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Márcio Silveira

O Eunuco

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Agosto - 2018
© Copyright by, Márcio Silveira
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9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser
utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma,
nem apropriada e estocada sem a expressa autorização
do autor.

Dados Internacionais de Catalogação na


Publicação (CIP)
Silveira, Márcio
O Eunuco - Márcio Silveira, Cabo Frio, RJ. Visão
Editora, Publicação 2018. 14x20 cm. 304pg
Diagramação, capa, impressão: Visão Editora
1ª edição - 1ª impressão

ISBN: 978-85-67270-63-0

FILOSOFIA E TEORIA DA RELIGIÃO


CDD- 210

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS 7
PREFÁCIO 8
CAPÍTULO I
TRAIÇÃO E MORTE 9
CAPÍTULO II
O SÁBIO 26
CAPÍTULO III
OLHOS EM TODA A PARTE 37
CAPÍTULO IV
O PRIMEIRO MILAGRE 50
CAPÍTULO V
A DOR DE KABENNA 66
CAPÍTULO VI
OS SEPULCROS DE GHERALTA 113
CAPÍTULO VII
“EU SOU O QUE SOU” 126
CAPÍTULO VIII
O SEGUNDO MILAGRE 140
CAPÍTULO IX
A CAMINHO DE ROMA 163

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CAPÍTULO X
O PRESENTE DO REI LAGABORA 182
CAPÍTULO XI
O TESOURO DE MOFAR 204
CAPÍTULO XII
O TERCEIRO MILAGRE 225
CAPÍTULO XIII
FILIPE E O EUNUCO 240
CAPÍTULO XIV
O REENCONTRO 258
CAPÍTULO XV
O QUARTO MILAGRE 273
CAPÍTULO XVI
O GRANDE FAVOR DE DEUS 287

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Deus Eterno por me conceder saúde e inspiração


para concretizar mais este sonho, por seu perdão e amor
incondicional. Por sua mão de misericórdia sempre estendida
sobre minha vida.

“Dificuldades preparam pessoas comuns para


destinos extraordinários”
C.S LEWIS

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PREFÁCIO

A obra tem como temas centrais a fé, a perseverança, a


superação, a amizade e o amor que unem os personagens
principais. A narrativa por vezes revela de forma implacável a
maldade humana e a capacidade que o ser humano usado por
Deus possui de resistir às ações nefastas dos seus algozes.
A resiliência e o perdão são outras marcas indeléveis nesta
linda história de ficção ancorada no personagem bíblico contido
no livro de Atos capítulo 8. Imergi profundamente em minha
imaginação com o propósito de discorrer acerca deste homem
que a meu ver deve ter exercido grande influência em seu reino
após conseguir encontrar respostas aos seus questionamentos.
Por fim, desejo sobremodo que a leitura seja agradável e capaz
de captar a sua atenção até a última frase.

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CAPÍTULO I
TRAIÇÃO E MORTE

Após todos esses anos ainda me recordo com exatidão de todos


os momentos que vivi intensamente na companhia dos meus
pares e do meu grande amigo Awash. Foram épocas de muitas
batalhas, traições, perseguições e sofrimentos para nós. Nossa
terra estava maculada com sangue inocente, dominada e sob o
jugo romano. Conquistadores inexoráveis que nos imprimiam o
maior sofrimento de todos, que matavam nossa gente,
estupravam nossas mulheres e escravizavam nossos homens.
Um passado onde éramos governados por uma rainha ilegítima
que havia usurpado o trono da sua irmã com o apoio do General
Marcius, comandante da legião romana em nossa terra, onde o
poder, interesses mesquinhos e a sedução ditavam as regras do
jogo. Época de grande fome e falta de esperança, até que,
descobrimos que o amor, a união e a fé poderiam nos livrar da
opressão, poderiam nos dar uma oportunidade de tentar sermos
livres e felizes, mesmo com nossas forças quase inexistentes. A
atitude de um homem contribuiu e desencadeou a maior
revolução que se podia vivenciar. A descoberta de um Deus que
tinha o poder para libertar uma nação, derrotar exércitos, abrir

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mares, transformar um povo, também poderia nos conceder
redenção e vitória. Nossa maior arma em muitos momentos foi
a fé. Mesmo agora, após todos esses anos, ainda sinto todas
essas miríades de emoções à flor da pele. Muitas das coisas que
vou relatar aqui foram fatos por mim presenciados e outros
tantos por outras pessoas e amigos mais próximos que em
algum momento puderam se maravilhar com a força
transformadora do amor e da perseverança. Então me deixe
iniciar os relatos a partir dos acontecimentos que
desencadearam nossa saga.

Naquela época a rainha Shebelle era a soberana do nosso povo,


rainha da linhagem das antigas guerreiras “Meroe”. Mulher
justa, de muita coragem e sabedoria, mas que possuía uma irmã
mais jovem chamada Dawa que era a materialização da
maldade; princesa vaidosa, arrogante e egoísta, que só pensava
na sucessão do trono, em tomar o lugar da sua irmã. Mesmo
que para isso, tivesse que derramar sangue e instaurar o caos.

O centro do poder de nosso reino ficava na cidade de Axum,


nossa capital. Ali eram realizados os grandes acordos
comerciais com os romanos, egípcios, gregos, fenícios, dentre
tantos outros povos. Os principais produtos comercializados
pelo reino eram as pedras preciosas, além de grãos como milho

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e feijão. O grande obelisco no centro da cidade era a forma
imponente que traduzia a majestade do nosso reino. O palácio
era deslumbrante, cercado com jardins de toda a sorte de
árvores frutíferas, flores belas e todo o seu entorno era
perfumado pelo aroma que se desprendiam das mais belas
plantas. O Nilo “Azul” banhava nossas terras e transformava
nosso solo em terras férteis, nos dava os mais variados tipos de
peixes que ajudavam na alimentação de grande parte do povo.
Adorar o Nilo foi uma das heranças deixadas pelos egípcios,
além de seus deuses Amon e Apedemak. Os lagos Turkana e
Tana eram nossos maiores patrimônios naturais, pois banhavam
nossas terras altas e faziam com que nosso reino se expandisse.
Ao norte e sul tínhamos os Montes Batu e Talo, que serviam
como barreira física contra invasão de povos inimigos do reino.
A depressão de Afar e as montanhas Siemen eram
estrategicamente importantes, pois dificultava a locomoção de
homens sobre animais, haja vista, seu solo irregular e íngreme.
Nossa maior benção eram as chuvas que sempre na mesma
época do ano nos agraciavam com sua chegada e, sua partida
era sentida por todas as tribos e povos do nosso reino. Mas era
no palácio longe de todas as belezas naturais do nosso reino que
nossa história tomava forma.

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- Tenho tido maus pressentimentos ultimamente, sonhos que
me aprisionam dentro de um mar de angústias sem fim. Me
vejo juntamente com meu povo sendo levado a cativeiro pelos
romanos, muito sangue de inocentes, nossas terras sendo
queimadas e nosso palácio sendo habitado por toda espécie de
animais selvagens, simplesmente aterrador e isso me preocupa
demais. O que você acha, Mofar?

- Bem minha rainha, não creio que os romanos sejam nossa


maior preocupação, temos os povos do sul que insistem em
pilhar nossas vilas, temos os beduínos mais ao norte que
assaltam nossas caravanas e ainda precisamos administrar
nossas relações com o Imperador Tiberius, que a cada dia que
passa nos cobra mais impostos para garantir a segurança do
reino e a manter as rotas de comércio intactas de assaltos. Se
somos fonte de lucro para os romanos, por que devemos nos
preocupar com eles? Se me permite um conselho, sugiro que
Vossa Excelência faça uma viagem ao Lago Tana, desfrute de
um pouco de paz e revigore suas energias. Talvez estes maus
pressentimentos sejam fruto do cansaço, nobre rainha.

Mofar era um homem magérrimo e muito alto, suas mãos


pareciam galhos secos de uma figueira; seus olhos eram tão
próximos um do outro que por muitas vezes, dependendo do

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ângulo de onde se olhava, dava a impressão que possuía um
olho só, como um ciclope. Porém o que mais chamava a
atenção eram seus dentes, que pareciam sempre prontos a nos
despedaçar e isso me causava muito medo.

Prontamente atendendo os conselhos do sacerdote real, a rainha


Shebelle reuniu sua comitiva e partiu rumo às terras altas. Entre
os que a acompanhavam, estavam a sua única filha Kabenna,
sua grande amiga Mille - grávida do seu primeiro filho - casada
com o chefe da segurança do palácio, o general Ganale Dorya e
muitos de seus anciãos oráculos. A princesa Kabenna era uma
criança linda, possuía grandes tranças nos cabelos, a cor de seus
olhos assemelhava-se a favos de mel, sua pele tratada com o
mais puro óleo de baobá exalava um aroma muito gostoso,
além de ser muito obediente e carinhosa com todos, até mesmo
com os serviçais do palácio.

O que a rainha Shebelle não desconfiava é que Mofar, seu


conselheiro e sacerdote estava arquitetando juntamente com sua
irmã Dawa uma forma de destroná-la e assim iniciar uma nova
era no reino de Abissínia. Para tal fato, eles contavam com o
apoio do General Marcius, que via nesse plano uma forma de
aumentar o poderio romano na região e ainda auferir mais
lucros ao imperador. Sua natureza era niilista, seu único

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pensamento era infringir dor e pavor aos povos conquistados.
Era temido por sua maldade ímpar ao ponto de ser mal quisto
pelo próprio senado romano.

- Dawa, minha futura rainha! Aproveitemos a ocasião para


colocarmos em prática nosso plano. Consegui convencer Erer,
o capitão da guarda, que passou a ser o homem da minha mais
estrita confiança e que aguarda apenas nosso sinal. Ele e mais
de trezentos homens sob seu comando estão prontos. O General
Marcius está com mil soldados ao redor da cidade e sedento por
iniciar as incursões, falta apenas sua ordem.

- Mofar, Mofar! Hoje tomaremos a capital e ainda hoje todos se


curvarão ante a mim. Sofri muitas humilhações aqui no palácio,
não me deixavam participar das decisões militares nem das
relações comerciais. Era mera peça de adorno, descartável e
obsoleta. Mas agora todos sentirão minha força, minha
capacidade de governar será conhecida para além do Mar
Vermelho, até nos confins da terra eu serei conhecida. Tiberius
não é símbolo de crueldade, eu sim serei a soberana mais cruel
que o mundo já viu. Até o sol se esconderá da minha presença!

Então naquela mesma noite os soldados sob o comando do


capitão Erer entraram no corpo da guarda e mataram a fio da
espada todos os que ali se encontravam a fim de evitar qualquer

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rebelião contrária ao golpe da rainha Dawa. Começando pela
capital Axum, todas as grandes famílias importantes que aqui
residiam e que não concordaram com as imposições do novo
reinado e que de certa forma detinham riquezas foram
assassinadas, oficiais fiéis a rainha Shebelle e suas famílias
foram tirados de suas casas e mortos em plena rua. Todos os
que tentavam fugir da cidade eram capturados pelas tropas
romanas que esperavam ao lado de fora dos muros que
circundavam a capital e eram mortos ali mesmo. Antes do
amanhecer milhares de corpos estavam sendo queimados nas
diversas fogueiras espalhadas por toda a capital, Axum. A
barbárie fez verter sangue da nossa própria gente, as trevas
encobriram nosso céu, nossos jardins choravam através de suas
árvores que derramavam suas folhas como sinal de luto por
nosso povo, os gritos e gemidos ecoavam por milhares e
milhares de quilômetros.

Enquanto isso, lá distante nas terras altas, a rainha Shebelle se


recuperava na companhia de sua filha e seus amigos. Todos se
alegravam pois havia nascido o filho de Mille, sua fiel
escudeira, a quem pois o nome de Awash, que em nosso idioma
significa “Inundado”; inundado de amor, de coragem e força,
até que transborde e contagie outras pessoas que estão à sua
volta, dizia ela ao escolher tal nome. Infelizmente ninguém
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naquele lugar imaginava o que acontecia na capital do reino e
apenas comemoravam com muita música e se banqueteavam
com as iguarias ali preparadas. Mas em meio a grande festa,
havia uma pessoa que nunca se distraía, sempre estava alerta e
atenta ás circunstâncias, este era o general Ganale Dorya. Era o
soldado mais bem preparado do exército real e muito fiel a
rainha, além de ser seu amigo pessoal, pois haviam sido criados
juntos dentro dos muros do palácio; era um homem forte com
cicatrizes por todo o seu corpo, provenientes das diversas
batalhas travadas por ele, sendo a que mais chamava a atenção
pelo que me recordo era um corte que tinha em seu rosto que ia
de um lado ao outro; esse corte havia afetado seu olho direito e
devido a isso perdera a capacidade de enxergar de tal olho.
Porém algo lhe chamava a atenção, ele não sabia explicar o que
era, mas com certeza não era um bom sinal. Chamou a rainha
Shebelle em particular e sugeriu que antecipassem seu regresso.
Tomado por um instinto de prudência pediu que a rainha
enviasse sua filha, a princesa Kabenna, e um pequeno grupo de
soldados a um local só conhecido por ele e sua esposa Mille,
pois pressentia que algo ruim estava prestes a acontecer. Esse
lugar ficava no Monte Batu, em meio a uma floresta que era
densa e muito vasta, e servia de ambiente seguro para uma casa
construída por ele, justamente caso algo viesse acontecer. A

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rainha Shebelle relutou bastante, mas concordou com o plano
desde que sua esposa Mille e seu filho recém-nascido fossem
juntos. O general acatou a vontade da rainha e se prepararam
para a partida.

- Rainha Dawa, o general Marcius solicita uma audiência com


vossa excelência. Aproveito para salientar que devemos
reforçar nossa aliança, haja vista, que ainda teremos que
interceptar a rainha Shebelle e sua comitiva antes que eles
adentrem os portões da cidade de preferência em ambiente
ermo, longe daqui. Porém se algo sair errado e eles
conseguirem chegar à capital, temos que enfrentá-los durante a
noite, já que há menor trânsito de pessoas no mercado central e
as caravanas de comércio já terão partido.

- Não se preocupe Mofar. O general Marcius fará o que eu


mandar e, no que tange a minha irmã, eu já sei o que vou fazer.
Quero que ela sofra, que ela chore, sinta dor dilacerante a ponto
de pedir pela sua morte. Todos os que estiverem com ela
sentirão a minha ira. Deixe-me ir ter com o general, avise que
estou indo.

Naquela conversa nefasta decidiram que iam emboscar a


comitiva da rainha próximo a depressão de Danakil e que todos
os servos que estivessem na comitiva seriam mortos ali mesmo,

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sendo poupados somente a rainha, sua filha e o general Ganale
Dorya. Outro ponto importante era que a esposa do general
Ganale Dorya deveria ser decapitada na frente de todos, pois a
rainha Dawa nutria muita inveja por ela, só pelo simples fato de
Mille ser a melhor amiga da sua irmã.

E assim o general Marcius incumbiu seu centurião e ajudante


de ordens, o capitão Valerius Curius, de realizar tal missão.
Valerius Curius era o responsável em colocar em prática todas
as insanidades que se projetavam da mente do general Marcius.
Era como se fosse uma extensão do corpo do general, sendo
olhos, ouvidos e tentáculos que alcançavam todos que se
opunham aos planos do general e os eliminavam da face da
terra.

No caminho de volta à capital a rainha e sua comitiva foram


surpreendidos no Vale de Sennar por soldados romanos e da
nova guarda da rainha Dawa. Naquele lugar o general Ganale
Dorya lutou bravamente, ferindo de morte mais de cinquenta
soldados romanos e antigos companheiros seus. Os soldados
que o acompanhavam na viagem deram sua vida para defender
a rainha Shebelle e todos os outros que ali estavam. Porém em
maior número e fazendo uso do fator surpresa proporcionado
pela região, o capitão Valerius Curius e seus soldados

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obtiveram a vitória. Seguindo literalmente as ordens do general
Marcius, mataram todas as servas, servos, crianças e jovens que
estavam na companhia da rainha. Os sábios que aconselhavam
à rainha foram enterrados vivos e os anciãos simplesmente
foram enforcados. Tiveram suas vidas preservadas somente a
rainha e o general. Indagados sobre o paradeiro de uma serva
por nome Mille e da princesa Kabenna nada disseram e, tal
gesto deu início aos intermináveis castigos físicos e
psicológicos.

- Permita me apresentar, sou o capitão Valerius Curius, já deve


ter me visto em algum momento no palácio, mas general
Ganale, primeiramente meus parabéns pela bravura,
deveríamos ter em Roma mais homens assim como você,
porém como mataste muitos dos meus soldados não poderia
deixar de lhe castigar por isso. Mas se você colaborar e me
disser onde elas estão lhe prometo que não sofrerá até chegar a
presença da rainha Dawa.

- Não existe rainha Dawa seu idiota, há apenas uma rainha e


soberana da Abissínia, e ali está ela, olhe bem e contemple a
verdadeira realeza. O que essa mulher prometeu a vocês, porcos
romanos? Ouro, prata ou ébano? Nada disso vale a vida de
inocentes, nada disso será suficiente para comprar a lealdade do

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nosso povo. E mesmo que tire minha vida, jamais lhe direi
onde elas estão. Faça o que tiver que fazer comigo.

Não satisfeitos por terem cometido tal barbárie, o capitão


Valerius permitiu que muitos dos seus soldados estuprassem a
rainha pedindo apenas que não lhe marcasse o rosto nem a
levassem à morte, que fossem carinhosos com ela. Já o general
Ganale Dorya teve seu braço que era usado para manusear com
extrema habilidade espadas e lanças decepado, surrado e
arrastado por cavalos para a diversão de todos. Então ao final
da sessão de tortura seguiram em direção à capital Axum.

Distante dali nas colinas do Monte Batu, a princesa Kabenna,


Mille e Awash, seu filho recém-nascido, chegavam a cabana na
qual iriam se instalar. Era um lugar lindo e seguro, próximo as
margens de um grande lago. A atmosfera presente naquele
lugar ajudava na superação da saudade que sentiam de todos,
principalmente da rainha e do general. Os soldados que a
acompanhavam se retiraram dali e retornaram por outro
caminho que os conduzisse ao lugar pré-determinado pelo
general Ganale Dorya para se encontrarem, porém antes que
chegassem ao seu destino foram mortos por tropas romanas,
próximo ao vale onde seus amigos também foram mortos. Mille
pedia aos deuses proteção para saber cuidar das crianças

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enquanto seu marido não retornasse para buscá-los, pois não
sabia quanto tempo ao certo iriam permanecer naquele local.
Os soldados haviam deixado uma boa quantidade de
mantimentos, além de uma cabra e certo valor em moedas que
poderiam ser usadas caso precisassem comprar algo nas vilas
mais próximas. Deixaram também roupas comuns e queimaram
tudo que os ligassem de certa forma a família real.

Muito distante dali, no palácio, a rainha Dawa havia sido


informada que os prisioneiros haviam chegado. Eles foram
jogados na masmorra sem água, comida e tratamento para suas
feridas. A morte se apresentava de maneira imponente e isso
era nítido nos semblantes da rainha e do general. Porém, pior
que a morte física era a decepção da rainha Shebelle para com a
sua irmã. Ela não compreendia o porquê de tanto ódio, sempre
havia lhe tratado com amor e respeito, sempre a preservou das
decisões mais difíceis. Seu coração e mente estavam feridos de
morte, o que ainda a mantinha viva era a lembrança da princesa
Kabenna e saber que ela estava a salvo graças ao General
Ganale Dorya.

Ao anoitecer o carcereiro os levaram aos fundos do palácio, em


meio ao jardim das rosas; local escolhido por Dawa
propositalmente, pois era ali que a rainha e sua filha passavam

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a maior parte do tempo. No jardim encontravam-se além da
rainha Dawa, o seu conselheiro Mofar, o General Marcius, o
capitão Valerius, Erer que era o capitão da guarda e um
capataz. Os servos que presenciaram o que acontecera naquela
noite disseram que todas às rosas deixaram cair suas pétalas,
era como se elas chorassem por tamanha covardia e crueldade.

- Prostrem-se ante a soberana da Abissínia, a rainha Dawa,


exclamava Mofar.

- Vejo que daqui de onde estou você não me parece tão


imponente assim minha irmã! Aliás, você nunca deveria ter
merecido o título que possuía. Você era fraca, sensível e
benevolente demais com aqueles que mereciam castigo e morte.
Eu sou a escolhida dos deuses para governar com mãos de ferro
nossas vastas terras e com a ajuda de Tiberius seremos umas
das maiores nações do mundo. Serei tudo o que você jamais
conseguiu ser.

- Menos ser mãe minha irmã. Nisso os deuses não lhe


agraciaram, pois acho que já haviam previsto que você seria
essa pária, não passaria de uma meretriz que se deita com os
poderosos para conseguir aquilo que deseja. Minha honra será
por mim testemunha, meus olhos se cerrarão e no além-mundo
ao abri-los novamente serei recebida por Apedemak.

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Então possuída de extrema ira a rainha Dawa tomou a espada
do general Marcius e com um golpe decepou a cabeça da sua
irmã. A terra ficou escarlate, o sangue espargido sobre todos
que ali estavam impregnou não só às vestes mas também as
almas. O general Ganale Dorya chorava silenciosamente e
clamava aos deuses que multiplicassem seus dias na terra para
que pudesse ter vingança. Mas o general Marcius desejava
tirar-lhe à vida, porém a rainha o proibiu, permitiu que o
ferisse, mas não o matasse. O general Marcius segurou um
punhal e o colocou nas brasas dos fogareiros que iluminavam
os jardins do palácio e então ao rubor do metal incutiu-lhe nos
ouvidos, deixando-o instantaneamente surdo. Para concluir a
sádica sessão de tortura cortou a língua do general e jogou aos
cães que ficavam vigiando os jardins reais.

A rainha ordenou aos médicos do palácio que não deixasse o


general Ganale Dorya morrer pois queria que ele fosse
mandado para as minas de ouro que ficavam no planalto de
Gheralta, de onde ninguém havia conseguido sobreviver mais
de um ano, ainda mais alguém ferido gravemente, surdo e
mudo.

As minas de ouro do planalto de Gheralta recebiam presos de


guerra, escravos fugitivos e todos os demais que eram

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condenados durante a audiência com a rainha. Era um lugar que
inspirava pavor, isolado da civilização, onde às temperaturas
giravam em torno de 50 graus durante o dia na superfície e
mais de sessenta graus no interior da mina, os cheiros de suor e
dos corpos que ficavam em estado de decomposição no interior
da mina se misturavam produzindo uma essência que os
prisioneiros colocaram o nome de “aroma de Duat”. O trabalho
exaustivo de até dezesseis horas por dia sem interrupções era o
que havia de pior naquele lugar esquecido pelos deuses, por
vezes, os prisioneiros eram acorrentados uns aos outros e
ficavam sem ver a luz do sol por meses seguidos. O índice de
mortandade era gigantesco e isso demandava um número maior
de condenados a fim de manter a cota de extração de ouro
diária. O calor era insuportável e a punição para quem tentasse
fugir das minas era a morte por desmembramento. Essa era a
razão pela qual a rainha poupou a vida do general.

A rainha Dawa tinha outra preocupação, precisava encontrar


sua sobrinha rapidamente, pois tinha planos específicos para
ela. Pelo fato de ser estéril não lhe foi concedida gerar uma
herdeira para a sucessão do trono e isso poderia ser visto como
sinal de não favorecimento dos deuses ao seu domínio sobre o
império. Então intencionava em usar sua sobrinha para lhe
gerar uma filha e herdeira mantendo a linhagem da sua família.
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Se tudo acontecesse como planejado, após a concepção da
criança poderia reservar a princesa Kabenna o mesmo
tratamento dado a sua mãe.

Nas montanhas, Mille cuidava das crianças e procurava se


adaptar àquela nova situação, sabia no seu íntimo que algo de
muito grave havia acontecido e que agora ela era a responsável
pela sobrevivência de todos. As lembranças de seu marido era o
que mais incomodava, a saudade do seu toque, da sua voz e
principalmente do seu cuidado. Perguntava aos deuses se seu
marido jamais iria conhecer seu filho, se jamais iria ver sua
rainha e se nunca mais voltaria para a sua casa. Agora ela era
serva de si mesma e precisava aprender a pescar, plantar, caçar
e ordenhar o único animal que possuíam. Mas sempre que
olhava para o pequeno Awash e para a princesa Kabenna suas
forças se multiplicavam, a esperança antes adormecida era
despertada a cada nova manhã. O som do vento nas copas das
árvores em consonância com o movimento dos galhos produzia
uma sinfonia que por muitas vezes serviam de distração
naquela paisagem belíssima e solitária.

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CAPÍTULO II

O SÁBIO
Dez anos se passaram desde que a rainha Shebelle foi morta e o
general Ganale Dorya fora mandado aos serviços forçados nas
minas de Gheralta, ninguém nunca mais havia tido notícias
dele, todos na capital do reino acreditavam que estava morto.

O reino havia se transformado em um lugar temerário, onde


todos vigiavam todos e todos eram os olhos da rainha, nada
fugia ao seu controle nem aos de seus soldados. Tudo aquilo
que o campo produzisse, noventa por cento eram levados ao
tesouro real, o restante ficava com os lavradores para alimentar
suas famílias e realizarem escambo por outras coisas que
precisassem para continuar produzindo. Os trabalhadores das
minas, caso não entregassem as cotas de metais preciosos pré-
estabelecidas pelos fiscais da rainha, eram duramente
penalizados e, a sentença capital imposta era a morte por
crucificação, método eficaz introduzido pelo General Marcius e
especialmente exportada das mentes mais sádicas de Roma.

Os comerciantes que realizavam seus negócios na capital


Axum, principalmente aqueles que negociavam linho, mirra,
pedras preciosas eram sobre taxados, porém, possuíam certa
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complacência por parte da rainha e desfrutavam de certas
benesses que ao povo não era delegada. Os vendedores de
escravos tinham um papel fundamental já que a maior parte de
suas mercadorias eram adquiridas pelo próprio reino a fim de
manter funcionado as minas de extração de minérios.

A única certeza que o povo possuía era que a fome estaria


sempre presente um dia após o outro, o medo era o sentimento
universal dos quais todos compartilhavam, o terror criava
delatores e deletados, não havia culpados ou inocentes, a única
alternativa era sobreviver, mesmo que para isso tivesse que
conspirar contra seu próprio sangue. Toda a população do reino
era identificada atrás de plaquetas com seus nomes atadas ao
pescoço por um cordão de couro e só podiam comprar ou
vender algo apresentando esse tipo de identificação.

Porém o que mais trazia dor ao povo era a política do


primogênito implementada pelo sacerdote Mofar. Todo o
primeiro filho homem, de todas as famílias, ao atingir a idade
de 12 anos deveriam ser entregues ao agora comandante de
exército, o general Erer. Todas as crianças eram levadas para
um local secreto e ali eram treinadas e doutrinadas para que
mais à frente se tornassem parte da guarda da rainha ou
membros do exército real.

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Quando uma criança nascia com alguma deformação física, que
a impedisse de servir à rainha, eram realocados nas plantações
de milho e feijão e tidas como cidadãos de segunda categoria e
poderiam ser descartadas caso ficassem doentes ou impedidas
de trabalhar por algum outro motivo.

As crianças do sexo feminino que não pertenciam à realeza,


membros de famílias importantes ou parentes de algum oficial
do exército real eram enviadas aos prostíbulos nas grandes
cidades do reino e seus serviços geravam retorno financeiro aos
cofres reais. Quando um viajante ou comerciante se
enamoravam por alguma dessas meninas poderiam comprá-las
desde que fosse pago o valor estipulado pelos fiscais locais.

As notícias sobre a beleza e malignidade da rainha


atravessaram os mares, todos os reinos evitavam entrar em
guerra com o reino de Abissínia, pois seus soldados eram vistos
como bárbaros e assassinos implacáveis. Tiberius ao saber
sobre os feitos da rainha Dawa solicitou ao general Marcius que
providenciasse uma visita dela a Roma, pois queria conhecê-la
pessoalmente.

Distantes dali no Monte Batu as crianças cresciam sob a


proteção dos deuses e da valente Mille. As crianças eram
instruídas na leitura e escrita em latim, grego e copta, pois eram

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as línguas predominantes e necessárias para que pudessem
desenvolver qualquer atividade comercial ou diplomática. Mille
achava essencial que elas aprendessem tais idiomas já que o
futuro era uma incógnita. Kabenna estava com 13 anos e a cada
dia que passava ficava mais parecida com sua mãe, a rainha
Shebelle. Por sua vez, Awash se tornava um jovem vigoroso e
destemido, era o responsável pela caça desde que atingiu seus
08 anos de idade; tornou-se um exímio arqueiro e desbravador
daquelas terras. A semelhança com seu pai era inacreditável, a
ponto de Mille lhe chamar de “generalzinho Ganale”.

- Awash, queria tanto me lembrar de como minha mãe era,


queria tanto poder ouvir sua voz novamente e andar de mãos
dadas com ela, acariciar seu rosto e dizer o quanto a amo. Mas
sei que nunca mais voltarei a vê-la, sei disso.

- Não pense nisso Kabenna! Se não nesta vida, mas em outra


com certeza. Eu não conheci meu pai, porém sei que era um
homem honrado e de muita coragem e onde quer que ele esteja
sei que um dia iremos nos encontrar.

- Olha lá Awash que estrela linda! Nunca vi uma tão brilhante,


parece estar tão próxima de nós e nos dá a impressão de estar
nos seguindo onde quer que andemos.

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Aquela noite reservava uma grande surpresa a todos, seria uma
experiência transformadora e reveladora na vida de cada um,
algo que iria acompanhá-los pelo resto de suas vidas. Não era
uma noite comum, ela estava mais fria que de costume e
parecia que os animais e todos os insetos que viviam naquele
habitat haviam desaparecido, até o vento não se fazia presente.
Aquele silêncio era simplesmente aterrador. Mas foi o som de
batidas na porta que causou maior espanto em todos, afinal
ninguém nunca havia ido ali naquele lugar, ninguém sabia da
existência daquela cabana no meio do nada. Todos ficaram
relutantes em atender ao chamado e seus olhares se cruzavam
como se perguntassem o que deveriam fazer naquele momento.
Mille segurou-os fortemente em seus braços e gesticulava para
que não emitissem som algum, mas novamente os sons das
batidas penetravam aquela sala, feria-lhes os ouvidos e então
num ato de extrema coragem Awash se desprendeu de Mille e
atendeu à porta.

E ao abri-la foi surpreendido pela visão de um homem que em


um primeiro momento imaginou ser seu pai, mas logo
descobriu que estava enganado.

- Boa noite jovem Senhor! Perdão incomodá-lo nesta noite fria,


mas sou um viajante e procuro um local para passar a noite e

30
dar descanso ao meu burrico. Posso pagar pela hospedagem
caso desejar. Seus pais estão em casa?

- Aguarde um instante senhor que irei chamar a minha mãe para


lhe atender. Pode sentar ali naquele tronco de árvore enquanto
vou lá dentro e aproveite para dar água ao seu animal, é só
pegar ali naquelas talhas.

Mille estava assustada e não desejava atender aquele homem e


pedia que Awash o mandasse embora. Não queria colocar em
risco a sua segurança e das crianças e seu instinto de
sobrevivência falava mais alto. Porém após longa insistência de
Awash ela concordou em receber o viajante desconhecido.

- Boa noite senhor, em que podemos lhe ajudar? Por favor,


entre faz muito frio onde estás.

- Boa noite nobre Senhora! Peço que me perdoe o importuno e


de antemão agradeço por me deixar entrar em sua casa, afinal lá
fora o clima está congelante realmente.

Aquele homem usava vestes de seda reluzentes, seus anéis


eram de ouro e pedras preciosas, seus dentes eram tão brancos e
sua barba tão bem esculpida no seu rosto que pareciam terem
sido desenhadas à mão. Não era muito alto e nem gordo, tinha
um porte de alguém que devia gozar de plena saúde, suas unhas

31
eram tão limpas que deixaram todos envergonhados. E era um
homem com uma voz tão doce e meiga, tinha tanta educação
que fez Mille se lembrar da época em que vivia no palácio da
rainha. Devia ter já certa idade, mas não aparentava ser muito
velho.

- Mas me fale de onde o senhor vem e pra onde está indo a esta
hora já bastante avançada?

- Venho de terras distantes que ficam a muitas distâncias daqui,


de terras pra além do grande deserto, sirvo como conselheiro
mor de Vossa Majestade e me intitulam de “sábio”. Mas minha
sabedoria não vem de mim, mas procede de Deus. Pedi
humildemente ao meu rei que me deixasse partir em uma
jornada que acredito ser o sentido da minha existência. Estou
nessa viagem há trinta luas e acho que vou demorar mais
algumas para chegar ao meu destino. A estrela me guia até
onde devo ir, sempre que ela para no firmamento é porque acho
que tenho que repousar ali naquele lugar, e quando começa a se
mover novamente me coloco a seguir em sua direção. E
Finalmente quando ela ficar parada no firmamento e mais
brilhante do que jamais a vi é o sinal de que haverei chegado ao
fim da minha viagem.

32
- Me perdoe, me chamo Mille e estes são a pequena Kabenna e
o menino ali naquele canto é o pequeno Awash, mas agora, por
favor, coma e descanse um pouco, vejo que o senhor é uma
pessoa honrada e é bem-vindo em nossa casa. Vou providenciar
água e um local para que repouse e amanhã caso queira partir
estará com suas energias restabelecidas.

Kabenna e Awash nunca haviam conhecido ninguém como


aquele homem, suas curiosidades fervilhavam nas suas cabeças,
a vontade de saber como o mundo realmente era, o anseio por
informação e acima de tudo eles sentiram afeição pelo viajante,
sabiam que de alguma forma podiam confiar nele. E naquela
noite o convidado lhes contou muitas histórias e se
maravilhavam com cada uma delas. Então pediram que o
convidado ficasse mais algum tempo em suas companhias, pelo
menos enquanto a estrela não se movesse naquele lindo céu. O
viajante prontamente atendeu aos seus pedidos.

- Senhor, o que tanto lê nesses rolos? É por acaso algum tipo de


mapa ou é algum outro documento importante, questionava
Awash.

- Sente aqui ao meu lado jovem senhor. Este rolo aqui contém
salmos que foram escritos por pessoas muito importantes e que
pertenciam a outro povo. Foram homens guiados e inspirados

33
por Deus, pessoas que tiveram uma missão e a realizaram
mesmo com o sacrifício da própria vida. Foram homens como
Abrão, de sua descendência surgiram vários povos, dentre eles,
o povo israelita e ismaelita. Seu filho Isac e Jacó, seu neto.
Moisés, o Rei Davi e Salomão, seu filho, por exemplo. Moisés
há muitos anos atrás sob a proteção e direção de Deus libertou
seu povo da opressão egípcia e para isso o Altíssimo fez as
águas do Mar Vermelho se abrirem diante dos olhos de todos.
Davi foi o maior rei que o mundo já viu, homem segundo o
coração de Deus. Aqueles outros rolos ali nas cestas presos ao
burrico são de um profeta chamado Isaías e são o que possuo de
mais precioso aqui nesta terra.

- Nunca ouvi falar nessas pessoas senhor e também não consigo


entender o que aí está escrito. Que tipo de idioma é esse que
esse povo se utiliza?

- Esses manuscritos estão em hebraico que é a língua nativa


deles, são chamados de hebreus e seu país fica para além do
Mar Vermelho. Você gostaria de aprender esse tipo de escrita e
por si só ler o que aqui está revelado?

- Com certeza meu senhor!

Awash entusiasmado pelo novo desafio mergulhou como nunca


antes naquele novo projeto, precisava descobrir do que se
34
tratavam aqueles textos e se realmente o que aquele senhor
falava fazia sentido, pois não compreendia como alguém podia
adorar a um só Deus e como um homem conseguira libertar
milhões de pessoas de um reino poderoso como o Egito. Dia
após dia novos conhecimentos eram apreendidos e novas
experiências eram por ele experimentadas. A dedicação foi
enfim recompensada e conseguiu ler suas primeiras frases em
hebraico que diziam o seguinte: “Agora, pois, ó reis, sede
prudentes; deixai-vos instruir, juízes da terra. Servi ao Senhor
com temor e alegrai-vos com tremor. Beijai o Filho, para que
se não ire, e pereçais no caminho, quando em breve se
acender a sua ira; bem aventurado todos aqueles que nele
confiam.”

Os dias iam passando e chegara a hora do viajante continuar


sua jornada pois a estrela que o guiava reaparecera no céu e isto
era para ele por sinal. Naquela noite que antecedeu sua partida,
Mille preparou um banquete e todos se regozijaram muitíssimo
e brindavam aquela nova amizade. O carinho era recíproco e as
lágrimas misturadas a sorrisos tímidos tomavam conta de suas
faces. A semente estava plantada, a missão daquele viajante em
parte atingiu seu objetivo e isso era encorajador para que seu
intento se realizasse. Então o viajante propôs um brinde.

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- Nobre Senhora, jovem Awash e senhorita Kabenna, saibam
que os levarei sempre na minha memória e em meu coração e
um dia algo me diz que iremos nos encontrar novamente.
Desejo que o Deus Altíssimo os guarde e os guie em suas vidas
e agradeço por dias tão maravilhosos. Awash lhe entrego esta
missiva e se um dia precisar use-a para me encontrar, nela está
escrito o meu nome e meu selo dirá de onde e quem sou, é
prova da inestimável amizade e carinho que sinto por todos
vocês.

- Senhor! Senhor! Depois de todos estes dias sinto grande pesar


em meu coração com a sua partida, mas compreendo que sua
viagem é o que dá sentido à sua vida, mas um amigo precisa
saber o nome do outro amigo, então me diga qual seu nome?
Indagou Awash coma voz embargada.

- Gaspar, seu servo e amigo! Nunca se esqueçam que o Deus


Altíssimo tem um plano maravilhoso para cada um de vocês.
Adeus meus nobres amigos!

36
CAPÍTULO III

OLHOS EM TODA A PARTE


Na capital a rainha Dawa não se conformava em não conseguir
encontrar Mille e a princesa Kabenna, e se perguntava como
uma mulher e uma criança simplesmente haviam desaparecido
sem deixar rastros. Sabia que o tempo passava e os deuses
poderiam se virar contra ela, ser visto como sinal de fraqueza e
aí seu reinado estaria em perigo. Precisava encontrar a princesa
urgentemente para que ela pudesse lhe gerar um herdeiro.

- Mofar o que me aconselha a fazer? Precisamos fazer algo que


nos leve a encontrá-las. A princesa já deve estar com seus treze
anos, idade fértil e boa para reproduzir.

- Minha rainha Dawa, temos espiões em todas as vilas do reino


haveremos de ter paciência e uma hora dessas nós iremos achá-
las.

O general Marcius e seu auxiliar, o centurião Valerius Curius,


multiplicavam as execuções por crucificação no reino, todos
aqueles que de alguma forma incorressem em algum delito
eram tratados peremptoriamente e sumariamente julgados. Seus
atos de lascívia corromperam o palácio e muitos que
frequentavam seus círculos se esqueceram de suas raízes e se
37
entregavam à luxúria desenfreada. Convenceram a rainha a
colocar as estátuas de Marte e Júpiter nos portais do palácio e
todos que a adentravam deveriam reverenciá-las. As inserções
de deuses romanos nos cultos realizados nos jardins reais não
agradavam a Erer e a seus subordinados, que viam isso como
falta de respeito ao deus Apedemak. Em segredo planejam uma
forma de capturar e matar o centurião Valerius Curius e
posteriormente o general Marcius.

Porém um acontecimento iria favorecer a rainha...

- Mãe, acho que aconteceu alguma coisa com a nossa cabra,


não quer se levantar e está deitada por toda a manhã e tentei
ordenhá-la e não saiu leite, acho que está doente.

- Deixe-me ver Awash. Acho que infelizmente nosso querido


animal está morrendo, devemos agradecer aos deuses por todo
o tempo em que ela nos serviu e deixá-la descansar até que se
vá.

Necessitando repor o animal que havia morrido Mille se viu


num impasse. Precisava ir à vila mais próxima tentar comprar
outro ou teriam que viver sem leite. A dúvida lhe atormentava e
não sabia que decisão tomar, pois ainda tinha que resolver a
questão das crianças, o que ela deveria fazer, levá-los juntos ou
deixá-los sozinhos. Relutou por vários dias, mas não havia
38
outra escolha, precisava partir com certa urgência. Além do
mais precisava comprar sementes, pois uma grande chuva havia
caído na região e destruído toda a sua plantação de feijão,
mandioca e milho. Estavam praticamente sem nada pra comer a
não ser uma ou outra caça que Awash e Kabenna conseguiam
capturar.

Foi decidido que as crianças iriam ficar a sós, pois se houvesse


alguém procurando por elas nas vilas próximas, estariam a
procura de uma mulher com uma criança e não uma mulher
sozinha. Partiu com o coração amargurado e olhar triste por ter
que deixá-los por conta própria mesmo que por pouco tempo.

- Princesa Kabenna e Awash lhes peço que não se afastem da


cabana e evitem de sair a noite pois muitos animais selvagens
rondam por aqui. O alimento que ainda temos deve ser
suficiente para vocês por um período ainda. Cuidem um do
outro.

Partiu na manhã seguinte e caminhava durante o dia, a noite


procurava um lugar seguro em meio às grutas que eram
numerosas naquele local para descansar. Levava consigo um
pouco do dinheiro que seu marido havia deixado com ela para
ser usado em alguma emergência, não era muito, mas o
suficiente para o que precisava.

39
Após cinco dias de viagem avistou uma pequena vila que ficava
próxima ao Vale da Grande Fenda. Como já estava escurecendo
decidiu passar a noite ali e ir ao vilarejo somente ao amanhecer.

Assim que amanheceu colocou-se a caminho daquela vila e não


muito tempo depois estava às portas do vilarejo. Mille logo ao
adentrar achou tudo muito diferente, as ruas estavam tomadas
de mendigos e havia muita sujeira por toda a parte. Notou que
haviam diversos templos erguidos para adorarem deuses
estranhos ao que ela costumava a adorar, deuses como Baco, o
deus do vinho e Fauno, o deus da fecundidade, e próximo ao
templo desse deus tinha várias casas destinadas a prostituição e
percebeu que todas as mulheres que ali estavam eram muito
jovens e seus semblantes revelavam dor e desespero e se
entristeceu com isso. Percebeu que aquele lugar abrigava
muitos estrangeiros e que a maioria se embriagavam, mesmo o
dia ainda começado a poucas horas.

