o aluno presta, na França, ao final do que corresponderia, no Brasil, ao 3° ano do ensino de nível médio (N.T.).
3. Equivalente ao 2° ano do ensino de nível médio no Brasil (N.T.).
5. Equivalente ao 2° ano do ensino de nível médio no Brasil, voltado para a literatura (N.T.).
6. Equivalente ao 2° ano do ensino de nível médio no Brasil, voltado para economia e sociologia (N.T).

Alfredo Pena-Vega — O objetivo desse trabalho preparatório, de mais ou menos oito horas por classe, exigindo dedicação pessoal dos alunos, foi levá-los a formular,
individual e coletivamente, as perguntas que pretendiam fazer a Edgar Morin.

Bernard Paillard — Vamos acompanhar esses jovens estimulados a refletir sobre temas importantes, como o futuro do planeta e da humanidade, o papel da escola, a
contribuição do conhecimento — aprender não só a pensar, mas a viver na complexidade e na incerteza.

Alfredo Pena-Vega — Esse trabalho foi efetuado no âmbito do CETSAH,7 fundado nos anos 60 por Edgar Morin, Georges Friedmann e Roland Barthes, e articulado ao
programa "Paixão pela Pesquisa" do CNRS,8 que possibilita ao jovem se familiarizar com o mundo da pesquisa fundamental.

Bernard Paillard — Foi um trabalho de fôlego, que contou com mais de seis meses de gravações...

7. CETSAH — Centro de Estudos Transdisciplinares de Sociologia, Antropologia e História (N.T.).

8. CNRS — Centro Nacional de Pesquisa Científica (N.T.).


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Qual será o futuro do planeta?

Bernard Paillard — A central de Chernobyl foi fechada na Ucrânia. Charles Bonizec aproveitou esse fato para fazer os alunos refletirem sobre as ameaças que pesam
sobre o planeta.
Texto1: "Dominar a natureza? O homem é ainda incapaz de controlar sua própria natureza, cuja loucura o impele a dominar a natureza perdendo o domínio de si mesmo.
Dominar o mundo? Mas ele é apenas um micróbio no gigantesco e enigmático cosmos. Dominar a vida? Mas mesmo se pudesse um dia fabricar uma bactéria, seria
como copista que reproduz uma organização que jamais foi capaz de imaginar. E acaso ele saberia criar uma andorinha, um búfalo, uma otária, uma orquídea? O homem
pode massacrar bactérias aos milhares, mas isso não impede que bactérias resistentes se multipliquem. Pode aniquilar vírus, mas está desarmado diante de vírus novos que
zombam dele, que se transformam, se renovam... Mesmo no que concerne às bactérias e aos vírus, ele deve e deverá negociar com a vida e com a natureza."

Charles Bonizec — O homem transformou a Terra, mas não é senhor do mundo... Será que é loucura, como diz Edgar Morin, querer dominar a natureza? O papel do
homem não é, justamente, transformar, melhorar a natureza?

Aluno — Passa a ser loucura quando ele perde o domínio sobre o que desenvolveu ou sobre o que inventou, quando excede os limites.

Charles Bonizec — Conhece algum exemplo desse excesso?

Aluno—A camada de ozônio, Chernobyl... O ho


mem fez buracos no planeta prejudicando a si pró
prio. Hoje em dia, por causa da sua inconsciência, é
obrigado a se superproteger, a se esconder, a deixar
de viver normalmente. Ele sabe que existe a ameaça
de desenvolver câncer.

1. Textos extraídos do livro Terra-Pátria, de Edgar Morin e Anne-Brigitte Kern, Porto Alegre, Editora Sulina, 2003 (tradução de Paulo Azevedo Neves da Silva).
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Texto: "Precisamos aprender a ser, isto é, aprender a ser é aprender a viver, a partilhar, a comunicar, a comungar. É isso que se aprendia nas e pelas culturas fechadas.
Precisamos doravante aprender a ser, viver, partilhar, comunicar, comungar enquanto humanos do planeta Terra. Não mais apenas a ser de uma cultura, mas a ser terrenos."

Charles Bonizec — Vocês acham que é preciso abandonar a própria cultura para se ter uma cultura terrestre?

Aluno — É preciso encontrar um equilíbrio...

Aluno —... ou então ter uma dupla cultura. É mais ou menos como quando emigramos. Temos sempre duas culturas.

Texto: "Um planeta por pátria? Sim, tal é nosso enraizamento no cosmos. Sabemos doravante que o pequeno planeta perdido é mais que um lugar comum a todos os
seres humanos. É nossa casa, home, Heimat, é a nossa mátría e, mais ainda, nossa Ter-ra-Pátria. Aprendemos que viraríamos fumaça nos sóis e seríamos congelados para
sempre nos espaços. É verdade que poderemos partir, viajar, colonizar outros mundos. Mas estes, demasiado tórridos ou gelados, são sem vida. E aqui, em nossa casa, que
estão nossas plantas, nossos animais, nossos mortos, nossas vidas, nossos filhos. Precisamos conservar, precisamos salvar aTerra-Pátría."

Charles Bonizec — Vocês concordam com Edgar Morin? Poderemos, um dia, colonizar outros mundos?

Aluno — No futuro, talvez...

Aluno — Mesmo que isso seja possível, as condições nunca serão tão boas quanto as que os homens tiveram. Antes que eles transformassem a Terra, todas as circunstâncias
colaboravam para que tivessem uma existência agradável. Eles nunca poderão encontrar uma conjuntura tão apropriada à vida.

Aluno — Mas é preciso encontrar um outro planeta onde se possa viver! Por enquanto, isso não é possível.
Aluno — Eu acho que é melhor assim. Porque seria injusto fazer com um outro planeta o que se fez com a Terra. Tenho certeza de que o homem, ao contrário do que
afirma, não está disposto a ser mais sensato. Ele faz o bem, mas também o mal.

Charles Bonizec — Edgar Morin inclui nossos mortos entre nossas plantas, nossos animais, nossas vidas, nossos filhos. Isso não lhes parece estranho?

Aluno — Não, porque esse é o ciclo da vida. A morte significa vida, uma não existe sem a outra.

Aluno — A morte faz parte da humanidade, da nossa história.

Charles Bonizec — O pensador conclui dizendo que é preciso salvar a Terra-Pátria. Vocês acham que podemos contribuir para isso na vida cotidiana?

Aluno — Acho que sim, desde que todos cooperem.

Charles Bonizec — E de que maneira?


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Aluno — Separando as embalagens, reciclando, economizando água, não poluindo... Penso, essencialmente, na gasolina, nas indústrias. É preciso achar uma fonte de
energia mais ecológica, parar com o lobby de estradas...

Aluno — Há alguns anos as pessoas se conscientizaram dos riscos que correm e evitam pegar o carro para pequenos trajetos. Cada vez mais, vemos patins, bicicletas e
patinetes nas ruas.

Charles Bonizec — Não é simplesmente um modismo?

Aluno — Claro que é. As pessoas usam patinetes, não para evitar a poluição, mas para ser como todo o mundo, por lazer. Mas devemos reconhecer que, por enquanto, esses
modismos dão resultado.

Aluno — Para que haja uma melhora, é preciso entender, de uma vez por todas, que o meio ambiente não pertence ao homem, mas o homem é que pertence ao meio
ambiente.

Charles Bonizec — A escola tem um papel a desempenhar?

Aluno — Mudar nossa maneira de viver é um compromisso pessoal. A escola não tem nada com isso.

Aluno — Acho que a escola deveria ensinar coisas da vida em vez de ensinar coisas inúteis. Em biologia, estudamos mais os coelhos e as rãs do que a Terra!
Charles Bonizec — Você gostaria de aulas mais prosaicas... Por exemplo, como manter a válvula de descarga sempre regulada para economizar água?

Aluno — Sim. Coisas concretas que sejam realmente úteis. Nossas aulas são muito teóricas, abs-tratas, sucintas. Não temos muito como aplicá-las. A vida não é só
ciência, é vida também!

