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FGV DIREITO SP Law School Legal Studies Research Paper Series

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=3039077


https://ssrn.com/abstract=3153159
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ÉTICA, CONTROLE E GOVERNANÇA PÚBLICA

Carlos Ari Sundfeld e André Rosilho (organizadores)

Adriano Daleffe

Fernanda Bayeux

Carolina Matthes Dotto

Fernando Figueiredo Linhares Piva de Albuquerque Schmidt

Rafael Albuquerque Gomes de Oliveira

Caio Cesar Figueiroa

Constanza Bodini

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TÍTULO: Ética, Controle e Governança Pública.

RESUMO: O livro sintetiza pesquisas jurídicas aplicadas desenvolvidas no âmbito do


Mestrado Profissional em Direito Público da FGV Direito SP. Parcela dos capítulos se
volta à compreensão da arquitetura da governança pública no Brasil. Outra parcela tem
por objeto descrever e problematizar a arquitetura do sistema brasileiro de controle. O
livro também contém seção que explora dilemas éticos do advogado público.

PALAVRAS-CHAVE: Ética. Controle da administração pública. Governança pública.

TITLE: Ethics, Control of the Public Administration and Public Governance.

SUMMARY: The book summarizes applied legal research developed within the scope of
the Professional Master in Public Law of FGV Direito SP. Part of the chapters aim to
understand the architecture of the public governance in Brazil. Another part of the
chapters analyzes the architecture of the controls over the public administration. The
book also contains a section that exploits the ethical dilemas of public attorney.

KEYWORDS: Ehtics. Control of the public administration. Public governance.

2
QUALIFICAÇÃO DOS AUTORES

ADRIANO DALEFFE
Mestrando em Direito Público pela FGV Direito SP. Advogado.

ANDRÉ ROSILHO
Professor do mestrado profissional em Direito Público e da pós-graduação lato sensu da
FGV Direito SP. Pesquisador do Grupo Público da FGV Direito SP e da Sociedade
Brasileira de Direito Público – sbdp. Doutor em Direito pela USP. Mestre em Direito
pela FGV Direito SP. Advogado em São Paulo.

CAIO CESAR FIGUEIROA


Mestrando em Direito Público e especialista em Direito Administrativo pela FGV
Direito SP.

CARLOS ARI SUNDFELD


Professor Titular da FGV Direito SP. Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP.
Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp. Advogado em São Paulo.

CAROLINA MATTHES DOTTO


Mestre (LL.M) em Direito pela Universidade de Colônia, Alemanha. Mestranda em
Direito Público pela FGV Direito SP. Foi pesquisadora visitante no Max Planck
Institute for Innovation and Competition, em Munique, Alemanha. Advogada em São
Paulo.

CONSTANZA BODINI
Mestre (LL.M) em Direito pela Universidade de Illinois, nos EUA. Mestranda em
Direito Público pela FGV Direito SP. Especialista em assessoramento jurídico de
empresas pela Universidade de Buenos Aires, Argentina.

FERNANDA BAYEUX
Mestranda em Direito Público pela FGV Direito SP. Pós-graduada em Direito Espanhol
para juristas estrangeiros pela Universidade Alcalá de Henares. Possui Master em

3
Direito Internacional e Relações Internacionais pela Universidade Complutense de
Madrid. Advogada em São Paulo.

FERNANDO FIGUEIREDO LINHARES PIVA DE ALBUQUERQUE SCHMIDT


Mestrando em Direito Público pela FGV Direito SP. Especialista em Interesses Difusos
e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Procurador da Câmara Municipal de Campinas. Advogado.

RAFAEL ALBUQUERQUE GOMES DE OLIVEIRA


Mestrando em Direito Público pela FGV Direito SP. Especialista em Processo Civil
pela Universidade Federal da Amazônia. Procurador do Município de Manaus.
Advogado.

4
SUMÁRIO

Apresentação – p. 5

PARTE I - ARQUITETURA DA GOVERNANÇA PÚBLICA NO BRASIL

Capítulo 1 – Agências reguladoras federais são mesmo autônomas? – p. 7

Capítulo 2 - Governança do conselho fiscal nas entidades fechadas de previdência


complementar patrocinadas pelo poder público – p. 18

Capítulo 3 - Sociedades de economia mista podem celebrar acordo de acionistas? –


p. 30

Capítulo 4 – Criações na Lei de Inovação são protegidas por direitos autorais? – p.


41

PARTE II - ARQUITETURA DO SISTEMA BRASILEIRO DE CONTROLE


PÚBLICO

Capítulo 5 – Como tornar o sistema brasileiro de cobrança de créditos públicos


mais eficiente? - p. 51

Capítulo 6 – Pontos de conflito entre os institutos da recuperação judicial e da


concessão de serviço público – p. 61

PARTE III – OUTROS DILEMAS ÉTICOS

Capítulo 7 – Conflito de interesses na atuação profissional do advogado público –


p. 74

5
APRESENTAÇÃO

CARLOS ARI SUNDFELD E ANDRÉ ROSILHO

O presente livro é fruto do desenvolvimento de projetos de pesquisa no âmbito


de disciplina do Mestrado Profissional em Direito Público da FGV Direito SP. Trata-se
de programa pioneiro no Brasil, concebido e estruturado para fomentar pesquisas
aplicadas de ponta, ligadas aos mais relevantes temas do direito público contemporâneo.
O objetivo foi criar ambiente efervescente, dinâmico, estimulante, capaz de fornecer aos
alunos — profissionais já experimentados no mundo público — o instrumental
necessário para fazerem a diferença.
A obra que o leitor tem em mãos é a prova de que Mestrado Profissional em
Direito Público da FGV Direito SP veio para deixar sua marca.
Parcela dos textos (capítulos 1 a 4) propõe reflexões voltadas à compreensão da
arquitetura da governança pública no Brasil. De modo geral, eles visam descrever as
características da organização administrativa brasileira; o modo pelo qual instituições
públicas interagem e convivem; o modo pelo qual decisões são tomadas no âmbito da
administração pública; e a maneira pela qual a governança pública brasileira é percebida
por órgãos de controle (Judiciário, Tribunais de Contas, Ministério Público etc.).
Outra parcela dos textos (capítulos 5 e 6) contribui para identificar os traços
gerais da arquitetura do sistema brasileiro de controle público. Eles buscam
compreender as possibilidades e limites dos órgãos de controle; identificar, nas normas
e na atuação concreta dos órgãos de controle, eventual preocupação com a segurança
jurídica; e localizar as tendências e desafios em matéria de controle da administração
pública brasileira.
Neste ambiente público de alta complexidade, o capítulo 7 propõe investigação
sobre os dilemas éticos do profissional jurídico contemporâneo.
O mundo público passa por transformações incríveis propondo novos e
complexos desafios para o prático e o teórico do Direito. Paradoxalmente, ainda há
escassez de boas ideias nesse mundo. O leitor talvez possa encontrar certo alento neste
livro, que, em nichos específicos, fornece diagnósticos e propostas baseadas em
pesquisa aplicada, com os olhos voltados à realidade.

6
A concretização desta obra não teria sido possível sem o apoio e estímulo de
Mario Engler Pinto Junior e Carolina Dalla Pacce. Julia Lillo, pesquisadora do Grupo
Público da FGV Direito SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp, teve
papel fundamental na revisão de textos.

7
Capítulo 1 – Agências reguladoras federais são mesmo autônomas?1

Adriano Daleffe

1. Introdução
A criação das agências reguladoras no Brasil insere-se num movimento mais
vasto - e contínuo - de descentralização do poder estatal através da adoção de soluções
autonômicas (SUNDFELD, 2006, p.24). A bandeira do movimento é autonomia e foi
brandida em diversos momentos históricos por razões variadas: Municípios,
Universidades, autarquias e empresas estatais, assim como entes não-estatais
(organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público) são
respostas, cada qual a seu modo, a reivindicações de autonomia em relação ao poder
central.
Muito embora já se convivesse com entidades estatais dotadas de certa
autonomia em relação ao Executivo e dedicadas a regular o sistema financeiro
nacional2, foi na década de 90 do século passado que o movimento de autonomização
gerou as primeiras agências reguladoras federais assim denominadas, a reboque da
implantação de programa de desestatização com ênfase em serviços públicos até então
prestados direta ou indiretamente pelo Estado.
Inaugurado pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL3 e
incrementado – qualitativamente, inclusive – pela Agência Nacional de
Telecomunicações – ANATEL4, o movimento não parou. No intervalo de uma década
foram criadas outras oito agências reguladoras federais em setores tão diversos como
petróleo, saúde suplementar, águas e aviação civil. A mais recente delas é a Agência
Nacional de Mineração, criada pela Lei Federal n° 13.575, de 26 de dezembro de 2017,

1
Resumo: O artigo explora a autonomia das agências reguladoras federais sob dois enfoques: o primeiro
consiste na análise de mecanismos empregados pelo legislador para especificar e assim construir a
autonomia das agências; o segundo passa pela inserção dessas autarquias especiais no interior da máquina
administrativa federal e consequente identificação do espaço de atuação autônoma. Segue-se uma
abordagem dos mecanismos utilizados para sabotar a autonomia das agências reguladoras federais que
conduzem à conclusão de que, todo o esforço – legislativo, técnico e doutrinário - não foi suficiente para,
em termos concretos, garantir a instituição de agências reguladoras federais autônomas no Brasil.
Palavras-chave: Agências reguladoras federais – Autonomia – Construção - Sabotagem.
Sumário: 1. Introdução; 2. A autonomia construída pelo legislador; 3. A autonomia no interior da
máquina administrativa; 4. A sabotagem; 5. Conclusão; 6. Bibliografia.
2
Conselho Monetário Nacional – CMN e Banco Central do Brasil, criados em 1964, e Comissão de
Valores Mobiliários - CVM, instituída em 1976.
3
Criada pela Lei Federal n° 9.427, de 26/12/96.
4
Criada pela Lei Federal n° 9.472, de 16/7/97.

8
e que será mencionada ao longo do artigo em razão das inovações propostas pelo
Executivo no que diz respeito à autonomia.
Trata-se de entidades federais às quais a Lei confere independência, ou melhor,
autonomia; contudo, são entidades autônomas que integram a Administração Pública
Indireta e por isso “não podem funcionar como se fossem ´Estados independentes´, isto
é, verdadeiros Estados ao lado do Estado” (SUNDFELD, 2006, p.27).
Mas afinal, o que se deve entender por autonomia das agências reguladoras
federais? Quais são os mecanismos que o legislador tem utilizado para concretizar essa
autonomia nas Leis de criação das agências? E na medida em que integram a
Administração Pública Indireta e são constituídas sob a forma de autarquia, resta algum
espaço de atuação das agências reguladoras que pode ser considerado como autônomo?
O artigo buscará responder a essas perguntas seguindo duas linhas: a primeira
consistirá em identificar a autonomia a partir dos mecanismos empregados pelo
legislador para especificá-la e, em última análise, construí-la. A segunda linha passará
pela inserção das agências reguladoras federais, integrantes da máquina administrativa,
no espaço de orientação, coordenação e supervisão ministerial a que estão sujeitas. Na
sequência será apresentado um contraponto: a sabotagem da autonomia das agências
reguladoras federais.

2. A autonomia construída pelo legislador


O arcabouço legal das agências reguladoras federais é integrado por Leis
específicas de criação de cada qual, promulgadas em momentos históricos distintos, mas
que, de todo o modo, compartilham elementos comuns. Há também uma Lei de
conteúdo geral (que não é uma Lei Geral) destinada a disciplinar a gestão de recursos
humanos aplicável indistintamente a todas elas5.
Autonomia não é um conceito positivado, tampouco há uma fórmula única
replicada pelas Leis que criaram as agências reguladoras no Brasil destinada a
concretizá-la. Tem razão Conrado Hübner MENDES ao afirmar que
Não existe qualquer regra geral, no Direito Positivo, que
estabeleça tais critérios (de independência das agências) ou que
imponha determinada consequência prática ao fato de alguma agência

5
Há proposta de criação de uma Lei Geral das Agências Reguladoras em discussão no Congresso
Nacional cujo objetivo declarado é incrementar a autonomia das agências reguladoras federais. Cuida-se
do Projeto de Lei do Senado (PLS) n° 52/2013, encaminhada à Câmara dos Deputados em 6/12/16 onde
aguarda parecer de Comissão Especial instituída por ato do Presidente da casa de 14/12/16.

9
ser considerada independente. Cada agência tem sua linha de atuação
e margem de liberdade expressamente determinadas por sua lei
instituidora, a partir da qual – aí, sim – pode-se tirar conclusões
práticas (2006, p.126).

Isso não invalida, contudo, a identificação de alguns mecanismos usualmente


empregados pelo legislador e que acompanham desde o início o movimento de
institucionalização das agências reguladoras federais no Brasil – e acredita-se que
alguns deles tenham sido aperfeiçoados quando da criação da Agência Nacional de
Mineração.
O primeiro mecanismo é de técnica de redação legislativa e denota uma
preocupação permanente do legislador em afirmar no texto da Lei de instituição a
independência das agências reguladoras.
A ANVISA, por exemplo, é qualificada pela sua Lei de criação como “entidade
administrativa independente, sendo-lhe assegurada, nos termos desta Lei, as
prerrogativas necessárias ao exercício adequado de suas atribuições” 6. De acordo com
a Lei, a ANATEL “atuará como autoridade administrativa independente (...)” 7. E com
a Agência Nacional de Mineração esse discurso legislativo não mudou. A fórmula – de
efeito retórico - só trocou de lugar: o que antes se usava inserir logo nos primeiros
artigos da Lei foi deslocado para a parte final, mais precisamente para o art. 20 da Lei
Federal n° 13.575, de 26/12/17.
As demais opções legislativas voltadas a conferir às agências reguladoras
federais um espaço autonômico – ou uma autonomia regulatória em sentido amplo -
giram em torno dos seguintes aspectos: i) financeiro; ii) administrativo; iii) decisório. A
cláusula geral que as contempla foi empregada com maior rigor técnico na Lei de
criação da ANATEL: “A natureza de autarquia especial conferida à Agência é
caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação
hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira” 8.
E como se garante autonomia financeira à agência? Conferindo-lhe receitas
próprias, ou seja, as “denominadas taxas de fiscalização ou regulação pagas por
aqueles que exercem as respectivas atividades econômicas reguladas, de modo a que
inexista dependência de recursos do orçamento do Tesouro”, tornando-as

6
Art. 4° da Lei Federal n° 9.782/99.
7
Art. 9° da Lei Federal n° 9.472/97.
8
Art. 8°, § 2°, da Lei Federal n° 9.472/97.

10
autossustentáveis (GUERRA, 2012, p.120). Além disso, garantindo-lhe a prerrogativa de
elaborar e executar seu próprio orçamento.
A independência administrativa é sinônimo de independência de gestão que, de
acordo com Floriano de Azevedo MARQUES NETO, “cuida (...) de garantir uma
liberdade de meios para a boa atuação do regulador. Trata-se de dotá-lo de recursos e
instrumentos para exercer suas atividades sem necessidade de recorrer ao poder
central” (2009, p.76)9. Sob esse enfoque, a agência reguladora tem liberdade para firmar
contratos, convênios, organizar-se internamente e contratar pessoal.
Por fim, a autonomia decisória – para a qual convergem diversas ferramentas já
empregadas pelo legislador. A primeira consiste na estipulação de critérios objetivos
para a indicação dos ocupantes dos cargos de direção das agências reguladoras,
minimizando o risco de que os atos da agência sejam contaminados por interesses
políticos ou setoriais. A segunda reside na garantia de mandato fixo e estabilidade para
os dirigentes das agências, que só podem ser afastados dos cargos em hipóteses
específicas expressamente previstas em Lei, descartando-se de antemão a possibilidade
de exoneração ad nutum. Por último a ausência de subordinação hierárquica através da
estipulação de uma instância de deliberação máxima dentro da estrutura organizacional
da agência.
A proposta de criação da Agência Nacional de Mineração contemplou duas
inovações diretamente relacionadas à autonomia decisória, mas apenas uma delas foi
mantida na Lei de conversão da Medida Provisória n° 791, de 25/7/17.
Inspirado pela recente Lei das Estatais10, há um amplo leque de vedações à
indicação para ocupar a diretoria da agência reguladora, o que inclui “parentes
consanguíneos ou afins até o terceiro grau” de Ministro de Estado, Secretário de
Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de
mandato no Poder Legislativo de qualquer ente federativo, ainda que licenciados dos
cargos11. Essa inovação foi mantida no art. 9° e § único da Lei Federal n° 13.575, de
26/12/17.
A outra inovação – proposta na Medida Provisória, mas infelizmente não
convertida em Lei - consistiu na criação de uma lista de substituição destinada a suprir a
vacância dos cargos na diretoria colegiada da agência, que seria formada por servidores

9
Registre-se que o autor considera a autonomia financeira como mecanismo de garantia de independência
administrativa.
10
Lei Federal n° 13.303/16.
11
Art. 9° e § único da Lei Federal n° 13.575/17.

11
da própria agência escolhidos e designados pelo Presidente da República entre os
indicados pela diretoria colegiada12. Ou seja, foi desperdiçada oportunidade para
instituir mecanismo destinado a minimizar o risco de paralisia decisória da agência
reguladora em razão da vacância dos cargos de dirigentes.
Em suma, a autonomia das agências reguladoras federais se traduz em
autonomia financeira, administrativa e decisória. São esses os objetivos que o legislador
procurou atingir através dos diversos mecanismos empregados nas Leis de instituição
das agências reguladoras federais, recentemente incrementados – quanto à autonomia
decisória - pela Lei de criação da Agência Nacional de Mineração.

3. A autonomia no interior da máquina administrativa


As agências reguladoras federais foram criadas, invariavelmente, sob a forma
jurídica de autarquia, cada qual vinculada a um Ministério. Essa opção legislativa insere
as agências reguladoras no espaço de orientação, coordenação e supervisão ministerial
(art. 87, I, CF/88), assim como no espaço de direção superior da administração federal
de competência do Presidente da República, que a exerce com o auxílio dos Ministros
de Estado (art. 84, II, CF/88).
São todas autarquias, mas não autarquias comuns. Trata-se de autarquias
especiais, de regime especial ou ainda de regime autárquico especial - e é nessa
especialidade que reside uma segunda opção legislativa: afastá-las do regime autárquico
comum, preservando-lhes autoridade pública, e atribuir-lhes prerrogativas peculiares
(entre outras, a de produzir normas) associadas à sua especialização técnica e às
especificidades dos setores da economia aos quais se dedicam.
Essa roupagem autárquica (SUNDFELD, 2006, p.26) emprestada às agências
reguladoras revela um processo de autonomização de segundo nível. Afinal, a autarquia
comum já é fruto do movimento autonômico ao deslocar parcela de patrimônio e de
autoridade pública do eixo central da Administração Pública para entidade a ela
indiretamente vinculada, criada por lei, dotada de personalidade jurídica e receita
própria; uma autarquia especial parte de algo que já é especial – a autarquia – ao qual
são acrescentadas notais adicionais de especialidade.
Mas ainda que o legislador as tenha qualificado como autônomas ou
independentes, as agências reguladoras são “peças” da engrenagem da máquina

12
Art. 14 da Medida Provisória n° 791/17.

12
administrativa e, criadas sob a forma de autarquias, estão sujeitas ao poder de
supervisão ministerial lato sensu bem como ao poder de direção superior da
administração pública, de competência do Presidente da República. Devem, portanto,
funcionar em harmonia com as demais “peças” da engrenagem.
É inevitável, portanto, a conclusão de que “alguma espécie de ligação entre
Executivo e agências é imposta pela Constituição Brasileira, pois tem de haver ao
menos uma supervisão administrativa daquele em relação a estas (CF, arts. 84, II, e 87,
parágrafo único, I)” (SUNDFELD, 2006, p.26).
Ocorre que o vínculo existente entre as agências reguladoras e os
correspondentes Ministérios é de natureza estritamente administrativa, para não dizer
burocrática. Orientar, coordenar e supervisionar não significa comandar e controlar: os
atos praticados pelas agências federais, nos estritos limites da sua competência
regulatória, não se expõem ao controle pelos Ministérios a que estão vinculadas. Ou
como defende Floriano de Azevedo MARQUES NETO, “Não calha dar aos termos de
orientação, coordenação e supervisão constantes do texto constitucional um caráter de
ingerência na atividade dos órgãos vinculados aos respectivos ministérios” (2009,
p.105-106).
E a direção superior da administração pública, de competência do Presidente da
República, tem o “sentido de dar o norte, as orientações da macropolítica
governamental. E não competências para se imiscuir no exercício de todas as
competências administrativas” (MARQUES NETO, 2009, p.105).
Em resumo, a autonomia das agências reguladoras federais se revela como um
espaço de não ingerência dos Ministérios a que estão vinculadas, tampouco do
Presidente da República no exercício da direção superior da Administração Pública. O
que se reconhece aos Ministérios em relação às agências a eles vinculadas é o exercício
do poder de orientação, coordenação e supervisão, não de comando e controle.

4. A sabotagem
Nos capítulos anteriores foi demonstrado que a autonomia das agências
reguladoras federais foi bem desenhada pelo legislador, que se preocupou em
concretizá-la sob três ângulos principais: financeiro, administrativo e decisório. Do
mesmo modo, a forma jurídica escolhida para “vestir” as agências reguladoras federais
é adequada para lhes conferir autoridade pública sem necessariamente submetê-las ao
poder hierárquico dos Ministérios a que estão vinculadas. São autarquias federais,

13
porém autarquias especiais orientadas, coordenadas e supervisionadas pelos Ministérios
e não por eles comandadas.
Também foi demonstrado que, através de pontos específicos da proposta de
criação da Agência Nacional de Mineração, nem todos incorporados à Lei Federal n°
13.575, de 26/12/17, permanece o esforço no sentido de incrementar a autonomia das
agências reguladoras através de ferramentas simples, extraídas da experiência
regulatória já adquirida - tal como a lista de substituição dos dirigentes voltada a
minimizar o risco de paralisia decisória que, infelizmente, não sobreviveu à fase de
conversão em Lei da Medida Provisória n° 791/17.
Fosse o caso de encerrar o artigo por aqui, dir-se-ia que a autonomia das
agências reguladoras federais não decorre das Leis de criação desses entes estatais,
única e exclusivamente, tampouco deriva apenas do espaço que lhes foi reservado como
integrantes autárquicos da Administração Federal Indireta e, portanto, sujeitos à
orientação, coordenação e supervisão ministerial. A autonomia seria o resultado
daquilo que é afirmado pela Lei específica de criação de cada agência e preservado pelo
poder de supervisão ministerial lato sensu.
Contudo, todo o esforço – legislativo, técnico e doutrinário - não foi suficiente
para, em termos concretos, garantir a instituição de agências reguladoras federais
autônomas no Brasil. Em outras palavras, a autonomia das agências reguladoras foi – e
continua sendo - sabotada por todos os lados.
Em primeiro lugar a autonomia financeira das agências sucumbe diante de
restrições orçamentárias. Ou como explicam Eduardo JORDÃO e Maurício Portugal
RIBEIRO, “no âmbito da União, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o
´Princípio da Unidade Orçamentária´ tem sido interpretado como exigência de que
todos os recursos arrecadados pela agência voltem para a conta única da União”
(2017, p.187)13. Logo, o retorno desses recursos – muito embora alocados pela Lei de
criação - à agência passa a depender de manobras orçamentárias que se processam na
arena política. O resultado é que as agências são impedidas de se tornarem
autossustentáveis.

13
Os autores noticiam que “Segundo levantamento da entidade Contas Abertas, entre 2010 e 2015, anos
do Governo de Dilma Roussef, o orçamento total previsto para as agências era de R$ 57 bilhões. No
entanto, apenas R$ 19,3 bilhões foram efetivamente liberados e gastos. Em 2016, a ANEEL havia
estimado orçamento de R$ 200 milhões. O Governo aprovou a metade: R$ 100 milhões. Na sequência,
dois decretos reduziram ainda mais o valor: primeiro para R$ 90 milhões e depois para R$ 44 milhões –
ou seja, menos de um quarto do valor inicialmente proposto pela agência e cerca de um décimo do que a
própria agência arrecadara no ano anterior” (2017, p.188).