Mille não sabia o que tinha acontecido, mas ficou com medo de
perguntar a alguém o porquê de todo aquele caos. Continuou a
caminhar pela cidade e logo avistou um vendedor de sementes
e fez negócio com ele, contudo não encontrava nenhum animal
a venda.

- Senhor! Onde encontro aqui neste lugar cabras para venda?

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- Porque andas sozinha pelas ruas, onde está seu marido
mulher?

Com medo de dizer que estava sozinha falou ao homem que seu
marido estava bebendo em um bordel próximo à entrada da vila
e que a pediu para procurar o animal enquanto se divertia
naquele lugar.

- Esse tipo de mercadoria você só vai encontrar com o senhor


Dembi mais a frente. Ele é o enviado da capital para gerenciar
este tipo de negócio aqui por esses lados.

Indo por onde o homem havia informado chegou a um local


com alguns soldados e viu um homem sentado em um cadeira
cercado por muitas jovens que lhe acariciavam, tinha um colar
com um símbolo que informava qual era o seu cargo ali naquela
vila e mal dava para diferenciá-lo dos porcos que estavam
presos próximo a ele. E ela se aproximando do homem
perguntou-lhe:

- Bom dia nobre senhor, és o senhor Dembi?

- O que deseja mulher? Já lhe digo que não me agrada porque já


é com idade muito avançada a meu ver. Se for isso vá embora.

- Não é isso meu senhor, venho aqui para negociar a compra de


uma cabra se assim for da sua permissão.
41
- Mulher não sabe que não podes negociar por conta própria e
onde está sua placa de identificação? Pertence a qual família?

Mille se viu em apuros, pois não sabia do que aquele homem


estava falando, mas precisava pensar em algo rapidamente pois
já notava que os soldados haviam desconfiado de alguma coisa.

- Minha placa meu senhor foi perdida nas últimas chuvas que
atingiram nossa região e quando em um ato de desespero tentei
salvar nossos animais da enchente, a perdi, porém todo o meu
esforço foi em vão. Mas meu marido irá providenciar outra. Ele
está embriagado naquele bordel mais na entrada da cidade e me
pediu que viesse procurar outro animal para substituir o que
perdemos.

Era proibido a comercialização sem a devida identificação mas


Dembi era um homem ganancioso e sórdido demais para
rejeitar dinheiro e ainda tinha outra coisa, ele havia se lembrado
de que espiões da rainha há alguns anos atrás estiveram
espalhando por todas as vilas notícias sobre supostos
prisioneiros que haviam fugido da sua guarda e na descrição se
encontrava a de uma mulher com uma possível criança. Foi
então ao seu escritório que ficava em anexo aos currais e
procurou pela descrição dos fugitivos, mas nada encontrou.

42
- Para fazermos negócio terei que subornar os guardas,
adulterar os livros e claro acrescentar a minha comissão. Então
pelos meus cálculos isso iria lhe custar quatro moedas de prata.
Claro que se esta quantia for muita pra você é melhor ir embora
e chamar o seu marido.

- Não meu senhor, eu compro aquela cabra que ali está pelo
valor que pediste. Aqui estão às quatro moedas e lhe agradeço
por mim e por meu marido.

- Dê o animal à mulher. Agora pode ir embora.

De posse do animal, das sementes e de outros mantimentos


começou a retornar a sua casa, iria poder reencontrar seu filho e
a princesa, que a esta altura já a considerava como sua própria
filha. Estava feliz por tudo ter dado certo, o pior havia passado,
agora só seus pés iriam sofrer um pouco mais pois a subida era
muito íngreme, em compensação a sensação de dever cumprido
lhe aliviava o fardo.

- Servo venha aqui, siga a mulher que me comprou a cabra e


descubra aonde ela vai.

- Sim mestre Dembi.

O que Mille não desconfiava era que Dembi colocou um servo


seu para segui-la. Sempre mantendo distância ele a seguiu até
43
sua cabana no Monte Batu e observou que ela não estava
sozinha, mas que duas crianças a faziam companhia. Após
aguardar alguns dias pra ver se ela possuía marido e constatado
que havia mentido a seu patrão regressou à vila.

- Mestre lhe trago boas novas!

Depois de ter dito tudo o que descobriu se retirou da sua


presença e então Dembi se preparou para viajar até a capital
com o intuito de solicitar uma audiência com a rainha a fim de
lhe contar o que acreditava ser uma boa notícia. E assim o fez.

Mas as crianças estavam felizes pelo retorno de Mille. E depois


de um período de racionamento de tudo que possuíam a
bonança em parte retornava novamente.

- Minha mãe senti muito sua falta e pedia ao Deus que Gaspar
orava para lhe proteger em todos os seus caminhos e vejo que
Ele atendeu minhas orações. Como é bom sentir seu abraço.

- Tia Mille como é bom ver seu sorriso novamente em seu


rosto. Bem sei que daria sua vida em troca de nossa segurança e
me regozijo por ter voltado em segurança e com saúde. Vamos
ao lago nos banhar e rir um pouco, esquecer do pior e vivermos
somente o hoje.

44
Na capital do reino Dembi tentava adentrar ao palácio para
comunicar o que havia descoberto e após falar com alguns
soldados que lá faziam a guarda foi encaminhado ao
comandante Erer. Então após ser recebido pelo comandante
colocou-se a contar-lhe tudo o que acontecera. Imediatamente o
comandante Erer solicitou uma audiência coma rainha Dawa.

- Minha rainha Dawa o comandante Erer deseja lhe falar.

- O que ele deseja Mofar? Não quero ser importunada, estou


com o general Marcius em meus aposentos. Diga logo o que ele
quer e vá embora.

- Ele não quis me dizer minha rainha. Acho que é algo muito
importante.

- Soldado impertinente! Para seu próprio bem espero que seja


realmente importante.

- Minha rainha peço perdão por importuná-la, mas obtive


informações que talvez nos levem a localização da princesa
Kabenna e da serva Mille. Peço permissão para chamar o
informante a sua presença.

Então o homem contou exatamente o que havia acontecido e


como colocou um funcionário seu para seguir a mulher pelas
vastas florestas do Monte Batu até uma cabana que ficava na
45
parte mais elevada daquele local. E o seu servo havia notado
que havia no lugar somente ela e mais duas crianças, sendo um
menino e uma menina, disse ele com voz altiva na presença da
rainha Dawa.

- Enfim os deuses ouviram minhas petições. Mofar prepare


sacrifícios como oferta aos deuses por tão boas notícias.
Preparem o maior banquete que este palácio já viu, chamem
minhas damas de companhia e todos os membros das nobres
famílias do nosso reino, hoje quero festejar. E você verme
rastejante o que deseja por tal informação?

- Seu servo Dembi gostaria apenas de lhe servir aqui na capital


minha rainha! E claro, de um cargo que pudesse usufruir de
algumas regalias que só a capital poderia oferecer. Sair daquele
vilarejo fétido é o que mais desejo minha soberana.

- Pois bem. Erer arranque-lhe a cabeça e a pendure nos jardins


do palácio para que sempre que eu vá lá possa me lembrar do
grande favor que ele me fez. E seu corpo dê aos meus tigres.
Espero que esteja satisfeito.

- Mas rainha...Mas eu pensei...

E assim foi feito. Naquela noite as risadas e a música emanadas


do palácio podiam ser ouvidas por quase toda a cidade.

46
Enquanto o povo chorava por seus velhos e suas crianças que
mal tinham forças para se levantarem de seus leitos por não
terem quase nada para se alimentar, a rainha dava banquetes
para uma classe abastada do reino.

No outro dia bem cedo à rainha pediu que o comandante Erer


preparasse sua liteira, pois queria participar daquele
acontecimento. No pequeno destacamento que havia de viajar
até o lugar que Mille e as crianças se encontravam estavam
trinta soldados, o general Marcius e o próprio comandante Erer.
Sua intenção não era chamar a atenção de ninguém, haja vista,
que todos no reino acreditavam que a princesa Kabenna havia
morrido durante a incursão que realizaram quando prenderam a
sua mãe, a rainha Shebelle.

Vários dias de viagem e enfim chegaram ao Monte Batu, agora


eram apenas mais poucos dias até o local que o homem havia
informado. A rainha antes de começarem a subida, ordenou que
ninguém fosse ferido, principalmente a menina.

Sentado à beira do lago, Awash sentiu uma angústia muito


grande em seu coração, era uma sensação que nunca havia
sentido até aquele momento. E se lembrava do seu grande
amigo Gaspar, dos seus conselhos e meditava acerca daquele

47
Deus que ele sempre lhe falara. Ainda tinha muita curiosidade
por saber mais sobre Ele.

Mas o pior estava por acontecer com ele, sua mãe e Kabenna.
No meio da noite grande barulho se fez ao redor da cabana
acordando a todos. Olhando pelas frestas da cabana Awash
pôde ver que havia muitos guardas com tochas e prevendo que
algo ruim estava prestes a acontecer escondeu sob o piso da
cabana a carta que seu amigo Gaspar havia lhe dado. Em um
ato de coragem segurou sua mãe e a princesa pelas mãos e
saíram, pois a fumaça já começava a sufocá-los. Uma voz
exigiu que todos se calassem e o silêncio tomou conta do lugar,
só se ouviam a respiração dos animais. Então a rainha Dawa
desceu de sua liteira e se aproximou deles.

- Olá Mille. Quanto tempo, quantos anos fazem mesmo? Dez..


Onze anos? Quem são essas crianças lindas?

- Boa noite princesa Dawa, esta aqui é Kabenna, sua sobrinha


filha da sua irmã, a rainha Shebelle e este aqui é meu filho
Awash. Mas como nos encontrou aqui neste lugar? Foi meu
esposo que a enviou? Como ele e a minha rainha estão?

- Não tenho boas notícias pra lhes dar. Infelizmente foram


mortos. Mas saibam que procurei muito a minha sobrinha e
finalmente os deuses revelaram onde se encontrava. Deixe sua
48
tia olhar bem para você. Como você está linda Kabenna! Se
parece comigo quando tinha a sua idade.

As crianças choravam copiosamente, pois pressentiam a


maldade nos olhos da rainha Dawa e sabiam que seus sonhos
em parte acabaram naquele momento, haviam sido destruídos,
nunca mais iriam poder ver aqueles a quem só conheciam em
sua imaginação. Mille se continha para não chorar e piorar a
situação e apertavam-lhes as mãos, apenas olhava as estrelas e
suplicava aos deuses que amenizassem suas dores.

- Mille, lhe acuso de sequestrar e manter cativa minha sobrinha,


a princesa Kabenna e quanto ao seu filho receberá castigo
rigoroso por ser fruto de uma traidora do reino. Suas sentenças
irão ser pronunciadas quando chegarmos à capital.

- Não rainha! Eu lhe suplico que não lhes façam mal. Senão
fosse por Mille não conseguiria ter sobrevivido e Awash é meu
amigo. Se for fazer-lhes mal é bom que reserve a mim o mesmo
tratamento. Exclamava a princesa Kabenna.

- Pois bem princesa, deixemos para decidir sobre isso quando


chegarmos ao palácio. Mas amanhã iremos retornar e eles irão a
pé, sem água e sem comida, se resistirem ao percurso e
chegarem vivos lá, então é porque os deuses os preservaram. E
não quero ser mais questionada.
49
CAPÍTULO IV

O PRIMEIRO MILAGRE
O caminho era tortuoso e a distância a ser percorrida era
inatingível para uma mulher e uma criança, ainda mais com
suas mãos atadas e seus pés descalços. A cada passo que davam
as palavras de incentivo e de amor de Mille direcionadas a
Awash o faziam continuar. Durante três longos dias
caminharam durante o dia todo e só paravam ao cair da noite. O
sofrimento era tão grande que Awash sentia convulsões e sua
mãe impotente diante daquele cenário procurava consolá-lo.

- Mãe, não consigo mais caminhar, acho que vou morrer. Meus
pés sangram, meu corpo não aguenta mais tanto esforço. Não
fique triste por mim, pois a senhora foi a melhor mãe que um
filho poderia ter. Lamento apenas não ter conhecido meu pai,
mas meu coração está preparado.

- Meu filho tenha força! Não me deixe, feches seus olhos e


durma. Amanhã estaremos renovados e caminharemos até onde
for preciso.

As lágrimas de Mille caíam sobre os lábios de Awash e ele


sedento as bebia. E ela se lembrou daquele Deus que Gaspar

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lhe falara por diversas vezes e então em total submissão orou a
Deus.

- Deus que não sei o nome; Deus que conheci através do meu
amigo Gaspar, te rogo que preserve a vida do meu filho e a
minha se for possível. Responda a mim se realmente existires e
saberei que tu és o único Deus a quem devemos adorar.
Compadece-te desta criança meu Senhor.

Logo após terminar a oração um grande barulho se fez e raios e


trovões cruzavam os céus e assustaram a todos no
acampamento e começou a chover fortemente naquele lugar.
Mille e Awash puderam saciar a sua sede e a chuva que caía era
tão intensa que derrubavam as aves que estavam voando, pois
ficavam com suas penas tão molhadas que despencavam do alto
e muitas delas serviram de alimento para Mille e Awash.

No outro dia todos os soldados se assustaram ao ver os dois


completamente recuperados após longa jornada e não
conseguiam explicar como seus pés haviam sido curados em
apenas uma noite de descanso. Mas Mille e Awash sabiam o
que lhes haviam acontecido. E Deus fez chover durante todas as
noites sobre o local que escolhiam para acampar e assim se deu
até que chegassem ao seu destino. Eram eles alimentados pelas
aves e tinham suas sedes saciadas pelas chuvas.

51
- Então minha rainha Dawa como foi à viagem? Encontrou o
que procurava?

- Encontrei sim Mofar. Mas algo estranho aconteceu durante


boa parte da viagem. Não estamos em época das chuvas, porém
durante sete dias todas as noites choveram e não era uma chuva
comum, parecia que só caía água dos céus onde parávamos e
sempre que amanhecia todo o lugar ao redor do acampamento
estava seco. Mas agora preciso descansar bastante e em seguida
decidirei o que fazer com Mille e seu filho.

Kabenna havia pedido ao comandante Erer que a deixasse


visitar Mille e Awash nas masmorras do palácio, já que durante
toda a viagem a rainha não permitiu que se aproximasse dos
dois. Explicou que os amava muito e que se ele se lembrasse de
sua mãe e tudo aquilo que ela representou ao reino a deixasse
vê-los. Ele concordou com o pedido, mas pediu segredo a
princesa.

- Mille e Awash como vocês estão? Olha trouxe aqui algumas


frutas e um pouco de água. O comandante Erer me ajudou a
chegar até aqui e sou grata a ele por isso.

- Estamos bem princesa Kabenna. Deus cuidou de mim e do


meu filho. Foi algo tremendo que talvez seja difícil de você
acreditar. Obrigado por vir nos ver, mas tenha cuidado com a
52
rainha Dawa, se ela souber que esteve conosco não terá uma
boa reação e acho que ela tem algo planejado para cada um de
nós.

- Kabenna! Que bom que você está bem. Senti saudade de você
e das nossas conversas. Mas saiba que Gaspar estava certo. Um
dia irei lhe contar o que aconteceu e saiba que não há outro
Deus como o que nos acompanhou até aqui.

- Eu acredito nisso Awash, existem coisas que não


conseguiremos explicar, mas não posso me demorar. Sempre
que puder virei visitá-los. Saiba que os amo muito.

A rainha Dawa ordenou que Mofar reunisse seu escrivão real, o


general Marcius, o centurião Valerius Curius e Erer, seu
comandante da guarda. Intentava saber de seus súditos e
amigos mais próximos qual era o lugar em suas visões que
impunham o pior tratamento, o pior sofrimento e
consequentemente a morte mais vagarosa e dolorosa de todas as
prisões existentes no mundo conhecido.

- Nobre rainha indico a ilha de Patmos localizada no Mar Egeu.


Ótimo lugar para corrigir criminosos e obviamente com
passagem só de ida, respondeu ironicamente o general Marcius

53
- Me perdoe meu general e minha rainha, mas já estive lá e não
me pareceu o lugar ideal para infringir sofrimento insuportável.
Indico um lugar que é o inferno na terra, lá a morte é desejada,
contudo difícil de ser encontrada, o ar é rarefeito e as doenças
são constantes. Chama-se Tullianum ou simplesmente Prisão
Mamertina em Roma.

- Gostei desse lugar centurião Valerius Curius! Que seja este o


local de destino à essa corja que insiste em existir. Tragam-me
a princesa Kabenna e os prisioneiros de nome Mille e Awash.

Mille e Awash estavam em constante oração nas masmorras do


palácio, pois puderam sentir a presença do Deus Altíssimo em
suas vidas, se consolavam mutuamente e seus corações estavam
em paz. Mas a rainha Dawa tinha muita maldade em seu
coração e pretendia dividi-la com seus mais recentes
prisioneiros.

- Kabenna aqui estão à sua frente esses dois traidores e em suas


mãos coloco o destino de um deles. Vou lhe dar a opção de
decidir qual deles você escolhe para ser enviado à Roma para
que cumpra pena até a morte. O outro que aqui ficar servirá a
mim aqui no palácio.

54
- Minha rainha, como posso eu opinar sobre a vida de um deles,
haja vista, que são meus amigos e os amo de igual modo. Não
me sobrecarregue com tal fardo.

- Então que sejam ambos enviados! Comandante Erer retire-os


daqui e enviem os dois ao tártaro romano.

- Não minha rainha! Dê-me alguns minutos para decidir, por


favor.

O olhar de Kabenna procurava enxergar o que se passavam nas


mentes e nos corações dos seus dois amigos, tentava de algum
modo ser menos injusta possível, mas aquilo era uma tortura
psicológica forte demais. Mille segurava com força a mão de
seu filho Awash e ele por sua vez a olhava disfarçadamente e
revelava seu profundo amor por sua mãe. Mille de modo bem
suave balançava a sua cabeça como sinal de aceitação e a
olhava nos olhos e isso era um sinal para confirmar sua escolha
e decisão.

- Escolho Mille! Perdoe-me minha amada amiga, nunca me


esquecerei da senhora e de todos os momentos que estivemos
juntos. Meu coração está ferido de morte por tal decisão.

Awash não suportava a dor da separação e gritava e se agarrava


com todas as suas forças a sua mãe e ajoelhado aos seus pés

55
pedia que não fosse, tentava sentir um pouco mais o toque, o
cheiro e o olhar de carinho de sua mãe. Mas sabia que o
afastamento era inevitável.

- Açoitem-no! Gritava a rainha Dawa.

- Minha rainha Dawa antes de encaminharmos a prisioneira à


Roma peço que deixe meus homens se divertirem um pouco
com ela, estão precisando de um pouco de distração. E o
general Marcius jubilava-se de toda aquela situação.

Atendendo ao pedido do general Marcius, solicitou que


enviasse a prisioneira Mille até Roma após a sessão
interminável de abusos que iriam perpetrar. Lá ela cumpriria
sua pena de morte e exigiu que fosse reservado no seu trato o
máximo de rigor possível. Decidiu que seu filho Awash iria
trabalhar nos jardins do palácio e que fosse tratado
semelhantemente aos cães que vigiavam o entorno dos muros.

A rainha escolheu entre suas servas uma que lhe inspirasse


confiança para que acompanhasse a princesa Kabenna
diuturnamente e que tal serva a informasse sobre quaisquer
eventos que fugissem a rotina estabelecida no palácio. Mas
Wajja a serva escolhida pela rainha se apegou grandemente à
princesa e se tornaram grandes amigas. Wajja tivera seus pais
mortos pelos guardas da rainha, pois não concordaram com sua
56
traição, e como era filha de família importante decidiu deixá-la
no palácio ao invés de mandá-la para uns dos prostíbulos que
existiam na capital do reino.

Foi nessa época de grande dor e desesperança para Awash que


nos conhecemos. Ele havia se tornado um menino triste e que
não falava com ninguém, andava sempre de cabeça baixa e
nunca olhava ninguém nos olhos. Seu olhar não tinha vida, seus
lábios eram como um sepulcro e suas mãos só serviam para o
cultivo das terras do jardim. Quando a noite caía e com ela a
sensação dilacerante que o frio proporcionava todos sentiam
muita pena dele, mas nos era proibido deixá-lo entrar em nosso
alojamento sob pena de receber castigo por parte dos guardas.
Quando amanhecia íamos ao refeitório que ficava nos fundos
do jardim próximo aos currais dos cavalos de sangue árabe e
que recebiam alimentação de primeira qualidade, enquanto nós
reles escravos éramos alimentados somente com papa de milho
e leite diluído em incontáveis partes de água. Pior ainda era
para Awash que só se alimentava com o que era dado aos cães.

- Olá meu amigo! Podemos conversar um pouco? Chamo-me


Ubbi-Ubbi. Trabalho aqui também nos jardins do palácio. Você
já deve ter me visto.

57
Mas Awash nada respondia e mal lhe olhava nos olhos, porém
percebia-se que seu olhar mudava somente quando a princesa
Kabenna e sua acompanhante Wajja passavam ao largo do
jardim. Era expressamente proibido que qualquer escravo
dirigisse a palavra a qualquer membro da realeza sob pena de
ser penalizado com cem chibatadas.

Então numa noite em que a chuva estava sobrevindo com muita


intensidade e até os cães procuravam abrigo, vi um vulto
caminhando nos jardins, e sendo iluminado pelos raios que
cruzavam o céu, decidi segui-lo. Não era o mais indicado para
ter tal atitude já que todos sabiam que não era lá muito corajoso
e meu medo de coisas sobrenaturais me assustavam mais que os
soldados da rainha. Mas escondido entre às videiras notei que
aquela pessoa entregara alguma coisa a Awash e logo em
seguida correu em direção as portas laterais que davam ao
palácio.

- Bom dia meu amigo. Como passou a noite? Ficamos


preocupados com você, pois a chuva de ontem estava muito
forte. Mas me permita lhe perguntar uma coisa; quem era
aquela pessoa que veio até você na noite passada?

- O que você quer comigo? Não sei do que está falando, talvez
isso seja fruto da sua imaginação.

58
- Não sou seu inimigo, fique tranquilo. Mas se não quer
conversar está tudo bem. Adeus!

- Ei nobre amigo, desculpe! É que não consigo confiar nas


pessoas depois de tudo o que passei. Meu nome é Awash e o
seu deve ser Ubbi- Ubbi. O que houve com sua perna?

- Certo dia a rainha Dawa mandou que os guardas quebrassem


meu joelho por ter retirado um cacho de uvas sem a devida
permissão e me disse que da próxima vez que fosse pego com
alguma outra coisa ela iria mandar arrancar minhas mãos.
Aprendi a lição, mas infelizmente fiquei manco e motivo de
chacotas de todos aqui.

- Lamento muito por isso. Eu perdi mais que movimentos de


partes do meu corpo nobre amigo, perdi a todos a quem mais
amava e isso dói muito mais do que qualquer coisa. Mas vamos
às tarefas e mais tarde conversamos melhor. Encontre-me atrás
do chiqueiro depois que o sol se pôr.

Naquela noite Awash contou toda a sua história até aquele


momento e explicou que a pessoa que eu havia visto naquela
noite era Wajja, amiga e serva da princesa Kabenna. Tinha
trazido uma carta da princesa. Na carta a princesa suplicava
para que ele aguentasse o que fosse preciso até ela arrumar uma
forma de tirá-lo de lá. Pedia que recuperasse suas energias
59
através da lembrança que tinha de sua mãe e dos momentos em
que haviam passados juntos. Essa carta trouxe ânimo dobrado a
Awash e ele suportaria tudo o quanto mais viesse a lhe
acontecer.

Numa tarde a rainha foi visitar os jardins do palácio


acompanhada pela princesa Kabenna e do comandante Erer e se
lembrou do filho bastardo de Mille e sentiu desejo no seu
coração de lhe impor castigo.

- Comandante Erer traga-me aqui o escravo Awash, filho


daquela traidora do reino e que a esta altura já deve estar
sentindo a agonia da morte. Rápido!

- Sim minha rainha Dawa. Você, onde encontro o escravo por


nome Awash?

- Lá atrás no rosário senhor! Quer que vá busca-lo?

- Não precisa escravo eu mesmo vou.

O comandante Erer encontrando Awash o conduziu até a


presença da rainha, mas antes que chegassem próximo de onde
ela se encontrava advertiu o menino sobre o que lhe poderia
acontecer.

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- Aqui estou rainha Dawa. Peço que desculpe os trajes do seu
servo pois é o mesmo desde que cheguei aqui. Gostaria de me
apresentar com uma aparência melhor perante Vossa Alteza.

- Escravo, desejo figos. Vá e busque-os para mim. Mas saiba


que se os figos que trouxer não estiverem do jeito que eu
aprecio será punido por isso.

Awash sabia que na realidade ela não queria figos, ela queria
simplesmente puni-lo na presença da princesa Kabenna, não
importando qual figo levasse. Então ao invés de figo escolheu
rosas.

- Não entendeu que pedi figos escravo insolente? Por que vem a
mim com flores? Bradava em alta voz a rainha Dawa.

- Não conheço o gosto da rainha em relação a frutas mas sei


que a princesa Kabenna e a senhora gostam de rosas, haja vista,
que toda semana suas criadas as vem buscar aqui no jardim e
me pedem para escolher as mais bonitas e sempre que retornam
dizem que as achou simplesmente as mais lindas rosas de todo
o reino. Então isso prova que meu trabalho não tem sido em
vão, pois sou o responsável pelos rosários do palácio.

- Compreendo escravo. Você me parece ser inteligente e


instruído, mas não foi isso que lhe pedi e como castigo por tal

61
ousadia levará trinta chibatadas por não ter trazido os figos e
mais trinta por ter reclamado de suas roupas.

Awash sentiu-se feliz mesmo sabendo que a dor seria muito


grande. Seus olhos haviam visto a princesa e a rainha havia
percebido que ele poderia ser realmente útil. A cada estalar do
chicote na sua carne ele se lembrava de seu mais novo amigo
Ubbi Ubbi e de seu velho amigo Gaspar. Mentalizava que até o
sofrimento não seria eterno pois que a vida também se findaria
algum dia. E assim se deu a sua punição. Ao final dos açoites o
comandante Erer autorizou que o levassem para dentro do
alojamento e cuidassem de suas feridas.

Passado algum tempo o aprendiz que estava sendo instruído


pelo tesoureiro mor da rainha veio a ser acometido por uma
grave doença e faleceu. O caso foi levado ao comandante Erer
que rapidamente procurou Mofar para que falasse com a rainha
Dawa a respeito.

- Minha rainha Dawa, permissão para lhe falar! Temos um


pequeno problema com Rahad, seu tesoureiro chefe. Após
longo período adestrando seu pupilo, o aprendiz veio a falecer e
estamos com dificuldade para conseguir outro rapaz com
instrução suficiente.

62
- Arrume outro energúmeno e coloque no lugar, Mofar. Acho
que em um reino deste tamanho isso não deva ser problema.

- Minha rainha Dawa infelizmente todos os jovens do reino que


não estão nas escolas de formação da guarda, nas fileiras do
nosso exército ou quiçá nas plantações pelo interior do reino,
não possuem um nível intelectual muito aferido. Mas não se
preocupe que resolveremos a situação. Permissão para me
retirar.

Se retirando da presença da rainha, Mofar e o comandante Erer


foram conversar nos jardins do palácio sobre o que iriam fazer
e onde encontrar um jovem com instrução suficiente para
assumir tal função.

Ubbi- Ubbi ouvindo a conversa dos dois alertou-os que ali


dentro dos muros existia alguém com tal capacidade e que além
de saber fazer cálculos sabia ler e escrever em ge’ez, grego,
latim e ainda hebraico.

- Escravo vá e nos traga essa pessoa agora! Apontava Mofar ao


servo com o dedo em riste.

Qual não foi a surpresa quando viram que o escravo que havia
sido trazido por ele era na verdade o jovem Awash, filho

63
bastardo da prisioneira Mille que havia sido enviada à morte
pela rainha Dawa.

- Seu amigo nos disse que você escreve e lê em diversos


idiomas, isso é verdade?

- Sim senhor, desde cedo minha mãe me instruiu nas línguas


que mais são utilizadas no nosso reino. Sei um pouco de copta,
grego e latim. Já faz um tempo que não pratico mas ainda me
lembro da essência.

Mas ficaram com receio se a rainha Dawa iria aceitar a


sugestão de levar o escravo Awash para trabalhar com o
contador mor Rahad, já que o menino era filho de uma traidora
do reino. Mesmo assim foram ter com ela.

- Escravo, primeiramente quero saber se você gostaria de sair


daqui dos jardins e ir morar em acomodações mais decentes?
Não haverá luxo mas pelo menos terá refeições diárias, banho e
uma cama para deitar. Porém antes de ser efetivado em nova
função será avaliado pelo contador mor Rahad e se aprovado
for a palavra final caberá a rainha Dawa.

- Meu nobre senhor comandante Erer, saiba que irei trabalhar


com todo o meu afinco e dedicação pelo bem do reino. Sei que

64
nesta função poderei desempenhar e desenvolver um excelente
trabalho.

A sua inteligência havia despertado a admiração de Rahad que


concordou imediatamente após os testes aplicados em adestrar
seu novo pupilo e solicitou que o deixassem sob a sua
responsabilidade. A rainha tendo sido avisada pelo comandante
Erer não viu outra solução plausível e aceitou que o menino
fosse trabalhar com seu tesoureiro chefe. Mas impôs que ele
não poderia circular pelos corredores do palácio.

Awash nunca esqueceu o que seu amigo havia feito por ele e
prometeu que sempre iria ajudá-lo até o dia em que fossem
livres novamente. Ele se lembrava constantemente da sua mãe,
de Gaspar e da princesa Kabenna. A imagem da sua mãe sendo
levada permaneceria marcada na sua mente assim como as
marcas dos chicotes que carregava. Mesmo sendo ainda uma
criança orava em silêncio ao Deus que não sabia o nome mas
que os haviam livrados das garras da morte naquela viagem
pelo deserto. Não sabia o porquê da sua ajuda mas tinha plena
convicção de que um dia iria conhecer mais intimamente o
Deus do seu amigo Gaspar.

65
CAPÍTULO V

A DOR DE KABENNA
Nos salões do palácio a princesa Kabenna estava sendo
preparada para se tornar mulher e a paciência da rainha girava
em torno disso. Contava com ela para lhe gerar um herdeiro e
após emprenhar, dar à luz e assim que a criança desmamasse
ser finalmente tratada como escória ou quem sabe lhe reservar
algo ainda pior ao que foi destinado a sua mãe. A todo o
momento a rainha procurava saber com a serva Wajja sobre as
condições em que ela se encontrava e ela sempre persuasiva
convencia a rainha que o momento ainda não era o ideal.
Contava com a sorte, pois o reino estava sendo invadido por
tribos que vinham do sul e a atenção da rainha estava voltada
para a resolução dessa questão.

Kabenna e Awash sempre conseguiam trocar mensagens


através de Wajja e de Ubbi-Ubbi, pois serviam de
intermediários para entrega de bilhetes que ambos enviavam.
Awash toda semana ia aos jardins durante a noite e lá ficava até
quase amanhecer conversando com seu amigo, falavam de
muitas coisas, principalmente de como seria bom se um dia a
princesa Kabenna se tornasse rainha. Tudo iria mudar, suas

66
famílias poderiam estar novamente juntas. E naquele momento
percebeu que sentia algo diferente por Kabenna, só não sabia
explicar o que aquele sentimento significava na verdade.

- Awash se prepare que amanhã iremos à cidade. Aproveitemos


a ausência da rainha Dawa e do comandante Erer. Mas lhe peço
que não saia de perto de mim enquanto tivermos em meio as
aglomerações e que guarde segredo.

- Prometo mestre Rahad! Jamais iria trair a vossa confiança


mestre.

Bem cedo atravessaram os portões do palácio e outro mundo


lhe fora revelado, tudo era novo para Awash, tentou perceber
cada detalhe daquele lugar, as fisionomias, os gestos e os
diversos idiomas que se entrelaçavam em meio à multidão.
Observou a miséria do povo, seus corpos franzinos e mal
alimentados em contraste a grande bonança que muitos
recebiam no interior do palácio. Lamentava no seu íntimo que
muitos idosos se amontoassem em busca de esmolas ou até
mesmo em uma caçada mortal por pão ou outro alimento
qualquer. Notou que conforme caminhavam a cidade se dividia
entre miseráveis e abastados. Na parte leste da cidade
encontravam-se muitas famílias de posse e os mercados
negociavam vários tipos de produtos e os aromas que exalavam

67
das barracas de iguarias eram simplesmente maravilhosos.
Chocou-se com homens se digladiando em meio a uma roda de
pessoas que pareciam incentivar aquele tipo de barbárie e
percebeu que por dinheiro o homem era capaz até de matar
gente do seu próprio sangue. Não entendeu aqueles lugares que
pareciam oferecer à venda meninas jovens como se fossem
mercadorias e muitos homens e até mesmo anciãos tocavam-
lhes o corpo e beijavam seus lábios. Eram crianças talvez só
com um pouco mais de idade que ele. E muitas vinham até o
senhor Rahad e ofereciam serviços em troca de algum dinheiro.
Só mais tarde entendeu do que se tratava. A quantidade de
imagens de deuses era gigantesca, em cada esquina havia
lugares em que se entregavam oferendas, queimavam alguma
espécie de incenso e realizavam sacrifícios de animais. O
senhor Rahad lhe dissera que quando a rainha Shebelle estava
viva a cidade não era daquele jeito, havia decência entre os seus
cidadãos e o comércio se dava de forma ordenada. Existiam
pouquíssimos pedintes, pois a maioria das pessoas possuíam
terras e plantavam seu próprio alimento. Não existiam tantos
deuses como agora e os sacrifícios e as ofertas eram feitas em
lugares próprios fora da cidade. Enquanto retornavam foi
afetado pela visão mais aterradora que tivera até aquele
momento, viu corpos de crianças, jovens e velhos serem

68
empilhados e queimados sob a luz do sol. Aquele cheiro
adocicado que se espalhava pelo ar ficou impregnado em suas
narinas e a lembrança daquele cenário atormentou-o por muitos
anos.

- Jovem Awash eu conheci seu pai, o general Ganale Dorya.


Saiba que era um homem honrado, justo e de bom coração.
Soubemos que ele foi morto em uma emboscada e lamentei
muito a sua morte.

- Senhor Rahad, agradeço a sua confiança e lhe prometo que


nunca irei decepcioná-lo. E me alegra muito saber que o senhor
respeitava e admirava meu pai. Não o conheci pessoalmente e
seu caráter é o que herdei de mais valioso e, além do mais, algo
me diz que ele não está morto e muito menos a minha amada
mãe. Pois sei que Deus ainda reservará dias felizes para todos
nós.

Após um período de quietude no palácio ocasionado pela


ausência da rainha Dawa, teve início um ciclo sombrio para a
princesa Kabenna. Regressando do sul do reino onde haviam
derrotado povos do deserto a rainha Dawa começou a colocar
em prática suas reais intenções reservadas para a princesa
Kabenna.

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- Mofar me chame aqui à serva Wajja e me traga também o
comandante Erer. Mais uma coisa, como transcorreu a rotina da
capital e do palácio em minha ausência?

- Tudo transcorreu na mais perfeita ordem minha rainha.


Concedi algumas poucas audiências e como vossa orientação a
maioria delas culminou em execuções e tantas outras com o
envio de escravos as nossas minas de extração de prata e ouro,
em falar nisso, os carregamentos de ouro, prata e cobre das
minas foram levados aos depósitos reais conforme sua
determinação.

- Muito bom Mofar, vejo que nem só de parasitas vivo sendo


cercada ultimamente.

Após seu regresso a sordidez e o desprezo da rainha Dawa para


com a princesa Kabenna ficaria mais que evidente durante o
episódio que estava por se desenrolar. Sua fase mais malévola
aflorava com imponência exacerbada.

- Serva Wajja prepare para a hoje a iniciação da princesa


Kabenna. Já tenho a pessoa certa em mente para conduzi-la em
sua primeira noite de prazer!

- Mas minha rainha a princesa ainda não está devidamente


pronta! Eu...

70
- Chega de tergiversar serva miserável. Toda vez que ordeno
algo você tenta me dissuadir, acha que realmente podes tu me
enganar? Por sua afronta terá um castigo. Comandante Erer
pegue sua espada e decepe os dedos da mão desta escrava
deplorável. E que isso lhe sirva por sinal, só não lhe mando
tirar a língua porque preciso que me informe como as coisas
estão indo com a princesa Kabenna.

- Perdão minha rainha! Mas tem certeza disso?

- Já não me basta a escrava soldado? Faça o que ordeno ou


você que irá ter sua mão cortada fora.

O comandante Erer mesmo relutante obedeceu às ordens


emanadas pela rainha Dawa e decepou- lhe os dedos da mão.
Mas logo em seguida a levou para tratar os ferimentos com os
médicos reais que ficavam na outra extremidade do palácio. As
atitudes da rainha já haviam causado indignação ao comandante
Erer, porém como era um homem de palavra e seu juramento
de ser fiel ao reino era a coisa mais importante a fazer, cumpriu
com suas obrigações. Wajja por sua vez era uma mulher valente
e forte fisicamente e tentava a todo o custo proteger a vida da
princesa Kabenna ou pelo menos dirimir os efeitos das decisões
da rainha. Mas naquele momento se sentiu impotente. Após
receber tratamento foi ter com a princesa em seus aposentos.

71
- Princesa Kabenna com licença minha senhora. Infelizmente
sou portadora de más notícias. Hoje a senhora receberá a visita
de um varão escolhido pela rainha Dawa e ele lhe fará mulher.
Perdoe-me por chorar diante de ti, mas sinto que esta noite será
de tormento para todos nós e muito mais a ti.

- Primeiramente o que houve com a sua mão minha amiga


Wajja? Quanta covardia! Como pode existir sobre a face da
terra pessoa tão vil como a rainha Dawa? Mas não se preocupe
comigo, não será isso que irá me matar porque bem sei o
destino que Deus me reserva. Não sei quanto tempo demorará,
mas esse dia com certeza vai chegar. Acredito em um Deus que
me foi apresentado por um grande amigo e bem sei do seu
cuidado para comigo, Mille e Awash. Faça o que tiver que ser
feito a fim de evitar castigos piores por parte da rainha Dawa
contra você. Prepara-me para o ato!

Naquela noite a rainha mandou chamar seu garanhão particular


que lhe prestava serviços sempre que desejava. Era um homem
forte, um dos mais vigorosos de toda a guarda e sua estatura
parecia a de um gigante perante a princesa, haja vista, que
acabara de entrar na puberdade e seu corpo ainda não estava
completamente formado. Era pequena e magra para suportar
um homem daquele porte.

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A rainha Dawa ofereceu naquela noite uma grande festa no
palácio e uma estátua do deus Baco foi colocada no meio do
salão principal e desejou que todos os convidados se
embriagassem e se divertissem, pois iriam comemorar a
iniciação da princesa Kabenna. Ordenou que o comandante
Erer levasse seu amante aos aposentos da princesa e que lá
permanecesse ao lado de fora da entrada do aposento até que o
ato fosse consumado.

- Soldado preste atenção ao que vou lhe falar antes que você
entre por esta porta. Ela é apenas uma criança, pense bem, não
precisa fazer isso, mas se você estiver realmente decidido em
perpetrar tal ato de insanidade saiba que se machucar a princesa
eu vou te matar, está me entendendo?

- Estou apenas cumprindo ordem comandante, e suas ameaças


não tem importância para mim. Vou fazer o que a minha rainha
determinou e para isso usarei de todo o meu vigor.

Então empurrou o comandante Erer e adentrou no aposento da


princesa Kabenna. Não muito tempo após ter entrado gritos
foram ouvidos pelos corredores do palácio e se sucederam por
mais de uma hora. Aqueles gemidos de dor e sofrimento eram
como lâminas penetrando nos ouvidos do comandante Erer e da
serva Wajja que também estava próxima aos aposentos da

73
princesa. Seu choro, sua dor e sua vergonha eram
compartilhados por boa parte da criadagem do palácio. Mas
agora após ter violentado a pobre criança o soldado batia a
porta para que a abrissem e o deixassem sair.

- Comandante Erer se fosse o senhor pediria que a criada da


princesa entrasse e a ajudasse a se banhar, afinal ela irá precisar
de cuidados, pois nunca vi tanto sangue em toda a minha vida.
Foi um pouco difícil no começo mas depois ela foi cedendo.
Acho que me entende! E zombava do comandante e de dos
servos que estavam mais próximos.

- Olhe bem para mim soldado e não se esqueça que minha


espada ainda irá transpor sua carne até suas vísceras.

- Não me esquecerei disto comandante Erer. Tenham todos uma


boa noite!

Ao entrarem nos aposentos da princesa Kabenna o comandante


Erer e Wajja ficaram perplexos com o quadro que encontraram.
A pobre princesa Kabenna estava caída ao chão de bruços e o
sangue escorria de suas partes íntimas, marcas foram feitas e
espalhadas por todo o seu corpo, estava muito debilitada, porém
a pior cicatriz era a deixada na sua alma, aquela não haveria de
ser cicatrizada por longos anos. O comandante Erer se pôs a

74
correr pelos corredores do palácio a fim de chamar o médico
real enquanto Wajja tentava consolá-la.

- Ah minha princesa! Minha princesa, o que fizeram com a


senhora...Meus lamentos são por você alteza. Poderia ter sido
eu em seu lugar, és ainda uma criança. Não morra, não desista
da vida, não se entregue aos braços da morte.

- Me ajude Wajja, sinto muita dor. Minhas entranhas parecem


sair de dentro de mim e todo o meu corpo padece. Ajude-me a
levantar e me banhar. Eu irei sobreviver minha amiga, pois esta
é a vontade de Deus.

Chegaram então o médico real acompanhado do comandante


Erer e passaram a cuidar da princesa Kabenna e viam que o que
a rainha tinha feito não era certo e começaram a questionar suas
convicções e desejavam que aquele tempo de horror tivesse um
final.

Alguns meses se passaram desde que o garanhão da rainha


havia se deitado com a princesa. Ansiosa a rainha Dawa pediu
que seus médicos verificassem se a princesa havia sido
fecundada. Porém após exames os médicos constataram que
infelizmente ela ainda não estava prenhe. Sua raiva era tal que
mandou o comandante Erer trazer a sua presença o soldado que
havia se deitado com ela.
75
- Em que lhe posso ser útil minha amada soberana? Inclinando
a cabeça como sinal de que a sorte o favorecia novamente.

