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ENTRE A LEI E O JUIZ: JUSTIÇA, CIÊNCIA JURÍDICA E "O PROCESSO

MAURIZIUS" 

BETWEEN LAW AND JUDGE: JUSTICE, LEGAL SCIENCE AND "THE


MAURIZIUS CASE"

Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke

RESUMO

O século XX protagonizou grandes avanços na construção de teorias sobre a


interpretação jurídica, mas pela exacerbação do antipositivismo acabou perdido na
dicotomia artificial que coloca a lei de um lado e o juiz do outro. A obra “O processo
Maurizius”, de Jakob Wassermann, naquilo que reflete e dialoga com a realidade de seu
país e de sua época, é pródiga de pistas sobre os motivos que levaram o pandectismo
alemão à ruína e que lapidaram seus radicais antagonistas. A mimesis dessa realidade é
estabelecida na relação entretida pelos principais personagens: o barão Andergast, o pai,
e Etzel Andergast, o filho, ocupam pólos distintos na trama de Wassermann, e
representam respectivamente o culto à pirâmide erigida pela “jurisprudência dos
conceitos” e a ruína da identificação entre lei e direito que a “jurisprudência dos
interesses” já passava a denunciar. Para que se compreenda a gênese dessa dicotomia
será necessário (i) surpreender os dados históricos e literários em que mergulhada a
obra, (ii) analisar a carga de tradição que amarra o barão Andergast e (iii) verificar em
Etzel Andergast o subjetivismo que reinaria nas décadas seguintes. Extraindo dessa
evolução “três modelos de juiz”, ver-se-á como se reconciliam as notas de justiça e
segurança quando dissolvida a falsa contraposição entre texto e aplicador, a revelar a
necessidade de objetivação e controle do labor judicial, e de redescobrir a doutrina
enquanto imprescindível ao momento de resolução judicial dos conflitos.

PALAVRAS-CHAVES: SEGURANÇA JURÍDICA; JUSTIÇA; LEI;


INTERPRETAÇÃO; JAKOB WASSERMANN.

ABSTRACT

The twentieth century has presented great breakthroughs in the construction of theories
about legal interpretation, but the exacerbation of antipositivism was lost in the artificial
dichotomy that puts the law in on one side and the judge on the other. The work “The
Maurizius Case”, by Jakob Wassermann, in what reflects and dialogues with the reality

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF
nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul

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of its country and time, is unsparing of clues about the motives that lead the German
pandectism to the ruin and that erected its radical antagonists. The mimesis of this
reality is fixed in the relation established between the main characters: the baron
Andergast, the father, and Etzel Andergast, the son, occupy different sides in
Wassermann’s plot, and represent respectively the cult of the pyramid built by the
“jurisprudence of concepts” and the ruin of the identity between legislation and Law
that the “jurisprudence of interests” had started to denounce. In order to understand the
genesis of this dichotomy it will be necessary (i) to surprise the literary and historic data
that plunged into the work, (ii) to analyze the burden of tradition that ties the baron
Andergast and (iii) to verify in Etzel Andergast the subjectivism that would reign in the
following decades. After extracting of this evolution “three models of judge”, this work
will show how the notes of justice and security reconcile when the false opposition
between text and interpreter is dissolved, highlighting the need for objectification and
control of judicial work, and for the rediscovery of doctrine as essential to the moment
of conflict resolution.

KEYWORDS: JURIDICAL SECURITY; JUSTICE; LAW; INTERPRETATION;


JAKOB WASSERMANN.

I. INTRODUÇÃO.

Na segunda fase de suas reflexões, Ludwig Wittgenstein comparou as palavras a


peões de um jogo de xadrez[2], e assim o fez para demonstrar mais adiante que “seguir
uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez, são
hábitos (usos, instituições)”[3]. A metáfora esclarece que para a compreensão do
significado de uma palavra faz-se necessário surpreender seu uso[4]: este vem envolto
por linhas de subjetividade e objetividade, que, tecidas pela história humana, traduzem-
se na teia contextual que oscila entre o arbitrário e o tradicional. “A linguagem possui
um nicho individual e um nicho social, e não se pode conceber um sem o outro”, ensina
Ferdinand de Saussure[5]. As figuras do xadrez não podem ser movimentadas
livremente, pois seus vínculos estão pré-determinados pelos costumes do jogo. Mas há a
jogada e sobretudo o jogador, e daí se entende que, em sua relativa liberdade, os peões
podem ser movidos para qualquer direção: o xeque-mate só depende de quem os move.

Se prosseguirmos raciocinando em termos lúdicos, podemos dizer que a palavra


‘justiça’ é o peão mais importante do tabuleiro de Jakob Wassermann. Os significados
que ela assume para cada um dos personagens de “O processo Maurizius” (“Der Fall
Maurizius”) são os pontos nodais da linha tramada pelo autor: eles revelam a psique de
quem os enuncia e traduzem nos indivíduos os dados de sua época histórica e de sua
colocação social. O barão Andergast, procurador responsável pela incorreta condenação
de Leonardo Maurizius, acredita ter feito justiça ao seguir estritamente as “tábuas
sagradas das pandectas”. Etzel Andergast, seu filho, irresigna-se com pai e vê a justiça
como valor supremo, um “direito primordial nascido no coração” do homem “ao mesmo
tempo que ele”[6]. Do idealismo de Etzel não compartilha Gregor Waremme (ou Georg
Warschauer), o alemão-judeu que despreza a bondade humana e acredita que exigir
justiça dos homens “é o mesmo que pretender iniciar um bebê nos mistérios do cálculo

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integral e descuidar de lhe dar o leite que precisa”[7]. A palavra ‘justiça’ na obra de
Jakob Wassermann, como se vê, está mais para a significação que lhe dá o guarda
Klakusch, ao conversar com o presidiário Leonardo Maurizius: “É uma palavra que
parece um peixe; escapa-nos quando a seguramos”[8].

O problema da justiça e sua definição fugidia é temática corrente nas obras de


Jakob Wassermann, e muito especialmente naquelas que, com “O processo Maurizius”,
constituem uma trilogia: “Etzel Andergast” e “A terceira existência de Joseph
Kerkhoven”. Na evolução dessas três narrativas nota-se com bastante clareza que a
justiça assume significados correlatos ao tempo e ao espaço em que situado o autor. Ao
passo que em “O processo Maurizius” (de 1928) é possível verificar as angústias e as
expectativas de um período de transição – o presente é escorregadio: o passado é
dissonante e o futuro parece conter boas e más expectativas –, em “Etzel Andergast” (de
1931) o protagonista já se desiludiu com os ideais de sua infância e transformou-se
justamente naquilo que o escritor Melchior Ghisels previra: aqueles que elevam a
bandeira da justiça aos mais altos cumes são justamente os que, adiante, a arrastam para
a lama[9]. Etzel tem um caso com a esposa de seu mestre e destrói a sua família,
insensibiliza-se com seus semelhantes e acaba escolhendo o anonimato, refugiando-se
definitivamente no isolamento das montanhas. No terceiro romance (de 1934, publicado
postumamente), enfim, a justiça assume ares metafísicos e traz consigo idéias típicas de
um escritor já moribundo: o vocábulo se identifica com a fé, e a prática religiosa do
personagem Joseph Kerkhoven é a única que leva a Deus e que o prepara, dessa
maneira, para sua própria morte[10].

De todas essas variações que a justiça assume pelas mãos hábeis de Jakob
Wassermann a mais curiosa para o direito é a que se apresenta no primeiro dos três
romances, pois revela paradigmaticamente, no antagonismo entre Wolf e Etzel, pai e
filho, adulto e adolescente, a falência das construções lapidadas no século XIX pelos
juristas alemães: a de identificar direito e lógica, e acreditar que um sistema
perfeitamente erigido – quase que sacralizado pela enormidade do edifício – só poderia
produzir resultados justos. Etzel é como aquele personagem do grande escritor peruano
Julio Ramón Ribeyro que herda de seu bisavô uma famosa e enorme biblioteca,
recheada de livros do século XIX, mas que a descobre, quando abre sua porta, reduzida
a poeira: “o que numa época tinha sido fonte de luz e prazer era agora excremento,
caducidade”[11].

Vê-se bem que o barão Andergast concentra em seu personagem todas as


crenças da Alemanha pandectista: o direito equivalia a um sistema fechado, com
previsões exaustivas, em que a justiça só poderia brotar da segurança das antecipações
abstratas. Por outro lado, em Etzel Andergast repousa a crítica ferrenha ao juiz enquanto
máquina de silogismos: na prática dos tribunais, essa visão acaba se mostrando
perniciosa e incapaz de produzir decisões justas; Leonardo Maurizius está confinado por
um crime que não cometeu. Mas é também em Andergast-filho que se tem o
adiantamento mais significativo dos tempos vindouros, em que a atenção se centraria
bem mais no sujeito (no intérprete) e em que a segurança, por ainda se identificar com o
totalitarismo científico e legal, ficaria relegada a uma importância bastante secundária.

Ressalta aqui, dessa maneira, que as conexões entre direito e obra literária parecem se
estabelecer na perspectiva contextual: da mesma maneira que não se compreendem os
sentidos das palavras senão quando surpreendendo seu uso, os textos literários, por sua

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natureza mimética[12], não podem ser desvinculados de seu contexto, dos dados de
tempo e de espaço em que situados autor e obra. Essa é a chamada “dimensão histórica”
da literatura, conforme aponta Carlos Reis: “vivendo num tempo e num espaço
concretos, dialogando de diversas formas com a cultura e com o imaginário em que se
acha inserido, o escritor representa uma cosmovisão que de certa forma traduz essa
relação com o seu tempo e espaço históricos”[13]. Trata-se de resgatar a noção de obra
literária enquanto “cronótopo”, introduzida por Mikhaïl Bakhtine, e que firma a
interação do texto com a realidade através dos vínculos de tempo (krónos) e de espaço
(topos)[14] – resguardada, é claro, a “mensagem transhistórica” das obras literárias
quando no trato dos grandes temas[15].

Partindo do pressuposto que o direito é um fenômeno cultural, que se estrutura na


história e através da história, e que, por se desenvolver no tempo axiológico, “está
necessariamente relacionado aos valores prevalentemente significantes de cada tempo
cultural e, por isto, em cada um deles, prevalentemente significativos”[16], conclui-se
que é da “dimensão histórica” da literatura que se extrai a melhor seiva para o direito. A
obra literária enquanto “cronótopo” tem muito a contribuir para o conhecimento do
fenômeno jurídico no tempo e no lugar em que redigida: daí que se possa estabelecer,
antes de tudo, um caráter retrospectivo do vínculo, no sentido de surpreender dados
úteis à compreensão do direito de outros tempos. Mas, por outro lado, “não somos
tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que
escutamos, ecos de vozes que emudeceram?”. De fato, existe um encontro “marcado
entre as gerações precedentes e a nossa”, conforme metaforiza Walter Benjamin[17], e
tanto por isso, pelos liames da tradição, é possível surpreender igualmente um caráter
prospectivo das relações entre direito e obra literária: há diálogo com o presente na
medida que “a experiência conserva a memória do passado como coisa viva”[18].

Diante dessas considerações, a análise de “O processo Maurizius” no que tem de mais


contributivo para o estudo jurídico deve partir necessariamente de sua
contextualização[19]: há que se extrair da obra a mensagem do autor, escapando-se do
pernicioso risco de inserir em sua voz ecos que não são seus e que não possuem
conexão com os sons produzidos por sua realidade. Daí o motivo pelo qual a primeira
parte deste trabalho pretenderá averiguar o diálogo que Jakob Wassermann estabelece
com o direito de sua época, ainda que indireta e inconscientemente. Essa é condição
essencial para o passo seguinte: identificar as prospecções da obra literária, tanto no que
ela se lança como previsão do direito futuro quanto no que ela dialoga, dessa maneira,
com o direito de nossa época. Afinal, como aponta o próprio Jakob Wassermann, “o
tempo que, na sua bondade, oculta os fatos ou, cruel, os revela, é todo-poderoso para
revelar em toda a sua mesquinhez o valor exato e as proporções reais daquilo que parece
primeiramente, ao olhar humano, encadeamento inextricável e impenetrável
mistério”[20].

II. O DIÁLOGO DE JAKOB WASSERMANN COM O DIREITO DE SUA ÉPOCA.

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A retrospecção exige, antes de tudo, situar historicamente o autor e sua obra –
não apenas descobrindo a realidade alemã que foi forjada na intensa transição do século
XIX para o século XX, mas também localizando em que correntes literárias se coloca
Jakob Wassermann (ponto A). A abordagem revelará as linhas gerais de “O processo
Maurizius”, e oportunizará, daí para frente, que se ajuste o foco naquilo que realmente
interessa para os vínculos do texto literário com o direito: o antagonismo que se
estabelece entre o Wolf e Etzel Andergast, temperado pelas valiosas denúncias de
Leonardo Maurizius. A peça de xadrez, então, estará nas mãos do barão: é de suas
convicções que tratará o ponto B deste capítulo.

A-) Texto e contexto: a obra e a realidade histórica.

Eric Hobsbawm bem adverte que não se pode compreender o curto século XX
senão sob as chamas das guerras que o incendiaram[21]. Esse foi um dos séculos mais
bélicos da história da humanidade, sobretudo porque os conflitos, já tonificados pela
massificação das sociedades e pelos pródromos da globalização, assumiram proporções
multinacionais e intercontinentais. A guerra marcou profundamente os cem últimos
anos, e principalmente na pele daqueles que sofreram mais diretamente todos os seus
prenúncios e efeitos. Jakob Wassermann[22], por ser alemão e descendente de judeus,
habitante da Alemanha do entre-guerras e participante ativo das letras nacionais, talvez
tenha sido um ícone desse torvelinho: ele parece ter absorvido com agudeza – e disso
não poderia escapar – as aflições de sua realidade ambígua. Foi um fervoroso alemão,
mas não deixou de insurgir-se marcantemente contra o anti-semitismo quando ele
redundou em perseguições e homicídios[23].