14
Em segundo lugar a independência administrativa é sacrificada na medida em
que, também por conta da ausência de autonomia financeira, as agências não têm
liberdade para selecionar e contratar seus próprios quadros. E não parece que a proposta
incorporada no art. 35, inciso I, da Lei de criação da Agência Nacional de Mineração
seja suficiente para, ainda que parcialmente, resgatar a autonomia administrativa. Ou
seja, solicitar diretamente ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão –
e não ao Ministério das Minas e Energia, ao qual está vinculada - “a autorização para a
realização de concursos públicos e para o provimento dos cargos efetivos autorizados
em lei para seu Quadro de Pessoal e as alterações no referido Quadro (...)”
permanecerá esbarrando na “disponibilidade orçamentária” que, como visto, está fora
do alcance da agência.
A sabotagem da autonomia decisória, por sua vez, se dá em diversas frentes.
Egon Bockmann MOREIRA afirma que
De tempos para cá elas (as agências reguladoras) se
transformaram em demandas partidárias (a compor os respectivos
mosaicos de siglas: o PC do B ocupa a ANP; o PMDB briga pela
ANEEL e ANAC; o PTB quer a ANTT – e assim por diante). Muitos
dos cargos diretivos passaram a ser preenchidos por pessoas sem a
necessária sofisticação técnica – esta, sim, indispensável à condução
da política de regulação setorial (2014, p.132).

Uma vez disputados no jogo político, os cargos diretivos das agências


reguladoras deixam de ser ocupados por técnicos escolhidos em razão de sua
qualificação técnica e as decisões regulatórias perdem não apenas em qualidade como
em legitimidade.
Isso não bastasse, são recorrentes longos períodos de vacância nos cargos
diretivos das agências reguladoras federais que conduzem a uma paralisia decisória.
Estudo elaborado por professores da Escola de Direito da FGV/SP acusa que
Em média (48% dos casos), o Governo federal demora de
dois meses a um ano para indicar um novo nome de dirigente.
Algumas Agências sofrem mais que outras os efeitos da vacância. Os
dois extremos são os da ANEEL (baixa vacância) e da ANTT (alta
vacância): somando-se os dias em que os cargos nessas Agências
ficaram desocupados, a ANEEL totaliza 3,8 anos de vacância,
enquanto a ANTT soma 20,7 anos de vacância (SALAMA,
BARRIONUEVO e PALMA, 2016, p.12).

15
Egon Bockmann MOREIRA atribui a essa patologia o nome de locaute
regulatório, o que faz com que “algumas das agências fiquem literalmente impedidas
de regular os respectivos setores devido à falta de quórum em suas diretorias
colegiadas – conjugado com o fato de que não dispõem da expertise necessária para o
respectivo direito da regulação” (2014, p.133).
O episódio envolvendo a renúncia de Luiz Guilherme Schymura ao mandato de
diretor da ANATEL após críticas recebidas do Chefe do Poder Executivo e do Ministro
das Comunicações em manifestações públicas revela que nem mesmo a estipulação de
mandatos fixos e a estabilidade conferida aos dirigentes das agências reguladoras
federais são capazes de, por si só, preservar da sabotagem a autonomia decisória
(JORDÃO e RIBEIRO, 2017, p.183-184).
No interior da máquina administrativa a autonomia das agências reguladoras não
resiste ao reconhecimento, patrocinado por parecer da Advocacia-Geral da União, de
que as decisões finais tomadas pelas agências ficam sujeitas a controle do Ministério a
que estão vinculadas mediante recurso hierárquico impróprio.
Mais precisamente, através do Parecer n° AC-051, do então Advogado-Geral da
União, aprovado pelo Presidente da República nos termos do art. 40, § 1°, da Lei
Complementar n° 43/1993, adotou-se o entendimento - vinculante para todos os órgãos
da Administração Pública Federal – de que
Estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por
provocação dos interessados, inclusive pela apresentação de recurso
hierárquico impróprio, as decisões das agências reguladoras referentes
às suas atividades administrativas ou que ultrapassem os limites de
suas competências materiais definidas em lei ou regulamento, ou,
ainda violem as políticas públicas definidas para o setor regulado pela
Administração direta.

Ou seja, em qualquer desses casos – exercício de atividade administrativa,


prática de atos ultra vires ou de atos que impliquem violação de políticas públicas, as
decisões das agências reguladoras, adotadas pelas instâncias máximas em suas
respectivas estruturas organizacionais, podem ser revistas e anuladas pelos Ministérios a
que estiverem vinculadas.

16
5. Conclusão
Conferir e preservar autonomia em favor das agências reguladoras federais não
deveria causar espécie; há frutos do mesmo movimento autonômico que as gerou com
os quais se convive tranquilamente – as autarquias comuns ilustram bem esse ponto.
Não se cuidou aqui de investigar as causas dessa resistência, o que demandaria
enveredar por outras áreas do conhecimento. O que se buscou no artigo foi explorar a
autonomia das agências reguladoras federais através dos mecanismos empregados pelo
legislador para especificá-la, bem como do espaço que lhes é reservado em razão da sua
roupagem autárquica especial. Talvez por ingenuidade, acreditou-se inicialmente que
as linhas de investigação escolhidas permitiriam desvendar outros ângulos da
autonomia, que a preservassem. Porém, o capítulo dedicado à sabotagem da autonomia
das agências reguladoras federais é a prova de que a crença inicial não resistiu à dura
realidade.

6. Bibliografia

GUERRA, Sérgio. Agências Reguladoras: da organização administrativa piramidal à


governança em rede. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
JORDÃO, Eduardo; RIBEIRO, Maurício Portugal. Como desestruturar uma agência
reguladora em passos simples. Disponível em:
https://estudosinstitucionais.com/REI/article/view/155.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes:
fundamentos e seu regime jurídico. 1ª ed., 1ª. reimpressão. Belo Horizonte: Fórum,
2009.
MENDES, Conrado Hübner. “Reforma do Estado e Agências Reguladoras:
Estabelecendo os Parâmetros de Discussão”, in Direito Administrativo Econômico
(coord. Carlos Ari Sundfeld). 1ª ed., 3ª tiragem, São Paulo: SBDP/Malheiros, 2006.
MOREIRA, Egon Bockmann. “Qual é o futuro do direito da regulação no Brasil?”, in
Direito da Regulação e Políticas Públicas (org. Carlos Ari Sundfeld e André Rosilho.
São Paulo: Malheiros, 2014.
SALAMA, Bruno M., BARRIONUEVO, Arthur, PALMA, Juliana B. Processo de
nomeação de dirigentes de agências reguladoras – Sumário Executivo. Disponível em
https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/GRP.

17
SUNDFELD, Carlos Ari. “Introdução às Agências Reguladoras”, in Direito
Administrativo Econômico (coord. Carlos Ari Sundfeld). 1ª ed., 3ª tiragem,
SBDP/Malheiros, 2006.

18
Capítulo 2 – Governança do conselho fiscal nas entidades fechadas de previdência
complementar patrocinadas pelo poder público14

Fernanda Bayeux

1. Introdução
Em 2015, foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
destinada a investigar indícios de aplicação incorreta de recursos de quatro EFPCs
patrocinadas pelo poder público15 e de manipulação na gestão de tais entidades por parte
do governo federal, o que supostamente teria causado enormes prejuízos aos seus
participantes: a CPI dos Fundos de Pensão. Amparada pelos resultados da CPI, em
setembro de 2016, a Polícia Federal brasileira deflagrou a Operação Greenfield, que está
investigando desvios no âmbito de EFPCs estimados em pelo menos R$ 8 bilhões, por
meio da utilização de Fundos de Investimento em Participação (FIPs) para aquisição de
participação em empresas.
De acordo com o relatório da Operação Greenfield16, as quotas desses FIPs
estariam sobreprecificadas, e os Fundos de Pensão que neles investiram teriam sofrido
prejuízos consideráveis.
O mais recente escândalo atingindo as EFPCs se deu em maio de 2017, quando
executivos da J&F Investimentos declararam, em suas delações premiadas, que houve
supostos pagamentos de propinas para ex-presidentes de duas grandes EFPCs, no

14
Resumo: O presente artigo tem o propósito de investigar se a governança corporativa das Entidades
Fechadas de Previdência Complementar (EFPCs ou Fundos de Pensão) patrocinadas pelo poder público
permitem que seus conselhos fiscais exerçam influência efetiva na correta aplicação dos recursos
financeiros arrecadados pelas EFPCs, a fim de garantir a sustentabilidade de tais entidades e o pagamento
de benefícios futuros a seus participantes. Nossa conclusão é a de que, na prática, os conselhos fiscais não
exercem de forma efetiva suas prerrogativas previstas nas normas vigentes no Brasil, e que há muito
espaço para expansão da atuação de tais órgãos e, portanto, melhoria da governança e performance das
EFPCs.
Palavras-chave: Governança Corporativa. Entidades Fechadas de Previdência Complementar. Conselho
Fiscal.
Sumário: 1. Introdução; 2. Governança Corporativa – breve definição; 3. Regulamentação das EFPCs no
Brasil; 4. EFPCs patrocinadas pelo poder público e seus órgãos gestores; 5. A atuação do Conselho Fiscal
nas EFPCs; 6. Conclusões; 6. Bibliografia.
15
Os fundos: Postalis (Correios), Petros (Petrobras), Funcef (Caixa Econômica Federal) e Previ (Banco
do Brasil).
16
BRASIL. Ministério Público Federal. Relatório Final – Operação Greenfield. Processo nº 35352-
77.2016.4.01.3400. Disponível em: <www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/greenfield-doc-11>.
Acesso em: 06 dez. 2017.

19
âmbito de investimentos feitos por tais fundos em projetos do interesse de empresas
controladas pelos irmãos Batista.
Neste trabalho, procura-se entender a governança corporativa das EFPCs
brasileiras, incluindo seu marco jurídico, e se seus conselhos fiscais poderiam exercer
um papel mais amplo e efetivo em tais entidades para prevenção de situações como as
descritas acima.

2. Governança Corporativa – breve definição


Uma das definições mais simples de governança corporativa é a de um
"sistema pelo qual as companhias são dirigidas e controladas"17. Partindo-se desse
conceito, pode-se entender que a governança corporativa diz respeito à distribuição de
poder em determinada organização, bem como suas práticas de gestão e fiscalização.
Ainda, de acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OECD), a governança corporativa compreende uma estrutura de
relacionamentos e correspondentes responsabilidades entre um grupo central, formado
pelos acionistas, membros do conselho de administração e gestores designados para
melhor promover o desempenho competitivo necessário para atingir os objetivos
principais da corporação (OCDE, 2016).
Na mesma linha da OECD, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) define
governança corporativa como: "[...] o conjunto de práticas que tem por finalidade
otimizar o desempenho de uma companhia ao proteger todas as partes interessadas,
tais como investidores e credores, facilitando o acesso ao capital".(BRASIL, 2002)18
A definição da CVM, assim como a da OECD e a de outros organismos
nacionais e internacionais (IBGC, 2015), mostra, em última análise, que a governança
corporativa tem como finalidade a geração de um ciclo virtuoso, em que boas práticas
como a eleição de conselheiros independentes, a transparência nos processos internos e
a efetiva prestação de contas da gestão servem como incentivo para que as decisões
tomadas pelos gestores observem o melhor interesse da companhia. Na última etapa
desse ciclo, espera-se maior retorno ao acionista, dado o aumento de valor da empresa e
o menor custo de captação de seus investimentos.

17
Cadbury Report. Portal University of Cambridge. Disponível em: <http://cadbury.cjbs.archios.info/report>.
Acesso em: 05 dez. 2017. Apesar de ter sido publicado no final de 1992, ainda tem muita relevância no estudo do
tema governança corporativa.
18
Vale ressaltar que, em decisão de 09/02/2010, o Colegiado da CVM considerou que o conteúdo da cartilha
não se encontra mais plenamente atualizado e que uma nova versão poderá ser editada em momento oportuno,
conforme avaliação do Colegiado.

20
A existência de um bom sistema de governança corporativa é essencial no caso
das EFPCs. Por sua própria natureza, os fundos de pensão têm sua propriedade
distribuída por inúmeros pequenos investidores, que ali alocam provavelmente os
únicos recursos que possuem, na expectativa de uma renda futura.
Esse fenômeno gera grande dispersão da propriedade, pois os participantes e
assistidos têm reduzida sua capacidade de influir nas ações dos gestores, seja pela
pulverização do controle, seja por seus pequenos conhecimentos em relação aos
intricados arranjos financeiros e econômicos que estão por trás das decisões de
investimentos das EFPCs. No caso de déficits em Fundos de Pensão de empresas
públicas, recursos do Tesouro Nacional são desviados para cobri-los, afetando toda a
sociedade.
Finalmente, não se pode esquecer o importante papel que os Fundos de Pensão,
como grandes investidores institucionais, exercem sobre o mercado de capitais e sobre o
desempenho das empresas nas quais tem participação relevante. Como espera-se que
estes monitorem efetivamente as empresas investidas, se seus próprios controles e
processos internos são falhos e ineficientes, como demonstrado pelo resultado da CPI?

3. Regulamentação das EFPCs no Brasil


Atualmente, a Constituição Brasileira prevê três regimes de previdência: regime
geral de previdência social, ou RGPS (art. 201)19; regime de previdência complementar (art.
202), do qual se tratará abaixo; e os regimes próprios dos servidores públicos efetivos e
militares ou RPPS, (art. 40), que inclui a possibilidade de um sub-regime (misto) específico
de previdência complementar, que não será objeto deste estudo.
A previdência complementar pode ser aberta ou fechada. No caso da
previdência complementar aberta, os planos são comercializados por bancos e
seguradoras e podem ser adquiridos por qualquer pessoa física ou jurídica, sendo
regulamentados e fiscalizados pela SUSEP (Superintendência de Seguros Privados).
Já no caso da previdência fechada, os planos são criados por empresas públicas
ou privadas e são voltados exclusivamente para seus funcionários. Tais entidades, as
EFPCs ou Fundos de Pensão, são regulamentadas e fiscalizadas pela Superintendência

19
Onde se agrupam duas modalidades de sistemas públicos e obrigatórios: o regime geral de previdência
social administrado pelo INSS, destinado aos trabalhadores da iniciativa privada, aos servidores de entes
federativos que não criarem regimes próprios e aos empregados públicos; e os regimes próprios de
previdência destinados aos servidores titulares de cargo efetivo da União, dos estados, do Distrito Federal
e de quase metade dos municípios, incluídas suas autarquias e fundações.

21
Nacional de Previdência Complementar (PREVIC), uma autarquia vinculada ao
Ministério da Previdência Social.
A relação entre participantes, empresa patrocinadora (BRASIL, 2013)20 e
EFPC é regida pelos princípios contidos no artigo 202 da Constituição, bem como nas
leis complementares nos 108 e 109, ambas de 29 de maio de 2001, e tem como
características: a natureza privada e contratual; o caráter complementar; a autonomia em
relação ao regime geral e ao contrato de trabalho; a facultatividade; a constituição de
reservas; a regulamentação por lei complementar; e, por fim, a inserção dos
participantes nos colegiados e instâncias de decisão (RODRIGUES, 2005, p.6).
Como já citado, houve, no Brasil, historicamente, uma série de escândalos e
quebras de Fundos de Pensão devido a fraudes, desvio de recursos e falências, na
mesma linha dos que são vistos hoje21. Como reação a tal cenário, foram promulgadas
as leis complementares nos 108 e 109, que definiram dispositivos de governança
baseados nos institutos dos conselhos Deliberativo e Fiscal, bem como da Diretoria
Executiva, exigindo desta profissionais habilitados às suas diversas atribuições. Os
conselhos tiveram também suas competências e seus critérios de preenchimento
definidos, garantindo-se a representação de patrocinadoras, participantes e assistidos.
Todavia, foi somente a partir da Resolução CGPC nº 13, de outubro de 2004
(Resolução nº 13/2004), que princípios e regras de governança corporativa, controles
internos e gerência mais detalhados foram estabelecidos para as EFPCs, como se verá
abaixo.

20
No contexto de uma EFPC, as principais partes interessadas são: (i) o patrocinador, que é a empresa ou
grupo de empresas de direito privado ou entes de direito público, que oferecem aos seus empregados ou
servidores, planos de benefícios de natureza previdenciária; (ii) participante: é a pessoa física que,
vinculada a um patrocinador ou instituidor, adere ao plano de benefício de natureza previdenciária
operado por EFPC, com o objeto de formar uma poupança previdenciária para a garantia da renda futura
para si ou para seus beneficiários e (iii) assistido, que pode ser o participante ou beneficiário que esteja
recebendo complementação de aposentadoria ou de pensão, ou seja, as pessoas que estejam em gozo de
benefícios de prestação continuada.
21
Em 1992, denúncias envolvendo autoridades do governo Collor levaram à instalação da primeira
Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI no Senado Federal, cujo tema foi relativo aos fundos de pensão.
Os trabalhos concluíram pela existência de tráfico de influência nas decisões de investimento dos fundos.
As causas mais relevantes foram a falta de estrutura da então Secretaria Nacional de Previdência Social e
Complementar para supervisionar e fiscalizar as atividades dos fundos e, claro, a falta de controles
internos dos próprios fundos. Apenas três anos depois, em 1995, foi instalada uma CPI dos Fundos de
Pensão na Câmara dos Deputados. O relatório final apontou dificuldades extremas no levantamento de
provas, uma vez que as operações nos mercados financeiro e imobiliário naturalmente envolvem riscos,
sendo, em muitos casos, fica difícil a distinção entre um mau negócio e um negócio ilícito. Por esse
motivo, a opção dos legisladores após as conclusões dessa CPI foi voltar o foco para futuro do sistema,
procurando identificar falhas, razões de inoperância da fiscalização e brechas legais existentes, com a
finalidade de propor alterações e medidas concretas.

22
4. EFCPs patrocinadas pelo Poder Público e seus órgãos gestores

A Lei Complementar nº 108/2001 trata da relação entre a União, os estados, o


Distrito Federal e os municípios, suas autarquias, fundações, sociedades de economia
mista e outras entidades públicas e suas respectivas entidades fechadas de previdência
complementar, e estabelece regras diferentes de estruturação das EFPCs instituídas por
empresas privadas, que são regulamentadas apenas pela Lei Complementar nº 109/2001.
De acordo com o art. 9 da Lei Complementar nº 108/2001, a estrutura
organizacional das EFPCs patrocinadas pelo poder público será constituída por um
Conselho Deliberativo, um Conselho Fiscal e uma Diretoria-Executiva.
O Conselho Deliberativo é o órgão máximo da estrutura organizacional e é
responsável pela definição da política geral de administração da entidade e de seus planos
de benefícios. Os seus membros têm mandato de quatro anos, garantia de estabilidade e é
permitida uma recondução, com renovação da metade dos membros, a cada dois anos.
Integrado por no máximo seis membros de forma paritária entre representantes dos
participantes e assistidos (eleitos por seus pares) e dos patrocinadores, cabe a estes a
indicação do conselheiro-presidente, que terá, além do seu voto, o voto de qualidade
(BRASIL, 2001)22.
Já o Conselho Fiscal é órgão de controle interno da entidade, composto por no
máximo quatro membros, com paridade entre representantes de patrocinadores e de
participantes e assistidos, com mandato de quatro anos e eleição da metade de seus
membros a cada dois anos, sem direito à recondução, cabendo a tais membros a
indicação do presidente, que terá, além do seu voto, o voto de qualidade.
Finalmente, a Diretoria Executiva é o órgão responsável pela administração da
entidade, em conformidade com a política de administração traçada pelo Conselho
Deliberativo. É composta por no máximo seis membros, definidos em função do patrimônio
da entidade e do seu número de participantes e assistidos, entre os quais deverá ser indicado
o responsável pelas aplicações dos recursos da entidade, sendo responsáveis solidários os

22
“Art. 13. Ao conselho deliberativo compete a definição das seguintes matérias: I – política geral de
administração da entidade e de seus planos de benefícios; II – alteração de estatuto e regulamentos dos planos
de benefícios, bem como a implantação e a extinção deles e a retirada de patrocinador; III – gestão de
investimentos e plano de aplicação de recursos; IV – autorizar investimentos que envolvam valores iguais ou
superiores a cinco por cento dos recursos garantidores; V – contratação de auditor independente atuário e
avaliador de gestão, observadas as disposições regulamentares aplicáveis; VI – nomeação e exoneração dos
membros da diretoria-executiva; e VII – exame, em grau de recurso, das decisões da diretoria-executiva.
Parágrafo único. A definição das matérias previstas no inciso II deverá ser aprovada pelo patrocinador”.

23
demais membros da diretoria pelos danos e prejuízos causados à entidade para os quais
tenham concorrido.
Para os cargos de membros da Diretoria Executiva e dos conselhos
Deliberativo e Fiscal, são exigidos como requisitos prévios: comprovada experiência no
exercício de atividade na área financeira, administrativa, contábil, jurídica, de
fiscalização, atuarial ou de auditoria; não ter sofrido condenação criminal transitada em
julgado; não ter sofrido penalidade administrativa por infração da legislação da
seguridade social, inclusive da previdência complementar ou como servidor público; e
ter formação de nível superior (BRASIL, 2001)23.
Embora o Conselho Fiscal tenha sido obrigatório nas EFPCs desde a criação e a
regulamentação de tais entidades, foi apenas depois da publicação da Resolução CGPC nº
13, de 1º de outubro de 2004, que esse órgão passou a ter também maior responsabilidade,
não somente com os controles contábeis, mas também com o acompanhamento da gestão,
das atividades do Conselho Deliberativo e, em especial, da Diretoria Executiva.
Por sua importância, segue abaixo um resumo sobre o que dispõem os artigos
da Resolução CGPC nº 13 sobre temas de governança corporativa:
a) criação de padrões de segurança econômico-financeira e atuarial para
preservar a liquidez, a solvência e o equilíbrio dos planos de benefícios,
isoladamente, e da própria EFPC;
b) adoção de manual de governança corporativa que defina as relações entre os
órgãos estatutários da EFPC e participantes, assistidos, patrocinadores,
fornecedores de produtos e serviços, autoridades e outras partes interessadas;
c) desenvolvimento de cultura interna que enfatize e demonstre a todos os níveis
hierárquicos a importância dos controles internos;
d) promoção e manutenção pelos conselheiros, diretores e empregados das
EFPCs de conduta permanentemente pautada por elevados padrões éticos e de
integridade;
e) adoção de código de ética e conduta, assegurando-se o seu cumprimento;
f) competência técnica e gerencial compatível com a exigência legal e
estatutária e com a complexidade das funções exercidas, mantendo-se os
conselheiros, diretores e empregados permanentemente atualizados nas
matérias de suas responsabilidades;

23
Artigos 18 e 20. Além disso, os conselheiros estarão sujeitos aos requisitos estabelecidos pela PREVIC,
de tempos em tempos, por meio de Portarias e Instruções, para sua habilitação e qualificação.

24
g) estabelecer e manter o Estatuto da EFPC, que deve prever, claramente, com
relação aos órgãos estatutários, suas atribuições, composição, forma de
acesso, duração e término do mandato de seus membros, que devem manter
independência de atuação. Poderá ser adotado regimento interno para o
funcionamento desses órgãos;
h) a instituição, pelo Conselho Deliberativo, de auditoria interna que a ele se
reporte, para avaliar, de maneira independente, os controles internos da EFPC;
i) ser garantido o fluxo de informações entre os vários níveis de gestão e
adequado nível de supervisão;
j) os órgãos estatutários, no âmbito de suas competências, devem zelar pela
aderência da política de investimento, das premissas e das hipóteses atuariais; e
k) conceber e implementar políticas e procedimentos que estabeleçam adequada
estrutura de controle; entre outros.
Especificamente em relação ao Conselho Fiscal, a Resolução PREVIC nº 13/2004
criou novas e importantes competências para tal órgão, como a emissão de relatórios que
contemplem, no mínimo, informações sobre a aderência da gestão dos recursos garantidores
às normas em vigor e à política de investimentos sobre a aderência das premissas e
hipóteses atuariais e a execução financeira. Também com base no disposto em referida
Resolução, o papel do Conselho Fiscal foi claramente definido pela PREVIC:

O Conselho Fiscal deve assumir a responsabilidade sobre o


efetivo controle da gestão da entidade, alertar sobre qualquer desvio,
sugerir e indicar providências para a melhoria da gestão, além de
emitir parecer conclusivo sobre as demonstrações contábeis anuais da
entidade. O Conselho que optar pela contratação de serviços
especializados, para seu assessoramento, deve averiguar a qualificação
e a experiência das empresas e profissionais contratados, bem como
assegurar-se de que não haja conflito entre os prestadores de serviço
da entidade (2010, P.14).