- Então meu garanhão não conseguiu fazer o trivial? Acho que


sua virilidade não é mais a mesma e sendo assim não preciso
mais dos seus serviços. Comandante Erer leve este parasita
infértil e peça ao meu capataz que o emasculem.

- Posso lhe pedir um favor pessoal minha rainha?

- Com certeza comandante Erer.

- Prefiro eu mesmo realizar tal tarefa! Será uma grande honra


cumprir suas ordens neste momento.

- Que assim seja feito! Agora retire esse inepto da minha


presença!

- Ande verme imundo para o seu destino. Soldados conduzam o


prisioneiro aos porões do palácio.

- Comandante Erer, lhe suplico que tenha misericórdia de mim,


e não faça isso, por favor!

- Retirem suas roupas e deitem-no no estrado de madeira.

- Não, por favor! Socorro...

76
De certa forma foi feita justiça por parte do comandante Erer e
aquele soldado além de pagar por seu crime, após algumas
horas de sofrimento teve sua garganta cortada e seu corpo
descartado como lixo.

A princesa havia pedido que Wajja nada dissesse a respeito do


que acontecera naquela noite no palácio a Ubbi-Ubii e
consequentemente Awash não ficaria também sabendo.
Escreveu uma carta apenas mencionado a saudade que sentia
dele e que pedia a Deus que logo esse tempo de trevas passasse
e pediu que sua serva Wajja a entregasse ao seu amigo Ubbi
Ubbi.

Não satisfeita, a rainha Dawa ordenou que Mofar fosse as


prisões que ficavam próximas à capital e recrutassem os três
prisioneiros mais sádicos que lá se encontrassem. Teriam que
ter sido presos por crimes sexuais ou algo semelhante e que ao
voltar ao palácio adentrassem com os prisioneiros pelos fundos
do palácio, já que não desejava que os guardas soubessem e a
informasse assim que chegasse no interior do grande salão.

Nesse interim, Awash dedicava-se com empenho a aprender


tudo que o mestre Rahad lhe ensinava e em pouco tempo já
conseguia realizar os cálculos que transformavam o peso do
ouro em equivalente aos talentos romanos. E sempre que podia

77
ia ter com o seu amigo Ubbi- Ubbi nos jardins do palácio e ali
conversavam sobre muitas coisas e perguntava se havia tido
notícias da princesa Kabenna.

No palácio Mofar estava com as pessoas que havia encontrado


nas prisões do reino e aguardava a presença da rainha Dawa no
salão.

- Minha rainha eis que estou com as pessoas que me pediu que
trouxesse. São o que há de pior no reino e garanto que nem o
submundo é o pior castigo para eles. Não sentem dor, nem
remorso e farão o que lhes for mandado.

- Alimente tais porcos e leve-os aos aposentos da princesa e me


aguarde chegar. Mas atente ao que ordeno, eles não devem se
lavar, os quero do jeito que estão. Agora a princesa saberá que
ela me concede um herdeiro ou lhe imporei sofrimento eterno.

- Mofar quem são essas pessoas, perguntou a princesa Kabenna


com voz embargada.

- Logo a princesa saberá quem são e o porquê de estarem aqui.

- Olá princesa Kabenna, espero que esteja bem. Preparei-lhe


uma surpresa e espero que possa gostar. Esses nobres senhores
que aqui estão lhes serão por companhia esta noite, mas não se
preocupe que irei mandar chamar sua criada Wajja para lhe
78
fazer companhia. Quem sabe desta vez sua imprestável, você
não gera um filho.

- Por que sente tanto ódio por mim rainha Dawa? Ou esse ódio
talvez não seja por mim, mas pela minha mãe? Saiba que irei
suportar tudo aquilo que me impor e vou além, irei sobreviver a
cada castigo que me infringir e meus dias nessa terra serão
multiplicados por Deus e verei minha felicidade através da
minha descendência que não virão destes homens, mas daquele
que Deus escolher para caminhar ao meu lado. Lhe digo mais,
os seus dias jamais terão luz e as suas noites jamais lhe trarão
descanso.

- Rainha Dawa a serva Wajja está a porta. Deixo-a entrar?

- Faça-a entrar Mofar. Pois bem seus porcos façam tudo o que
desejarem com elas, porém só não lhes tirem a vida.

Novamente seu corpo foi violado e sua alma maculada, a sua


dor perpassava qualquer entendimento humano, ninguém
poderia imaginar os sentimentos que afloravam durante aquele
momento. Sua carne sangrava e só se ouviam os sussurros que
saíam de suas bocas, eram como vozes inexprimíveis. Wajja
gritava para que não fizessem mal a menina e que se
satisfizessem com ela. Mas estavam ali para humilhar a
princesa Kabenna e assim fizeram sem o menor ressentimento.
79
Ambas sobreviveram àquela noite nefasta e a manhã com os
raios do sol que penetravam pelas janelas lhes trouxe o alívio
de que a vida ainda insistia em acompanhá-las e não lhes
abandonariam enquanto tais injustiças fossem praticadas contra
pessoas de bem.

Após se saciarem, Mofar os conduziu aos jardins do palácio


onde costumavam matar os desafetos da rainha e antes de
decepar lhes às cabeças o comandante Erer apareceu e
perguntou-lhe quem eram aquelas pessoas. Rapidamente Mofar
desconversou falando que eram fugitivos e que estavam
escondidos nos jardins do palácio. Mas de longe e escondido
atrás das oliveiras alguém observava toda aquela cena e sabia
que ele estava mentindo ao comandante Erer. E os soldados
desferiram golpes de espadas que arrancaram suas cabeças e
levaram seus corpos para serem queimados nas fogueiras fora
da cidade.

O comandante Erer ainda permaneceu algum tempo ali nos


jardins, pois não acreditara naquilo que Mofar lhe dissera e
pensativo procurava decifrar aquele mistério. Num deslize da
minha parte, o comandante Erer me viu tentando fugir na
direção dos cercados onde ficavam os animais. Indo atrás de
mim e me alcançando derrubou-me no chão.

80
- Por que está fugindo de mim escravo? Algo lhe assusta? Diga-
me a verdade ou mandarei açoitá-lo.

- Me perdoe comandante, não foi minha intenção fugir, mas lhe


peço que não me impute castigo. Eu vi e ouvi quase tudo o que
se falou naquele lugar agora a pouco e lhe afirmo que o
sacerdote da rainha mentiu ao senhor. Eles saíram juntos de
dentro do palácio e os homens gesticulavam muito, era como
todos se conhecessem. Infelizmente só posso lhe dizer isso.

- Desgraçado! O que este bajulador fez desta vez? Pode ir


escravo não lhe farei mal.

A princesa Kabenna insistiu com Wajja que aquele episódio


não deveria ser compartilhado com ninguém, pelo menos
durante algum tempo. E assim foi feito. Em certa ocasião o
comandante Erer sentindo a falta da presença da princesa
Kabenna foi ao seu aposento.

- Com licença princesa Kabenna, posso entrar?

- Boa tarde comandante Erer, me desculpe, a princesa se sente


indisposta e não deseja receber ninguém.

- Aconteceu alguma coisa aqui de que não estou sabendo serva


Wajja?

81
- Nada que se deva preocupar nobre comandante.

- Tudo bem então, se precisarem de alguma coisa peçam para


me chamar.

Passados alguns meses a rainha mandou chamar os médicos


novamente e ordenou que realizassem exames para verificar se
a princesa estaria grávida. Os médicos após realizarem os
exames informaram que a princesa não estava pejada mas que
sua serva Wajja essa sim esperava uma criança.

- Atenção! Alertava Mofar ao adentrar no aposento da princesa


Kabenna.

- Bom dia minha sobrinha, como você está se sentindo hoje? E


você escrava, sentindo muitos enjoos ultimamente? Vou ser
rápida pois este lugar fede. Não conseguiu emprenhar princesa
Kabenna mas esta sua serva conseguiu, todavia não lhe será
dado o direito de ser mãe.

- Rainha Dawa não precisa fazer isto senhora, eu lhe imploro!


Chorava Wajja com a alma em agonia.

- Mofar peça que um dos guardas a conduza ao médico da corte


e lhe diga para arrancar-lhe o útero fora.

82
E assim foi feito. Anos se passaram e a rainha Dawa se tornara
uma pessoa ainda mais inclemente, seus atos já beiravam o
limite da sanidade e problemas de saúde começavam a lhe
causar preocupação. Os valores empreendidos com festas no
palácio ultrapassaram todos os limites e o reino já demonstrava
entrar em declínio. Seu conselheiro Mofar agia nas sombras
tentando de alguma forma manter intacta a figura imponente da
rainha ocultando seus atos de loucura. Seus aliados após breve
ida à Roma regressaram ao reino de Abissínia empossados em
novos cargos. O Centurião Valerius Curius fora promovido a
graduação de general e comandante de todas as tropas do
império nestas terras e o general Marcius, fora elevado ao posto
de governador e representante do senado romano, tendo toda a
autoridade necessária para conduzir a política local e
respondendo diretamente ao imperador César. O comandante
Erer se tornara uma resistência oculta aos planos da rainha
Dawa, muitas vezes sabotava-os com o auxílio de outros
oficiais e já não via sentido em tais ordens emanadas pela
rainha e a atual dúvida que permeava a sua mente pairava sobre
a sanidade da soberana do reino.

Destarte a princesa Kabenna, mesmo sofrendo maus tratos por


parte da rainha Dawa, se tornara uma mulher deslumbrante tal
qual era a sua mãe. Suas tranças chegavam ao chão e seus olhos
83
se tornaram ainda mais brilhantes. Todos aqueles anos sendo
subjugada pela rainha não a transformaram em uma pessoa
amarga, mas em uma mulher sábia e resilente. Sua serva Wajja
já estava com certa idade, mas ainda sim servia a princesa com
a mesma dedicação de outrora.

Awash se transformou em um homem vigoroso e perspicaz.


Conhecia todos os fundamentos contábeis do reino e era
admirado por todos os quantos se relacionava. Lembrava seu
pai em cada detalhe e sua inteligência e capacidade de conduzir
situações conflitantes era conhecida por todos do reino.
Juntamente com seu mestre Rahad conseguiu barganhar um
decréscimo dos impostos dados a Roma subornando pessoas
certas em posições certas. Mas não era em causa própria que
fazia isso. Tudo o que conseguiam economizar com essa
política monetária eram guardados em um lugar secreto fora da
cidade em uma caverna escondida nas proximidades do Monte
Talo. Tal local só era de conhecimento de pessoas da sua mais
estrita confiança, entre elas estava seu fiel e grande amigo
Ubbi-Ubbi, seu mestre Rahad e o seu filho Borkana.

-Mestre Rahad sei que não aprova tal atitude da minha parte
mas compreenda que faço isso por uma causa maior, que ajo
assim pelo bem do nosso reino. Tudo o quanto conseguirmos

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guardar nos ajudará um dia a comprar apoio de outros povos
afim de destituir essa tirana do trono, trono que ela usurpou da
sua irmã e da legítima herdeira, a princesa Kabenna.

- Bem sei Awash que é legítima sua postura e que querendo ou


não sou parte disso. Meu medo é que alguém descubra e queira
lhe fazer mal. Não me preocupo comigo mesmo já sou velho e
a morte é apenas o passo derradeiro que darei nessa vida.
Queria ter a fé que você tem nesse Deus que você nem mesmo
sabe o nome. Como adorar o Deus de um povo que você mal
conhece a ponto de confiar seus planos e sua vida? Queria
conseguir compreender.

- Mestre Rahad esse Deus salvou a vida da minha mãe e a


minha também, e creio que O conhecerei mais profundamente,
pois é o desejo do meu coração. Preservou-me até o presente
momento, bem como a princesa Kabenna, e existe algo que
desconheço nesse propósito.

Durante todos aqueles anos ele e a princesa só se viam de longe


e se comunicavam por meio de bilhetes ao menos uma vez por
mês, porque era perigoso demais já que a rainha possuía olhos
em toda a parte. Mas era notório que os conteúdos das cartas
deixaram de ser uma conversa amistosa entre amigos para se
tornar um diálogo apaixonado entre duas pessoas. O amor que

85
nascera lá atrás nas florestas do Monte Batu amadurecera e
resistia aos ataques praticados pela rainha e seus asseclas. Por
mais que seus ouvidos não ouvissem os fonemas que
formassem a palavra amor eles já imaginavam o som produzido
por seus lábios. Precisavam se encontrar pessoalmente para
poderem dizer o que sentiam e o que gostariam de fazer. Talvez
planejassem fugir para longe, distante da crueldade da rainha e
de tudo o que ela representava. Mas com certeza tinham que
arrumar uma forma de se verem.

- Boa noite senhora Wajja! Meu amigo Awash deseja encontrar


a princesa pessoalmente e observando as rotinas de rondas dos
soldados eu acho que a estrebaria seria um lugar seguro. Penso
que daqui a três luas seria a melhor ocasião.

- Olá Ubbi-Ubbi é muito bom revê-lo meu nobre amigo.


Concordo com você. Avise a Awash que falarei com a princesa
Kabenna e creio eu que ela aceitará o convite, mas seria bom
me dizer que horas o seu amigo pretende estar lá.

- Senhora Wajja me antecipando ao mestre Awash acho que por


volta da meia noite seria o ideal, deixemos acertado desta forma
então.

Porém uma terrível coincidência iria desencadear


acontecimentos que afetariam a vida da princesa Kabenna e
86
principalmente a de Awash. Talvez não compreendessem que
seria necessário que passassem por tais situações para que mais
tarde o sol voltasse a brilhar sobre o nosso reino e sobre a vida
de todo o nosso povo. Teriam que superar provações que talvez
para simples mortais como eu ou você fosse um fardo pesado
demais para suportar. Entretanto aos que acreditam na
existência de um Ser maior que controla as ações humanas
havia planos traçados pelo Senhor dos senhores, pelo o único
Deus que realmente existe e que um dia iríamos passar a
admirar e adorar com todas as nossas forças e amor bastava
apenas termos fé e confiar.

Naquela noite antes que Awash e a princesa Kabenna se


encontrassem houve um forte boato que a rainha Dawa estaria
às portas da morte. Foram chamados às pressas os oráculos do
reino e todos os médicos até os aposentos da rainha. A rainha
estava com uma febre muito alta e constante e suas
acompanhantes lhe banhavam com o intuito de baixar sua
temperatura. Foram administrados todos os tipos de ervas e
magias que se conheciam e nada surtira efeito. À medida que o
dia passava os cabelos da rainha iam se soltando do seu couro
cabeludo e isso aterrorizou a todos os que presenciaram tal
situação. Suas alucinações eram exteriorizadas através de seus

87
gemidos e gritos de pavor, estrondava fortemente o nome da
rainha Shebelle e em seu delírio pedia que não a matasse.

- Mofar o que está acontecendo a rainha? Perguntava perplexo


o comandante Erer.

- Acho que é alguma obra de feitiçaria nunca vi nada igual em


toda a minha vida, mas sei o que preciso fazer comandante
Erer.

Mofar acreditava que algo deveria ser feito urgentemente para


salvar a vida da rainha e como sacerdote real já tinha algo
perverso em mente. Tinha que aplacar a ira dos deuses e nada
melhor do que um sacrifício para causar tal efeito.

- Soldados, quero que vasculhem todas as casas da capital do


reino e me tragam aquela mulher que estiver prestes a dar à luz.
Não pode estar em início ou no meio da gestação, precisa de
fato estar pronta para conceber. Ajam rapidamente, encontrem-
na e levem-na aos jardins do palácio no local das oblações.
Estarei lá em súplica aos deuses esperando por vocês.

Os soldados saíram em disparada sobre seus cavalos e


invadiram diversas casas e nada encontravam, foi quando ao
pararem para pedir informação em um prostíbulo que tiveram a
notícia de que ali naquele lugar havia uma menina grávida e

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que estava prestes a dar à luz. Não a haviam mandado embora
pois era uma das moças mais requisitadas pelos frequentadores
do estabelecimento. Colocaram-na então sobre o cavalo e
rapidamente voltaram ao palácio.

Já era quase meia noite quando chegaram aos jardins reais.

- Senhor Mofar eis aqui a mulher que pedirdes.

- Muito bom meus soldados. Entreguem-na a mim.

- Meu senhor o que fará comigo e com minha criança? Lhe


imploro que tenha misericórdia.

- Cale-se bastarda, pois sua vida só tem sentido se servir para


um propósito maior e você e seu filho foram escolhidos como
sacrifícios aos deuses, sinta-se privilegiada por fazer parte
disto.

- Preserve ao menos a vida do meu bebê meu senhor! Mas ele


nada respondeu a pobre mulher.

- Agora invoco dos submundos e do inferno todos os deuses


que se saciam com o sangue e morte, que poupam os
governantes e se alegram com sacrifícios de vidas para que seja
concedida à vida. Anúbis receba estes sacrifícios. Thanatos
receba estes sacrifícios. Hades receba esses sacrifícios e Plutão

89
receba estes sacrifícios. Tragam vida a rainha Dawa e
restaurem sua saúde.

Então os sacerdotes que acompanhavam a Mofar abriram a


barriga da mulher e retiram à criança e a deixaram-na sobre um
altar colocado ali somente para isso. Logo após cortaram-na a
garganta e derramaram seu sangue dentro de um receptáculo
feito em ouro. Em seguida sacrificaram a criança em uma
fogueira e o cheiro exalado daquela monstruosidade se
espalhava pelo ar e invadia os aposentos e corredores do
palácio. Mofar pediu aos sacerdotes que o acompanhavam que
levassem o sangue e banhasse a rainha Dawa e a fizessem beber
um cálice. Isso renovaria suas forças.

Continuou ali naquele lugar em fervente clamor aos deuses, até


que percebeu a princesa Kabenna e sua serva Wajja passarem
por entre as arvores frutíferas do jardim e que ficavam
próximas ao local onde os corcéis da rainha ficavam. Ao
aproximar-se procurou um lugar escondido a vista de todos e
notou que Awash também se dirigira para o mesmo estábulo.

- Princesa Kabenna! Sou eu, Awash seu humilde servo e amigo.

- Deixe de bobagem Awash, lhe tenho em mais alta estima e és


para mim muito além de um simples servo. Preocupou-me
bastante a dúvida se você conseguiria vir, haja vista, o tumulto
90
que se encontra o palácio. Dizem que a rainha Dawa está muito
doente.

- Bem que ela poderia morrer!

- Se for da vontade de Deus que assim se faça.

- Me permita lhe dizer algo antes que a coragem me falte. Saiba


que te amo e não sei explicar o quanto, já que é impossível de
mensurar tal sentimento. Não sei bem ao certo quando teve
início o que sinto, acho que é algo que ocupa meu coração
desde o ventre da minha mãe. E bem sei que se ainda estou aqui
diante de você é porque existe um sentido maior que perpassa
meu entendimento. Também sei que não procedo de linhagem
real, mas o verdadeiro valor real das coisas é aquilo que não
envelhece ou se deteriora com o tempo e meu amor ele
transcende essa esfera temporal.

- Awash! Awash! Você é o meu amado, o homem que meu


coração escolheu amar. Você é para mim assim como o Nilo
Azul é para nossas terras, fonte de vida. E como gostaria de ter-
lhe dito isto há muitos anos atrás. Mas esse foi o momento que
Deus nos permitiu fazê-lo. Abrace-me e me deixe ser feliz nem
que seja por alguns poucos minutos.

91
A atmosfera foi envolta pelo sentimento mais nobre que habita
no coração do homem, parecia que os animais haviam
silenciado e apenas observavam e desejavam que aquele
momento pudesse durar uma eternidade. Cuidadosamente seus
lábios se tocaram e o amor se materializara, estavam presos um
ao outro, nada ao redor lhes importava mais, só aquele instante
tinha significado. E conversaram abraçados sentados no chão
junto ao feno. Era a primeira vez que conjecturaram acerca do
futuro, sobre seus sonhos e seus anseios. O momento que já
durava algumas horas foi interrompido pela sua serva Wajja
que solicitou a princesa que se apressasse, pois a hora já era
avançada.

- Princesa Kabenna a hora já é avançada e vejo grande


movimento nos arredores do jardim seria melhor regressarmos
rapidamente.

- Concordo com você minha amiga Wajja é melhor irmos.


Awash nunca se esqueça do meu amor por você. Tome cuidado
meu amor e que Deus seja contigo.

- Obrigado minha amada princesa Kabenna, mas meu coração é


bússola que só me faz enxergar a direção na qual você se
encontra, ainda assim serei prudente. Que Deus a acompanhe.

92
Awash aguardou ainda alguns minutos e nesse interim sonhava
com os olhos abertos e finalmente o sorriso lhe veio à face e
seus olhos brilharam como fogo e suas mãos suavam como a
corredeira de um rio.

O mal tem várias formas e uma delas estava ali escondida


ouvindo atentamente a tudo o que se dissera naquele lugar, esse
mal era Mofar, o súdito mais execrável da rainha. Mas
planejava aguardar mais um pouco até que a rainha se
recuperasse e aí então poderia desferir seu veneno nocivo
contra a vida da princesa e do seu amor.

- Minha princesa Kabenna me diga como foi o encontro com


Awash, estou curiosa para saber de todos os detalhes apesar de
estar próxima não quis ouvir o que conversavam.

- Minha amiga e confidente Wajja finalmente pude expressar


todo meu amor, esse sentimento estava me sufocando e acho
que se guardasse ele dentro do meu coração por mais algum
tempo seria capaz de morrer. E o melhor é que foi recíproco,
afinal ele também me ama. E abraçadas comemoravam aquele
momento de alegria.

A rainha por obra do acaso e não dos sacrifícios realizados


começava a se recuperar, mas suas servas evitavam que ela se
olhasse no espelho de prata que possuía nos seus aposentos por
93
ordem do sacerdote Mofar. Era ali diante daquele espelho que a
rainha Dawa em um passado não muito longínquo se auto
proclamava a mulher mais linda, cobiçada e poderosa do reino,
quiçá mesmo da terra, estando somente um pouco abaixo de
Tiberius César. Ali também sob bebida forte ela realizava suas
orgias e todos os tipos de bestialidades que lhe trouxesse
prazer. E o lugar exalava o aroma putrefato do pecado que
denigri o espírito humano e o subjuga ao inimigo de nossas
almas.

Passados alguns meses a rainha conseguiu se recuperar quase


que totalmente. Já sabia que algo havia acontecido com seus
cabelos e com sua pele. Tufos de cabelos haviam caído de sua
cabeça deixando seu couro cabeludo exposto e essa aparência
não agradava muito aos olhos, sua pele tinha se transformado
como que em escamas das escarpas e muitas de suas servas
evitavam tocá-la com medo que aquilo fosse contagioso. Mas
seu ódio só fizera aumentar, e sua imagem já não lhe era assim
tão importante, havia ficado em segundo plano.

Estava sedenta por encontrar um bode expiatório no qual


pudesse entornar todo o seu cálice de ira então ordenou que
Mofar realizasse sacrifícios semanais aos deuses que tinham lhe
poupado à vida. O sofrimento imposto às famílias do reino foi

94
tanto que muitas mulheres grávidas tentaram fugir para outras
terras, mas encontravam a morte ao tentar cruzar o Nilo ou o
deserto e quando eram capturadas encontravam seu destino no
lugar das oblações que ficava nos jardins do palácio.

Ubbi-Ubbi por muitas vezes presenciava tais rituais e era


obrigado a limpar o local e aquilo lhe causava danos
emocionais irreparáveis. Infelizmente nada podia fazer para
salvar aquelas pessoas ou amenizar seus sofrimentos.

Após esse período de sacrifícios que se sucederam, Mofar


procurou a rainha para lhe contar o que havia presenciado no
estábulo e manipulou ao seu bem querer os fatos narrados
criando ficticiamente um plano de traição da princesa Kabenna
e Awash com o objetivo de matá-la e tomar o trono.

- Minha soberana rainha Dawa me perdoe importuná-la, mas


preciso compartilhar uma informação com a senhora.

- Entre Mofar e me diga o que deseja.

- Há algum tempo atrás presenciei uma cena nos seus estábulos


entre a princesa Kabenna e o escravo Awash.

- Continue Mofar e vá direto ao ponto!

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- Pois bem minha rainha, eles confabulavam em descobrir uma
forma de lhe tirar a vida para que ela assumisse o trono de
vossa majestade. Intentava envenenar a soberana da Abissínia.

- Se isto for verdade, preciso adotar uma atitude austera. Vá e


me chame o comandante Erer.

- É a mais absoluta verdade rainha Dawa só não havia lhe dito


antes, pois esperava se recuperar ainda mais a sua saúde. Vou ir
chamar o comandante! E seu sorriso revelava que seu plano
dera certo e agora era aguardar o desfecho.

- Comandante Erer me traga a princesa Kabenna e prenda o


servo Awash nas masmorras do palácio até segunda ordem.
Tenho algo para compartilhar com eles. E peça aos soldados
para irem ao mercado central da cidade e me tragam o egípcio
por nome Husani.

- Afirmativo, rainha Dawa!

- E Mofar fale ao governador Marcius que solicito a sua


presença hoje à noite aqui no palácio.

- Posso saber do que se trata minha rainha?

- Na hora certa você saberá! Agora se retire da minha presença.

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- Princesa Kabenna, com licença! Posso adentrar no seu
aposento?

- Claro comandante Erer, saiba que és bem vindo aqui.

- A rainha me pediu que a conduzisse até a sua presença mas já


lhe alerto que há algo muito ruim para acontecer, pude notar
isto na voz da rainha Dawa. Sei que tenho sido fiel à soberana
do reino, pois este foi meu juramento e estava decidido a
cumpri-lo até a minha morte, porém vejo que estava
equivocado. Seja forte e por mais algum tempo tente
permanecer viva.

- O que esperar de um poço seco? Assim é o coração da rainha


comandante Erer, não há nada dentro dele. Sei que serviu bem a
minha mãe e não vou lhe julgar por ter ficado ao lado da rainha
Dawa, talvez temesse por sua família, sua consciência é seu
maior legislador. Irei colocar meu vestido mais bonito e ficarei
linda para tal ocasião.

Os soldados foram ao lugar de trabalho de Awash e o


procuraram para prendê-lo. Rahad tentou inquirir os soldados
para saber o porquê queriam levá-lo preso pois receava que
alguém tivesse descoberto sobre os desvios do tesouro real, mas
os soldados nada respondiam. Seu filho Borkana tomado de

97
medo disse aos soldados que ele se encontrava no seu aposento
e que eles nada tinham a ver com o que ele tivesse feito.

- Servo Awash abra a porta! Estamos aqui a mando da rainha


Dawa. Gritavam os soldados a porta.

- Claro, me deem somente um minuto para me vestir


adequadamente.

- Não demore e nem tente nos ludibriar.

- Boa tarde nobre soldados, mas o que os senhores desejam?

- Você está preso por ordem da rainha Dawa e será levado as


masmorras do palácio até segunda ordem.

Awash fora pego de surpresa e um turbilhão de pensamentos


tomavam sua mente. Pensava terem descoberto sobre os
desvios do tesouro e que seu destino seria a morte. Mas não era
o medo de perder a vida que lhe atormentava e sim o fato de
nunca mais poder ver e abraçar a princesa Kabenna. Tentava
preparar seu espírito mesmo em grande tribulação.

Assim que chegou às masmorras o carrasco já lhe esperava para


iniciar as punições que a rainha mandara realizar através do seu
mensageiro. Tiraram suas roupas e o suspenderam por correntes
e lhes desferiram diversas chibatadas. Suas costas sangravam e

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a dor por vezes o fazia desmaiar, mas ele não pranteava.
Esperaram ele despertar e colocaram o ferro em ponto de rubor
e esticando seus braços seguraram suas mãos com as palmas
viradas para cima e então com o metal incandescente
queimaram-nas. Seus gritos fizeram com que os prisioneiros
que ali se encontravam pedissem que os soldados parassem
com aquilo, pois iriam acabar matando o homem. Depois de
encerrada aquela sessão de horror jogou-no na cela.

Sob forte dor ele orava ao Deus que lhe havia poupado e
sustentado e pedia que não o deixasse morrer ali, que o fizesse
forte para resistir e pudesse cumprir sua missão aqui nesta terra,
seja ela qual fosse.

- Pra quem está orando escravo? É melhor ficar quieto antes


que os carcereiros lhes ouçam e voltem para lhe causar ainda
mais sofrimento.

- O meu Deus ouve as minhas súplicas e mesmo aqui neste


lugar de tormento Ele me consola! Acredite neste Deus que vos
falo.

Chegada à noite todos os que tinham sido convidados a


presença da rainha já haviam chegado e a aguardavam na
varanda principal do palácio de onde a rainha concedia

99
audiência aos seus súditos e decretava seu veredicto aos servos,
escravos e prisioneiros.

Aquela noite em especial estava serena e não se sentia nem a


brisa vinda do norte. A lua desfilava sobre o céu e as estrelas
completavam aquela visão celeste. Sob aquele páramo muitos
iriam sofrer consequências irreparáveis provenientes de uma
mente doentia, as lagrimas que iriam serem derramadas naquele
local serviriam como manancial de coragem e mudança para
muitos que ali estiveram.

- Comandante Erer mande entrar a princesa Kabenna!

- Sim rainha! Aqui está a princesa Kabenna.

- Acorrente seus pés e mãos e a coloque de joelhos aqui ao lado


do meu trono.

O comandante Erer adentrou ao local e acorrentou a princesa e


a deixou próximo ao trono da rainha e logo em seguida os
guardas trouxeram Awash à presença da rainha. Ele estava
muito ensanguentado e sua fisionomia transparecia sua dor e
angústia. Estava nu e mal conseguia andar, suas mãos estavam
deformadas devido as queimaduras que sofrera, seu olhar
apenas procurava encontrar em meio aquele pandemônio a sua
amada Kabenna. Ao vê-la agrilhoada sentiu grande compaixão

100
e seus olhos vertiam-se em lágrimas. A rainha Dawa então
começou a desferir seu fel.

- Quero que me diga princesa Kabenna o que esse escravo


significa para você? O que vocês faziam conversando a sós no
meu estábulo?

- Porque só agora me perguntas acerca disso? Que mal há em


amar e querer o bem de alguém? O que fizeste com ele? O que
se passa nessa mente corrompida? Apenas nos encontramos e
declaramos nosso amor, nada mais dissemos.

- Mentira! Miserável traidora, vocês confabularam me trair com


o intuito de tomar a coroa e por sua mentira irei puni-lo até que
você fale a verdade. Açoitem-no.

- Rainha Dawa peço que ouça a princesa Kabenna! Disse o


comandante Erer com forte timbre.

- Não dirija a palavra a mim soldado! Nunca mais me


interrompa e só fale quando solicitado a se pronunciar.

- Não o machuque eu lhe imploro rainha Dawa! Deixem-no em


paz, nada fizemos e isso é apenas um subterfúgio que a senhora
usa para nos impor dor e sofrimento. Ainda sou seu sangue e
sua sobrinha.

101
- Escravo Awash quero que veja o que farei com sua adorada
princesa, essa árvore infrutífera que não serve para nada. E lhe
aviso, se acaso desviar seu olhar irei cegá-lo me entendeu?

Awash apenas procurava manter-se com os olhos fitados em


sua amada princesa mesmo que aquilo fosse uma tarefa
dolorosa demais, lhe feria a alma.

- Husani aproxime-se e raspe a cabeça da princesa e quero que


com seus cabelos me faça uma peruca, a mais linda que suas
mãos já produziram, pois ela não é digna de receber tal presente
dos deuses, meus cabelos já foram assim e voltarão a ser. Pelo
menos para isso ela me servirá bem.

- Claro minha rainha!

A medida que o egípcio ia cortando os seus cabelos todos os


que eram próximos à rainha se riam do sofrimento imposto à
princesa e ao escravo Awash que se encontrava de joelhos e
gritava de dor e revolta. Os olhos do comandante Erer
encheram-se de lágrimas e não suportando tal visão virava seu
rosto para os muros do palácio. A princesa Kabenna estava
muda, inerte e vulnerável e apenas contemplava os cabelos que
caíam ao chão. Seus olhos perderam o brilho da vida. Ao final
o egípcio juntou os cabelos que estavam no chão e com extrema

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astúcia passou a navalha na cabeça da princesa e nem um fio ali
restou.

- Agora está como deveria aparentar sua infecunda. Tragam-me


a serva por nome Wajja a minha presença.

- Soldados façam entrar a escrava!

-Eis aí a serva infiel na qual depositei minha confiança. Escrava


me diga o que a princesa foi fazer durante a madrugada no meu
estábulo? Sei que você o sabe muito bem.

- O que falaram naquela noite nada teve a ver com você! Digo
você porque não é rainha e nunca será como sua irmã a rainha
Shebellle. Você matou a sua irmã por inveja e seu sangue está
em suas mãos e um dia a justiça se fará!

- Calada escrava petulante! Arranque sua língua agora e a


joguem dos muros do palácio para que morra durante a queda.
Isso será seu castigo e minha sentença final para essa escória.

- Já me tiraste muito mais do que a vida sua megera, o que vier


a partir deste ponto é para mim recompensa.

Enquanto os soldados se preparavam para cortar-lhe a língua


ela falava à princesa Kabenna e a Awash que não
esmorecessem que a verdade e o amor um dia seriam sua

103
remuneração. Os soldados a seguraram e arrancaram fora a sua
língua e em seguida a jogaram do alto do palácio e ali ela
encontrou a morte.

- Ainda não terminei! Governador Marcius, gostaria de ter a


princesa Kabenna como sua concubina permanente em sua
casa? Fique tranquilo que ela não lhe gerará nenhum filho
bastardo pois é estéril assim como as areias do deserto.

- Isso me agradaria muito minha rainha! Tenho planos


maravilhosos para ela em minha casa.

- Mas antes de levá-la quero que presencie algo mais. Olhe bem
para isso princesa Kabenna.

- O que mais a senhora quer comigo? Deixe-me em paz!

- General Valerius Curius poderia me fazer a gentileza de


castrar o escravo Awash?

- Não rainha!!! Eu lhe imploro! Exclamava em desespero a


princesa Kabenna.

- Mas general, não o emascule, apenas esmague ou arranque


fora os seus testículos, quero que viva o resto dos seus
miseráveis dias com a sensação de possuir algo inútil entre as
pernas. Jamais saberá o que é ter um filho e nunca sentirá o

104
prazer que o sexo proporciona ao homem. Será para sempre um
EUNUCO enquanto respirar.

Os gritos da princesa Kabenna eram incompreensíveis. Quanta


dor ainda caberia naqueles corações? Seus olhares se
entrelaçavam em meio ao caos estabelecido pela rainha e seus
asseclas. Sem forças eles iam sucumbindo à crueldade e a
sordidez.

- Princesa kabenna meu amor, lembre-se sempre dos momentos


maravilhosos que passamos juntos na nossa infância, nos
banhos no lago, nas noites em que dormimos ao luar e
corríamos pela floresta. Lembre-se das minhas mãos segurando
as suas, do meu sorriso, da minha voz e das palavras que lhe
disse. Você ainda será a rainha e sua descendência encherá esse
palácio. Lembre-se do Deus do qual Gaspar nos falou e creia
que há algo ainda maior por vir. A dor não pode prevalecer
nunca sobre a esperança. Amo-te.

- Me passem a espada mais afiada que encontrarem! Pedia o


general Valerius aos muitos risos.

Então diante de todos fez com que os soldados o segurassem e


lhe cortou os testículos e lançou-os fora. Awash não suportando
a dor desfaleceu e fora levado da presença dos convidados até
as masmorras do palácio.
105
- Comandante Erer leve a princesa pela última vez aos seus
aposentos e deixe que tome um banho e lhes dê roupas de
escrava e a entregue aos cuidados do governador Marcius. Ela
será para sempre retirada da nossa presença e da nossa
lembrança.

Na prisão do palácio Awash continuava sendo humilhado pelos


carcereiros e guardas da rainha que lhes diziam que era melhor
morrer a viver como um vegetal, que ele não era homem e
nenhuma mulher seria interessante suficientemente para lhe
causar libido. Mas ele só pensava em permanecer vivo,
precisava arrumar forças sobre-humanas para suportar tamanho
fardo. Porém seu amigo e mestre Rahad subornou os
carcereiros e deixaram que um médico de sua confiança fosse
cuidar dos seus ferimentos e tal fato foi determinante para lhe
salvaguardar a vida. Rahad ainda solicitou que por mais um
pouco de dinheiro lhe deixasse falar com Awash.

- Olá nobre amigo! Lamento muito por tudo isso que lhe
aconteceu. Queria tanto poder lhe ajudar mais.

- Mestre Rahad muito obrigado por tudo que fez por mim. Deus
através do senhor preservou minha vida e preciso ainda de mais
um favor do senhor...

106
Rahad compreendeu e concordou com o que Awash havia lhe
pedido e ao se retirar daquele lugar fez tudo conforme haviam
planejado.

Mas algo acontecera com o comandante Erer, estava diferente e


não concordara com as atitudes tomadas pela rainha e decidiu
ajudar a princesa Kabenna. Reuniu seus soldados mais fiéis e
perguntou se o ajudariam a salvar a princesa mesmo que para
isso algumas vidas fossem ceifadas. Prontamente todos os
convocados concordaram e se propuseram a seguir seu líder.

- General Valerius Curius leve minha mais nova escrava a


minha residência no Lago Turkana e a entregue a minha
governanta. Leve dez homens consigo que vou por outro
caminho, mas antes preciso me encontrar com uma pessoa para
tratar de um assunto delicado referente ao império.

- Afirmativo governador Marcius! Não há necessidade deste


montante de soldados, a sua segurança é vital para as
pretensões do império nessas terras esquecidas pelos deuses e
também não creio que enfrentaremos qualquer problema
durante o trajeto. Ave César!

- Ave César! Exclamou o governador Marcius em tom


embriagado.

107
Acorrentaram a princesa e a colocaram sobre uma carroça e
seguiram viagem pelo Vale do Omo por um caminho estreito e
de difícil locomoção. Tal caminho escolhido pelo general
Valerius Curius era evitado por ter muitos costões rochosos e
uma população muito grande de escorpiões além de ser uma
terra árida demais. Mas via nesse caminho mais uma forma de
impedimento a qualquer um que quisesse intentar algo contra
ele e sua escolta.

- Comandante Erer fui informado que o general romano


pretende seguir viagem pelo Vale do Omo. Não sei o que
pretende com isso.

- Mas eu sei soldado! Muito obrigado pela valiosa informação.

Todavia o comandante Erer conhecia todos os atalhos e as


nuances de toda aquela região e planejam emboscá-los na
descida do vale onde o caminho se estreitava.

- Meus companheiros iremos emboscá-los aqui neste ponto!


Apontava no mapa o lugar indicado para efetuar o ataque.

Passados alguns dias do início da viagem chegaram ao lugar


escolhido se antecipando a escolta romana que ainda vinha a
mais de um dia de viagem. Sendo avisado por um de seus

108
espias que eles se aproximavam, montou em seu cavalo e pôs-
se no meio da estrada.

- Boa tarde Comandante Erer! Que surpresa encontrá-lo por


aqui, foi o governador que lhes enviaram para nos escoltar?

- De forma alguma general Valerius, viemos pela princesa


Kabenna e a levaremos conosco mesmo que para isso tenhamos
que matar você e seus homens.

- Não me faça rir comandante Erer, acho que você e seu amigo
aí ao seu lado não conseguirão ir contra mim e meus soldados,
haja vista, que estamos em maior número.

Então o comandante Erer fez um sinal e pedras começaram a


rolar de cima dos costões rochosos e a maioria dos soldados
romanos que compunham a escolta foram atingidos e caíram
pelo precipício. Os soldados que estavam sob a direção do
comandante Erer se colocaram a retaguarda do general romano
e o encurralaram.

- Tudo isso por uma escrava comandante Erer? Leve-a então.


Nada significa pra mim. Me dê sua palavra que nos deixará ir
em frente que lhe entrego a prisioneira ou então a jogarei lá
embaixo.

109
- General Valerius Curius bem sabes que sou um homem
honrado e lhe digo aqui e agora que se me entregar a princesa
Kabenna podereis seguir em paz ao seu destino.

- Pois bem comandante confio na sua palavra e isso basta entre


oficiais. Soldado entregue a escrava ao comandante Erer.

Assim que a princesa estava em segurança sob os cuidados de


um de seus soldados o comandante Erer ordenou que a levasse
dali e assim que se retiraram parte dos seus soldados que
estavam mais acima sobre as rochas abriram sacos e
despejaram escorpiões sobre o general e todos os que ali
estavam com ele. Diz-se que a dor da picada de um escorpião é
tão forte que causa alucinação e necrose do local. O general e
seus homens se debatiam, mas não conseguiam se livrar de
todos os escorpiões que estavam sobre seus corpos. Muitos se
jogaram pelo desfiladeiro porém o general não conseguiu se
levantar devido a dor.

- Por que não cumpriu com sua palavra? Vocês irão todos
morrer! Sussurrava o general Valerius.

- Minha palavra vale para homens de honra e não para


romanos. Deixem-no sofrer e depois de morto joguem o corpo
abaixo.

110
Foram então na direção da princesa Kabenna para verificar
como estava.

- Comandante Erer por que me ajudou? Se a rainha Dawa


descobrir sua traição toda a sua família estará em perigo e você
também.

- Nunca deveria ter tido participação nesse reinado ilegítimo e


lhe peço perdão por todos esses anos de omissão minha
princesa Kabenna. Mas ainda temos tempo de mudar o destino
do nosso reino. Minha família e a família dos meus homens
estão seguras e agora a senhora também ficará.

- Comandante Erer, o senhor sabe o que fizeram a Awash? Se


ainda estava vivo?

- Infelizmente não sei lhe informar minha princesa, a última


notícia que tive é que estava nas masmorras do palácio e seu
estado de saúde era delicado.

Levaram a princesa para um lugar escondido no Triângulo de


Afar e lá iriam permanecer por um longo tempo. Precisavam
reunir mais pessoas dispostas a lutar contra a rainha e para isso
se fazia necessário percorrer o reino em busca de adesões
daqueles que estavam descontentes com o seu reinado, e isso
significava um número grande de pessoas, mas tinham que

111
estar precavidos porque a rainha possuíam espiões em todo o
reino.