Nesse sentido, cabe destacar a atuação de Jakob Wassermann enquanto cronista


de diversos jornais alemães: publicou ensaios em que, dentre outros temas, tratava com
assombro da cientificização desse anti-semitismo (1925), comparava as perseguições à
“caça às bruxas” dos séculos XVI e XVII (1925 e 1932), e clamava por justiça,
censurando duramente o preconceito contra judeus (1933)[24]. Segundo Rudolf
Koester, esse último ensaio gerou a Wassermann sua expulsão da Academia de Letras
de uma Alemanha já contaminada pelo nazismo. Suas obras, a partir de então, entraram
para a “lista negra” do partido (“Börsenblatt für den Deutschen Buchhandel”), e muitas
delas foram queimadas em piras públicas[25]. Ardia com elas o mote principal da vida
de Wassermann e de sua rotina de escritor: a luta pela justiça. Talvez não seja uma mera
coincidência que um ano depois de Adolf Hitler ascender ao poder, Jakob Wassermann,
no triste exílio de Viena, tenha sucumbido definitivamente: “tendo dedicado toda uma
vida à sua luta”, à luta pela justiça – segundo aponta Koester –, “ele perdera
definitivamente sua raison d’être”[26].

A ambigüidade de sua época, o medo de uma nova hecatombe bélica e o anti-


semitismo foram presenças constantes na obra de Jakob Wassermann, e muito

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especialmente em “O processo Maurizius”, escrito no entremeio das guerras e no
rodamoinho de fatos que preparavam a ascensão dos nazistas ao poder. As passagens
mais significativas sobre esses temas estão relacionadas ao barão Andergast, a
Warschauer-Waremme e a Melchior Ghisels, que compõem na obra uma tríade
interessantíssima: o primeiro como o típico produto do século XIX, o segundo
conscientemente exaltando os valores bélicos e nazistas, e o terceiro ponderando com
temor o futuro que assomava no horizonte alemão. É claro que a contraposição mais
relevante se dá entre os dois últimos, haja vista que ocupam lugares antagônicos:
enquanto que Warschauer-Waremme exalta a superioridade germânica, Ghisels teme as
conseqüências desses pensamentos[27].

Na encarnação alemã de Warschauer-Waremme (ou seja, enquanto Gregor


Waremme) é possível identificar o protótipo mais acabado de um nazista. Das folhas do
processo, o barão Andergast o percebe como “um aliado do diabo”, espírito ativo e
admirador de Hegel e do passado alemão, defensor de uma “missão mundial da
Alemanha” e da ampliação de seu “espaço vital”. “Apoiando-se sobre a tradição
histórica, interrompida ao fim de uma Idade Média próspera pela irrupção da onda
latino-celta, erige mentalmente um imperium romano-germânico que se estende da
Sicília até a Livônia e de Roterdam ao Bósforo. Faz com que tudo entre nessa
construção: a arte, a poesia, o gótico e o barroco, a renascença e a Antigüidade, Cristo e
os Padres da Igreja”[28]. É bem provável que Wassermann, nessa época, já tivesse lido
a terrível “Minha luta”, de Adolf Hitler[29], já que até mesmo a pregação de um
“espaço vital” (Lebensraum) para a Alemanha transparece nas palavras de Waremme.

Nas seara das idéias, seu antagonista é o escritor Melchior Ghisels, de alma
elevada e saber indiscutível. Talvez seja um dos personagens mais apreciados pelo
próprio autor (não por acaso, Ghisels é escritor), justamente por incorporar os temores
que tanto atormentaram Jakob Wassermann em sua vida de lutas contra o anti-
semitismo. As antecipações de Wassermann pela boca de Ghisels são impressionantes:
“Um profundo e mórbido desejo de destruição se manifesta nas fileiras daqueles que
vibram diante dos grandes problemas. Se não se puder remediá-lo (e tenho receio que já
seja muito tarde), é forçoso esperar daqui a cinqüenta anos um cataclismo pavoroso que
ultrapassará em horror todas as guerras e todas as revoluções que vimos até hoje. É
estranho que a destruição emane freqüentemente desses mesmos que se crêem os
guardiões dos valores considerados os mais sagrados”[30]. Não demorariam dez anos
para que essas previsões se concretizassem.

A colocação social e ideológica dos personagens está intrinsecamente ligada à


visão de justiça que cada um deles assume no desenrolar da trama. O barão Andergast,
crente nas instituições que o forjaram, não admite a produção de resultados injustos por
um edifício científico e legal tão bem arquitetado e construído. Warschauer-Waremme,
para sustentar o argumento bélico e expansionista, não acredita na justiça e na
capacidade de se atingi-la: bem ao contrário, tenta convencer Etzel em diversos diálogos
que todas as conquistas e todos os avanços dos seres humanos estão manchados pelo
sangue de inocentes e por guerras de conquista, e só foram possíveis, portanto, por
terem-se praticado injustiças. Melchior Ghisels, enfim, do alto de sua sabedoria,
representa justamente aqueles que, com o advento de Hitler, ou morreram por seus
ideais, ou procuraram abrigo no exílio.

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Mas não é apenas o enquadramento na sociedade de sua época que define o
escritor e que produz uma compreensão mais completa da obra em exame. Há que se
averiguar quais as correntes literárias que influenciaram Jakob Wassermann, e aqui,
paradoxalmente, é importante frisar que o autor fez parte de um dos mais fulgurantes
movimentos da literatura alemã: o Simbolismo, que deita raízes na fortíssima virada
filosófica de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) e que é fruto da prosperidade
alemã anterior à Primeira Guerra Mundial[31]. Como indica Otto Maria Carpeaux, a
nova literatura, derivada dos tempos prósperos, exigia uma nova língua, “e essa língua
foi Nietzsche quem a deu aos alemães”[32], contra o passadismo, contra o liberalismo e
contra o racionalismo[33]. A primeira grande guerra – diga-se de passagem – não foi
capaz de quebrar com essas tendências, mas, bem ao contrário, revigorou ainda mais o
pessimismo que provinha de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e que era a base de boa
parte da filosofia nietzschiana.

Não obstante entremear caracteres do Romantismo e do Realismo, Wassermann


foi um simbolista: “O processo Maurizius” está imantado daquilo que Anatol Rosenfeld
chama de “radicalização extrema do monólogo interior”[34]. Em termos de foco
literário, a história não é contada por um narrador onisciente, mas pelos próprios
personagens do livro, que, numa torrente de impressões pessoais e sentimentos, vão
revelando paulatinamente os fatos ocorridos. O livro, vez ou outra, chega a pesar pela
maneira desenfreada e carregada com que dá espaço às manifestações interiores de seus
protagonistas. O psicologismo que daí surge encontra contornos exemplares no conflito
constante e central da trama: o antagonismo entre o barão Andergast e seu filho, Etzel
Andergast, que representa – não obstante estar presente a mensagem transhistórica da
antítese entre pai e filho, que aparece até mesmo em Hesíodo, no longínquo mito
teogônico de Cronos e Zeus – a decomposição dos ideais talhados no século XIX versus
a incerteza das idéias que poderiam advir em sua substituição. É isso que a obra de
Jakob Wassermann parece ter de mais valioso para o direito.

B) Barão Andergast e o direito aprisionado.

“O processo Maurizius” conta a história de uma condenação injusta; não se trata,


contudo, de uma injustiça que deriva dos desvarios de um juiz: na história de
Wassermann, é o próprio sistema que a produz. Toda a “instituição poeirenta das
pandectas”[35] se atira contra o réu e outorga pleno valor – porque é assim que o
sistema fixa – a uma testemunha juramentada. É Gregor Waremme, do alto de sua
respeitada posição social e do desejo de vingança, que determina a condenação de
Leonardo Maurizius: ele o viu com a arma na mão logo depois morta a vítima. A toda e
qualquer dúvida o juramento se opõe; “o juramento de Waremme libera os outros de
qualquer responsabilidade”, conforma-se o pai do condenado. “Semelhante juramento é
uma fortaleza”[36], ainda que não haja qualquer outra prova no mesmo sentido. Tanto é
assim que ao longo do texto de “O processo Maurizius” não se tem nenhuma alusão ao
juiz da causa, mas tão-somente ao procurador, o barão Andergast, que fez uso do
depoimento de Waremme para colocar Maurizius atrás das grades. Não foi o juiz que o

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condenou; não há motivos para fazer-lhe menção. Foram todas essas instituições anciãs
que dão cego valor ao juramento, satisfeitas com sua própria perfeição.

O juramento é o símbolo mais paradigmático da caducidade do aparelho com


que trabalha o barão Andergast: trata-se da supervivência de elementos afeitos ao
sistema da prova legal do processo germânico medieval, em que, por sua taxatividade,
levava-se precipuamente em conta as condições sociais (quer-se dizer, estamentais) de
quem o proferia, atribuindo ao depoimento graus e valores até mesmo religiosos[37].
Acreditar que uma prova testemunhal juramentada, por si só, possa engendrar uma justa
condenação é depositar cega confiança nas instituições jurídicas da época. E, como
adverte Marc Bloch, “não há pior desperdício do que o da erudição, quando gira no
vazio, nem soberba mais deslocada do que o orgulho do instrumento que se toma por
um fim em si mesmo”[38]. É isso o que está por detrás da cegueira do procurador
Andergast.

Nas linhas de tensão da obra, o barão assume-se como um defensor das


instituições periclitantes do século XIX: ele é rígido, frio e impessoal. Em sua casa
impõe obediência “esmagadora e grandiosa como uma montanha”[39]; no labor, sua
fama de inflexível, implacável e severo gerou-lhe o apelido de “o sanguinário”[40].
Nutre uma crença quase religiosa no direito que pratica, e não raro se refere a ele como
algo sagrado: “O direito não é um compromisso arbitrariamente estabelecido entre as
partes, mas uma instituição sagrada e eterna, verdadeira e de valor inatingível desde que
existem juízes que condenam os culpados e códigos que classificamos delitos por
artigos”[41]. Sofia, sua ex-esposa, numa das discussões finais do livro, afirma que aos
olhos do barão, “o direito e a lei são instituições contra as quais a crítica humana não
prevalece”[42]. Eles são intocáveis; um edifício faraônico construído ao longo dos
séculos e que atingiu a suprema e perfeita lógica: da mihi factum dabo tibi ius, diria a
pirâmide – e não a esfinge – para quem a conclama.

Não surpreenderia se o barão Andergast pertencesse, por exemplo, à família de


Puchta, ao círculo de amigos do jovem Jhering ou à escola de Windscheid. Esses, afinal,
são os autores alemães mais paradigmáticos quando se fala em “jurisprudência dos
conceitos” (Begriffsjuriprudenz); pensavam o direito sob a forma sistemática e
equivaliam o sistema a critérios matemáticos de racionalidade. Em suas obras,
sedimentaram a vocação da Escola Histórica savignyana para “ciência das pandectas”,
ou “pandectística” (denominação retirada dos títulos de seus manuais e tratados),
representativa do que mais tarde passou a ser identificado como “positivismo
científico”. O direito, sob essas luzes, era deduzido exclusivamente do sistema, dos
conceitos e dos princípios reconhecidos por sua ciência[43]. Para quem era apaixonado
pela matemática, como o barão Andergast[44], as noções pandectísticas de logicidade
interna e do papel silogístico do juiz apresentavam absoluta naturalidade: elas dizem
com as influências racionalistas do século XVIII absorvidas sobretudo por Georg
Friedrich Puchta quando na construção lógico-dedutiva de sua pirâmide de
conceitos[45]. A “jurisprudência dos conceitos”, como bem resume Giacomo Gavazzi,
depositava importância no caráter lógico e racional da construção dogmática: “il diritto
è logica”[46].

Essa identificação do direito com a lógica leva o barão Andergast a exaltar, por
exemplo, a concatenação interna do próprio processo, que nas mãos de um juiz
consciente de sua atuação estritamente silogística refletiria a perfeição do direito

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piramidal: “Os detalhes se combinam com perfeita lógica, para formar um conjunto que
encontrará no veredicto o arremate final. Ali estão verdadeiras pérolas da arte jurídica;
somente agora, a distância no tempo permite que se veja globalmente o edifício
imponente, a solidez dos alicerces, o sutil mecanismo das engrenagens internas; o
profissional sente nisso um prazer estético”[47]. Ao juiz só incumbiria subsumir o fato
– depois de conhecido – à norma abstrata, que em sua perfeição e completude emitira a
natural e unívoca solução do caso[48]. O peso da ciência jurídica construída ao longo de
todo o século XIX não permitiria admitir que ela contivesse incompletudes.

Mas o que jaz por detrás da confiança nesse edifício piramidal e faraônico que,
pelas vagas do tempo, já começava a apresentar fissuras? Se o início de “O processo
Maurizius” traz um procurador firme em suas crenças, o desenrolar da trama o faz
titubear: revela-lhe que o direito que pratica, cego às coisas e às pessoas, atirou um
inocente a anos de uma injusta prisão. A crença de que o direito das pandectas, rico em
conceitos e conexões, pudesse produzir naturalmente resultados justos, equivalendo
segurança e previsão, se esvaece paulatinamente perante os olhos do barão quando, num
exercício de estranhamento, relê os autos do “caso Maurizius” e atenta muito mais aos
fatos do que às previsões abstratas. “Se uma verdade pela qual outrora se testemunhara
perante Deus e perante os homens podia transformar-se, ao fim de um certo tempo,
numa caricatura, o que era então, de fato, a verdade em geral? Ou seria somente nele
próprio que havia alguma coisa de carcomido, o mecanismo do seu eu teria
falhas?”[49].

A atitude do procurador não é muito distinta da assumida por Rudolph von


Jhering, jurista alemão que, depois de decepcionar-se com a “jurisprudência dos
conceitos”, forjou as bases do que Phillip Heck chamaria de “jurisprudência dos
interesses” (Interessenjuriprudenz). Numa primeira fase, estreitamente ligado à doutrina
de Puchta, Jhering desenvolve para a ciência jurídica um “método histórico-natural”.
Comparado à química, teria a incumbência de desmontar os institutos jurídicos e suas
proposições em elementos lógicos, e destes últimos destilar a sua pureza e extrair-lhe
normas velhas e novas[50]. Já na segunda fase de sua carreira, tal qual o barão
Andergast, Jhering sente as insuficiências da pandectística e se insurge contra a
“jurisprudência dos conceitos”, chegando às raias de ironizar os escritos que ele mesmo
produzira quando jovem. No quarto volume de seu “Espírito do direito romano” (“Geist
des römischen Rechts”, t. IV, publicado em 1864), por exemplo, o autor critica o culto à
“auréola da lógica”, adjetivando-a de “superficial” e “ilusória”, nada mais sendo do que
“uma miragem” que nos desvia das “verdadeiras fontes”[51]. O autor alemão, então,
passa a pregar uma jurisprudência absolutamente pragmática, sobretudo depois da obra
“O fim no direito” (“Der Zweck im Recht”, publicada em dois volumes nos anos de
1877 e 1883)[52], e não reconhece hierarquização dos interesses (fins) da sociedade
historicamente dada: nega, assim, o valor específico do direito, vendo-o como “o
joguete dos interesses que em cada caso são dominantes na sociedade”[53].