5. A atuação do Conselho Fiscal nas EFPCs

A estrutura de governança das EFPCs começa a ser delineada no § 6º do artigo


202 da Constituição Federal, que determina, para aqueles fundos que tenham como
patrocinador qualquer entidade do poder público, que os participantes deverão estar
inseridos nos colegiados e instâncias de decisão em que seus interesses sejam objeto de

25
discussão e deliberação, sendo que a forma e o exercício de tal prerrogativa deverão ser
disciplinados em lei complementar. Ou seja, os participantes devem ter o direito de
fazer-se representar nos órgãos de administração das EFPCs, já que, em última
instância, são as principais partes interessadas em sua boa governança e performance.

Seguindo o mandamento constitucional, o artigo 35 da Lei Complementar nº


109 dispôs que:
Art. 35. As entidades fechadas deverão manter estrutura
mínima composta por conselho deliberativo, conselho fiscal e
diretoria-executiva.
§ 1º O estatuto deverá prever representação dos participantes
e assistidos nos conselhos deliberativo e fiscal, assegurado a eles no
mínimo um terço das vagas. (Grifo nosso)

Assim, além de ser formado por membros em parte nomeados pelos participantes,
o Conselho Fiscal compõe a estrutura mínima de governança das EFPCs, sendo classificado
como um órgão de controle interno (BRASIL, 2001)24 de tais entidades, junto com o
Conselho Deliberativo e a Diretoria Executiva.
Essas atribuições dos conselhos fiscais nas EFPCs, expressamente
regulamentadas, marcam a diferença da atuação de tais órgãos em relação àqueles
constituídos nas sociedades anônimas e limitadas, regulamentadas pela Lei 6.404, de 15
de dezembro de 1976 (Lei das S.A.) e pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002
(Código Civil Brasileiro).
De fato, nas sociedades anônimas e limitadas, os conselhos fiscais são órgãos
com funções técnicas ou destinados a aconselhar os administradores (BRASIL,
1976)25, cuja existência é obrigatória, mas não seu funcionamento permanente, já que
poderão ser instalados apenas em determinados exercícios sociais, quando houver
pedido expresso dos acionistas para tanto (BRASIL, 1976)26.
Assim, fica claro que as atribuições do Conselho Fiscal nas EFPCs são mais
amplas. Por lei, esse órgão deve assumir a responsabilidade sobre o efetivo controle da
gestão da entidade. E, para tanto, estão previstas, entre suas funções, as de alertar sobre
qualquer desvio, sugerir e indicar providências para a melhoria da gestão, além de emitir
parecer conclusivo sobre as demonstrações contábeis anuais da entidade (BRASIL,2010),

24
Artigo 14.
25
Artigo 160.
26
Artigo 161.

26
bem como poderes e funções mais específicos, que podem estar previstos nos estatutos e/ou
nos regimentos internos das EFPCs.
Apesar de as atribuições inseridas nas leis complementares nos 108 e 109 terem
dado embasamento para que os conselhos fiscais adotassem, desde 2001, uma postura mais
proativa e eficaz na administração e controle das EFPCs, o papel de tal órgão resumia-se,
basicamente, até a publicação da Resolução CGPC nº 13/2004 e antes, ao acompanhamento
dos relatórios contábeis (em que se destacavam os investimentos financeiros e as provisões
matemáticas de benefícios concedidos e a conceder) e dos relatórios de equilíbrio técnico,
bem como do Demonstrativo dos Resultados da Avaliação Atuarial dos Planos de Benefício
(DRAA), todos preparados pelo departamento atuarial da entidade.
Com a Resolução CGPC nº 13, o escopo de atuação do Conselho Fiscal pôde
aumentar, já que passaram a ser expressamente passíveis de fiscalização e controle do
Conselho Fiscal todos os processos internos da EFPC e seu relacionamento com partes
interessadas (participantes, assistidos, patrocinadores, fornecedores de produtos ou
serviços, autoridades, entre outras) (ROSA, 2010, p.81).

Além disso, a Resolução CGPC nº 13 passou a exigir que o Conselho Fiscal


criasse e mantivesse mecanismos de gestão de riscos, cabendo-lhe também fiscalizar se tais
mecanismos estavam sendo cumpridos pelos demais órgãos gestores da EFPC. Essa função
é extremamente importante, já que, como previsto pela PREVIC, as EFPCs deverão atuar
pelo modelo de supervisão baseada em risco. Assim, o Conselho Fiscal tornou-se também
responsável por acompanhar os mecanismos de controle e mitigação de riscos e por fazer
com que estes fossem cumpridos27.
Mesmo apesar do disposto na Resolução CGPC nº 13, no sentido de garantir o
desenvolvimento de uma cultura interna que enfatizasse e demonstrasse a importância
da governança em todos os níveis hierárquicos, em especial ampliando os poderes e
escopo de atuação do Conselho Fiscal, seus princípios não foram, até o momento,
totalmente absorvidos pelas EFPCs.

27
A CVM explica, em seu site, que o modelo de supervisão baseada em risco (SBR) se destina a dar atenção
mais detalhada a mercados, produtos e entidades supervisionadas que demonstrem maior probabilidade de
apresentar falhas em sua atuação e representem potencialmente um dano maior para os investidores ou para a
integridade do mercado de valores mobiliários, como claramente é o caso das EFPCs. Com base nesse modelo,
a entidade que o adotar vai atuar para mitigar os maiores riscos ao desempenho de suas atribuições legais,
racionalizando a utilização de recursos materiais e humanos e buscando uma abordagem mais preventiva que
reativa. A adoção do modelo SBR foi determinada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), por meio da
Resolução 3.427/06 (alterada pela Resolução 3.513/07), e disciplinada pela Deliberação CVM 757/16. No que
diz respeito especificamente às EFPCs, a adoção de referido modelo e sua supervisão pela Previc vem
regulamentado nas instruções Previc nos 5 e 7, de 29 de maio de 2017, e pela Portaria nº 580, também da
mesma data.

27
Um primeiro problema enfrentado pelos conselhos fiscais em muitas entidades
regidas pela Lei Complementar nº 108/2001 é que estes não possuem a capacidade de
aprovar ou rejeitar as contas produzidas pela Diretoria Executiva, mas apenas indicar a
sua aprovação/rejeição ao Conselho Deliberativo, a quem foi transferida a competência
pela aprovação final. Essa situação gera um conflito sério de governança dentro das
EFPCs, já que a Diretoria Executiva, que produz as contas, é indicada e controlada pelo
Conselho Deliberativo, o que, em última instância, significa que o mesmo órgão está
produzindo e aprovando as próprias resoluções.
Como também está previsto nos estatutos sociais e regimentos internos de
número expressivo de EFPCs que o "voto de qualidade" (ou de desempate) no Conselho
Deliberativo é do presidente, sendo este conselheiro indicado pela patrocinadora, e no
Conselho Fiscal tal voto cabe ao conselheiro indicado pelos participantes, cria-se claro
desequilíbrio a favor da patrocinadora quando se delega ao Conselho Deliberativo a
capacidade de aprovar as contas (e, na mesma linha, de nomear a Diretoria Executiva28
e tomar uma série de outras decisões que não estão sujeitas ao controle ou
acompanhamento do Conselho Fiscal), ficando enfraquecida a posição do Conselho
Fiscal e dos participantes.
Na Petros, por exemplo, as contas apresentadas pela Diretoria Executiva têm
sido rejeitadas pelo Conselho Fiscal nos últimos 14 anos, sendo que, nos últimos 4 anos,
a decisão dos conselheiros foi unânime nesse sentido (TEDESCO, 2016).
Além disso, o voto de desempate no Conselho Deliberativo, que cabe à
patrocinadora, é uma forma pela qual o governo poderia, supostamente, influenciar as
decisões sobre como e onde os vultosos recursos da EFPCs de empresas estatais devem ser
investidos, muitas vezes contrariando o próprio interesse da entidade e de seus participantes.
Outro problema comum enfrentado pelos conselhos fiscais das EFPCs é a falta
de comunicação – e mesmo conflitos e disputas – com membros da Diretoria e do
Conselho Deliberativo, o que gera grande dificuldade por parte dos conselheiros fiscais
na obtenção de documentos e informações para realização efetiva de seu trabalho de
controle e supervisão.

28
A situação de desequilíbrio a favor do Conselho Deliberativo e, portanto, dos patrocinadores, agrava-se
quando, na EFPC, os participantes não têm o direito de nomear/eleger membros para a Diretoria
Executiva, o terceiro pilar da gestão de tais entidades. Como, por lei, está garantida ao participante apenas
presença nos conselhos deliberativos e fiscais, a participação destes na Diretoria Executiva teria que ser
prevista no Estatuto Social, ou , se aplicável, nos Regimentos Internos dos órgãos da entidade – cujas
alterações/aprovações estão sujeitas, novamente, à palavra final do Conselho Deliberativo.

28
6. Conclusões

Como ficou demonstrado, existe um processo de afastamento dos participantes e


assistidos da gestão efetiva da EFPC, seja pela utilização do "voto de desempate" do
Conselho Deliberativo, seja pela desqualificação da função do Conselho Fiscal, fazendo
com que, na realidade, seja a patrocinadora, por meio do Conselho Deliberativo, quem
detenha a maior influência e poder de decisão nessas entidades.
Em nossa visão, tal situação deveria ser alterada por meio de normativos da
PREVIC ou mesmo de alteração da Lei Complementar nº 108/2001, pois o Conselho
Fiscal, em especial quando este não possui poder de veto na aprovação das contas, acabou
transformando-se, nas EFPCs, em simples consultores ou assistentes técnicos do Conselho
Deliberativo , o que é contrário ao principio geral de governança de que “quem executa não
deve fiscalizar”.
Na falta de normas nesse sentido, apenas uma governança corporativa forte, com
implementação de processos internos claros e efetivos, pode aumentar a capacidade do
Conselho Fiscal como agente de controle e supervisão das EFPCs, em conjunto com seus
órgãos de conformidade, de forma a garantir a sustentabilidade e o aumento do patrimônio
de tais entidades, em benefício de seus principais interessados, os participantes.

7. Bibliografia

BRASIL. Lei Complementar nº 108, de 29 de maio de 2001. Dispõe sobre a relação


entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, suas autarquias,
fundações, sociedades de economia mista e outras entidades públicas e suas respectivas
entidades fechadas de previdência complementar, e dá outras providências. Diário
Oficial da União [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 maio 2001.
BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por
Ações. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17
dez. 1976.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Comissão de Valores Mobiliários. Recomendações da
CVM sobre Governança Corporativa, 2002. Disponível
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BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria de Previdência. Patrocinador/Participante
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29
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nº 35352-77.2016.4.01.3400. Disponível em: <www.mpf.mp.br/df/sala-de-
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publicado no final de 1992, ainda tem muita relevância no estudo do tema governança
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TEDESCO, Ronaldo. Por unanimidade, o Conselho Fiscal rejeita as contas da Petros de
2016. Portal Aepet. Disponível em:
<http://www.aepet.org.br/noticias/pagina/14383/Por-unanimidade-o-Conselho-Fiscal-
rejeita-as-contas-da-Petros-de-2016>. Acesso em: 07 dez. 2017.

30
Capítulo 3 – Sociedades de economia mista podem celebrar acordo de acionistas?29

Carolina Matthes Dotto

1. Introdução
O artigo 173, parágrafo primeiro30 da Constituição Federal de 1988
expressamente já previa que a lei deveria estabelecer o estatuto jurídico das empresas
públicas e sociedades de economia mista, dispondo a respeito de sua função social,
licitações e contratos, bem como sobre a sua sujeição ao regime jurídico próprio das
empresas privadas.
Apesar da lacuna legislativa, o conceito de sociedade de economia mista vinha
estampado no Decreto n. 200/1967. O artigo 5o de referido decreto já exigia o
preenchimento de três requisitos cumulativos para a configuração de uma sociedade de
economia mista: a) que ela fosse criada por meio de lei para a exploração de atividade
econômica; b) sob a forma de sociedade anônima; c) necessariamente com a maioria das
ações com direito a voto pertencendo ao ente público.
Ainda, o artigo 235 da Lei n. 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) prevê expressamente
que as sociedades de economia mista estão sujeitas a referido diploma normativo. O
artigo 238, por sua vez, dispõe que a pessoa jurídica de direito público que controla a
companhia “poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao
interesse público que justificou a sua criação.”
Desde então consagrou-se o entendimento na doutrina no sentido de que as
sociedades de economia mista estão sujeitas a um regime híbrido, pois, embora sejam

29
Resumo: O artigo tem como objetivo analisar a admissibilidade de acordos de acionistas no âmbito de
sociedades de economia mista em vista do requisito legal de que o ente público figure como acionista
controlador. Sob argumento de preservação do interesse público, discute-se se o poder de controle do ente
público pode ou não ser compartilhado com os acionistas privados por meio de cláusulas que estipulem
quórum qualificado para determinadas deliberações da companhia. O tema ganhou novos contornos com
a Lei das Estatais, cujos dispositivos realçaram o caráter empresarial das empresas estatais e a sua
sujeição a regras de direito privado.
Palavras-chave: sociedades de economia mista; acordos de acionista; poder de controle; acionistas
minoritários; interesse público.
Sumário: 1. Introdução; 2. Os acordos de acionistas sob a ótica societária; 3. A celebração de acordo de
acionista no âmbito das sociedades de economia mista; 4. Conclusão; 5. Bibliografia.
30
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas
subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação
de serviços, dispondo sobre: (…) II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas,
inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

31
entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, este é parcialmente
derrogado por regras de direito público.
Tentando superar algumas questões que ainda estavam em aberto, desde o ano
de 2006 o Governo Federal estaria preparando uma medida provisória para
regulamentar a questão da governança corporativa no âmbito das empresas públicas e
sociedades de economia mista, de forma a institucionalizar a utilização de mecanismos
societários e contratuais do direito privado. (RIBEIRO; ALVES, 2006, p.164)
Entretanto, foi apenas no ano de 2016 - quase 30 anos depois da entrada em
vigor da Carta Magna - que foi promulgada a Lei 13.303/2016 (“Lei das Estatais”),
tentando apaziguar alguns anseios populares no âmbito da Operação Lava-Jato que,
como se sabe, trouxe à tona esquemas fraudulentos perpetrados por meio da maior
empresa estatal, a Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS (ARAGÃO, 2017, p.175).
A Lei das Estatais veio então a positivar alguns conceitos já consagrados na
doutrina a respeito das empresas públicas e sociedades de economia mista e tem como
objetivo regulamentar duas principais questões: “(i) adoção de parâmetros de
governança corporativa, transparência na gestão e mecanismos de controle da
atividade empresarial e; (ii) licitações e contratações praticadas pelas estatais.”
(AMARAL, 2016, livro eletrônico)
No que diz respeito à governança corporativa, a Lei das Estatais trouxe alguns
aspectos inovadores, determinando ao acionista controlador de sociedade de economia
mista que adote algumas práticas “com o objetivo de garantir a boa governança
corporativa e, consequentemente, a proteção dos demais acionistas” (AMARAL, 2016,
livro eletrônico). Assim, por exemplo, determina o inciso III do artigo 14 da Lei das
Estatais que o acionista controlador deve respeitar a política de indicação na escolha dos
administradores e membros do Conselho Fiscal. Também expressamente consignou que
o acionista controlador da empresa estatal está sujeito às regras da Lei das S.A. no que
diz respeito à responsabilização por atos praticados com abuso de poder.
No entanto, um tema que tem causado profundas controvérsias já há algum
tempo deixou de ser expressamente abordado pela Lei das Estatais. Trata-se da questão
relativa ao poder de mando a ser exercido pelo Estado na qualidade de acionista
controlador e a possibilidade de celebração de acordos de acionistas, principalmente
para estipular cláusulas que estabelecem quóruns qualificados para determinadas
deliberações da companhia.

32
Este é um ponto relevante de governança entre os acionistas da sociedade de
economia mista, que, se tivesse sido positivado, certamente seria apto a reduzir as
discussões sobre a compatibilização dos interesses do acionista público com os
interesses privados.
O presente artigo terá como objetivo analisar a legalidade de cláusulas
inseridas em acordo de acionistas que tenham como objetivo atribuir uma parcela do
poder de gestão aos acionistas privados e impedir que o ente público decida,
isoladamente, todas as matérias referentes à companhia. Referida reflexão também será
permeada pela análise das disposições da Lei das Estatais e do propósito que ensejou a
nova legislação.
O estudo terá como foco o levantamento de entendimentos doutrinários e
interpretação de dispositivos legais, passando-se ainda por algumas decisões judiciais
que abordaram a questão.

2. Os acordos de acionistas sob a ótica societária


Antes de efetivamente entrar no mérito do presente artigo, cumpre tecer alguns
comentários a respeito dos acordos de acionistas em matéria societária.
A sua celebração vem prevista no artigo 118 da Lei das S.A., que determina
que “os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para
adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle deverão ser observados
pela companhia quando arquivados na sua sede.”
Apesar da limitação de objeto contida em referido dispositivo de lei, grande
parte dos doutrinadores entende que os acionistas de uma companhia podem “contratar
sobre quaisquer assuntos relativos aos interesses comuns” (ULHOA apud BERTOLDI,
2006, p.29).
Assim, como leciona EIZIRIK, o acordo de acionistas é um “contrato
celebrado entre acionistas de determinada companhia visando à composição de seus
interesses individuais e ao estabelecimento de normas de atuação na sociedade,
harmonizando seus interesses próprios ao interesse social.” (2011, p.702)
SCHWIND afirma que “o acordo de acionista é um mecanismo de natureza
contratual utilizado com bastante frequência pelos acionistas de uma sociedade
anônima com a finalidade de regular o seu relacionamento recíproco no que tange ao
exercício dos direitos sociais”, acrescentando ainda que referido instrumento também
proporciona estabilidade à própria companhia. (2014, p.267-268)

33
Feitos esses breves esclarecimentos, passa-se ao exame da matéria no que diz
respeito especificamente às sociedades de economia mista.

3. A celebração do acordo de acionista no âmbito das sociedades de economia


mista
A controvérsia referente aos acordos de acionistas revela-se particularmente
interessante no âmbito das sociedades de economia mista, especialmente considerando
que há interesses muitas vezes antagônicos em jogo.
Essa dualidade de posições foi muito bem pontuada por DAVIS, que destaca
referida peculiaridade das sociedades de economia mista de forma bastante elucidativa:
As objeções formuladas (às sociedades de economia mista)
são todas coincidentes em arguir o conflito insolúvel entre os dois
interesses. Segundo BYÉ, este é um defeito insanável das sociedades
de economia mista (...). Uma posição majoritária (do Estado) se se
trata de um serviço público possibilita o nascimento de um dissídio
irremediável entre a minoria que busca o lucro e a maioria que visa ao
interesse público. Se se trata, ao contrário, de “serviço privado”, do
qual o Estado possa esperar vantagens econômicas, há o perigo de que
abuse de suas prerrogativas em proveito dos acionistas particulares,
encontrando nas facilidades oferecidas pela sociedade de economia
mista um convite perigoso à ubiquidade financeira. (apud ARAGÃO,
2017, p.337).

Diante da dificuldade em se compor os interesses públicos com os interesses


privados, há quem sustente a ilegalidade de acordos de acionistas celebrados no âmbito
de sociedades de economia mista, sob o fundamento de que o interesse público poderia
ser desvirtuado se o poder de controle pudesse ser compartilhado.
Argumenta-se que, mesmo que o Estado efetivamente detenha a maioria das
ações com direito a voto – como exige o atual artigo 4º da Lei das Estatais e já estatuía
o Decreto n. 200/1967 – o seu poder de mando acaba sendo mitigado em razão de
cláusulas do acordo de acionistas que estipulem quórum qualificado, pois o ente público
não pode decidir livremente os destinos da companhia. Tal circunstância representaria
um compartilhamento do poder de controle e, consequentemente, “a total
impossibilidade de utilização desse tipo de arranjo negocial em uma empresa que
integra a Administração Pública.” (COMPARATO apud SCHWIND, 2014, p.82).

34
Como leciona BANDEIRA DE MELLO, no que diz respeito às sociedades de
economia mista, “o que se quer é, precisamente, garantir que seu controle absoluto,
que a condução de seus destinos, seja estritamente da alçada do Estado ou de suas
criaturas auxiliares, sem que possa repartir decisões, sejam quais forem, sobre
qualquer assunto” (2015, p.198).
Embora se trate de um cenário diverso (de transferência de ações), alguns
citam ainda por analogia o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 234/RJ realizado em junho do
ano de 1995. Em seu voto, o Ministro Néri da Silveira mencionou expressamente que
“alienar controle da sociedade de economia mista – se, como entendo eu, esse controle
é essencial ao próprio conceito constitucional de economia mista – é uma forma de
extingui-la enquanto sociedade de economia mista.”.
No mais, pode-se ainda argumentar que, diferentemente das companhias nas
quais o Estado detém mera participação societária, o traço caracterizador das sociedades
de economia mista residiria justamente no poder de mando estatal. Invocam para tanto o
já mencionado artigo 238 da Lei das S.A., que determina que o acionista controlador
poderá “orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público
que justificou a sua criação.” 31.
Neste ponto, apesar de entender que a celebração de acordo de acionistas seria
admissível independentemente de qualquer autorização legislativa, ENGLER faz a
ressalva de que o controle societário estatal em uma sociedade de economia mista deve
ter “caráter incondicional, vale dizer, não esteja sujeito a nenhuma limitação de ordem
estatutária ou contratual, que possa tolher a discricionariedade do Estado para
orientar as atividades sociais visando ao atendimento do fim público.” Assim, mesmo
que os acionistas venham a estabelecer contratualmente a relação mútua, tal
circunstância não pode impedir o ente estatal de agir conforme o artigo 238 da Lei das
S.A. Seriam admitidos apenas arranjos contratuais versando, por exemplo, a respeito do
nível de transparência, das vantagens patrimoniais atribuídas a cada classe de sócios ou
preferências a serem observadas em casos de alienação das ações. (ENGLER PINTO
JUNIOR, 2009, p.366-368).
Vale citar um acórdão emblemático que é até hoje invocado como precedente.
Tratava-se no caso de uma ação anulatória ajuizada pelo Estado de Minas Gerais

31
Embora a lei tenha empregado a expressão “poderá”, trata-se na realidade de “obrigação positiva a
cargo do administrador público” (ENGLER PINTO JUNIOR, 2009, p.362).