- Mofar onde está o comandante Erer? Vá chamá-lo


urgentemente, pois tenho uma tarefa para ele.

- Minha rainha e soberana o comandante Erer avisou aos


guardas do palácio que iria acompanhar o general Valerius
Curius até o destino final de sua viagem e já deve estar por
retornar.

- Miserável! Não me avisou da sua ausência. Vá você mesmo


às masmorras e verifique se o prisioneiro Awash ainda está
vivo e se por alguma obra sobrenatural ele ainda o estiver é
para enviá-lo às minas Gheralta o mais rápido possível. Terá o
mesmo fim de seu falecido pai.

112
CAPÍTULO VI

OS SEPULCROS DE GHERALTA
- Onde está o escravo por nome Awash carcereiro?

- Acho que no bloco mais ao norte sacerdote Mofar!

- Vá e busque-o imediatamente!

- Eis o escravo nobre senhor, está quase morto. Seria melhor


deixa-lo apodrecer aqui mesmo nesta masmorra.

- Silêncio servo fétido! A rainha tem outros planos para ele.


Consegue me ouvir escravo? Sabe para onde está prestes a ir?

- Não me interessa saber do meu destino bajulador miserável!


Faça logo o que veio aqui fazer.

- Maldito! Irás morrer. E lhe bateu no rosto com suas mãos


esqueléticas.

Então Awash ainda com seu corpo retalhado e mutilado pôs-se


a caminhar sob o calor escaldante do deserto, seu tratamento
era o mais cruel dentre todos os prisioneiros. Não podia usar
direito as mãos pois ainda estavam se recuperando das
queimaduras, suas costas ainda ardiam pelas chibatadas que
recebera e infelizmente suas partes íntimas sangravam mesmo

113
tendo recebido cuidados médicos de um amigo de Rahad. Não
sabia se chegaria ao seu destino vivo, mas lutava contra todos
os prognósticos que fossem contrários à sua sobrevivência.

Contudo outra traição estava a se desenrolar na capital do


reino...

- Minha rainha há lá fora um servo por nome Borkana e deseja


lhe falar. Disse que possui uma informação valiosíssima. Esse
rapaz é filho do seu contador real.

- Não é dia de audiência Mofar mande esse imundo voltar na


próxima semana.

- Eu insisto minha rainha! Seria um favor particular ao seu


nobre servo Mofar.

- De acordo Mofar, mas se acaso o que este homem tiver para


falar não me parecer interessante saiba que você pagará por
isso.

Então os guardas trouxeram Borkana filho de Rahad a presença


da rainha. Ele lhe contou o que seu pai e Awash haviam feito
por anos. Com detalhes pormenorizados revelou tudo sobre os
desvios de ouro e de pedras preciosas retiradas do tesouro da
rainha e prometeu lhe dizer onde eles haviam escondido tudo
mediante uma pequena recompensa em ouro.
114
- Aproxime-se da sua rainha servo fiel! Qual é o seu nome meu
jovem?

- Com vossa licença majestade! Chamo-me Borkana filho de


Rahad seu contador mor e seu humilde servo.

- Mas nobre e prestativo amigo do reino você não sabia de nada


disso, mesmo trabalhando próximo aos dois?

- Não minha rainha Dawa, eles sempre estavam em conversas


suspeitas e toda vez que eu me aproximava dava a impressão de
mudarem de assunto. Até que um dia ouvi os dois conversarem
secretamente na biblioteca do palácio sobre certa quantidade de
ouro e pedras que tinham desviado e escondido neste lugar.
Posso levar seus soldados até lá se a rainha desejar.

- Por que só agora veio até mim?

- Tudo aconteceu muito rápido minha rainha. Assim que soube


me apressei em contá-la mas quando ia fazê-lo prenderem
Awash e por causa deste contra tempo precisei esperar para que
tudo voltasse a normalidade minha soberana. Aliás minha
soberana foi uma atitude acertadíssima de sua parte.

- Pois bem! Prendam Rahad, e levem o meu protegido Borkana


até onde esconderam meus preciosos tesouros.

115
Os soldados acompanharam Borkana até o local onde haviam
escondido os desvios dos impostos, porém ao vasculhar o lugar
não conseguia encontrar nada e continuou até que o sol se pôs.
Já exausto de tanto procurar começou a entrar em desespero
pois sabia que o ouro e as pedras estavam ali mas não sabia o
que acontecera. Solicitou mais algum tempo aos soldados e
permaneceu em grande aflição, pois a hora já era avançada.
Finalmente os soldados o fizeram parar e retornaram ao
palácio.

- Me deem mais algum tempo, por favor! Não me levem a


presença da rainha Dawa, eu posso achar o tesouro.

Os soldados nada responderam e se colocaram a retornar ao


palácio. Assim que passaram pelos portões Mofar foi avisado
da sua chegada. Seu sorriso estampado e arrogância explícita
em sua voz já davam como certa sua intuição de agradar a
rainha com mais esse gesto.

- Então jovem Borkana encontrou nosso dinheiro que foi


desviado por esses larápios malditos? Saiba que será muito bem
recompensado por isso.

- Meu senhor Mofar lhe peço desculpas, mas algo aconteceu.


Acho que eles mudaram os bens desviados, procurei por toda a

116
parte e nada encontrei, mas tenho plena certeza de que era lá
que o haviam escondido.

- Seu verme imundo e desprezível você sabe o que a rainha lhe


fará quando souber que mentiu a ela? Ela irá arrancar suas
vísceras e lhe lançará aos cães. E o que farei agora? Preciso ir
informar a soberana que você já regressou.

- Mofar os guardas já retornaram com o servo Borkana?

- Sim minha rainha! Nos aguardam no salão principal.

- Boa noite Borkana! Mofar foi me avisar que você já havia


regressado, que bom que correu tudo bem. Onde estão meus
preciosos bens desviados?

- Minha rainha Dawa infelizmente alguma coisa aconteceu,


acho que eles de alguma forma souberam que eu iria lhe dizer
sobre tais furtos e mudaram os tesouros do reino de lugar. Só
pode ter sido isso.

- Criatura fétida e repulsiva como ousa tentar enganar a rainha


da Abissínia? Tragam-me Rahad agora. Vá Mofar seu inútil e
busque- no!

- Claro minha soberana! O homem está à porta minha rainha.

117
- Tragam-no até aqui. Rahad este homem aí ao seu lado é seu
filho Borkana?

- Sim minha rainha.

- Seu filho nos disse que você e o escravo por nome Awash por
anos desviaram recursos oriundos de impostos e esconderam
em um lugar. Isso é verdade?

- Ah meu amado filho, o que você foi fazer? Por que disse tal
coisa à rainha? O que você esperava receber em troca por
inventar tal calúnia contra seu pai, logo o seu pai que sempre te
amou?

- Pai diga-lhe a verdade, por favor!

- Infelizmente minha rainha Dawa não sei nada sobre isso!


Rahad proferiu tal frase com os olhos repletos de lágrimas e a
decepção estava estampada em seu rosto já franzino.

- Então temos um impasse aqui e isso precisa ser resolvido. Por


qual dos dois devo começar? Quem se habilita?

- Minha rainha Dawa faça comigo o que tiver que fazer mas
poupe a vida do meu filho. Ele foi inconsequente e esperando
alguma benesse de sua parte fabulou tal história.

118
- Se isto que me disseste for verdade ele merece uma punição
severa, Rahad. Tem algo a me dizer Borkana?

- Não sei qual é a verdadeira intenção do meu pai em tentar


esconder a verdade da soberana da Abissínia. Mas sei que ele
não permitirá que seu filho sofra ou pague com a vida por dizer
a verdade. Pai diga a verdade a rainha.

- Minha rainha, eu lamento muito, mas nada sei sobre tal desvio
de recursos. E saiba que eu te amo muito Borkana, meu filho!

- Chega desse drama familiar, isso me causa ânsia de vômito.


Soldados quero que decepem as cabeças dos dois ao mesmo
tempo. Tenho a curiosidade de saber qual cabeça cairá no chão
primeiro. E Mofar dessa vez serei misericordiosa com você e
apenas essa vez.

- Obrigado minha rainha!!! Serei mais cauteloso com falsas


delações.

Então os soldados os levaram a varanda de onde a rainha


concedia audiência e os colocaram de joelhos e tiveram suas
cabeças separadas dos corpos. E lançaram seus restos pela
muralha do palácio. Suas cabeças foram empaladas e fincadas
nos jardins do palácio para que todos vissem o destino daqueles
que tentassem trair a rainha.

119
Entretanto, foi durante os cuidados médicos mediante a suborno
que Rahad havia conseguido para Awash que foi resolvido que
todos os bens desviados durante os anos que passara como seu
auxiliar direto deveriam ser mudados de lugar pois Awash
desconfiava que alguém poderia querer traí-los. Então Awash
pediu que Rahad procurasse seu amigo Ubbi-Ubbi e explicasse
a situação e o encarregasse de fazer o traslado de tudo o que
tinham conseguido até aquele momento. E assim foi feito e por
causa dessa atitude a rainha Dawa não conseguiu êxito em
encontrar o que lhe haviam tirado.

Porém Ubbi-Ubbi não sabia o que deveria fazer com todo


aquele tesouro que havia escondido, estava confuso já que seu
amigo tinha sido levado embora, mas não sabia para onde.
Precisava encontrar alguém que pudesse ajudá-lo a encontrar
seu amigo, mas de uma coisa ele tinha certeza, corria sério
perigo se continuasse a viver ali no palácio.

Durante a longa jornada até as minas de Gheralta, Awash por


várias vezes sentiu a presença da morte pois ainda estava muito
debilitado e os guardas lhe concediam menos água e comida
necessárias para que pudesse sobreviver. Semana após semana
caminhavam sob sol forte e tempestades de areia eram
constantes, mas ele só pensava em se manter vivo pois de

120
alguma forma sabia que a princesa Kabenna iria precisar da sua
ajuda um dia. Entristecia-se sabendo que não mais poderia ser
homem para ela, mas se contentava em ser seu amigo mesmo
que tal fato lhe ferisse a alma. Imaginava outro homem ao seu
lado, mas tentava superar tais sentimentos e focava no bem
maior dela e do reino. Depois de dias em uma viagem em que
muitos ficaram pelo caminho finalmente chegaram ao seu
destino. A visão daquele lugar era desoladora e a primeira
impressão que teve era de que não duraria mais que alguns dias
naquele inferno. Mas Deus reservava planos extraordinários
para ele e outros que ali pereciam sob o rigor e crueldade dos
soldados da rainha.

- Quem dentre vocês é o prisioneiro por nome Awash?

- Sou eu meu senhor!

- Prisioneiro Awash, você irá para o lugar mais profundo da


mina por ordem da rainha, subnível três. Chegando lá procure o
responsável por aquele setor e se apresente a ele.
Compreendeu?

- Sim Senhor!

Formava-se uma fila única na entrada da mina e o tempo de


espera para descer até seus subníveis era muito longo. A mina

121
possuía somente um elevador que era içado e quando chegava à
superfície retiravam os corpos daqueles que morreram no seu
interior e somente depois abaixavam com outra leva de presos
para ocupar o lugar dos que se foram. O elevador era preso por
cabos enormes e seu acionamento era feito por uma roda de
pedra com um furo ao centro preso a um tronco bem grosso de
madeira. Quando queriam descer giravam para um lado e
quando fossem içar giravam no sentido contrário. Por mais
extenuante que aquele trabalho fosse, somente prisioneiros
selecionados meticulosamente trabalhavam ali, pois era
infinitamente melhor do que viver no interior da mina sem ver a
luz do sol e respirar ar fresco.

- Com licença senhor, me chamo Awash e pediram que me


apresentassem ao responsável por este nível, poderia me dizer
onde o encontro e qual o seu nome?

- Vá até ao final deste corredor e vire a direita e irá encontrá-lo.


Peça para quem estiver à porta lhe apresentar ao senhor Weito.

- Nobre senhor é aqui que encontro o senhor Weito?

- Sim escravo. Aguarde um instante! Senhor Weito há outro


escavo aqui que deseja lhe falar.

122
- Deixe que o prisioneiro entre. Não posso lhe dar bom dia,
tarde ou noite porque não sei que horas são e nem lhe desejar
sorte porque aqui ela não será suficiente para lhe garantir
permanecer vivo. Trabalhe sempre e descanse nas horas que
puder e se alimente quando tiver o que comer. Nas horas do
revezamento você pode descansar no alojamento que fica no
final deste nível, se for pego lá sem autorização sua punição é a
morte. Compreendeu?

- Sim senhor! Agradeço pela valiosa informação que me


ajudará a sair vivo daqui.

- Sair vivo? Não me faça rir escravo. Pode se retirar.

Awash se viu em meio ao inferno, temia pela sua saúde pois


ainda apresentava sangramento frequente oriundo da mutilação
que sofrera. Teve momentos que chegou a não compreender os
desígnios de Deus e a duvidar realmente da sua existência, mas
logo abandonava esses pensamentos.

Nas minas havia uma regra que o prisioneiro que completasse


um mês de trabalho tinha como prêmio passar um dia do lado
de fora da mina e lhe era permitido tomar banho e dormir se
assim desejasse. Mas os dias pareciam ter o triplo do tempo e
suas forças a décima parte de sua capacidade, as mortes faziam
parte do cotidiano e por vezes os responsáveis pelo transporte
123
dos mortos demoravam até uma semana para retirarem todos os
corpos. O aroma ali era insuportável e misturado ao calor se
transformava em um sepulcro de pessoas vivas. Foi quando
Awash teve contato com uma pessoa que cooperou muito para
sua existência e sua evolução como ser humano.

- Olá meu amigo, tudo bem com você? Chamo-me Lesser Abay
e poderia saber qual o seu nome?

- Não quero parecer mal educado mas esse tempo precioso que
temos aqui no alojamento precisamos usá-lo para descansar um
pouco, me desculpe.

- Desculpe nobre amigo.

Os dias se passavam e Awash conseguira sobreviver ao


primeiro mês nas minas e por seu trabalho ganhou o tão
sonhado dia de descanso à céu aberto. Seus olhos demoraram a
se acostumar à luz do sol, sua pele estava com aspecto de podre
e seu cheiro era detestável. Os prisioneiros durante o dia de
descanso ficavam em uma área de campo aberto que dava as
margens de um rio com forte correnteza mas repleto de
inúmeros crocodilos. E aqueles que tentavam escapar
encontravam a morte pelos soldados ou eram devorados pelos
animais. Naquele lugar não se tinha como fugir. Nesse dia
Awash notou que havia uma cabana que ficava do lado de fora
124
do campo mais ao alto numa pequena subida e nela encontrava-
se um ancião que parecia cuidar dos enfermos que precisavam
de atendimento antes de voltarem para o interior da mina.
Percebeu que aquele homem que tentara falar com ele há
alguns dias passara todo o seu tempo de folga na companhia
daquele senhor. Mas nada perguntou acerca daquilo. Ao final
do dia todos regressaram para as minas.

125
CAPÍTULO VII

“EU SOU O QUE SOU”


Naquela altura a rainha Dawa já sabia da traição do
comandante Erer e do rapto da princesa Kabenna e diligenciava
em todo o tempo atrás do paradeiro deles e todas as tentativas
eram malsucedidas. Em uma dada noite o copeiro do palácio foi
ter com Ubbi-Ubbi.

- Boa noite! Onde encontro o servo por nome Ubbi-Ubbi?

- Ele encontra-se nos fundos do jardim, você irá reconhecê-lo


pelo seu modo de andar.

- Ubbi-Ubbi é você?

- Sim senhor! Posso lhe ser útil em alguma coisa?

- Preste atenção ao que vou dizer, estou aqui a mando do


comandante Erer. Pediu-me para lhe avisar que a princesa
Kabenna está com ele e passa bem, pediu que você fosse estar
com eles.

- Mas como isso é possível? Como posso ter certeza que você
fala a verdade?

126
- Ele mandou dizer que se você não acreditasse era para lhe
informar que foram você e Wajja que marcaram o encontro
entre a princesa e Awash naquela noite e que o encontro
ocorreu no estábulo. Se acredita no que digo é para estar
amanhã bem cedo no mercado central que um soldado da
confiança do comandante Erer irá lhe encontrar e leva-lo até
onde eles estão.

- Muito obrigado, irei pensar no assunto.

Acreditando na palavra do copeiro da rainha Ubbi-Ubbi saiu


escondido do palácio pelos fundos do jardim e foi até o
mercado e logo após ter chegado um homem disfarçado de
comerciante de incenso lhe abordou:

- Bom dia senhor! Poderia me passar essa talha ao seu lado para
que possa saciar um pouco a minha sede?

- Claro nobre viajante. Toma e beba.

- Venha e me siga, pois agora sei que és quem procuro.

- Como sabes quem sou senhor?

- Pelo seu modo de andar, agora vamos rápido.

E então seguiram viagem. Viajaram por diversos dias até


chegarem ao Triângulo de Afar onde foram recepcionados pela

127
própria princesa Kabenna. Ao avistar que seu amigo atendera
ao pedido do comandante Erer saiu em direção a ele.

- Meu amigo Ubbi-Ubbi como você está? Fiquei preocupada


com você e temi pela sua vida, agradeço a Deus por você. Mas
venha, coma e descanse um pouco que mais tarde conversamos.

- Agradeço minha princesa Kabenna, não sou digno de sua


preocupação e tal fato muito me honra.

Notava-se àquela altura que o comandante Erer conseguira


arregimentar um bom número de pessoas dispostas a lutarem ao
seu lado e serem leais a princesa Kabenna. Eram camponeses,
pastores, agricultores e artesãos, ferreiros de armas, em sua
grande maioria pessoas humildes que haviam sofrido algum
tipo de injustiça praticados pelos guardas da rainha Dawa. Aos
poucos conseguiam trazer coesão ao pequeno grupo e a
princesa Kabenna era a peça principal daquela engrenagem que
mantinham todos unidos.

- Ubbi-Ubbi meu amigo você tem alguma notícia de Awash,


sabe me dizer se ele ainda está na prisão do palácio ou foi
levado a algum outro lugar?

- Infelizmente minha princesa Kabenna nunca mais tivemos


qualquer informação do meu amigo Awash. Da última vez que

128
tive notícias acerca dele, estava nas masmorras do palácio e
posteriormente passados alguns meses procurei saber com
alguns criados, mas nada de concreto só suposições.

- Me permita lhe dizer algo minha princesa Kabenna. Na época


em que era comandante da guarda da rainha Dawa tais
prisioneiros quando não eram mortos, tinham seus destinos
encaminhados às minas de Gheralta ou aos campos de trabalhos
forçados que ficam mais ao sul.

- Mas comandante Erer pela sua experiência o que acha que


aconteceu a Awash?

- Minha princesa por tudo o que lhe foi feito acho pouco
provável que ainda esteja vivo seus ferimento eram bastante
profundos.

- Ainda me resta a esperança que de alguma forma Awash


tenha conseguido permanecer vivo, eu sinto isso é algo muito
profundo e que não sei explicar. Preciso ter fé.

- Mas há algo que preciso lhes contar princesa Kabenna!

- Prossiga Ubbi Ubbi

- Na prisão depois de ter sido flagelado pelos soldados a mando


da rainha Dawa o tesoureiro real Rahad esteve com Awash nas

129
masmorras do palácio. Eles haviam desviados uma grande
quantia de ouro e pedras preciosas dos tesouros reais e
escondido em um lugar seguro, porém Awash achou melhor
que transferissem os montantes de lugar e pediu que Rahad me
procurasse. Ao me encontrar nos fundos do jardim me revelou
o que haviam feito e me pediu que achasse um lugar para
guardar tal tesouro e solicitou discrição e pressa, além de
absoluto segredo acerca do assunto e o novo lugar escolhido
por mim só seria de conhecimento de nós dois. Assim eu fiz.

- Isso é a melhor notícia que poderíamos ter. Não é mesmo


comandante Erer?

- Com certeza princesa Kabenna. Finalmente os ventos estão


soprando a nosso favor!

- Ubbi Ubbi esse tesouro irá nos ajudará a fortalecer nosso


exército e comprar mantimentos para todos no nosso arraial.
Obrigado meu amado amigo! E abraçava seu franzino amigo
envolta a grande alegria.

- Mas me diga Ubbi Ubbi, onde você escondeu tal tesouro?


Questionava anelante o comandante Erer.

- Bem comandante Erer, me vi em situação difícil, pois não


podia ficar andando com aquilo tudo, teria que fazer umas dez

130
viagens carregando uns quatro sacos por vez. Então próximo ao
antigo local onde estava escondido o tesouro tem uma estátua
erguida em homenagem ao deus Apedemak, foi exatamente a
cem passos na direção da sua fronte que o enterrei novamente.

- Obrigado Ubbi-Ubbi. Agora é conosco, pensaremos em uma


forma de resgatar esse presente que o mestre e bondoso Rahad
e Awash nos deixaram. Que seus nomes sejam para sempre
lembrados entre nosso povo.

- Com certeza nobre comandante Erer! Aplaudia de pé a


princesa Kabenna.

Nas minas o ambiente insalubre deteriorava cada vez mais a


saúde de Awash. Sabia que precisava encontrar alguma maneira
de sair daquele lugar e tentar localizar a princesa Kabenna.
Pensava em convencer pessoas que estivessem dispostas a se
unirem para que juntos pudessem se insurgir contra a rainha
Dawa, mas seus planos sempre esbarravam naquela realidade
insofismável.

- Olá nobre amigo, você está bem ou precisa de alguma ajuda?


Saiba que não quero me intrometer na sua vida se preferir lhe
deixo em paz. Dirigia-lhe a palavra com as mãos estendidas o
valente Lesser Abay.

131
- Não me incomoda e gostaria de lhe pedir minhas mais
sinceras desculpas pela última vez. Chamo-me Awash e venho
de Axum, capital do nosso reino. E esse ambiente aqui é
insuportável meu nobre amigo. Mas me revele qual é o seu
nome, porque foi mandado para cá e de onde vem?

- Me permita me apresentar novamente, me chamo Lesser


Abay, era agricultor e plantava tâmaras e feijão em minha
pequena propriedade aos pés das montanhas Simien. Foi
quando certo dia soldados da rainha foram até a minha humilde
propriedade e confiscaram toda a nossa produção e nos
disseram que retornariam sempre na época das colheitas e caso
não contribuísse seria penalizado. E nos deram plaquetas para
usarmos em nossos pescoços. Senti-me como um animal de
carga.

- Compreendo perfeitamente. A rainha Dawa já deveria ter essa


índole perversa, fato que foi superdimensionado pela
convivência com os romanos, assimilando seus costumes e a
capacidade de oprimir os seus súditos. Mas continue nobre
amigo.

- Sempre viajava com meu filho mais velho ao porto de Assab


que fica na costa oeste do grande Mar Vermelho e ali
negociávamos nossos produtos com várias pessoas de muitos

132
povos que frequentavam o lugar. Porém quando os soldados da
rainha voltaram e nada encontraram em nossos depósitos já que
havíamos negociado o fruto da colheita tempos atrás, ficaram
furiosos. E como punição me prenderam ao carro de bois e me
puxaram por toda a plantação. Meu filho tentou correr para me
soltar e foi morto pelos soldados, minha filha pequena e minha
esposa foram decapitadas ali na minha frente. Então ao me
soltarem consegui tomar a espada de um dos guardas e matei
três dos soldados que assassinaram a minha família. Porém,
como eram em grande número conseguiram me desarmar e me
surraram ainda mais. Todavia, o capitão que os acompanhava
não permitiu que me matassem, pois meu destino seria o pior
lugar da face da terra. E aqui estou eu. E qual é a sua história
nobre amigo Awash?

- Minha mãe era muito amiga da rainha Shebelle e meu pai foi
um grande general de guerra chamado Ganale Dorya,
infelizmente não cheguei a conhecê-lo, pois segundo relatos foi
morto numa emboscada feita pelos soldados da princesa Dawa.
Soubemos que a princesa Dawa matou a sua irmã a rainha
Shebelle e tomou o seu lugar como soberana da Abissínia. Na
época meu pai pressentindo que algo estava para acontecer
enviou a mim, a minha mãe e também a princesa Kabenna para
uma região no Monte Batu e permanecemos lá por muitos anos
133
até a rainha nos encontrar. Minha mãe foi enviada a uma prisão
em Roma e eu e a princesa Kabenna fomos mantidos no
palácio. Após isso só nos restou a dor e os raros momentos de
felicidade que ficaram guardados em nossas lembranças. Meu
sofrimento nunca terá fim creio eu, mas isso é algo que não
desejo compartilhar com ninguém.

- Não desanime, pois creio que Deus não permitiu que morresse
porque ainda não era chegado o seu tempo. Talvez Ele tenha
um grande desafio preparado para você.

- Me desculpe a pergunta Lesser Abay, mas você se refere a


qual Deus?

- Deixe-me lhe explicar melhor Awash. Em uma das minhas


viagens ao porto para comercializar nossos produtos conheci
um judeu por nome Benjamin, era um senhor muito sábio e
negociava lã. Ficamos hospedados na mesma estalagem e ele
começou a me contar a história da formação do seu povo. Me
falou da criação do homem e do pecado que cometeram contra
Deus e que por isso foram expulsos do paraíso que Deus havia
preparado para que pudessem viver nele. Após muitos anos a
humanidade havia se multiplicado e se afastado do seu Criador.
Teve um homem chamado Noé que era temente a Deus e
ordenou que ele construísse uma grande arca para abrigar parte

134
da sua criação porque intentava destruir os homens pois tais se
afastaram e praticaram todos os tipos de ofensas contra Ele.

- E você sabe qual é o nome desse Deus? Mas antes que Lesser
Abay respondesse foram surpreendidos por um guarda.

- Ei vocês dois, continuem trabalhando ou sentirão o sabor


amargo do meu chicote!

- Mais tarde nos falamos amigo Awash!

E partiram cada um para o lado da mina, porém só voltaram a


se falar muitos dias depois, porque haviam levado Awash para
reforçar um grupo que estavam ampliando a mina e esse
trabalho quase lhe custou à vida.

Chegou o dia tão esperado no qual poderiam subir e contemplar


o céu, tomar banho e respirar ar puro, porém Lesser Abay não
conseguia encontrar Awash na fila que se formava e colocou-se
a procurá-lo. Achou-o deitado muito fraco e sem forças para
levantar do seu leito de morte.

- Awash, levante-se e vamos para a fila!

- Não consigo Lesser Abay. Vá você antes que não haja tempo
de subir no elevador.

135
- Jamais lhe deixaria aqui para morrer neste lugar meu nobre
amigo Awash. Ajude-me a lhe colocar de pé e deixe que o
restante eu faço. Caminharei até aquela saída por nós dois.

- Obrigado meu amigo!

Então Lesser Abay mesmo estando debilitado também o pegou


e colocou sobre seus ombros e foram os últimos a saírem da
mina naquela manhã.

Ao chegarem do lado de fora da mina, Lesser Abay o colocou


próximo ao rio que passava por entre o campado e as colinas e
começou a limpá-lo e descobriu o que lhe tinham feito e viu
que o ferimento estava muito infeccionado. Indo até o ancião
que realizava serviços de curandeirismo rogou que lhe desse
alguma erva que o ajudasse com seu amigo Awash. O ancião
era surdo e mudo, os sons que proferia não eram muito audíveis
e só se comunicava com os presos por sinais, mímicas ou
escrita. Também não conseguia enxergar com precisão e
possuía só uma das mãos, contudo era extremamente
habilidoso. Depois de algum tempo em sua presença
conseguíamos entender com precisão o que ele dizia. Ninguém
sabia seu nome, de onde havia vindo ou o que tinha feito para
estar ali naquele inferno, mas parecia ser um homem bom.
Lesser Abay já lhe conhecia de outras vezes e lhe falara de

136
Deus e toda vez que ele subia das minas passava o seu dia na
companhia do velho homem. Explicou ao ancião o tipo de
ferimento do seu amigo e então ele lhe preparou um composto
de ervas para colocar no local do ferimento e outro para que
pudesse ingerir.

- Muito obrigado senhor pela ajuda valiosa! Que Deus o


abençoe.

Regressando para onde havia deixado seu amigo Awash


segurou sua cabeça e o fez ingerir aquele composto de ervas e
colocou o unguento sobre seu ferimento e aguardou que
recobrasse os sentidos.

- Olá meu amigo. Há quanto tempo fiquei desacordado?

- Olá Awash! Algumas horas somente, mas seu semblante já


está diferente, vejo que o fôlego de vida de Deus foi novamente
soprado em suas narinas.

- Vejo que me lavaste e trocaste minhas roupas, então já sabe o


que me fizeram. Peço-lhe que guarde tal fato em segredo nobre
Lesser Abay. Tenho uma grande dívida com você e ainda nesta
vida lhe retribuirei.

- Sua amizade é meu maior pagamento Awash. E as roupas que


estás vestindo foi um presente, você precisa agradecer ao velho
137
curandeiro, foi ele quem as deu. Mas fique deitado e coma um
pouco desse peixe que pegamos no rio.

- Lesser Abay aproveitemos este pouco tempo que ainda nos


resta e demos sequência a nossa conversa.

- É verdade mesmo meu nobre amigo Awash. Bem, mas como


estávamos falando naquele dia, Deus escolheu um homem
chamado Abrãao e fez um pacto com ele e o fez pai de muitas
nações sobre a terra. A esposa de Abrãao deu à luz a Isac,
depois da semente de Isac surgiu Jacó, o qual o Deus Altíssimo
pois o nome de Israel e de onde surgiram as doze tribos que
formaram a nação dos hebreus. Após muitos anos o povo
hebreu foi feito escravo pelo faraó do Egito e por quatrocentos
anos assim permaneceram até que Deus levantou um homem
chamado Moisés. O velho Benjamim me disse que Deus fez
cair pragas sobre os egípcios e os livrou do cativeiro e fez com
que o grande Mar Vermelho se abrisse para que Moisés
conduzisse seu povo em direção às terras que lhe haviam
prometido. Deus ainda entregou a Moisés duas tábuas de pedra
na qual escreveu seus mandamentos para que servisse de lei ao
povo.

- Que mundo pequeno meu amigo. Há muitos anos atrás


conheci um grande homem que me falou acerca desse Deus que

138
não sei o nome e esse mesmo Deus livrou a mim e a minha mãe
das garras da morte no deserto. Qual é o seu nome?

- “EU SOU O QUE SOU” foi o nome dado pelo próprio Deus a
Moisés. Benjamim se referia a Ele como Yahweh. Depois
aquele senhor me falou de grandes reis e profetas que
prediziam a vinda de um “Messias” que iria salvar o seu povo.
Tudo o que ele me falou naquela noite me fez acreditar e passei
então a cultuar este único e maravilhoso Deus.

- Este também é o Deus no qual deposito toda a minha


confiança e esperança! Façamos uma pequena oração de
gratidão juntos aqui e agora. Podemos Lesser abay?

- Será um grande prazer nobre amigo Awash!

139
CAPÍTULO VIII

O SEGUNDO MILAGRE
Na capital do reino, a rainha juntamente com o apoio do
governador Marcius reuniu uma grande tropa para caçar o
comandante Erer e recapturar a princesa Kabenna. Iriam se
dividir em duas grandes frentes, uma iria em direção ao norte
chefiada pela rainha Dawa e outro destacamento seguiria rumo
às terras que ficavam mais ao sul, comandadas pelo seu novo
chefe das tropas, o comandante Hawadi. Queria aproveitar tal
incursão para poder observar como andavam a fidelidade dos
seus súditos e o recolhimento dos impostos, queria se certificar
de que não haveria mais fraudadores. Mofar iria ficar
responsável por conduzir os assuntos do reino na capital
durante a sua ausência.

Mas o que se viu fora um grande massacre imposto aos


camponeses e de todos aqueles que de alguma forma achavam
que estivessem omitindo ou encobertando o paradeiro dos
traidores. Vilas foram queimadas e famílias inteiras ceifadas da
face da terra. O que estava ruim para o povo ficou ainda pior. O
terror era iminente e o medo permanente.

140
Após alguns meses a rainha Dawa e seus exércitos regressaram
a capital sem conseguir, entretanto descobrir a localização da
princesa Kabenna e do comandante Erer.

- Mofar estive pensando, e se Borkana, filho do tesoureiro


Rahad estivesse dizendo a verdade e realmente o meu tesouro
estiver lá em algum lugar?

- Mas minha rainha Dawa o maldito procurou e nada achou.


Acho que seu pai não iria deixar o filho morrer daquela forma.

- Compreendo! Mas isso é que faz de mim a rainha e de você


apenas um serviçal, eu consigo me antecipar aos fatos. Coloque
homens vigiando de dia e noite aquele lugar. Algo me diz que
voltarão algum dia.

- Sim minha rainha! Acenava a cabeça com o orgulho ferido o


sacerdote Mofar.

No acampamento o comandante Erer planejava com seus


soldados uma incursão próxima à capital onde Ubbi-Ubbi havia
enterrado os tesouros. Pensavam em uma estratégia que os
deixassem praticamente passarem despercebidos pelos soldados
da rainha e os guardas romanos que ocupavam a cidade para
reforçar a segurança do reino. Ficou acertado que partiriam em
cinco cavalos, cada qual pegaria um caminho diferente, mas se

141
encontrariam em um determinado ponto. O comandante Erer
levaria Ubbi-Ubbi com ele em seu cavalo e o local escolhido
para se reunirem seria próximo ao antigo templo erguido à
Apedemak. Ubbi-Ubbi então iria pela mata sozinho até o
tesouro e após desenterrá-lo daria um sinal para que
começassem o transporte. E após cada qual tivesse carregado
seus cavalos com os sacos retornariam, mas o comandante Erer
e Ubbi Ubii seriam os últimos a deixarem o lugar. No dia
seguinte se reuniram com a princesa e se despediram e foram
rumo ao seu destino. Após alguns dias de viagem todos haviam
chegado com segurança no lugar combinado.

- Chegar até aqui foi a parte mais fácil, porém agora peço que
todos tenham a atenção redobrada, qualquer descuido poderá
ser fatal. Ubbi-Ubbi estabeleceremos por sinal o som do
Marabu, pois é inconfundível. Quando estiver tudo às claras
basta assoprar neste pedaço de madeira que imita o som da ave
e saberemos que poderemos avançar e faremos de maneira
ordenada, de um em um avançaremos até você e no mesmo
instante após carregar os animais partiremos sem olhar para
trás. Orientava o comandante Erer.

- Entendi comandante Erer. Farei conforme combinado e que


possamos acabar logo com isso e regressar logo para casa.

142
Ubbi-Ubbi caminhou até o local onde enterrara o tesouro e
começou a descavar e sempre que notava alguma
movimentação parava e se escondia, haja vista, que ali por vez
e outra uma patrulha romana passava. Assim emitiu o primeiro
som e então veio um de seus companheiros e colocaram os dois
sacos com ouro e pedras preciosas no cavalo e puxando-o pelas
rédeas colocou-se a seguir viagem de volta. Então assim fez até
o último som ser emitido. O comandante Erer se aproximou do
local e colocou tudo sobre o cavalo, porém quando iam
seguindo em frente se depararam com uma patrulha romana e
não tiveram outra opção a não ser partir para o confronto. O
comandante Erer sabia que Ubii-Ubbi não podia correr devido
ao seu problema no joelho então em um gesto de muita
coragem o colocou sobre o cavalo e afugentou o animal. O
cavalo saiu em disparada e Ubbi-Ubbi ao olhar para trás viu
que o comandante enfrentava os soldados e que em um dado
momento o viu cair de joelhos atingido por uma flecha e a
distância o impedia de observar mais claramente. Suas lágrimas
iam caindo pela estrada, mas não podia voltar, tinha que seguir
em frente para que o plano fosse concretizado. Ali naquelas
bolsas estavam a preciosa contribuição de Rahad eAwash.
Pressentia que o comandante Erer naquela altura também dera a

143
sua vida para que todos tivessem uma chance de ver sua terra
livre da opressão da rainha Dawa e de Roma.

Os soldados romanos não o mataram ali naquele momento, o


capturaram e o levaram até o palácio da rainha e o
apresentaram ao sacerdote Mofar.

- Ora, Ora! Comandante Erer que presente dos deuses


recebemos hoje por tê-lo aqui em nossa presença.

- Economize sua bajulação cria do demônio!

- Seu porco traidor que a cólera da rainha recaia sobre você.


Aguardem soldados, fiquem de olho nele que vou chamar nossa
soberana da Abissínia.

- Minha rainha Dawa peço permissão para adentrar?

- O que deseja Mofar? Aguarde encontro me visto.

- Soberana estou com uma pessoa lá embaixo no salão que


deseja lhe falar!

- É para isso que me perturbas Mofar? Diga logo quem está lá.

- Soldados romanos capturaram o comandante Erer minha


rainha! E Mofar mal podia se conter de tanta euforia.

- Não lhe disse que estava certa Mofar? Irei agora mesmo.

144
- A senhora da Abissínia tem sempre razão!

- Que sensação gloriosa os deuses me reservaram no dia de


hoje. Comandante Erer tenho algo reservado especialmente
para você, mas posso mudar de ideia caso você me diga o que
fazia aqui na capital do reino, bem que já presuma o que seja.

- Antes de mais nada poderia colocar a sua peruca já que a


visão da morte é menos repugnante que a sua? Você está
simplesmente horrível.

- Miserável! Como se atreve a proferir tais palavras a mim?


Açoite esse cão até eu mandar parar.

- Sim minha rainha!

E lhes desferiram chibatadas, chutes e socos e quase lhe tiraram


a vida.

- Minha rainha seria bom ordenar que parassem vão acabar


matando-o e perderemos a oportunidade de descobrir o
paradeiro da princesa Kabenna. Pedia em tom de submissão o
sacerdote Mofar.

- Está certo Mofar! Chega. Traga a minha peruca que está em


meus aposentos. Leve-o às masmorras e faça-o falar onde está a
princesa Kabenna.

145
O levaram e o puseram dentro de um esquife e colocaram
escorpiões juntamente com ele. Seus gritos eram agonizantes e
causavam espanto em todos os outros prisioneiros.
Continuaram o interrogatório por várias horas e o castigava
seguidas vezes. Como nada falava e vendo que suportava o
sofrimento imposto foram avisar a rainha. A rainha decidiu
então que o comandante Erer iria ser morto em praça pública no
centro do comércio da capital e queria que fosse com requintes
de crueldade jamais presenciados pelo povo e os estrangeiros
que estavam ali para negociar.

Na semana seguinte foram ao centro da capital para expor o


sofrimento reservado ao comandante Erer. Mofar se dirigia a
todos que estavam ali naquele lugar e pedia que prestassem
atenção ao que iria acontecer naquele momento.

- Que todos se curvem ante a soberana da Abissínia a rainha


Dawa!

- Meus súditos, comerciantes, autoridades e todos os demais


que estão aqui neste festivo dia e que participarão deste grande
evento que vos preparo. Hoje serão testemunhas do tratamento
dispensado aos traidores do nosso reino. Que tragam o
prisioneiro.

146
O comandante Hawadi o trouxe e parte das pessoas que ali
estavam reconheceram que era o comandante Erer e
começaram a clamar em alta voz que o soltassem e isso
aumentou o furor da rainha.

- Olhem é o comandante Erer! Soltem-no...

- Silêncio servos incautos! Eis que este aqui é um traidor do


reino e não vosso herói. Por acaso há algum dentre vocês que
pensa de modo diferente? Pode se apresentar.

Mas ninguém se pronunciou. Vendo então que aquele teatro de


horror não iria surtir o efeito desejado se apressou em matá-lo.
Os soldados o ataram a dois cavalos e os fizeram irem em
direções opostas e então os que ali estavam diziam que seus
ossos estalavam e ele gritava o nome da sua esposa e do filho.
Já desfalecido e seu corpo não mais suportando a força dos
animais foi partido ao meio. Posteriormente ali naquele local
foi erguido um monumento em sua homenagem para que todo o
povo pudesse relembrar sua coragem.

A notícia da morte do comandante Erer chegou ao Triângulo de


Afar e houve grande lamento e brindaram a sua lembrança.

- Meus amados amigos neste momento peço que ouçamos a


princesa Kabenna! Pedia diligentemente Ubbi Ubbi.

147
- Perdemos um grande líder e amigo mas ainda temos uns aos
outros e isso é o que nos unirá pois era a vontade do
comandante Erer. Selemos nosso compromisso de honrar sua
morte através de nossa luta por um reino justo e livre. Façamos
de sua morte uma ode à vida e que cânticos possam ser
entoados em homenagem a todos os que caírem em batalha.
Que descanse em paz.

Após as palavras da princesa kabenna todos recobraram o


ânimo e trabalharam dobrado para que quando o grande dia da
batalha chegasse estivessem prontos para a vitória. E cada vez
mais pessoas iam se unindo ao grupo agora liderado pela
própria princesa Kabenna.

Nas minas o sofrimento de Awash era constante mas sua fé se


multiplicava em meio ao caos e a desolação que aquele lugar
representava. A presença do seu amigo Lesser Abay era
valiosíssima para ele, havia se tornado seu melhor amigo e
conjecturavam se não haveria uma forma de fugirem de lá. E os
dias eram contados de forma regressiva, pois assim o dia da
folga chegava mais rapidamente. Todavia Deus tinha outros
planos preparados para Awash.

Um certo dia, o senhor Weito que era encarregado do nível em


que Awash e Lesser Abay cumpriam sua sentença foi verificar

148
um túnel que estava sendo aberto por um grupo de trabalho e
aconteceu um grande tremor de terra naquele momento e então
parte daquele túnel desabou soterrando-o instantaneamente. Os
prisioneiros com medo de morrerem naquele lugar corriam para
salvarem suas vidas e muitos foram pisoteados e se formou um
enorme aglomerado de pessoas que tentavam a todo custo subir
para o setor mais acima. Mas Awash e Lesser Abay vendo o
que acontecera correram até a entrada do túnel.

- Lesser Abay me ajude nobre amigo a remover essas escoras e


tentar chegar até o senhor Weito.

- Claro Awash! Comecemos por estes espeques que estão mais


expostos e são mais leves. Aqueles mais pesados e que estão
por cima das outras é que nos impedem de chegar até onde ele
deve estar.

- Façamos conforme disse meu amigo.

Começaram a remover as escoras uma por uma e cavavam com


suas próprias mãos até ficarem ensanguentadas, mas mesmo
assim permaneciam decididos a retirá-lo de lá. Os guardas que
faziam a segurança daquele nível vendo a determinação
daqueles homens se despuseram a ajuda-los.Conforme o tempo
ia passando as chances de acha-lo com vida diminuía.