“Se não é o paradigma do sistema fechado”, ensina Judith Martins-Costa,


“Jhering é, por certo, o paradigma de um momento de mutação – na sociedade, na
ciência, na cultura, na economia, nos costumes – que ainda não se revela, em sua
plenitude”[54]. A mesma desilusão que fez Jhering reduzir o direito a um “jogo de
interesses” leva o barão Andergast, no fim de “O processo Maurizius”, à total descrença
no sistema que antes sacralizava. É na discussão com Etzel Andergast, quando alvejado
pela ira de um filho oprimido e sufocado pela indiferença de seu pai, que o barão quase

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se desculpa pelo erro judiciário: por ter sido forjado nos fornos do século XIX, ele não
poderia ter agido de outra maneira; ele também é um produto de sua época. A descrença
de Jhering se apodera de sua fala: “Renuncie à idéia de que a verdadeira justiça e a dos
tribunais são e devem ser uma só e a mesma coisa. É impossível, isso ultrapassa as
possibilidades humanas e terrestres. Existe entre elas a mesma relação existente entre os
símbolos da fé e as práticas da religião. Um símbolo não pode fazer você viver”[55].

Era tarde demais, porém, para que a ciência do século anterior se arrependesse do
radicalismo que assumira: os danos não mais poderiam ser evitados. A exacerbação do
romantismo se deturparia em idéias bélicas e pan-germânicas, ao feitio do pensamento
nazista de Warschauer-Waremme, da mesma maneira que a sacralização da doutrina
jurídica seria sua própria prisão: primeiro condenada ao subjugo da lei, foi logo
secundarizada diante do poderio hercúleo do juiz. É significativo que o barão
Andergast, de sua postura radicalmente fria, tirânica e tradicional, tenha feito brotar em
seu filho “o antagonista do seu espírito”, como afirma Sofia. “É admirável ver com que
lógica sua educação o preparou para isso”[56]. No pêndulo secular da história humana,
as reações contrárias são geralmente equivalentes – ou superiores – aos radicalismos.

Do arrependimento tardio de Wolf von Andergast, porém, podem-se extrair mais do que
simples e desgastadas críticas ao sistema da “jurisprudência dos conceitos”. O barão não
é o vilão de “O processo Maurizius”. Bem ao contrário, no fim do livro é possível até
mesmo compadecer-se de sua figura: é um indivíduo que dá-se conta de sua falência
enquanto pai e operador do direito, e por isso perde o filho, enlouquece e acaba
abandonado num hospício. Como o barão Andergast, o direito que ruía também era
resultado de seu tempo. O que foge do lugar-comum, portanto, é verificar essa
formatação com compreensão e contextualização, enquanto produção e necessidade
histórica do direito do século XIX. Não há texto sem contexto, e dessa maneira vê-se
bem que o direito também é “cronótopo”. Em certa passagem do livro, Leonardo
Maurizius, em pensamento, repugna as afirmações do barão da seguinte maneira: “seu
interlocutor defendia uma instituição que não possuía mais senão um simulacro de
existência. Saída das pandectas empoeiradas, efetivamente só sobrevivia na cabeça de
alguns homens que tiraram de fórmulas artificiais os conceitos com os quais contraíram
uma simbiose de fantasmas”[57]. A resposta “cronotópica”, como se vê, está nos
fantasmas e na poeira, nas pandectas e na Escola Histórica.

A vitória de Friedrich Carl von Savigny no embate doutrinário que manteve com
Friedrich Justus von Thibaut representou muito para a Alemanha: sua unidade jurídica
seria construída, e não mais importada do país vizinho[58]. Como se sabe, a resolução
teve efeitos imediatos, pois iniciaram-se os intensos trabalhos de redescoberta e
pesquisa histórica das fontes jurídicas alemãs (com proeminência para o direito
romano[59]), e estabeleceu-se paulatinamente uma espécie de “aristocracia professoral”
pela qual se pretendia conscientemente centralizar nas mãos dos juristas toda e qualquer
criação jurídica. É o que desvela, para este último aspecto, James Q. Whitman, ao
explicar o conhecido repúdio à liberdade judicial não pelo simples argumento iluminista
do juiz como bouche de la loi – e menos ainda num país que não havia recepcionado a
idéia montesquiana de separação dos poderes –, mas sobretudo pela força intencional da
fundação de um Juristenrecht (“direito dos juristas”) ou Professorenrecht (“direito dos
professores”)[60]. Daí a verdadeira razão pela qual reinava um disseminado repúdio ao
precedente judicial, o que inclusive serviu de apanágio às equivocadas interpretações do

2077
processo civil romano que incutiram no iudex dos tempos formulários uma atitude
silogística absurdamente anacrônica[61].

O sonho de um Professorenrecht – levado às últimas instâncias muito mais pelos


seguidores de Savigny do que pelo principal fundador da Escola Histórica[62] – foi o
que gerou a derrocada da construção alemã: as limitações impostas aos juízes no plano
teórico facilmente conjugaram-se, com o passar do tempo, aos ideais iluministas de
racionalidade, e o direito, enclausurado no fantástico corpo doutrinário construído por
centenas e centenas de obras jurídicas, começou a erigir-se na pirâmide lógica da
“jurisprudência dos conceitos”. Daí se compreende como um Puchta e um jovem
Jhering tenham focado excessivamente na idéia savignyana de um “sistema científico”
construído a partir de conceitos jurídicos, cuja lógica interna era sua característica mais
sagrada; daí se entende como um homem culto e de boa procedência como o barão
Andergast tenha estado tão hipnotizado pela beleza estética dessa construção ao ponto
de cegar-se para as pessoas e para as coisas. São como os “Imortais” do conto de
Borges: erigiram uma fulgurante cidade com as suas relíquias e depois, acreditando vã
toda nova empresa, “determinaron vivir en el pensamiento, en la pura
especulación”[63]. A transformação dos sistemas e dos manuais pandectísticos em
código foi apenas um passo adiante de sua consagração, motivado pela paideia histórica
do Corpus Iuris e da Glosa de Acúrsio, e especialmente pela obra de Bernhard
Windscheid, que exaltava a lei como sabedoria dos séculos precedentes. Nascia o
“positivismo legalista” e daí, então, as linhas que passaram a identificar legislação e
direito.

Mas o que seduzia o barão Andergast não era a lei, e sim a perfeição do corpo
doutrinário construído ao longo do século XIX e sistematizado em seu último terço.
Não é por acaso que Leonardo Maurizius insurge-se justamente contra as “pandectas
empoeiradas”: eram elas que constituíam o material com que trabalhavam os juízes
alemães[64]. Esse todo acabado e sistemático, que primava pela ampla previsão de
hipóteses subsuntivas, contudo, se mostrou incapaz de produzir justiça: Leonardo
Maurizius foi condenado pelo sistema. Distanciado dos fatos e iludido pela pretensa
perfeição de sua lógica interna, o direito do barão é “ressecamento”, como caracteriza
Etzel: “É um tradição morta, uma lei sem alma”[65]. Se a ciência jurídica foi viva e
fulgurante no século XIX, por outro lado gerou sua própria morte: sistematizada
matematicamente, ficou aprisionada aos tratados e manuais, que se transmutaram em
códigos e leis. A partir de então, todo o problema da criação jurídica se deslocou para a
dicotomia “legislador versus juiz”, e o Juristenrecht ficou abandonado às traças, como
se fosse “pó de um saber” sepultado pela virada do século. “Um chapéu de Napoleão,
num museu, o chapéu guardado numa urna, está mais morto do que o próprio
dono”[66].

Vê-se em Etzel Andergast e Leonardo Maurizius o prenúncio da temática que inspiraria


boa parte dos estudos jurídicos do século XX: o foco passa a ser o aplicador do direito,
o intérprete; enfim, o sujeito. Nesse sentido, é significativa a passagem de “O processo
Maurizius” em que Etzel abandona sua casa – e tudo o que ela representa – para
desvendar, a partir do contato direto com as coisas e com as pessoas, a verdade do
julgamento de Maurizius, e deixa um bilhete para o seu pai com os seguintes dizeres:
“Dizem que as idéias engendram idéias, mas a verdade permanece fora desse ciclo, e é
preciso criá-la, como qualquer obra, creio eu, através dum laborioso esforço”[67]. A
verdade passa a depender do sujeito e, dessa maneira, se relativiza.

2078
III. O DIÁLOGO DE JAKOB WASSERMANN COM O DIREITO DE NOSSA
ÉPOCA.

A prospecção de “O processo Maurizius” é bastante rica quando nela se enxerga


o reflexo de um momento de transição da sociedade alemã. Sob as luzes de uma
República de Weimar natimorta, sacrificada pela derrota na Primeira Guerra Mundial e
prestes a naufragar na crise econômica mundial de 1929, a obra de Jakob Wassermann
apresenta igualmente um direito cujos pilares estão corroídos. É Etzel Andergast e
Leonardo Maurizius que, encarnando as críticas da época, adiantam de certa maneira as
tendências que guiariam o desenvolvimento do direito no século XX. No ponto A deste
capítulo, o peão de xadrez estará em suas mãos: a justiça não é mais um produto
silogístico, algo brotado da perfeição sistemática das pandectas; ela depende do sujeito,
e tanto por isso a atenção há de se centrar muito especialmente no intérprete. É Melchior
Ghisels quem nos inspira: parece partir dele a reconciliação das notas contraditórias, das
visões do barão e de Etzel Andergast. No ponto B, de maneira exemplificativa, serão
brevemente analisadas algumas linhas que propõem complementações ao modelo do
“juiz Hermes”, e que parecem preocupadas, de um modo geral, em recuperar a
segurança jurídica que restou parcialmente abandonada depois dos ataques desferidos
contra o juspositivismo.

A-) O futuro de Etzel Andergast e os “modelos de juiz”.

Jakob Wassermann constrói em Etzel Andergast um personagem marcante da


literatura alemã: ele é o prenúncio da juventude que, da apatia de seus lares, buscou no
regime nazista a figura paterna e protetora, de esperança no resgate de uma Alemanha
histórica, unificada e vitoriosa[68]. A derrocada do personagem em “Etzel Andergast” –
o segundo romance da trilogia – é representativa; é a derrocada de toda uma geração: a
“geração perdida” de Ernest Hemingway e de Gertrude Stein. Por outro lado, no
antagonismo com seu pai, Etzel também experimenta uma profunda decepção com o
idealismo de sua justiça, e não à toa, nas últimas páginas do livro, sucumbe à ira, rompe
com o barão e destrói seu quarto. Aqui se dá a morte do jovem Etzel e a transição para o
personagem sombrio do segundo livro – e daí por diante uma certa identificação com
Warschauer-Waremme.

Mas o que interessa, evidentemente, é a atitude assumida por Etzel ao longo de


todo “O processo Maurizius”, antípoda à de seu pai e assemelhada, na crítica, às

2079
opiniões de Leonardo Maurizius. Desde o início da narrativa, o jovem filho se contrapõe
ao barão com incredulidade, duvidando da “instituição sagrada e eterna” que seu
antagonista defende com tanto ardor. “A lei instituída, eterna! Ei-lo que se agita na
cadeira e morde o dedo com embaraço”, descreve Wassermann. “Não punha em dúvida
o valor do direito como idéia, apenas a eqüidade de uma sentença recente, pura questão
de pensamento e raciocínio, da qual ficava excluído o coração”[69]. Nos olhos de seu
filho, é o próprio pai quem reconhece o fulgurar de toda uma nova fase: “O barão
Andergast talvez compreenda a linguagem silenciosa de que se faz intérprete aquele
rapaz de dezesseis anos, porta-voz do espírito negativista e incrédulo de sua geração,
espírito contaminado pela doença e anarquia da época”[70]. A atenção voltava-se para o
sujeito, o que resta escancarado quando, no bilhete de partida, Etzel conceitua a verdade
como uma “construção individual”.

No campo jurídico, a manifestação dessa visão resultou no soerguimento da


“jurisprudência dos interesses” de Rudolph von Jhering e de Philipp Heck, mais atenta
ao trabalho desenvolvido pelos juízes. Como bem resume Karl Larenz, citando Heck,
“enquanto “a orientação anterior, a Jurisprudência dos conceitos”, limita o juiz “à
subsunção lógica da matéria de facto nos conceitos jurídicos” – e, nessa conformidade,
concebe o ordenamento como um sistema fechado de conceitos jurídicos, requerendo
assim “o primado da lógica” no trabalho juscientífico –, a Jurisprudência dos interesses
tende, ao invés, para “o primado da indagação da vida e da valoração da vida”[71]. Os
objetivos teoréticos são secundarizados, e pretende-se, com prioridade, facilitar o
trabalho do juiz para que este possa produzir uma decisão objetivamente adequada.
Ressalta na “jurisprudência dos interesses” o importante desenvolvimento da noção de
“juízo de valor”, fundamental para que os estudos posteriores pudessem pregar a
liberdade criadora do juiz quando na interpretação das lacunas legais[72].

Etzel Andergast, o barão desiludido e a “jurisprudência dos interesses”


anunciam torrentes de pensamento irracionalista que navegariam num sentido
absolutamente oposto ao da “jurisprudência dos conceitos”, como, por exemplo, o
“decisionismo” de Hermann Isay, a “jurisprudência de sentimentos” de Dahn, o “direito
livre” de Hermann Kantorowicz e o “direito intuitivo” de Georges Gurvitch, mas
também entendimentos que procurariam um meio-termo depois da Segunda Guerra
Mundial a partir de reflexões baseadas na linguagem e na argumentação[73]. São
exemplos clássicos dessas últimas manifestações a “tópica” de Theodor Viehweg, a
“retórica” de Chaïm Perelman e a “hermenêutica filosófica” de Hans-Georg Gadamer,
que procuraram reabilitar a filosofia prática de tez aristotélica – ainda que por vezes
infiéis ao verdadeiro arranjo de matérias do filósofo grego – e que possuíram supremo
valor no desmantelamento da identificação absoluta entre direito e lógica.