O papel da escola
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Alfredo Pena-Vega — "O que a escola me ensinou? A escola me ensinou a França." Com essa interrogação de Edgar Morin, os alunos da première ES iniciaram
uma reflexão sobre o papel da escola.

Bernard Paillard—A escola, explica Edgar Morin, não tem só a função de divulgar certos conhecimentos, mas também tem um papel de integração na sociedade francesa.
Texto: "O que a escola me ensinou? A escola me ensinou a França. Meus pais não haviam deixado uma pátria, eles deixaram uma cidade, Salonica, que forjara sua
civilização original no seio de um império, o império Otomano... Minha família havia recebido a nacionalidade italiana no século passado e meus pais estavam num
processo de afrancesamento por ocasião do meu nascimento. Eu me tornei um filho da pátria na escola onde absorvi e me integrei à história da França. Lamen tei a morte da
Gália em Alésia, exultei em Bouvines, santifiquei a ressurreição da França com Joana d'Are, salvei a República em Valmy, segui Bona-parte até a Itália, padeci em
Santa Helena com o proscrito, chorei em Waterloo e na última aula de Alphonse Daudet,1 por duas vezes consegui uma revanche no Marne, assim incorporei a substância
francesa e fui por ela incorporado."

Charles Bonizec — Edgar Morin escreve delibe-radamente/z//io da pátria. Nesse texto, ele insiste na história e destaca imagens comuns, Bouvines, Waterloo, a última
aula de Alphonse Daudet... Normalmente, na escola aprendemos a ler, a escrever e a contar. Ele diz que a escola lhe ensinou a França. Por quê?

Aluno — Porque a escola permitiu que ele se integrasse.


Texto: "Eu posso testemunhar sobre o sucesso do sistema de integração da República e de sua escola, como posso testemunhar sobre a riqueza de se ter várias raízes. A
França foi uma máquina extraordinária de integração de crianças emigradas. A questão é saber se esse sistema engripou. Evidentemente, a integração não se fez na euforia,
mas ao fim de duas gerações, depois que piemonteses e poloneses se afrancesaram. Essa máquina não é igual à máquina americana que mantém as diferenças. Será que o
sistema está em crise?..."

Charles Bonizec — Edgar Morin dá um depoimento sobre a riqueza de ter várias raízes. Na opinião de vocês, de que raízes ele fala?

Aluno — Gregas e italianas. Parece que ele é judeu. Não sei se é praticante...

Charles Bonizec — E qual é a riqueza de ter várias raízes?

Aluno — Riqueza em relação à cultura, à língua.

Aluno — Uma pessoa que tem várias culturas aceita melhor os outros, tende a não adotar uma atitude etnocêntrica, é mais aberta, mais tolerante.

Charles Bonizec — Então, sentir que se tem várias raízes é sempre benéfico?

l. Referência ao conto de Daudet "La dernière classe" ("A última aula"), do livro Contes de lundi (Contos de segunda-feira), sobre a última aula de francês de um professor da Alsácia, depois das ordens de Berlim para que só
o alemão fosse ensinado nas escolas da Alsácia-Lorena (N.T).
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Aluno — Não, porque talvez raízes opostas tragam contradições, até mesmo uma ruptura interior. Na mente e nas relações em volta, pode-se viver mal uma situação como
essa.

Aluno — Fala-se sempre do papel integrador da escola. Acontece que, na minha opinião, essa integração também vem da própria pessoa. Temos o hábito de questionar o
sistema ou de dizer que os outros é que são os responsáveis. É preciso aprender a olhar para si mesmo: certas pessoas não se integram porque não querem.

Charles Bonizec — O que vocês acham do sistema americano citado por Edgar Morin?

Aluno — Justamente, se há bairros negros ou mexicanos nos Estados Unidos é porque, desde o início, essas populações se excluíram do país que as acolheu e preferiram
reunir-se em grupos.

A integração

Aluno — Para que a integração das crianças de origem estrangeira seja feita corretamente, a escola não deve procurar um equilíbrio entre a cultura de origem do aluno
e a dó país que o recebe? O senhor escreveu: "A França foi uma máquina extraordinária de integração de crianças emigradas. A questão é saber se esse sistema travou." Que
soluções o senhor propõe para destravá-lo?
Edgar Morin — Diante de vocês me sinto como um aluno, nunca como professor. É uma sensação muito estranha, porque há muito tempo ultrapassei essa fase... Para
responder à sua pergunta, primeiro eu diria que as condições históricas não eram as mesmas. Sem dúvida, escrevi isso porque na minha época as coisas eram diferentes,
pelo menos em relação a mim. Sou filho de emigrantes, mas a origem de meus pais não estava ligada a uma forte identidade nacional, nem mesmo religiosa. Eles vinham
deuma cidade chamada Salonica, que pertencia ao império otomano quando eles nasceram, e que depois passou para as mãos da Grécia. E vinham da Itália, com uma cultura
francesa muito presente. No liceu não me via como se possuísse uma cultura diferente da francesa, mas me sentia numa espécie de vazio. Um vazio que preenchi com a
história, com Vercingétorix,1 com a Revolução etc. Esses fatos entraram em mim como se fizessem parte da minha identidade. Acredito que hoje vivemos problemas
totalmente diferentes, pelo fato de os filhos dos imigrantes chegarem com uma cultura forte, com tradições familiares e religiosas. Lembro-me que no liceu Rollin havia
pessoas de camadas sociais bem diferentes, mas poucos filhos de imigrantes, praticamente nenhum da África, nem do norte da África. A França passou a ser um país de
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grande emigração a partir do início do século XX, por duas razões fundamentais. Inicialmente, porque foi o primeiro país a ter uma queda demográfica, o que provocou uma
primeira emigração vinda da Itália e da Espanha — essas pessoas vinham ocupar as terras que os pró prios franceses abandonavam, terras pobres do Sul e do Sudoeste... A
outra razão foi que a Terceira República se fundamentava na ideia de que a França não era uma comunidade de sangue, e sim uma comunidade de espírito.

Aluno — Por quê?


Edgar Morin — Na verdade, a história da França é bem diferente, por exemplo, da história da Alemanha, onde se tinha o sentimento de que uma identidade já existia antes da
nação. No fim do século XIX, o império alemão uniu suas regiões, fragmentadas, é verdade, mas todas falando a mesma língua. Na França, foi a nação que criou a
identidade. O franciano, que se transformou no francês, era a língua da ïle-de-France (assim como o bretão, o basco, o alsaciano e o flamengo, que são línguas de origem
estrangeira). A França se formou por uma integração ao longo dos séculos, mas as pessoas não tinham necessariamente alguma coisa em comum. Na Revolução, dizia-
se simplesmente que ser francês era querer ser francês. E era isso que repetiam as pessoas vindas do interior. Em suma, a França era uma ideia. Aliás, no século XIX houve
fortes tensões entre alemães e franceses por causa da posse da Alsácia: os primeiros diziam que os habitantes falavam alemão, os segundos respondiam que, acima de
tudo, eles queriam ser franceses... Podemos imaginar que a integração francesa foi amplamente facilitada pelo fato de não se perguntar aos filhos de imigrantes "que
sangue você tem, qual é sua etnia ? ", mas apenas "você quer ser francês?". E digo mais, a desintegração do império colonial francês não impediu que um grande número
de ex-colonizados não só dominasse a língua francesa, como integrasse a identidade do país. Em outras palavras, já existia na França o germe de uma identidade múltipla.

Aluno — E o que ocorre atualmente?