149
- Lesser acho que encontrei suas pernas posso sentir pelo tato.

- Tente puxá-las Awash.

- Vou cavar mais um pouco tenho medo de forçar muito e


quebrá-las!

Finalmente Awash e Lesser Abay chegaram ao local onde o


senhor Weito se encontrava, estava soterrado da cintura para
baixo e uma escora forçava seu tórax dificultando sua
respiração e precisavam removê-la a todo custo.

- Me ajudem, por favor! Sussurrava o senhor Weito.

- Evite se movimentar senhor Weito e se Deus permitir em


breve estará livre deste sepulcro.

Mas Awash sabia que aquela situação era muito delicada e se


cometessem qualquer erro ou houvesse outro tremor todos
poderiam encontrar a morte.

- Essa escora é a que está impedindo de retirá-lo, irei forçá-la e


tentarei levantar uma pequena parte dela e quando isso
acontecer você precisará ser rápido Lesser Abay. Quando disser
para puxar faça isso com todo o seu vigor.

- Agora Lesser Abay!!!! Puxe com força.

150
E então Lesser Abay conseguiu livrar o senhor Weito de sob a
escora. Após longo e penoso trabalho conseguiram retirar com
vida o senhor Weito, mas uma daquelas imensas madeiras que
Awash não tinha visto ao se arrastar até a saída do túnel se
desprendeu e o feriu nas costas com grande gravidade.

- Ahh que dor Lesser Abay me ajude não estou conseguindo


respirar.

- Mantenha a calma Awash! Aguente firme meu amigo. Guarda


me passe um machado ou algo que possa usar para cortar um
pedaço grande de madeira que está sobre meu amigo.

Os guardas arrumaram uma machadinha e Lesser Abay


verificando que seu amigo Awash já estava desacordado
golpeou com muita intensidade aquela escora e depois de
esforço extenuante conseguiu parti-la, porém um pedaço
daquela base ficara preso dentro do seu corpo. Removeram
Awash da mina e o levaram até o ancião para que tentasse lhe
salvar à vida.

Lesser Abay o acompanhava e como tinha maior facilidade


para se comunicar com o velho curandeiro permaneceu lá o
tempo todo e ajudava em tudo o que lhe pedisse. Cabe salientar
que mesmo sem poder emitir uma palavra o ancião se fazia
entender muito bem quando não por mímica ou gestos usava a
151
escrita. E as falas do velho aqui postas são transliteradas
exatamente como se ele mesmo as tivesse falado em alto e bom
som.

- Salve meu amigo, por favor! Ele é um homem honrado e


temente à Deus.

- Mantenha a calma meu jovem. O que aconteceu lá na mina?


Indagava o velho olhando o corpo inerte de Awash por sobre a
esteira.

- Houve um grande tremor na mina e o túnel que estava sendo


escavado desabou soterrando o encarregado do nosso nível,
então aconteceu grande tumulto e todos tentavam fugir de lá de
dentro, mas Awash e eu fomos ao local do túnel que caíra para
tentar salvar o senhor Weito. Assim que conseguimos removê-
lo de lá meu amigo ficou preso e foi atingido por essa madeira.
Diga que pode salvá-lo!

- Isso eu não posso dizer. Vá ao rio e encha essas talhas de


água, faça fogo com aquela lenha e a ferva, em seguida traga
aqui. Peça ao Deus no qual acredita que ajude o rapaz pois só
um milagre poderá salvá-lo.

E foram horas de muita angústia, pois os emplastros utilizados


pelo ancião não estavam ajudando a estancar o sangramento e

152
Awash era acometido de febre constante e Lesser Abay o
banhava para abaixar a temperatura. Travavam uma luta diária
e mal tinham tempo para descansar. O velho ancião usou todo o
seu conhecimento e depois de alguns dias esperavam o
momento que a morte o viesse buscar, pois não havia melhora.

Mas Awash em seu estado de letargia tivera uma grande


revelação por parte de Deus. Em seu sonho o reino era
destruído por grande terremoto que não deixou nenhuma
construção de pé. E então um grande ser alado apareceu-lhe e
disse que era para ele reconstruir a cidade e que não houvesse
nela nenhuma escultura de outros deuses e que lesse tudo
aquilo que estivesse contido nos rolos que estavam na outra
margem do grande rio. E segundo Awash o anjo lhe
perguntava:

- “Awash quer ser o Atalaia do Deus Altíssimo?”.

- Sim meu Senhor, basta ordenar que estarei pronto a obedecer!

- “Awash olhe com muita atenção!” Dizia o anjo lhe mostrando


o reino da Abissínia.

E onde anteriormente ficava o palácio havia em seu lugar um


grande trono e uma forte luz emanava dele e por trás do trono
153
pessoas que lhe eram muito queridas saíam ao seu encontro e
havia muita alegria. Porém, novamente o anjo mostrou-lhe o
que aconteceria caso ele não fizesse conforme aquilo o que
Deus colocasse em seu coração. Então na sua visão ele se viu
em meio a uma grande batalha e todos os seus amigos estavam
sendo mortos e suas carnes comidas por cães selvagens e eis
que viu a rainha Dawa sobre um monte e de seus olhos saíam
fogo que o consumia e podia sentir o fogo lhe queimar e
sufocar. E nunca mais se esqueceu daquele sonho e sempre se
referia a ele como um grande aviso da parte do Deus Altíssimo.

O senhor Weito havia se recuperado e foi ter com o ancião e


procurou saber se podia fazer alguma coisa para ajudar aquele
homem que salvara sua vida.

- Com licença velho homem, como está o rapaz? Posso fazer


algo para ajudar?

- Senhor Weito nada há o que possa fazer, aguardemos que se


cumpra a vontade de Deus.

- Prisioneiro qual o seu nome e o do seu amigo?

- Me chamo Lesser Abay e ele se chama Awash.

154
- Saiba que tenho uma grande dívida para com vocês e se os
deuses não o conduzirem através da grande passagem sei como
posso retribuir o que me fizeram.

O ancião nesse tempo tinha nutrido um sentimento especial por


Awash. O velho não sabia explicar o carinho e a dedicação
empenhada em salvar-lhe à vida, mas nunca tinha se
empenhado tanto em salvar outro prisioneiro como havia feito
com aquele homem. Pensava já ter-lhe visto em algum lugar,
mas não lembrava de onde, e sua mão ao limpar suas feridas
demonstravam todo o seu cuidado.

Porém ainda havia vida naquele corpo inerte, a persistência fora


recompensada e as orações de Lesser Abay respondidas pelo
Deus Altíssimo.

- Me dê um pouco de água Lesser Abay! Minha boca está


muito seca.

- Awash! Awash que Deus seja louvado. Senhor, rápido ele está
despertando.

- Não lhe dê muita água e façamos uma sopa com algumas


sobras de legumes que tenho aqui. Que grande alegria você nos
proporciona meu jovem.

155
- Obrigado senhor por salvar minha vida! Falava Awsh em
baixa voz segurando a mão daquele homem que dedicara muito
do seu tempo a fim de resgatar-lhe dos braços da morte.

- Lesser Abay e o senhor Weito?

- Ele está vivo Awash e vem aqui constantemente afim de saber


se está se recuperando, tem sido bom para conosco. Mas
agradeça ao velho aqui que cuidou de seus ferimentos. Ficou o
tempo todo ao seu lado, parecia que cuidava de um filho.

- Muito obrigado mais uma vez e espero um dia poder lhe


servir de algum modo.

- Meu jovem nada me deves, sua recuperação é para mim a


melhor recompensa.

Dias se passaram e Awash se recuperava e suas forças iam se


restabelecendo e sabiam que o momento de voltar às minas se
aproximava mas não procuravam pensar nisso e a amizade dos
três crescia fortemente e não mais sentiam desejo em seus
corações de se separarem. Foi quando algo extraordinário que
só poderia ser planejado pelas mãos de Deus aconteceu.

- Lesser Abay o ancião não é de falar muito do seu passado, ele


já lhe confessou algo?

156
- Nada meu nobre amigo Awash, sempre que pergunto acerca
do seu passado ele desconversa e me pede para fazer alguma
coisa de útil. Mas acho que este é o momento de perguntarmos
novamente.

- Senhor nos desculpe a intromissão, mas nos diga como veio


parar aqui, sua história de vida, seu nome... Indagava Awash
ainda com um pouco de rouquidão.

- Pois bem meus jovens amigos, mas peço que tudo o que for
dito permaneça entre nós. Caso não entendam o que eu quero
dizer através da mímica, do gesto da minha mão ou do
movimento dos meus lábios eu tentarei representar escrevendo
aqui na areia.

- Nós prometemos meu amado amigo. Responderam os dois em


uníssono.

- Há muito tempo atrás servia a rainha Shebelle na capital do


reino isso bem antes da sua irmã a trair e usurpar o reino. Era
uma época de grande bonança em nosso reino, havia senso de
justiça e equidade entre os súditos e a rainha procurava ser
coerente em suas decisões. Mesmo sob opressão de Roma, a
rainha procurava manter nossos costumes e uma certa
independência política. Mas sua irmã a princesa Dawa foi

157
tomada de grande inveja e convencida por Mofar e o general
romano a se tornar rainha da Abissínia.

- Meu pai foi morto pela rainha enquanto ainda era recém-
nascido e minha mãe me falava que ele era um bravo guerreiro.
Interrompeu Awash ao seu amigo com lágrimas nos olhos

- Realmente deve ter sido e provavelmente devo tê-lo


conhecido, mas como estava dizendo algo me alertava para as
atitudes que antecederam aqueles dias terríveis. E depois de
uma viagem à casa da rainha no Lago Tana fomos emboscados
por soldados que se venderam à princesa Dawa. A rainha
Shebelle foi violentada covardemente e arrancaram minha mão,
me arrastaram e surraram. Mas o pior ainda nos aguardava no
palácio, assim que chegamos fomos levados para as masmorras
e depois de um tempo aos jardins do palácio. A rainha Shebelle
foi decapitada pela princesa Dawa na minha frente e quanto a
mim sofri terríveis aflições e perfuraram meus ouvidos e
cortaram minha língua. Como não havia morrido me mandaram
para cá.

- Se ainda está vivo é por algum motivo meu nobre amigo,


concorda comigo Awash?

- Com certeza. Passamos por muitos sofrimentos, uns mais que


outros, porém todos causados pelas mesmas pessoas e creio que
158
se Deus nos colocou aqui juntos é porque há um plano maior
traçado pelo “Autor da Vida”. Respondeu Awash.

Mas permita lhe perguntar seu nome nobre ancião? Perguntou


sem rodeios, Lesser Abay.

O ancião com um pedaço de madeira em sua mão começou a


escrever seu nome e ao final podia-se ler Ganale Dorya.

- Me ajude a levantar Lesser Abay! Preciso respirar ar fresco.

- O que há com você nobre Awash? Está pálido!

- Onde ele está indo jovem Lesser Abay?

- Não sei nobre senhores deixem-no a sós e esperemos um


pouco.

Então Awash não suportando tal revelação e levantando-se do


seu leito foi até a margem do rio que ficava no campo, e seus
sentimentos eram tamanhos que suas lágrimas misturadas a
alegria lhe apresentavam uma sensação nunca antes vivenciada.
Caindo de joelhos ergueu suas mãos ao céu e orou ao Deus dos
judeus.

- Meu Senhor e meu Deus não conheço por quais caminhos


queres me conduzir apenas me basta saber que estás comigo.
159
Não peço que abras o grande Mar Vermelho assim como fez
por amor ao seu povo escolhido, pois não sou digno de seu
favor. Conceda-me apenas forças para atravessar o mar que se
impõe a minha frente e me ajude a nadar até a outra margem.
Hoje mais uma vez vi o seu poder se manifestar pois me
apresentaste meu pai que pensava estar morto. Seja feita
sempre a Vossa vontade.

Colocando-se de pé retornou vagarosamente até o local que


seus amigos haviam permanecido e pensava como iria falar
aquele senhor que ele era o seu filho, era aquele pequeno e
indefeso “generalzindo”, o seu amado filho que crescera longe
da sua presença, mas que sempre lhe admirara e amara. Ao se
aproximar daquele ancião se prostrou a seus pés e chorou.

- Rapaz, levante-se pare com isso. O que houve com você?

- Senhor Ganale Dorya a sua esposa se chamava Mille?

- Sim meu jovem, não estou entendo como você sabe disso,
quem é você?

- Eu sou seu filho Awash! E o senhor é o meu pai! Há muitos


anos o senhor enviou a mim, minha mãe e a princesa Kabenna a
uma cabana no Monte Batu e lá permanecemos até a rainha

160
Dawa nos encontrar. E hoje após todos esses anos o Deus
Altíssimo nos uniu novamente.

- Não posso acreditar, meu filho amado!!! Deixe-me te abraçar.


Como sonhei com seu rosto, como desejei pegá-lo no colo,
como sonhei ouvir suas primeiras palavras. Como pode ser isso
possível?

- Meu pai!!! Nada é impossível para Deus. Me permita lhe


chamar de pai, te dar o meu amor meu maravilhoso pai.

E se abraçaram e todo o tempo que haviam passado longe um


do outro não tinha mais importância, o tempo agora estava a
seu favor. Seus olhares resplandeceram de felicidade e nada
mais importava e ficaram ali abraçados por muitas horas.
LesserAbay se maravilhou com aquele acontecimento e se
alegrou muitíssimo por Deus haver unido pai e filho novamente
e foi a primeira vez que se uniram para orar e agradecer à Deus
conjuntamente.

- Meus amados amigos Awash e Ganale Dorya! Deus operou


entre nós grande milagre e estamos felizes por tudo quanto
realizou.

- Mas meu amado filho e sua mãe? Gesticulava Ganale Dorya.

161
- Pai infelizmente ela foi enviada à Roma pela rainha Dawa
para um lugar chamado Tullianum. É uma prisão das mais
horríveis que se tem notícias. Mas assim como estávamos
mortos um para o outro, Deus há de nos unir novamente,
mesmo que esse encontro aconteça após nossa morte em outro
mundo em uma nova vida.

- Agora eu creio que só há um Deus digno de receber nosso


culto. Lesser Abay obrigado por tudo meu nobre amigo. Venha
meu filho Awash, deixe-me abraçar-te um pouco mais.

162
CAPÍTULO IX

A CAMINHO DE ROMA
Pela manhã vieram soldados com ordens de levá-los novamente
à mina e obedientemente acataram suas ordens e seguiram os
guardas. Despediram-se de Ganale Dorya e foram. Mas antes
de entrarem no elevador que os baixaria até o nível que
cumpriam suas respectivas penas o senhor Weito os chamou à
parte.

- Vocês dois venham aqui. Eis que não poderia conviver vendo
vocês serem enviados ao inferno novamente, deixarei que vão
embora para o lugar mais distante que puderem e levem o velho
junto com vocês. Anotarei ao lado de seus nomes que morreram
naquele dia na mina. Acho que com isso quito minha dívida
convosco.

- Senhor Weito como poderíamos nós retribuir tão imensa


bondade? Rogo ao Deus Eterno que possa estar com o senhor
em todos os momentos. Dizia Awash em lágrimas.

- Me permita lhe dar a única coisa que possuo de valor senhor


Weito? Perguntou Lesser Abay com os braços abertos.

163
- Não é preciso meus jovens, mas seja o que for aceito com
muita honra.

Awash e Lesser Abay então abraçaram aquele bondoso homem


e agradeceram, e se colocaram de volta até a cabana de Ganale
Dorya que ao vê-los correu na direção deles e os abraçou
fortemente. Juntaram o pouco de coisas que poderiam levar e
seguiram caminho ainda com destino incerto.

Mas o que acontecera a Mille? Essa era uma dúvida recorrente


em suas cabeças. Após o episódio no qual a rainha Dawa a
condenou à morte em uma prisão romana, Mille enfrentou
grandes dificuldades. Após ser estuprada por boa parte da
guarnição do general Marcius, Mille foi enviada em uma
caravana que cruzaria todo o deserto do norte até o Porto de
Zafar.Haveria de ser uma viagem onde poucos conseguiriam
chegar ao seu destino, temperaturas extremas, doenças, açoites
e a fome eram as principais barreiras impostas, mas Mille
obtivera sucesso nessa primeira etapa da viagem e pôde
contemplar a beleza do grande mar. A visão daquela imensidão
azul maior que o seu “Nilo” era deslumbrante, aquela brisa que
soprava lhe trazia alento ao corpo e à alma e por um instante
esqueceu que grilhões a faziam uma pessoa condenada à morte.
Sentada na areia daquela costa olhando as ondas que se

164
aproximavam dela se sentiu atraída e como que envolta por um
impulso incontrolável se levantou e caminhou em direção ao
mar e adentrou em suas águas e se banhou por poucos
segundos. Foi repreendida pelos guardas romanos e açoitada,
mas cada chibatada valera a pena. Aguardavam famintos os
embarques em uma galé romana quando comerciantes que
negociavam no porto ofereceram vinho e peixe aos guardas e
disfarçadamente lhes passaram porções de peixe seco e
água.Tal atitude refletia o amor de um estranho pelo seu
semelhante, onde não fora preciso ser dita nem uma palavra,
apenas o gesto e atitude já trazia grande significado e fez com
que suas forças fossem em parte restauradas. Deus estava ali
também zelando por ela e por todos aqueles que injustamente
eram conduzidos para longe daqueles que amavam.

Foram todos colocados na galé e começaram a cruzar o grande


mar, homens, mulheres e crianças todos amontoados em um
pequeno porão sem água e comida. À medida que as pessoas
iam morrendo eram jogadas ao mar, mas isso não era o que
mais incomodava Mille. Constantemente soldados escolhiam
algumas mulheres e as violentavam e como ela era uma mulher
que ainda mantinha certa beleza mesmo submetida a tantos
maus tratos era escolhida com frequência, e recebia água e
peixe como se aquilo pagasse pela humilhação que sofria.
165
Passados alguns dias ouviu a comemoração dos soldados no
convés e ao olhar pela vigia da embarcação viu terra seca a qual
os romanos se referiam como sendo “Os Pilares de Hércules”.
Mille entendia o que diziam, pois era uma mulher educada em
várias línguas, mas os soldados não o sabiam.

Ao atracarem no Porto Ostia Antica sabia que seu destino se


aproximava e os guardas começaram a separar os grupos de
acordo com o destino de cada um. Ouviam conversarem que
todos aqueles mandados à Roma iriam caminhar por cerca de
trinta quilômetros sem interrupção. Isso a deixou aflita e
temerosa, mas pedia à Deus que lhe preservasse nessa
caminhada. Mas uma pessoa iria mudar a direção dos seus
passos.

- Decurião! Aproxime-se. Necessito de dez escravas e aqui está


a autorização para levá-las.

- Afirmativo senador! Apenas preciso de seu selo e do


documento para anexar ao nome de cada prisioneira que
escolher.

Do alto de seu cavalo ele apontava para aquelas que deveriam


serem separadas e pediam aos seus servos que o
acompanhavam que fossem colocando-as na carroça e apontou
para Mille e foi assim conduzida até o carro. Não mais ao local
166
de morte onde sua sentença seria cumprida, mas ao lugar que
Deus mostrara a direção.

Subiu esperançosa e sabia que qualquer lugar que fosse enviada


seria melhor do que o que a mandariam anteriormente. O
senador tinha uma casa que ficava em um vasto campo onde a
plantação de trigo sumia no horizonte e havia guardas que
vigiavam a plantação e puderam notar que as escravas e
escravos pareciam ser bem cuidados e todos que estavam na
carroça se alegraram mesmo que contidamente. Ao chegarem
na propriedade foram retiradas da carroça e foi-lhes dadas
comida e água e, então o senador se dirigiu a todos:

- Meu nome é senador Flavius e a partir de agora vocês são


minhas propriedades legalmente transferidas pela vontade do
Imperador Tiberius e o senado de Roma. Trabalhem com afinco
e terão alimento e um lugar para descansar seus corpos ao final
do dia, não produzam e receberão como recompensa severa
punição. Nunca cheguem perto da casa, nunca dirijam a palavra
a qualquer membro da minha família e teremos uma
convivência amistosa enquanto viverem. Este aqui será o
responsável por vocês e o nome dele é Domitius. Quaisquer
problemas peçam permissão para lhe falar e posteriormente se
assim achar por bem trará o problema até mim.

167
- Escravas assim como foi dito pelo nobre senhor e amo o
senador Flavius meu nome é Domitius. Sou leal ao senador e
justo com os que procuram agir corretamente. Aconselho-vos a
esquecer que um dia tiveram família ou um país, esqueçam
filhos e esposos, esqueçam os deuses que adoram e labutem
diuturnamente e viverão. Tentem fugir, brigar, ferir algum
guarda ou semelhantes seus e morrerão. Espero ter sido claro.

Assim os anos passavam para Mille e se contentava em poder


trabalhar e se alimentar decentemente, mas não se esquecia do
seu filho e da sua linda princesa Kabenna e mantinha viva no
seu coração a esperança de um dia poder voltar ao seu reino e
abraçá-los para juntos se alegrarem.

No reino a princesa Kabenna conseguira reunir um bom


número de voluntários que estavam dispostos a formar uma
milícia com o objetivo de realizar uma investida contra um
posto avançado da rainha Dawa. Mas a princesa Kabenna
precisava suscitar um líder genuíno para liderar seus homens e
começou a pesquisar entre os seus homens alguém com as
características de um verdadeiro prócer.

- Ubbi-Ubbi preciso de alguém para conduzir meus soldados,


uma pessoa que tenha seu caráter admirado e que conheça todas

168
as nuances do campo de batalha e peço que me ajude nessa
difícil escolha. Sei que Deus irá nos apontar a direção certa.

- Tenhamos prudência minha princesa Kabenna e no tempo


certo esse homem irá aparecer e creio que não irá demorar.
Esperemos mais um pouco.

Escondidos nas montanhas Awash, Lesser Abay e Ganale


Dorya tentavam descobrir uma forma de se aproximarem da
capital Axum com o objetivo de colher informações sobre o
paradeiro da princesa Kabenna. Awash precisava ter com o seu
amigo Ubbi Ubbi para saber onde ele havia guardado o tesouro.

- Pai irei amanhã pela manhã à vila mais próxima tentar sondar
como as coisas estão no reino. Fique aqui com Lesser Abay e
me espere. Ninguém me reconhecerá e sozinho posso andar
mais rapidamente.

- Você está certo meu filho, mas tenha cuidado. Estaremos


aguardando seu retorno.

Ao amanhecer se despediu de todos e colocou-se a caminhar e


só parava para descansar ao entardecer. Durante à noite olhava
para as estrelas e lembrava de sua mãe e de sua amada, porém
sabia que não poderia ser mais homem para ela. Percorria seu
corpo com as mãos e quando deparava na parte que fora

169
extirpada seu coração se enchia de tristeza e orava a Deus que
lhe tirasse aquilo da mente e do coração. Ao amanhecer
prosseguia em frente e chegou a uma vila próximo ao Vale do
Omo e como não possuía dinheiro algum começou a procurar
no chão alguma sobra de comida para saciar a sua fome.

- Ei rapaz! Você mesmo está com fome? Ofereço trabalho em


troca de comida estaria interessado?

- Com certeza meu senhor! Todo o trabalho produzido pelas


próprias mãos é honrado e aceito a sua generosa oferta.

O trabalho era árduo, mas precisava daquela ocupação pois o


ajudava a se manter naquele local enquanto tentava conseguir
informações que o levassem a alguma pista da princesa
Kabenna e de seu amigo Ubbi Ubbi. E toda a manhã ia a
floresta retirar madeira e trazia até a pequena casa onde o
senhor que lhe oferecera trabalho fabricava alguns utensílios
que posteriormente eram vendidos na feira da vila.

- Rapaz leve estas peças até o mercado da vila e lá procure


oferece-las a um bom preço, algo que lhe pareça justo. Aqui
tem algumas frutas que lhe servirá por refeição até o seu
regresso à noite.

170
- Muito obrigado meu senhor por depositar tamanha confiança
em um desconhecido.

Durante o dia enquanto oferecia os produtos aproveitava e


sempre que podia perguntava sobre a situação da capital e da
nobreza do palácio, mas ninguém tinha notícias vindas de lá.

Certa noite quando voltava a casa do seu senhor ouviu dois


homens conversando em uma viela onde ficava um prostíbulo.
Eles estavam bêbados e reclamavam da disciplina rigorosa
exigida por certa mulher que chefiava o arraial onde estavam
escondidos. Aproximando-se notou que estavam tramando
gastar todo o dinheiro que receberam para comprar
mantimentos para as pessoas que lá estavam com bebidas e
mulheres. Pensou em conversar com aqueles homens, mas não
lhe pareceu uma boa ideia, mesmo assim o fez.

- Boa noite nobres amigos. A paz esteja com vocês.

- Boa noite! O que deseja pedinte?

- Não sou mendigo meu senhor, apenas trabalho vendendo


essas peças de madeira na feira da vila, mas sem querer ouvi os
senhores comentando acerca de um grupo...

- És por acaso espião da parte da rainha Dawa? Vamos matá-lo


antes que nos delate.
171
Os homens foram em sua direção para agredi-lo, porém Awash
pegando um pedaço de madeira que carregava desferiu um
golpe na cabeça de um deles que caiu instantaneamente, o outro
homem desembainhou um punhal do seu cinto, contudo acabou
caindo por sobre a arma e morreu ali mesmo.Awash retirando o
homem que havia desmaiado o escondeu na mata prendendo-o
em cordas e amordaçado e, rapidamente foi à casa do seu
senhor.

- Boa noite rapaz, conseguiu muitas vendas hoje?

- Sim senhor, aqui está o seu dinheiro e o restante do material


está em sua oficina. Gostaria de lhe agradecer por tudo o que
fez por mim, mas é chegada a minha hora de partir.

- Não prefere descansar e partir ao amanhecer meu rapaz?

- Preciso ir realmente. Que Deus esteja sempre com o senhor e


sua família.

Awash sabia que não poderia demorar a retornar até o lugar que
havia deixado aquele homem e começou a correr por entre a
floresta e para seu alívio o encontrou ainda desacordado.

- Acorde homem! Preciso que me leve até o lugar que está


escondido.

172
- Mas quem és tu? És por acaso espia da rainha? Peço-te que
não me mates e te prometo que lhe levarei até onde quiseres.

- Onde fica esse lugar do qual você e seu amigo falavam? E


qual é o nome do responsável pelo local?

- Só posso lhe dizer que o lugar no qual estamos acampados


fica distante daqui, porém o nome jamais revelarei. Sei que
errei e fui levado por fraquezas, mas isso não me transformaria
em um delator, pois repousamos nossa esperança nas decisões
desta mulher.

- Tudo bem rapaz me leve até lá então e se no caminho


perceber que não quero lhe causar mal algum e confiar em
mim, me poderá revelar o lugar e o nome da pessoa que chefia
o acampamento.

Ainda durante a noite após Awash soltar aquele homem e o


alimentar seguiram na direção do lugar que o homem lhe
conduzia. Os dias passavam e conversavam sobre diversos
assuntos até que chegaram a uma subida muito íngreme e
estreita e chovia muito naquele momento, mas não quiseram
esperar a chuva passar.

- Tem certeza que consegue subir? Perguntava Awash ao jovem


com tom de preocupação.

173
- Tenho sim. Sigamos em frente, não precisa se preocupar.

No meio da subida aconteceu que grande deslizamento de terra


os atingiu e os empurrou até o sopé daquele morro e os
soterrou. Awash conseguiu se livrar da terra que o encobrira e
desesperadamente tentava achar o homem que o acompanhava.
Após alguns minutos o viu sob uma grande pedra que havia
rolado juntamente com o barro e não conseguia removê-la.
Pedia que aguentasse que iria tentar arrumar alguma coisa para
fazer uma alavanca e livrá-lo daquela situação.

- Não adianta! Mal tenho fôlego, acho que não chegarei ao


nosso destino, mas siga até o Triângulo de Afar e no vale
rochoso...

- Não morra, por favor! Aguente firme você vai conseguir.

Infelizmente aquele homem morreu, mas deixara a direção a ser


seguida, e Awash reuniu suas forças para seguir em frente e
mesmo debilitado caminhava o caminho dos bravos guerreiros.
A sede era sua mais implacável adversária e o torturava
diariamente. Sob o sol escaldante ele seguia determinado em
sua busca até que seu corpo exaurido sucumbiu às intempéries
daquele implacável deserto.

174
Então os homens que passavam a cavalo por ali o viram caído e
seu corpo já estava repleto de formigas que começavam a
comer sua carne. Aqueles soldados as removeram e o
colocaram sobre o cavalo e levaram-no embora. Chegaram a
um acampamento e as mulheres que ali estavam trataram as
feridas que as mordidas das formigas deixaram e com unguento
de ervas enfaixaram seu rosto, pois estava muito inchado e
ferido e o deitaram sobre as pedras das cavernas que tinham
naquele lugar. E foram avisar a princesa Kabenna do ocorrido.

- Minha princesa Kabenna encontramos um homem caído no


deserto, estava muito sujo e as formigas já começavam a comer
sua carne.

- Estava morto quando o encontraram?

- Não minha princesa e por isso o trouxemos. Nossas mulheres


estão cuidando dele. Havemos de esperar para ver se irá
sobreviver.

- Se acaso consiga viver, venham e me avisem que quero ir ter


com este homem.

Dias se passaram e Awash começou a recobrar a consciência


mas ainda não conseguia falar direito devido as feridas na sua
boca, mas ainda sim tiraram-lhe as ataduras e lavavam seu rosto

175
com a água de uma fonte que tinha no deserto que os antigos
diziam possuir um poder de cura e após haverem limpado
colocavam a faixa novamente.

- Onde estou minha senhora? Perguntou Awash.

- Na hora certa você saberá viajante por enquanto basta saber


que está sendo bem cuidado e evite falar para que o remédio
possa fazer efeito mais rapidamente.

E os homens que o haviam encontrado voltando da caça o


encontraram sentado na entrada da caverna e foram ter com ele.

- Olá viajante. Está se sentindo melhor?

- Um pouco melhor graças a Deus e a ajuda de todos vocês,


porém ainda sinto muitas dores e me indicaram evitar que
falasse.

- É verdade viajante nossas mulheres sabem o que dizem. Se


prepare que iremos lhe conduzir até a presença de nossa
liderança depois de amanhã.

Seus olhos ainda estavam bastante inchados e sua fala estava


um pouco comprometida. Não podia ficar exposto ao sol por
muito tempo já que os efeitos do ferrão das formigas do deserto
se assemelhavam a brasas em contato com o corpo. Chegado o

176
dia aqueles homens o levaram a presença da princesa Kabenna.
Contudo sua visão ainda estava bastante embaçada.

- Boa tarde meus amigos que a paz esteja com vocês. Tragam-
me o homem que encontraram.

A medida que Awash se aproximava pensou ter reconhecido


sua voz mas não tinha certeza e preferiu esperar que lhe
tirassem a venda dos olhos e as faixas que protegiam suas
feridas. A medida que aquele tecido lhe revelava a face a
princesa kabenna começava a reconhece-lo e seu coração
disparava e suas lágrimas já eram visíveis e muitos ali não
entendiam o que estava acontecendo. Foi quando ao final da
última volta daquele tecido constatou que era aquele a quem
seu coração estava preso para sempre.

- Awash! Awash meu amado, que Deus maravilhoso pode ser


esse que traz grande alento para a minha sofrida vida.

- Minha querida princesa Kabenna, meu amor, me deixe olhar


para você! Você continua linda e meu coração não se aguenta
de tanta alegria. Obrigado mais uma vez meu Deus. Quanta
alegria sinto neste momento não há palavras que possa dizer
para expressar meus sentimentos. Mas agora vejo que envelheci
dez vezes mais que a minha princesa amada.

177
- Você continua o mesmo meu querido e o que mais importa
para mim são sua presença e o que preenche seu coração, afinal
nossa aparência é superficial e temporária para nos atermos a
algo tão sem importância. Por favor, vá me chamar Ubbi-Ubbi,
mas não diga do que se trata.

- Sim minha princesa!

- Princesa Kabenna a senhora mandou me chamar? Perguntou


um tanto quanto nervoso.

- Eis que tenho uma surpresa para você meu amado amigo.
Olhe com seus próprios olhos mais um milagre que Deus nos
concede.

- Não posso acreditar que é o senhor. Meu amado amigo


Awash! Quanto me alegra poder ver que está vivo.

E os grandes amigos se reencontraram e houve uma grande


festa em todo o arraial e naquele dia se esqueceram dos
problemas e das privações por quais todos já haviam passado se
confraternizaram com grande júbilo. No outro dia conversaram
sobre o que lhes tinham acontecido. A princesa kabenna relatou
que a rainha Dawa estava oprimindo ainda mais os súditos do
reino e que havia assassinado Rahad e seu filho Borkana e que

178
o comandante Erer a tinha salvado dos romanos matando o
centurião Valerius.

- Ubbi Ubbi meu amigo, mas Rahad conseguiu lhe falar acerca
do tesouro?

- Sim Awash pouco antes de a rainha Dawa mandar prendê-lo.


Fui ao local e desenterrei e coloquei tudo em outro lugar. Meu
amado amigo nós conseguimos resgatar tudo, porém tivemos
uma grande perda, os soldados romanos capturaram o
comandante Erer e a rainha Dawa o executou em praça pública,
desde então temos nos unido para escolher um líder entre nós
para conduzir nossos soldados ao combate.

- Awash meu amado, você poderia ser essa pessoa? Essa figura
que guerreasse à frente de nosso exército?

- Antes de lhe responder a tal pergunta precisa compartilhar


algo maravilhoso que me aconteceu quando estava nas minas
de Gheralta. Sei que para nossa mente limitada e incrédula é
difícil de acreditar, mas encontrei meu pai, ele está vivo com
um grande amigo que fiz nas minas e preciso que envie pessoas
de confiança para trazê-los até aqui.

Mais uma vez todos se alegraram muitíssimo e pranteavam por


receberem favores tão imerecidos por parte de um Deus que

179
mal conheciam, mas que se fazia presente em cada
circunstâncias de suas vidas. Awash fez um mapa e a princesa
Kabenna enviou dois de seus mais fiéis soldados com cavalos e
provisões para a viagem. Após o vigésimo sétimo dia eles
retornaram e as profusões de sentimentos eram extremamente
contagiantes.

- Princesa Kabenna este é o meu pai o general Ganale Dorya.


Ele é surdo e mudo, mas consegue enxergar um pouco com seu
outro olho e caso não consiga entender o que ele quer dizer
através de seus gestos e expressões estarei aqui para lhe ajudar.
E este aqui é meu honrado amigo Lesser Abay, em todo o reino
nunca conheci homem igual a ele.

- Meu senhor general Ganale Dorya primeiramente quero lhe


agradecer por salvar minha vida e dizer que o senhor é para
mim mais que um pai. Muito obrigado por tudo. Dizia a
princesa Kabenna ajoelhando-se aos pés do general.

- Sou eu quem deve ficar de joelhos perante a senhora minha


princesa Kabenna. Temos a obrigação de lhe devolver o que lhe
foi tirado por sua tia. Mesmo possuidor de certas limitações que
me impedem de ser mais útil do que gostaria, quero treinar seus
homens para o combate com a ajuda de Deus.

180
- É uma honra conhecer Vossa Majestade! Coloco-me as suas
ordens e a partir deste momento este humilde servo que vos fala
dará sua vida em prol da sua.

- Obrigado nobre Lesser Abay e sua ajuda é por demais


importante para todos nós e muito obrigado por ter salvado a
vida do meu amado Awash.

- Agora vejo como você se tornou igual a sua mãe, a rainha


Shebelle. Ela era linda assim como você. Gesticulava Ganale
Dorya.

- Obrigada general Ganale Dorya. Mas peço que nos ajudem a


formar um exército que consiga fazer frente a guarda da rainha
Dawa. Precisamos unir esforços e intensificar o treinamento da
tropa.

181
CAPÍTULO X

O PRESENTE DO REI LAGABORA


Muitos meses depois da chegada do general Ganale Dorya
podia-se notar que os voluntários apresentavam outra noção
tática e estratégica no que tange a confrontos em batalhas e
planejavam tomar um posto avançado de coleta de impostos do
reino que ficava sob guarda dos soldados da rainha Dawa.
Aquele posto era guarnecido por cerca de duzentos soldados e
serviria como um teste para analisar como os homens iriam se
comportar em combate. Planejaram minuciosamente a
estratégia a ser implementada e partiram para prática.

Dois dias após iniciada a incursão tomaram o posto e mataram


os soldados e tiveram uma pequena baixa de apenas oito
soldados. O saldo era animador e serviu como divisor de águas
para suas pretensões. Mas sabiam que precisariam de muito
mais homens se quisessem enfrentar o exército da rainha e as
guarnições romanas.

182
Em certa noite enquanto conversavam próximo a uma fogueira,
Awash se lembrou do sonho que tivera enquanto se recuperava
do ferimento que quase lhe matara em Gheralta e chamou os
principais que compunham o conselho de guerra criado para
compartilhar suas intenções.

- Princesa Kabenna e nobres amigos creio que Deus tenha nos


conduzido até aqui e talvez isso pareça estranho a muitos de
vocês que não presenciaram a manifestação do seu grande
poder e nem conheçam a qual Deus me refiro, mas peço que
acreditem em mim quando digo que não há outro Deus ao qual
devamos seguir. Peço que me autorizem partir em uma
importante missão e aguardem meu retorno pois sei que esta é a
vontade Dele para nós. Se tudo correr bem em breve a capital
estará livre das malignidades da rainha Dawa e de Roma.

- Acho que todos estão de acordo meu amado Awash e, aliás


como poderíamos ir contra a vontade de um Deus tão
maravilhoso? Planeje sua viagem e siga em paz. Me prometa
tão somente que irá ter cuidado.

- Lhe dou minha palavra princesa Kabenna!

Antes de partirem Awash pediu que Ubbi-Ubbi o


acompanhasse naquela missão e solicitou a princesa Kabenna
que colocasse Lesser Abay como o terceiro homem em
183
comando, abaixo apenas dela e do general Ganale Dorya. Via
nele um grande líder e confiava muito em suas habilidades de
combate.

- Minha princesa Kabenna já faz um tempo que sinto desejo de


lhe falar sobre algo que me incomoda constantemente.

- Pode falar meu amado e nada me esconda! Dizia a princesa


Kabenna com uma voz meiga e doce.

- És uma bela mulher e saudável por sinal, além do mais,


necessita que tenha ao seu lado um homem que possa lhe
satisfazer em todas as circunstancias e bem sabeis que sou
impossibilitado de exercer minha masculinidade em sua
plenitude. Peço que escolha um homem honrado para quando
for rainha este o seja por companheiro e rei e que governem sob
a égide da justiça e da vontade de Deus.

- Não fale mais nada Awash! Compreendo sua posição e lhe


falo não como sua princesa ou quem sabe posterior rainha, te
digo isto sim como mulher. Tu és meu maior tesouro e não
abrirei mão de você. Por acaso pode o ouro perder seu valor ou
a esmeralda perder sua beleza? Claro que não, assim também
acontece com você. Você é para mim mais valioso que ouro,
pedras e reino. Se tiver você ao meu lado isto já me é
suficiente.
184
- Me perdoe, mas esses pensamentos me atormentam
constantemente. Queria que pudesse ser diferente.

- Ouça-me com atenção meu amado Awash. Tua presença é


real para mim, teu carinho me ajuda a sentir viva e seu corpo é
perfeito para mim.

- Princesa Kabenna se por acaso algo acontecer em minha


ausência e tiver que fugir ou se esconder em algum lugar vá
para a cabana na qual fomos criados e fique lá até que eu
apareça.

- Fique tranquilo que nada irá acontecer meu amado.

Então se abraçaram e se beijaram como da primeira vez


naquele estábulo. Partiram então os dois amigos e junto com
eles a esperança de todo um povo.

- Meu nobre amigo Awash para onde estamos indo?

- Para a cabana na qual eu e a princesa fomos criados quando


crianças meu nobre amigo Ubbi Ubbi. Deixei algo escondido lá
que nos será de grande valia.

Cavalgaram por muitos dias e quando chegaram aos pés do


Monte Batu prenderam seus cavalos e subiram caminhando.
Era uma subida com grandes dificuldades e precisavam chegar

185
logo ao local com rapidez e após três dias de subida avistaram a
cabana. As memórias inundavam a mente de Awash, cada
detalhe ali percebido lhe remetia à sua mãe e a princesa
Kabenna. Mas os soldados da rainha haviam destruído quase
tudo, porém o que ele procurava estava a salvo sob o piso da
cabana.

- Ubbi Ubbi arrume algo para cavarmos entre esses escombros,


tenho certeza que aquilo que escondi está por aqui em algum
lugar.

Mas o local estava coberto de vegetação e demorava a


encontrar o que havia escondido e o tempo passava e ele não
desistia. Foi quando erguendo o que achara aos céus agradecia
ao Eterno Deus por tão maravilhosa graça.

- Nobre Awash do que se trata tal papel?

- Amado amigo Ubbi Ubbi, há muitos anos atrás aqui nesta


cabana conheci um homem muito sábio que em uma noite
pediu abrigo. Chamava-se Gaspar e estava em viagem para um
lugar que desconheço e o mais curioso é que se guiava por uma
estrela no céu e esta estrela lhe mostrava a direção a ser
seguida. O velho Gaspar me ensinou as primeiras palavras da
língua usada pelo povo hebreu e me apresentou ao Deus no
qual agora sirvo. Contou-me a história do povo escolhido por
186
Ele e como tentara andar com eles, mesmo que por muitas
vezes tal povo lhe virasse às costas.

- Depois de tudo que presenciei e muitas coisas inexplicáveis


confesso que temi esse grande Deus, mas também admirei o seu
amor e cuidado para com você e a princesa Kabenna, nobre
Awash.

- Gaspar me deixou esta carta para que se um dia eu viesse


precisar usá-la para encontrá-lo eu pudesse ser identificado
como um grande amigo e assim ser bem recebido pelo seu
povo. Meu amigo Ubbi-Ubbi não sei o que essa viagem nos
reserva e irei compreender se escolher voltar ao arraial.

- Meu senhor e amigo Awash estarei convosco mesmo que


andemos até as bordas da terra.

- Obrigado Ubbi Ubbi! Sua amizade é de valor inestimável para


mim. Descansemos e amanhã sigamos em direção ao nosso
destino.