O que se nota ao longo do século XX, portanto, é uma crise generalizada da


legislação e de suas pretensões de completude – e isso não apenas contra os preceitos da
“jurisprudência dos conceitos”, mas sobretudo em face da exegese francesa –, inserta
num Zeitgeist geral da cultura humana em que o relativismo passa a ser a tônica[74].
Uberto Scarpelli exemplifica as mudanças pelo viés linguagem, mencionando uma
passagem de “Alice no país dos espelhos” (“Alice through the looking glass”, de Lewis
Carroll) e demonstrando que a “mensagem”, antes unívoca, passa a ser dúbia e
multiplamente interpretável: “é preciso observar quem a comanda”, já dizia Humpty-
Dumpty[75]. Como resume Jakob Wassermann, fazendo o barão tremer em suas

2080
convicções, “aquela construção, cuja solidez desafiara todos os ataques, apresenta
agora, à agudez do olhar, fendas e falhas por toda a parte”[76].

A ausência de identificação entre direito e lógica passou a significar, num


primeiro momento, o aumento desenfreado e excessivo da importância outorgada ao
juiz, mas também – e numa outra visão – a adequação entre o labor do legislador e do
aplicador do direito. Não se tem mais o direito jupteriano em que acreditava o barão
Andergast; o procurador não é o Trismegisto (ou Hermes, para os gregos) em que
confiava Etzel, e que trazia dos céus a mensagem abstrata do Olimpo para ordenar a
vida dos mortais. Tem-se, antes disso, um juiz hercúleo, ou um Hermes diferente – na
ambigüidade que lhe é típica e que a mitologia ressalta tão bem –, que conjuga teias de
significados e constrói, na multiplicidade da vida humana, a solução mais adequada para
cada conflito. A relação do aplicador com os deuses gregos permite que se adotem “os
três modelos de juiz” resumidos por François Ost[77] e que, sendo os modelos básicos
com que o século XX trabalhou, se adaptam perfeitamente à realidade dos personagens
de “O processo Maurizius”.

Antes de todos, é claro, tem-se o “juiz Júpiter”, ou o “direito de Zeus” (se


ficarmos com as figuras mitológicas da Grécia Antiga). Aqui o paradigma é o direito
codificado, sob a forma piramidal[78], e que apresenta, segundo Ost, quatro corolários:
o monismo jurídico (direito = leis e códigos), o monismo político (que se esboça na
centralização administrativa e, portanto, na soberania estatal), a racionalidade dedutiva e
linear (as soluções particulares são deduzidas de regras gerais hierarquizadas, derivadas
de princípios ainda mais gerais) e a concepção do tempo orientado a um futuro
controlado (a lei antecipa e constrói um futuro melhor). Eis o modelo do barão
Andergast: um direito jupteriano, sagrado, e que tem por estigma a identificação entre
segurança jurídica e previsão exaustiva das hipóteses fático-jurídicas. A justiça é uma
mera conseqüência da subsunção (silogismo judicial). Como aponta Natalino Irti, aqui o
método purifica as normas e as coloca na sua dignidade lógica[79].

O “juiz Hércules”, por sua vez, é a quem se atribuem atuações hercúleas: é livre
julgador, presta assistência e é engenheiro social. Exacerbação do modelo anti-
legislativo, tem como máxima representação o realismo norte-americano de Oliver
Wendell Holmes Jr., que via a regra enquanto derivada unicamente da decisão judicial.
Dissolvido na vontade, o direito hercúleo apresentaria também quatro corolários, na
mesma linha de Júpiter: a proliferação de decisões particulares (“Funes, el memorioso”
de Borges, dentro dessa idéia, talvez fosse um ótimo magistrado[80]), a dispersão sem
sentido das autoridades encarregadas de aplicar o direito, a juridicidade esgotada na
decisão particular (indução, em contraposição à racionalidade dedutiva e linear do juiz
Júpiter), e a temporalidade descontínua (feita de irrupções jurídicas descartáveis depois
que usadas). Em seu particularismo não mais acredita que a previsão das hipóteses
fático-jurídicas fará brotar uma justa decisão; a segurança jurídica passa a ser miragem.
Aqui ressalta o niilismo do método: ele nega todo o critério de unidade e deixa tudo à
disposição da vontade humana[81].

Júpiter e Hércules, conforme lições de François Ost, “no son más que dos
imágenes del Derecho, dos modelos, dos tipos ideales bastante alejados de la realidad
jurídica”[82]. O antagonismo da mitologia entre Júpiter-pai e Hércules-filho também se
reflete em “O processo Maurizius”: o barão Andergast encarna a sacralidade jupteriana
e enlouquece; Etzel acha-se hercúleo e, no particularismo radical, violenta-se ao ponto

2081
do quase-suicídio. Wassermann dá indicativos claros de que nenhuma das duas soluções
– nem a do barão e nem a de Etzel – é aceitável. Não à toa, a evolução do direito
jupteriano o fará descer do Olimpo e escutar o pulsar da sociedade, ao passo que
Hércules ascende à racionalidade e passa a levar a sério os direitos fundamentais. A
pausa obscura entre essas duas notas parece ter gerado um outro modelo: o juiz Hermes.

Entre racionalismo e irracionalismo, o juiz Hermes nasce do resgate


argumentativo que as doutrinas posteriores à Segunda Guerra Mundial empreenderam,
com destaque especial para a tópica, a retórica e a hermenêutica filosófica. Delas
derivam respectivamente a noção de incompletude sistemática e constante
repreenchimento do sistema (o direito como algo eternamente inacabado), a dimensão
dialética e argumentativa de sua aplicação, e a relatividade e contextualização do
intérprete. Hermes não é nem a convenção do barão jupteriano e nem a invenção do
exacerbado e hercúleo Etzel Andergast, mas a reflexão do juízo jurídico que não se
presta nem à subsunção silogística de regras superiores e nem à desenfreada invenção
judicial. Talvez por ser a deidade mais amiga dos seres humanos, Hermes é ciente de
sua falibilidade: as pretensões de totalidade da lei e de onisciência do juiz são
incompatíveis com a condição natural dos homens.

No contrabalanço entre lei e juiz, reforçam-se as noções de uma legislação não


totalitária, mas “com janelas, pontes e avenidas desobstruídas para a mobilidade da
vida”[83]; e o aplicador, por sua vez, assume um papel criador quando diante de
cláusulas gerais, conceitos indeterminados e princípios gerais, admitindo-se até mesmo
que, por vezes, ele atue contrariamente ao próprio legislador[84]. Não por acaso, Nicola
Picardì vê em nosso tempo uma “vocazione per la giurisdizione” (imagem invertida da
obra de Savigny), e isso como resultado não apenas do desenvolvimento jusfilosófico da
tópica, da retórica e da hermenêutica, mas principalmente por conta da inflação
legislativa e da conseqüente desvalorização das leis[85], o que acabou frustrando
também a identificação entre previsão legal e segurança jurídica.

A percepção de um ordenamento jurídico mais atento aos fatos da vida está no


barão Andergast quando, em momentos de humildade, reaprecia o “caso Maurizius” e
surpreende-se com dados que noutros tempos não notara. “Sempre defendera a idéia de
que uma representação viva demais perturba o julgamento objetivo. Julgava desprezível
qualquer espécie de participação da imaginação, e quando observava nos outros a mais
ligeira tendência nesse sentido, logo sua desconfiança despertava. Nunca lhe acontecera,
desde que exerceu a profissão, “ver” as coisas e as pessoas. (…) Em todo caso, era
bastante interessante acompanhar o curso dos acontecimentos de modo tão diferente do
usual. Enquanto fitava, imóvel, o teto do quarto de dormir, os acontecimentos passavam
diante de seus olhos como em um filme”[86]. Somente uma legislação esponjosa, com
espaços a preencher, é capaz de proporcionar que o fluir dos fatos e da evolução social a
encharquem e a modifiquem constantemente. “Interpretar”, nessa esteira, ganha o
sentido de “inserir o texto normativo na realidade e na vida”, e opera a mediação entre o
caráter geral da proposição e a sua aplicação particular[87]. Na multiplicidade de atores
apontada por François Ost[88], ressalta o denominado “caráter alográfico” do direito: o
texto normativo é completado pelo intérprete, e daí se concebe que os trabalhos do juiz
e do legislador são absolutamente complementares[89].

2082
B-) Subjetividade, objetividade e justiça: o “intervalo entre duas notas”.

Etzel Andergast inconforma-se: “e… o que é que eu devo fazer?… De que


utilidade me serão, nesse caso, as minhas relações comigo mesmo? Não posso então
exigir uma coisa: o direito, a justiça. Devo deixá-lo apodrecer na prisão? Devo esquecê-
lo? Devo dizer: o que tenho a ver com isso? Que fazer? O que é a justiça, se não
conseguir fazê-la triunfar, eu, eu, Etzel Andergast”[90]. Ao que redargúi o sábio escritor
Melchior Ghisels: “Não tenho nada mais a responder senão o seguinte: perdoe-me, sou
apenas um homem, frágil caniço”[91]. Ressalta aqui o reconhecimento de que a
natureza humana é imperfeita, e que, não podendo ser Júpiter ou Hércules, não
conseguindo prever ou inventar sempre e com perfeição a solução mais adequada para
os conflitos que exsurgem, há de se contentar com sua própria falibilidade. É por isso
que Hermes em toda sua ligação com os homens é o grande modelo e a síntese entre
objetividade e subjetividade, o “intervalo entre duas notas” que as afina e as faz vibrar
em acordes tonais.

Hermes é o deus que, na “Ilíada”, indica a Príamo os caminhos que levam a


Aquiles; é aquele que adverte Ulisses, de pernas errantes, contra as trapaças de Circe, e
que em “Édipo em Colono” conduz o rei cego para sua jornada ao Invisível. É o deus-
guia, o senhor das vias e o protetor dos viajantes. Mas na ambigüidade que o aproxima
dos seres humanos, Hermes é também a divindade dos embustes e dos ladrões, “é o
espírito de uma forma de existência recorrente sob certas condições, que junto com o
ganho conhece a perda, a malícia junto com a bondade”[92]. Canta-o Goethe, em
“Fausto II”[93]:

“É assim também que ele, o mais esperto

Para ladrões e malandros

E todos os aproveitadores

É o gênio sempre propício

E comprova-o desde logo

Por suas artes refinadíssimas”.

O juiz-intérprete é seu próprio lobo: liberdade e arbitrariedade caminham de


mãos unidas, e se Hermes conduz por caminhos seguros, pode também escolher atalhos
tortuosos e levar o aplicador ao precipício da injustiça. É por isso que findo o “século do
sujeito”, a doutrina tem procurado resgatar, nos últimos tempos, notas de objetividade e
segurança jurídica. Isso não significa, porém, retomar o antiquado positivismo científico

2083
ou legalista. Como refere Friedrich Müller, “precisamos não do antipositivismo, mas de
uma teoria póspositivista do direito”, e isso importa reconhecer que, apesar de sua
importância, os discursos que se insurgiram contra o juspositivismo (tais como a escola
do direito livre, o sociologismo, a análise econômica do direito, a hermenêutica de
Gadamer e as tendências neofrankfurtianas) não superaram o paradigma criticado. “Eles
são para o positivismo mais ou menos o que as suposições cada vez mais complicadas
sobre os “epiciclos” foram para o sistema tardo-ptolomaico da explicação astronômica:
um “deslocamento degenerativo do problema” (no sentido da teoria da ciência de Imre
Lakatos)”[94]. O movimento em prol de um “novo paradigma”, atento a notas de
objetividade e segurança jurídica, possui desdobramentos de índole jusfilosófica,
dogmática e prática, que merecem ser brevemente abordados ainda que de maneira
exemplificativa, resumida e zetética.

No plano da filosofia do direito parece digna de menção a reformulação do


conceito de objetividade intentada por Herbert Hart – autor que, apesar de se colocar na
corrente positivista, adota pressupostos e conclusões bastante díspares dos estudiosos
que o precederam. Entre o projeto moderno e o projeto empirista, a proposta de Hart
pretende ser uma “terceira via”, pois deixa de lado a identificação entre verdade e
certeza – que foi o paradigma de ambas as correntes antagônicas – e funda sua refutação
no seguinte questionamento: faz algum sentido pedir sempre uma certeza que nós, seres
humanos, não podemos conceber? Daí, então, conclui que se algo pode ser chamado de
um “fundamento de um sistema jurídico”, esse algo nada mais é do que uma simples
situação social. O mundo deve ser concebido, então, desde nossa perspectiva, e assim se
pode concluir que expressões que afirmam a existência de direitos subjetivos ou a
validade de regras são descrições objetivas. Como resume Cláudio Fortunato Michelon
Júnior, “a contribuição de Hart para a dissolução dessa controvérsia entre racionalismo
e empirismo reside em apontar o mal-entendido que deu origem a ela, nomeadamente, o
ideal de uma concepção absoluta de mundo, que torna possível conciliar o
reconhecimento da normatividade do direito (que é o traço comum às doutrinas do
direito natural clássico e da teoria pura do Direito) com o reconhecimento do caráter
empírico (a que se apega o realismo jurídico)”[95].

É importante mencionar que a doutrina de Hart foi levada às últimas conseqüências por
seu discípulo, John M. Finnis, que, voltando-se contra diversos postulados de seu
preceptor, desenvolveu o “mínimo de direito natural” (conjunto de princípios que
ordena a vida e a comunidade humana) a partir da noção aristotélica da razoabilidade
prática[96]. A aceitação de sua doutrina, obviamente, implicaria uma revisão e uma
reformulação das chamadas “invariantes axiológicas”[97], que não mais descansariam
apenas na historicidade, mas também na invariabilidade dos caracteres intrínsecos à
própria natureza do ser humano.