35
visando à anulação do Acordo de Acionistas celebrado no âmbito da Companhia
Energética de Minas Gerais S.A. – CEMIG. Ao julgar recurso de apelação n.
1.0000.00.199781-6/000, no ano de 2001, o Desembargador Relator Garcia Leão citou
entendimento exarado no parecer do Professor Humberto Theodoro Junior, no qual
restou consignado que a sociedade de economia mista “acabou sendo transformada em
sociedade privada, sem a imprescindível autorização legal e o seu gestor maior nato - o
Estado - restou subjugado à vontade administrativa de um acionista particular e
minoritário.” Por unanimidade, a turma julgadora negou provimento ao recurso para
manter a anulação do acordo de acionistas.
No que diz respeito à Lei das Estatais, seria possível sustentar que a ilegalidade
do acordo de acionistas relativamente a uma sociedade de economia mista também seria
supostamente reafirmada na nova legislação. Isso porque, em que pese a Lei das S.A.
prever a celebração do acordo de acionistas como regra geral, o artigo 27 da Lei das
Estatais - que pode ser visto como norma de caráter específico - dispõe expressamente
que a sociedade de economia mista terá a função social de realizar o interesse coletivo,
que não poderia, em tese, ser mitigado por meio de instrumentos societários comuns.
Neste ponto, ARAGÃO inclusive afirma que a Lei das Estatais veio para aumentar o
caráter híbrido das sociedades de economia mista “contendo todo um regime societário
próprio” (2017, p.298).
Entretanto, em que pese a natureza híbrida da sociedade de economia mista,
SCHWIND pondera que “a impressão de que o controle estatal seria absoluto era
aceita sem grandes questionamentos em virtude dos “hábitos administrativos
brasileiros.” (2014, p.6-7)
Há argumentos absolutamente plausíveis para se defender a validade e
legalidade da celebração de acordo por acionistas de uma sociedade de economia mista,
nos termos do artigo 118 da Lei das S.A. Considerando-se que referido arranjo
societário e administrativo pressupõe a conjugação de esforços público e privado, não
há dúvidas de que há necessidade de se permitir a utilização de mecanismos que
permitam a conciliação de direitos e deveres da Administração Pública e do investidor
privado, inclusive de forma a atrair capital.
SCHWIND aponta que, ao optar pela adoção de uma sociedade de economia
mista e não de uma empresa pública, “o Estado reconhece que deverá levar em
consideração os interesses dos acionistas privados na gestão da sociedade. Afinal, o
aporte de capital privado não se dá por mera benemerência.” (2014, p.76).

36
Diante da ausência de recursos financeiros públicos suficientes, na maioria dos
casos a escolha pelo modelo de uma sociedade de economia mista se pautou pela
necessidade de aporte de capital privado. Assim, o Estado não poderia abrir mão dos
investimentos realizados pelo parceiro privado, que, em inúmeras situações, exige a
celebração de um acordo de acionistas (BERTOLDI, 2006, p.15).
Esse ponto também é muito bem abordado por CÂMARA, que esclarece que a
opção do Estado em adotar um modelo empresarial e não uma autarquia ou fundação,
por exemplo, só pode refletir a sua escolha de “conjugar características próprias da
atividade empresária (essencialmente lucrativa) com outros objetivos públicos.” (2012,
p.15). Muito embora em referido artigo seja discutida a possibilidade de persecução de
lucro pelas empresas estatais (e não especificamente a possibilidade de celebração de
acordo de acionistas), a lógica jurídica a ser aplicada é exatamente a mesma em ambos
os casos.32 Isso porque, mesmo que o interesse dos acionistas privados não seja
necessariamente o objetivo primordial da sociedade de economia mista, ele também não
pode ser menosprezado.
PEREIRA RIBEIRO e SOCORRO ALVES defendem igualmente a validade
dos acordos de acionistas no âmbito de uma sociedade de economia mista, ponderando
que são tantas as relações jurídicas nela envolvidas, “que não se pode imaginar que o
controle exija a exclusividade de poder numa empresa.” (2006).
Da mesma forma, SUNDFELD há muito adota o entendimento de que não
existe qualquer norma que estabeleça que o poder do acionista controlador, no caso o
Estado, seja exercido de modo exclusivo e ilimitado (2000, p.273-282).
A Comissão de Valores Mobiliários – CVM, ao apreciar questão relativa a
impedimento de voto da União por alegado conflito de interesses no âmbito das
Centrais Elétricas Brasileiras S.A., também já apreciou a figura do acionista controlador
em uma sociedade de economia mista. No voto condutor, consignou-se que os
acionistas minoritários investem na companhia cientes de que o acionista público
controlador poderá conduzir os negócios sociais de forma a dar prioridade ao interesse

32
Vale inclusive mencionar a exposição de Jean Rivero e Jean Waline, também citada na obra de
CÂMARA: “Se a realização do lucro não é, diferentemente da empresa capitalista, o único fim da gestão,
(da empresa estatal) ela é ao menos um dos seus objetivos principais: a empresa (estatal) deve ter uma
gestão não somente equilibrada, mas também lucrativa, a fim de poder utilizar, para seu desenvolvimento,
os mecanismos de autofinanciamento, destinando-se o restante do lucro, segundo as normas aplicáveis, ou
ao Estado, ou ao conjunto de acionistas – inclusive os privados, no caso de sociedade de economia mista
– ou, em parte, aos empregados. (Droit Administratif, 15a ed. Paris, Dalloz, 1994, p. 430 apud CÂMARA
in SUNDFELD; ROSILHO, 2014, – tradução livre)

37
público, ainda que o retorno financeiro fique prejudicado (artigo 238 da Lei das S.A.).
Por outro lado, destacou-se que, “esse mesmo ente público se compromete a observar
todas as demais regras da Lei n. 6.404, de 1976, inclusive as que limitam o seu próprio
poder (art. 235 e art. 115, §1o)”.
Além disso, embora algumas matérias dependam da concordância dos
acionistas privados minoritários em razão da celebração de acordo de acionistas, estes,
isoladamente, não conseguem decidir os destinos da companhia. O ente público sempre
terá o direito de veto com relação a qualquer deliberação, eis que necessariamente
detentor da maioria das ações com direito a voto. Tal circunstância já reflete o efetivo
poder de mando que continua nas mãos do Estado independentemente do acordo de
acionistas.
A Lei das Estatais também parece seguir no sentido de admitir a estipulação de
quóruns qualificados para determinadas decisões societárias. Aliás, diversas de suas
disposições realçam o caráter privado das sociedades de economia mista, levando a crer
que podem e devem ser admitidos mecanismos societários comuns.
Como exemplo, vale destacar que a Lei das Estatais dispõe que os contratos
administrativos celebrados pelas estatais regulam-se pelos preceitos de direito privado
(artigo 68), abolindo algumas prerrogativas públicas, com destaque para a
impossibilidade de alteração unilateral do contrato (artigo 72). Percebe-se claramente a
feição empresarial que a nova legislação quis atribuir às sociedades de economia mista.
Ainda, o artigo 5o da Lei das Estatais prevê que a sociedade de economia mista
está sujeita ao regime previsto na Lei das S.A, ressalvado apenas o disposto na própria
Lei das Estatais. Se não há vedação na Lei das Estatais quanto à celebração de acordo
de acionistas, presume-se que a matéria deve ser regulamentada pela lei do acionariato.
Aliás, diante da disposição contida no artigo 4o , parágrafo primeiro da Lei das
Estatais, há inclusive quem defenda que os acordos de acionistas são até mesmo mais
relevantes em uma sociedade de economia mista do que em uma sociedade empresária
de direito privado, de forma a garantir que os seus interesses também sejam
resguardados:
E mais, a importância econômica dos acordos de acionistas
nas estatais pode ser ainda maior do que nas empresas privadas. Como
o art. 238 da Lei das S.A c/c art. 4o, § 1o, do Estatuto das Estatais
permite ao Estado controlador incutir na empresa preocupações que
não são meramente lucrativas (cf. tópico IV.2.3.1), os acionistas
minoritários de empresas estatais, naturalmente, têm uma insegurança

38
maior do que a dos acionistas minoritários de empresas privadas.”
(ARAGÃO, 2017, p.419-420).

Como se pode perceber, há muitos argumentos favoráveis à admissão de


acordos celebrados pelos acionistas de uma sociedade de economia mista. As cláusulas
que exijam quórum qualificado para determinadas deliberações societárias não
representam a perda do poder de controle pelo ente público, mas apenas garantem que
também sejam resguardados os interesses dos acionistas minoritários, que, muitas vezes,
injetaram recursos essenciais para a criação e continuação da companhia.

4. Conclusão
Antes mesmo da promulgação da Lei das Estatais, já havia argumentos
consistentes no sentido de que, o fato de a companhia dever observar o interesse público
não significa automaticamente que os acionistas minoritários devam ser excluídos de
toda e qualquer forma de gestão na companhia. Não há motivos para se manter um
entendimento tão dicotômico.
Aliás, não se pode admitir que o interesse público possa estar acima de
qualquer discussão jurídica ou econômica, como se a sua menção, por si só, fosse
suficiente para sempre se decidir em favor da Administração Pública.
A Lei das Estatais procurou de certo modo impedir que isso ocorresse (e.g, art.
4º, parágrafo 1º; art. 5º; art. 6º, art. 8º, parágrafo 2º e art. 19, caput e parágrafo 2º) e
buscou atribuir uma feição muito mais empresarial às sociedades de economia mista,
como demonstrado acima. Aliás, diversas disposições nela contidas destacam a sua
sujeição expressa ao regime privado.
Talvez a melhor solução seja admitir, de modo geral, a celebração de acordos
de acionista numa sociedade de economia mista, garantindo-se a observância dos
interesses dos acionistas minoritários. Deve ser ressalvada, entretanto, a possibilidade
de anulação de eventual cláusula abusiva que impeça totalmente o ente público de
perseguir o interesse público.
Por se tratar de um contrato, nada mais razoável do que se esperar que todas as
partes contratantes atuem na mais estrita boa fé, nos termos do artigo 422 do Código
Civil. O bom-senso e o princípio da razoabilidade também deverão nortear qualquer
discussão relativa à validade de acordo de acionistas.

39
Conforme salienta ARAGÃO no que diz respeito aos diferentes interesses em
jogo no âmbito de uma sociedade de economia mista, “a relação entre essas duas
lógicas não pode ser de prevalência absoluta de uma sobre a outra, mas de equilíbrio.”
(2017, p.338).
Não há como negar que existem argumentos muito razoáveis que justificam a
possibilidade de compartilhamento de gestão relativamente a algumas matérias afeitas à
sociedade de economia mista. E, como muito bem ressaltado por SUNDFELD, “dizer
que o interesse público é oposto ao privado, e que o regime privado é o do egoísmo
enquanto o administrativo é o da solidariedade, pode parecer bonito, (...), mas é vago,
além de falso como regra geral.” (2014, p.144).

5. Bibliografia
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40
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Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível 1.0000.00.199781-6/000, Relator
Desembargador Garcia Leão , 1ª Câmara Cível, julgamento em 07/08/2001, publicação
no DJ em 07/09/2001.

41
Capítulo 4 – Criações na Lei de Inovação são protegidas por direitos autorais?33

Fernando Figueiredo Linhares Piva de Albuquerque


Schmidt

1. Introdução
A Lei de Inovação estipula que a titularidade da propriedade intelectual e a
participação nos resultados da exploração das criações resultantes da parceria serão
disciplinadas por instrumento jurídico específico (artigo 9º, §§ 2º e 3º, da Lei de
Inovação). Não exige, portanto, que o autor ceda à Administração Pública os direitos
patrimoniais relativos aos projetos ou serviços técnicos especializados contratados, tal
como faz a Lei Geral de Licitações (artigo 111 da Lei Federal 8.666/93). Tampouco
prevê cessão automática desses direitos, como ocorre na sistemática do estatuto da
empresa pública (artigo 80 da Lei Federal 13.303/2016).
A despeito da previsão contida no artigo 9º, §§ 2º e 3º, da Lei de Inovação, a
Lei de Direitos Autorais estabelece que os direitos morais do autor são irrenunciáveis e
inalienáveis (artigo 27 da Lei Federal 9.610/98)34. Ilustrativamente, são direitos morais
do autor o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações, o de
alterar a obra, antes ou depois de utilizada, o de retirá-la de circulação ou de suspender
qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização
implicarem afronta à sua reputação e imagem (artigo 24 da Lei Federal 9.610/98).
Além disso, a extensão temporal da proteção dada aos direitos de autor difere
daquela conferida à propriedade industrial. Nesse sentido, a patente de invenção vigora
33
Resumo: A Lei de Inovação (Lei Federal 10.973/2004) contém mecanismos de fomento à inovação e à
pesquisa científica e tecnológica. Nesse sentido, entes públicos e suas agências de fomento podem apoiar
projetos de cooperação que envolvam empresas ou instituições científicas, tecnológicas e de inovação. O
artigo tem por objetivo examinar se os direitos de autor permeiam as criações derivadas da Lei de
Inovação, impedindo, por exemplo, que sejam modificadas ou até mesmo permitindo que sejam retiradas
de circulação pelo autor (artigo 24, incisos IV e VI, da Lei Federal 9.610/98).
Palavras-chave: Lei de Inovação. Pesquisa científica e tecnológica. Propriedade intelectual. Direitos de
autor. Propriedade industrial.
Sumário: 1. Introdução; 2. A Lei de Inovação não enseja a criação de obras protegidas por direitos morais
de autor; 3. O problema do conceito de inovação: a natureza mutável da atividade inovadora e os limites
perenes da Lei de Propriedade Industrial; 4. Conclusão; 5. Bibliografia e sítios eletrônicos consultados.
34
Veja-se: “Os direitos morais sobre a obra autoral pertencem exclusivamente ao seu autor, não podendo
ser cedidos, uma vez que são, nos termos do art. 27 da Lei n. 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais)
intransmissíveis e irrenunciáveis.” (STJ, REsp 1615980/RJ, Relator: Ministro PAULO DE TARSO
SANSEVERINO, Órgão julgador: Terceira Turma, Data de julgamento: 13/06/2017, DJe 22/06/2017).

42
por 20 (vinte) anos, nos termos do artigo 40 da Lei Federal 9.279/96. Já os direitos
patrimoniais do autor perduram por setenta anos após o seu falecimento, nos termos do
artigo 41 da Lei Federal 9.610/98.
Esta é a pergunta que constitui o objeto central deste artigo: as criações de que
trata a Lei de Inovação são protegidas por direitos autorais? A hipótese ventilada neste
trabalho é a de que, com exceção dos programas de computador, as criações tratadas
pela Lei de Inovação não são protegidas pelas normas acomodadas na Lei de Direitos
Autorais.

2. A Lei de Inovação não enseja a criação de obras protegidas por direitos morais
de autor
Considera-se que a propriedade intelectual é protegida de modos distintos, a
depender das características da obra criada35. Algumas obras se alinham à noção de
propriedade industrial (invenções, modelos de utilidade, desenho industrial e marcas) e
recebem a proteção jurídica disciplinada pela Lei Federal 9.279/96. Outras são tuteladas
pelos direitos autorais e atraem as normas contidas na Lei Federal 9.610/98 (projetos,
esboços e obras plásticas concernentes à ciência etc.).
Confira-se o conceito de criação gravado na Lei de Inovação:
Artigo 2º da Lei Federal 10.973/2004. Para os efeitos desta
Lei, considera-se: [...]
II - criação: invenção, modelo de utilidade, desenho
industrial, programa de computador, topografia de circuito integrado,
nova cultivar ou cultivar essencialmente derivada e qualquer outro
desenvolvimento tecnológico que acarrete ou possa acarretar o
surgimento de novo produto, processo ou aperfeiçoamento
incremental, obtida por um ou mais criadores;

35
Entende-se que, em regra, as Leis de Propriedade Industrial e de Direitos de Autor incidem sobre
objetos distintos. Nesse sentido, “uma das características da propriedade intelectual é a clássica divisão
entre os institutos da propriedade industrial, que regula a proteção das criações técnicas e utilitárias, e o
Direito de Autor, que disciplina a tutela das criações estéticas e de natureza cultural. Essa separação
conceitual não é genericamente estabelecida pela legislação, embora a Lei de Propriedade Industrial
(“LPI”) exclua de seu objeto, de forma pontual, as criações meramente estéticas. Não obstante essa
distinção conceitual, é inegável que algumas criações podem transitar pela propriedade industrial e pelo
direito autoral pelo fato de a separação entre técnica e arte ser considerada artificial. Essa dualidade se
verifica sobretudo na chamada obra de arte aplicada, assim entendida aquela criação que apresenta um
caráter artístico dissociável do caráter industrial do seu objeto. Embora cada instituto da propriedade
intelectual represente um regime jurídico de proteção completo, não é impossível conceber que a mesma
criação possa estar sujeita a dois regimes diferentes, como ocorre com mais frequência – mas não
exclusivamente – com o desenho industrial, uma vez que este é definido como ‘forma plástica
ornamental’. Trata-se, portanto, da possibilidade de haver cumulação de tutela legal por diferentes
institutos da propriedade intelectual.” (JABUR, 2014, p.217-218).

43
A propriedade da invenção é garantida por meio de patente, que não pertence
necessariamente ao autor da invenção. Nesse sentido, a lei de propriedade industrial
estipula que “a patente poderá ser requerida em nome próprio, pelos herdeiros ou
sucessores do autor, pelo cessionário ou por aquele a quem a lei ou o contrato de
trabalho ou de prestação de serviços determinar que pertença a titularidade” (artigo 6º,
§2º, da Lei Federal 9.279/96). Assim, o direito de obter a patente não é atribuído
necessariamente ao autor da invenção36.
Lógica semelhante permeia a concessão de patentes de modelo de utilidade e a
concessão de registro de desenho industrial (artigo 6º, §2º, c.c. o artigo 94, parágrafo
único, da Lei Federal 9.279/96).
Além disso, podem ser objeto de cessão a terceiros as patentes de invenção e
de modelo de utilidade, bem como o registro de desenho industrial e os direitos sobre a
topografia de circuito integrado (artigos 58 e 121 da Lei Federal 9.279/96, e artigo 41 da
Lei Federal 11.484/2007)37.
Note-se que a própria Lei de Inovação parece indicar que o regime de proteção
à propriedade industrial é que tutela eventuais criações. Nesse sentido, a norma
acomodada no artigo 13 dessa lei assegura ao criador participação nos ganhos
econômicos decorrentes de transferência de tecnologia, licenciamento para outorga de
direito de uso ou exploração de criação sua. Essa norma considera aplicável, no que
couber, o parágrafo único do artigo 93 da Lei de Propriedade Industrial – a revelar,
portanto, que a sistemática geral de proteção aos direitos sobre as criações é a da Lei de
Propriedade Industrial. Entretanto, essa mesma norma levanta dúvida quanto à aplicação
dos direitos de autor, pois se refere não apenas ao inventor, mas também ao autor.
De modo geral, as criações, tal como concebidas pela Lei de Inovação, não se
aproximam das obras abarcadas pelos direitos de autor. Criações têm essência utilitária
e não propriamente estética ou artística38.

36
Também a proteção de topografia de circuito integrado pode ser assegurada àquele “[...] a quem a lei
ou o contrato de trabalho, de prestação de serviços ou de vínculo estatutário determinar que pertença a
titularidade [...]” (artigo 27, §3º, da Lei Federal 11.484/2007).
37
O procedimento administrativo de averbação de licenças e cessão de direitos de propriedade industrial é
disciplinado pela Instrução Normativa INPI/PR nº 70, de 11 de abril de 2017. Essa Instrução Normativa
pode ser consultada no seguinte sítio eletrônico: http://www.inpi.gov.br/menu-
servicos/transferencia/legislacao-transferencia-de-tecnologia. Último acesso em 03.01.2018.
38
Observe-se, porque oportuno: “Como a atuação do intelecto converge ou para a satisfação de
objetivos estéticos, ou para a produção de bens materiais, de sua exteriorização resultam – conforme
anotamos – duas espécies de obras: as de cunho estético e as de cunho utilitário, submetidas, as

44
Então por qual razão a Lei de Inovação teria acolhido a expressão propriedade
intelectual e não propriedade industrial?
Uma possível resposta para essa indagação consiste na possibilidade de certas
categorias de criações escaparem da esfera de proteção da Lei de Propriedade Industrial.
Nesse sentido, programas de computador (software) são explicitamente excluídos do
campo de proteção da Lei de Propriedade Industrial (artigo 10, inciso V, da Lei Federal
9.279/96)39. Além disso, cultivares40 e topografia de circuitos integrados contam com
proteções especiais (regimes retratados nas Leis Federais 9.456/97 e 11.484/2007).
Entretanto, a maioria das criações parece se aproximar das espécies de
inovação tuteladas pela Lei de Propriedade Industrial – programas de computador,
cultivares e topografia de circuitos integrados representariam exceções isoladas ao
regime geral da Lei de Inovação, qual seja, o de proteção dada à propriedade industrial.
Cumpre observar que os direitos morais do autor nem mesmo são aplicáveis
aos programas de computador – ao que parece, única espécie de criação prevista na Lei
de Inovação que é tutelada pela Lei de Direitos Autorais –, em virtude de previsão legal
41
específica nesse sentido (artigo 2º, §1º, da Lei Federal 9.609/98) . Assim, os direitos
inerentes à propriedade intelectual das criações tratadas pela Lei de Inovação não são
inalienáveis e irrenunciáveis, tal como ocorre com os direitos morais de autor (artigo 27
da Lei Federal 9.610/98).

primeiras, ao regime do Direito de Autor e, as segundas, ao do Direito de Propriedade Industrial.”


(BITTAR, 2015, p.43).
39
Considera-se que os programas de computador são abarcados pelos direitos de autor. Veja-se, nesse
sentido: “[...] O software, ou programa de computador, como disciplinado em leis específicas (9.609/98 e
9.610/98), possui natureza jurídica de direito autoral (trata-se de 'obra intelectual', adotado o regime
jurídico das obras literárias), e não de direito de propriedade industrial. Esse entendimento resulta não
apenas da exegese literal dos arts. 7º, inc. XII da Lei nº. 9.610/98 e 2º da Lei nº. 9.609/98 e das
expressivas contribuições de diversos doutrinadores³, mas também da interpretação, a contrario sensu,
do dispositivo da lei de propriedade industrial (Lei nº. 9.279/96, art. 10, inc. V) que afasta a
possibilidade jurídica de se requerer a patente de programa de computador, por não o considerar seja
invenção, seja modelo de utilidade. Se o direito de propriedade industrial, como positivado no Brasil,
expressamente rechaça proteção ao software, não resta outra solução senão a de aceitá-lo enquanto
modalidade de direito de propriedade intelectual (autoral), pois do contrário ficaria o seu titular despido
de qualquer proteção jurídica a reprimir atos de contrafação. [...]” (STJ, trechos de voto prolatado pela
Ministra NANCY ANDRIGHI (Relatora), por ocasião do julgamento do REsp 443119 / RJ, Órgão
Julgador: Terceira Turma, Data do julgamento: 08/05/2003, DJ 30/06/2003 p. 240 – grifo aposto).
40
Cumpre anotar que a proteção de cultivares se aproxima do regime que disciplina a Propriedade
Industrial. Veja-se: “Apesar de ter sido propugnada a proteção dos cultivares como direito autoral (a
exemplo da lei especial do software), tudo indica que essa lei foi calcada no sistema de propriedade
industrial (aliás, boa parte de seus artigos foi copiada do Código de Propriedade Industrial, de 1971).”
(SILVEIRA, 2005, p.72).
41
O autor de programa de computador apenas pode se opor às alterações que acarretem deformação,
mutilação ou outra modificação que prejudique sua honra ou reputação. Desse modo, todas as demais
alterações são autorizadas pelo sistema jurídico.

45
Outra potencial resposta àquela pergunta pode derivar da natureza mutável do
conceito de inovação42. Dito de outro modo, a inovação não pode ser confinada de
modo peremptório, limitando-se a possibilidades previamente conhecidas de
desenvolvimento tecnológico. Inovação é um conceito essencialmente móvel,
cambiante.
Veja-se, nesse sentido, que o Manual de Oslo – esse diploma será abordado
mais adiante – recentemente incorporou duas novas espécies de inovação, a demonstrar
que o conceito de inovação não permanece estagnado ao longo do tempo.
Portanto, é possível que a expressão propriedade intelectual tenha sido
utilizada pela Lei de Inovação de modo a evitar eventual conflito entre novas criações e
as categorias arroladas de maneira perene pela Lei de Propriedade Industrial. Entretanto,
dadas as linhas genéricas do conceito de invenção (talvez formulado com tonalidades
abertas justamente para que possa acompanhar a evolução da atividade inventiva ao
longo do tempo, não se tornando uma expressão anacrônica), tem-se que mesmo as
novas formas de inovação projetadas pelo Manual de Oslo merecem a proteção dada à
propriedade industrial. Também essas novas modalidades de inovação parecem se
encaixar no conceito de invenção.
Ainda que se entenda que a criação decorrente de acordo de parceria é tutelada
por direitos morais de autor, tem-se que a irrenunciabilidade e intransmissibilidade não
têm o condão de repelir modificações futuras (por exemplo, a realização de
aprimoramentos). Entende-se que a alteração de obras protegidas pelos direitos de autor
é admitida, sendo assegurado ao autor original o exercício do direito de repúdio, caso
discorde da modificação. Essa é a lógica adotada pela Lei Federal 9.610/98.
Note-se que o direito de repúdio está expressamente previsto no artigo 26 da
Lei Federal 9.610/98, quanto à alteração de projetos de arquitetura. Caso as criações
atinentes à Lei de Inovação sejam submetidas ao regime dos direitos de autor, a mesma
lógica deverá ser aplicada (eventual alteração da criação assegura ao autor original o
direito de repúdio, mas não há obstáculo à modificação da obra criada). Essa conclusão
evita a estagnação tecnológica e atende aos objetivos da Lei de Inovação.