Distante dali na capital do reino o governador Marcius fora ao


palácio ter coma rainha Dawa, pois recebera uma informação
importante para a manutenção do reino.

- Mofar, me chame a rainha Dawa, por favor.

187
- A rainha não deseja ser incomodada, governador Marcius.

- Vá agora e isso é uma ordem seu pelego desgraçado!

- Aguarde um instante! Rainha Dawa o governador me parece


exaltado e deseja lhe falar com certa urgência.

- Pois não governador em que posso lhe ser útil?

- Por César!!!! O que aconteceu com a senhora? Parece doente


rainha Dawa.

- Acho que é alguma obra de magia por parte daqueles que


querem me destruir. Meus sacerdotes já realizaram todos os
sacrifícios possíveis e imagináveis a fim de satisfazerem a
vontade dos deuses, porém a cada dia que passa minha
aparência só piora. A peruca me ajuda a aparecer em público
quando é preciso. Por acaso não sente mais desejo de se deitar
comigo?

- Infelizmente não vim aqui para isso! Tenho informações


confiáveis acerca do local que a resistência está acampada.
Pretendo realizar uma incursão. Vim saber se gostaria de
acompanhar nosso deslocamento, mas vejo que não está em
condições. Como prova de respeito venho lhe pedir permissão
para iniciar a ofensiva.

188
- Ainda sou rainha destas terras governador Marcius e ainda o
serei por longa data, mas é melhor me ausentar desta manobra
bélica. Coloco todos os meus soldados e o comandante Hawadi
sob suas ordens. Espero que volte com a cabeça da princesa
Kabenna em um cesto e a entregue para mim.

- Se essa é a sua vontade também será a minha nobre rainha


Dawa. Tenho certeza que após olhar para a cabeça dessa
traidora sua beleza lhe será restaurada.

O próprio governador Marcius queria liderar o destacamento e


reunindo seus soldados ordenou que ao chegarem ao local fosse
para efetuarem o cerco de toda a área antes de atacarem. Não
queria crianças, mulheres, velhos ou qualquer outro vivo ao
final da ação militar. Sendo que ordenou que os homens em
idade de combate fossem empalados e seus corpos deixados às
aves de rapina.

Experiente estrategista se deslocava com suas tropas somente à


noite e durante o dia ficavam acampados em lugares mais
escondidos. E finalmente chegaram próximo ao lugar após
vinte luas de caminhada e firmaram acampamento.

- Centurião, amanhã iremos atacar e quero rigor nas ações.


Aproveitem para descansar e se alimentar. Seremos cruéis com
os nossos inimigos. Ave César!
189
- Afirmativo governador Marcius! Ave César.

Logo ao raiar do dia os soldados já estavam em posição de


combate, haja vista, estarem descansados, pois só caminhavam
a noite onde o clima era mais fresco e esse fator foi
determinante para que suas energias tivessem sido poupadas
para o confronto. Os soldados “fizeram soar seus instrumentos
musicais de nome ‘bucinas” que anunciavam a prontidão para o
ataque e deixavam seus adversários atordoados com aquele som
e começaram os ataques em diversas frentes ao arraial do
exército da princesa Kabenna.

Deu-se então uma sangrenta batalha naquele lugar. Os soldados


da princesa pegos de surpresa resistiram o quanto puderam,
porém estavam em menor número e os romanos saíam de toda a
parte. Lesser Abay em meio ao combate pediu que a princesa
Kabenna e Ganale Dorya fugissem, pois a princesa era o
motivo principal daquele ataque e se morresse ali tudo que
realizaram até o momento teria sido em vão. Mas ambos
hesitaram e lutaram lado a lado por algum tempo, mas vendo
que seus homens sucumbiam não tiveram escolha e iniciaram a
fuga através de um caminho que ficava dentro de uma das
cavernas que ali existia. Mas Lesser Abay precisava reorientar
e agrupar os que ainda permaneciam vivos e permaneceu de pé

190
sendo o último a cair ferido gravemente. E os soldados
cumpriram com rigor a ordem do comandante Marcius e
executaram a todos sem exceção. Antes de matarem Lesser
Abay os legionários o levaram até a presença do governador
pois haviam notado que ele liderava o grupo.

- Você é o general que comanda tal exército?

- Sim. Sou eu mesmo. Sussurrava já quase sem vida o valente


Lesser Abay.

- Resposta errada seu ser selvagem!

O governador atravessou seu corpo com a espada que carregava


e revirava-a dentro do seu corpo e então o nobre Lesser Abay
teve sua vida ceifada por Roma.Os soldados fincaram os corpos
de quase todos em estacas e deixaram lá para que vissem o que
aconteceria se intentassem contra o Império Romano e seus
aliados. E pediu ao seu espia que procurasse entre as mulheres
mortas qual seria a princesa Kabenna e trouxesse seu corpo. O
espia, no entanto não encontrando o corpo da princesa Kabenna
temeu por sua vida e vendo uma mulher que possuía alguma
semelhança com ela o entregou ao governador.

- Tem plena certeza que está é a princesa Kabenna?

- Sim meu general! Tenho absoluta certeza.


191
- Arranque a cabeça e coloquem em um saco e vamos partir
deste inferno.

A princesa Kabenna e Ganale Dorya haviam conseguido


escapar graças à intervenção de Lesser Abay e sabiam que
mesmo não tendo visto pressentiam que havia perecido. E
seguiram em direção à antiga cabana no Monte Batu e era uma
longa viagem até lá.

O governador Marcius voltara da incursão e ao chegar no


palácio menosprezava todos os servos e soldados que ali
estavam. E ninguém tinha posição de poder maior que a dele
naquele lugar.

- Mofar peça que me preparem um banho e um banquete! Estou


faminto! E hoje quero festejar ao lado de belas mulheres.

- Sim governador Marcius. Irei providenciar imediatamente.

Durante a comemoração o governador sob o efeito do vinho foi


aos aposentos da rainha Dawa e levando o saco com a cabeça
que pensava ser da princesa Kabenna pediu permissão para
adentrar.

- Boa noite rainha Dawa como está se sentindo?

192
- Estou melhor nobre governador. O que trouxe para mim nesse
saco? É o que estou pensando? Passe para mim.

- Eis o seu presente rainha Dawa, aproveite e adorne seu


palácio.

- Mas essa não é a princesa Kabenna! Tenho certeza seu idiota.

- Como não? Meu espia me assegurou que era ela. Bastardo


miserável. Peço desculpas rainha. Irei resolver tal imprevisto
amanhã mesmo.

- Aquela mulher ainda vive e isso me aflige. Sempre a vejo em


meus sonhos e aves de rapina a acompanham e voam em minha
direção e comem minha carne.

- Isto é apenas um pesadelo fruto de preocupações rainha


Dawa, não é real. Agora se deite e acalme-se.

No outro dia mandou que prendesse o tal espia, mas demoraram


em encontrá-lo. Uma semana depois os soldados obtiveram a
informação que ele estava em um prostíbulo na capital do reino.
Então o governador mandou que o capturasse e o trouxesse até
a sua presença.

- Então aquela era a cabeça da princesa Kabenna seu verme


maldito!

193
- Meu general Marcius me perdoe, apenas temi pela minha vida
pois não a encontrei entre os mortos. E aquela mulher parecia
tanto com ela. Mas posso encontrá-la se desejar meu senhor.

- Só se for em outra vida seu porco imundo! Joguem-no do


parapeito do palácio.

Muitos dias haviam se passado e Awash e Ubbi-Ubbi após


atravessarem o grande Rio Nilo encontravam-se perdidos e
começaram a ficar sem água e comida. Seus animais já haviam
padecido sob o forte calor do deserto e senão encontrassem
algum vestígio de civilização sofreriam o mesmo destino. Foi
quando avistaram uma grande caravana que passava lá longe no
horizonte, e se puseram a ir em sua direção.

- Senhor, por favor, pare! Por favor, senhor! Ajude-nos!


Gritava e acenava Awash.

- Pai olha ali há homens vindos em nossa direção e parece que


estão acenando para nós.

- É verdade meu filho! Peça que a caravana pare, vá rápido!

A dianteira da caravana atendendo a ordem, pararam


imediatamente. Logo Awash e Ubbi Ubbi a alcançaram e
estavam sedentos e famintos e foram cuidados por aquela gente

194
que lhes socorreram. E puderam descansar por alguns dias na
companhia deles.

E foram levados até a presença do sultão e patriarca daquela


grande família...

- Primeiramente gostaríamos de lhe agradecer por salvar nossas


vidas. Somos muito gratos pela acolhida. Dizia Awash em sinal
de respeito.

- Mas me diga nobres amigos, o que fazem aqui nessa terra


onde só há desolação?

- Estamos procurando um reino, na verdade uma pessoa que


considero ser importante em tal reino e nossa esperança repousa
em encontrá-lo.

- Mas qual é o seu nome e de onde ele é?

- Seu nome é Gaspar e não sei bem ao certo o nome e onde fica
exatamente seu reino. Eis aqui uma carta que me deixou há
muitos anos atrás. Reconhece alguma coisa que possa nos
ajudar?

- Esse selo não me parece estranho, mas não me lembro ao


certo. Meu filho vá chamar Pibor e peça que venha até aqui.

- Pibor reconhece este selo e o nome inscrito aí?

195
- Sim meu senhor! Trata-se do selo de um conselheiro real dos
povos berberes se não me engano.

- Me perdoe nobre amigo, mas estamos muito longe deste


lugar? Indagou Ubbi UBbi.

- Três noites de viagem e estão com sorte pois estamos indo


para lá.

- Oh meu Deus como posso agradecer por tudo que nos tem
feito? Peço-te que abençoe também a estas pessoas que tem
sido boas para conosco. E me perdoe o abuso meu nobre amigo
será que poderíamos seguir viagem convosco? Falava o
radiante Awash.

- Claro meus jovens amigos. São nossos convidados.

Ao chegarem naquela cidade se despediram daquelas generosas


pessoas deixando-vos a paz de Deus, começaram a perguntar
aos habitantes dali se conheciam uma pessoa por nome Gaspar
e que provavelmente morava no palácio do rei daquelas terras.

- Não conhecemos ninguém com este nome! Saia da frente seus


maltrapilhos.

Uma guarnição passava pelo local quando perceberam que eles


eram estrangeiros e incomodavam as pessoas atrapalhando o

196
comércio local. Logo os prenderam e os levaram para as
masmorras. Após revistarem a ambos, um dos guardas
encontrou a carta que Gaspar havia dado a Awash e então se
retiraram.

- Não somos vossos inimigos, volte, por favor, eu preciso desta


carta. Bradava Awash.

- Nada adianta gritar nobre amigo Awash, vamos aguardar e ver


o que nos acontecerá.

Desde que foram presos se passaram muitos dias e os guardas


nada falavam apenas lhes deixavam água e comida. A sensação
de fracasso começava a apossar-se de seus pensamentos e
lamentavam porque muitos dependiam do sucesso daquela
viagem e pediram a Deus que os ajudasse naquele momento de
enorme desânimo.

- Atenção prisioneiros! A qual de vocês foi confiada esta carta?

- Foi a mim meu senhor!

- Carcereiro solte-o! Soldado leve-o a presença do rei, mas


antes permita que se lave e lhe dê roupas limpas.

- Muito obrigado nobre soldado!

197
- Curve-se ante a vossa majestade o senhor destas terras, o rei
Lagabora.

- Então estrangeiro como chegaste ao nosso reino? Outra


pergunta vos faço, como obteve tal carta e como conheceu este
homem que a escreveu?

- Grande rei Lagabora, esta carta me foi entregue há muitos


anos atrás por um grande sábio de nome Gaspar que uma certa
noite apareceu em nossa cabana e nos pediu abrigo. Ele dissera
que estava realizando a viagem mais importante de sua vida e
que procurava por respostas. Apresentou-me a um Deus
tremendo e a história de seu povo. Tornamos-nos grandes
amigos e mesmo após tantos anos ainda o amo grandemente.
Disse-me que se um dia precisasse da sua ajuda que usasse esta
carta como referência para encontrá-lo. E aqui estou.

- Compreendo. Somos descendentes direto do nosso pai Abraão


através de seu filho Ismael e conhecemos a história do seu
irmão Isac e da origem do povo hebreu, possuímos algumas
diferenças mas isso não nos torna inimigos. A terra é grande
demais e há espaço para todos os povos. De onde vens tu?

- Sou do reino de Abissínia meu senhor e vim por ajuda.

198
- Uma coisa de cada vez. Ouço falar das atrocidades de sua
rainha e lamento pelos seus irmãos que sofrem sob o jugo de tal
pessoa. Porém o homem do qual falava era um grande amigo e
conselheiro do antigo rei. Após a morte do meu pai permaneceu
comigo me ajudando em certas questões do reino. O admirava
muito. Infelizmente ele morreu há algum tempo.

- Então está tudo perdido para nós! Lamento por importuná-lo


alteza. Cabe-me lamentar a sua morte não só pela provável
ajuda, mas pela decepção de não poder revê-lo.

- Me deixe continuar. Gaspar após regressar de sua viagem


falava ao meu pai sobre ter encontrado um “Rei” não
entendíamos direito de qual rei ele se referia, mas também nos
disse ter conhecido uma família em terras distantes que o
acolheu e o tratou como um dos seus. Mencionou o nome
Awash e alguns outros que não me lembro bem. Suponho que
seja você tal pessoa.

- Sou eu sim rei Lagabora!

- Pediu que se um dia você viesse até nós era para lhe ajudar no
que fosse necessário. Era um pedido pessoal, compreende? E
pretendo realizar o desejo do meu velho amigo.

199
- Rei Lagabora muito obrigado por receber esse humilde servo.
Peço-te que se for possível solte meu amigo Ubbi-Ubbi que se
encontra em cárcere.

- Claro meu mais novo amigo Awash. Hoje teremos uma festa
aqui no palácio e quero que se divirtam e esqueçam um pouco
de suas preocupações. Mandarei preparar-lhes aposentos e se
também quiserem boas companhias, nossas mulheres são
simplesmente belíssimas. Guardas soltem o preso.

- Agradeço a vossa oferta majestade, mas sou obrigado a


declinar em parte. Não há necessidade de enviar-nos mulheres,
meu coração já é terra ocupada.

- Parabéns jovem amigo! Seja como vocês preferirem.

E ficaram ali por mais algum tempo, mas a hora de sua partida
já se aproximava e via a necessidade de pedir um grande favor
ao rei Lagabora. Precisava de homens que os ajudassem a
reaver o reino.

Solicitou uma audiência com o rei e durante aquela concessão


lhe contou de seus planos para reaver o reino que havia sido
tirado da princesa kabenna, filha da rainha Shebelle e legítima
herdeira ao trono e que foi usurpado pela sua tia e atual
soberana, a rainha Dawa. Disse-lhes acerca da traição e da

200
morte da rainha Shebelle e que sua filha lutava juntamente com
parte de seu povo contra as forças da rainha e do império
romano. Revelou que seu povo estava perecendo e que já lhes
faltavam o que comer. Então pediu que o rei lhes enviassem
homens a fim de reforçarem seu pequeno exército que haviam
ficado lá.

- Quantos homens vocês tem lutando a vosso lado Awash?

- Uns dois mil homens vossa majestade.

- Mas esse número é muito pequeno. Há mais soldados em uma


legião romana que a vosso lado nobre Awash. Como pretende
ganhar tal batalha? És por acaso algum feiticeiro?

- Meu senhor, creio eu que não estaremos sós, mas que o Deus
de seus antepassados estará também conosco.

- Mas não se tem notícias que o Senhor tenha pelejado a não ser
pelo seu povo escolhido. Por que achas tu que Deus pelejará a
vosso lado?

- Não saberia explicar meu senhor, apenas sei.

- Não posso deixar meu reino desprotegido mas vou lhe


conceder mil dos meus mais valentes soldados para lhe
acompanharem nessa batalha. Daqui a sessenta luas poderá

201
aguardar a chegada dos meus guerreiros basta-me dizer aonde
irá se dar esse combate?

- Vossa excelência teria um mapa das terras adjacentes e


distantes ao seu reino?

Ficou acertado que tentariam atrair os soldados romanos e da


rainha Dawa até a Planície de Dancalia. A geografia do terreno
e o clima cooperariam ao seu favor. E firmaram então o pacto
de ajuda.

- Awash antes que se vá preciso lhe entregar umas coisas.

- Mas meu senhor nada mais poderia eu aceitar de vossa


excelência, haja vista, que já me deste o que havia de vir buscar
aqui.

- Esse presente não é da minha parte meu nobre amigo mas de


Gaspar. Ele deixou por escrito que se um dia viesse até aqui e
já tivesse morrido era para lhe entregar seus mais preciosos
tesouros. Aqui estão eles. São esses rolos. Ele só vivia lendo o
que aí está escrito.

Então Awash se colocou de joelhos e recebeu os rolos e os


elevou ao céu e agradeceu a Deus por presente de valor tão
inestimável. Ali havia de ter muito para seus questionamentos e

202
se alegrou grandemente. Despediram-se do rei Lagabora e
seguiram viagem de volta a Abissínia.

203
CAPÍTULO XI

O TESOURO DE MOFAR
Em Roma Mille trabalhava duro e na medida do possível era
bem tratada para uma escrava. O senador Flavius era um
homem sensato e podia-se notar que amava muito sua família.
Permitia que Domitius dependendo da produção dos campos
concedesse um dia de descanso na semana para os escravos
cuidarem de sua higiene, costurasse suas roupas ou apenas
pudessem descansar em seus alojamentos. Um dia aconteceu
algo que iria mudar o destino de Mille. O filho mais novo do
senador que deveria ter uns cinco anos de idade foi brincar nas
plantações de trigo, quando por descuido ao se inclinar na beira
de um poço caiu dentro dele. Este poço ficava quase que no
limite de sua propriedade e era pouco usado, por esse motivo
poucas pessoas passavam por ali com exceção dos guardas que
efetuavam rondas esporádicas. Na casa do senador a mãe da
criança sentiu falta de sua presença e começou a gritar pelo
menino chamando-o pelo nome e isto despertou a atenção dos
servos e dos soldados que faziam a segurança da casa e
imediatamente se colocaram a procurá-lo. Passadas muitas
horas ainda não o haviam encontrado. Por ordem de Domitius
todos os escravos foram colocados em seus respectivos
204
alojamentos e impedidos de sair, mas Mille não se encontrava
entre eles.

Mille tinha o costume de ir orar a Deus distante daquela


aglomeração de escravos e encontrou sob os galhos frondosos
de uma oliveira paz suficiente para adorá-lo. Foi quando ouviu
um som que se assemelhava ao choro de uma criança. Ao
seguir o som chegou ao poço e ao olhar para dentro dele viu a
criança muito ferida.

- Calma minha criança que vou lhe ajudar. Fique quietinha e


procure não se mexer muito.

A criança obedeceu às orientações de Mille e apenas aguardou


que ela descesse. Mille se segurando por entre os blocos que
formavam a estrutura do poço descia com muita dificuldade
mas conseguiu chegar até a criança.

- Não tenha medo, não irei lhe fazer mal algum.

- Eu sei, mas estou com medo!

- Confie em mim e logo estaremos fora desse lugar. Faça tudo o


que te pedir para fazer.

Mille então fez com que a criança passasse seus braços em


volta do seu pescoço e se segurasse firme e começou a escalar

205
aquele poço. Após muito esforço retirou a criança e a colocou
nos braços e foi em direção à casa do senador Flavius.

- Ali Olhem! Uma escrava se aproxima e parece que carrega


alguém no colo.

- É o meu filho!!! Obrigado grande deusa Vesta. Agradecia a


mãe da criança.

- Ei escrava solte a criança e se afaste!

- Não posso coloca-la no chão meu senhor, acho que ela


quebrou a perna ou algo semelhante.

- Passe-a para cá! Disse o soldado com altivez.

Retiraram a criança dos braços de Mille e a levaram para dentro


da casa e os melhores médicos da cidade lhe prestavam
cuidados. Mas os soldados pensando que Mille havia
maltratado a criança começaram a castigá-la e a levaram para o
lugar chamado de “Locum Tribluationis”. Neste lugar eram
levados escravos que tinha dificuldades de se adaptar e
obedecer a ordens. O sofrimento ali era extremo.

- Senhora, imobilizamos a perna do seu filho e tratamos dos


restantes de seus ferimentos, não poderá colocar o pé no chão

206
por no mínimo de seis meses. Senador Flavius o menino deseja
falar com ambos.

- Obrigado doutor!

- Olá meu pequeno romano, como você está? O que aconteceu


meu filho?

- Fui brincar na plantação meu pai e me perdi. Lá longe vi um


poço e ao tentar olhar o que tinha dentro dele caí. E gritei
muito, mas ninguém me ouvia, até que apareceu uma de suas
escravas e me tirou de lá e me trouxe para casa. Onde ela está
meu pai? Queria lhe agradecer.

- Mulher o que fizeram com a escrava que o trouxe?

- Não sei meu marido. É melhor perguntar a Domitius.

- Soldado vá me chamar Domitius com urgência.

- Domitius o que fizeram com a escrava que trouxe meu filho?

- Meu senhor, os soldados da casa a açoitaram e a mandaram


para o “quarto” e nada pude fazer.

- Não posso condená-los por tal atitude, mas vá imediatamente


e traga-a aqui.

207
Domitius ao chegar ao lugar onde Mille se encontrava notou
que estava bastante ferida e pôde ver que estava de joelhos e
abrindo a porta logo lhe perguntou:

- O que fazes assim nesta posição mulher? Estás bem?

- Desculpe meu senhor! Não notei a sua presença pois estava


orando ao Deus Eterno por ter salvo a vida daquele menino.

- Compreendo mulher. Mas venha e me siga que o senador


Flavius deseja lhe falar.

- Me permita beber somente um pouco de água antes de irmos.

- Senhor senador eis a escrava! Está muito ferida meu senhor.

- Consegue me entender mulher?

- Sim meu senhor, entendo perfeitamente. Fui educada em


muitas línguas.

- Pelos deuses o que aconteceu com as suas mãos?

- Ao tentar sair do poço com o menino fincava meus dedos por


entre as frestas dos tijolos para escalar, porém a força foi tão
grande que perdi minhas unhas e meus dedos estão alguns
quebrados.

208
- Vá à cidade e peça ao doutor para vir aqui novamente
Domitius. E peça a outra escrava que a ajude a se limpar.

Então Mille teve suas feridas tratadas e o senador a retirou das


plantações e a colocou para trabalhar nos serviços domésticos
em sua casa e todos viam que ela era uma mulher muito sábia e
dedicada em tudo o que fazia. Com o tempo notaram que ela
era muito inteligente e perspicaz em tudo o que se propunha a
realizar e se alegraram em tê-la em suas presenças. Mille
passou a cuidar do filho do senador e recebia o carinho e
admiração de todos daquele lugar.

Awash e Ubbi-Ubbi haviam atravessado o grande rio Nilo e se


colocaram em direção ao Triângulo de Afar, mas ao avistarem
o lugar se depararam com a visão mais calamitosa de toda a
suas vidas. Havia corpos por todo o lugar e o cheiro era
simplesmente horrível, havia homens enfincados em estacas de
madeira, alguns tinham sido crucificados e outros tiveram seus
membros separados de seus corpos. O que acontecera naquele
lugar mudou a vida de Awash para sempre e também selou o
destino de todo o seu povo. Procuravam entre os mortos à
princesa Kabbenna e outros que lhes eram mais íntimos, mas
como o estado de decomposição dos corpos já era avançado
não reconheceu ninguém.

209
- Senhor Deus o que aconteceu aqui?Lamentava Ubbi Ubbi.

- Não sei ao certo meu amigo, mas precisamos voltar e ir até a


antiga cabana no Monte Batu.

- Mas por que Awash? Não consigo compreender o que quer


fazer naquele lugar.

- Antes de partir pedi a princesa Kabenna que se algo


acontecesse era para ela fugir para lá e se estiver viva é lá que
estará.

Imediatamente partiram rumo a cabana no Monte Batu.


Estavam exaustos daquela viagem pelo deserto, mas
precisavam chegar naquele lugar e comprovar se a princesa
ainda estaria viva.

A medida que se aproximavam foram surpreendidos por uma


das armadilhas que Ganale Dorya colocara pelo caminho para
evitar que estranhos se aproximassem. Então gritaram por
socorro até que o general Ganale Dorya apareceu em sua ronda
e os livrou.

- Meu amado filho Awash! Graças a Deus está a salvo. E você


também Ubbi-Ubbi.

210
- Meu pai louvado seja o bondoso Deus por preservar sua vida.
E a princesa Kabenna?

- Está a salvo graças a Deus. Infelizmente Lesser Abay deu sua


vida para que estivéssemos aqui hoje.

- Vamos continuar a subida meu pai. Ajude-me a levar nosso


amigo Ubbi Ubbi.

- Obrigado meus amigos, pois acho que minha perna que era
ruim acabou de ficar pior. E todos riram por um instante.

- Awash! Meu amor que bom que você regressou pensei que
não mais o veria. Mas Deus o trouxe de volta para mim. O que
houve com você meu nobre amigo Ubbi Ubbi?

- Estou bem princesa Kabenna não deve ser nada grave. Logo
estarei novo em folha.

- Minha amada princesa Kabenna como senti sua falta, mas


Deus nos conduziu novamente sob seu amparo. Deixe-me
compartilhar com vocês o que nos aconteceu nessa jornada.

E em meio ao caos e a desolação tiveram alguns minutos de


alegria, mas logo se colocaram a traçar um plano para tentar
recrutar mais pessoas com a intenção de formar um pequeno
exército para enfrentar a rainha Dawa e seus aliados romanos.

211
Awash lhes contou o que havia acontecido durante sua viagem
e de como o rei Lagabora o havia prometido soldados para lhes
ajudarem a reaver o reino. Porém o problema é que naquela
altura ainda achavam que possuíam um pequeno grupo, mas
agora eram somente em quatro pessoas. Decidiram que Awash
e Ubbi-Ubbi iriam partir em breve tomando direções opostas
com o objetivo de recrutar simpatizantes e insatisfeitos com a
política adotada pela rainha e que quisessem aderir para a
formação de um exército para combatê-la. E o tempo passava e
só tinham quarenta luas para unir pessoas em prol de um
objetivo dificílimo de alcançar e se deslocarem até o local onde
deveria ser travada a batalha.

À noite Awash se debruçava sobre os escritos recebidos de seu


grande amigo Gaspar e tentava compreender o que as escrituras
queriam dizer. Entendia a parte histórica dos livros e de alguns
profetas, mas não sabia se o que ali estava escrito acerca da
vinda do “Messias” já se havia concretizado ou ainda estaria
por acontecer. E lia uma passagem que dizia: “Porque um
menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o governo estará
sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso
Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da
Paz...”. E não conseguia interpretar corretamente o que lia.

212
- Ubbi-Ubbi meu nobre amigo prepare-se pois amanhã bem
cedo partiremos e haveremos de nos encontrar no pé do monte
daqui a vinte luas.

- Entendi meu senhor e nobre amigo Awash. Assim seja feito e


já tenho confiança no sucesso da nossa missão. Deus estará à
frente de tudo.

- Awash meu amado eu também desejo ir. Leve-me com você.


Suplicava insistentemente a princesa Kabenna.

- Minha amada princesa Kabenna é bom que fique aqui e nos


aguarde retornar. Aqui estará mais segura e chegará a hora certa
que poderá e deverá nos ajudar. Confie em mim.

- Pai querido tome conta da princesa por mim. Saiba que meu
amor por ti é muito grande. Esteja orando ao bondoso Deus que
nos conceda amigos para nossa causa.

- Meu filho amado vá em paz, pois Deus operará com grande


poder em nosso favor.

No outro dia partiram e colocaram-se cada um em uma direção


com os corações cheios de esperança e sabidos que seu tempo
era pouco e haveria muitos lugares a serem percorridos.

213
Na capital do reino a saúde da rainha Dawa se deteriorava cada
vez mais e parte da nobreza que antes a bajulava agora se
mantinham a certa distância esperando apenas a hora de sua
morte. Muitos de seus servos começaram a abandoná-la e fugir
do palácio temendo que aquela doença fosse contagiosa. Sua
aparência se assemelhava a alguém que estava prestes a morrer
por inanição e concedia audiência somente ao governador
Marcius, o comandante Hawadi e a Mofar. Mas um
acontecimento a fez começar a ver sua real situação.

- Mofar peça que preparem meu banho. Vá rápido, pois sinto


meu corpo em brasas.

- Claro minha rainha. Aguarde um pouco que irei chamar suas


servas.

Porém tomando direção oposta de onde as servas da rainha


costumavam ficar colocou-se na direção de seu aposento.
Mofar não pretendia ficar mais tempo ali e planejava fugir para
outras terras. Havia subornado um centurião romano que iria
acompanha-lo até o Porto de Zafar e de lá iria em um navio
comercial para Galícia que era um território unificado ao
Império Romano. Assim pretendia fixar-se e viver até seus
últimos dias naquele lugar. E para isso estava com dois alforjes

214
repletos de ouro e pedras preciosas desviadas do tesouro
particular da rainha Dawa.

- Soldado prepare o meu cavalo que vou ao centro da capital.

No local combinado aguardava a chegada do centurião que o


levaria para bem longe daquelas terras e da presença nada
agradável da rainha Dawa e dos seus vitupérios constantes.

- Bom dia Mofar. Podemos ir?

- Já estava preocupado centurião. Não percamos nem mais um


segundo.

E Mofar partiu deixando para trás um povo à mingua, sem


esperança e com o futuro incerto.

- Mofar o navio que lhe levará é aquele. Peça para falar com o
comandante da embarcação e diga que tu és o passageiro das
quinze moedas de prata. E passe para cá o que combinamos.

- Claro nobre centurião. Mas para todos os efeitos não me


vistes. Nada comente com seus subordinados e se souber
utilizar essa quantia não mais precisará servir a ninguém a não
ser a ti mesmo.

Fez conforme o soldado havia lhe falado e embarcou no navio e


aguardou que zarpassem. Mas pouco tempo depois de terem

215
deixado o porto as águas do mar que antes estavam calmas
começaram a agitar-se e a nau sob seus ataques passou a sofrer
danos estruturais. Todos temeram e havia somente um bote na
embarcação e quando tentaram baixá-lo à agua o cabo
arrebentou e ele se chocou com o costado da embarcação e foi
totalmente destruído.

- Capitão, acho que vamos a pique! Vejo que a popa já começa


a submergir.

- Tenha calma marinheiro! Iremos conseguir. Timoneiro todo


leme a boreste.

- O que está acontecendo capitão? Perguntava Mofar em grande


angustia.

- Acho que o navio não vai suportar esse mar bravio e vamos
afundar. É melhor procurar algo que flutua e se segure firme
nele.

Mofar temia por sua vida, pois não sabia nadar e começou a
oferecer ouro para quem quisesse ajudá-lo a permanecer vivo,
mas ninguém lhe dava ouvidos e cada um agia por conta
própria.

- Ei você me ajude a sair daqui e farei de ti um homem rico!


Falava Mofar com moedas de ouro em punho.
216
- Saia da minha frente. Se livre desses alforjes e pule no mar e
se agarre naquilo que puder.

Contudo Mofar se apegava cada vez mais ao seu tesouro e nada


nem ninguém o faria abrir mão de toda aquela riqueza. Mofar
que intentara atravessar o mar para usufruir do seu tesouro não
conseguiu chegar ao seu destino e encontrou a morte abraçado
aos seus preciosos alforjes. Aqueles que conseguiram voltar à
terra seca dizem que sobreveio sobre a nau onda como nunca
haviam visto e ela era simplesmente gigantesca e despedaçou a
embarcação e muitos foram ao fundo do mar presos a ela.

No reino, Awash e Ubbi-Ubbi iam de vila em vila atrás de


pessoas que quisessem fazer parte do exército da princesa
Kabenna e muitos os seguiram. E em toda vila que eles
chegavam falavam as pessoas:

- “Irmãos somos ramos que provém da mesma raiz e como tais


não podemos permitir que cortem nossos galhos que são
representados por nossos filhos, esposas e amigos. Precisamos
nos levantar e nos unir para que a posteridade possa ver que
fomos nós o solo resistente a poda imposta pelo império
romano e pela rainha Dawa. Viver sob opressão é o mesmo que
estar morto, a única diferença é que muitos acreditam que se
morre para viver e alguns acreditam que se vive para morrer.

217
Vivamos e morramos por algo que valerá a pena meus amados
irmãos e irmãs”.

Chegado o dia que estabeleceram por limite encontraram-se ao


pé do Monte Batu e todos os que aceitaram segui-los era de
aproximadamente dois mil homens. E festejaram naquele lugar
mesmo sabendo que estariam em desvantagem em relação ao
exército da rainha Dawa e da legião romana. E foram ter com a
princesa kabenna e Ganale Dorya.

- Boa tarde minha princesa Kabenna. Como estás bela nesse


entardecer.

- Awash meu amado. Como é bom ouvir sua voz. Como foi a
viagem, alguém atendeu ao nosso chamado?

- Graças ao nosso bom e amado Deus cerca de dois mil homens


estão lá embaixo. Improvisamos uma fundição já que temos
muita lenha e já demos início à fabricação de armas.

- Meu pai peço que se prepare, pois sua experiência e


conhecimento em campo de batalha será de suma importância
para nós. E princesa se despeça desta cabana, pois amanhã pela
manhã iremos ao novo arraial.

218
- Fomos tão felizes aqui meu amado Awash mesmo estando ela
em ruínas parte da minha vida ficará repousada nestes campos.
E um dia pretendo reconstruí-la.

- Nobre senhor Ganale Dorya temos bons homens lá em baixo


que precisam apenas de alguém que lhes ensine a combater e
ninguém melhor que o senhor para instruí-los. Exclamava Ubbi
Ubbi em total reconhecimento.

- Obrigado Ubbi-Ubbi. Minhas limitações de nada me


impedirão de transferir todo o meu conhecimento de forma
eficiente e eficaz. Este velho general ainda pode ser muito útil.

Iniciaram a descida e se juntaram ao restante do grupo.


Trabalhavam com muita dedicação e mesmo a princesa ajudava
as mulheres que haviam acompanhado seus maridos a fazer
arcos e flechas para o grande dia.

Então Awash, Ganale Dorya e os outros que formavam o


conselho de guerra decidiram separar um grupo de cem homens
para acompanhar a rainha kabenna até a capital. Estabeleceram
que lá chegando o pequeno destacamento deveria ficar
escondido por entre a pequena mata que circundava os muros e
só entrariam na cidade se o mensageiro chegasse com boas
novas de que a batalha havia sido vencida. Acaso o mensageiro
não aparecesse após haver decorrido o terceiro dia do final da
219
batalha deveriam fugir em direção ao deserto e pedir asilo ao
rei Lagabora.

Awash revelou que havia escolhido a Planície de Dancalia para


o combate, haja vista, que o solo arenoso e irregular traria
dificuldades para que utilizassem a balista e principalmente o
onagro. A temperatura elevadíssima da região também iria
exercer fator contribuinte para que os soldados romanos se
desgastassem mais rapidamente. E logo após todos estarem em
comum acordo enviaram um mensageiro a rainha Dawa.

- Rainha Dawa está aí nos portões do palácio um homem que se


diz mensageiro da princesa Kabenna.

- Faça-o adentrar ao palácio e envie meu mensageiro até o


governador Marcius e peça que venha ao palácio. Ordene que o
comandante Hawadi venha até os meus aposentos quero falar-
lhe em particular.

- O que deseja com a rainha servo infiel?

- Peço permissão a rainha para entregar-lhe uma carta da


princesa Kabenna. Está endereçada aos seus cuidados.

- Entregue ao comandante Hawadi e pode ir.

- O que está escrito aí Comandante Hawadi?

220
- Aqui diz que o exército da princesa Kabenna aguarda suas
tropas para uma batalha na Planície de Dancalia. Quais são as
suas ordens rainha Dawa?

- De quantos homens ainda dispusemos sob nosso comando?

- Cerca de uns dez mil homens nobre rainha.

O comandante então leu a carta na íntegra para a rainha e ela


pela primeira vez não sentiu ódio da sua sobrinha, sabia que o
curso da história estava sendo reescrito. Levou o comandante
aos seus aposentos antes que o governador chegasse e então
firmaram um pacto.

- Serva vá e avise que o governador já se encontra no palácio.

- Sim meu senhor! Sirva-se de um pouco de suco.

- Seja bem-vindo governador Marcius. Peço que leia esta carta


que me foi endereçada e decida que ação irá tomar.

- Que ousadia desses revoltosos! Vou dizimá-los da face da


terra de uma vez por todas e não vou errar ao arrancar a cabeça
dessa princesa Kabenna! Não sabem que Roma são os senhores
da terra? Não provaram do nosso aço? Então multiplicarei por
dez minha ira e os farei implorar por suas vidas medíocres.

221
- Bem nobre governador Marcius já presumia qual seria a sua
resposta. Então de antemão disse ao mensageiro que
aceitávamos o chamado de guerra e que no dia pactuado para o
combate estaríamos lá.

- Comandante Hawadi quantos soldados você acha que eles


possuem?

- Não muitos, nobre governador. Calculo que no máximo uns


quatro mil homens.

- Quantos dias de caminhada até o local?

- Uns sete dias excelência.

- É o suficiente para me planejar. Vou mandar meu mensageiro


ao general Naevius para que se junte a mim na Planície de
Dancalia. Ele está em uma incursão mais a norte e com isso
ganho mais três mil homens para massacrar esse bárbaros. Que
este dia nunca seja esquecido por vocês pois verão o poderio
romano.

O exército da princesa Kabenna havia chegado a Dancalia três


dias antes da batalha e acamparam do lado oeste. O nervosismo
era evidente e não podiam deixar que o moral da tropa fosse
atingido, então todos se encorajavam mutuamente com cânticos
de guerra e história dos seus ancestrais.
222
- Meu pai estou preocupado, pois não vejo os homens do rei
Lagabora. Mas preciso ter fé de que estão a caminho. Dizia
Awash sem transparecer preocupação ao restante dos seus
amigos.

- Meu filho já estamos aqui e isso é o que importa. Se formos


derrotados daqui a três dias, teremos feito o melhor e se
ganharmos é porque o melhor foi feito. Olha a sua volta, todas
essas pessoas estão aqui lutando ao nosso lado porque
acreditam na nossa causa.

- Espero que a princesa Kabenna e os homens tenham chegado


bem. Confiemos em Deus!

As horas demoravam a passar e no dia que antecedia a grande


batalha Awash em grande angústia clamava a Deus por direção
quando recebeu a notícia de que um de seus espias havia visto
que os soldados com roupas e carros de guerra estavam vindo
na direção do acampamento e então seu coração foi tomado de
grande alegria.

- Boa tarde nobres amigos! Procuro por Awash, ele se encontra


entre vocês?

- Eu sou Awash nobre comandante e agradeço ao bondoso


Deus que tenham chegado. Se juntem a nós e descansem.

223
- O rei Lagabora manda suas saudações.

Na outra extremidade o exército romano tinha fixado


acampamento, mas devido ao solo irregular tiveram que abrir
mão dos carros de guerra e que partiriam para o combate corpo
a corpo. Estavam em bem maior número, eram cerca de nove
mil homens sob o comando do governador Marcius.

- Só podem estar beirando a loucura! Olhe general Naevius,


quantos homens acha que eles têm?

- Nobre governador Marcius não mais de três mil homens! Será


um banho de sangue, mas sangue deles.

- Onde estão os homens da rainha Dawa? Mulher imprestável e


repulsiva já devia ter presumido tal afronta contra Roma.
Amanhã passarei a fio de espada seu comandante e muitos de
seus soldados como punição por tamanha ousadia e omissão.
Dizia em tom de menosprezo o governador Marcius.

- Me tragam vinho, pois já comemoro a certeza da vitória! Ave


Cézar! Brindavam os oficiais romanos.

224
CAPÍTULO XII

O TERCEIRO MILAGRE
A noite Awash estava deitado e olhava ao longe as luzes das
tochas do acampamento romano e orava a Deus por ajuda, pois
só Deus poderia lhes conceder a vitória naquela situação e
todos sabiam disso, mas estavam felizes por estarem ali e
fazerem parte daquele pequeno grupo. Eis que algo
sobrenatural aconteceu.

- Awash! Awash! Levante-se.

- Quem me chama?

- Awash levante-se e venha até aqui, siga o som da minha voz!

E Awash seguiu aquela voz e já tendo se afastado certa


distância de onde estavam acampados pôde ver um homem com
uma veste tão branca que era mais radiante que qualquer tecido
que já tinha visto. No lugar do seu rosto ele só conseguia ver
uma luz mais brilhante que o sol e carregava uma espada
flamejante em sua mão direita. Amedrontado caiu de joelhos e
não conseguia olhar para o anjo e temeu grandemente.

- Awash o senhor Deus sondou o vosso coração e viu


sinceridade em você.
225
- Oh meu senhor obrigado por reparar no seu servo. Não sou
digno de olhar-te nem de ouvir tua voz meu senhor!

- Awash amanhã o senhor Deus pelejará ao seu lado, mas faça


exatamente o que eu vou te ordenar fazer!

- Meu senhor farei conforme me ordenar!

E então após o anjo do Senhor se retirar Awash voltou ao


arraial e até o amanhecer nada falou a ninguém sobre o que
havia acontecido. Todos se levantaram a primeira luz da
alvorada e se preparam para a batalha. E ordenou Awash que
ficassem todos perfilados lado a lado e fizessem exatamente o
que mandasse.

Do outro lado da planície os soldados romanos já davam certa a


sua vitória e muitos ainda se embriagavam mesmo o dia ainda
começado a pouco tempo.

- General Naevius preparem os homens iremos atacar, quero


acabar logo com esse teatro. Dizia o governador Marcius ainda
com um copo de vinho a mão.

- Todos em formação e a minha ordem comecem a ofensiva!


Bradava aos quatro ventos o general Naevius.

226
- Meus amados irmãos hoje o Senhor Deus pelejará ao nosso
lado. Este Deus também nos fez povo seu pela sua infinita
graça e misericórdia e não mais devemos adorar a outros deuses
a partir de hoje, pois éramos ignorantes no tocante a vontade de
Deus, mas hoje não o somos mais. Hoje o Altíssimo se
manifestará de modo sobrenatural e nada devemos temer,
apenas confiar nas suas fortes mãos. Os nossos inimigos são
inimigos de Deus, pois usam como escudo a injustiça e como
estandarte a arrogância. Agora ouçam com bastante atenção ao
que vou dizer. Cada homem deve pegar com sua mão direita
um punhado de areia e segurar firmemente. Ao meu sinal todos
juntos iremos abrir nossas mãos e assoprar essa areia na direção
do exército a nossa frente e se maravilhar com o que Deus fará
diante dos nossos olhos e dos olhos dos nossos inimigos. E
digamos bem alto: “QUEM PODE CONTRA OS BRAÇOS
FORTES DO SENHOR?”.