Edgar Morin — Com a grande corrente de unificação dos hábitos, dos meios e dos costumes, e também com o avanço tecnológico, a civilização industrial etc., cada vez mais
as pessoas fazem questão de preservar suas próprias origens — esse movimento não se refere só aos emigrantes, mas também às províncias. Elas sabem que fazem parte de
uma civilização comum, europeia e mundial, mas querem preservar a pequena pátria, a identidade, por fidelidade a um dos pais. Pessoalmente, sou a favor do modelo
republicano constituído há mais de um século, que funcionou bem, mesmo o sofrimento estando sempre presente — devo lembrá-los de que os italianos, por exemplo, eram
recebidos em Marselha com ofensas como "italianos sujos", "carcamanos, voltem para casa" etc. O fenómeno de rejeição sempre existiu, mas eu diria que a máquina continua a
funcionar. A ideia é caminhar em direção às vias já existentes, torná-las mais fortes, mais poderosas, mais conscientes. Não se deve buscar um equilíbrio, mas uma espécie de
coexistência. Certas miscigenações se fazem naturalmente e são, muitas vezes, criativas, desde que não destruam os traços originais. O que vai permitir uma melhor integração
é a modificação ou a abertura da cultura francesa.

Aluno — Não seria melhor se educadores especializados, num primeiro momento, se encarregassem das crianças emigrantes escolarizadas na França? Assim as
discrepâncias entre a cultura de origem e a cultura do país que as recebe seriam reduzidas, a socialização garantida e as referências que possuem delimitadas. Elas
compreenderiam o que vieram fazer na escola, onde não se fala a sua língua natal.

1. Chefe da coalizão dos povos gauleses contra Júlio César, em 52


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a.C. (N.T.). ; '
Edgar Morin — É preciso fazer de tudo para reduzir as diferenças entre a cultura de origem e a cultura que as recebe, porém, em vez de educadores especializados,
eu citaria o esforço mútuo e a ação do tempo. Vocês sabem que, afinal de contas, o que opera a integração são os casamentos mistos. Através desse tipo de união é
que se entra numa nova cultura. A única missão dos educadores é ter consciência disso e ajudar a propagar essa consciência.

Aluno — O sistema educacional francês está ultrapassado? Não é preciso implantar um ensino menos teórico, criar novas disciplinas, como a informática?

Edgar Morin — As novas tecnologias, o computador, a videoconferência etc., passaram a ser indispensáveis. Evidentemente, não substituem um professor fisicamente
presente. Platão disse: "Para ensinar, é preciso eros." Eros é uma palavra grega que significa prazer, amor, paixão. Para comunicar não adianta cortar o saber em fatias, é
preciso gostar do que se faz e gostar das pessoas que estão diante de você. O professor é aquele que, por meio do que professa, pode ajudá-los a descobrir suas próprias ver-
dades. Se a literatura teve uma grande importância para mim, é porque ela relata experiências da vida. Mesmo as tão desprezadas séries televisivas falam de amor, de
ciúme, de ambição, de morte, de tristeza, em resumo, de sentimentos, no caso muito estereotipados, mas tirados da vida cotidiana. Na minha opinião, o professor é um mediador
que ajuda cada um dos alunos a compreender a si mesmo, a se conhecer. E a literatura desempenha um papel importante. Sou daqueles que descobriram as próprias verdades
por meio dos grandes romances. Dostoievski me ensinou a compreender meus próprios sentimentos em relação à vida.

Aluno — Devemos estudar disciplinas das quais não necessitamos? Por exemplo, nas salas de economia e sociologia, para que continuar a aprender biologia?
Edgar Morin — Não creio que se deva excluir certas disciplinas, com o pretexto de que elas têm um público reservado ou elitista. A literatura não é um luxo! Se tantas
pessoas lêem no metro, é porque entram num universo do qual sentem necessidade. Por que gostamos de cinema? Porque ele nos permite viver melhor nossos sentimentos
de amor, de participação, de simpatia etc. Aliás, o cinema só sairia ganhando se tivesse um lugar mais importante; ele é uma arte fundamental na cultura... Na realidade,
tais como são, as disciplinas deveriam ser integradas em grandes conjuntos. O que é a física, a química, senão o mundo no qual somos feitos, uma vez que temos células
biológicas feitas de interações físico-químicas? A grande descoberta dos anos 50 foi que não há substância viva diferente da substância material normal. Somos feitos de
elementos químicos que existem na natureza, organizados de maneira muito mais complexa e nova. Somos a física e a química! Ora, esse é o mundo em que estamos.

Aluno — Então, o que nos deve ser ensinado?

Edgar Morin — O objetivo da escola é ajudar a aprender a viver. Certos ensinamentos não fazem parte das disciplinas, mas permite integrá-las. O que é ser humano?
Atualmente, por culpa da pedagogia, essa pergunta está completamente desintegrada. Ser humano é, sem dúvida, ser um indivíduo, mas que faz parte de uma sociedade e
de quem a sociedade também faz parte. Desde que nascemos, nos inculcam a linguagem, a cultura, o que se deve fazer, o que não se deve etc. Na verdade, nosso ser é
constituído de três partes em uma só: membro de uma sociedade, membro de uma espécie e indivíduo. Portanto, no meu modo de ver, conhecer a nossa natureza humana é
essencial. E isso passa, necessariamente, pelo ensino da incerteza. Hoje em dia, percebemos que existem fenómenos que não podemos controlar, inclusive em disciplinas como
a microfísica. Temos certeza da morte, mas não sabemos quando ela ocorrerá. Nós nos casamos, pensamos que vamos ser felizes, mas pode ser um casamento terrível.
Procuramos trabalho sem a certeza de encontrá-lo... A incerteza faz parte do destino humano, mas ninguém está preparado para enfrentá-la. Na minha opinião, a reforma do
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ensino deve, primeiro, caminhar nesse sentido.

Aluno — O senhor acha preferível que nos ensinem matérias especializadas, em vez de uma síntese num grande tronco comum?
Edgar Morin — Acho que a especialização deve vir bem tarde, para que os alunos possam ter uma cultura bem ampla, que lhes permita atingir autonomia, se orientar na
vida. A biologia está relacionada ao nosso destino, mas tudo o que cortamos em pe quenos pedaços, sejam as células ou as patas de uma rã, perde o sentido. O ensino passa por
uma compar-timentalização, uma fragmentação. O importante é reunir os saberes.

Abordagem da complexidade

Aluno — Compreendemos que a sua ideia principal é a complexidade e que os objetos devem ser abordados em todos os aspectos. Isso, de alguma forma, implica
uma multiespecialização, uma polivalência do indivíduo. Ora, ser especialista em tudo não é como não ser especialista em nada?

Edgar Morin — De fato, ser especialista em tudo é não ser especialista em nada. Raymond Aron,1 pelo que lembro, dizia que é próprio do trabalho de um especialista saber tudo
sobre um campo extremamente reduzido, ou seja, quase nada. Das duas uma: ou nos faltam conhecimentos específicos, ou temos um conhecimento tão específico que acaba
não tendo nenhum interesse. Realmente, é preciso começar com o problema do conhecimento. Se possuímos uma informação, mas somos incapazes de situá-la no seu contexto
(dividido pelas disciplinas), necessariamente teremos uma informação sem interesse. Aliás, somos obrigados a contextualizar o tempo todo — a característica da história é ser
uma ciência que con-textualiza os fatos. Como sair disso? Respostas já foram dadas por meio de reagrupamentos das ciências. Vamos pegar o exemplo da ecologia, ciência
fundamentada na ideia de ecossistema, mas que envolve muitas disciplinas. Num determinado meio, a totalidade dos seres vivos, vegetais, animais, micróbios etc., constitui uma
organização espontânea, situada num espaço físico, geográfico e meteorológico específico. No entanto, o ecologista, que se interessa pêlos mecanismos de formação e de
desequilíbrio dos ecossistemas, tem conhecimentos diversos, mas incompletos. Então deverá pedir ajuda ao botânico, ao zoólogo etc. O mesmo ocorre com as ciências da
Terra: a meteorologia, a vulcanologia, a sismologia e a geologia permaneceram separadas até o momento em que foram descobertas as placas tectônicas. A Terra se
mostrou, pois, como um sistema funcional muito complexo, e foi preciso reunir essas diferentes matérias.

Aluno — O movimento para reagrupar as ciências é, então, um movimento histórico?