Já os vínculos que limitam a atuação prática do juiz são variados, e podem ser divididos
de acordo com sua própria atuação: a análise fática (referente à fase instrutória do
processo) e a formação da decisão (momento de interpretação/aplicação da norma e de
solução do conflito). De certa maneira, eles servem para evitar e limitar os
condicionamentos internos dos juízes – ocasionados pela confiança excessiva no
subjetivismo –, criticados com ódio por Leonardo Maurizius do fundo de sua cela
solitária: “Se pensamos que todas essas pessoas – e não somente elas, pois isso vai
muito alto; é melhor não dizer a que grau de hierarquia o mal atinge – se pensamos que
essas pessoas se vingam sobre nós daquilo que lhes azeda o coração, de todas as suas

2084
ambições fracassadas, de suas desgraças domésticas, da insuficiência do seu salário, às
vezes do fracasso de toda uma existência, quando refletimos que esses funcionários
subalternos são quase todos pessoas para quem é um gozo atormentar e fazer sofrer –
nada podem contra isso, a autoridade que possuem e que os embriaga, consola-os, pois
suas vidas são tão sombrias quanto os cubículos que eles guardam ou como os destinos
os quais presidem – quando pensamos nisso, não podemos deixar de perguntar se os
homens foram feitos para condenar, para punir outros homens”[98].

No que tange aos juízos de fato, exige-se do magistrado o máximo de congruência, de


maneira que nos dias atuais intenta-se fixar standards ou “modelos de constatação” para
objetivar a valoração da prova[99]. Não se pretende, com isso, retornar a modelos de
tarifação, mas concluir que a livre convicção do juiz – herança de um passado recente
em que a atividade cognoscitiva do juiz se reduzia à sua pura consciência – não é
propriamente livre: “a liberdade de que se cuida é uma liberdade objetiva”, e tanto por
isso tem-se como impositivo que “a decisão defina, como questão jurídica prévia, por
qual modelo de constatação estará orientada, para que disso saibam as partes”[100].
Essa “intenção de objetivização” ressalta igualmente na aplicação das máximas de
experiência[101].

Já para a decisão final – e aqui se adentra no momento interpretativo-aplicativo do juiz


–, Michele Taruffo aponta três requisitos que, de certa forma, visam a assegurar certa
objetividade: coerência interna (correspondência entre a fattispecie concreta e a
fattispecie abstrata), universalidade (não à aplicação particularista; sentença com
pretensões de aplicabilidade a outros casos) e congruência sistemática (respeito às
normas e aos precedentes)[102]. Este último pressuposto repousa, antes de tudo, no
respeito à Constituição, aos princípios e aos valores, e na observância da lei enquanto
expressão da democracia representativa, o que determina contrariá-la tão-somente
quando diante de um absurdo legislativo – aspectos que só podem ser verificados
exigindo-se do juiz a observância da publicidade e da motivação. Bem se vê que nesse
âmbito – o da interpretação judicial – tem-se uma paulatina recuperação da idéia de
direito como “saber prudencial-retórico”: a prudência em suas dimensões cognitiva
(conhecer as diferentes possibilidades; “deliberação”) e prescritiva (optar e indicar a
melhor conduta; “juízo de escolha”), e a retórica centrada na persuasão do destinatário
(no que incorpora as lições trazidas por Chaïm Perelman[103]). São dois momentos de
uma mesma atividade, que recuperam a noção de interpretação enquanto obra da razão
prática e que, contentando-se com o “saber provável” e com sua inarredável carga
axiológica[104], resultam no que Eros Roberto Grau chama de “caráter alográfico do
direito”, id est a noção de que legislador e juiz desenvolvem atividades
complementares[105]. Aqui a lógica clássica (e seus postulados básicos) volta a atuar
não como senhora absoluta, mas enquanto instrumento do ofício judicial, de maneira a
resgatar que o direito se por um lado não é sinônimo de lógica, por outro não é
aleatório[106].

Enfim, na mediação efetuada pelo magistrado entre hipótese abstrata e caso concreto,
tem-se propugnado com muito vigor pela revalorização da ciência jurídica enquanto
fonte do direito. Isso porque, conforme aponta Alessandro Baratta depois de invocar as
lições de Niklas Luhmann, “a concreção pontual da norma abstrata na ausência de um
corpo dogmático poderia comprometer a própria função do direito, a saber, a
institucionalização da estabilização das expectativas no sistema social”[107]. A intenção
é atribuir aos personagens os papéis que de fato lhes incumbem: ao juiz, a decisão; ao

2085
corpo dogmático, a homogeneização (abstração) do direito enquanto experiência
cultural[108]. De certa maneira, trata-se de resgatar o que de melhor a Escola Histórica
legou ao direito hodierno, sem que se caia no dogmatismo exacerbado que ocasionou
sua petrificação em “jurisprudência dos conceitos”, e de certa maneira colher os
evidentes méritos que o Juristenrecht teve para com a construção de um riquíssimo
corpo jurídico-dogmático. A experiência histórica demonstra ser pelo trabalho dos
juristas que se atingem graus de objetividade, segurança e justiça mais elevados e
equilibrados, já que, como aponta Jacques Ghestin, é pela doutrina que se conhece e se
faz conhecer o direito; é ela que esclarece as regras novas e reinventa as já existentes (os
denominados “dados positivos do direito”). Se não há direito sem jurisprudência, não há
jurisprudência – no melhor sentido da palavra – sem doutrina[109].

Enquanto paideia, o direito romano é sempre o exemplo mais paradigmático: sua


perenidade é fruto da obra consciente de centenas de juristas, que desde os idos da
República trabalhavam nos consilia dos pretores para a elaboração das hipóteses
abstratas fixadas nas fórmulas e assim outorgavam a elas a auctoritas de que
necessitavam[110]. Na fase processual que se desenvolvia perante o juiz, a situação era
bastante assemelhada: para alcançar um convencimento suficientemente seguro, o iudex
não se municiava apenas das alegações e das provas, mas também do auxílio de um
consilium de jurisperitos e de seus próprios conhecimentos técnicos que, com o passar
dos séculos, iam se aprimorando[111]. O próprio Digesto, a bem dizer – ainda que seja
produto de uma época em que Roma, conquistada pelos bárbaros, já fazia parte do
passado –, não é uma compilação de decisões ou de leis, mas de opiniões dos mais
prestigiados juristas do período clássico de Roma.

A experiência histórica talvez indique que a dicotomia entre legislador e juiz, forjada no
século XX pelo embate entre positivismo e antipositivismo, merece superação pelo viés
doutrinário. Hoje já não se pode falar em legislador jupteriano ou em juiz hercúleo;
talvez Hermes, por sua abertura à falibilidade do ser humano, incorpore melhor a
necessidade de que os magistrados se abeberem nas construções da ciência jurídica para
conjugar justiça e segurança. Já é pacífico que ao legislador incumbe forjar sua obra
com aberturas para a natural evolução da cultura humana, mas o juiz segue vagando nas
correntes do subjetivismo: fala-se que a ele incumbe a criação do direito[112], ao passo
que, em verdade, sabe-se que seu ofício precípuo dirige-se apenas e tão-somente à
resolução concreta dos conflitos. A abertura da legislação evoca não a livre criação do
juiz, mas o complemento doutrinário, a ser efetivado caso a caso por meio da atividade
julgadora[113]. Jurisprudência sem doutrina é como a concha descrita pelo barão
Andergast, ao vagar pelos corredores vazios do tribunal: “A concha parece, na verdade,
conter o oceano quando se a encosta no ouvido, mas o seu eterno concerto de órgão é
uma ilusão; só murmura porque é oca”[114].

IV. CONCLUSÃO.

2086
A justiça é a temática transhistórica de “O processo Maurizius”: ela aparece
imiscuída nas reflexões dos personagens consoante suas vivências fáticas e psíquicas,
mas é vista – salvo a exceção doentia de Warschauer-Waremme – sempre e
invariavelmente como um valor a ser preservado. Não se pode negar que as
discordâncias do barão e de seu filho se processam com relação aos meios de sua
realização: ao passo que Wolf acredita na justiça enquanto produto natural do silogismo
judicial, Etzel a descobre asfixiada pela poeira das pandectas, e adianta que a solução
talvez repouse na visão de um juiz que olhe para as coisas e para as pessoas com maior
atenção. Não há, portanto, desavença quanto ao fim-justiça; com sua consecução
concordam os antagonistas da trama. Mas também a segurança jurídica – ainda que de
maneira mais tímida – se apresenta como figura de xadrez nas mãos dos personagens:
antes em simbiose com a previsão totalitária das situações fático-jurídicas – e isso
determinou tanto a sua exaltação pelo barão Andergast quanto o seu repúdio por Etzel –,
hoje ressuscita nos controles que a aplicação do direito demanda sejam fixados.

São duas notas que vibram na obscura pausa entre lei e juiz: a da justiça e a da
segurança, que parecem se afinar na percepção de que o ser humano é falível. O repúdio
ao totalitarismo legal – legislador que não é Júpiter – há tempos vem ensejando
legislações abertas ao pulsar da vida e da história; e as recentes barreiras que se tem
tentado impor à atividade judicial – juiz que não é Hércules – explicitam que uma
decisão só é capaz de alcançar a justiça se guiada por critérios objetivos. Em verdade,
trata-se de redescobrir e reafirmar a função de cada um desses personagens sem dotá-los
de poderes que extrapolem os fins de suas atividades. A atitude esfacela a dicotomia
engendrada no início do século XX, que posicionou o legislador-Júpiter ao lado do
positivismo legalista e o juiz-Hércules como símbolo das correntes antispotivistas, e
resgata a doutrina como via necessária à harmonização de notas de justiça e segurança.

Estas são, portanto, palavras que se afastam e se reconciliam na história do direito: elas
“saltam, se beijam, se dissolvem”[115]. São peões nas mãos humanas, ou “conchas de
marisco” que, abandonadas, se preenchem dos significados que os dados de tempo e de
espaço as presenteiam[116]. Na teia de conexões entre palavras e conceitos em que
Hermes perscruta; na vida globalizada – “geo-diritto”, como denomina Natalino
Irti[117] – e composta por tons de objetividade e subjetividade, em que a justiça e a
segurança, por vezes, parecem com o peixe de Klakusch: “escapam-nos quando as
seguramos”[118]; em tempos que não se pode pretender nem a onipotência do
legislador e nem a onisciência do julgador, o direito se dissolve e se recompõe no
intervalo dos antagonismos: ele não é nem o barão Andergast e nem Etzel, nem
Warschauer-Waremme e nem Leonardo Maurizius. É o direito do ser humano, “pobre
caniço”; o direito do escritor Melchior Ghisels, e que parece ter, na composição com a
literatura, a melhor representação de sua humanidade[119].

[1] Este texto resulta de pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa “Direito
Privado: um espaço de mentalidades” coordenado pela Professora Dra. Judith Martins-
Costa no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS. As idéias aqui expostas
foram discutidas preliminarmente nos seminários “Direito e Literatura” integrantes da
disciplina “Fundamentos Culturais do Direito Privado” (UFRGS, 2008/1).

2087
[2] “Falamos do fenômeno espacial e do fenômeno temporal da linguagem; não de um
disparate a-espacial e a-temporal. [Nota à margem. Só que se pode interessar por um
fenômeno de modo diferente.] Mas falamos dela, assim como falamos das figuras do
jogo de xadrez, ao indicarmos regras de jogo para elas e não ao descrevermos suas
características físicas. A pergunta ‘O que é, propriamente, uma palavra?’ é análoga à
pergunta ‘O que é uma figura de xadrez?’”(WITTGENSTEIN, Ludwig. “Investigações
filosóficas” (trad. Marcos G. Montagnoli). 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 70-71).

[3] WITTGENSTEIN, Ludwig. “Investigações filosóficas” (trad. Marcos G.


Montagnoli). 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 113.

[4] É o que esclarece Mirko Skarica, antes de apontar outras duas vantagens da metáfora
elaborada por Wittgenstein (SKARICA, Mirko. Signos, convención y verdad. “Anuario
filosófico”. Navarra: Universidad de Navarra, 1984, v. 17, n. 2, p. 69).

[5] SAUSSURE, Ferdinand de. “Cours de linguistique générale”. 2. Ed. Paris: Payot &
Cie., 1992, p. 24.

[6] WASSERMANN, Jakob. “O processo Maurizius” (trad. Octavio de Faria e Adonias


Filho). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, p. 415. Ao longo deste trabalho, a
obra de Jakob Wassermann será citada abreviadamente por “PM”.

[7] PM, p. 375.

[8] PM, p. 357. É digno de menção que para Stephen H. Garrin – um estudioso de
Wassermann – é o guarda Klakusch quem encarna de maneira mais significativa a idéia
do autor sobre a justiça, pois nas obras de Wassermann é corriqueira a multivocidade de
significados atribuídos ao vocábulo (GARRIN, Stephen H. “The concept of justice in
Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p. 50).

[9] PM, p. 284. Mergulhado num mundo de desespero e desesperança, típico da


Alemanha pós-crise de 1929, Etzel Andergast parece representar toda uma geração – a
denominada “Geração Perdida”, expressão de Gertrude Stein popularizada por Ernest
Hemingway na epígrafe de “O sol também se levanta” (no original, “The sun also
rises”, de 1926) para representar os nascidos depois da I Guerra Mundial – que, nos
anos sucessivos, encontrariam no nazismo e na liderança de Adolf Hitler o falso
acalanto de verdade e esperança. Conforme aponta Stephen H. Garrin, “without a
definite goal in life, the young man, like so many of his contemporaries in Weimar
Germany, seeks out a father figure, a person in whom he can place his trust and hope for
the future. It is not without significance that Wassermann tends to fill his works with so
many “Halbkinder” and children from broken homes. Rather it is metaphorically
intended to mirror the leaderless epoch” (GARRIN, Stephen H. “The concept of justice
in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p. 59).

[10] GARRIN, Stephen H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”.


Berna: Peter Lang, 1979, p. 75.

[11] RIBEYRO, Julio Ramón. O pó do saber. In: “Só para fumantes: contos” (trad.
Laura Janina Hosiasson). São Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 185-192.

2088
[12] “A realidade é o material da criação literária”, afirma Käte Hamburger; é seu
objeto de mimesis, mas mimetismo no sentido aristotélico de poiesis, de criação
(HAMBURGER, Käte. “A lógica da criação literária” (trad. Margot P. Malnic). São
Paulo: Perspectiva, 1975, pp. 2-4). Interessante, outrossim, é a obra de Erich Auerbach,
em que o autor investiga, desde a Antigüidade até o século XX, as mais variadas
maneiras pelas quais os autores representaram e dialogaram com a sua realidade
(AUERBACH, Erich. “Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental”
(trad. [s.n.]). 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004).

[13] REIS, Carlos. “O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários”. 2.


ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 82. O investigador português aponta, ainda, outras
duas dimensões da literatura: uma “dimensão sociocultural” (aqui denotando um caráter
ativo: a literatura enquanto instrumento de intervenção social) e uma “dimensão
estética” (a literatura como fenômeno de linguagem, id est como linguagem literária),
umas complementando as outras. Para resumo das dimensões, veja-se REIS, Carlos. “O
conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários”. 2. ed. Coimbra:
Almedina, 2001, p. 24.

[14] BAKHTINE, Mikhaïl. “Esthétique et théorie du roman” (trad. Daria Olivier). Paris:
Gallimard, 2006, p. 237.

[15] REIS, Carlos. “O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários”. 2.


ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 91.

[16] São palavras de Judith Martins-Costa, destrinchando as lições de Miguel Reale


(MARTINS-COSTA, Judith. Direito e cultura: entre as veredas da existência e da
história. In: MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. “Diretrizes
teóricas do novo Código Civil brasileiro”. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 173). Dessa
maneira, é possível dizer que não perderam validade algumas das lições de Savigny, tais
como a seguinte: “El derecho progresa con el pueblo, se perfecciona con él, y por
último perece cuando el pueblo ha perdido su carácter” (SAVIGNY, Friedrich Carl von.
“De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho” (trad.
Adolfo G. Posada). Buenos Aires: Atalaya, 1946, p. 46).

[17] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: “Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura” (trad. Sérgio Paulo Rouanet). 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, v.1, p. 223.

[18] CAPOGRASSI, Giuseppe. “Il problema della scienza del diritto”. Milano: Giuffrè,
1962, p. 223. Como afirma Luiz Carlos de Azevedo, “se o direito constitui uma
expressão inseparável de qualquer meio social civilizado; e se este direito não se
conserva estático, mas se dinamiza e se transforma na medida em que as condições
sociais assim exigem; não há como desvinculá-lo da realidade histórica, pois é preciso
saber como este direito foi, até ontem, para entendê-lo, hoje, e melhorá-lo, amanhã”
(AZEVEDO, Luiz Carlos de. “Introdução à história do direito”. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, p. 22).

[19] Parece não haver incompatibilidade absoluta deste exame com o que centraliza as
relações entre direito e literatura na linguagem, sob uma dimensão que pode ser
chamada de “estética” (para um exame dessas correntes, veja-se MINDA, Gary.

2089
“Postmodern legal movements: law and jurisprudence at century’s end”. New York:
New York University Press, 1995, pp. 149-166). Neste trabalho, no entanto, está-se
priorizando – conforme já afirmado – sua “dimensão histórica”.

[20] PM, p. 399.

[21] “Mankind survived. Nevertheless, the great edifice of nineteenth-century


civilization crumpled in the flames of world war, as its pillars collapsed. There is no
understanding the Short Twentieth Century without it. It was marked by war. It lived
and thought in terms of world war, even when the guns were silent and the bombs were
not exploding” (HOBSBAWM, Eric. “The age of extremes: a history of the world,
1914-1991”. New York: Vintage Books, 1996, p. 22).

[22] Jakob Wassermann nasceu na cidade de Fürth, na Alemanha, em 1873, e faleceu


em Viena, no seu exílio austríaco, em 1934. É dono de uma vasta produção literária
(estudos históricos e biográficos, além das crônicas semanais publicadas em periódicos
alemães), e destacadamente – ao ponto de ter recebido a alcunha de “Balzac alemão” –
de diversos romances: “Meu caminho como alemão e como judeu” (autobiografia, de
1921), “A história da jovem Renata Fuchs” (1900), “O Moloc” (1902), “Alexandre em
Babilônia” (1904), “Kaspar Hauser” (1908), “As máscaras de Erwin Reiner” (1910), “O
homem de 40 anos” (1913), “O homem dos gansos” (1915), “Christian Wahnschaffe”
(1919), “O Trópico” (em quatro volumes, de 1920 a 1924), “O advogado Laudin”
(1925) e a trilogia composta por “O processo Maurizius” (1928), “Etzel Andergast”
(1931) e “A terceira existência de Joseph Kerkhoven” (1934), dentre outros livros.

[23] As indicações de Luis S. Krausz, ainda que relacionadas a outra obra de Jakob
Wassermann (“Kaspar Hauser”), demonstram bastante bem o conflito interno do autor
entre sua ascendência judaica e sua cidadania alemã, que também transparece em “O
processo Maurizius” no personagem Warschauer-Waremme: “Se ele afirma, de maneira
categórica, não se sentir identificado nem inteiramente à vontade quer entre os alemães,
quer entre os judeus que permanecem mergulhados nas tradições de seus ancestrais, ele
também observa com distanciamento, com apurado senso crítico e não sem certa ironia
os judeus alemães, seus contemporâneos, que parecem estar vivendo num incômodo
limbo, entre dois mundos, sem pertencer realmente a nenhum deles. Ao descrevê-los
Wassermann se coloca no vértice de um triângulo, eqüidistante de dois pólos – o
judaico e o alemão – e a partir deste vértice ele observa, com igual estranhamento, todos
os pontos da reta que leva de um a outro desses pólos, isto é, o longo iter que separa o
judeu do gueto, com suas formas de vida cristalizadas pelos séculos, dos vários graus de
assimilação judaica na Alemanha, que à época de sua juventude atingia o auge na
concepção do Deutscher Bürger mosaischen Glaubens (cidadão alemão de fé
mosaica)” (KRAUSZ, Luis S. Jakob Wassermann e Kaspar Hauser, 100 anos depois.
“Revista Contingentia”. [s.l.]: [s.n.], 2007, v. 2, pp. 11-12, disponível em
http://www.revistacontingentia.com, acesso em 02 de agosto de 2008).

[24] KOESTER, Rudolf. Jakob Wassermann, anti-Semitism and German Politics.


“Orbis Litterarum”. [s.l.]: Munskgaard, 1998, v. 53, pp. 185-186.

[25] KOESTER, Rudolf. Jakob Wassermann, anti-Semitism and German Politics.


“Orbis Litterarum”. [s.l.]: Munskgaard, 1998, v. 53, p. 187. A atitude da Academia de
Letras foi perniciosa para o escritor: decretou sua morte em vida. Narra Rudolf Koester

2090
que “while this measure did not yet constitute an official ban, it nevertheless
stigmatized Wassermann and instilled fear in the ranks of German publishers and book
dealers. Publishing and marketing the writings of a blacklisted author became risky
business, both politically and commercially” (p. 187).

[26] KOESTER, Rudolf. Jakob Wassermann, anti-Semitism and German Politics.


“Orbis Litterarum”. [s.l.]: Munskgaard, 1998, v. 53, p. 188.

[27] O barão Andergast não parece militar num ou noutro sentido, mas simplesmente
incorporar a exaltação germânica como algo natural (representativa de uma população
que, embriagada por seus sonhos patrióticos, não teria forças para se insurgir contra o
regime sucessivo). É o que pode ser lido do seguinte trecho, com fina ironia do autor:
“Por momentos, tinha-se a impressão de que ele se estava ouvindo com complacência
mas, na verdade, não tinha essas fatuidades: apenas, a consciência de sua superioridade,
consciência que lhe entrara no sangue e que se manifestava em suas relações com os
seres sob a forma de um seco pedantismo ou de uma objetividade puramente lógica.
Neste particular, era extraordinariamente alemão – no sentido mais moderno da palavra”
(PM, p. 30).

[28] PM, p. 127.

[29] “Mein Kampf”, escrito por Adolf Hitler em 1924 durante sua prisão e publicado
em dois volumes: o “Die Nationalsozialistische Bewegung” em 1925 e o “Viereinhalb
Jahre des Kampfes gegen Lüge, Dummheit und Feigheit” em 1926. A luta por esse
“espaço vital” transparece, é claro, na intenção de uma expansão bélica e de um pan-
germanismo europeu, presente noutra passagem de “O processo Maurizius” em que, já
como Georg Warschauer, o personagem fala a Etzel Andergast: “Então, aparecia a
finalidade: a política revolucionária e criadora à qual me sentia destinado. A idéia de
uma Europa transformada, de uma unidade continental sob a hegemonia da Alemanha,
uma hegemonia germano-romana, entusiasmava-me. Oh! que sonhos! Sonhos loucos!”
(PM, p. 243).

[30] PM, p. 284. Ao contrário de Warschauer-Waremme, Ghisels nutre profundo


pessimismo com o futuro dos alemães, e nele entrevê uma certa inevitabilidade: “Não
temos ainda o povo, o povo que constitua o corpo da nação e, por conseqüência, o que
chamamos de democracia se reduz a uma coletividade amorfa que não se pode
organizar nem se elevar e que asfixia todo e qualquer idealismo. Talvez fosse necessário
um César. Mas, de onde viria ele? É preciso temer o caos que, só ele, o fará surgir.
Então, o que os melhores poderão fazer de melhor será comentar o terremoto” (PM, pp.
284-285). Como se percebe, as antecipações históricas são impressionantes, fruto de
uma mente privilegiada e de um escritor que efetivamente vivenciou e sentiu na
epiderme as preparações da hecatombe nazista.

[31] O Simbolismo foi corrente de grandes autores alemães: dos poetas Hugo von
Hofmannsthal, Stefan George e Rainer Maria Rilke, e dos romancistas Heinrich Mann e
Thomas Mann, que, como Stendhal, talharam na prosa a introspecção psicológica
(CARPEAUX, Otto Maria. “A literatura alemã”. São Paulo: Cultrix, 1963, p. 188).

[32] CARPEAUX, Otto Maria. “A literatura alemã”. São Paulo: Cultrix, 1963, p. 170.
Carpeaux, aludindo às principais obras de Nietzsche, ainda complementa: “Nesses

2091
livros criou Nietzsche uma nova língua alemã, para a prosa e para a poesia. Duas vezes,
a língua alemã tinha sido revolucionada e reformada: a primeira vez, por Lutero; e a
segunda vez, por Goethe e pela tradução de Shakespeare, de August Wilhelm Schlegel.
A terceira revolução é a de Nietzsche. E foi tão profunda que, de qualquer poesia,
romance, novela, drama ou até obra científica alemã dos séculos XIX e XX, o
conhecedor da língua pode logo diagnosticar depois de ter lido poucas linhas: foi escrita
antes de Nietzsche, ou então, foi escrita depois de Nietzsche. Foi uma revolução
lingüística total, à qual ninguém escapou nem quis escapar” (p. 173).

[33] Anatol Rosenfeld, falando sobre Nietzsche, afirma que “o radicalismo da sua
crítica cultural, o pessimismo niilista relativo à civilização européia (ligada ao
“otimismo heróico” do super-homem), a transvalorização dos valores, exerceram
enorme impacto sobre os movimentos em foco”, id est sobre o Impressionismo e o
Simbolismo literários (ROSENFELD, Anatol. “História da literatura e do teatro
alemães”. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 118).

[34] ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: “Texto / Contexto
I”. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 83. Para Rosenfeld, o Zeitgeist do romance
moderno é justamente esse: a relativização do tempo e do espaço, que se traduz ou no
foco à psicologia dos personagens (Marcel Proust, behaviorismo de Ernest Hemingway)
ou, então, num estilo seco, impessoal e desindividualizado (Albert Camus, Franz
Kafka). É, ao fim e ao cabo, a dissolução da perspectiva: “tanto se desfaz nos romances
em que o narrador submerge, por inteiro, na vida psíquica da sua personagem, como
naqueles em que se lança no rodopiar do mundo. Quer o mundo se dissolva na
consciência, quer a consciência no mundo, tragada pela vaga da realidade coletiva, em
ambos os casos o narrador se confessa incapaz ou desautorizado a manter-se na posição
distanciada e superior ao narrador “realista” que projeta um mundo de ilusão a partir da
sua posição privilegiada” (p. 96). Como já se viu, Jakob Wassermann parece dissolver o
mundo na consciência de seus personagens: cada qual o vê de sua posição e de acordo
com suas motivações contextuais.

[35] Essa é a definição dada mentalmente por Leonardo Maurizius, ironizando a defesa
que o barão Andergast acabara de fazer do sistema vigente (PM, p. 207).

[36] PM, p. 67.

[37] É o que relata ENGELMANN, Arthur et alii. “A history of continental civil


procedure” (trad. Robert Wyness Millar). New York: Rothman/Augustus M. Kelley,
1969, pp. 152-158. Também nesse sentido, CHIOVENDA, Giuseppe. “Istituzioni di
diritto processuale civile”. 3. ed. Napoli: Jovene, 1947, v. 1, p. 32, e OLIVEIRA, Carlos
Alberto Alvaro de. “Do formalismo no processo civil”. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,
pp. 156-157.

[38] BLOCH, Marc. “Apologie pour l’histoire, ou, métier d’historien” (Cahiers des
Annales). 2. ed. Paris: Armand Colin, 1952, p. 39.

[39] PM, p. 14.

[40] PM, p. 28.

2092
[41] PM, p. 30.

[42] E prossegue em mesmo trecho: “Sonhei uma noite que imensa multidão se jogava a
seus pés, suplicando para você voltar atrás em um julgamento; e você permanecia
imóvel, como uma pirâmide de pedra. Imaginar-se infalível, um juiz infalível, que
terrível aberração!” (PM, p, 332).

[43] Essas são palavras de WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno”
(trad. A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 494.
Conforme ressalta esse mesmo autor, não se pode confundir o “positivismo científico”
com outras espécies de positivismo: nem com o “positivismo legalista”, que identifica
no legislador o criador do direito, e nem com o “positivismo científico em geral”,
pertencente à filosofia de Comte (p. 493). De tez ainda mais distinta são as elaborações
de Hans Kelsen e Herbert Hart, que já por serem de outra época não encontram
semelhanças efetivamente contundentes com as que lhes precederam.

[44] “São elas, as matemáticas (…) que nos dão uma visão viva das leis naturais e que,
do mesmo modo como a coroa de uma cúpula junta e reúne tudo o que aparentemente se
exclui e se repele, podem conciliar as faculdades humanas as mais elevadas e as mais
contraditórias” (PM, p. 27).