- Infantaria! Ataquem sem misericórdia! Gritou o general


Naevius

Então os soldados romanos começaram a ofensiva e se


colocaram em nossa direção e sua marcha fazia-se sentir
através da vibração no solo. Seus gritos de guerra ecoavam,
mas nenhum homem temeu nem saiu de seu lugar e

227
aguardávamos a ordem de Awash pacientemente. Então quando
os soldados romanos atingiram certa distância de nosso exército
Awash gritou fortemente: “AGORA! ASSOPREM COM
TODA A SUA FORÇA!”. E em seguida em uníssono todos
gritaram a frase que Awash havia ordenado que se falasse. E
para assombro de todos uma forte tempestade de areia formou-
se diante do exército e era tão densa que nada se via através
dela e foi em direção as tropas romanas, porém Awash mandou
que esperássemos o momento certo para atacá-los.

A tempestade atingiu os soldados romanos e os cegaram e


muitos foram sufocados pela areia e ficaram desnorteados e não
mais sabiam em que direção estava o oponente. Assim que a
tempestade começou a se dissipar Awash ordenou que
atacássemos. E todos correram com suas espadas e lanças em
punho e continuaram a batalha que Deus havia iniciado. Os
soldados romanos com suas visões embaçadas não conseguiam
se defender e foram sendo mortos um a um e o exército da
princesa Kabenna avançou sobre a poderosa e invencível legião
romana.

Do alto de uma escarpa o governador Marcius assistia perplexo


o que acabara de presenciar e não conseguia compreender e
assimilar o que estava acontecendo e ordenou que o restante de

228
sua guarnição descesse e fosse ao campo de batalha, mas a
areia soprada por Deus havia deixado o solo instável e muitos
dos soldados ficavam presos na areia e não conseguiam se
locomover. O exército comandado por Awash avançava e a luta
era ferrenha e o governador já admitia a possibilidade de uma
retirada. Contudo pelo seu orgulho ordenou que continuassem
em campo.

Antes do final da tarde quase todo o exército romano havia sido


dizimado. Então o governador Marcius não tendo outra solução
bateu em retirada com apenas cem dos seus nove mil soldados.

- Louvado seja o Senhor Deus por guerrear a nosso favor!

- Devemos segui-los Awash?

- Não Ubbi- Ubbi nossa batalha termina aqui. Eles jamais se


esquecerão do poder do nosso Deus. Deixem que partam.

Mesmo tendo perdido muitos homens nada se podia comparar


as perdas romanas. Caíram naquele dia cerca de quinhentos
soldados da parte do exército da princesa Kabenna e tal fato
evidenciava que estavam sob potente proteção. Awash pediu
que um mensageiro fosse enviado até a princesa Kabenna para
lhe dar a notícia acerca da vitória alcançada em Dancalia.

229
E ao fim do dia ao último raio do sol todos se ajoelharam e
renderam graças ao Deus Eterno por lhes ter conduzido e por
ter estendido seu amor e graça a outros povos. E houve grande
brado de vitória e festejaram aquela noite.

- Princesa Kabenna já é o terceiro dia, o que devemos fazer?

- O dia ainda não terminou meu amigo, tenhamos fé!

- Olhe princesa kabenna, lá vem um homem à cavalo e me


parece ser um dos nossos.

- Princesa Kabenna eis que trago boas novas, nosso exército


sob a potente mão do Altíssimo derrotou o exército romano e
foi algo tremendamente maravilhoso. O comandante Awash
disse para seguir com o plano.

- Obrigado meu amigo! Obrigado Deus Altíssimo por repousar


sobre nós sua amizade e afeto, louvar-te-ei por toda a minha
vida. Meus amigos agora façamos a nossa parte com cautela,
pois mesmo que a cidade esteja vazia, ainda terão soldados
fazendo a segurança da rainha Dawa. Sigamos em frente!

Porém ao saírem do local onde aguardavam o mensageiro


chegar foram surpreendidos pelo exército da rainha Dawa e
foram cercados por todos os lados e se viram em difícil
situação.
230
- Não quero matá-los aqui e agora, acalmem-se e me tragam a
princesa Kabenna, pois sei que está convosco. Disse o
comandante Hawadi.

- O que deseja comigo comandante?

- A rainha Dawa deseja lhe falar a sós. Fale com seus homens
que fiquem aqui. Ao amanhecer eu virei e pessoalmente lhe
conduzirei até o palácio.

- Estou de acordo comandante. Creio que Deus não nos deixará


perecer após termos chegado até aqui.

Porém naquela mesma noite o governador Marcius havia


chegado ao palácio vindo da sua vexatória derrota no deserto e
pediu aos soldados que ali estavam para irem chamar a rainha
Dawa. Contudo ao se virarem para irem chama-la o governador
possesso de grande ódio os atacou e os matou e se colocou na
direção dos aposentos da rainha. De sobressalto fez o mesmo
com os soldados que estavam à porta do aposento real. E entrou
lentamente no quarto da rainha.

- Rainha Dawa como está se sentindo hoje? Tenho ótimas


notícias para lhe dar.

- Se aproxime meu nobre governador. Sente-se aqui, pois me


sinto muito fraca para me levantar.
231
O governador retirando sua faca lentamente da cintura foi em
direção ao leito da rainha e ao rasgar o véu reconheceu que
quem estava na cama não era a rainha e sim uma serva sua. A
rainha saindo por de trás de uma pilastra que ficava próxima ao
leito o atacou e o feriu com um punhal nas costas e o
governador caiu ferido aos seus pés.

- Ainda não morri seu verme romano! Eu sou a rainha da


Abissínia!

- Sua mulher desprezível! O que fizeste comigo? Acaba de


sentenciar todo o seu povo a morte.

- Morra verme romano!

Em seguida cortou-lhe a garganta e o sangue do governador


Marcius se esvaía pelo mármore do piso. A serva que a
acompanhava a levantou do chão e deitou-a em seu leito e se
pôs a fazer o que a rainha lhe sussurrara aos ouvidos.

- Comandante Hawadi aconteceu algo no palácio e a rainha


Dawa pede sua presença e que leve a princesa Kabenna com o
senhor.

- Assim farei. Avise que já estou a caminho. O que aconteceu


no palácio?

232
- É melhor ver pessoalmente meu senhor.

- Princesa Kabenna, vamos à rainha nos aguarda no palácio.

- Tudo bem comandante, só lhe peço um minuto para falar com


os meus amigos. Peço que fiquem aqui e nada tentem fazer,
confiemos na palavra do nobre oficial. Deixo-vos a paz de Deus
que até aqui nos tem suprido e sustentado.

A cidade estava completamente vazia, nas ruas só haviam


soldados da rainha e alguns pedintes que não tinham onde se
refugiar. O silencio sepulcral tornava aquele dia ainda mais
cinzento e triste. Ao avistar o palácio a princesa se entristeceu
pois até seus lindos jardins tinham perecido, era como se
alguma calamidade tivesse recaído sobre o lugar.

- Alteza o comandante Hawadi está à porta!

- Mande-o entrar.

- Com sua permissão rainha Dawa a princesa Kabenna está aí


fora. O que deseja que eu faça?

- Peça-a para entrar comandante Hawadi.

- Bom dia minha tia. O que houve com a senhora e o que deseja
comigo?

233
- Aproxime-se e sente-se aqui, o que tenho não é contagioso.
Peça ao comandante Hawadi que venha junto, pois quero que
seja testemunha da minha vontade. Não precisa temer por sua
vida.

- Como desejar minha tia! Comandante por favor me


acompanhe.

- Estou morrendo e não sei quanto tempo me resta, mas ainda


dá tempo de tentar corrigir algumas das minhas insanidades. Eu
matei minha irmã por ciúmes e inveja, destruí minha família
por cobiça e sede de poder, me deixei influenciar por pessoas
que não cultivavam nem comungavam dos nossos valores e
pratiquei todos os tipos de libertinagem com o intuito de saciar
meus desejos. Enfim eu destruí a sua vida e a vida dos seus
amigos.

- Minha vida está desde o dia do meu nascimento nas mãos de


Deus minha tia e foi só por isso que ainda estou viva.

- Me permita continuar, quero que seja a rainha desse reino e


seja justa e bondosa para com o povo que foi quem mais sofreu
com minhas injustiças. Aqui ao meu lado está escrito meus
últimos desejos e o principal é que a partir da minha morte você
seja coroada a nova rainha da Abissínia.

234
- Me entristece vê-la assim tia Dawa. Não queria que
terminasse seus dias de maneira tão triste. Ainda somos sangue
do mesmo sangue e por mais que me tenha dado motivos para
odiá-la não consigo nutrir tal sentimento por você.

- Antes que me vá me diga que estou perdoada para que possa


atravessar para o outro lado em paz. Você poderia me perdoar?

- Aprendi que o único Deus ao qual devemos adoração não


abandonou o seu povo pela sua desobediência, permitiu que
fossem provados, mas no final os perdoou e libertou. Da
mesma forma eu não poderia deixar de lhe conceder o mesmo
perdão. Eu te perdoo minha tia.

Após ouvir que sua sobrinha a havia perdoado pegou a coroa e


a entregou e com lágrimas em seu rosto inclinou sua cabeça e
cerrou seus olhos e não mais voltou a abri-lo. O comandante
Hawadi reconheceu a vontade da rainha Dawa e a legitimidade
ao trono da princesa Kabenna. Então se ajoelhou e se colocou
sob seus serviços.

- Comandante Hawadi peço que envie soldados ao lugar que


nos encontrou e liberte meus amigos que lá ficaram. E que vá
pessoalmente a Planície de Dancalia e entregue a carta que irei
redigir a Awash e que o peça para ler em voz alta a todos.

235
- Assim farei minha rainha Kabenna!

Conforme a rainha Kabenna o ordenou assim fez o comandante


e seguiu viagem até o lugar que o exército repousava.

- Alto aí! Quem é você?

- Sou o comandante Hawadi e procuro um homem por nome


Awash. Tenho uma carta aqui para ele da parte da rainha.

- Awash está lá fora um homem que deseja lhe falar, disse que
tem uma carta da rainha para ser entregue a você.

- Deixe que entre o homem.

Ao ler a carta escrita pela sua amada princesa Kabenna abraçou


a todos que estavam com ele na tenda e chorava muito, pois
estava tomado de grande emoção.

- Atenção homens peço que façam silêncio. Ouçam o que esta


carta da princesa Kabenna diz:

- “Meus amigos que combateram bravamente e que se


sacrificaram por uma justa causa, hoje faleceu a rainha Dawa e
assim sendo herdei a coroa do Reino da Abissínia. Jamais
teríamos conseguido se Deus não tivesse agido em nosso favor
e desde agora o teremos como o único Deus diante de nós. Meu
reino estará alicerçado sob sua justiça e equidade e voltaremos

236
a ser uma nação próspera e livre das opressões daqueles que
detém o poder e fazem uso de tal poder em benefício próprio.
Estes serão tirados do nosso meio, venham a capital do reino e
regozijemo-nos.”

Todos se confraternizavam e agradeciam a Deus por estarem


livres das maldades da rainha Dawa e muitos brindaram a sua
morte. Awash abraçava seu pai e Ubbi-Ubbi e pulavam de
felicidade. E se puseram a caminhar na direção da capital
Axum.

Passados alguns dias após a chegada do exército na capital foi


marcado o dia para celebrarem a coroação da princesa
Kabenna. A princesa havia pedido que o mesmo que fosse
servido aos que iriam estar no palácio também fosse servido a
quem quisesse nas ruas de Axum e na praça da cidade foi
montada uma grande mesa. No dia de sua investidura ela estava
deslumbrante como jamais ninguém havia visto, lembrava
muito sua mãe, a rainha Shebelle.

- Minha rainha Kabenna poderia lhe falar?

- Meu amado você não precisa me pedir permissão para tal


coisa. Mas o que deseja me falar Awash?

237
- Não posso dar-te um herdeiro Kabenna e nem ao menos te
conceder prazer por tal monstruosidade que Dawa me fez.
Como poderia eu viver ao teu lado? É muito difícil para mim,
espero que compreenda minha posição.

- Não me importa nada do que me dizes Awash, você é o


homem que eu escolhi para viver ao meu lado e ser meu rei e
eu sua rainha. Do que me adianta ter prazer sem ter amor? Meu
ventre é seco como o deserto de Danakil.

- Peço-te que após colocarmos as coisas em ordem me conceda


um tempo para pensar no assunto e também aproveitarei este
tempo que me der para ir além do grande Mar Vermelho pois
existem coisas que ainda não compreendo totalmente sobre as
promessas do nosso Deus.

- Que se faça conforme tu desejar meu amado!

E estavam no palácio todos os seus amigos e aqueles mais


próximos que combateram ao seu lado. Como convidado de
honra estava ali também o rei Lagabora e sua comitiva, e
também muitas autoridades de outros reinos vizinhos. Todos se
maravilhavam pelo reino possuir tão linda rainha e viram que
ela seria justa diferentemente da sua antecessora. E então foi
pedido que Ganale Dorya repousasse sobre sua cabeça a coroa
que já pertencera a sua mãe, a rainha Shebelle. E após a
238
cerimônia de coroação foi a sacada do palácio para se dirigir ao
povo.

- Meu povo, meus amigos e nobres visitantes. Hoje se inicia


uma nova era em nossa história, não adianta alimentarmos o
ódio provocado por dias difíceis e decisões equivocadas e
desprovidas de sentido e amor. Juntos podemos tornar a
Abissínia grande novamente, mas não maior que nosso Deus
Eterno, pois foi este Deus que nos permitiu chegar até este
ponto. Tenhamo-lo como nosso único e verdadeiro Senhor e
assim nossas terras serão abençoadas. Não mais iremos permitir
que nossas crianças sejam prostituídas ou que outras mulheres o
façam pois tal prática é ofensiva a Deus. Tudo o que foi tirado
de vocês tentaremos devolver, a cada um aquilo que lhe é
devido. Não façamos para nós esculturas de deuses que nada
podem fazer eu vos peço. Confiemos em Deus. E para concluir
saibam que este não é o meu reino, mas o reino de todos vocês.
Trabalharemos unidos para reerguer uma nova Abissínia. Que a
paz de Deus esteja no lar de cada um e em cada coração.

239
CAPÍTULO XIII

FILIPE E O EUNUCO
E Awash liderou uma equipe que percorreu todo o reino para
fazer a contabilidade de todas as posses da rainha e libertar
todos os que estavam em campos de trabalhos forçados por
causas injustas. Muitas famílias foram unidas novamente, mas
infelizmente muitos também haviam perecido. Procuraram
reparar todas as aberrações praticadas pela rainha Dawa e na
sua grande maioria muitos do povo receberam suas terras de
volta além de grãos para retomarem o cultivo de suas terras.

E foi banido de todo o reino da Abissínia adoração a outros


deuses e templos pagãos foram derrubados bem como práticas
de magias, coibidas. Enfim, tentaram reparar o mal feito e em
parte conseguiram. Entretanto Awash antes de partir em sua
viagem queria visitar uma pessoa que havia lhe ajudado muito.
E foi ter com aquele homem.

- Atenção homens em posição! Boa tarde senhor, o que deseja


aqui neste lugar esquecido por todos?

- Esquecido por muitos menos por mim meu amigo. Conheço


bem essas minas de Gheralta. Por favor, reúna todos os
soldados e ordene que tirem os escravos da mina e coloquem-
240
nos no campo onde costumam descansar uma vez por mês.
Traga-me aqui o Senhor Weito.

- Sim senhor!

- Permissão para adentrar senhor? Disseram-me que queria


falar comigo.

- Não me reconhece senhor Weito? Sou eu Awash, aquele


homem que lhe retirou dos escombros e o qual o senhor
libertou juntamente com seu pai e seu amigo.

- Meu nobre senhor fico feliz que tenha sido recompensado por
sua bondade pois sempre notei que o senhor e seu amigo eram
diferentes mesmo estando naquele lugar de sofrimento.

- Levante-se meu amigo. Quero lhe pedir mais um favor. Quero


que a partir de hoje só fiquem nas minas aqueles que foram
condenados por crimes graves e que mereçam tal pena. O
restante procure saber o que fizeram e se analisar que foram
submetidos a tal situação injustamente dê-lhes o pagamento por
seu trabalho em ouro e seja generoso. Tenho certeza que será
um Comandante justo. Aqui nesta recomendação está sua
promoção. Confio tal tarefa a você.

- Obrigado por sua confiança e creia que farei conforme


ordenaste.
241
- Então seguirei viagem e deixo-te a paz de Deus. Adeus nobre
amigo.

E seguiu Awash de volta a capital do reino e se preparava para


a grande viagem que pretendia realizar. Em todo o tempo lia
com afinco os textos dos antigos profetas deixados por Gaspar
e se admirava cada vez mais com aquele Deus maravilhoso.

- Nobre amigo Awash quando pretende partir?

- Até o final desta semana Ubbi-Ubbi se tudo acontecer como


planejado. Será uma longa viagem, mas que preciso fazer pois
só assim alcançarei a minha paz interior em sua plenitude. Pois
muito há o que me intriga ainda.

- Permitiria se seu humilde amigo pedisse para lhe


acompanhar?

- Claro meu amigo Ubbi Ubbi. Temos uma história de vida em


comum e essa etapa será apenas mais uma para
compartilharmos futuramente.

No dia seguinte durante a refeição comentou com a rainha


Kabenna que pretendia partir no início da próxima semana e
que seguiria viagem rumo a Judéia que era uma província do
Império Romano mais ao oriente. Dizia que pelas escrituras o
“Messias” do qual os profetas escreveram deveria vir de lá mas
242
não sabia se Ele já havia vindo ou ainda viria em um futuro
próximo ou longínquo. Enquanto não obtivesse respostas a esta
e outras questões não estaria em paz consigo mesmo.
Acreditava nos profetas e em suas profecias e cria que Deus
estaria aprovando sua busca por conhecimento acerca da vinda
do “Rei dos Judeus”.

- Amado Awash bem sei que Deus aprova a sua intenção e


creio que responderá a cada uma de suas inquietações. Não se
demore e volte logo para mim.

- Não haverei de me demorar minha amada rainha Kabenna.


Meu coração e pensamentos pertencem a você.

Chegado o dia de sua partida, Awash e Ubbi-Ubbi se


despediram de todos os seus amigos e seguiram rumo ao
oriente. Pretendiam ir com seus camelos até o porto deste lado
do Mar Vermelho e de lá pegariam uma embarcação que os
levassem até o Porto de Joppa. Era uma viagem longa e com
muitos perigos, mas estavam dispostos a correr qualquer risco
para descobrir a verdade acerca do Messias de Deus.

- A paz nobre amigo. Qual destas embarcações irá partir a


Jopa?

- Pergunte ao despachante do porto, ele saberá lhe informar.

243
No cais do porto encontraram um homem sentado e que
controlava todas as embarcações que entravam e saíam do
porto.

- Olá nobre amigo me chamo Awash e este é meu amigo Ubbi


Ubbi, estou procurando uma embarcação que nos leve até o
porto de Joppa. Poderia me ajudar?

- Por acaso vocês possuem dinheiro?

- Sim meu senhor! Respondeu Ubbi Ubbi balançando o alforje


que carregava junto à cintura.

- Pois bem. Acompanhem-me. Esta embarcação os levará até o


seu destino. Aguardem aqui no cais enquanto falo com o
comandante do navio.

- Assim faremos nobre senhor! Respondeu Awash apreensivo.

- Deram sorte forasteiros. O comandante concordou em levá-


los. Ele os aguarda no passadiço. Façam uma boa viagem.

- Com sua licença comandante. Somos aqueles que irão viajar


em vosso navio. Agradeço por sua ajuda.

- Essa viagem irão lhes custar 10 moedas de prata. Dispõem


deste montante?

244
- Sim nobre comandante. Ubbi Ubbi entregue o dinheiro ao
capitão.

- Obrigado senhores. Bem, forasteiros peço que desçam ao


convés inferior, pois assim que desatracarmos e estivermos a
uma certa distância do litoral o mar ficará bravio demais.
Segurem-se em algo que esteja amarrado em cordas. Somos um
navio de carga e não de transporte de passageiros. Espero que
compreendam.

- Entendi capitão, não queremos atrapalhar a tripulação.

E realmente o mar ficara revolto e as ondas jogava a


embarcação para onde desejasse. Éramos como uma folha solta
ao vento e aquela tempestade nos desviou do nosso destino. O
comandante se viu obrigado a desviar a embarcação para reparo
no porto mais próximo, e resolveu atracar no porto em Sidom.

- Peço desculpas por não poder lhes levar até Jopa, mas foi por
motivo de força maior. Se preferirem devolvo parte do valor
que me deram.

- Não há necessidade comandante. Agradecemos por sua


generosa hospitalidade e peço a Deus que os ajudem e que
possam seguir viagem em breve. Agradeceu Awash.

245
- Então me permita orientá-los por estas terras. Existe uma
hospedaria no final do cais antes da entrada da cidade, neste
lugar muitos comerciantes e peregrinos formam uma caravana
com o intuito de evitar saqueadores durante a viagem até a
cidade de Tiro. Vocês podem ir com eles.

- Muito obrigado pela informação. Que Deus esteja contigo! E


se despediram daquele homem.

Fizeram como o capitão lhes instruiu e seguiram com a


caravana até a cidade de Tiro. Permaneceram naquela cidade
por algum tempo e começavam a aprender sobre os costumes
locais. E em todo o lugar observava que homens faziam outros
homens escravos e os mais fracos eram dominados e não mais
tinham nomes, direitos ou sonhos, pois todos eram iguais
perante aquele regime escravocrata chefiado pelos romanos, os
senhores da terra.

De Tiro foram rumo a cidade de Dã onde fica o Monte


Hermom. Durante seu deslocamento pelo caminho que passava
aos pés daquele monte notaram uma grande multidão indo na
direção do cume.

- Com licença senhor, o que fazem todas estas pessoas irem na


direção do alto deste monte?

246
- Vejo que não conhece a história do nosso povo. Aqui no cume
deste santo monte o Senhor Deus prometeu ao nosso pai
Abraão que ele seria pai de muitas nações por não ter lhe
negado seu filho Isac. E todos os anos fazemos esta viagem
para relembrar as promessas de Deus para o seu povo.

E se maravilharam e também foram adorar no alto do monte.


De Dã foram para a cidade de nome Astarote e peregrinaram
por muitas outras cidades até que resolveram ficar por alguns
dias na cidade de Maanaim às margens do rio Jaboque. Na
cidade havia uma sinagoga, mas foram advertidos que não
poderiam entrar, pois não eram judeus e também incircuncisos.
Compreenderam a advertência e permaneceram ao lado de fora
da sinagoga onde ouviam que liam a Torá. Awash compreendia
algumas partes da leitura e seus pensamentos o remetia à
Gaspar e agradecia silenciosamente por lhe ter iniciado na
língua nativa deles.

Continuaram a viagem seguindo o rio Jordão até chegarem em


Jerusalém que era o epicentro da fé judaica e notaram que
aquela cidade era diferente de todas as outras na qual tinham
estado. Aquele lugar possuía uma atmosfera diferente e por
mais estranho que possa parecer seus corações foram tomados
de um sentimento de grande paz. Havia uma grande

247
concentração de tropas romanas e muito tumulto nas ruas da
cidade. Awash não conseguia entender direito o que falavam
pois se contradiziam em todo o momento acerca de um homem
de Nazaré que havia ou não ressuscitado.

- Awash o que eles estão dizendo? Perguntava atordoado Ubbi


Ubbi.

- É algo sobre um homem, mas não consigo compreender meu


amigo.

- Este lugar está um caos Awash.

- Vamos perguntar a alguém. Bom dia nobre amigo somos


forasteiros em sua terra e poderia nos dizer para onde toda essa
gente está indo?

- Está indo adorar no Monte do Templo. Basta segui-los. Vão


em paz.

- Muito obrigado nobre amigo. Fique também em paz.

E à medida que se aproximavam do Templo maior era o


número de judeus e também a quantidade de soldados romanos,
pois a Fortaleza Antônia ficava bem próxima ao templo. Como
as ruas eram estreitas e mal dava para andar sem esbarrar em
alguém demoraram até chegar ao pórtico principal do templo.

248
- Ubbi Ubbi sentemo-nos nas escadarias do templo para
descansar um pouco e observar melhor este lindo lugar de
adoração.

- Com certeza nobre amigo Awash, minhas pernas não estão


mais aguentando, além de estar muito quente.

Mas algo lhes chamou a atenção...

- Shalom Adonai! Não acreditem nesses escribas e fariseus, são


todos hipócritas, pois intentaram matar o meu Senhor, mas Ele
ressuscitou dentre os mortos e vive para sempre.

- Ei nobre amigo de quem o senhor está falando?

- Vocês estão há pouco tempo na cidade?

- Sim senhor! Mas quem é esta pessoa a qual se refere?

- Falo acerca de...

Porém guardas do templo o viram e tentaram prendê-lo, mas o


homem sumiu em meio à multidão e não mais o viram.

- Forasteiros o que aquele homem vos disse? Indagou um dos


guardas do templo

- Nada demais senhor! Respondeu Awash.

249
- Não podem ficar sentados na escadaria do templo. Se vieram
oferecer holocausto ao nosso Deus, o façam e vão embora.

- Sim senhor, não iremos nos demorar. Desculpem-nos.

Decidiram que já era chegada a hora de retornar para sua terra e


rever seus amigos, pois a saudade era muito grande. Porém
Awash ainda não havia encontrado a resposta para as suas
perguntas, mas em parte os dois estavam felizes.
Encaminharam-se a um comerciante e indagaram-no de como
poderiam adquirir um meio de transporte que os levassem ao
porto mais próximo. Foram orientados a comprarem uma
carroça e a pegar o caminho que era mais deserto pois se
fossem andando demorariam muito tempo para chegarem no
porto de Gaza, já que de lá seguiriam viagem pelo grande mar
até o porto de Assab. E assim seguiram as orientações daquele
comerciante.

Em um dado momento da viagem algo surpreendente lhes


aconteceu, um episódio que mudaria para sempre suas vidas e
que abririam seus olhos e seus entendimentos acerca da
imensurável graça e amor oriundos da parte de Deus.

- Ubbi-Ubbi ouça esta passagem do profeta Isaías: “Foi levado


como ovelha para o matadouro e, como está mudo o cordeiro
diante do que o tosquia, assim não abriu a sua boca. Na sua
250
humilhação negaram-lhe justiça. Quem contará a sua
geração? Pois a sua vida é tirada da terra.” Por mais que leia
não consigo interpretar.

- Bom dia viajante. Entendes o que lês?

- Como poderei entender nobre amigo se alguém não me ajudar


a compreender?

- Desejas entender realmente aquilo o que as escrituras dizem


acerca do Ungido e Messias de Deus?

- Sim meu nobre amigo, suba, por favor, e me ajude a entender.


Pois não consigo discernir de quem o profeta está falando nesta
e em outras passagens, se é de si mesmo ou de outra pessoa.
Me chamo Awash e este é meu amigo Ubbi-Ubbi.

- Imenso prazer em conhecer-vos, me chamo Filipe. As


escrituras desde o início anunciavam a vinda do Rei dos reis, o
Cristo, que o Pai que está nos céus nos enviaria para nos
libertar e salvar. E esta profecia já se cumpriu na pessoa de
Jesus de Nazaré.

- Então este Jesus do qual me falas é o Messias? Este que a


quem as escrituras se referem?

251
- Sim, este mesmo. Nasceu em Belém da Judéia assim como
está escrito no livro do profeta Miquéias: “Mas tu Belém
Efrata, posto que pequena para estar entre os milhares de
Judá, de ti é que me sairá àquele que há de reinar em Israel, e
cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da
eternidade.”.

- Mas veio para libertar-vos de quem, seria dos romanos?

- Jesus Cristo veio para nos libertar do pecado. Este é o nosso


principal inimigo, pois é a arma de Satanás para a condenação
eterna do homem. Desde que o homem foi expulso do paraíso
vem sofrendo as consequências por suas escolhas e cada vez
mais está se afastando da graça de Deus. Assim como o pecado
veio ao mundo por um homem assim deveria ser derrotado por
um homem. O pecado nos cega e nos mantém cativos e
impedem de nos relacionarmos com Deus de maneira pessoal.

-Estou começando a entender meu nobre amigo Filipe. Fale-me


mais sobre Jesus. Você o conheceu de forma pessoal?

- Jesus durante seu ministério nesta terra escolheu para si doze


discípulos que iriam lhe auxiliar na propagação do evangelho
da salvação. E eu era um destes afortunados. Por mais ou
menos três anos peregrinamos por várias cidades pregando aos
homens da necessidade de se arrependerem de seus pecados e
252
acerca do reino dos céus. Jesus nos dizia que o reino dos céus
não é algo visível ou palpável às mãos, mas está dentro de nós.
Jesus curou e ensinou em todos os lugares que andou, mas
mesmo assim os fariseus tendo os profetas por testemunhas não
receberam como o Enviado de Deus.

- Mas onde está Jesus agora?

- As palavras de Jesus continham aquilo que eles mais odiavam


que era a verdade, pois dizia que o reino dos céus pertenciam
aos menores, aos humildes, homens e mulheres rejeitados pelos
principais do sinédrio. Advertia que Deus não necessitava de
sacrifícios, mas de corações sinceros e contritos. Não
suportando a verdade lhes emboscaram no Getsêmani com a
ajuda de Judas Iscariotes, que era um dos nossos, e lhes
prenderam e o surraram. Mentiram ao governador romano e o
induziram a condená-lo à morte e assim foi feito. Meu Senhor
Jesus foi crucificado no gólgota. Mas tudo isto aconteceu para
que se cumprissem as escrituras meus amados amigos Awash e
Ubbi-Ubbi.

- Amado amigo Filipe agora começo a compreender sobre


muitas coisas. Continue, por favor! Falava Awash maravilhado.

- Pois bem, estava escrito que no terceiro dia após sua morte
Ele ressuscitaria dentre os mortos. E eis que aconteceu o fato
253
mais fantástico do qual temos notícias, Cristo ressuscitou e
esteve em nosso meio por mais quarenta dias nos preparando
para levar sua palavra de salvação a começar pela Judéia,
Samaria até os confins da terra. Deu-nos autoridade para batizar
todos aqueles que acreditassem na sua mensagem e o
fizéssemos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E
assim lhes seriam estendidas juntamente conosco o direito a
salvação eterna.

- Filipe eu acredito de todo o meu coração que Jesus de Nazaré


é o Cristo, o Salvador de nossas vidas. Olha, ali há água será
que eu também poderia ser batizado?

- Se crerdes de todo o seu coração não há nada que o impeça de


ser batizado.

Então pararam o carro e entraram naquele pequeno lago que


havia se formado naquele lugar e foram batizados por Filipe e
se alegraram sobre maneira que sentiam a necessidade de
compartilhar com outras pessoas o que haviam descoberto.

- E não se esqueçam amados amigos das palavras do próprio


Cristo: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de
toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de todas as tuas
forças e amarás o teu próximo como a ti mesmo.”

254
Ao saírem do lago foram trocar-se e ao procurarem Filipe não o
encontraram. Em um primeiro momento se assustaram, mas
logo descobriram que Deus o havia colocado ali naquele
caminho apenas para lhes trazer a verdade acerca de Cristo e do
seu plano de salvação para toda a humanidade e sentiam que
algo diferente havia lhes acontecido. E seguiram viagem ao
porto de Gaza. Ao se aproximarem do porto viram uma família
em grande dificuldade, pois o animal que puxava a carroça
havia morrido e se sensibilizaram. Descendo de seu carro o deu
aquela família e que fizessem bom uso dele e dos animais e
seguiram a pé até o cais.

- Ubbi-Ubbi meu nobre amigo, meu coração me impele a fazer


uma coisa, algo que não saberia lhe explicar. Não compre duas
passagens para irmos para casa, mas apenas uma.

- Não entendi amigo Awash! Como assim apenas uma? E você?

- Eu não irei com você, mas seguirei até Roma. Preciso saber se
minha mãe ainda vive ou se já está morta.

- Tem certeza disso nobre amigo Awash? Já se passaram


muitos anos, talvez fosse melhor esquecer-se do que reviver
tudo novamente e abrir essa ferida que já está quase que
totalmente cicatrizada.

255
- Se for da vontade de Deus, que assim seja, mas preciso fazer
isto. Ao chegar em casa diga ao meu pai e a minha amada
rainha Kabenna que não se preocupem comigo, pois Jesus de
Nazaré está comigo.

E então se despediram e cada um entrou em uma embarcação


com destinos diferentes. Awash via seu amigo se distanciar
cada vez mais até sumir no horizonte. Entretanto sua vontade
de ter notícias de sua mãe era maior que qualquer coisa naquele
momento, nem o amor e a saudade que sentia da rainha
Kabenna seriam suficientes para lhes tirar do seu objetivo.
Procurou um lugar na popa da embarcação e sentou-se e
colocou-se a ler os livros dos profetas.

- Olá nobre amigo! Indo a Roma?

- Bom dia meu amigo. Sim. E você?

- Procurando alguma coisa em específico tão longe da sua casa?


Já não encontrou aquilo que procurava?

- Como sabes o que estou a procurar? Minha busca ainda não


está completa.

- Apenas saiba que onde quer que andes o Senhor estará a sua
dianteira pois crestes no nome do Unigênito filho de Deus, que
é Cristo o Senhor. Jamais tema coisa alguma e não aparte de
256
seus lábios suas palavras que aprendeste através do meu servo
Filipe.

- Quem és tu meu senhor?

- Vá em paz e que Deus o acompanhe!

257
CAPÍTULO XIV

O REENCONTRO
E da mesma forma que aquele homem surgiu ao seu lado
naquela embarcação ele também desaparecera. E Awash se
maravilhou com suas palavras, pois serviram de alento ao seu
coração. Alguns dias depois estava no porto de Ostia Antica.
Desembarcando pôs-se a procurar por uma prisão romana por
nome Mamertina e logo foi informado a que direção seguir. Foi
a pé pois queria evitar chamar a atenção e se misturou a outros
viajantes que estavam tomando a mesma direção. Seus pés
pisaram nas pedras da via Àpia e seus olhos puderam se
maravilhar com a arquitetura do Coliseum Romano. Era o
centro do mundo e havia uma miscelânea de povos e línguas
naquele lugar. Porém pensava em como conseguir uma
informação daquelas num lugar como aquele, mas Deus estava
guiando os rumos de sua história.

Viu então dois soldados que faziam ronda e lhes inquiriu acerca
da prisão, contudo os soldados não lhe deram atenção.

- Olá nobre estrangeiro, vejo que procuras pela prisão


Tullianum? Chamo-me Glabrio e por algumas moedas poderia
ajudar.
258
- Poderia eu depositar confiança em ti?

- Nada prometo além de lhe mostrar o lugar que procuras. O


que passar disso lhe custará mais dinheiro.

- Aqui está o seu dinheiro e agora me leve até lá. Confio na sua
palavra.

- Tranquilize-se e me siga!

- Não me apresentei da forma correta, me chamo Awash.

- Obrigado pela moeda gentil Awash e, ali a frente está o que


procuras. Todavia, cuidado quando for se dirigir aos guardas e
não confie neles.

- Obrigado nobre Glabrio. Que Deus o acompanhe.

Havia uma pequena guarnição próxima ao pórtico da prisão e


de tempo em tempo realizavam a troca de guarda. Awash ficou
por um tempo observando a movimentação no local até que
decidiu conversar com um dos soldados que mantinha vigia.

- Permissão para lhe falar nobre senhor, mas procuro por


notícias sobre certa prisioneira. Tenho dinheiro se puder me
ajudar.

- De quanto dinheiro falas forasteiro?

259
- Algumas moedas de prata nobre senhor.

- Aguarde aqui que irei chamar o capitão da guarda.

Voltando o guarda de dentro da prisão foi até Awash e o


convidou a segui-lo até o pátio interno que servia como uma
antessala onde os futuros prisioneiros eram submetidos aos
primeiros castigos e servia como cartão de boas-vindas.

- Capitão, eis o homem que procura por notícias de um de


nossos cativos.

- Aproxime-se viajante. Qual o nome do miserável?

- Se me permite nobre capitão, a prisioneira que procuro é a


minha mãe e se chama Mille. Enviaram-na para cá há muitos
anos atrás vinda de terras além-mar, do reino da Abissínia.

- Guardas revistem o forasteiro.

Após a revista tomaram seu alforje e entregaram ao chefe da


guarda. Então o capitão juntamente com outros guardas
repartiram entre eles tudo o quanto havia nela.

- Onde você acha que está? Forma de vida insignificante e


desprezível. Acha que podes vir do inferno e reivindicar algo
para nós?

260
- Meu nobre senhor vim com boa intenção e não com espírito
de afronta. Caso não seja possível me conceder tal informação
peço que devolva meu alforje que irei embora.

- Verme petulante!! Guardas açoitem-no. Faça-o sangrar.

Retiraram suas roupas e o prenderam na coluna de pedra que


ficava no centro do pátio. Prenderam suas mãos em correntes e
começaram a desferir chibatadas em suas costas.

- Olhe capitão! O maldito nem homem é.

- Tu és eunuco? Pra nada serve realmente. Façam um favor a


este miserável e matem-no e depois levem seu corpo para longe
daqui.

As palavras daquele romano lhe feriram mais do que as


chibatadas que levava. Percebeu naquele momento a pessoa que
realmente era, o homem que nunca poderia ser. E a morte não
lhe parecia assim algo tão terrível. Após longa sessão de tortura
não tendo mais forças sucumbiu perante seus algozes. Os
guardas achando que o tinham matado levaram seu corpo para
fora dos muros da prisão e o descartaram próximo a um bosque
que ficava por trás do Templo da deusa Vesta.

261
Muitas horas mais tarde já a noite despertou e se desesperou
pois estava nu e muito ferido, além de estar em terras estranhas
e sem como poder voltar para casa.

- Senhor Jesus! Acabei de conhecê-lo e já lhe peço que me


ajude neste momento de grande dor. Sei que estás no teu reino,
mas como disse o apóstolo Filipe naquele caminho de que o
Senhor estaria conosco até a consumação dos séculos, te
suplico esteja comigo até meus últimos momentos de vida neste
mundo.

Com muita dificuldade arrastou-se por alguns metros e não


mais suportando tamanha dor virou-se de lado pois não
conseguia respirar e seus braços foram projetados para fora da
mata ficando expostos na estrada que cortava aquele lugar. Foi
quando a extraordinária graça de Deus se fez presente mais
uma vez em sua vida.

- Esposo pare a carroça! Acho que vi alguma coisa na beira da


estrada.

- Arvina minha esposa como podes ver algo nessa escuridão?

- Eu sei o que vi. Pare o carro meu esposo.

- Tudo bem, mas fique aqui que vou verificar o que viste.
Crianças não desçam da carroça e fiquem com sua mãe.
262
Com uma lamparina em mãos ia iluminando o caminho, porém
nada conseguia observar de diferente. Havendo percorrido certa
distância resolveu voltar para onde sua família o estava
esperando e foi quando ouviu o que parecia um gemido.

- Alguém me ajude! Sussurrava Awash.

- Tem alguém por aqui? Se houver alguém aqui responda.

E aquele homem movido por uma força que ele não sabia
explicar decidiu adentrar na mata e ouvia aquela voz cada vez
mais próxima, até que finalmente encontrou Awash caído.

- Por Júpiter!! O que houve com você? Não se mexa que vou
buscar o carro para lhe tirar daqui.

- Não me deixe aqui, por favor! Awash tentava se apegar as


mãos daquele homem.

- Confie em mim e espere um minuto somente.

Voltou rapidamente ao carro e com a ajuda da sua esposa


colocou Awash no seu interior e seguiu até a sua casa. Awash
estava muito ferido e inspirava muitos cuidados e trataram dele
com todo o zelo. Após alguns dias Awash gradualmente foi
recobrando a consciência.

- Bom dia! Parece-me melhor esta manhã.

263
- Realmente estou. Nunca poderei retribuir o grande favor que
me fez. O senhor me acolheu e mesmo sendo eu um estranho
cuidou bem de mim.

- Não poderia deixar de lhe ajudar. No momento que lhe


encontrei naquele bosque não o reconheci, mas após lhe lavar
as feridas e à medida que seu rosto foi se revelando o
reconheci. Não se lembras de mim?

- Agora que me falaste a respeito começo a lembrar-me. Seu


nome é Glabrio, não é isso?

- Isso mesmo nobre viajante. Vejo que não seguiu os meus


conselhos e confiou nos pretorianos. Péssima escolha.

- É verdade nobre amigo. Sou Awash da Abissínia e para


sempre seu amigo se assim for da sua vontade.

- Muito me honra tê-lo aqui. Esta é minha esposa Arvina, meu


filho Salvius e minha filha Lucia.

- É uma honra conhecer família tão linda e de tão bom coração.


Peço que o Deus Eterno retribua sua hospitalidade.

Ficou na casa daquele homem por alguns meses e contou


aquela família sua história e o que lhe tinha trazido até aquele
lugar e falou do amor de Deus ao ponto de entregar seu Filho

264
Jesus Cristo por amor da humanidade e ouviam atentamente
tudo os quantos lhes diziam.

- Awash meu amigo, mas porque este Jesus sendo filho de Deus
não se rebelou contra os seus adversários que queriam matá-lo?

- Tudo foi feito para que as escrituras sagradas dos antigos


profetas se cumprissem, além do que Jesus nunca iria contra a
vontade de seu Pai. Jesus de Nazaré foi à materialização na
forma humana do amor de Deus. Suas palavras feriam os
corações desobedientes e mentirosos e foi ferido por falar a
verdade.

- Consigo entender meu amigo Awash. E o que aconteceu com


ele?

- Seus compatriotas o crucificaram e o mataram, mas acredite


em mim quando lhe digo que Jesus ressuscitou e foi visto por
várias pessoas na região da Judéia e da Galiléia. Isto te digo
porque ouvi do próprio Filipe que foi um dos seguidores de
Jesus. O conheci quando me colocava a regressar para minha
terra. Eu cri e fui batizado juntamente com meu amigo Ubbi
Ubbi.