Edgar Morin — É, assim como o movimento do reconhecimento da complexidade. As interações entre as diferentes disciplinas são difíceis de serem reconhecidas, mas
são necessárias. Por exemplo, a globalização, de que muito se fala hoje em dia, é um fenômeno económico que tem, também, "contra-aspectos": a homogeneização técnica
provoca movimentos de reclusão na identidade nacional e religiosa. Logo a religião e a psicologia sofrem as consequências desse econômico. Efetivamente, não se pode
separar o econômico, o histórico, o psicológico, o mitológico etc. Einstein já mostrava isso na sua época. Ele foi um globalista — matemático, pensador, engenheiro, alguém
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que tentou ter conceitos. Ele adorava tocar violão, "perdia tempo" ao se interessar pela arte e pela política. Os especialistas se limitavam a verificar suas teorias.

Aluno — E Einstein não precisava preocupar-se com política!


Edgar Morin — E os especialistas, tão vazios e idiotas quanto os seus pontos de vista, afirmam que não é preciso ter uma noção geral! É evidente que não se pode viver
sem a ideia geral, pois mesmo quando somos especialistas numa área, temos idéias sobre a vida, a Terra, o mundo, a existência de Deus,
o amor etc. Vamos resumir: é preciso ter uma cultu
ra nutrida por escritores, filósofos, moralistas e cien
tistas — Hubert Reeves, 2
homem de ciência, não
escreve regularmente sobre o universo? Então não
vamos viver sob a intimidação da especialização,
vamos ampliar, diversificar nossos campos de com
petência!?

Aluno — O senhor escreveu: "Em lugar nenhum é ensinado o que é a condição humana, quer dizer, nossa identidade de ser humano." Depois, mais adiante: "Em lugar
nenhum nos ensinam a compreendermos uns aos outros." Não está esquecendo a existência do curso de filosofia? Esse curso nos oferece a ocasião de nos debruçarmos sobre
essas questões. O senhor considera que o curso de filosofia não basta, ou simplesmente o omitiu no seu livro?
Edgar Morin — As duas frases que você citou exprimem exatamente os efeitos da especialização do trabalho. Tudo o que se refere ao ser humano foi isolado, o cérebro na
biologia, a mente na psicologia... As ciências humanas foram compartimentadas. Em primeiro lugar, a filosofia é urna reflexão sobre os conhecimentos adquiridos, sobre o
destino humano e sobre os grandes problemas do nosso tempo. Acontece que os conhecimentos são muito dispersos para que essa disciplina possa nutrir-se deles. Existe uma
lacuna muito séria. A missão de reunir precisa de um empenho tanto do mundo científico quanto do mundo filosófico. É nesse sentido que o sistema de ensino mereceria
ser reformado. Em 1951, escrevi o meu primeiro livro O homem e a morte (São Paulo, Imago, 1997), porque essa questão me parecia ser o problema-chave do ponto de
vista humano. Como é possível o ser humano, mortal como os outros animais, acreditar numa vida depois da morte? Quais são suas crenças? Como ele reage diante do
inevitável?...

Aluno — E quem encontrou as respostas para essas perguntas, o Edgar Morin cientista ou o Edgar Morin filósofo?

Edgar Morin — Precisaria fazer um levantamento em todas as disciplinas! Em O paradigma perdido: a natureza humana (Rio de Janeiro, Zahar, 1979), constatei que havia três
novos conhecimentos, mas que não estavam conectados entre si. Ao observar o comportamento de nossos primos, os macacos superiores, inicialmente descobrimos uma
grande complexidade das relações, sobretudo entre os chimpanzés. Por exemplo, foi constatado que não havia incesto entre o filho adulto e a mãe, proibição que, até então, se
acreditava ser exclusivamente humana. Ensinamos o macaco a usar a linguagem dos sur-dos-mudos e, assim, a conversar. Um chimpanzé até começou a mentir, outro fez
uma metáfora, um gorila representou a morte com o ato de dormir. Em resumo, concluímos que o mundo animal, principalmente o dos primatas, estava bem mais perto de
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nós do que pensávamos. Segunda ideia: percebemos que o homem não havia surgido de repente com sua inteligência, sua razão, suas ferramentas etc., mas que sua
história tinha de seis a sete milhões de anos, mostrando, mais uma vez, que o grande fosso entre o homem e o animal não estava desaparecendo, que havia rupturas, cortes.
Terceira noção: a teoria da auto-organização me parecia extremamente importante para compreender todos os fenómenos e processos humanos. Igualmente, essa concepção
da complexidade que faz o cérebro humano, enorme em relação ao dos antecessores, funcionar também desordenadamente. Na minha obra, falo do homo sapiens, ser
racional e sábio e, também, do "homo demens", ser louco e delirante, que encontra na própria loucura a possibilidade de imaginação e de criação.

Aluno — Jean-Pierre Gauthier, o senhor acha que nos explicou o que é o ser humano, que nos ensinou a nos compreendermos mutuamente?

Jean-Pierre Gauthier — Não cabe aos alunos dizer o que fizemos? Confesso que estou bem surpreso com suas frases: "Em lugar nenhum é ensinado o que é a condição
humana, quer dizer, nossa identidade de ser humano" e "em lugar nenhum nos ensinam a compreendermos uns aos outros." Desde o início do ano, à razão de oito horas por
semana, os professores de filosofia se preocupam em dar esse ensinamento em todos os colégios da França.
Edgar Morin — Minhas ideias sobre a filosofia são muito claras. Eu disse que quando se trata do cosmos, do mundo físico, da natureza, um professor de filosofia deveria
trabalhar em conjunto com o professor de física ou de cosmologia, e assim por diante. Não obstante, o ensino da filosofia depende muito do professor, da forma como ele
concebe suas aulas. Por exemplo, na minha época havia dois professores em duas classes diferentes: um deles terrivelmente maçante, que deve ter desencorajado muitas
vocações, o outro verdadeiramente maravilhoso. Muitos professores concebem a filosofia de uma maneira fechada e académica, achando que ela se esgota na sua história,
mantendo a opinião dos filósofos e desprezando a dos moralistas, dos cientistas. Acho que o papel da filosofia é muito importante e que ela deve estar presente em tudo,
aberta a todos os conhecimentos, nem que seja só para urna reflexão.

Aluno — Mas a filosofia já está aberta, por exemplo, aos conhecimentos científicos!
Edgar Morin — A filosofia sempre se nutriu do saber de sua época. Aristóteles quis até fazer uma síntese desse saber. Muitos dos filósofos do século XVII eram cientistas,
como Descartes e Pascal. Também podemos citar Kant e, no século XX, Bergson. Porém, existe uma tradição filosófica que se interiorizou, que se fechou em si
mesma e na história da filosofia — na qual, aliás, reconheço muitas virtudes. Husserl fez uma reflexão crítica sobre as ciências; Heidegger e os filósofos da es cola
de Frankfurt sobre o fenómeno maior do nosso século, o desenvolvimento da técnica e da ciência.

Aluno — A filosofia é a busca do conhecimento, ela nos faz estudar história, física, arte etc. Não acha que é um campo no qual estudamos tudo na sua in-terdisciplinaridade
e na sua complexidade?

Edgar Morin — De fato, a filosofia envolve tudo. Mas o importante papel do pensamento, dos conhecimentos encontrados na arte, na literatura e na poesia foi muito desprezado
pela cultura científica. Peguem o exemplo da Nona sinfonia, obra magistral de Beethoven: no fim do quarto movimento, o compositor exprimiu o que ele queria dizer,
revolta e aceitação ao mesmo tempo. Na minha opinião, é disso que se trata: aceitar as coisas, mas revoltar-se, mesmo aceitando-as. A filosofia nos permite descobrir
tudo, ela pede simplesmente um exercício de reflexão, sempre renovado. É preciso enxergar com um novo olhar, e não com um olhar já constituído.

Aluno — O senhor quer dizer que para conhecer a condição humana não é preciso um curso de filosofia completo, mas um pouco de filosofia em cada matéria?
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Edgar Morin — Primeiramente deveria haver um reagrupamento de disciplinas- sobre os grandes temas — o mundo, o universo, a vida, a humanidade. Nesses assuntos,
que podem ser entremeados de horas de filosofia, há professores mais ou menos especializados. Deve ser uma visão de acordo com a do professor de filosofia.