42
A inovação parece representar um fenômeno essencialmente flexível. Veja-se: “Aceita-se amplamente
que a inovação seja central para o crescimento do produto e da produtividade. Entretanto, embora nosso
entendimento sobre as atividades de inovação e de seu impacto econômico tenha aumentado muito desde
a primeira edição do Manual, ele ainda é deficiente. Por exemplo, assim como a economia mundial
evolui, o mesmo ocorre com o processo de inovação.” (trecho da Introdução do Manual de Oslo,
disponível em http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf. Último acesso em
06.12.2017 – grifo aposto).

46
De qualquer maneira, considera-se que as criações derivadas de acordos de
parceria não são agasalhadas pelo regramento da Lei Federal 9.610/98 – salvo os
programas de computador, repita-se.

3. O problema do conceito de inovação: a natureza mutável da atividade inovadora


e os limites perenes da Lei de Propriedade Industrial
Para que se possa saber de que maneira o sistema jurídico protege a inovação,
importa antes observar em que consiste propriamente esse fenômeno. Dito de outro
modo, é preciso primeiro revelar o que significa inovação, para que seja então possível
identificar o regime jurídico que lhe é aplicável.
Observou-se, no tópico anterior, a extensão do conceito de criação empregado
pela Lei de Inovação. Note-se, entretanto, que a Organização para Cooperação
Econômica e Desenvolvimento (OCDE)43 editou o chamado Manual de Oslo, com o
objetivo de padronizar conceitos e oferecer diretrizes pertinentes à inovação. Este é o
conceito de inovação retratado no referido Manual:
Uma inovação é a implementação de um produto (bem ou
serviço) novo ou significativamente melhorado, ou um processo, ou
um novo método de marketing, ou um novo método organizacional
nas práticas de negócios, na organização do local de trabalho ou nas
relações externas. […] Uma inovação de produto é a introdução de um
bem ou serviço novo ou significativamente melhorado no que
concerne a suas características ou usos previstos. […] Uma inovação
de processo é a implementação de um método de produção ou
distribuição novo ou significativamente melhorado. Incluem-se
mudanças significativas em técnicas, equipamentos e/ou softwares.
[…] Uma inovação de marketing é a implementação de um novo
método de marketing com mudanças significativas na concepção do
produto ou em sua embalagem, no posicionamento do produto, em sua
promoção ou na fixação de preços. […] Inovações de marketing
compreendem mudanças substanciais no design do produto,
constituindo um novo conceito de marketing. Mudanças de design do
produto referem-se aqui a mudanças na forma e na aparência do
produto que não alteram as características funcionais ou de uso do
produto. […] Uma inovação organizacional é a implementação de um

43
Em síntese, “a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) constitui
foro composto por 35 países, dedicado à promoção de padrões convergentes em vários temas, como
questões econômicas, financeiras, comerciais, sociais e ambientais.” (Disponível em
http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/diplomacia-economica-comercial-e-
financeira/15584-o-brasil-e-a-ocde. Último acesso em 06.12.2017).

47
novo método organizacional nas práticas de negócios da empresa, na
organização do seu local de trabalho ou em suas relações externas44.

A mutabilidade do conceito de inovação pode ser demonstrada pela recente


inclusão de duas novas modalidades no Manual de Oslo (inovação de marketing e
inovação organizacional45). De modo geral, considera-se que as quatro categorias46 de
inovação arroladas no Manual de Oslo correspondem à noção de criação retratada na
Lei Federal 10.973/2004 e são também objeto de proteção da Lei de Propriedade
Industrial.
O Manual de Oslo prevê quatro espécies de inovação, a saber: inovação de
produto, inovação de processo, inovação organizacional e inovação de marketing.
A inovação de produto é a introdução de bem ou serviço novo ou dotado de
características ou usos aperfeiçoados. A novidade dessa primeira categoria de inovação
se refere à funcionalidade do bem ou serviço. A inovação de processo se refere à
implementação de uma sistemática de produção ou distribuição nova ou melhorada. A
novidade dessa classe de inovação parece se relacionar com o processo de produção e
diz respeito a técnicas, equipamentos ou “software” empregados na produção ou
distribuição. A inovação organizacional reflete a implementação de um novo arranjo
organizacional nas práticas de negócios da empresa, na organização do seu local de
trabalho ou em suas relações externas. A novidade dessa categoria de inovação
aparentemente guarda também relação com processos; não propriamente com processos
produtivos, mas sim com processos organizacionais (novas formas de organizar
negócios, locais de trabalho ou relações externas das empresas). Por último, a
organização de marketing diz respeito a alterações na concepção de produtos ou
embalagens, em seu posicionamento, promoção ou fixação de preços. Inovações de

44
Disponível em http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf. Último acesso
em 19.11.2017. p. 55-61.
45
Confirme-se: “[...] o escopo do que é considerado uma inovação foi agora expandido para incluir dois
novos tipos: inovação de marketing e inovação organizacional. Esses são certamente conceitos novos,
mas eles já foram testados em vários países da OCDE, com resultados promissores.” (Manual de Oslo,
disponível em http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf. Último acesso em
07.12.2017. p. 11).
46
Observe-se: “O Manual define quatro tipos de inovações que encerram um amplo conjunto de
mudanças nas atividades das empresas: inovações de produto, inovações de processo, inovações
organizacionais e inovações de marketing.” (Manual de Oslo, disponível em
http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf. Último acesso em 07.12.2017. p.
23).

48
marketing abarcam mudanças substanciais no desenho do produto (mudanças na forma
e na aparência do produto).
As inovações de produto, processo e organizacional parecem ser espécies de
invenções ou modelos de utilidades patenteáveis segundo a Lei de Propriedade
Industrial. Com efeito, o conceito legal de invenção possui textura bastante aberta,
possivelmente para evitar que se torne uma noção anacrônica e inútil frente às
novidades que se sucedem de modo interminável.
Em síntese, toda atividade inventiva que represente novidade e tenha aplicação
industrial constitui invenção que pode ser patenteada (artigo 8º da Lei de Propriedade
Industrial). Ademais, “o objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação
industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que
resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação” representa modelo de
utilidade (artigo 9º da Lei de Propriedade Industrial).
Assim, inovação de produto (bem ou serviço novo ou dotado de características
aprimoradas), inovação de processo (sistemática de produção ou distribuição nova ou
melhorada) e inovação organizacional (novo arranjo nas práticas de negócios da
empresa, na organização do seu local de trabalho ou em suas relações externas) parecem
se alinhar às classes das invenções ou dos modelos de utilidade. Já a inovação de
marketing tratada pelo Manual de Oslo (notadamente as mudanças do desenho do
produto, que alterem sua forma e aparência) aparentemente corresponde aos desenhos
industriais tutelados pela Lei de Propriedade Industrial47.
Uma anotação adicional merece ser feita: em princípio, inovações de processo,
de organização ou de marketing, quando representarem novidade relativa a esquemas,
planos, ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, ou publicitários, escapam do
âmbito de proteção da Lei de Propriedade Industrial (artigo 10, inciso III, da Lei Federal
9.279/96). Entretanto, mesmo essas inovações não traduzem novidades atinentes ao
campo da estética ou da arte (direitos de autor); são fenômenos umbilicalmente ligados
à produção de bens e à prestação de serviços, de modo que se aproximam da arena da
propriedade industrial.
De qualquer maneira, ainda que se recuse aplicação das normas afetas à
propriedade industrial a essas inovações, elas também não são alcançadas pela Lei de
47
Confira-se: “Art. 95 da Lei Federal 9.279/96. Considera-se desenho industrial a forma plástica
ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um
produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa
servir de tipo de fabricação industrial.” (grifo aposto)

49
Direitos Autorais, pois esquemas, planos ou regras para realizar negócios são
expressamente afastados da proteção conferida por aquela lei (artigo 8º, inciso II, da Lei
Federal 9.610/98)48. Portanto, essas inovações não sofrem as limitações atinentes aos
direitos morais de autor (artigo 24 da Lei Federal 9.610/98).

4. Conclusão

Com exceção de topografia de circuitos integrados, programas de computador


e cultivares, tem-se que as criações decorrentes da Lei de Inovação são protegidas nos
termos da Lei Federal 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial). Esse regime deve ser
conjugado com as normas de proteção à propriedade intelectual que habitam a Lei
Federal 10.973/2004, mas não é afetado pelos direitos de autor previstos na Lei Federal
9.610/98.
Considera-se que a propriedade intelectual relativa às cultivares e à topografia
de circuitos integrados é disciplinada por normas específicas (Leis Federais 9.456/97 e
11.484/2007), de modo que não se submete à Lei de Direitos Autorais (Lei Federal
9.610/98). Os programas de computador parecem representar a única categoria de
criação de que trata a Lei de Inovação que é permeada por direitos de autor (artigo 2º da
Lei Federal 9.609/98). Entretanto, os direitos morais de autor não alcançam os
programas de computador (artigo 2º, §1º, da Lei Federal 9.609/98).
De modo geral, porque representam produto do desenvolvimento técnico ou
utilitário, as inovações relativas à Lei Federal 10.973/2004 não são tuteladas pelas
normas de direito de autor – normas que dizem respeito às criações essencialmente
artísticas ou estéticas. Os direitos morais de autor (direitos intransmissíveis e
irrenunciáveis, nos termos do artigo 27 da Lei Federal 9.610/98) não permeiam as
criações atinentes à Lei de Inovação e não embaraçam eventual apropriação da
tecnologia pelo parceiro público. Dessa maneira, não autorizam que essas criações
sejam retiradas de circulação, tampouco tornam defesa eventual modificação da criação

48
A Lei de Direitos de Autor não tutela processos e arranjos relacionados com o mercado produtivo e
com o comércio. Confirme-se: “Fala-se muito frequentemente, a propósito do direito de autor, em obra
intelectual: assim procede a lei dos direitos autorais. A noção é porém demasiado vasta. Obras
intelectuais são também a generalidade das obras protegidas pela propriedade industrial. São obras
intelectuais as marcas, são obras intelectuais as patentes. Estas últimas são efetivamente modelos para a
ação, enquanto representam processos de fabrico. A sua proteção convém à índole da Propriedade
Industrial, mas não à do Direito de Autor que não protege processos, protege a formalização das
ideias.” (ASCENSÃO, 1997, p.36 – grifo aposto).

50
a contragosto do criador (direitos morais do autor, previstos no artigo 24, incisos IV e
VI, da Lei Federal 9.610/98).

5. Bibliografia

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 6ª ed. revista, atualizada e ampliada por
Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
JABUR, Wilson Pinheiro; SANTOS, Manoel J. Pereira dos. “Interface entre
propriedade industrial e direito de autor”, in Direito autoral (coord. Manoel J. Pereira
dos Santos e Wilson Pinheiro Jabur). São Paulo: Saraiva, 2014.
SILVEIRA, Newton. Propriedade intelectual: propriedade industrial, direito de autor,
software, cultivares. 3ª ed. Barueri: Manole, 2005.
http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf
http://www.inpi.gov.br/menu-servicos/transferencia/legislacao-transferencia-de-
tecnologia
http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/diplomacia-economica-comercial-
e-financeira/15584-o-brasil-e-a-ocde
http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ

51
Capítulo 5 – Como tornar o sistema brasileiro de cobrança de créditos públicos
mais eficiente?49

Rafael Albuquerque Gomes de Oliveira

1. Introdução

A cobrança de créditos públicos, tributários e não tributários, tem retratado há


algum tempo a ineficiência da Administração Pública, uma vez que segundo dados do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)50 e do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), além do elevado custo do processo de cobrança judicial, o mesmo se revela
moroso e ineficaz, com elevada taxa de congestionamento51 e baixos índices de
recuperação de receita.

Os diversos entes federados, em resposta ao apontado problema, têm editado


recorrentemente programas de refinanciamento e anistia de débitos52, gerando
incentivos perversos e potencializando o denominado risco moral53.
Não se deve atuar apenas nos efeitos, de modo que a constatação do elevado
estoque de crédito a ser cobrado e a desenfreada facilitação de seu pagamento revelam a
ineficiência da Administração Pública no papel de agente-cobrador, vez que, não tendo
49
Resumo: A sistematização e divulgação estatística de dados de processos judiciais pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) tem revelado o acentuado acervo de execuções finais. A avaliação crítica do
sistema de governança do atual modelo de cobrança de créditos públicos no Brasil, e a identificação de
suas diversas falhas, permitem concluir que o mesmo tem contribuído significativamente para tal
resultado. Nesse contexto, respeitada a autonomia de seus partícipes, destaca-se a necessidade de
remodelagem do sistema de governança e a construção de um ambiente interinstitucional integrado entre
órgãos da Administração Pública (Poder Executivo) e o Poder Judiciário, através de Centros Judiciários
de Solução de Conflitos (CEJUSC) em matéria fiscal, primando-se pela cooperação, redução de
litigiosidade e máxima eficiência na recuperação de receitas.
Palavras-chave: Governança Pública. Cobrança de créditos públicos. Integração interinstitucional.
Cooperação e eficiência.
Sumário: 1. Introdução; 2. O sistema de governança na cobrança de créditos públicos; 2.1. Partícipes e
funções; 2.2. As falhas de governança; 2.3. Uma arena de interação e diálogo: os Centros Judiciários de
Solução de Conflitos e Cidadania; 3. Conclusão; 4. Bibliografia.
50
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Custo unitário do processo de execução
fiscal da União. Brasília: Ipea; CNJ, 2011.
51
Segundo dados divulgados no Justiça em Números, pelo CNJ, em 2015 a taxa de congestionamento de
execuções fiscais na Justiça Estadual alcançou 91,7%, e, na Justiça Federal, 92%.
52
Somente em âmbito federal, verifica-se desde 2000 a abertura de pelo menos 08 programas de
parcelamento e anistia: REFIS (Lei n. 9.964/2000), PAES (Lei n. 10.684/2003), PAEX (MP 303/2006),
REFIS da crise (Lei n 11.941/2009 e Lei n. 12.865/2013), REFIS da Copa (Lei n. 13.043/2014),
PRORELIT (Lei n. 13.202/2015) e PRT (MP 766/2017).
53
De acordo com Cristiano CARVALHO, “anistias fiscais reiteradas incentivam maus contribuintes a
seguirem não adimplindo suas obrigações, pois sabem que mais cedo ou mais tarde serão beneficiados
pela ajuda governamental [...] penaliza os bons contribuintes, que se colocam em situação de
desvantagem injusta perante aqueles maus cumpridores” (2017, p.69-70).

52
êxito na fase extrajudicial da cobrança, acaba por transferir ao Poder Judiciário – já
assoberbado de outros conflitos, de diversas naturezas – a responsabilidade por alcançar
o devedor e seus bens.
O Poder Judiciário, porém, não detêm função precípua de delegatário de
cobrança, advindo daí uma atuação orgânica omissiva e morosa, marcadamente
defensiva, dissociada daquela própria do titular do crédito.
Estudo recente realizado pelo Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito
de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas demonstrou que esse elevado grau de
litigiosidade decorre, dentre outros fatores, da inexistência de instrumentos de
composição prévios ao litígio e do enfraquecimento institucional dos Tribunais, muito
em razão da falta de cooperação entre a Fazenda Pública e os contribuintes
(VASCONCELOS; DA SILVA, 2006).
Desse modo, é prioritário diagnosticar como tornar mais eficiente a cobrança
de créditos públicos e a solução dos conflitos, adotando-se como pano de fundo a
atuação da Administração Pública, através de seus órgãos fazendários e jurídicos, e o
Poder Judiciário.
Pretende-se, assim, a partir da análise do sistema de governança do atual
modelo de cobrança de créditos públicos, e da identificação do modo como seus
partícipes vêm interagindo, respeitadas suas autonomias e limites de atuação, fazer uma
análise crítica e traçar recomendações que visem ao aprimoramento do diálogo e da
cooperação, objetivando-se o alcance de níveis de performance que apontem para a
redução da litigiosidade e para o incremento de receitas públicas.

2. O sistema de governança na cobrança de créditos públicos.

De acordo com o referencial básico de governança elaborado pelo Tribunal de


Contas da União54, o sistema de governança reflete a maneira como diversos atores se
organizam, interagem e procedem na consecução de um objetivo comum, envolvendo as
estruturas administrativas, os processos de trabalho, as ferramentas instrumentais, o
fluxo de informações e o comportamento das pessoas.

54
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a órgãos e
entidades da administração pública. Brasília: TCU, Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão,
2014.

53
É um sistema complexo, pois busca maior efetividade e economicidade com
vistas ao alcance de políticas públicas através da prestação de serviços de interesse da
sociedade.
Para compreender o sistema de governança brasileiro na cobrança de créditos
públicos, faz-se necessário, assim, inicialmente identificar seus partícipes e funções
(pessoas e competências), apontar as falhas de relacionamento que frustram os
resultados desejados para, finalmente, propor alternativas tendentes a torná-lo mais
eficiente.

2.1. Partícipes e funções

O Código Tributário Nacional, em seus arts. 7º e 14255, estabelece que o


lançamento de tributos é atividade privativa estatal, própria de autoridades qualificadas,
de modo que os órgãos fazendários (Receita Federal e Secretarias de Finanças) são os
primeiros partícipes do sistema de cobrança que se está a desenhar.
Tais órgãos apuram o valor devido e emitem as cobranças diretamente aos
contribuintes, mantendo o estoque da dívida consigo geralmente por período não
inferior a um ano, cuja recuperação ou alcance de metas pré-estabelecidas geram ganhos
extras aos seus servidores, tais como bonificações salariais.
Além desses, em cuja estrutura também se situam os órgãos colegiados que
atuam como instâncias administrativas recursais (conselhos de recursos fiscais ou de
contribuintes), participam do sistema de cobrança os órgãos jurídicos de cada ente
estatal (Procuradorias da Fazenda, Estado e Municípios), aos quais é cometida, em
regra, a inscrição em dívida ativa dos tributos inadimplidos, e a sua cobrança judicial.
Compete à advocacia pública, assim, receber a integralidade dos títulos em
aberto e repetir a cobrança administrativa, percorrendo todas as instâncias judiciais
necessárias e auferindo geralmente, como no caso dos fazendários, ganhos
remuneratórios vinculados à arrecadação.

55
Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar
tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida
por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do artigo 18 da Constituição.
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo
lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato
gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo
devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

54
Note-se a superposição de estruturas públicas responsáveis pelo desempenho
da mesma função de coordenar, em momentos distintos, a cobrança e arrecadação nessa
fase administrativa.
Apesar de integrantes da mesma estrutura, não é incomum a falta de
cooperação e harmonia na atuação dos órgãos fazendários e jurídicos, uma vez que o
apego a objetivos corporativistas muitas vezes acaba por resultar na falta de
dinamicidade nas relações e na postergação de adoção de medidas que poderiam
contribuir para uma maior probabilidade de recuperação de receitas.
Quando frustrada a atuação administrativa, o sistema de cobrança passa a ser
integrado também pelo Poder Judiciário, ao qual são encaminhados os processos
executivos, que passa a ostentar, em tese, uma função de longa manus da Administração
Pública.
Tal se afirma pois o Poder concebido originariamente como solucionador de
conflitos num ambiente de heterocomposição, neutro e imparcial, passa a exercer
função de agente de cobrança, assumindo uma atuação estatal ativa de arrecadador de
créditos públicos.
Qualquer diagnóstico acerca das razões da ineficiência da cobrança e do
elevado grau de litigiosidade deve envolver assim, preliminarmente, a compreensão da
sistematização orgânica e governança das instituições envolvidas, a fim de que se possa
através de mecanismos de interação e cooperação, fortalecer o papel de cada uma,
harmonizando-os.

2.2 As falhas de governança

A participação de diversos atores no atual modelo de cobrança de créditos


públicos, alguns dos quais, como se destacou, com funções precípuas dissonantes das de
mero agente de arrecadação, evidencia um problema sistêmico cujas falhas necessitam
ser compreendidas para que se possa dosar a medida certa da solução pretendida.
Dentre as falhas de governança identificadas, e a seguir analisadas, destacam-
se a multiplicidade orgânica e a falta de coordenação entre as organizações, o
corporativismo, o conflito de agenda e a opacidade das instituições.
A multiplicidade de órgãos e a falta de uma organização coordenada evidencia,
primeiramente, um desperdício de recursos estruturais e financeiros. Percebe-se, no

55
modelo que ora se critica, uma reiteração de atividades de órgãos diversos do Poder
Executivo, no caso as Secretarias de Finanças e as Procuradorias.
Analisando o sistema contencioso fiscal brasileiro a partir do Direito
comparado, Camila Abrunhosa Tapias destaca as suas várias instâncias recursais
administrativas e judiciais (em regra, 03 em cada esfera), salientando a ausência de
instrumentos de autocomposição, tendentes a aproximar a relação fisco-contribuinte e a
tornar a cobrança mais célere, eficaz e menos conflituosa (TAPIAS, 2017, p.261-262).
É claro que as diferentes organizações, para justificar o engajamento no
sistema, demandam e competem por prerrogativas, influências e orçamento,
recrudescendo o seu isolamento, quando o ideal era exatamente o contrário, com a
integração de suas atividades e eliminação de práticas repetitivas.
Em resumo, os auditores fiscais e técnicos fazendários não querem perder
poder; os advogados públicos não querem perder nicho de mercado, a barganha por
melhorias estruturais e remuneratórias decorrentes do volume de processos de cobrança
em que atuam, bem como as vantagens pecuniárias em razão da recuperação de
créditos; e o Judiciário não quer abrir mão das receitas de emolumentos e taxas judiciais
que se tornam interessantes em razão da quantidade de processos em tramitação.
É preciso, assim, otimizar tempo, custo e pessoas (realocando funções) nos
órgãos dos Poderes Executivo e Judiciário envolvidos (BOSSA , 2017, p.47).
O corporativismo é falha que decorre da existência simultânea de atores que
querem protagonizar papéis semelhantes. Cada qual acabará supervalorizando sua
importância no sistema, ignorando as naturais deficiências e perdendo a oportunidade de
autocrítica.
A apropriação das entidades e órgãos por seus gestores é outro grave indício da
necessidade de se repensar a modelagem. Não é incomum, dada a alternância típica da
sazonalidade dos processos político-eleitorais, determinado gestor importar-se mais na
satisfação de metas pessoais e na demonstração exacerbada da importância de seu órgão
em detrimento do interesse comum almejado.
Logo, o denominado conflito de agenda da instituição e dos seus
administradores é também perniciosa na medida em que desvirtua o propósito das
estruturas orgânicas, gerando ineficiência, uma vez desalinhada das políticas públicas
que os agentes do Estado deveriam priorizar.

56
Por fim, a opacidade das instituições aparenta ser atributo comum, quando na
verdade deveria prevalecer a transparência absoluta, até para fins de, examinando-se o
custo-benefício das estruturas, identificar aquelas que poderiam ser eliminadas.
É bem verdade que as estatísticas de processos de execução fiscal, o seu custo
conforme estudos do IPEA e divulgação do montante da dívida ativa cobrável já
representam um desenganado avanço, porém é necessário, já que possível, mensurar o
investimento que vem sendo feito em cada etapa desde o lançamento até a cobrança
judicial, juntamente com a performance alcançada, para se desenvolver eventualmente
soluções para otimizá-las.
Como assinalam Leo Kissler e Francisco Heidemann, a prática da governança
pública demanda gestão estratégia, através da reavaliação constante de metas, dos
recursos empregados e dos procedimentos, a fim de legitimar os atores e suas
atribuições na própria organização (KISSLER; HEIDEMANN, 2006, p.479-499).
Somente com o reconhecimento da ocorrência de falhas de governanças se
torna possível desenvolver medidas alternativas para o problema que se apresenta. A
missão se torna desafiadora, porém, em razão de tal constatação depender da autocrítica
dos atuais gestores e partícipes do sistema de cobrança, os quais, temendo as
consequências que adviriam na redução de seus espaços de poder, acabam postergando
indefinidamente a implementação de eventuais novas práticas.