- Que linda história meu amado amigo Awash. Tudo o que me


disse me fez repensar muito sobre todos esses deuses que

265
adoramos em Roma. Iremos meditar muito sobre tudo o que
nos disse.

- É verdade meu esposo e amigo Awash. Ouvindo sobre este


homem nazareno senti uma grande paz no meu interior e creio
que as crianças também o sentiram já que não saíram de perto
de vocês. Disse Arvina com a voz cheia de alegria.

Após alguns dias daquela prazerosa conversa, Awash sentiu


desejo no seu coração de retornar para sua terra e rever todos os
que lhe eram caros.

- Glabrio nobre amigo, acho que me é chegada a hora de partir.


Tenho uma dívida de gratidão que me seguirá pelo resto da
minha vida e seu nome será conhecido por muitos do meu
povo.

- Eu compreendo Awash, eis aqui o dinheiro que me destes


naquele dia. Tome-o de volta, acho que deva dar para comprar
sua passagem de volta a sua terra.

- Como poderei eu retribuir um dia por tudo que me tem feito


meu amigo?

- Não se preocupe com isso agora. Selamos nosso destino


através de nossas escolhas e a sua escolha me trouxe algo novo
que desconhecia e isto é o maior presente que poderia me dar.
266
Despediram-se entre palavras e gestos de carinho e amizade.
Então Awash colocou-se em direção ao porto de Ostia Antica
de onde pegaria uma embarcação de volta a sua terra. Já
passadas algumas horas desde a sua partida viu uma grande
propriedade ao longe e uma pequena estrada que a levava até
sua entrada. Notou que havia escravos naquela vasta plantação
e decidiu se aproximar para ver se conseguia um pouco de
água. Chegou a cerca que dividia a plantação da estrada e
perguntou se alguém podia lhe dar um pouco de água pois
sentia muita sede.

- Amigo onde consigo um pouco de água?

- Tem que pedir autorização ao senhor Domitius para que o


mesmo permita a sua entrada até o poço. Ele está mais no meio
da plantação, espere aqui que vou chamá-lo.

- Obrigado meu amado amigo. Que Deus te abençoe.

- O escravo veio me avisar que deseja beber do nosso poço? De


onde vens?

- Venho de Roma meu senhor. Estou indo ao porto pois estou


retornando para minha casa que fica além mar.

- Tudo bem forasteiro pode entrar e se servir de nossa água.

267
- Muito obrigado meu senhor, que Deus retribua em dobro a
sua bondade.

Caminhou na companhia do escravo até o poço e ali bebeu água


e se molhou pois o dia estava muito quente. Pediu permissão
para descansar um pouco sob a sombra de uma grande oliveira
e em seguida se despediu do escravo que havia lhe
acompanhado e próximo à saída agradeceu também a Domitius.

- Nobre senhor lhe agradeço por sua generosidade. Disse


Awash reclinando a cabeça como sinal de respeito.

- Sente também fome viajante? Se quiser comer alguma coisa


antes de partir me acompanhe que lhe darei algo.

- Vou aceitar sua generosa oferta meu senhor.

E ao chegarem próximo à casa do senador o homem pediu que


ele esperasse próximo ao alojamento dos escravos que iria pedir
para alguém lhe levar algo para comer e algumas frutas para o
restante da viagem. Logo em seguida uma escrava veio com
pão e um pouco de suco de uvas que eles mesmos preparavam
com as frutas retiradas de suas videiras.

- Este embrulho aqui é para o senhor comer durante sua


jornada. Para onde está indo?

268
- Muito obrigado senhora. Estou indo para uma terra chamada
Abissínia. Agora um lugar de paz, graças a Deus.

- Há aqui uma serva do senador Flavius que também é de lá.


Mulher humilde e muito sábia.

- Fico feliz por ela e, que um dia consiga sua liberdade e


retornar para sua gente. Diga que deixo lembranças.

Awash então se despediu de todos e colocou-se a sair da


propriedade pelo caminho que levava a entrada principal da
propriedade, foi quando um carro que conduzia o senador
Flavius cruzou com ele, pois regressava da cidade, e eis que
neste carro estava toda a sua família e sua serva Mille. Mille em
um golpe de vista olhou para aquele homem que passava e
sentiu algo de diferente nele e tomada por um sentimento
inexplicável gritou:

- Awash! Awash meu filho! É você meu amado filho? Nobre


senador, por favor, pare o carro.

- Eu conheço esta voz antes de vir ao mundo e não me posso


acreditar! Quem me chamou assim?

Então viu aquela senhora descer do carro e correndo em sua


direção gritava por seu nome, e o tempo naquele momento
perdia o poder de aprisionar as pessoas e em seu coração não
269
havia mais espaço para ódio, rancor, raiva, dúvida, pois todos
os bons sentimentos que provém de um coração humilde e
agradecido o havia preenchido em sua totalidade. Então se
encontraram e se abraçaram e choraram e não podiam acreditar
que Deus os estava unindo novamente. Caíram de joelhos e
Awash agradecia ao Deus Eterno por dádiva tão maravilhosa.

- Minha mãe! Minha mãe amada! Obrigado Senhor. Quanta


saudade senti de sua presença, dos seus conselhos e do seu
abraço. Mas Deus nos uniu novamente.

- Sim meu filho! Inexplicavelmente Deus opera em nós


maravilhas diárias e este é mais um dia que o Senhor nos
concede. Gostaria de lhe apresentar ao homem que me ajudou e
me livrou daquela prisão em Roma. E tem sido muito bom para
mim, mesmo sendo eu uma serva.

Mille os apresentou e todos se maravilharam por tal


acontecimento e se perguntavam se aquilo era coincidência ou
um ato dos deuses. Então ofereceu um grande jantar em
homenagem a Mille, pois depois de ter salvado o filho do
senador se tornou mais que uma serva, passou a ser tratada
como uma amiga muito querida da família.

- Por favor! Gostaria que todos se colocassem de pé. Eu e


minha família durante todos estes anos tivemos o privilégio de
270
conviver com Mille. Desde que passou a conviver entre nós
nessa casa aprendemos muito com suas experiências e sábios
conselhos. Nosso filho a ama e me pediu que nunca a deixasse
partir. Mas sabemos que a criança não consegue compreender
as complexidades das relações interpessoais. Mas sem mais
tergiversar queríamos lhe dar de presente a sua liberdade, Mille.
Aqui está o documento que lhe garante voltar a sua terra natal
na companhia do seu filho.

- Meu senhor senador Flavius e senhora. Meu pequenino e a


todos os presentes nesta linda sala, nesta mesa maravilhosa
cheia de comidas deliciosas. Bem, serei eternamente grata por
terem acreditado em mim e por me acolherem. Desde aquele
momento no cais do porto quando o senhor me escolheu para
vir para cá trabalhar sabia de alguma forma que Deus planejava
algo grandioso para mim e para vocês. Hoje além de vossas
ilustres companhias tenho também a presença do meu filho
Awash, que nem em meus mais maravilhosos sonhos pensaria
que acontecesse de igual modo. Peço ao bondoso Deus que
habite nesta casa e em vossos corações por todas as suas vidas e
agradeço também a você Domitius por ser este homem bom,
justo e que trata a todos com decência, contudo amanhã eu e
meu filho iremos partir rumo ao nosso país e lhes levarei para
sempre em meu coração.
271
Pela manhã o senador Flavius pediu que Domitius os levassem
ao cais do porto e ao deixá-los lá entregasse uma outra carta a
Mille. Ali o senador advertia a qualquer um que intentasse
contra a vida de Mille ou de quaisquer uns de seus familiares
que eles estavam sob sua proteção e do senado romano e tal
carta possuía o selo do Imperador Tiberius e do então senador
Flavius.

272
CAPÍTULO XV

O QUARTO MILAGRE
Embarcaram e seguiram viagem de volta a sua amada terra e
Awash ia contando tudo o que lhes aconteceram durante o
período que ficaram afastados e principalmente da sua
descoberta acerca do “Messias” que seu amigo Gaspar falara
por diversas vezes, mas reservou segredo sobre o fato de seu
pai estar vivo, queria saber qual seria a reação de sua mãe ao
encontrar com Ganale Dorya.

Após longa jornada chegaram ao porto de Zafar, então Awash


se identificando a um dos guardas que ali estava pediu que os
levassem a capital do reino. Desceram na entrada da cidade e
de lá foram caminhando até o palácio. Notaram que o povo
voltara a sorrir e havia crianças brincando nas ruas e podiam
comercializar seus produtos livremente. Já não mais haviam
esculturas em homenagens a outros deuses e templos antigos
foram derrubados e em seu lugar construíram grandes salas
para que todo o povo pudessem aprender a ler e escrever e
também compreendessem acerca do grande e único Deus
Eterno que os haviam livrados das mãos impiedosas da rainha
Dawa.

273
- Meu amado filho Awash este palácio me traz boas e más
recordações. É diferente poder pisar aqui novamente, porém
quero deixar no passado aquilo que pertence ao passado.

- Minha mãe é outra época, mas antes que adentre pelas portas
do palácio peço que aguarde aqui no jardim e não saia até que a
chame, quero fazer uma surpresa a rainha Kabenna.

- Está bem meu filho aproveitarei para olhar esse lindo jardim
que seu pai e a rainha Shebelle tanto gostavam.

- Awash meu amor não acredito que é você!!! Me deixe te


abraçar meu amor. Quando Ubbi-Ubbi me falou que você
seguira viagem rumo a Roma fiquei muito apreensiva, mas meu
coração exulta ao Senhor Deus por ter lhe conduzido de volta.
E conseguiu descobrir alguma notícia sobre Mille?

- Sim minha amada. Ela está aqui nesse palácio, mas antes
quero que meu pai vá aos jardins e a encontre, quero poder
presenciar o poder sobrenatural do amor. Peça que chame meu
pai meu amor.

- Pois não rainha Kabenna. O que deseja minha rainha?

- Olhe quem está aqui meu amado amigo Ganale Dorya

274
- Awash meu filho querido quanta alegria em poder olhar
novamente em seus olhos e mesmo com um só braço quero lhe
dar um abraço bem apertado. Sei que me comunicar através de
gestos e mimicas pode tornar nosso diálogo um pouco
cansativo, porém o amor em nossos corações é o nosso
intérprete maior. Eu te amo.

- Pai há uma pessoa lá fora nos jardins que deseja lhe falar é
melhor que vá rapidamente.

Ganale Dorya já tinham seus olhos imersos em lágrimas e ao


sair do palácio e adentrar nos seus jardins notou que havia uma
mulher por trás do grande pomar e lentamente foi se
aproximando até que tocou-lhe nos ombros e ela se virou para
ele e aconteceu...

- Não me posso acreditar no que vejo! É você Ganale Dorya,


meu amado esposo? Diga para mim que não é um sonho e se
for não me desperte nunca mais.

E o valente general sem poder falar apenas a olhava e


acariciava seu rosto e lhe beijava os lábios e se abraçaram
fortemente. Sentaram-se sobre aquele lindo pomar e Ganale
Dorya escrevia no chão o que seus lábios queriam dizer. No
entanto Mile conseguia compreender tudo no silêncio das
palavras.
275
- Minha amada esposa! Minha eterna amada! Você está mais
linda do que antes. Deixe-me olhar seus olhos e tocar seus
lábios. Não sinto falta das partes do meu corpo que me tiraram,
o que mais me fez falta foi a sua presença.

- Oh meu Deus, quanta felicidade e não sei se meu coração irá


resistir. Você continua o mesmo meu amado esposo e nada que
lhe venha faltar diminuiria meu amor por você.

E Awash e a rainha Kabenna choravam copiosamente olhando


aquela cena e naquele momento Awash sentiu no seu coração o
desejo de se casar com a rainha mesmo sendo feito eunuco. Já
não mais se importava com isso.

- Rainha Kabenna será que ainda desejaria ser minha esposa e


viver ao meu lado até que meus dias se findem aqui nesta terra?

- Claro meu amado Awash. Como me sinto feliz, pensei que


este momento jamais chegaria e que nunca iria ouvir esse
pedido de seus lábios. Viverei com você enquanto vida tiver.

- Awash! Awash meu nobre amigo venha aqui me deixe te


abraçar!

- Ubbi-Ubbi meu amado amigo. Que bom que retornaste, estive


preocupado com você e sempre pedia que Jesus Cristo lhe
guardasse em todos os seus caminhos.
276
- Eu também meu nobre amigo Awash!

- Mas vejo algo diferente em você meu amado amigo!

E a conversa fora interrompida pelo comandante Hawadi que


lhes avisou sobre duas legiões romanas que estavam acampadas
mais ao norte e que um mensageiro romano estava na sala
principal do palácio querendo entregar uma mensagem do
general Salvius, nova comandante das tropas romanas para
aquela região.

- Rainha Kabenna trago uma mensagem do general Salvius. Ele


solicita sua presença em seu acampamento daqui a três dias
antes do pôr do sol. O que devo dizer ao general?

- Diga que daqui a três dias estarei lá. Mande minhas


felicitações ao nobre comandante.

- Assim será feito rainha. Ave César!

- Rainha Kabenna o que deseja fazer em relação ao nosso


exército? Mando os homens ficarem de prontidão? Inquiria o
comandante Hawadi.

- Me deixe pensar um pouco comandante Hawadi.

- Minha amada rainha, é melhor ser prudente e verificar


pessoalmente quais são as reais intenções do general. Parece-

277
me que se quisesse efetuar um ataque a essa altura já o teria
desferido.

- Sim meu amado Awash é verdade. Vamos ter com o general


romano. Hawadi quero que venha conosco, pois poderá
visualizar como as tropas estão distribuídas pela região.

- Awash meu filho por que não utiliza a carta que o senador
Flavius nos entregou? Leve-a pelo menos com vocês pode vir a
ser de grande ajuda.

- Tem razão minha mãe.

Antes da partida a rainha Kabenna se reuniu com Awash e


Hawadi e oraram ao Deus Eterno por uma solução pacífica, que
lhes fossem concedidos sabedoria e discernimento para
administrar da melhor forma possível aquela situação. Não
queriam que o povo viesse a sofrer novamente com a opressão
romana, para isso, precisaria dissuadir o novo comandante de
qualquer intenção de ataque contra o reino. Preparou-lhes uma
grande oferta de paz como prova de amizade e respeito, mas ao
mesmo tempo precisavam se preparar para o pior. E partiram
em direção ao acampamento do general Salvius.

- Ave César! General Salvius a rainha Kabenna está aí fora e


pede permissão para lhe falar.

278
- Ela está sozinha, centurião?

- Não senhor. Veio acompanhada de dois homens.

- Mande-os entrar.

- Seja bem vinda rainha kabenna. É um grande privilégio


conhecê-la. Senhores, por favor, queiram sentar-se, só peço
desculpas, pois esta tenda não oferece conforto suficiente.

- Obrigado nobre general Salvius! Viemos em paz e espero que


o senhor também.

- Tudo irá depender desta nossa conversa. Vi que a senhora é


bem concisa nos seus assuntos e isso demonstra seu caráter.
Pois bem, tivemos notícias em Roma acerca do ocorrido em
suas terras e da derrota que seu exército impôs as nossas tropas.
Soldados que conseguiram sair vivos do campo de batalha nos
revelaram que por alguma mágica o deserto lhes ajudou, ainda
não consegui entender direito o que realmente aconteceu.

- Me permita nobre general, mas não foi mágica alguma e sim


Deus que pelejou ao nosso lado.

- Deus? Qual deles a senhora se refere? São apenas lendas e


nada mais. Só conheço o deus da espada e da lança, este sim
subjuga nossos inimigos.

279
- Respeito sua opinião nobre general, mas cada qual acredita
naquilo que deseja. Entretanto me permita lhe entregar um
presente como forma de nossa hospitalidade e respeito. São
pedras preciosas, ouro e prata de nossas minas.

- Obrigado rainha, o Imperador Tiberius muito se agradará de


sua generosa oferta. Sendo assim vou lhes dizer o que César
pretende nestas terras. Foi-nos dada à ordem de atacar a cidade,
matar sua gente e queimar seus campos.

- Mas não há a necessidade disto nobre general. Disse


temerosamente a rainha Kabenna.

- Permita-me concluir nobre rainha. Isto tudo se fará caso a


senhora se recuse pagar os tributos devidos ao império, mas
creio que não teremos problemas no tocante a isto, ou teremos?
Pois bem, sabemos que suas terras atravessam um período de
grande estiagem e não é nossa intenção lhes matar de fome,
então trimestralmente recolheremos dois quintos de tudo o que
seus campos e minas produzirem. Acho que é uma excelente
oferta. O que me diz?

- Estou de acordo general Salvius. Meu povo precisa e quer


paz. Tantas guerras para nada servem a não ser para matar e
aprisionar nossos semelhantes, só tenho um pedido a fazer
nobre comandante. Se for possível deixe seus homens fora da
280
nossa capital, permita que vivamos em liberdade e com nossos
costumes. Temos um lugar para o senhor e suas tropas. É um
lugar bastante agradável por sinal.

- Estou de acordo rainha Kabenna! Assim seja feito. Espero que


tenhamos um convívio amistoso.

- No primeiro dia do início da estação das flores irei me casar e


espero contar com sua presença nobre general, será bem
recebido em nossa simples cidade.

- Quem é este grande afortunado? Por acaso é algum rei de


outras terras?

- Não nobre comandante. Este é o meu noivo Awash.

- É uma honra conhece-lo nobre general Salvius. Chamo-me


Awash.

- É um prazer nobre Awash. Nota-se que será um grande rei e


espero que possamos ser amigos independente de nossas
crenças e objetivos.

- E seremos general. Deixo-vos a paz de Deus e do seu filho


Jesus, o Cristo.

- Este nome Jesus não me é estranho aos ouvidos. Por acaso é


de origem hebreia?

281
- Sim general Salvius. Foi...

- Deixemos cada um com sua religião. Hoje discutamos sobre


política. Venha e almocem conosco e descansem antes de
partirem.

Seguiram de volta a capital do reino sabidos que haviam feito


o melhor para o povo, mesmo que tais decisões no fundo lhes
desagradassem muitíssimo, mas queriam paz, não queriam mais
choro, tristezas e principalmente perdas irreparáveis. Agora
possuíam outra visão de mundo e estavam sob a tutela de um
poderoso e bondoso Deus. E Deus mostrara que não queria que
o homem guerreasse por terras e riquezas, contudo que vivesse
para que as palavras do Unigênito Filho de Deus fossem
pregadas a todos os povos, raças e nações.

Chegara o dia tão esperado pelos noivos e por todo o reino. A


rainha Kabenna havia pedido que em todas as vilas do reino
fossem realizados banquetes ao povo para que comemorassem
juntamente com eles as bodas do casal real. Estavam presentes
muitos reis de terras próximas, entre eles o rei Lagabora, alguns
membros da nobreza e o general Salvius que representava o
imperador Tiberius.

Awash estava com seu coração em grande tribulação e a rainha


Kabenna sabia por qual motivo. No secreto do seu coração
282
sabia que não poderia ter relações sexuais com ela e tinha
receio de que um dia ela viesse a sentir-se carente e procurasse
outro homem para lhe proporcionar um pouco de prazer. Então
em grande angústia abriu seu coração diante Deus.

- Senhor meu Deus. Acredito que enviaste teu único Filho em


nosso favor e enquanto aqui esteve operou grandes maravilhas,
examine o mais profundo do meu ser e me ensine a viver com
isto meu Senhor. Que se cumpra o Teu querer em minha vida
amado Deus. Mas me dê forças para que ao subir no altar e ser
coroado rei o Senhor possa antes de mais nada ser Aquele que
governa, Aquele que supre e Aquele que consola. Amém.

- Amigos do reino neste momento aqui na presença do Deus


Altíssimo celebramos o casamento da rainha Kabenna com
Awash. Todos são testemunhas deste amor que resistiu as mais
difíceis provações e que materializamos com esta cerimônia.
Desejamos que possam ser felizes e viver sob os desígnios de
Deus durante todas as suas vidas. Tenho certeza que se sua mãe
a rainha Shebelle estivesse entre nós, seu lindo sorriso revelaria
a imensa felicidade por tal união. Peço que a rainha Kabenna
realize a coroação do nosso novo rei.

- Awash te coroo nosso rei e soberano de nossas terras. Desde


agora lhe chamarão por Rei Awash de Abissínia. E serás para

283
sempre meu amado companheiro. Daqui a muito anos as
futuras gerações se lembrarão do seu nome e da sua justiça,
pois uniu nosso reino sob a direção de Deus.

- Obrigado minha amada rainha Kabenna! Sempre estarei ao


seu lado e, meu amor, fidelidade e respeito lhes serão eternos.
Meus amados amigos do reino de Abissínia evoco o Deus
Eterno para que seja nosso Rei e Senhor, que sejamos sábios
em nossas decisões e sempre orientados pelo Deus Consolador
que Jesus Cristo nos prometeu para nos guiar até o seu retorno.
Muitos aqui não conhecem este Deus tremendo que se fez carne
e habitou com suas criaturas e por elas foi morto, mas que
ressuscitou e vivo está. Foi este Deus que nos ajudou a chegar
até aqui e pretendo enquanto viver lhe servir do modo que Ele
desejar. Saibam meu povo, sangue do meu sangue, que meu
amor por vocês é mui grande e prometo não fazer jamais
acepção de pessoas, que todos terão a mesma importância para
mim, seja você um lavrador, ferreiro, comerciante ou dono de
muitas terras. Que a paz do Senhor seja com todos. Muito
obrigado.

E a festa continuou por toda a noite e grande alegria tomou


conta do palácio. Todo o reino estava em festa pois saíram de
épocas de trevas sob o reinado da rainha Dawa para um tempo

284
de paz e prosperidade sob o reinado do rei Awash e da rainha
Kabenna. E próximo ao amanhecer todos os convidados já
haviam se retirado e então os noivos se recolheram aos seus
aposentos.

- Rainha Kabenna é nossa primeira noite juntos e desejava que


fosse diferente. Queria que ao me tocar pudesse me sentir
homem de fato.

- Meu rei Awash você é homem de fato para mim meu amado.
Se o tenho ao meu lado estou completa e me sinto segura. Por
vezes homens sem escrúpulos me violentaram e tais práticas
apenas me fizeram não ser dependente de nada. O meu amor
por você irá suprir toda e qualquer carência que vier a sentir.

Então a rainha Kabenna foi se lavar e colocou a veste mais


linda que uma mulher poderia escolher e se perfumou toda para
o seu marido e deitou-se ao seu lado. Awash não saberia qual
seria sua reação, mas instintivamente a envolveu em seus
braços e a beijou como nunca antes e ficaram por algum tempo
em silencio, apenas sentiam os seus corpos se entrelaçarem. E
sentiu como que se seu corpo estivesse em brasas vivas e uma
estranha sensação tomou seus sentidos e percorrendo o corpo
com as suas mãos verificou que não mais era um eunuco. E
examinou novamente suas partes íntimas e constatou que um

285
milagre acontecera a ele naquele momento, seus testículos
estavam no lugar como se nunca tivessem sido tirados de lá e
não havia mais cicatriz. A rainha percebendo o que lhe
acontecera chorou sobre seus ombros e nada mais falaram o
restante do dia e puderam fazer amor pela primeira vez.

CAPÍTULO XVI

O GRANDE FAVOR DE DEUS


Três dias após a festa de casamento os noivos foram ter com
seus parentes e amigos e lhes confessaram o que havia

286
acontecido e todos se maravilharam do milagre que Deus
operara em sua vida. O rei Awash se tornara uma pessoa ainda
mais amável e compassiva e todos os dias ia aos jardins do
palácio orar e agradecer ao Senhor seu Deus.

- Meu amado esposo bem sei que Deus nos tem favorecido e
vejo como tem um carinho grande por ti. Oremos a Deus para
que Ele torne meu ventre sadio para que possamos gerar um
filho nosso.

- Deus sonda nossos corações e atenta aos nossos pedidos e


antes de abrirmos nossa boca já sabe o que havemos de lhe
pedir. Coloquemos diante do seu trono de graça esse desejo dos
nossos corações minha amada rainha Kabenna.

Muitos meses se passaram e o rei Awash precisou sair em


viagem pelo reino para verificar como as coisas estavam
caminhando e encontrou grande seca nas terras mais ao sul e
viu que animais morriam de sede e fome.

- Ubbi-Ubbi meu nobre amigo precisamos ajudar essas pessoas


e arrumar uma forma de alimentar os animais antes que tudo se
perca.

287
- Meu amado rei Awash e se acharmos uma maneira de desviar
água do grande Nilo Azul para irrigar estas terras e assim salvar
essa gente? O problema é como iremos fazer isto.

Sabendo que os romanos eram exímios arquitetos e detentores


de moderna engenharia, o rei Awash resolveu pedir ajuda ao
general Salvius.

- Nobre general Salvius venho lhe pedir um grande favor.

- Seja bem-vindo rei Awash. Em que posso ser útil?

- Quando fui a Roma e outras terras para além do Mar


Vermelho pude notar que vocês detém grande conhecimento
acerca de construção de aquedutos.

- É verdade rei Awash. Temos grandes engenheiros em nosso


império e há alguns destes exímios profissionais aqui comigo.

- É de conhecimento de todos que nosso reino atravessa grande


estiagem e isto tem infligido sofrimento demais ao povo. Peço-
te que me ceda profissionais que me ajudem na construção de
açudes e aquedutos para amenizar a seca.

- Que assim se faça rei Awash. Não é do interesse de Roma que


morram por inanição, afinal, além de grandes parceiros
comerciais do império são parte do império.

288
Prontamente atendendo ao pedido do rei Awash lhe cedeu cinco
dos seus melhores engenheiros em aquedutos e ainda homens
para ajudá-lo a realizar tal tarefa. E juntamente trabalharam por
meses a fio, então Awash e Ubbi Ubbi viram que aqueles
homens romanos eram pessoas de boa índole e que mesmo sem
terem qualquer obrigação para com eles trabalharam de igual
modo ou até mais.

- Rei Awash este canal levará as águas do rio até o interior onde
o clima é mais quente e a seca é mais incisiva. Sempre que
aquela região for atingida por um período muito grande de
estiagem devem-se abrir estas comportas e deixar que as leis
que regem a natureza realizem o restante do trabalho. Tudo foi
projetado visando igualar gradativamente os níveis da água do
rio e destes grandes depósitos. Quando isto acontecer deve-se
fechar novamente as comportas. O senhor entendeu rei Awash?

- Precisamente meus amigos. Como poderia eu lhes agradecer


ou fazer algo que de alguma forma retribuísse tal favor?

- A ordem do general Salvius é a ordem de César meu senhor.


Notamos que trata seus súditos com dignidade e isto tem para
nós alto valor. Nem todos os soldados são sanguinários ou
mercenários, muitos deixaram famílias para trás. Fizemos o que
tinha que ser feito.

289
- Diga ao general Salvius que assim que eu chegar à capital
oferecerei um grande jantar para ele e para todos vocês que por
todo este tempo trabalharam conosco nesse grandioso projeto.
Que Deus os abençoe. Jamais me esquecerei de vós.

Já fazia oito meses desde a sua partida do palácio e sua saudade


era grande demais, não via a hora de poder abraçar sua amada
rainha Kabenna e deitar no seu colo sob as sombras das árvores
do jardim.

Ao chegarem à capital notaram que o povo os saudava e


gritavam seus nomes, mas não conseguiam entender o que
estava acontecendo.

- Meu amado filho Awash que bom que retornaste. Sentimos


muitas saudades de você e de Ubbi Ubbi.

- Pai o que está acontecendo com o povo lá fora? Faltaram me


derrubar do carro.

- A rainha Kabenna está...Está neste momento dando à luz meu


filho!

- O senhor tem certeza do que está falando meu pai? Onde ela
está?

- Nos seus aposentos me filho e nobre rei.

290
Ao se aproximar da porta do seu aposento foi impedido por sua
mãe de adentrar no recinto. Mille lhe explicou que a gravidez
era de risco e que a rainha Kabenna ou a criança não poderiam
sobreviver. Explicou que não foi avisado da gravidez por um
pedido pessoal feito pela própria rainha. Ela queria que ao
chegar você fosse surpreendido ao vê-la nas escadarias do
palácio com seu filho nos braços.

- Deus meu, Tu fizeste surgir águas do interior de uma pedra,


Tu abristes o mar para que teu povo passasse em terra seca e
enviaste Teu único Filho por amor de nós. Se há em mim algo
que tem lhe agradado suplico-te que poupe a vida da minha
esposa e a vida desta criança meu Senhor! Sei que nada sou e
nada do que venha a fazer seria suficiente para merecer
maravilhoso favor. Prepare meu coração para que saiba
conviver com o seu sim e aceitar o seu não. Amém.

Então se ouviu um choro muito alto e logo lhe saíram com a


criança nos braços e a entregaram ao rei Awash e ele de joelhos
levantava seu filho recém-nascido aos céus consagrando sua
vida ao Deus Eterno e, quando Awash já estava por se levantar
do lugar que se encontrava ouviu o choro de outra criança que
vinha de dentro do quarto. Mille maravilhada e com os olhos
repletos de lágrimas e com seus lábios com sorriso de alegria

291
saiu com a outra criança do quarto e a entregou ao seu filho
Awash. Deus lhe dera não uma, mas duas crianças saudáveis e
a benção eram dobradas. E eram um menino e uma menina e
entrando no quarto com ambas as crianças nos seus braços
olhou para sua amada rainha Kabenna e colocou as crianças
próximas aos seus seios. A rainha estava fraca, porém iria
sobreviver e naquele momento todos se deram as mãos em
volta daquela cama e agradeceram ao Eterno Deus por todas as
suas obras.

- Meu amado Deus fez sementes brotarem de terra devastada e


infértil. Jamais com minha pequena fé seria capaz de imaginar
que algo tão maravilhoso um dia iria me acontecer. Peço perdão
ao meu Deus por ser tão incrédula. E olhando aqui para os
rostinhos delas vejo que isto não é um sonho. Disse a rainha
Kabenna movida por grande emoção.

- Evite falar muito minha amada esposa. Precisa estar bem para
poder amamentar nossos maiores tesouros. Confesso que
também que até bem pouco tempo atrás isto para mim seria
impossível, mas agora sabemos que nosso Deus é o Senhor das
causas impossíveis.

- Nobre rei Awash quais serão os nomes dados às crianças?

292
- Amigo Ubbi-Ubbi tal tarefa é incumbida à rainha, ela mais do
que ninguém saberá escolher nomes apropriados para nossos
filhos.

- Já que tocaram neste assunto não há necessidade de se esperar


por mais tempo para saberem os nomes dos nossos filhos, pois
foi o que mais pensei durante toda a minha gravidez. Se fosse
uma menina eu escolheria o nome, contudo se fosse um menino
deixaria que o rei Awash escolhesse. Então a menina se
chamará Shebelle em homenagem a minha mãe. E o menino
como se chamará meu amado esposo e rei?

- Se me permite então minha rainha gostaria de chamar meu


pequenino de Ganale Abay. Em homenagem ao meu grande e
amado pai, Ganale Dorya e ao meu grande amigo Lesser Abay.
Que se escrevam seus nomes em nossos documentos oficias.

- Lindas homenagens vocês realizaram com tal gesto meus


filhos! Parabenizava Mille.

Passados alguns meses desde o nascimento das crianças uma


grande epidemia de varíola varreu todas as terras ao ocidente
do Mar vermelho e atingiu em cheio nossas terras e
principalmente nossas crianças. Muitas famílias perderam seus
filhos e filhas e houve grande lamentação por todo o reino,
quase um terço de todas as crianças de até seis anos de idade
293
pereceram sob os efeitos desta terrível doença. O rei Awash
havia enviado profissionais da medicina para todas as regiões
do reino a fim de tratar das crianças que ainda resistiam à
doença e somente um médico havia ficado no palácio. Seu filho
Ganale Abay e o filho do comandante Hawadi estavam entre as
crianças que precisavam de maiores cuidados pois a doença os
tinham atingidos severamente.

Todos no palácio estavam apreensivos pois o índice de


mortandade era de quase cem por cento dos casos e oravam ao
Deus Eterno que tivesse misericórdia daquelas crianças.

- Nobre rei Awash e rainha Kabenna sou portador de más


notícias.

- Diga nobre Usno.

- Como médico real tentei tudo o que a medicina me


proporcionou, mas infelizmente não consegui salvar o jovem
príncipe Ganale Abay.

- Bem sei nobre Usno que fez o que estava ao seu alcance.
Como seu amigo e rei sou grato pelo seu empenho.

- Ah amado Awash! Quanta dor sinto no meu coração... Ajude-


me meu Deus.

294
- Há outra coisa nobre rei Awash.

- O que houve Usno?

- O filho do comandante Hawadi também faleceu.

- Quanta dor se abateu sobre nós, mas precisamos avisá-lo.

Grande era o lamento por todo o reino e não podia ser diferente
nas dependências do palácio. O rei e a rainha lamentavam pela
morte daquela tão pequenina criança, mas estavam conscientes
que havia um propósito maior por trás daquela tragédia.

- Meus amados amigos e familiares, hoje estamos neste lugar


de dor para nos despedirmos do pequeno Ganale Abay e do
querido Bilate, filho do comandante Hawadi. Durante sua curta
passagem por esta vida nos alegrou muitíssimo. Jamais nos
esqueceremos de seu sorriso, seu choro que nos despertava
durante a noite e da sua fome quase que insaciável. Agradeço
ao bondoso Deus Eterno por ter nos presenteado com tão
maravilhosa graça e que neste momento meu filho esteja nos
braços do Criador. Discursava Awash.

- Como meu amado rei Awash bem disse sempre acontecerão


coisas que nos farão duvidar do amor de Deus para conosco.
Não posso esconder minha dor, mas posso afirmar que coisas
melhores Deus têm reservado para aqueles que o amam e o
295
temem. Obrigado por tão valioso presente que me entregaste e
agora requereste de volta para Ti. Obrigado pela vida da
pequena Shebelle que foi poupada de tão devastadora doença.

O comandante Hawadi não conseguira assimilar tamanho golpe


e se revoltou contra Deus e contra o rei. Passou a se ausentar
das decisões do conselho real e era visto sempre em más
companhias e embriagado. Mal dizia o rei Awash e a rainha
Kabenna em público e blasfemava contra a presença de Deus
naquele lugar. Preocupado o rei Awash pediu que os soldados o
trouxessem até a sua presença, pois queria falar-lhe e oferecer
ajuda.

- Comandante Hawadi sei que sua dor é imensurável, porém


peço-te que se mantenha o controle. Não permita que sua dor
lhe traga dores ainda maiores, tanto para você como para o
restante da sua família. Sua esposa e seu outro filho precisam
que você se restabeleça emocionalmente.

- Por acaso isto é uma ameaça grande rei Awash?

- Não nobre amigo, isto é um conselho.

- Permissão para me retirar majestade.

O comandante Hawadi tomado de grande ódio planejara algo


simplesmente nefasto e que culminaria com outra grande
296
tragédia. Certo dia durante a noite ele entrou no palácio e feriu
de morte todos os guardas que faziam a segurança do rei e da
rainha. E se colocou na direção do aposento da pequena
princesa Shebelle que estava sob os cuidados de uma serva. Em
silêncio adentrou no aposento.

- Serva onde está a princesa Shebelle?

- O que o comandante deseja com a criança?

- Não é da sua conta pelega miserável!

Indo contra aquela serva lhe cortou a garganta para que não
gritasse e ao se inclinar sobre o berço para matar a criança não
a encontrou.

- Juba a princesa parou de chorar devia ser o calor!

Foi quando Mille ao retornar da varanda do palácio de onde


voltara com a princesa Shebelle no colo viu grande quantidade
de sangue que escorria no chão próximo ao berço e temendo
que algo pior pudesse acontecer se apressou em sair do
aposento. Foi quando notou o comandante Hawadi por entre as
pilastras.

- Comandante Hawadi o que fizeste a Juba?

297
- Volte aqui sua meretriz antes que eu a mate junto com esta
criança!

- Socorro! Socorro.

Os gritos de Mille ecoaram pelos corredores do palácio e


muitos servos ouviram. Ela correu para a varanda na qual a
rainha Dawa punha fim aos seus desafetos. Procurou se
esconder por trás de uma coluna que havia naquele lugar e se
viu sem alternativa de fuga.

- Mille sua amante de romanos onde se escondeu? Me passe


esta maldita criança. Ela precisa ter o mesmo fim que foi
reservado ao meu filho.

- Comandante Hawadi retome o juízo pelo amor de Deus nada


faça que venha a se arrepender depois.

Avisado por um dos servos o general Ganale Dorya percorria


os corredores e os aposentos para descobrir o que estava
acontecendo. Foi quando se deparou com o comandante
Hawadi na varanda do palácio. E notou que estava coberto de
sangue e tinha em suas mãos uma espada. Observou que mais
ao fundo Mille estava abaixada com sua neta em seus braços e
chorava muitíssimo.

298
- O que você quer seu inútil? Saia daqui antes que lhe mate
também.

- O que está acontecendo aqui? Homem deixe minha neta e


minha esposa em paz.

O comandante Hawadi não conseguia entender direito o que


Ganale Dorya queria dizer, então os dois iniciaram uma luta
mortal. Em desvantagem por ter sua visão comprometida e sem
um dos braços o general Ganale Dorya se viu obrigado a se
aproximar muito para tentar tirar a espada das mãos do
comandante Hawadi.

- Seu velho estúpido não tem força suficiente para empreender


uma luta contra mim.

- Ainda me resta alguma disposição pobre miserável!

O comandante Hawadi conseguiu atingi-lo com sua espada e o


sangue do general Ganale Dorya escorria por sua cintura e
naquele momento derradeiro o valente general sabia que não
aguentaria muito tempo. Aproximou-se ainda mais do
comandante Hawadi e sentiu que a espada já transpassara o seu
corpo. Com um esforço incomensurável ergueu o comandante e
o abraçou com seu braço e foi na direção da sacada do palácio.

- Me solte seu velho maldito!


299
Ao chegar na sacada precipitou-se lá de cima, levando consigo
o comandante Hawadi. E caíram os dois encontrando a morte
instantaneamente.

O rei Awash e a rainha Kabenna chegaram logo em seguida


após a queda dos dois e viram Mille caída ao chão com a
criança no colo e correram em direção a elas. Awash vendo que
as manchas de sangue iam à direção da sacada as seguiu e pôde
ver seu pai e Hawadi caídos mortos ao chão.

- Meu amado esposo Ganale Dorya!!! Não quero olhar meu


filho, me ajude. Lamentava Mille

- Mãe, estou aqui! Deixe-me abraçá-las! Não chore mãe.

- Mille não fique assim minha amada amiga me deixe consolá-


la!

E então se sentaram ao seu lado e choraram juntamente com


ela. A notícia da morte do general Ganale Dorya percorreu todo
o reino e muitas pessoas de todas as regiões da Abissínia
vieram ao seu funeral pois era visto como grande e justo
guerreiro e ergueram uma lápide em sua homenagem como
igualmente haviam feito com Lesser Abay. E foi sepultado ao
lado do seu neto.

300
- No dia de hoje retornamos a este lugar para nos despedirmos
do meu pai e grande herói, o general Ganale Dorya. Minhas
palavras seriam insuficientes para descrever o caráter deste tão
honrado homem, que durante sua vida foi um servo fiel da
rainha Shebelle, um marido amoroso e um pai extremamente
carinhoso. Mesmo perdendo seu braço, sua capacidade de falar
e de enxergar direito nunca deixou se abater, pois demonstrou
que os membros são apenas parte do corpo de um homem mas
é o espírito que governa sobre ele. Sei que o Deus Eterno o
usou grandemente durante toda a sua vida e em especial
naquele dia ao salvar nossa filha e a minha mãe de um homem
que se deixou levar pelo ódio. Meu pai e amado amigo
obrigado pelo privilégio de poder ter lhe conhecido. Descanse
em paz.

Houve grande luto em todo o reino por um mês e por onde quer
que se andasse alguém comentava sobre a morte e
principalmente sobre a sua vida do general Ganale Dorya.

Os anos se passavam e a princesa Shebelle crescia tanto em


beleza como em sabedoria e era motivo de orgulho para os seus
pais. Havia se apegado grandemente a sua avó materna que
sempre lhe contava grandes histórias. A rainha Kabenna e o rei
Awash tiveram mais dois filhos, e por sinal também eram

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gêmeos, nos quais puseram os nomes de Ganale Dorya e Lesser
Abay. Desde cedo foram ensinados sobre o imenso amor de
Deus para com os que o servem e o adoram e que
permanecessem em sua presença se desviando de tudo aquilo
que ia contra a Sua vontade e direção. A rainha Kabenna e o rei
Awash até os dias presentes agem seguindo as orientações do
Espírito da Verdade e praticam a justiça e equidade para com
todos do reino.

- E assim esperamos que permaneçam até o dia que Deus lhes


chamar. Espero que todos vocês jovens da Abissínia tenham
aprendido um pouco sobre nossa história e sobre os valores que
servem de pilares para a nossa sociedade.

- Com licença nobre ancião? Mas não disse seu nome!

- Me perdoem. Foi um lapso de minha parte. Chamo-me Ubbi


Ubbi.

- Como pode ser ele? Ele não era manco? E todos nós podemos
ver o senhor andar de um lado para o outro aqui no pátio
enquanto contava essa maravilhosa história e em nenhum
momento o vi puxar da perna.

- Enquanto esteve aqui nesta terra Jesus Cristo fez muitos


milagres, ressuscitou mortos, fez cegos verem e multiplicou

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pães e peixes. O que é ser curado de uma perna comparado a
estas grandes maravilhas? O maior milagre é poder estarmos
vivos neste momento meu jovem. O maior milagre que pode
acontecer ao homem é ser curado da sua ganância e egoísmo.
Estudem e se dediquem e que Deus os abençoe grandemente.

“Celebrai com júbilo ao Senhor, todos os habitantes da terra.


Servi ao Senhor com alegria, e apresentai-vos à Ele com
cânticos.

Sabei que o Senhor é Deus! Foi Ele quem nos fez, e somos
dele; somos seu povo e ovelha do seu pasto.

Entrai pelas portas com ação de graças, e em seus átrios com


louvor; dai-lhe graças e bendizei o seu nome. Por que o
Senhor é bom; a sua benignidade dura para sempre, e a sua
fidelidade de geração em geração.”

Fim

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