[45] Afirma Karl Larenz que em Puchta é significativa a presença das concepções
talhadas séculos antes por Christian Wolff (LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do
direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 27). Como
bem resume Uberto Scarpelli, depois de analisar as obras de Thomas Hobbes,
Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau e Cesare Beccaria, “nell’orizzonte illuministico il
sillogismo giudiziario è indispensabile ai valori politici della libertà e dell’egualianza:
l’accettazione dello schema sillogistico non è il frutto di una riflessione a posteriori sul
ragionamento applicativo della legge, bensì la postulazione di una condizione necessaria
perché la legge venga applicata senza spazio dell’arbitrio dell’operatore” (SCARPELLI,
Uberto. Dalla legge al codice, dal codice ai principî. “Rivista di filosofia”. Bologna: Il
Munlino, 1987, v. 78, p. 5).

[46] GAVAZZI, Giacomo. Logica giuridica. “Novissimo Digesto Italiano”. 3. ed.


Torino: Editrice Torinese, 1957, v. 9, p. 1.062.

[47] PM, p. 114.

[48] A relação necessária que há entre sistema fechado e interpretação silogística para a
“jurisprudência dos conceitos” é descrita exemplarmente por Franz Wieacker na
seguinte passagem: “Uma dada ordem jurídica constitui um sistema fechado (i.e.
autônomo e coerente) de instituições e normas e, por isso, independente da realidade
social das relações da vida reguladas por essas instituições e normas. Admitido isto, é
em princípio possível decidir corretamente todas as situações jurídicas apenas por meio
de uma operação lógica que subsuma a situação real à valoração hipotética contida num
princípio geral de carácter dogmático (e implícito também nos conceitos científicos)”
(WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho
Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 494).

[49] PM, p. 214.

2093
[50] LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 31. Conforme lições de Franz Wieacker, “hoje, a
condenação do método “histórico-natural” impôs-se, por um lado, pela crítica da
jurisprudência dos interesses; por outro lado, pelos esforços do neo-kantismo no sentido
de uma separação pura entre a construção conceitual das ciências da natureza e das
ciências do espírito” (WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad.
A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 496, nota 14).

[51] JHERING, Rudolph von. “L’Esprit du droit romain” (trad. O. de Meulenaere). 3.


ed. Paris: [s.n.], 1886-1888, t. 4, pp. 308-309. Noutro trecho, o jurista assim se
pronuncia sobre a “jurisprudência dos conceitos”: “On semble avoir fait du droit une
arène à tous les fanatiques de la subutilité scolastique. L’éclat de la logique illumine
tout le droit romain, et éblouit quiconque s’en approche. L’oeil se trouble, et perd sa
puissance de perception, si l’on n’a soin de le reposer sur le spectacle rassérénant de la
vie. Au lieu de voir le monde réel, où règnent les puissances réelles de la vie, l’on ne
distingue plus que la fata morgana d’un monde soumis au sceptre de l’idée abstraite. Le
principe est le démiurge de ce monde: il a créé le monde du droit, il y règne
souverainement. Plus de forces réelles, vivantes, qui se meuvent dans le sein du droit; la
dialectique du principe s’est mise à leur place” (p. 209).

[52] JHERING, Rudolf von. “Law as means to an end” (trad. Isaac Husik). Boston: The
Boston Book Company, 1913, e em especial a p. LIV de seu prefácio, onde há uma
descrição geral da idéia da obra.

[53] LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 62.

[54] MARTINS-COSTA, Judith. “A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no


processo obrigacional”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 223, nota 179.

[55] PM, p. 414.

[56] PM, p. 331.

[57] PM, p. 207.

[58] Savigny escreveu, no principal trabalho da polêmica, que “solo cuando, merced a
un severo estudio, hayamos adquirido un más completo conocimiento y una mayor y
más aguda perspicacia histórica y política, será posible un juicio recto sobre los
materiales transmitidos hasta nosotros” (SAVIGNY, Friedrich Carl von. “La vocación
de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho” (trad. Adolfo G. Posada).
Buenos Aires: Atalaya, 1946, p. 132). Savigny não esclarece, porém, se é contrário à
codificação enquanto projeto ou se apenas e tão-somente a crê inapropriada para a sua
época. Autores como Norberto Bobbio acreditam que Savigny tinha uma “oposição de
princípio” à feitura de um código, pois a necessidade da legislação equivaleria a tempos
de decadência da sociedade (BOBBIO, Norberto. “O positivismo jurídico: lições de
filosofia do direito” (trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues). São
Paulo: Ícone, 2006, pp. 61-62).

2094
[59] A prioridade outorgada ao direito romano advém das idéias medievais de translatio
imperii e do direito romano enquanto “direito da paz” – dentro outras –, presentes
sobretudo na obra de Phillip Melanchton (1497-1560), mas a ela precedentes
(WHITMAN, James Q. “The legacy of Roman Law in the German Romantic Era:
historical vision and legal change”. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 4).
Foi, porém, na época de Melanchton que elas ganharam efetiva força, e nisso a criação
do Reichskammergericht (1495) parece possuir fundamental importância: na Suprema
Corte devia-se aplicar o direito romano sempre que inexistente o direito local (WOLFF,
Hans Julius. “Roman Law: an historical introduction”. Norman: University of
Oklahoma Press, [s.d.], p. 200).

[60] “In promoting the lawmaking claims of learned jurists, Savigny and his followers
were obliged to oppose more than just the claims of the Germanist-sponsored Volk.
They were also obliged to oppose claims of another class of lawyers: judges who might
be inclined to claim legal authority for precedent. It was very important for Savigny and
Puchta that the principal source of law not be prior court decisions but rather learned
essays and treatises. Thus they were fundamentally hostile to the judicial exercise of
power through the making of binding precedent. (…) Indeed, the Historical School’s
Juristenrecht was emphatically intended as a rule of scholars, not judges” (WHITMAN,
James Q. “The legacy of Roman Law in the German Romantic Era: historical vision and
legal change”. Princeton: Princeton University Press, 1990, pp. 129-130). O
Juristenrecht, segundo Alessandro Baratta, ganha seu lugar no sistema das fontes “al
mismo nivel que el derecho legislativo y consuetudinario, idea que desde entonces
permanecerá en el pensamiento jurídico alemán” (BARATTA, Alessandro. La
jurisprudencia y la Ciencia Jurídica como fuente del Derecho. In: “Las fuentes del
derecho: primeres jornadas jurídiques de Lleda (13 y 14 de mayo de 1983)”. Barcelona:
Ediciones de la Universitat de Barcelona, 1983, p. 48).

[61] METZGER, Ernest. Roman judges, case law, and principles of procedure. “Law
and history review” (separata), 2004, n. 22/2, pp. 17-18, e WHITMAN, James Q. “The
legacy of Roman Law in the German Romantic Era: historical vision and legal change”.
Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 130. Felizmente, as descobertas
arqueológicas posteriores desvelaram que também os romanos tinham por prática o uso
do precedente, mas longe, é claro, de que isso tenha o significado de um case law
(METZGER, Ernest. Roman judges, case law, and principles of procedure. “Law and
history review” (separata), 2004, n. 22/2, p. 11).

[62] Nesse sentido, afirma Karl Larenz que a “jurisprudência dos conceitos” talvez
jamais surgisse se os seguidores de Savigny tivessem levado a sério sua doutrina sobre a
interpretação, que previa uma constante superação, por via da ciência jurídica, do
desajuste havido entre intuição e forma abstrata (conceito) de cada regra (LARENZ,
Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1997, p. 14).

[63] BORGES, Jorge Luis. El inmortal. In: “El Aleph”. Buenos Aires: Emecé, 2005, p.
21.

[64] Especialmente sobre as Pandekten de Windscheid, Franz Wieacker ensina: “Elas


tornaram-se em curto espaço de tempo a mais importante autoridade prática jurídica.
Esta influência fora de série baseia-se no facto de, na falta de uma codificação, o

2095
manual científico constituir a última instância decisória da prática do direito comum”
(WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho
Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 510).

[65] PM, p. 282. Segundo Stephen H. Garrin, o direito do barão é rígido e mecânico tal
qual se apresenta em “O processo” (“Der Prozess”), de Franz Kafka (GARRIN, Stephen
H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p.
32). A diferença que se pode notar, contudo, é que enquanto Wassermann foca sua
crítica na inaptidão teórica do sistema pandectístico, Kafka parece expor as entranhas
apodrecidas do sistema judiciário de sua época.

[66] RIBEYRO, Julio Ramón. O pó do saber. In: “Só para fumantes: contos” (trad.
Laura Janina Hosiasson). São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 192.

[67] PM, p. 94.

[68] A analogia com a figura paterna é desenvolvida por Stephen H.Garrin (GARRIN,
Stephen H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang,
1979, p. 59), a partir de um ensaio escrito por Henry Miller em que Etzel Andergast é
caracterizado como um “Hitler embrionário”: “There is something monstrous about
Etzel Andergast: he is fascinatingly attractive and repellent at the same time. He stands
for the new type of youth which made possible the advent and sway of an Adolf Hitler.
He might even be regarded as an embryonic Hitler. He is “the murderer of the soul”, to
use the language of his victims” (MILLER, Henry. “Maurizius forever”. Waco: Motive,
1946, p. 11).

[69] PM, pp. 30-31.

[70] PM, p. 31.

[71] LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 64.

[72] São palavras de Karl Larenz: “Ao exortar o juiz a aplicar juízos de valor contidos
na lei com vista ao caso judicando, a Jurisprudência dos interesses – embora não
quebrasse verdadeiramente os limites do positivismo – teve uma actuação libertadora e
fecunda sobre uma geração de juristas educada num pensamento formalista e no estrito
positivismo legalista. (…) E isto em medida tanto maior quanto aconselhou idêntico
processo para o preenchimento das lacunas das leis, abrindo desta sorte ao juiz a
possibilidade de desenvolver o Direito não apenas na “fidelidade da lei”, mas de
harmonia com as exigências da vida” (LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do
direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 69-70).

[73] É como resume VIGO, Rodolfo Luis. “Interpretação jurídica: do modelo


juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas” (trad. Susana Elena Dalle
Mura; rev. Alfredo de J. Flores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 48.

[74] Anatol Rosenfeld, por exemplo, ressalta as modificações operadas no âmbito da


pintura por conta do fenômeno da “desrealização”, isto é, a pintura deixou de ser
mimética e passou a recusar a função de reproduzir ou copiar a realidade empírica. Isso

2096
ocasionou o desaparecimento do retrato e da perspectiva, e expressou-se na abstração de
diversos movimentos, como e.g. o cubismo, o expressionismo e o não-figurativismo.
Essas modificações se refletiram no teatro e no romance moderno, em que se
dissolveram as estruturas de tempo e de espaço tipicamente ordenadas, e passou-se a
valorizar ao extremo o monólogo interior dos personagens (ROSENFELD, Anatol.
Reflexões sobre o romance moderno. In: “Texto / Contexto I”. São Paulo: Perspectiva,
2006, pp. 75-86).

[75] “L’ingenua fede illuministica nel linguaggio sincero e semplice se ha abbandonato,


ma ci sta abbandonando anche la fede codicistica nel linguaggio aristotelicamente
articolato. Fra i due immortali personaggi di Lewis Carroll, Alice e Humpty-Dumpty, il
tempo sembra aver dato ragione a Humpy-Dumpty. Le parole esprimono ciò che,
parlanti o interpreti, volta a volta vogliamo: “bisogna vedere”, osserva Humpty-
Dumpty, “chi è che comanda… è tutto qua”” (SCARPELLI, Uberto. Dalla legge al
codice, dal codice ai principî. “Rivista di filosofia”. Bologna: Il Mulino, 1987, v. 78, p.
8).

[76] PM, p. 137.

[77] OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez (trad. Isabel
Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível no site:
http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008.

[78] Citando Hans Kelsen e Adolf J. Merkl, François Ost assim descreve o modelo
piramidal: “si se trata de apreciar el fundamento de validez de las normas, se ascenderá
de la norma inferior a la norma superior para llegar a la norma fundamental que habilita
a la autoridad suprema a crear Derecho válido; si se trata, en cambio, de prever la
creación de una nueva norma jurídica, se tomará el camino inverso, partiendo de esta
primera habilitación para recorrer seguidamente a los siguientes escalones de la
jerarquía normativa” (OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez
(trad. Isabel Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível
no site: http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008, p. 173).

[79] “Il metodo vi è immaginato come un docile attrezzo, adoperato dal giurista nello
studio delle norme. Un utensile, con il quale il soggetto “tratta” l’oggetto, cioè lo afferra
manipola classifica. Estraneo al soggetto ed all’oggetto, ma pur così decisivo che l’uso
di esso fa del soggetto un giurista e dell’oggetto una norma del sistema. Il metodo
giunge al passato, ci precede, costruito della tradizione e dall’autorità delle scuole, e
noi, dinanzi a qualsiasi norma, lo prendiamo ed applichiamo: e qualsiasi norma,
sottoposta al trattamento del metodo, si purifica ed entra nella dignità logica del diritto.
Come un detersivo chimico, che lavi tutte le macchie, il metodo sarebbe capace di pulire
le norme, di renderle nette e decorose, e infine di raccoglierle in qualche superiore
unità” (IRTI, Natalino. Nichilismo e metodo giuridico. “Rivista trimestrale di diritto e
procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, v. 56, pp. 1.159-1.260).

[80] BORGES, Jorge Luis. Funes, el memorioso. In: “Ficciones”. Buenos Aires: Emecé,
2005, pp. 151-165. No clássico conto de Borges, Funes é o personagem incapaz de
efetuar abstrações: cada coisa, cada pessoa e cada lugar eram, para ele, únicos e
incomparáveis. “Sospecho, sin embargo, que no era muy capaz de pensar. Pensar es

2097
olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había
sino detalles, casi inmediatos” (p. 165).

[81] IRTI, Natalino. Nichilismo e metodo giuridico. “Rivista trimestrale di diritto e


procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, v. 56, p. 1.161.

[82] OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez (trad. Isabel
Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível no site:
http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008, p. 180. Ainda aponta
Ost para “la incapacidad de los dos paradigmas para articular, de manera satisfactoria, el
hecho y el Derecho y, por otra parte – y esto no es ajeno a aquello –, de una forma de
obliteración de la vida jurídica real; el Derecho se disuelve, en última instancia, en los
lugares imaginarios de los que se considera procedente: vértice de la pirámide o
extremidade del embudo” (p. 178).