2.3. Uma arena de interação e diálogo: os Centros Judiciários de Solução de


Conflitos e Cidadania
Delineado o atual sistema de cobrança de créditos públicos e identificadas as
principais falhas de governança, faz-se necessário pensar em uma solução alternativa,
marcadamente harmônica e cooperativa, para fins de torná-lo eficiente e menos hostil e
burocrático.
A tendência atual de ênfase na consensualidade e em métodos alternativos e
não adversariais para a solução de controvérsias, contrapondo-se, assim, à antiga
concepção de jurisdição exclusivamente impositiva e estatal, vem ao encontro da
necessidade de superar o colapso constatado na cobrança de créditos públicos.
Para tanto, é preciso implementar novos atos de gestão, evitar práticas
repetidas e envolver os partícipes desse sistema de forma coordenada, aproximando-os
da sociedade (e do contribuinte), fomentando a conciliação e a mediação.

57
Foi com esse propósito que entrou em vigor a Lei n. 13.140, de 2015,
estabelecendo procedimentos de mediação entre particulares e também envolvendo a
Administração Pública, prevendo, em seu art. 2456, a criação dos denominados Centros
Judiciários de Solução Consensual de Conflitos.
A inovação, no que interessa ao caso em estudo, é o envolvimento do Poder
Judiciário e das partes, particulares ou públicas, pessoas físicas ou jurídicas, desde o
momento pré-processual, facultando-lhes, através da conciliação e mediação, alcançar
soluções rápidas, eficientes e menos custosas, aproximando a relação fisco-contribuinte.
A criação dessa nova arena de diálogo ganhou ainda mais importância a partir
da edição do novo Código de Processo Civil, alicerçado no desejo comum, de todos os
Poderes, de reduzir a litigiosidade, consolidando e estimulando mecanismos de estímulo
à solução consensual de conflitos (art. 3º, §3º, CPC57).
Com esse incentivo, e estando a solução consensual abrangida pelo novo marco
legal também na fase pré-processual, há de se repensar o sistema de cobrança de
créditos públicos a fim de que ele também convirja para esse ambiente cooperativo e
eficiente de resolução de controvérsias.
Desse modo, propõe-se, inicialmente, como medida para sanar a multiplicidade
orgânica e a apontada falta de coordenação entre as organizações estatais, a
uniformidade da fase de cobrança administrativa pelo Poder Executivo, evitando-se a
repetição de atos hoje assumidos pelas Secretarias de Fazenda e Procuradorias Gerais.
Com isso, a atuação fazendária se limitaria basicamente a fazer o lançamento e
notificar o contribuinte, além de coordenar a fase de contencioso administrativo caso
deflagrada, não demandando mais esforços na hipótese de não sobrevir o pagamento do
débito.
A fase de cobrança propriamente dita, de confrontar o contribuinte com o
débito inadimplido, após a notificação frustrada ou a finalização do procedimento
administrativo fiscal, seria atribuição específica das Procuradorias Gerais, podendo ser
delegada a instituições financeiras, eliminando-se assim a superposição de atribuições
(cobrança administrativa) que se opera entre os órgãos jurídicos e fazendários.

56
Art. 24. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela
realização de sessões e audiências de conciliação e mediação, pré-processuais e processuais, e pelo
desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.
57
Art. 3o Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser
estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no
curso do processo judicial.

58
Desse modo, também seria minimizado o problema do conflito de agenda, já
que bem delimitadas as funções de cada entidade, além de ficar mais fácil a extração de
dados para monitoramento da performance, incentivando a transparência das
instituições e apurando-se o custo-benefício de cada órgão e medida que venha a ser
implementada.
Frustrada a recuperação de crédito, após o ato interno de lançamento, a
notificação externa primeva (órgãos fazendários) e o confronto da dívida com o devedor
(procuradorias), seria inaugurada uma fase de cobrança mediada pré-processual, com a
mediação judicial nos Centros de Solução Consensual e Conflitos (Poder Judiciário),
antes do ajuizamento de qualquer execução.
A medida evitaria os custos inerentes a um processo e, através da aproximação
das partes devedora e credora com um terceiro desinteressado, qualificado para
fomentar um consenso, teria maior probabilidade de tornar exitosa a cobrança.
Veja-se que o que se propõe é uma redistribuição das funções que hoje se
superpõem (os três órgãos assumem em parte atribuições comuns), de acordo com suas
finalidades precípuas, trazendo uma ressignificação a todo o processo de cobrança a
partir da ênfase na aproximação da relação entre o Estado e o contribuinte.

3. Conclusão

O atual sistema de cobrança de créditos públicos no Brasil encontra-se em


colapso, de acordo com dados estatísticos recentes dando conta da exorbitância de
processos judiciais que ostentam a natureza de execuções deflagradas pelo Poder
Público.
O sintoma decorre, em grande parte, de problemas de governança,
considerando diversas falhas, tais como a multiplicidade orgânica e a falta de
coordenação entre as organizações, o corporativismo, o conflito de agenda e a
opacidade das instituições, impedindo, assim, o êxito na satisfação dos créditos.
Com efeito, há repetição de atividades por órgãos distintos e falta de
cooperação entre as partes, acarretando ao Poder Judiciário, que figura como última
alternativa de cobrança, além do considerável volume de processos, uma alta taxa de
congestionamento, decorrente das tentativas infrutíferas de recuperação do crédito.
Nesse cenário, impulsionados pela tendência de solução consensual e
participada de conflitos, surgem os Centros Judiciários de Solução Consensual de

59
Conflitos, uma nova arena de negociação e aproximação das partes, onde, através da
conciliação e mediação pré-processual, afigura-se uma maior probabilidade de sucesso
da cobrança, dada a aproximação da relação fisco-contribuinte.
Assim, acredita-se que com o redesenho institucional cooperativo, aliado à
solução das falhas de governança apontadas, alcançar-se-á maior eficiência, efetividade,
participação e celeridade na cobrança de créditos públicos.

4. Bibliografia

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário


Oficial da União, Brasília-DF, 17 mar. 2015.
BRASIL. Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre
particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de
conflitos no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 29
jun. 2015.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a
órgãos e entidades da administração pública. Brasília: TCU, Secretaria de
Planejamento, Governança e Gestão, 2014.
BOSSA, Gisele Barra. “Potenciais caminhos para redução do contencioso tributário”, in
Medidas de redução do contencioso tributário e o CPC/2015: contributos práticos para
ressignificar o processo administrativo e judicial tributário (coord. Gisele Barra Bossa,
Eduardo Perez Salusse, Tathiane Piscitelli e Juliana Furtado Costa Araújo). São Paulo:
Almedina, 2017.
CARVALHO, Cristiano. “O Conflito entre contribuintes e o Estado na busca do crédito
tributário”, in Medidas de redução do contencioso tributário e o CPC/2015:
contributos práticos para ressignificar o processo administrativo e judicial tributário
(coord. Gisele Barra Bossa, Eduardo Perez Salusse, Tathiane Piscitelli e Juliana Furtado
Costa Araújo). São Paulo: Almedina, 2017.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em números 2016: ano-base
2015. Brasília: CNJ, 2016.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Custo unitário do processo
de execução fiscal da União. Brasília: Ipea; CNJ, 2011.

60
KISSLER, Leo; HEIDEMANN Francisco G. “Governança Pública: novo modelo
regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade?” in Revista de
Administração Pública, v. 40, n. 3, 2006.
TAPIAS, Camila Abrunhosa. “Análise comparativa dos órgãos de solução de litígios
em matéria tributária”, in Medidas de redução do contencioso tributário e o
CPC/2015: contributos práticos para ressignificar o processo administrativo e judicial
tributário (coord. Gisele Barra Bossa, Eduardo Perez Salusse, Tathiane Piscitelli e
Juliana Furtado Costa Araújo). São Paulo: Almedina, 2017.
VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; DA SILVA, Daniel Santiago da.
Diagnóstico do processo administrativo fiscal federal, 2016. Jota. Disponível em
<http://jota.info/artigos/diagnostico-processo-administrativo-fiscal-federal-22082016>
Acesso em 02 dez. 2017.

61
Capítulo 6 – Pontos de conflito entre os institutos da recuperação judicial e da
concessão de serviço público58

Caio Cesar Figueiroa

1. Introdução
Diante da recente crise econômica, que afetou sobremaneira o setor de
infraestrutura, medidas efetivas passaram a ser adotadas pelo governo na tentativa de
resgatar contratos de concessão, como é o caso da Lei nº 13.448/17 e da Medida
Provisória nº 800/17, por meio das quais foram disciplinadas a prorrogação antecipada
do contrato; a devolução da concessão seguida da relicitação; e a reprogramação de
investimentos, no caso de contratos em que haja uma alta concentração de
investimentos nos primeiros anos de concessão.
Em linhas gerais: diante da crise, foram criados novos institutos para contratos
de concessão em plena execução, com o intuito de preservar os projetos de
infraestrutura já implementados. Ocorre que, além da criação de novos institutos
voltados à retomada das condições de manutenção destes contratos, também é
necessário refletir sobre a aplicação de antigos institutos de mesma finalidade, porém,
de forma diversa. Este é, justamente, o objeto do presente artigo: refletir sobre a
aplicação da recuperação judicial em conjunto com a concessão de serviço públicos59
visando à identificação de pontos conflitantes, para que, posteriormente, sejam
analisadas eventuais alterações legislativas necessárias para viabilizar essa aplicação
conjunta.

58
Resumo: Este artigo tem como propósito delinear alguns questionamentos jurídicos a partir da
aplicação da recuperação judicial em conjunto com a concessão de serviço público visando à
identificação de pontos conflitantes. Ainda que, teoricamente, seja possível afastar referidos conflitos,
faz-se necessário considerar as especificidades de concessionárias de serviços públicos nos processos de
recuperação judicial, para que se inicie uma discussão sobre uma disciplina legal a respeito, tudo como
medida de se garantir segurança jurídica.
Palavras-chave: recuperação judicial; concessões; infraestrutura; segurança jurídica.
Sumário: 1. Introdução; 2. O Plano de Recuperação Judicial para concessionárias de serviços públicos;
2.1. O objeto do Plano de Recuperação Judicial e a sobreposição de competências do ente regulador; 2.2.
A revisão do cronograma de investimentos no âmbito do Plano de Recuperação Judicial; 2.3. Inclusão de
Sanções Administrativas no Plano De Recuperação Judicial; 3. Regimes jurídicos; 4. Conclusões; 5.
Referências Bibliográficas.
59
Para fins do presente estudo, focaremos nossa análise em contratos de concessão de serviço público,
regidos pela Lei nº 8.987/95, uma vez que, em tese, os contratos de concessão regidos pela Lei nº
11.079/04 são mais estáveis economicamente, sobretudo em razão da garantia prestada pelo Poder
Concedente.

62
A metodologia utilizada no presente estudo corresponde a uma análise crítica
da legislação60, com eventuais exemplos de decisões judiciais e apoio doutrinário para
fixar conceitos indispensáveis. Sendo assim, a argumentação empregada no presente
ensaio não decorre da análise crítica e/ou quantitativa da jurisprudência, nem de revisão
bibliográfica.

2. O Plano de Recuperação Judicial para concessionárias de serviços públicos


Viabilizar a recuperação judicial ou extrajudicial de concessionárias de serviços
públicos é tarefa árdua, sobretudo em razão do formato do negócio, que, em regra, é
projetado para obtenção do retorno econômico-financeiro a longo prazo. Como se verá,
a depender do modelo de projeto explorado pela concessionária, o sucesso da
recuperação judicial poderá enfrentar algumas dificuldades.
Para compreendê-las, no entanto, será preciso tecer sucintamente, e, em
perspectiva histórica, o funcionamento da recuperação judicial. Antes da Lei nº
11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência – “LRE”), vigorava há 60 anos
no ordenamento jurídico brasileiro o Decreto-Lei nº 7.661/45, norma responsável por
disciplinar as consequências da insolvência das empresas por meio de dois institutos, a
falência e a concordata.
Sob a vigência da referida norma, o instituto da concordata – que, de “acordo”,
nada possuía – era considerado um benefício legal às empresas que estivessem próximas
à decretação da falência, no qual, o juiz procedia sem qualquer análise da viabilidade
financeira do devedor, desde que atendidos determinados requisitos formais. Sua
aplicabilidade era deveras restrita e atingia somente os credores quirografários, embora
pudesse incidir de maneira preventiva ou suspensiva, antes ou após a decretação da
falência, respectivamente. O instituto, todavia, mostrou-se de enorme fragilidade diante
de sua principal pretensão: permitir a superação das dificuldades econômico-financeira
da empresa.
Com o advento da LRE, o cenário é alterado drasticamente. A concordata é
extinta para dar lugar ao então promissor instituto da recuperação judicial, tendo como
premissa basilar a preservação e continuidade da atividade empresarial61, além de

60
Utilizaremos, para todos os fins, o conceito amplo de lei, em que estão englobados os diversos atos
normativos, como é o caso de resoluções, portarias, etc.
61
Lei nº 11.101/05: “Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação
de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do

63
conceber aos credores o papel protagonista sobre o destino da recuperanda. Dessa
maneira, e atendidos os requisitos mínimos legais, o juiz deferirá o processamento da
recuperação judicial, com a consecutiva abertura de prazo para que os credores
habilitem seus créditos junto ao administrador, devendo a empresa recuperanda
apresentar em até 60 (sessenta) dias um plano de reorganização da sociedade62, sob pena
de convolação em falência.
A partir de então, moldam-se dois possíveis cenários. No primeiro, os credores
que tenham habilitado seus créditos junto ao administrador judicial não apresentam
objeção, situação que se será reconhecida a aprovação tácita do PRJ. Para um segundo
cenário, e havendo objeção por quaisquer um dos credores, o juiz determinará a
realização da Assembleia Geral de Credores (“AGC”), na qual se consolidará – ou não –
a negociação entre a recuperanda e seus credores, podendo resultar (i) na alteração do
PRJ inicial, (ii) na rejeição do PRJ, com a subsequente convolação da recuperação em
falência, ou (iii) na aprovação do PRJ, acompanhada da consecutiva homologação
judicial e deferimento da recuperação pelo juízo falimentar.
Desta breve explanação é possível notar que a LRE adotou o critério negocial
entre devedores e credores, em conformidade com a autonomia da vontade das partes
que transigirão, no âmbito do PRJ, elementos de caráter patrimonial.63 Neste plano,
portanto, a recuperanda poderá apresentar suas propostas de superação das dificuldades
financeiras que lhe atingem, abrangendo, mas não se limitando, a prorrogação da
exigibilidade dos créditos, a renegociação, a venda de ativos, dentre outros, como bem
exemplifica o art. 50 da LRE.
É neste ponto que se começa a esboçar a primeira dificuldade com relação às
concessionárias de serviços públicos. Em primeiro lugar, e como dito acima, a depender
da modelagem do projeto envolvida, os mecanismos de recuperação poderão ter sua
eficácia comprometida, como na hipótese que a dilação dos pagamentos esteja em

emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa,
sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
62
De acordo com o art. 53 da LRE, são 3 os requisitos formais do PRJ: (i) discriminação pormenorizada
dos meios de recuperação a ser empregados, conforme o art. 50 da LRE, e seu resumo; (ii) demonstração
de sua viabilidade econômica; e (iii) laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do
devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.
63
“Possivelmente o credor não levará em consideração apenas a proposta de pagamento (das obrigações
vencidas) contidas no plano; mas, sobretudo, observará as perspectivas futuras apresentadas pelo devedor
em relação ao seu negócio, a fim de que se avalie haver confiança suficiente para que novo crédito seja
concedido ao devedor e, com isso, aprove-se o plano. É nesse contexto que está inserida a liberdade de
contratar na recuperação judicial: as obrigações sujeitas ao plano e a concessão de crédito ao devedor
(permitindo a renegociação do passivo) correspondem a direitos patrimoniais e, portanto, por natureza,
disponíveis (ou seja, sobre eles pode-se livremente transacionar)” (PUGLIESI, 2016,p.7-20).

64
conformidade com um cronograma financeiro futuro das receitas auferidas pela
prestação dos serviços. É que há projetos não maduros, cuja percepção de receita ainda
demandará mais investimentos pela concessionária.
Para projetos do tipo brownfield, cuja infraestrutura já está madura e em pleno
funcionamento, o problema não é dos mais complexos, já que, diante do histórico de
informações do projeto, é possível estimar com alguma segurança o fluxo de receitas
futuras, assim como a programação de desembolsos para novos investimentos referentes
à ampliação e à melhoria dos serviços.
Diferentemente é o caso de projetos do tipo greenfield, em que a concessionária
fica responsável pela implantação do projeto e, posteriormente, pela sua operação.
Nestes casos, como não há informações históricas da operação do projeto, o risco de
uma recuperação judicial é substancialmente maior, haja vista que não há informações
históricas sobre a demanda pelos serviços, ou sobre o risco de sujeições imprevistas no
decorrer da execução contratual, dentre outros elementos que, ainda que disciplinados
contratualmente, influenciarão a percepção de risco das concessionárias quanto ao
retorno dos investimentos.
Essa é uma distinção importante e que pode determinar as chances de sucesso da
recuperação judicial de uma concessionária, isto é, a viabilidade econômico-financeira
do negócio. Referida questão, aliás, é exigida como requisito do Plano de Recuperação
Judicial (PRJ) a ser apresentado pela empresa recuperanda.64
Sendo as concessionárias, em grande medida, desprovidas de ativos relevantes,
já que seu principal investimento se dá em bens públicos reversíveis – isto é, afetados
pela sua função à continuidade da prestação do serviço público – a situação torna-se
ainda mais tormentosa. Nesse cenário, o rol dos mecanismos de recuperação judicial,
previsto no art. 50 da LRE, deve ser compatibilizado com o regime jurídico que recai
sobre a concessão, sem prejudicar, por outro lado, a finalidade da recuperação judicial
para a preservação da atividade econômica.
É dizer, em razão da peculiar condição empresarial de uma concessionária, em
que boa parte dos seus ativos – senão a totalidade – constituem bens reversíveis,
exsurge a dúvida quanto à natureza patrimonial e a disponibilidade dos bens ou direitos

64
Lei nº 11.101/05: “Art. 53. O plano de recuperação será apresentado pelo devedor em juízo no prazo
improrrogável de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação
judicial, sob pena de convolação em falência, e deverá conter: (...) II – demonstração de sua viabilidade
econômica”.

65
que poderão integrar o PRJ, tema que será apreciado no próximo tópico, a partir de
alguns raros exemplos garimpados na jurisprudência.

2.1. O objeto do Plano de Recuperação Judicial e a sobreposição de competências


do ente regulador
Analisada a primeira das dificuldades entre o instituto da recuperação judicial e
as concessionárias de serviços públicos, surge o questionamento dos limites da
autonomia privada nos Planos de Recuperação Judicial. Em outras palavras, quais são
os ativos passíveis de negociação nos PRJ de concessionárias? Para analisar os limites
dessa relação de compatibilidade entre os institutos, toma-se como exemplo dois casos.
O primeiro tem como objeto a recuperação judicial da Abengoa65, grupo
econômico composto por três empresas, sendo duas holdings responsáveis pelo controle
de concessionárias na exploração de linhas de transmissão de energia elétrica e uma
construtora voltada exclusivamente para viabilizar a ampliação da infraestrutura
relacionada às demais empresas do grupo. O PRJ do grupo adotou, dentre as medidas de
recuperação, a estratégia da alienação judicial de participações societárias nas
concessionárias brownfield e greenfield. No contexto do art. 27 da Lei 8.987/95, a
eficácia da transferência do controle societário das concessionárias dependeria da
anuência prévia do Poder Concedente, devendo o futuro controlador atender as
exigências de habilitação necessárias à assunção do serviço, assim como as obrigações
contratuais fixadas à concessionária alienada.
Para dialogar com estas exigências, o PRJ previu como condição suspensiva a
obtenção de autorização por parte da ANEEL e do CADE. Nesta hipótese, o PRJ foi
além das condicionantes ordinárias da LRE.66 Embora tal previsão não encontre
vedações, tal previsão chama atenção à insegurança que o ato de anuência prévia do
regulador poderá ter sobre a operação estruturada no PRJ. Para viabilizar a alienação
judicial de modo a garantir a efetividade da recuperação judicial, os parâmetros de
anuência prévia não devem ir além das exigências do § 1º do art. 27 da Lei nº 8.987/95,
caso contrário, prevalecerá o receio por parte dos interessados em participar do futuro

65
TJRJ, 5ª Vara Empresarial do Foro da Capital, do Estado do Rio de Janeiro, processo nº 0029741-
24.2016.8.19.0001.
66
É o caso do art. 54 da LRE, em que há condicionante no que tange à previsão de pagamento, em até um
ano, dos créditos de natureza trabalhista e acidentária constituídos até a data do pedido de recuperação
judicial; 19 e previsão de pagamento, em até 30 dias, até o limite de cinco salários mínimos por
trabalhador, das verbas estritamente salariais vencidas nos três meses anteriores ao pedido. Outras
condicionantes podem ser conferidas nos arts. 45; 49, §1º; 50, §§ 1º e 2º; e 58, §2º, todos da Lei nº
11.101/05.

66
leilão, o que frustraria por completo as chances de êxito da recuperação judicial
estruturada para o grupo econômico.
Outra situação que merece considerações neste ensaio diz respeito à recuperação
judicial da companhia aérea Pantanal67. Neste caso, o PRJ da concessionária previu,
dentre as medidas de recuperação, a alienação de ativos integrantes de sua concessão: os
slots68 destinados à exploração comercial no aeroporto de Congonhas. O PRJ, contudo,
foi impugnado pela ANAC, vez que, em seu entendimento, a medida estaria invadindo
suas atribuições legais para a regulação dos serviços explorados pelas concessionárias
de transporte aéreo, mais especificamente para a retomada de slots ociosos da
companhia. O caso foi apreciado no Superior Tribunal de Justiça (AgRg na SLS
1.161/SP), tendo a discussão se cingido à disponibilidade do direito de exploração
comercial dos espaços ociosos no âmbito da infraestrutura aeroportuária, e não
propriamente da inclusão deste tipo de ativo no âmbito do PRJ.
Nada obstante, um ponto relevante deste caso e que, certamente, poderá ser
extraído como lição para os futuros pedidos de recuperação judicial consiste na possível
sobreposição de competências entre o Juízo Falimentar, de um lado, e o Poder
Concedente e o respectivo Agente Regulador, de outro69. Para evitar esta situação,
melhor seria contar com uma previsão normativa que admitisse, desde o pedido de
recuperação, a participação das referidas autoridades a fim de que possam se pronunciar
sobre o teor do PRJ assim como dos mecanismos que serão utilizados para a retomada
das condições econômico-financeiras da concessionária.
Longe de esgotar todos os desdobramentos do caso, é certo que a recuperação
judicial destinada às concessionárias de serviços públicos é tema que demanda a
participação de diversos e relevantes atores, terreno fértil o suficiente para gerar
problemas de governança diante do amplo plexo de competências envolvidas, seja na
esfera judicial, seja na esfera administrativa. Assim, dentre os possíveis conflitos

67
TJSP, 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central, do Estado de São Paulo, processo
nº 0241256-52.2008.8.26.0100.
68
Nos termos do art. 2º, IV, da Resolução ANAC nº 02/2006, “IV - slot: é o horário estabelecido para
uma aeronave realizar uma operação de chegada ou uma operação de partida em um aeroporto
coordenado”. Trata-se, pois, de autorizações de horários de pouso e decolagem de aeronaves civil
alocadas, com base nas decisões regulamentares da ANAC, no âmbito das infraestruturas aeroportuárias.
69
Trecho representativo dessa preocupação é extraído do Voto-Vista da Min. Nancy Andrighi: “Há, neste
processo, a confrontação de dois valores importantíssimos. De um lado, o princípio da preservação da
empresa, que encontra proteção específica no art. 47 da Lei 11.101/2005; e, de outro, a defesa da
concorrência, da ordem econômica e da ordem administrativa a ser promovida pelo Estado, entre outras
medidas, mediante a criação e atuação das autarquias em regime especial denominadas Agências
Reguladoras” (AgRg na SLS 1.161/SP, Voto-Vista Min. Nancy Andrighi, j. 03.03.2010).