Jean-Pierre Gauthier — O senhor concorda com a ideia, muitas vezes citada por Popper,3 de que o grande crime dos intelectuais da segunda metade do século XX foi
pensar, dizer e ensinar que a sociedade ocidental era má?

Edgar Morin — Não. Acho que a cultura ocidental foi uma cultura contente consigo mesma, que se considerou detentora do monopólio da democracia, dos direitos humanos
etc. Isso criou uma espécie de euforia intelectual e ideológica que, por muito tempo, mascarou as contribuições das outras culturas e levou aos fenómenos de dominação de
que falávamos, à colonização, à escravidão etc. Foi só no século XX, quando a Europa entrou em decadência, que, finalmente, nos conscientizamos das lacunas do Ocidente. E
também percebemos que vivíamos numa máquina sem controle, dirigida pela técnica, pela ciência, pela economia e pelo lucro... Isso levou os intelectuais a uma visão
autocrítica, que podia ir da elaboração de ideias bem masoquistas até à rejeição. No prefácio que fez para Fanon,4 por exemplo, Sartre critica a tortura só quando ela vem do
ocidentais, e encontra justificativas — a pobreza das populações... — quando ela vem de outros povos. Sem dúvida, é totalmente legítimo fazer essa autocrítica, pois criamos
essa máquina, uma espécie de Titanic movido por quatro motores — a ciência, a técnica a economia e o lucro. Mas é preciso observar que tudo o que hoje em dia é importante
para a emancipação da humanidade, como o direito das mulheres no mundo, tem sua origem nas tendências divergentes e minoritárias dessa civilização ocidental. Em
outras palavras, a parte minoritária do Ocidente trouxe
um antídoto para a sede de domínio desse mesmo
Ocidente. É por essa razão que não posso ser tão
categórico quanto Popper. A fórmula dele precisa ser
complexificada.

1. Raymond Aron (1905-1983), sociólogo, historiador, filósofo e nalista político francês (N.T.).

2. Hubert Reeves, astrónomo canadense, formou-se em Montreal, fez doutorado em Cornell e trabalhou na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Foi consultor da Nasa e escreveu vários livros. Uma de suas obras mais
conhecidas é Um pouco mais de azul, São Paulo, Martins Fontes, 1998 (N.T.).

3. Karl Popper, Viena, 1902-1994. Estudou matemática, física, filosofia, psicologia e história da música. Ensinou filosofia na Universidade da Nova Zelândia. De volta à Inglaterra, fez estudos de filosofia, lógica e metodologia das
ciências (N.T.).

4. Frantz Fanon (1925-1961). Nasceu na Martinica, estudou medicina na Faculdade de Lyon, com sólida formação em filosofia e literatura. Adotou a cidadania argelina e engajou-se na luta pela libertação da Argélia, sob o jugo francês
desde 1930. No seu livro Os condenados da terra (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979), analisa os mecanismos de dominação na formação da consciência do povo colonizado (N.T.).

Itinerário intelectual
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Aluno — Qual é a explicação para a opinião favorável que os intelectuais, e especialmente o senhor, têm do comunismo? É verdade que ele trouxe a esperança de
uma sociedade ideal, mas ainda é comparado às tragédias e às guerras. Hoje reconhecemos que, mal empregado, o comunismo não é benéfico e chega a se mostrar nefasto.
Eu me refiro a Stalin...
Edgar Morin — Depois da revolução de outubro de 1917, o comunismo não teve grande repercussão entre os intelectuais. Entretanto, alguns deles, que tinham vivenciado
o primeiro conflito mundial como uma carnificina atroz, aderiram ao comunismo que prometia o fim das guerras — estou pensando em Henri Baibusse-, escritor que morreu
em Moscou em 1935, autor de uma obra com suas recordações de soldado durante a guerra áe 1314, ísc Fe«, <<P<2m^ Flammarion, 1916). Era a época da Internacional, da
união do género humano. As guerras, diziam, vinham do imperialismo, o estágio supremo do capitalismo. Logicamente, então, bastava eliminar o capitalismo para suprimir
as causas das guerras. Assim, as pessoas se encaminharam para o comunismo por pacifismo, por horror à guerra, e, também, para construir uma sociedade melhor. Somente
nos anos 30 o comunismo começou a despertar uma atração mais forte entre os intelectuais. Em primeiro lugar porque a União Soviética se tornara uma grande potência,
desenvolvendo uma mitologia encenada com perfeição (as pessoas que voltavam desse país falavam, por exemplo, de um mundo emancipado). Depois porque o comunismo foi
considerado por muitos intelectuais da esquerda como o antídoto contra o nazismo. O antifascismo alimentou a adesão ao comunismo.

Aluno — E o senhor, quando aderiu ao Partido?


Edgar Morin — Eu me converti ao comunismo na Segunda Guerra Mundial. Usei propositadamente o termo conversão, pois conhecia todos os elementos para não fazê-
lo. Aliás, não tinha nenhuma ilusão sobre o Partido, mas, na minha opinião, era o único capaz de se contrapor ao nazismo. Na época, eu era bem mais favorável ao movimento
trotskista, anarquista, que se viu na guerra da Espanha. Alguns achavam que os defeitos do comunismo vinham do fato de estar cercado por países capitalistas, e afirmavam
que o fim das tensões seria seguido do advento de uma sociedade melhor. Depois da liberação, inúmeros intelectuais continuaram a ser seduzidos pela força desse movimento,
enquanto eu começava a me desconverter...

Aluno — Esse lado religioso parece importante para o senhor.

Edgar Morin — Sim, porque o comunismo era uma religião de salvação terrestre que livrava, literalmente, do desespero. Havia a ideia dessa nova fé num mundo melhor,
numa humanidade melhor. Éluard nos disse: "Se não houvesse o Partido, só me restaria abrir a torneira do gás." Essa nova fé numa humanidade melhor era consequência
do aumento da laicização na Europa e no resto do mundo, do desafeto às grandes religiões. Esse entusiasmo é comparável ao que muitos intelectuais experimentaram pelo
catolicismo, no início do século XX. E que voltamos a encontrar hoje em todas as religiões, porque perdemos a esperança no socialismo e no comunismo! Eu estava entre aqueles,
inúmeros, que acreditaram nessa religião do século passado, antes que ela começasse a decair. A revolução húngara, o exér cito soviético que atirava nos sovietes (conselho
dos operários húngaros), o relatório de Kruchev denunciando os crimes de Stalin, a queda e a implosão da União Soviética em 1989, ressoaram o declínio do comunismo...
E se outros continuaram a apoiá-lo, apesar de todas as críticas e de todas as desilusões, foi porque, fundamentalmente, precisavam acreditar.

Aluno — Por que o senhor foi expulso do Partido Comunista?

Edgar Morin — Para responder de uma maneira simples, diria que foi porque eu discordava. Na verdade, houve todo um processo histórico. Fui um comunista da guerra, que
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combatia o nazismo. Tinha consciência de que coisas muito sérias haviam ocorrido por causa de Stalin, mas eu achava que a vitória do comunismo criaria um mundo liberado,
aberto, um socialismo pleno. Depois da vitória, percebi que isso não ocorreria. Com alguns amigos, comecei a fazer resistência dentro do Partido a questões culturais. Éramos
contra a arregimentação da literatura, contra a propaganda, contra o fato de se denunciar escritores que não eram comunistas ou que criticavam o comunismo. Fomos
vencidos. Outros fatos ocorreram, como a excomunhão, pelo Komintern, de Tito, chefe de Estado da lugoslávia, considerado espião contratado pêlos americanos, e também
grandes processos em que os acusados, dirigentes do partido e grandes resistentes ao nazismo, acusavam-se mutuamente de traição. Tudo isso provocou a minha aversão. Além
do mais, segredo por longo tempo guardado, fazia dois anos, desde 1949, que eu não renovava a minha carteira do Partido. Como pude manter um segredo tão bem
guardado? Porque eu me mudara! As pessoas da célula de Vanves, meu novo local de residência, acreditavam que eu milita-va com os do centro de estudos sociológicos,
que pensavam que eu militava na célula de Vanves. O jogo estava feito...