[83] MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um sistema em construção: as


cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. “Revista de Informação
Legislativa”. Brasília: [s.n.], 1998, n. 35, p. 6 (disponível em:
http://www.senado.gov.br; acesso em 1.º de julho de 2008). Essas margens de abertura
que o tecido legislativo deve apresentar estão dirigidas “allo scopo di rendere la
disposizione adattabile alle situazioni concrete e/o mantenerla attuale nonostante il
passare del tempo ed i mutamenti sociali”, e se transfiguram na adoção, por parte do
legislador, de técnicas legislativas “elastiche, flessibili e sfumate”, como e.g. os
conceitos-válvulas (Ventillbegriffe), os standards legais, as cláusulas gerais
(Generalklauseln), os conceitos de discricionariedade (Ermessenbegriffe) e os conceitos
jurídicos indeterminados (ubestimmten Rechtsbegriffe), conforme aponta Nicola Picardì
(PICARDÌ, Nicola. La vocazione del nostro tempo per la giurisdizione. “Rivista
trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2004, n. 1, p. 46). O uso da
técnica das cláusulas gerais – é importante ressaltar – apresenta aspectos negativos,
como bem aponta Franz Wieacker (a partir da experiência alemã com o BGB), e que se
constitui na tentativa de “fuga para as cláusulas gerais”. Segundo o autor, “em épocas de
predomínio da injustiça elas favorecem as pressões políticas e ideológicas sobre a
jurisprudência e o oportunismo político”, além do que, em condições sociais normais,
oportunizam ao juiz “fazer valer a parcialidade, as valorações pessoais, o arrebatamento
jusnaturalista ou tendências moralizantes do mesmo gênero, contra a letra e contra o
espírito da ordem jurídica”, e ao juiz acabam atribuindo, por vezes, “uma
responsabilidade social que não é a do seu ofício” (WIEACKER, Franz. “História do
direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1993, pp. 546-547). O desafio, portanto, é conjugar abertura sistemática e
controle do juiz, de maneira a oxigenar o ordenamento com desejáveis cargas de
segurança jurídica.

[84] É o que admite, por exemplo, Sergio Chiarloni, pregando uma renovação evolutiva
da legislação pela via judicial apenas depois de bem firmada uma “consuetudine
giudiziaria”, id est a passagem de um certo lapso de tempo conjugada à consolidação de
uma massa crítica de decisões analogamente orientadas (CHIARLONI, Sergio. Ruolo
della giurisprudenza e attività creative di nuovo diritto. “Rivista trimestrale di diritto e
procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, n. 1, pp. 3-5).

2098
[85] Como a atividade legislativa acaba sendo vista como uma ars combinatoria,
“l’aumento del numero delle regole comporta, quindi, uno sviluppo esponenziale delle
possibilità di combinazione: più regole vi sono, più si verificano possibilità di
antinomie, di contraddizioni interne dell’ordinamento” (PICARDÌ, Nicola. La
vocazione del nostro tempo per la giurisdizione. “Rivista trimestrale di diritto e
procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2004, n. 1, pp. 44-45).

[86] PM, p. 117.

[87] GRAU, Eros Roberto. “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do


direito”. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27.

[88] OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez (trad. Isabel
Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível no site:
http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008, p. 183.

[89] GRAU, Eros Roberto. “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do


direito”. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 26-27. Eros Roberto Grau, citando
Tullio Ascarelli, escreveu que o intérprete autêntico (o juiz) “completa o trabalho do
autor do texto normativo; a finalização desse trabalho, pelo intérprete autêntico, é
necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na produção de
um novo texto sobre aquele primeiro texto. (…) Tem de ser assim: porque a
interpretação é transformada de uma expressão (o texto) em outra (a norma), sustento
que o juiz “produz” o direito” (pp. 60-61). Vê-se, portanto, que o juiz está
necessariamente vinculado ao texto legal: o legislador fornece o esboço de solução e o
juiz, sopesando fatos e demais vínculos jurídicos (como, por exemplo, a consideração
séria e comprometida do trabalho doutrinário), finaliza a obra de arte jurisdicional.

[90] PM, p. 285.

[91] PM, p. 286.

[92] OTTO, Walter Friedrich. “Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do
espírito grego” (trad. Ordep Serra). São Paulo: Odysseus, 2005, p. 110.

[93] Apud OTTO, Walter Friedrich. “Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão
do espírito grego” (trad. Ordep Serra). São Paulo: Odysseus, 2005, pp. 96-97.

[94] MÜLLER, Friedrich. Introdução: o novo paradigma do direito. In: “O novo


paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito” (trad.
Peter Naumann et alii). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 10-11.

[95] MICHELON JR., Cláudio Fortunato. “Aceitação e objetividade: uma comparação


entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento
do Direito”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 171.

[96] FINNIS, John. “Natural law and natural rights”. Oxford: Clarendon Press, 2001, p.
18, em que o autor adianta, num breve resumo, os pilares em que uma teoria do direito
natural deve se apoiar.

2099
[97] Essa é a expressão adotada por Miguel Reale, que, diferentemente da visão
jusnaturalista e com influências explícitas de Kant e Husserl, enxerga o problema dos
valores enquanto imerso na história e concentrado no sujeito: “o homem é o valor-fonte
de todos os valores porque somente ele é originariamente um ente capaz de tomar
consciência de sua própria valia, da valia de sua subjetividade, não em virtude de uma
revelação ou de uma iluminação súbita de ordem intuitiva, mas sim mediante e através
da experiência histórica em comunhão com os demais homens” (REALE, Miguel.
Invariantes axiológicas. In: “Paradigmas da cultura contemporânea”. São Paulo:
Saraiva, 1996, p. 107). A questão axiológica é digna de menção por assumir papel
inarredável no processo interpretativo/aplicativo do juiz.

[98] PM, p. 220.

[99] Na seara pátria são exemplares as elaborações de Danilo Knijnik, baseadas na


prática do direito comparado e em especial dos modelos norte-americanos (KNIJNIK,
Danilo. “A prova nos juízos cível, penal e tributário”. Rio de Janeiro: Forense, 2007;
KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu
possível controle. “Revista Forense”. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 303).

[100] KNIJNIK, Danilo. “A prova nos juízos cível, penal e tributário”. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p. 19. Como afirma o autor, “essa “objetivização” está dirigida à razão
prática, à lógica do discurso e à teoria da argumentação”, de maneira a transferir para a
avaliação da prova critérios de racionalidade e controle na valoração das provas (p. 17).

[101] Recomenda-se a ampla utilização da ciência no afastamento das máximas de


experiências, e quando impossível, deve-se observar o contraditório e adiantar às partes
as máximas de que o juiz se servirá – “controle de validade intersubjetiva” (TARUFFO,
Michele. Senso comune, esperienza e scienza nel ragionamento del giudice. “Rivista
trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2001, n. 3, p.686).

[102] TARUFFO, Michele. Legalità e giustificazione della creazione giudiziaria del


diritto. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2001, n. 1,
pp. 20-29.

[103] Chaïm Perelman procura resgatar as idéias da “retórica aristotélica”, que se


configura na “arte de procurar, em qualquer situação, os meios de persuasão
disponíveis. Prolongando e desenvolvendo a definição de Aristóteles, diremos que seu
objeto é o estudo das técnicas que visam a provocar ou aumentar a adesão das mentes
às teses apresentadas a seu assentimento” (PERELMAN, Chaïm. “Lógica jurídica:
nova retórica” (trad. Vergínia K. Pupi). São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 141). Há
que se colher de Perelman o que tem de proveitoso, haja vista que seu reducionismo (de
todo o processo lógico à argumentação) é criticável. Essa sequer era a intenção de
Aristóteles, que tinha na dialética tão-somente a primeira fase da formulação da lógica
(representada pelo livro “Retórica”), seguida da organização sistemática das regras
argumentativas (“Tópicos”) e, por fim, da teoria do raciocínio formal em geral
(“Interpretação” e “Analíticos”). A dialética, para o filósofo estagirita, só prepara a
lógica: “faltam-lhe, no entanto, ainda duas coisas que a distinguem da lógica. Primeiro e
sobretudo, o seu saber lógico continua, em larga medida, em estado implícito. É uma
arte, uma técnica. Dá regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular
sistematicamente as leis que as justificam. Além disso, o seu caráter agonístico tem

2100
como efeito, não apenas impedir-lhe o acesso à independência científica, mas
concentrar o seu interesse na argumentação de carácter erístico ou refutativo”
(BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. “História da lógica” (trad. António Pinto
Ribeiro e Pedro Elói Duarte). Lisboa: Edições 70, 2001, pp. 19-21).

[104] VIGO, Rodolfo Luis. “Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista


do século XIX às novas perspectivas” (trad. Susana Elena Dalle Mura; rev. Alfredo de
J. Flores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 102-122.

[105] GRAU, Eros Roberto. “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do


direito”. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 26-27.

[106] Como ensina Giacomo Gavazzi, só se poderia dizer que o direito é ilógico –
admitindo-se a existência de uma ciência jurídica – se concebido como decisionismo
(GAVAZZI, Giacomo. Logica giuridica. “Novissimo Digesto Italiano”. 3. ed. Torino:
Editrice Torinese, 1957, v. 9, p. 1.063) – e isso, como já visto, não condiz com o
momento atual das teorias gerais do direito. Bem refere Michele Taruffo que mesmo
tendo sido abandonada a figura do juiz como máquina de silogismos, sobreviveu para os
tempos hodiernos o valor da racionalidade da decisão judicial enquanto garantia de
justiça (TARUFFO, Michele. Legalità e giustificazione della creazione giudiziaria del
diritto. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2001, n. 1, p.
20).

[107] BARATTA, Alessandro. La jurisprudencia y la Ciencia Jurídica como fuente del


Derecho. In: “Las fuentes del derecho: primeres jornadas jurídiques de Lleda (13 y 14
de mayo de 1983)”. Barcelona: Ediciones de la Universitat de Barcelona, 1983, p. 51.

[108] Como afirma Giuseppe Capograssi, “la scienza è la storia continuamente presente
e viva in ogni momento dell’esperienza giuridica: è storia non in quanto scritta, esteriore
all’esperienza, ma la storia in quanto vita, presente alla vita, la storia appunto come
tradizione che sorregge spiega dà un significato unitario alle continue forme nuove nelle
quali la vita del diritto si va realizzando” (CAPOGRASSI, Giuseppe. “Il problema della
scienza del diritto”. Milano: Giuffrè, 1962, pp. 222-223).

[109] GHESTIN, Jacques. Les données positives du droit. “Revue trimestrielle de droit
civil”. Paris: Dalloz, 2002, jan./mar., pp. 22-23.

[110] O ofício do pretor estava embasado no imperium conferido pelo Populus (já que
eleito por assembléia popular) e na auctoritas partilhada pelos jurisconsultos. Conforme
resume Henri Levy-Bruhl, tratando da participação dos juristas na elaboração da
fórmula, “rien ne permet de supposer que le Préteur, conscient de son infériorité
technique, n’ait suivi docilement les conseils du Prudent consulté” (LEVY-BRUHL,
Henri. Prudent et préteur. “Revue historique du droit français et étranger”. Paris:
Recueil Sirey, 1926, ano 5, p. 36).

[111] É o que confirma Aulo-Gélio em trecho das Noctes Atticae (XIV, 2).

[112] Há até mesmo um precedente jurisprudencial que pretende afirmar a “unidade


científica” do Superior Tribunal de Justiça em rejeição à opinião da doutrina (STJ, 1.ª
Seção, Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n.º

2101
279.889-AL, Rel. Min. Francisco Falcão, Rel. para acórdão Min. Humberto Gomes de
Barros, julgado em 14 de agosto de 2002). Afirma o Ministro Humberto Gomes de
Barros: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do
Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. (…) Precisamos
estabelecer nossa autonomia intelectual para que este Tribunal seja respeitado. (…) Esse
é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É
fundamental expressar o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de
ninguém”.

[113] Clóvis do Couto e Silva bem resume esse entendimento na seara pátria quando
analisa a idéia de “Código central” e indica claramente que o “juiz-legislador do caso
concreto” só atua por via dos complementos indicados pela doutrina: “O pensamento
que norteou a comissão que elaborou o Projeto do CC brasileiro foi o de realizar um
Código central, no sentido que lhe deu Arthur Steinwenter, sem a pretensão de nele
incluir a totalidade das leis em vigor no país. A importância está em dotar a sociedade
de uma técnica legislativa e jurídica que possua uma unidade valorativa e conceitual, ao
mesmo tempo em que infunda nas leis especiais essas virtudes, permitindo à doutrina
poder integrá-las num sistema, entendida, entretanto, essa noção de um modo aberto”
(COUTO E SILVA, Clóvis. O direito civil em perspectiva histórica e visão de futuro.
“Ajuris”. Porto Alegre: Ajuris, 1987, jul., pp. 148-149). Conforme indica Pontes de
Miranda, a tradição de recorrer subsidiariamente à opinião dos jurisconsultos é prática
que remonta às Ordenações, e que só foi afastada com o advento da “Lei da Boa Razão”
(18 de agosto de 1769) – e que sofreu, diga-se en passant, duras críticas de juristas da
época, como e.g. José Homem Correa Telles (PONTES DE MIRANDA, F. C. “Fontes e
evolução do direito civil brasileiro”. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, pp. 39-46).

[114] PM, p. 164.

[115] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Consideração do poema. In: “A rosa do


povo”. São Paulo: Record, 1999, p. 9.

[116] A metáfora da “concha do marisco abandonada” é criação de Walther Rathenau,


reafirmada para o direito por Judith Martins-Costa (MARTINS-COSTA, Judith. Os
avatares do Abuso do direito e o rumo indicado pela Boa-Fé. In: NICOLAU JÚNIOR,
Mario (org.). “Novos direitos”. Curitiba: Juruá, 2007, p. 193).

[117] IRTI, Natalino. Nichilismo e metodo giuridico. “Rivista trimestrale di diritto e


procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, v. 56, p. 1.162.

[118] PM, p. 357.

[119] Como afirma Gary Minda, todas as linhas de estudo que procuram conexões entre
direito e literatura parecem ter um arcabouço comum: a recuperação do elemento
humano para o direito. São suas palavras: “The politics of this movement seems to be
aimed at bringing out the human element missing in law” (MINDA, Gary. “Postmodern
legal movements: law and jurisprudence at century’s end”. New York: New York
University Press, 1995, p. 158).

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