67
mapeados nos casos exemplificados, é notável a existência de riscos de sobreposição de
competências no âmbito dos processos de recuperação judicial das concessionárias de
serviços públicos, e que, a depender da abrangência do Plano de Recuperação Judicial e
os mecanismos definidos para a retomada da viabilidade econômica da concessão, esses
conflitos poderão ser de maior ou menor intensidade.

2.2. A revisão do cronograma de investimentos no âmbito do Plano de


Recuperação Judicial
Apesar de a legislação não ter disciplinado a possibilidade de revisão do
cronograma de investimentos no âmbito do PRJ, esse ponto representa uma
convergência entre os institutos da recuperação judicial e da concessão de serviço
público no sentido de dar fôlego à concessionária. Até porque, se há um ponto de
convergência entre o instituto da recuperação judicial e a concessão de serviço público,
certamente esse é o de permear a continuidade da exploração da atividade, que, por
viabilizar um serviço de inquestionável interesse público, também é responsável por
fomentar toda a cadeia produtiva econômica70.
Vale recordar, inclusive, a recente Medida Provisória nº 800/17, que foi editada
para disciplinar a reprogramação de investimentos concentrados nos primeiros anos de
concessão. Na própria MP, assim como na Lei nº 13.448/1771, foi determinada a
suspensão dos investimentos após a assinatura de Termo Aditivo, o que, no entanto,

70
“A empresa é a racionalização dos fatores econômicos, tecnológicos e humanos da produção, instituída
sob a forma de pessoa jurídica, a companhia. Tem a empresa uma óbvia função social, nela sendo
interessados os empregados, os fornecedores, a comunidade em que atua e o próprio Estado, que dela
retira contribuições fiscais e parafiscais. (...). Consideram-se principalmente três as modernas funções
sociais da empresa. A primeira refere-se às condições de trabalho e às relações com seus empregados, em
termos de melhoria crescente de sua condição humana e profissional, bem como de seus dependentes. A
segunda volta-se ao interesse dos consumidores, diretos e indiretos, dos produtos e serviços prestados
pela empresa, seja em termos de qualidade, seja no que se refere aos preços. A ter- ceira volta-se ao
interesse dos concorrentes, a favor dos quais deve o administrador da empresa manter práticas equitativas
de comércio, seja na posição de vendedor, seja na de comprador. A concorrência desleal e o abuso do
poder econômico constituem formas de antijuricidade tipificadas (...). E ainda mais atual é a preocupação
com os interesses de preservação ecológica, urbana e ambiental da comunidade em que a empresa atua”
(CARVALHOSA, 2003, p.275-276).
71
MP nº 800/17:
“Art. 1º [...] § 3º Manifestado o interesse da concessionária em aderir à reprogramação de que trata o § 1º,
as partes firmarão, na sequência, aditivo contratual que discipline a suspensão das obrigações de
investimento vincendas e das multas correspondentes e as condições em que os serviços continuarão
sendo prestados, até que seja firmado o termo de reprogramação de investimentos, conforme ajustado
entre as partes e conforme as condições e prazos estabelecidos nesta Medida Provisória.”
Lei nº 13.448/17:
“Art. 15 [...] II - a suspensão das obrigações de investimento vincendas a partir da celebração do termo
aditivo e as condições mínimas em que os serviços deverão continuar sendo prestados pelo atual
contratado até a assinatura do novo contrato de parceria, garantindo-se, em qualquer caso, a continuidade
e a segurança dos serviços essenciais relacionados ao empreendimento;”

68
poderá voltar à sistemática anterior no caso de os respectivos processos não seguirem
adiante72.
No entanto, diferentemente de uma empresa privada, uma repactuação
substancial de investimentos no âmbito de uma concessão de serviço público pode (i)
descaracterizar o certame licitatório, e, eventualmente, (ii) comprometer a continuidade
da prestação do serviço público.
Apesar de toda Agência Reguladora aprovar frequentemente alterações de
cronograma de investimentos, dada a natureza dinâmica das concessões, nunca é demais
retomar os argumentos que autorizam tal repactuação e que, consequentemente, não
haveria impedimento em relação aos pontos suscitados acima.
Acerca da suposta descaracterização do certame licitatório, cumpre ressaltar
que isso não se caracterizaria no caso de o motivo da repactuação ser exógeno à atuação
do Poder Concedente e da concessionária, até porque seria inadequado atribuir riscos
macroeconômicos a uma concessionária. Ademais, qualquer reprogramação de
investimentos enseja o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, de
modo que seriam mantidas as condições efetivas da proposta, conforme determina o art.
37, XXI da Constituição Federal, de modo que seria afastado o argumento de ofensa à
licitação.
No que toca à continuidade do serviço público, é verdade que nem todo
investimento é passível de revisão, sob pena de se prejudicar, de fato, a continuidade da
prestação do serviço público. No entanto, como a continuidade da prestação do serviço
público é definida no próprio contrato, de acordo com o art. 18 da Lei nº 8.987/9573, não
se deve argumentar um eventual prejuízo, em tese, a essa diretriz, mas, sim, mediante
análise pormenorizada do contrato de concessão.
Apesar de ser dado enfoque à prorrogação de investimentos, existe, também, a
possibilidade de serem inseridas novas obrigações no âmbito do contrato de concessão,

72
No próprio contrato de concessão existe a possibilidade de disciplina de quais investimentos podem ser
suprimidos, o que, inclusive, torna mais previsível a sua execução: no caso de necessidade temporária de
suspensão de investimentos, o ente regulador já teria parâmetros para saber quais investimentos podem
ser suprimidos. Tal sistemática tem seu valor em razão da complexidade da identificação dos
investimentos passíveis de suspensão.
73
Lei nº 8.987/95: “Art. 18. O edital de licitação será elaborado pelo poder concedente, observados, no
que couber, os critérios e as normas gerais da legislação própria sobre licitações e contratos e conterá,
especialmente: [...] VII - os direitos e obrigações do poder concedente e da concessionária em relação a
alterações e expansões a serem realizadas no futuro, para garantir a continuidade da prestação do
serviço” (grifo nosso).

69
o que, a depender do estágio de execução contratual, também poderia contribuir com o
reequilíbrio econômico-financeiro.
Sem prejuízo do quanto exposto, eventual revisão de investimentos no âmbito
do Plano de Recuperação Judicial ainda proporcionaria mais transparência aos credores
da concessionária, o que poderia, eventualmente, facilitar a obtenção de crédito,
preservando-se, consequentemente, a manutenção do contrato.
Por todo o exposto neste item, propõe-se que seja editado um dispositivo legal
que autorize a repactuação de investimentos dos contratos de concessão no âmbito dos
PRJ's, tudo como medida de proporcionar segurança jurídica na execução de tais
contratos.

2.3. Inclusão de Sanções Administrativas no Plano De Recuperação Judicial


No âmbito do PRJ não há previsão para inclusão dos débitos passíveis de
execução fiscal, em que se incluem as sanções de multa. Considerando, no entanto, um
cenário de que as multas também representem um grande passivo, a impossibilidade de
transação desses débitos na recuperação judicial74 pode comprometer esse processo e,
consequentemente, levar à extinção do contrato. Em caso recente, e de grande exposição
midiática, a recuperação judicial do Grupo Oi S.A. enfrentou esse assunto em debate
judicial, tendo a ANATEL apresentado o argumento de que “a inclusão de pessoa
jurídica de direito público em recuperação judicial é indevida, notadamente porque
não se pode admitir que particulares [deliberem sobre] o tratamento a ser dado aos
créditos da Fazenda Pública”75.
Ocorre que a transação de débitos com a Administração Pública está longe de
ser algo novo. Além da Lei nº 7.347/85, em que foi prevista a possibilidade de o
Ministério Público firmar Compromissos de Ajustamento de Conduta, mais
recentemente foi editada a Lei nº 13.140/15 (Lei de Mediação), em que foi disciplinada
a celebração de termos de ajustamento de conduta por todas as entidades da
administração pública federal, estadual ou municipal, afastando-se, deste modo,
qualquer dúvida acerca da legalidade da transação de débitos de caráter sancionatório.

74
Essa foi uma das principais dificuldades enfrentadas pela “Oi” em seu processo de recuperação judicial.
75
TJRJ, 7ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro, processo nº 0203711-65.2016.8.19.0001.
Vale recordar, inclusive, que, diante da aprovação do PRJ da Oi, a Procuradoria da ANATEL chegou a
ingressar com a suspensão de liminar nº 2017/0251077-0, apesar de não ter obtido êxito.
Esse cenário de disputa judicial acerca de como será realizada a Recuperação Judicial da companhia
apenas ressalta a insegurança jurídica que prevalece sobre esse tema.

70
Como amplamente mencionado, a recuperação judicial tem por finalidade a
superação da crise da empresa, o que implica considerar o patrimônio integral do
devedor. Para tanto, a satisfação dos créditos do Poder Público não pode conduzir à
inviabilidade da recuperanda, considerando a premissa basilar da lei em guarnecer
condições para que a empresa possa retornar à sua plena atividade. Tendo sido
positivada a premissa acerca da viabilidade jurídica para transação de débitos contraídos
perante a administração pública, não prevalecem justificativas para não regulamentar o
procedimento de que essa transação seja autorizada no âmbito dos Planos de
Recuperação Judicial.
Deste modo, sendo a recuperação judicial processo de natureza negocial, busca-
se, no âmbito da Lei de Mediação, as condições para uma solução consensual. De fato,
por se tratar de crédito público, e pelo dever de observância à Legalidade, a
Administração não está plenamente autorizada a prorrogar prazos de pagamentos,
conceder descontos, etc. Por outro lado, o melhor interesse público submete uma saída
viável que, longe de esbarrar na legalidade, possibilidade encontrar uma solução
concertada, no qual se prestigiará não só o interesse público secundário, mas também o
primário.
Para além disso, ainda vale registrar outro aspecto sobre penalidades. É verdade
que a Lei nº 8.987/95 elenca dentre as hipóteses de declaração de caducidade da
concessão a perda das condições econômicas da concessionária para a adequada
prestação dos serviços. Tal hipótese, contudo, não pode ser tão simplista ao ponto de
autorizar a declaração da caducidade pelo simples deferimento do pedido de
recuperação judicial, até porque, corresponde a uma medida que justamente visa
estabelecer condições para que a empresa possa normalizar suas operações.
A caducidade é o instituto sancionatório que antecipa o fim da concessão.
Podemos analisar sua viabilidade sob duas situações distintas, a primeira quando a
recuperação judicial é pré-existente ao processo de caducidade e a segunda quando a
caducidade é pré-existente ao pedido de recuperação judicial.
Para a primeira situação, e caso a caducidade fosse levada adiante, a recuperação
judicial por certo perderia seu objeto, já que a concessão estaria fadada à extinção,
persistindo o imbróglio quanto à reversibilidade e as indenizações devidas pelos
investimentos ainda não amortizados. Aqui, seria mais lógico o sobrestamento da
caducidade, não pela regra temporal, mas pela finalidade pretendida pela recuperação
judicial, ainda mais nos casos em que o processo de caducidade tenha se iniciado em

71
razão de a concessionária ter deixado de manter as condições econômicas para a
prestação do serviço. Para esta última situação, não haveria impedimento para que um
futuro projeto de lei disciplinasse a suspensão ope legis, cabendo para as demais
hipóteses ao julgador avaliar se a medida da caducidade deve prosseguir em detrimento
da recuperação judicial.
Por outro lado, é preciso tomar cuidado para não deferir o instituto para
empresas oportunistas, que querem se valer do stay period para não enfrentar processos
de penalidade. Nestes casos, a legislação também poderia criar filtros, de modo a conter
a efetiva participação destes agentes durante a licitação.

3. Regimes Jurídicos
A partir da análise dos pontos conflitantes apresentados anteriormente, é
possível notar que há semelhanças entre os institutos da devolução, da reprogramação e
da recuperação judicial. No entanto, tal semelhança é parcial, uma vez que a aplicação
dos dois primeiros institutos é eficaz no caso de débitos predominantemente
relacionados com o Poder Concedente e/ou Agência Reguladora competente, ao passo
que a recuperação judicial teria espaço em situações em que as concessionárias estão
inadimplentes com diversos credores privados, de modo que, se não houver um ajuste
neste caso – Plano de Recuperação Judicial – envolvendo todos os credores, existe o
risco de ser decretada a falência da concessionária, o que ensejaria a extinção contratual,
nos termos do art. 35, VI, da Lei n. 8.987/9576.
Em outras palavras, os institutos da Devolução, da Reprogramação e da
Prorrogação Antecipada estão vinculados às relações jurídicas estabelecidas entre os
Usuários, Poder Concedente e/ou Agência Reguladora e concessionária, ao passo que o
instituto da recuperação judicial passa a assumir um outro papel: como todos os
credores participam desse processo, esse instituto influencia tanto as relações jurídicas
em que predomina o direito público como as relações em que predomina o direito
privado.
Note-se, portanto, que, na recuperação judicial de uma concessionária com a
participação da Agência Reguladora competente, o regime jurídico aplicável não é – e
nem deve ser – totalmente público ou totalmente privado, o regime é híbrido,

76
Art. 35. Extingue-se a concessão por: [...]VI - falência ou extinção da empresa concessionária e
falecimento ou incapacidade do titular, no caso de empresa individual.

72
prevalecendo em determinadas decisões diretrizes inerentes ao direito público, e, em
outras, diretrizes do direito privado, o que torna complexa a execução de uma
recuperação judicial com a presença de uma concessionária de serviço público.
Sendo assim, é fundamental que haja uma disciplina legal no sentido de se
autorizar a recuperação judicial com a presença das Agências Reguladoras, o que, como
já foi visto, proporcionará uma análise ampla de todas as relações jurídicas em que a
concessionária está envolvida.

4. Conclusões
Com a crise econômica que afetou o setor de infraestrutura como um todo,
muitos contratos de concessão tornaram-se inexequíveis, o que ensejou a adoção de
algumas medidas pelo governo para recuperar tais contratos, como é o caso da (i)
prorrogação antecipada de investimentos; (ii) devolução seguida da relicitação e (iii) da
reprogramação de investimentos, previstas, respectivamente, na Lei nº 13.448/17 e na
MP nº 800/17.
Ainda que essas medidas possam contribuir com a recuperação dos contratos
de concessão, vale destacar que, no caso de a concessionária ter muitos débitos com
credores privados, tais institutos não contribuem significativamente, uma vez que,
conforme demonstrado, eles se restringem aos débitos decorrentes das relações jurídicas
travadas com o Poder Concedente, Agência Reguladoras e Usuários.
Na hipótese de a concessionária contrair dívidas especialmente com credores
privados, deve ser aplicado o instituto da recuperação judicial. Ocorre que a aplicação
desse instituto sem uma regulamentação específica pode ensejar insegurança jurídica,
haja vista a existência de diversos pontos potencialmente conflitantes, no caso: (i)
eventuais posicionamentos contrários das entidades públicas acerca do conteúdo do
PRJ; (ii) repactuação de investimentos no âmbito do PRJ em face da continuidade da
prestação do serviço público e a (iii) inclusão de sanções administrativas que passíveis
de execução fiscal.
Ainda que, teoricamente, seja possível afastar referidos pontos conflitantes, faz-
se necessária a regulamentação da participação das Agências Reguladoras nos processos
de recuperação judicial, além de se propor uma disciplina legal a respeito, tudo como
medida de se garantir segurança jurídica, esclarecendo-se que o fato de haver um regime
jurídico híbrido não representa qualquer impedimento à recuperação judicial nos moldes
propostos.

73
5. Bibliografia
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 3ªed. v.3, São
Paulo: Saraiva, 2003.
PUGLIESI, Adriana Valéria. “Limites da autonomia privada nos planos de
reorganização das empresas”. Revista do Advogado. AASP, ano XXXVI, nº 131, out.
2016, pp. 7-20.

74
Capítulo 7 –Conflito de interesses na atuação profissional do advogado público77

Constanza Bodini

1. Introdução

O conflito de interesses na atuação profissional do advogado público é um tema de


relevância mundial que cada vez desperta mais preocupação na comunidade profissional
local.
De acordo com a Constituição Federal (CF)78, incumbe à advocacia pública a
representação judicial, consultoria jurídica e assessoramento do órgão ao que estão
vinculados os profissionais. Poder-se-ia dizer que são advogados públicos aqueles
profissionais do direito que integram a Advocacia-Geral da União (AGU) e as
Procuradorias dos Estados, dos Municípios79 e do Distrito Federal (DF), estando
obrigados à inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)80 para o exercício de
suas atividades81. Os membros das Procuradorias dos Estados, dos Municípios e do DF
têm assegurada a estabilidade após de três anos de efetivo exercício82.

77
Resumo: As grandes mudanças na prática do direito nos últimos anos geraram situações de conflito de
interesses no exercício profissional do advogado público que antes eram impensáveis. Nosso artigo
analisa essas situações caracterizadas pela quebra de dever de lealdade, sigilo e independência. Uma vez
individualizadas, fazemos um diagnóstico de como as normas brasileiras lidam com esses dilemas éticos
em comparação com as norte-americanas. A partir desse diagnóstico, elaboramos críticas e sugestões de
melhorias às normas e propomos boas praticas para combater e evitar tais situações.
Palavras-chave: Advogado Público. Conflito de interesses. Dever de Lealdade. Dever de Sigilo. Dever
de Independência.
Sumário: 1. Introdução; 2. Atuação profissional do advogado público; 2.1. Mobilidade; 2.2. Dever de
lealdade, sigilo e independência; 2.3. Como identificar conflito de interesses; 3. Atual situação
sancionatória dos casos de conflito de interesses no Brasil; 4. Como prevenir conflito de interesses; 5.
Conclusão; 6. Bibliografia.
78
Artigos 131 e 132 da CF.
79
Os procuradores municipais. estão incluídos de forma implícita.
80
Artigo 3º, caput e parágrafo 1º, da Lei 8.906/1994: “Art. 3º ...§ 1º Exercem atividade de advocacia,
sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da
Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das
Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das
respectivas entidades de administração indireta e fundacional...”.
81
A própria Advocacia-Geral da União, por intermédio de sua Corregedoria (Orientação Normativa nº
01/2011), exigiu que todos os Advogados da União, Procuradores da Fazenda Nacional, Procuradores
Federais e integrantes do Quadro Suplementar da Advocacia-Geral da União, de que trata o art. 46 da
Medida Provisória nº 2.229-43, de 6 de setembro de 2011 seus Procuradores devem ser, obrigatoriamente,
inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, sob pena de falta funcional.
82
Mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das
corregedorias.

75
No entanto, existem limitações para o exercício profissional da advocacia por parte
dos advogados públicos. Os advogados da AGU não podem exercer atividade privada83
ou exercer atividades “potencialmente causadoras de conflito de interesses” (art. 28, I da
Lei Complementar (LC) nº 73/9384 substituída pelo art. 6 da Lei 11.890/200885).
Entretanto, na maioria das Procuradorias de Estados, de Municípios e do DF permite-se
o exercício da advocacia privada, respeitando-se apenas os impedimentos e
incompatibilidades que surgem do Estatuto da OAB (art. 28, II e III86 c/c art. 30, I).
Nos EUA, as reclamações de má prática contra os advogados aumentaram com o
tempo. No início dos anos 2000 ao redor de 10% (GRAVEN apud MULLERAT, 2009,
p.12) dos advogados matriculados na American Bar Association (ABA) foram
processados judicialmente por conflito de interesses na sua atuação profissional. Em
virtude disso, é prática usual contratar seguros de indenização profissional para se
proteger tanto das reclamações dos clientes quanto dos custos do litígio ou do acordo,
sendo um dos mais populares o seguro de erros e omissões “E & O”87conhecido no
Brasil como seguro de responsabilidade civil profissional. As regras norte-americanas
atuais sobre responsabilidade profissional estão plasmadas nos Cânones de Ética
Profissional de 1969 e no Código Modelo de Responsabilidade Profissional de 1969, da
ABA, o qual foi substituído em 1983 pelas Regras Modelo de Conduta Profissional,
também da ABA (“Regras Modelo”).
No Brasil, diferentemente do que acontece nos EUA, o órgão que tem competência
para julgar os casos de conflito de interesses na atuação profissional do advogado
matriculado na OAB é principalmente seu Tribunal de Ética e Disciplina, e não o

83
Excepcionalmente a partir de 2009, os advogados da AGU foram autorizados, institucionalmente, a
exercer a advocacia fora das atribuições funcionais, em caráter pro bono e também em causa própria,
conforme (i) Portaria n.º 758/2009 do Advogado-Geral da União, (ii) Instrução Normativa Conjunta nº
1/2009 do Corregedor-Geral da União e do Procurador-Geral Federal, e (iii) Orientação Normativa nº
27/2009 do Advogado-Geral da União.
84
“Art. 28: Além das proibições decorrentes do exercício de cargo público, aos membros efetivos da
Advocacia-Geral da União é vedado: I - exercer advocacia fora das atribuições institucionais;...”
85
Art. 6: “Os ocupantes dos cargos de que tratam os incisos I a III e V do caput e o § 1º do art. 1º da Lei
nº 11.358, de 19 de outubro de 2006, são impedidos de exercer outra atividade, pública ou privada,
potencialmente causadora de conflito de interesses, nos termos da Lei nº 12.813, de 16 de maio de
2013.”
86
Art. 28: “A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:... II -
membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos
juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de
julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta; III - ocupantes
de cargos ou funções de direção em Órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas
fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público;..”
87
Disponível em: http://www.investopedia.com/terms/e/errors-omissions-insurance.asp

76
judiciário. Cada seccional da OAB em cada Estado do país, incluindo o Distrito Federal,
tem seu próprio Tribunal de Disciplina88.
O percentual de casos sobre conflito de interesses julgados pela OAB é bem menor
que o dos EUA89. Em 2016 o Brasil chegou a 1.000.000 de advogados90, enquanto
1.315.561 eram reportados nos EUA no mesmo ano91, não sendo essa diferença tão
significativa para justificar o fato de no Brasil atualmente não ser nada comum a
contratação de seguros de responsabilidade civil profissional de advogados92.
As principais regras que disciplinam a matéria estão contidas no Estatuto da
Advocacia e da Ordem dos Advogados93 (“EA”), no Código de Ética e Disciplina da
OAB94 (“CED”), aprovado em 2015, e no Código Civil Brasileiro do ano 2012
(“CCB”). A consequência não é só a responsabilidade civil, senão também a penal
(como é o caso do patrocínio infiel95, conforme artigo 335 do Código Penal Brasileiro
“CPB”), punições administrativas ou sanções processuais.
É importante destacar que na última modificação do CED foi inserido um capítulo
próprio para a advocacia pública96, o qual não deixa lugar a dúvidas que as disposições
desse Código obrigam igualmente os advogados públicos. O capítulo mencionado
também inclui os órgãos de advocacia pública e aqueles que ocupem posição de chefia e
direção jurídica97.