Aluno — Mas quando foi a ruptura definitiva?


Edgar Morin — Um fato decisivo ocorreu no centro de estudos sociológicos. Pierre Naville, um amigo, pediu que eu fizesse o relato de um colóquio sobre as relações entre a
cidade e o campo, organizado por L'Observateur (atual Lê Nouvel Observateur). Isso não me incomodava. Meu artigo explicava que as revoluções, iniciadas nas cidades,
teriam fracassado se não fosse o campo. E dei três exemplos: a Revolução Francesa, acompanhada do que chamamos de O Grande Medo, uma sublevação dos camponeses
contra os aristocratas; a Revolução Russa, iniciada por Lenin, com duas palavras de ordem, "poder aos sovietes" e "a terra aos camponeses", em que eu lembrava o papel
importante dos camponeses ao lado dos operários; por fim, o fato de Mão Tse-Tung, expulso das grandes cidades chinesas, ter feito a Revolução nos campos durante décadas.
Esse artigo foi motivo de um inquérito; fui convocado pêlos chefes locais do Partido que disseram que eu havia escrito para um jornal do serviço de Inteligência e me
recriminaram por eu ter caluniado Mão. Alguns dias depois, um amigo militante, zelador numa casa vizinha, disse-me que eu deveria comparecer a uma reunião. Pensei
que se tratasse de um encontro entre combatentes da paz, associação mais ou menos patrocinada pêlos comunistas. Na realidade, esse encontro foi organizado para me expulsar.
Eu diria, então, que a verdadeira razão da minha expulsão foi incompatibilidade.

Aluno — Dizem que a sociedade é responsável pela violência de certas pessoas. Também questionam a cultura e a educação dessas pessoas. Qual a sua opinião sobre
isso?
Edgar Morin — O problema da violência humana foi muito discutido. Foi preciso descobrir traços indicativos de agressões, e até de assassinatos (ob servados inclusive
entre os chimpanzés), para que as pessoas se convencessem de que as sociedades arcaicas não eram pacíficas. O que ocorre quando a violência aparece? Normalmente,
todos devem possuir alguns princípios que levam a respeitar a vida, o direito e a liberdade do próximo. Não estou falando apenas em termos morais, mas em civismo. Acontece
que, na nossa sociedade cada vez mais dissoluta, a interiorização dessa regra cívica diminui. O adolescente é o mais atingido porque é o elo fraco da sociedade; ele troca o
casulo familiar por grupos cada vez mais organizados... Quando as regras se desintegram, criam-se microssociedades, bandos que se transformam em gangues e clãs.
Desembocamos, então, numa sociedade muito arcaica, que defende o seu território, que é levada a lutar contra o clã vizinho, que possui sua própria solidariedade, sua
hierarquia, seu líder, seu chefe. Uma gangue luta contra a outra porque acha que tem o direito de roubá-la, de agredi-la... Hoje em dia, a violência se expande nos pontos mais
agitados, nos bairros onde a sociedade, impotente, busca outras respostas que não a repressão. O problema é que cada fenómeno de dissolução pode estar acompanhada
de fenómenos de degradação da família — mães abandonadas, pais embriagados, crianças que apanham etc. O mal é profundo e necessita de uma política de civilização
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de fôlego. É necessário dar às pessoas uma noção de comunidade e de solidariedade, uma tarefa que me parece muito difícil, visto que a própria sociedade está minada
pela corrupção.

Aluno — O seu ponto de vista não é um pouco teórico demais?

Edgar Morin — Com relação ao meu trabalho de pesquisa, devo dizer que, com Bernard Paillard aqui presente, fiquei durante um ano numa comuna da Bretanha, imerso
na vida das pessoas. Agora, com relação a minhas ideias políticas, não pertenço a nenhum partido, pois acho que os partidos estão muito ligados ao imediato. Expus essas
convicções nos meus livros. Minhas ideias ainda não foram colocadas em prática. Talvez nunca sejam... Mas, no fundo, o que significa ser prático nessa questão? As ideias
que têm o principal papel na prática eram puramente teóricas em sua primeira enunciação.

Aluno — Eu me referia, mais exatamente, à opinião do senhor sobre educação.

Edgar Morin — Uma vez, Claude Állègre, então ministro da Educação, me pediu para cuidar da reforma de conteúdos do ensino nas escolas. Das poucas propostas que fiz,
nenhuma foi adotada. Você pode dizer que fui teórico demais... mas, certamente, eu não teria essas ideias se fosse um homem da prática. Inicialmente, as ideias parecem
ser sempre dissidentes, utópicas e irrealistas. Depois, se um certo número de pessoas as leva a sério e as põe na cabeça, elas se tornam forças na sociedade. Elas tem o benefício
de responder ao estado concreto dos conhecimentos e às necessidades reais das pessoas, o que atualmente quer dizer saber enfrentar a incerteza, estar consciente da
complexidade daquilo que nos cerca, sentir-se cidadão do mundo, ser capaz de compreender o outro. Na minha opinião, não existe nada mais prático.

Aluno — Suas reflexões filosóficas foram inspiradas por quem?


Edgar Morin—Você me pede para eu reexaminar toda a minha vida! Digamos que sempre tive tendência para aceitar as verdades fundamentais e o contrário delas com o
mesmo interesse, porque todas as ideias contrárias ou incompatíveis me pareciam ter a sua parte de verdade. Sem dúvida foi isso que me aproximou dos filósofos que tinham
a reputação de reunir verdades contraditórias. Na história do mundo ocidental, o próprio Heráclito, no século VI anterior a nossa era, tinha fórmulas como "viver de morte,
morrer de vida", enunciado que tentei explicitar. Pascal pergunta: "O que é o homem?" Depositório da verdade? Cloaca de erros? Todas as vezes que o pensador tenta
considerar o ser humano no que ele tem de dignidade, de grandeza e de consciência, percebe tudo o que ele tem de imundo e de abjeto. Foi também Pascal que disse que "o
contrário de uma verdade, não é o erro, é uma outra verdade". As grandes verdades, as verdades profundas, inevitavelmente, têm a sua verdade contrária. E Hegel mostrou com
sua dialética que conceitos opostos podem ser superados numa ideia de síntese. Mas devo confessar que já não concordo com ele...

Aluno — Mesmo assim ele o influenciou, não?


Edgar Morin — Hegel foi importante para mim, pois ele queria abraçar todo o saber. Uma ambição, na verdade, irrealizável, mas que endossou a minha ideia de que não se
pode compartimentar os conhecimentos, separar a sociologia da história, a história da psicologia, as ciências da religião etc. O ecletismo me levou até a adotar pontos de vista
de filósofos contraditórios, confrontando, por exemplo, Hegel a Kant. O que me parece importante neste último é a maneira como enfoca o conhecimento. Segundo ele,
acreditamos conhecer os objetos, mas na realidade o que fazemos é projetar nesses objetos as categorias de nossa mente. Kant compreendeu que nossa visão das coisas não é
uma fotografia da realidade — certas frequências, os infravermelhos, os ultravioletas, de fato, não são percebidos por nossos sentidos. A ideia de que todo conhecimento é
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uma tradução e uma reconstrução — núcleo do pensamento kantiano — tornou-se fundamental. Por sua vez, Montaigne me ensinou que é preciso olhar-se para si mesmo
e fazer uma autocrítica. Todas essas fontes filosóficas reforçaram questões que já eram muito fortes em mim. Vocês sabem, sempre encontramos grandes pensadores, mas
reconhecemos "o nosso" quando ele nos revela verdades que já estavam em nós, mas das quais não tínhamos consciência, ou quando nos permite formular coisas já presentes,
porém de forma obscura, e que não conseguíamos exprimir claramente.

Aluno — Cinquenta anos depois do aparecimento da sua obra O homem e a morte, (São Paulo, Imago, 1977) o senhor tem a mesma concepção desse inevitável que nos diz
respeito?
Edgar Morin — Reconheço que passei por uma série de evoluções. Na edição de 1951, terminei o livro escrevendo que a morte não era uma fatalidade biológica, já que
células bem nutridas podem viver indefinidamente. Como a morte, uma espécie de fatalidade dos seres policelulares — nós mesmos, animais, vegetais — não está inscrita na
vida, era possível pensar que o progresso da ciência a faria recuar, não apenas em termos do prolongamento que a evolução da higiene biológica proporciona, como também
no sentido do que eu chamei de amortalidade. Amortalidade, não imortalidade, pois a morte sempre sobrevêm — é difícil imaginar que se possa sobreviver à explosão de
um avião em pleno voo! Nas edições dos anos 70, mantive esse capítulo, mas fiz algumas correções. Afirmo que havia criado para mim mesmo um mito da morte, que a
amortalidade não era concebível. Por quê? Porque, nesse meio tempo, descobri o segundo princípio da termodinâmica que mostra que em toda coisa organizada, uma dissolução
ou uma desintegração deve ocorrer mais cedo ou mais tarde. Até os sóis que têm duração de quatro bilhões de anos acabam morrendo. Segundo a teoria de um biólogo que
conheci, Orgel, mesmo que a morte não esteja programada nos organismos (as células, a vida biológica), eles funcionam como um sistema de informática — o DNA
transmite a informação para o RNA. Ele explicava: numa máquina informacional que funciona sem parar os erros ocorrem inevitavelmente. Assim como os bugs travam os
computadores, o acúmulo de erros provoca a decadência do organismo e a morte. Então, mudei de ideia. Depois, para minha grande surpresa, há um ou dois anos, Jean-Claude
Ameisen, biólogo e autor de um livro muito interessante, La sculpture du vivant, me disse: "Sabe, na primeira edição de O homem e a morte, você tinha razão..." Na verdade, o
que ocorre hoje? Em primeiro lugar, conhecemos muito melhor o que chamamos de apoptose. Desde Heráclito e o seu "viver de morte, morrer de vida", já foi possível
compreender que o nosso organismo rejuvenesce continuamente, pois as células que morrem são substituídas por células novas. A apoptose nos ensinou que as células
cometem suicídio. Num determinado momento, elas recebem informações e, obedecendo a uma ordem, se autodestroem, cedendo o lugar a outras... Nos últimos tempos,
muito se tem falado de clonagem de embrião (clonam-se células-mães das células embrionárias, células chamadas totipo-tentes, isto é, capazes de fabricar qualquer coisa,
um rim, um baço, um cérebro, mãos, dedos etc.; a partir disso, afirmou-se que o cultivo de tais células per mitiria substituir um coração doente, um fígado etc.). Desde então
— principalmente no ano passado —, fizemos um grande progresso, que tornou inútil clonar embriões: foram descobertas células-mães na medula óssea e no cérebro dos
adultos, e sabemos agora que os neurônios podem reproduzir-se. Então, basta ter a técnica, ou mesmo um produto farmacêutico, que estimule as células-mãe do cérebro, para
que indivíduos meio comprometidos possam recuperar todas as suas capacidades. A ideia de que é possível regenerar um organismo ou fazer com que ele se recupere por
si só volta com toda a força. Em outras palavras, a perspectiva de prolongar a vida humana indefinidamente, levando em consideração os acidentes, é hoje totalmente
plausível. Foi Condorcet, pensador da época da Revolução Francesa, que morreu decapitado, quem lançou a ideia de um progresso indefinido. Ele dizia que não era
absurdo pensar que a evolução da ciência prolongaria a vida humana. Certamente, é preciso ter em mente que novos vírus aparecerão, que as bactérias, tornadas inofensivas
com a penicilina e os antibióticos, recuperarão suas forças. Mas é claro que o relacionamento entre nós, humanos, e nossa espécie biológica está mudando de maneira
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fundamental. Do ponto de vista da morte, sem dúvida é isso que nos mostra o futuro.

Aluno — Não faz muito tempo a escravidão foi reconhecida como um crime contra a humanidade. Acontece que ninguém foi acusado ou considerado culpado. Qual a
sua opinião sobre esse assunto?
Edgar Morin — Em muitos crimes não podemos individualizar os culpados porque são crimes coleti-vos, executados em grande escala. Muitas vezes trata-se de uma verdadeira
máquina que se põe para funcionar. A escravidão foi uma delas. Aqueles que arrebanhavam as pessoas na África não estavam sozinhos; eles contavam com a cumplicidade
dos poderes locais, com os mercadores de escravos, com os transportadores, com os escravagistas no Brasil e nos Estados Unidos etc. Aliás, a escravidão era praticada desde
a Antiguidade. Naquela época, os escravos eram os vencidos. Em cidades como Roma ou Atenas (que, no entanto, era uma democracia) eles eram os trabalhadores. Até
mesmo um pensador como Aristóteles não considerava o escravo um ser igual a ele, mas, como escreveu, "um instrumento com vida" — o que hoje chamaríamos de
autómato, de robô. Infelizmente, aí está o maior problema das mentalidades, dessa humanidade que faz com que, num determinado momento, o inimigo não seja mais visto
como um ser humano e sim como um animal a ser explorado. Há crimes sem um culpado caracteri- t zado, isso é inegável. Até hoje, os historiadores não sabem se os campos de
extermínio provinham de uma diretiva pessoal de Hitler, de Himmler ou das pessoas ligadas a eles, assim como ignoram o papel desempenhado pela máquina administrativa
nazista. Muitas vezes os culpados são bodes expiatórios de criminosos conhecidos. Vejam as comissões do Tribunal Internacional. Essa instituição, que suposta-mente
deveria punir os responsáveis por crimes de guerra, é altamente desejável, mas infelizmente não tem autoridade supranacional e acaba julgando apenas os pequenos
torturadores. Todos esses problemas são extremamente difíceis de resolver. Na minha opinião, contra essa culpabilidade anónima que não se pode isolar — quem vocês
poderiam condenar por crimes cometidos há três séculos? —, o fato de reconhecer a escravidão como um crime contra a humanidade é um acontecimento histórico necessário,
porque não deixa que ela caia no esquecimento. E mostra, aliás, que a civilização ocidental se fez com a dominação, o assassinato e a opressão, mes mo que, em
contrapartida, tenha tido grandes méritos, como o de criar ideias que, justamente, permitiram lutar contra tudo isso.

Aluno — Nesse caso, por que esse reconhecimento chegou tão tarde?

Edgar Morin — Porque a consciência sempre chega com atraso! No início do século XX, etnólogos franceses afirmavam que existiam primitivos, ideia totalmente falsa,
pois a aventura humana começou há sete milhões de anos — aqueles a quem chamávamos de primitivos eram extremamente evoluídos, possuíam uma técnica, um
conhecimento, uma medicina etc. O orgulho e a vaidade do mundo europeu, e mais amplamente do ocidental, fez com que ele acreditasse ser proprietário da verdade e da
razão. As coisas melhoram com a conscientização do mundo e com o avanço das ideias humanistas. Mas, em geral, isso leva muito tempo.

Aluno — E a sua opinião sobre a globalização?

Edgar Morin — Estamos numa época planetária. Falamos de globalização há alguns anos, porém ela é uma etapa de um processo que começou em 1492, com a conquista
das Américas e as viagens de Vasco da Gama pelo mundo. Naquela época, a batata e o milho foram levadas da América para a Europa. Esse movimento foi feito por meio
da dominação, da conquista, da escravidão, da servidão e, posteriormente, da colonização. A globalização se realiza com um lado dominante maldoso. Lembrem-se de que
a maioria dos teólogos dizia que como o Cristo nunca esteve na América, os índios não eram humanos. Foi preciso que um padre espanhol, Bartolomeu de Lãs Casas,
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contradissesse essa ideia para que pudéssemos ver essa população, ao menos teoricamente, restabelecida na sua dignidade. Toda necessidade de dominação foi, então,
transferida para a escravidão dos negros deportados da África. A abolição da escravatura, produto da última globalização, chegou muito tarde e parcialmente no século
XIX. Porém, nesse meio tempo, pensadores como Montaigne compreenderam que toda civilização tinha o seu valor, demonstrando que não se podia considerar o mundo
europeu como o único a possuir virtudes. Nas Cartas persas, ao imaginar os persas visitando Paris, Montesquieu (ele realizou de maneira fictícia o trabalho dos
etnógrafos indo estudar os costumes das populações em regiões da América e da África) queria que os franceses se abrissem, que pudessem olhar para si mesmos e fizessem
uma autocrítica Aluno — E onde estamos atualmente?