88
Cada seccional tem seu próprio site e maioria não tem informações atualizadas sobre os julgamentos
mais relevantes.
89
A OAB atualmente não publica estatísticas sobre a quantidade de casos julgados por conflito de
interesse pelo seu Tribunal de Ética e os processos são tramitados com nível de aceso restrito pelo qual é
muito difícil trazer números exatos. Entrevistamos dois juízes em exercício do Tribunal de disciplina da
OAB os quais afirmaram o exposto.
90
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/brasil-chega-a-1-milhao-de-advogados-
636e8p084e82q2vq2du4excr1
91
http://www.denniswpottslaw.com/united-states-attorneys-map/
92
O informe de prêmios e seguros de R.C. Profissional apresentado pelo sistema de estadísticas da
Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) apresenta dados de seguros de responsabilidade civil
profissional sem distinção pela atividade. Em 2017 se informam totais de R$302.725.353 pagados como
prima direta e 0,53% de sinistralidade, pelo que de cada R$100 pagos de prima R$53 foram pagos em
sinistros pelas seguradoras. Disponível em:
http://www2.susep.gov.br/menuestatistica/SES/resp_premiosesinistros.aspx
93
Lei nº 8.906, de 4/07/94.
94
Resolução nº 02/2015 (DOU, 04.11.2015, S. 1, p. 77) aprova o CED. O Conselho Federal da OAB, no
uso das atribuições que lhe são conferidas pelos arts. 33 e 54, V, da Lei nº 8.906, de 4/07/94, EA, e
considerando o decidido nos autos da Proposição nº 49.0000.2015.000250-3/COP.
95
Art. 335 CP: “Pratica o crime de patrocínio infiel aquele que trai, na qualidade de advogado ou
procurador, o dever profissional, prejudicando interesse cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado. ... Por
fim, cumpre informar que incorrerá nessa mesma pena o advogado ou procurador que defender, na
mesma causa, o interesse de partes contrárias. A este delito dá-se o nome de patrocínio simultâneo ou
tergiversação.”
96
Capítulo II, artigo 8 do CED.
97
As disposições afetam a atuação dos advogados públicos e também os que ocuparem alguma posição
de chefia e direção de órgão jurídico, ainda que não integrantes da carreira. Enfim, a proposição do art. 8º,

77
Na prática, o CED abarca tanto a representação do advogado na área contenciosa
quanto consultiva, mas parece deixar de fora a atuação específica dos advogados que
trabalham naquilo que se poderia identificar como lobby (por exemplo, apresentando
legal opinions e depoimentos perante o Poder Legislativo, com vistas ao convencimento
de deputados ou senadores quanto a conveniência de seu argumento jurídico). Apesar de
a prática do lobby ainda não estar regulamentada no Brasil, atualmente existem vários
projetos e propostas (GODOY, 2017) em tramitação sobre o tema, a saber: (i) o Projeto
de Lei nº 1202/2007 (PL); (ii) a proposta de emenda da Constituição n. 47/2016 (PEC);
e (iii) o Projeto de Lei do Senado nº 336/2015 (PLS). A PEC e o PLS listam uma série
de princípios que incidem sobre a atividade de lobby: legalidade, moralidade e
probidade administrativa, transparência e publicidade dos atos, tratamento isonômico
aos diferentes grupos e opiniões, supremacia e indisponibilidade do interesse público,
etc. As funções de lobby exercidas por advogados, a nosso ver, deveriam ser incluídas
na regulamentação da matéria em estudo de forma mais específica.
Além de ter que cumprir fielmente com as regras sobre conflito de interesses que
surgem do EA, CED, CCB e CPB, o advogado público deve respeitar as normas
próprias da instituição onde presta serviços, eis que com ela tem o profissional um dever
de lealdade (WENDEL, 2017). Ditas normas são: (i) o Código de Ética Profissional do
Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (Decreto nº 1.171, 22/06/94), o
Código de Ética para a AGU e seus órgãos vinculados (em elaboração)98 e o seu
Regulamento Interno (Portaria nº 222, 3/07/14)99; (ii) o Código de Ética Profissional
dos Procuradores do DF (Resolução nº 3, de 9/09/09 DODF de 22/09/09); e (iii) os
Códigos de Ética dos Procuradores dos Estados e dos Municípios.
Na AGU, o órgão que tem competência para julgar os casos de conflito de interesses
na atuação profissional de seus advogados é a Comissão de Ética da AGU e seus órgãos
vinculados (CEAGU). No DF, é o Conselho Superior da Procuradoria-Geral do Distrito
Federal. Por fim, nos Municípios e Estados, comumente são seus Conselhos ou
Corregedorias os órgãos responsáveis por tal controle.

ao abarcar também os advogados dirigentes, vincula todo aquele profissional, seja advogado público ou
não, que assumir a posição de chefia ou direção de órgão jurídico na Administração Pública.
98
Atualmente, a CEAGU está nas etapas finais da elaboração do Código de Ética da AGU. A previsão era
de que ele seria concluído até o fim de 2017. O normativo será utilizado para orientar a atuação dos
agentes públicos da AGU juntamente com o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do
Poder Executivo Federal. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/583809
99
Artigos 39 ao 42 tratam sobre conflito de interesses.

78
Acreditamos, e demostraremos em nosso trabalho, que o fato de haver sanções
fracas e normas às vezes ambíguas e de difícil interpretação são alguns dos motivos100
pelos quais a maioria dos casos que envolvem conflito de interesses na atuação dos
advogados brasileiros (públicos ou não) não são julgados, nem sancionados.
Esse é o contexto em que nosso trabalho se apresenta. Na próxima seção
analisaremos situações que constituem conflito de interesses caracterizadas pela quebra
de dever de lealdade, sigilo e independência na atuação profissional do advogado
público. Consideraremos especialmente sobre como o direito brasileiro regula os
conflitos de interesses e indicamos como identificar esses conflitos. Na seção 4
traçaremos quadro crítico da atual situação sancionatória dos casos de conflito de
interesses no Brasil. Na seção 5, trazemos soluções do direito comparado para prevenir
os conflitos de interesses e proporemos melhoras ao sistema brasileiro atual. Por último,
na seção 6 apresentamos nossa conclusão.

2. Atuação profissional do advogado público

2.1. Mobilidade

A profissão de advogado mudou muito com o correr dos anos. Há apenas trinta anos
os advogados quase não mudavam de um setor -seja público ou privado- para trabalhar
em outro. Hoje, a tendência do mercado mostra um incremento significativo na
mobilidade dos advogados, chamados na literatura norte-americana como “lateral
lawyers” (FISCHER, 2010, p.4). Os lateral lawyers são advogados que já tem
experiência profissional, podendo ser tanto advogados que trabalham para a
administração buscando ingressar na iniciativa privada, profissionais que passam da
iniciativa privada para o setor público ou sócios/associados de escritórios buscando
mudança de sociedade.101
Essa mobilidade pode ser também grupal, como, por exemplo, no caso de fusões de
dois escritórios, ou de “aquisição” de um sócio e sua equipe de trabalho por parte de um
escritório. É claro que hoje a mobilidade dos advogados públicos não é só entre
escritórios especializados senão também entre estes e organismos dentro do setor
público, como os Poderes Legislativo; Judiciário e até mesmo o Poder Executivo. O

100
Outro dos motivos poderia ser a cultura de menor litigiosidade dos temas de mala práxis em
comparação com a norte-americana.
101
Existem inclusive escritórios que oferecem exclusivamente trabalho para laterals a través de uma
seção especial de seu site. Disponível em: https://www.cozen.com/careers/laterals

79
descrito até aqui é só um exemplo de uma das tantas mudanças que teve a profissão de
advogado e que a nosso entender não estão refletidas nem no EA nem no CED.

2.2. Dever de lealdade, sigilo e independência

O CED trata do nosso tema de estudo no Capítulo III
“Das Relações com o


Cliente”, em seus artigos 19 a 22, mas não há separação desses artigos por um título que
indique expressamente que estamos frente a normas pertinentes ao “conflito de
interesses”. Mais importante é o fato de não acharmos no CED uma definição de
conflito de interesses. O EA tem apenas uma referência ao tema em seu artigo 15, §6º.
Procuraremos identificar nessas normas as situações que caracterizam conflito de
interesse no Brasil e os principais deveres que surgem delas.
a. Representação simultânea de clientes com interesses opostos: O artigo 19 do
CED102 estabelece a impossibilidade de integrantes de uma mesma sociedade
profissional, ou aqueles reunidos em carácter permanente para cooperação recíproca,
representarem clientes com interesses opostos, em juízo ou fora dele.
A regra mencionada mitiga o problema que aparece quando um advogado defende
ao mesmo tempo interesses contrapostos, já que o profissional se vê tentado a suavizar
os argumentos de um cliente em favor de outro. Neste caso, existe um conflito entre
deveres de lealdade concorrentes.
As Regras Modelo tratam o tema de forma bastante diferente porque nos EUA, por
possuírem um sistema de common law, a decisão de uma Corte sobre um tema
específico tem muito peso como precedente para influenciar futuras decisões. Este
problema é tratado nos comentários às Regras Modelo, onde se afirma que pode ser
inadequado para um advogado defender posições legais diretamente contrárias às de
clientes não relacionados simultaneamente em apelação ante a mesma Corte103. O
mesmo pode acontecer quando a atuação ocorre em jurisdições diferentes, porque os
precedentes análogos também são aplicáveis. Além disso, o advogado pode gerar um
problema de credibilidade, utilizado pela contraparte como argumento para debilitar sua
posição.

102
Art. 19: “Os advogados integrantes da mesma sociedade profissional, ou reunidos em caráter
permanente para cooperação recíproca, não podem representar, em juízo ou fora dele, clientes com
interesses opostos.”
103
Regra Modelo 1.7

80
b. Impossibilidade de harmonizar conflito de interesses entre clientes constituintes:
Conforme estabelecido pelo artigo 20 da CED104, quando existe impossibilidade de
harmonizar conflito de interesses entre clientes, o advogado deve permanecer com um
dos mandatos e renunciar aos demais.
Contudo, qual seria o alcance da palavra “harmonizar” e qual a definição que
deveríamos utilizar para interpretar o significado de “conflito de interesses” nesse
artigo? Os conceitos sem definição nos parecem demasiado vagos e subjetivos,
outorgando muita liberdade de interpretação tanto ao advogado como ao órgão
sancionador.
O mencionado artigo nada diz sobre a possibilidade de relevar o advogado desse
conflito mediante um consentimento informado por escrito do cliente ou a possibilidade
de utilização de mecanismos do tipo chinese walls, como acontece nos EUA.
c. Resguardo do sigilo profissional: O advogado tem dever de resguardar o sigilo
profissional ao postular, judicial ou extrajudicialmente, em nome de terceiros, contra ex-
cliente ou ex-empregador, conforme estipulado pelo artigo 21 do CED105.
O CED contém um capítulo específico sobre sigilo profissional106. O sigilo
profissional abrange “os fatos de que o advogado tenha tido conhecimento em virtude
de funções desempenhadas na OAB”107. Ele se relaciona com o exercício da advocacia
livre e, conforme estabelece o CED, “só cederá em face de circunstâncias excepcionais
que configurem justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito à vida e à
honra ou que envolvam defesa própria.”
O sigilo também se relaciona com o dever de confidencialidade. A
confidencialidade pressupõe a possibilidade do uso de informações e documentos
confiados ao advogado nos limites necessários ao patrocínio da defesa dos interesses do
cliente. Ela se refere à liberdade de avaliação pelo advogado das pretensões que lhe são
formuladas, de modo a não violar deveres ético-profissionais. O CED indica que
“presumem-se confidenciais as comunicações de qualquer natureza entre advogado e
cliente”108. Esta definição é ampla como a das Regras Modelo sobre informação
confidencial, que abarca “toda a informação relacionada com a representação,
104
Art. 20. “Sobrevindo conflito de interesses entre seus constituintes e não conseguindo o advogado
harmonizá-los, caber-lhe-á optar, com prudência e discrição, por um dos mandatos, renunciando aos
demais, resguardado sempre o sigilo profissional.”
105
Art. 21:“O advogado, ao postular em nome de terceiros, contra ex-cliente ou ex-empregador, judicial
e extrajudicialmente, deve resguardar o sigilo profissional.”
106
Capítulo VII, artigos 25 a 38 do CED.
107
Art. 35.
108
Art. 36 § 1o.

81
qualquer seja sua fonte” 109 incluindo todo tipo de comunicações por parte do cliente.110
Ambas alcançam os fatos que o advogado toma conhecimento sobre as debilidades de
um cliente, como também as estratégias que esse cliente ou similares podem adotar para
reforçar sua posição.
Em primeiro lugar, achamos pouco feliz a utilização da expressão “funções
desempenhadas na OAB”. Supomos que se refere à atuação profissional do advogado,
mas a mesma é confusa. Em segundo lugar, não se especificam situações importantes,
como, por exemplo: (i) como deve ser tratado o uso e a divulgação de informação
confidencial; (ii) o que aconteceria se uma informação confidencial passasse a ser
pública; (iii) como se avalia o dano pelo uso da informação; e (iv) o que acontece se
colaboradores do advogado divulgarem essa informação, etc.
As Regras Modelo preveem que nos casos em que o advogado tem informação
confidencial de cliente deve pedir-lhe consentimento expresso para poder divulgá-la111,
salvo se essa informação seja de conhecimento público. Normalmente é mais comum
ocorrer a divulgação de informações em litígios ou em casos de lobby do que em
atividades consultivas. Nestas, o advogado conseguiria utilizar a informação que obteve
na representação de um cliente para colaborar na estrutura de um negócio ou evitar um
ataque a um tipo de estrutura particular de outros clientes. Como se observa, na
atividade consultiva o advogado acaba conseguindo usar a informação sem o
consentimento do cliente anterior.
d. Atuação em causa contrária à validade de ato jurídico em que tenha participado:
O advogado estará impedido de patrocinar causas que sejam contrárias à validade de
outro ato jurídico em que participou. Ele e seu escritório também estarão impedidos de
participar no assunto quando houver conflito de interesses motivado pela sua
intervenção anterior no tema, de conformidade com o artigo 22 do CED112. Este caso se
relaciona com o dever de independência.
De novo, a norma não ajuda a identificar as situações que podem levar a seu
incumprimento. Em virtude disso é que em seguida traremos alguns critérios para

109
Regra Modelo 1.6.
110
Incluindo confidencias e segredos do cliente.
111
Regra Modelo 1.8 (b) e 1.6.
112
Art. 22. “Ao advogado cumpre abster-se de patrocinar causa contrária à validade ou legitimidade de
ato jurídico em cuja formação haja colaborado ou intervindo de qualquer maneira; da mesma forma,
deve declinar seu impedimento ou o da sociedade que integre quando houver conflito de interesses
motivado por intervenção anterior no trato de assunto que se prenda ao patrocínio solicitado.”

82
identificar conflito de interesses que poderiam ser considerados tanto pelos advogados
quanto pelos legisladores.

2.3. Como identificar conflito de interesses

Devemos ter claro se o exercício do juízo profissional independente do advogado


seria indevidamente influenciado por outros interesses. Para isso, é útil fazer perguntas,
como se, por causa da presença de interesse, seria provável que o profissional faça ou
seja tentado a fazer algo diferente do que um advogado verdadeiramente independente -
aquele que não teve esse interesse - faria nas mesmas circunstâncias. Respostas
afirmativas indicam claro conflito113.

3. Atual situação sancionatória dos casos de conflito de interesses no Brasil

As infrações e sanções disciplinares estão previstas nos artigos 34 a 43 do EA. As


sanções previstas são: (i) censura;
(ii) suspensão;
(iii) exclusão; e (iv) multa. As
infrações disciplinares diretamente relacionadas a nosso tema de estudo são as que
aparecem no artigo 34, incisos “VII-violar, sem justa causa, sigilo profissional”; e “IX-
prejudicar, por culpa grave, interesse confiado ao seu patrocínio”; e no artigo 36,
inciso “II–violação a preceito do CEA”.
Ambas as infrações (se são ocorridas simultaneamente) podem ser sancionadas
unicamente com censura e multa. A censura é a sanção mais branda, supostamente
aplicada para infrações menos graves. Tal sanção não é publicada, ou seja, ninguém
além do advogado e da OAB ficam sabendo do fato. Além disso, a censura pode ser
atenuada mediante uma advertência114. A advertência não é publicada e, por sua vez,
não vai ser registrada nos assentamentos do inscrito, mas consta em ofício reservado.
Além disso, a advertência não é considerada para fins de primariedade. Importante
ressaltar que tanto a censura quanto a advertência podem ser substituídas por um curso
de ética dentro de 120 dias. Entretanto, será registrada nos assentamentos do inscrito. A
multa pode ser aplicada apenas de forma cumulativa em caso de cometer agravantes. O
EA não define quais seriam os agravantes, mas define os atenuantes a todas as

113
https://www.americanbar.org/newsletter/publications/gp_solo_magazine_home/gp_solo_magazine_ind
ex/conflictsofinterest.html
114
Art. 40.

83
sanções115. Dentro do listado de circunstâncias atenuantes encontramos uma que
chamou particularmente nossa atenção: IV – prestação de relevantes serviços à
advocacia ou à causa pública. Demasiado subjetivo.
Da leitura pormenorizada do EA surge claramente que os mecanismos punitivos por
infrações relacionadas à atuação do advogado público e privado em circunstâncias que
caracterizam conflito de interesse e descumprimento do CEA são muito brandas. Esse é
mais um claro desincentivo para o seu cumprimento.
Tal como adiantamos na introdução deste trabalho, os advogados públicos também
são sancionados pelo órgão ao qual pertencem e devem lealdade. Só a título
exemplificativo, por questões de limitação de espaço requerido, analisamos a situação
sancionatória dos advogados públicos do DF. O seu Código de Ética estabelece o dever
de: “guardar sigilo sobre assunto de caráter reservado que conheçam, em razão do
cargo ou função”116. Em seguida, o referido Código estabelece os impedimentos aos
Procuradores, entre eles se destacando: (a) integrar, na qualidade de sócio, empregado
ou associado, sociedade de advogados que possua ou patrocine causa contra o Distrito
Federal ou contra suas entidades da administração indireta;
e (b) acumular, ainda que
em disponibilidade, qualquer outro cargo público, salvo um de magistério, respeitada,
sempre, a compatibilidade de horários com o seu mister na Procuradoria-Geral do
Distrito Federal”117. A Corregedoria da Procuradoria-Geral do DF é a encarregada de
sancionar as violações dos dispositivos desse Código mediante a instauração de um
procedimento de apuração sumária de irregularidades. O Regimento Interno da PRG/DF
não contém nada a respeito do procedimento sancionatório dos advogados públicos e as
normas de dita Procuradoria não se encontram publicadas no seu site.

4. Como prevenir conflito de interesses

Algumas recomendações a serem analisadas, inclusive e especialmente no caso de


advogados públicos que passam a atuar no setor privado: (i) impedimento à aquisição de
ações dentro do mercado de capitais local; (ii) adoção do sistema de remuneração
lockstep em escritórios; (iii) imposição do dever a todos os sócios do escritório de se
identificarem perante todos qualquer novo cliente; (iv) ter um Código de Ética do
escritório ou da empresa e, na contratação de um novo advogado, garantir que este leia e

115
Arts. 40 e 41.
116
Art. 4. -III do Código de Ética de Procuradores do DF.
117
Art. 5. II e VI do Código de Ética de Procuradores do DF.

84
aceite o seus termos; (v) evitar a contratação sob success fee118; e (vi) realizar análise
profunda da informação outorgada pelo lateral lawyer incorporado.
A verificação de conflito de interesses quanto ao lateral lawyer não deve limitar-se
ao mero uso de sistema com nomes dos escritórios, empresas ou órgãos públicos onde
ele tem trabalhado. Vários estudos119 trazem recomendações sobre como armar bons
questionários para prevenir conflitos em relação a advogados novos na estrutura. Isso se
torna especialmente sensível no caso de profissionais oriundos do setor público. Entre
essas recomendações encontramos as seguintes: (i) possuir base de dados de conflitos
como meio independente para validar a integridade das divulgações laterais; (ii) gerar
questionários em que seja imposto o preenchimento de espaços em branco, com
indicações claras sobre o que será informado; (iii) apresentar lista de clientes ao lateral
lawyer e solicitar que este informe se já os representou ou se participou de transações
que os envolva, ou se possui informação confidencial de uma parte relacionada, ou do
cliente diretamente e, especialmente para o caso de patronos de entidades públicas, e
(iv) checagem de conflitos quanto a teses advogadas em sentido oposto durante a
atuação profissional prévia.

5. Conclusão

Como vimos ao longo de nosso trabalho, as grandes mudanças na prática


profissional do advogado público nos últimos anos trouxeram situações antes
impensáveis. Conflitos de interesses como parece ter sido o caso do ex-procurador, Dr.
Marcello Paranhos de Oliveira Miller, podem ser prevenidos com legislação,
fiscalização e penalização mais severa. Apesar de ele não ser considerado advogado
público, acreditamos que serve como exemplo para mostrar os conflitos que estão
aparecendo pelas famosas revolving doors. O Dr. Miller vem sendo acusado por
trabalhar para o fechamento do acordo de leniência da JBS enquanto ainda não havia se
desligado do Ministério Público Federal. Para além da questão criminal envolvida, há
evidente preocupação com o conflito de interesses que pode ter sido incentivado pelo
escritório a que ele se associou.

118
Por exemplo: em casos onde o advogado está do lado do comprador, este poderia se ver tentado a não
mencionar ou informar com menos ênfase a seu cliente sobre possíveis contingências)
119
FISCHER, James. Large Law Firm Lateral Hire Conflicts Checking: Professional Duty Meets Actual
Practice. Southwestern Law School Working Paper nº 1022, 2010. Disponível em
https://ssrn.com/abstract=1657087

85
Nosso trabalho procurou individualizar situações de conflito de interesse,
reflexionar sobre as normas que as tratam e seus mecanismos de punição. No exercício
de comparar as normas brasileiras com as Regras Modelo dos EUA, surgiram alguns
diferencias interessantes. Em primeiro lugar, a normativa brasileira à que conseguimos
acessar contém expressões muito mais conceituais, na esfera das aspirações e menos
precisas que as norte-americanas. Provavelmente isso tenha sido uma escolha
consciente do legislador, considerando que no Brasil o órgão de aplicação das normas
normalmente pertence ao mesmo OAB ou o órgão onde o advogado público presta seus
serviços, entretanto nos EUA o encargado será o judiciário. Essa diferença é típica de
sistemas civilistas em contraposição com os sistemas de common law, que normalmente
regulam o tema mais detalhadamente.120 Em segundo lugar, as sanções estabelecidas
nas Regras Modelo são muito mais severas que as das que surgem das normas da OAB.
Além disso, a probabilidade de o advogado ser processado por seu cliente nos EUA é
muito alta, por isso a importância dos seguros de responsabilidade antes enunciados.
Por último, nos EUA a legislação não apenas prevê obrigações de conduta do próprio
advogado, mas igualmente o seu encargo de atuar como fiscalizador dos demais
profissionais, inclusive no sentido de denunciar a violação das normas profissionais.
Isso ajuda muito a combater os conflitos de interesse, mais vemos difícil sua aplicação
no Brasil pela cultura ser diferente à americana.
Em conclusão, além de os advogados deverem ser melhor instruídos no tema, as
normas devem ser melhoradas e sistematizadas e as sanções devem ser mais severas. Os
Tribunais de disciplina devem trabalhar em forma coordenada, publicando
constantemente jurisprudência relevante e assim poder dar maior precisão sobre as
situações que devem ser evitadas pelos advogados públicos.

6. Bibliografia

DEMOTT, Deborah A. “The discrete roles of general counsel”. Fordham Law Review,
2005.
DZIENKOWSKI, John. “Positional Conflicts of Interest.” Texas Law Review, v. 71, n.
3, 1993. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2276042

120
MULLERAT, Ramon. “The Service of Two Masters
Lawyers. Conflicts Of Interest”...,pag. 16.

86
FISCHER, James. “Large Law Firm Lateral Hire Conflicts Checking: Professional
Duty Meets Actual Practice. Southwestern Law School” Working Paper n. 1022, 2010.
Disponível em https://ssrn.com/abstract=1657087
GODOY, Luciano. “Profissão Lobista”, in JOTA, 2017. Disponível em:
https://jota.info/colunas/luciano-godoy/profissao-lobista-
19102017#.WfJZxpabac8.email
GRAVEN, Michelle. “To the best of one’s ability: a guide to effective lawyering” in
Georgetown Journal of Legal Ethics, 2001.
MILLER, Geoffrey. “From Club to Market: The Evolving Role of Business Lawyers.”
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Legal Studies Research Paper nº 17-04, 2017. Disponível em
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WOOLLEY, Alice. “The Lawyer as Advisor and the Practice of the Rule of Law" 47.
UBC Law Review, v. 2, p. 743, 2014.

87

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