Edgar Morin — A descolonização deu lugar a outra hegemonia, a da economia. Hoje em dia a questão é saber se o reinado da mercadoria, da moeda e do lucro vai determinar
tudo. Na minha opinião, uma segunda globalização começou ao mesmo tempo que a primeira, bem mais modesta, contraditória e, até o momento, secundária. É interessante
acompanhá-la... Os princípios dos direitos humanos e da Revolução Francesa se estenderam por todo o planeta, mas é bem verdade que não totalmente. Depois de muitas
regressões, no século XX a ideia de democracia progrediu. Atualmente, muitas associações se dedicam ao terreno humanitário. A Anistia Internacional defende os prisioneiros
vítimas de condenações arbitrárias e de torturas; a Survival International cuida de pequenos povos na Amazónia, na África, na Ásia e na América, subjugados e ameaçados
de destruição pelas grandes nações; o Greenpeace se dedica a defender a biosfera, ameaçada pela degradação ecológica. Essa é a segunda globalização! A ideia que defendo
em Terra-pátria é o surgimento de uma forma de pensamento fundamentada na solidariedade, capaz de enfrentar a globalização baseada no cálculo e no lucro. Hoje, todos
estamos sujeitos às mesmas ameaças globais, nucleares, ecológicas, à Aids, a novos vírus. Tentamos ter uma vida civilizada que possa superar os estados de guerra, de
violência e de barbárie que reinam na Terra. Por muito tempo essa segunda globalização foi confundida com o que a mídia chama de antiglobalização. No entanto, ela é a
única maneira de responder ao desafio atual. Enquanto não tivermos consciência dessa comunidade de cidadãos da Terra, que eu chamo de terra-pátria, as forças dominantes
no presente continuarão a fazer as leis.

Aluno — O capitalismo e o individualismo não deformam o comportamento do homem? O senhor diria que a globalização perverte o comportamento humano, ou
simplesmente que ela é um sinal de adaptação do homem?

Edgar Morin — O lado positivo do individualismo moderno é dar a todos mais responsabilidade e autonomia; o lado negativo é degradar a solidariedade e aumentar a
solidão. É muito difícil influenciar todo mundo, mas todos têm em si forças de resistência. Sem dúvida, isso explica por que a marca das propagandas intensas, como o
comunismo stalinista, o maoísmo e o nazismo, se dissolveram assim que esses regimes deixaram de existir. Na minha opinião, é preciso se constituir uma nova so-
lidariedade. Os seres humanos não podem viver num mundo baseado unicamente na quantidade, no cálculo, no lucro: eles precisam de relações afetivas, de amor. Li esta frase
do biólogo chileno Humberto Maturana: "Nós, os seres humanos, somos animais que temos a necessidade de estar unidos pelo amor." O amor não é apenas um recurso para
nos ajudar a viver, é, também, a finalidade de nossas vidas. Ninguém pode dispensá-lo.

Aluno — Nada morre, tudo se transforma...

Edgar Morin — Os elementos químicos do nosso corpo não morrem com a nossa morte, eles se transformam. O que morre, verdadeira e radicalmente, é o nosso ego, o nosso
eu, nossa identidade. A não ser que acreditem numa religião que lhes dê a imortalidade, vocês morrerão também, isso é certo!
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Posfácio; í '

Para uma compreensão dos saberes...

Para os nossos pesquisadores, não se tratava de um projeto fácil. Como despertar a curiosidade dos alunos para a obra de um pensador cujos princípios são contrários ao
que é ensinado nos programas escolares? Como mostrar para eles que o nosso objeti-vo era ajudá-los a enfrentar a vida e a viver? Como explicar-lhes que isso é possível,
desde que saibamos inserir os conhecimentos no contexto e no global, desde que saibamos organizá-los, reuni-los, fazê-los convergir para o ensinamento da condição humana,
desde que saibamos ensinar a cidadania terrestre. Sem dúvida, isso exige um espírito crítico: uma "cabeça boa".
Eu e meu colega, Bernard Paillard, selecionamos os temas de discussão que poderiam ajudar os alunos a ilustrar o pensamento de Edgar Morin e fazê-los dialogar com
terceiros. Era uma maneira expres siva de fazê-los perceber algumas das ideias do autor, sobretudo aquelas sobre a transdisciplinaridade e a reforma do pensamento. Em resumo,
procurávamos estabelecer um diálogo entre o pensador e os estudantes em torno de uma reflexão sobre o Saber e os saberes. Por que e como a organização dos conhecimentos
precisa ser percebida de modo interati-vo? Por que e como devemos avançar na direção de um paradigma da complexidade? Essas perguntas não poderiam ser debatidas sem
uma preparação prévia. Por isso, a anuência — e, sobretudo, a colaboração — dos professores, nos foram indispensáveis.

Optamos por seguir o molde da programação clássica do ensino. Com os alunos dapremière littéraire, O encontro com Edgar Morin e todos os trabalhos preparatórios foram
realizados no âmbito dos traba lhos pessoais dirigidos, trabalho em grupo que originou a realização de um dossiê sobre a ideia de "fronteiras interétnicas". Com os alunos
dapremière economique et sociale foi realizado um diálogo e conversas entre os alunos e os pesquisadores no âmbito da educação cívica, jurídica e social, o que nos
era muito conveniente para tratar de temas que fizessem parte da realidade cotidiana dos alunos: a cidadania, o papel da escola, a condição planetária do homem etc. É
preciso observar que o que foi feito com os trabalhos pessoais dirigidos e com a educação cívica, jurídica e social eram experiências novas, que tivemos de adaptar aos
nossos objetivos. Finalmente, com os alunos de filosofia, adotamos um procedimento de discussão em torno da iniciação ao pensamento filosófico de Edgar Morin.
O trabalho foi muito fecundo. Nosso objetivo não
era complexificar o modo como pensavam, e sim
iniciar os alunos numa reflexão sobre temas impor
tantes para enfrentar a vida num mundo planetário,
integrando as disciplinas existentes no programa de
ensino.
No momento atual, em que a moda está mais para a repressão do que para a compreensão, outras experiências foram postas em prática. Prosseguimos, com Bernard Paillard
e outros pesquisadores que aderiram à causa, os diálogos entre estudantes e cientistas, graças à ajuda e à confiança do ex-ministro da Educação, Jack Lang, ao seu
conselheiro, Jean-Pierre Philippe, e ao apoio contínuo do programa do CNRS "Paixão pela pesquisa", dirigido por Jean-Louis Buscaylet. Nosso obrigado a todos.
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"Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar...". Com os versos do poeta António Machado, cantados por Joan Manuel Serrat, encerram-se os diálogos
radiofónicos na France Culture entre Edgar Morin e os alunos do liceu Jacques-Decour. Foi, sem dúvida, uma forma de caminhar na direção da complexidade, símbolo
particular do pensamento de Edgar Morin. Fazemos questão de agradecer a sra. Laure Adler, diretora da France Culture, e a sra. Marie-France Nussbaum, por nos ajudar
a realizar o programa em torno de Edgar Morin. Por fim, nosso muito obrigado a Jean-Pierre Lorenzati, diretor do liceu Jacques-Decour, aos professores que participaram
da experiência, Élisabeth Brisson, Charles Bonizec, Jean-Pierre Gauthier e aos alunos das três classes e a Daniel Percheron.
Alfredo Pena-Vega e Bernard Paillard La Turbie, julho de 2002

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