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“Racionalidade” é o conceito utilizado por Max Weber para determinar a forma da atividade
econômica capitalista, do direito privado burguês e da dominação burocrática.
i)
Marcuse compreende que a “racionalização” (cuja origem Weber remonta ao agir racional-com-
respeito-a-fins do empresário capitalista, do trabalhador industrial, da pessoa jurídica abstrata e
do funcionário administrativo) possui implicações materiais – “racionalização” não é mera
racionalidade, mas uma forma de dominação política.
A conclusão da crítica de Marcuse a Weber indica que é interior à própria técnica fins e
interesses determinados, pois a compreende como um projeto histórico-social, cujo conteúdo é a
dominação do homem e das coisas. A essa dominação material corresponde a forma da razão
técnica (conclusão que data de 1965).
Em 1956 Marcuse encara a questão em outro contexto, a partir do qual o seu diagnóstico aponta,
nas sociedades industrialmente avançadas, que a dominação tende a perder seu caráter
explorador e opressivo, tornando-se “racional”, muito embora a dominação política permaneça.
A racionalidade da dominação encontra dois medidores que remetem a um mesmo fundo
comum: 1) o progresso ou crescimento das forças produtivas, que passa a legitimar o sistema
como um todo (esse crescimento ligado, bem entendido, à técnica e à ciência); 2) esse mesmo
crescimento, potencialmente considerado, demonstra a irracionalidade da continuidade das
privações e ônus impostos aos indivíduos.
A racionalização aparece, desse modo, em suas duas distintas faces: não apenas como padrão de
crítica a partir do qual “a repressão objetivamente supérflua das relações de produção
historicamente caducas pode ser desmascarada” (p. 315), mas também como “padrão
apologético” por meio do qual essas mesmas relações podem ser legitimadas dentro de um
quadro institucional funcional, padrão que passa a ser corretivo no interior do sistema. Sob o
nível de desenvolvimento técnico-científico as forças produtivas, em sua relação com as
relações de produção, ao invés de fundamento de crítica, passam a fundamento de legitimação.
Isso, para Marcuse, é uma novidade na história mundial.
ii)
Habermas diz que a superação da ciência capitalista em Marcuse aponta para a promessa de
uma natureza decaída como nova ciência. O que Marcuse tem em vista é uma ciência cuja
metodologia e princípios sejam novos, não mais submissos ao agir instrumental, mas sim a uma
ação que liberasse os potenciais da natureza, através do “zelo” e “carinho” (p. 317). Habermas
argumenta que somente é possível concluir que a ciência moderna é um projeto particularmente
histórico se for possível mostrar que outro projeto de ciência é possível (o que, por sua vez,
englobaria uma nova técnica). É justamente disso que Habermas duvida.
Com Arnold Gehlen, Habermas pensa a técnica como objetivação progressiva do agir racional-
com-respeito-a-fins. O modelo é o organismo humano, sobre o qual o desenvolvimento técnico
incidiria no sentido da substituição das ações elementares do agir racional-com-respeito-a-fins
por meios técnicos. A substituição na história foi progressiva – mãos e pernas (movimento),
corpo humano (produção de energia), olhos, ouvidos e pele (sensorial) e, por fim, cérebro
(funções do centro de controle).
Habermas não nega, porém, uma atitude diferente do homem frente à natureza – não mais tratá-
la como mero objeto de manipulação, mas como um sujeito de interação, dando subjetividade
aos seus componentes –, embora pense que isso ocorreria apenas quando os homens
mutuamente se tratassem assim. Importa notar, no entanto, que de uma atitude nova frente a
natureza não se deriva uma nova técnica – justo por residir na natureza humana a estrutura que
implica no trabalho.
Habermas desloca a questão para um campo diverso do agir – e não para uma nova técnica. Não
se trata de uma nova ciência ou técnica, mas de compreender essa questão como um
desenvolvimento da estrutura do trabalho, em oposição à linguagem. Portanto, trata-se de se
virar a atenção a uma atitude fundada na linguagem.
Habermas mostra que há uma ambigüidade em Marcuse no que diz respeito a consideração da
técnica como projeto humano ou como um projeto historicamente superável. A mudança, em
um caso, poderia situar-se apenas ao nível do quadro institucional cujos valores orientam a
técnica, e não a própria racionalidade dela.
Habermas, desse modo, desconfia do retorno de Marcuse à concepção mais ortodoxa da relação
entre forças produtivas e relações de produção como uma resposta legítima à questão; também
rejeita a historicização da técnica – o modelo do pecado original e o modelo da inocência.
Em que pese a rejeição das respostas, Habermas pensa que Marcuse formulou corretamente a
questão:
Cabe compreender, portanto, a maneira pela qual a técnica expandiu-se a ponto de projetar um
“mundo do viver” (idem).
iii)
Por “agir comunicativo” (ou interação) Habermas entende uma interação mediatizada
simbolicamente, regida por normas que definem expectativas de comportamento recíprocas, que
devem ser reconhecidas e compreendidas por dois agentes e cuja validade é obrigatória. Ao
contrário do agir racional-com-respeito-a-fins, cuja verdade das proposições depende de serem
empiricamente verdadeiras ou analiticamente corretas, fundadas, portanto, no sucesso, as
normas sociais fundam-se na intersubjetividade e são asseguradas pelo reconhecimento
universal das intenções. A interiorização das normas dá origem à disciplina de estruturas de
personalidades, ao passo que o agir racional-com-respeito-a-fins dá origem a disciplina
de habilidades.
Essa distinção é o que permite classificar os sistemas sociais sob o critério de predominância do
agir racional-com-respeito-a-fins ou a interação. O quadro institucional de uma sociedade, por
exemplo, consiste em normas que guiam as interações verbais, mas há o sistema econômico e o
aparato de Estado que se guiam, sobretudo, por proposições sobre ações racionais-com-respeito-
a-fins. Subsistemas de interação são família a parentesco, por exemplo.
iv)
As culturas avançadas, por sua vez, estabelecem-se sobre o fundamento de uma técnica
relativamente desenvolvida e sobre uma divisão do trabalho social. Isso põe o problema da
superprodução que, por conseguinte, põe o problema de como dividir desigualmente,
mas legitimamente, a riqueza segundo critérios que não se sustentam através do parentesco.
Habermas nota que “o esquema estável” (p. 323) de um modo de produção pré-capitalista e de
uma técnica e ciência pré-moderna possuem uma relação com o quadro institucional “típica”: os
subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins, embora em progresso, ainda não puseram em
xeque a autoridade das tradições culturais que legitimam a dominação – em outras palavras, não
há ainda racionalização. As “sociedades tradicionais” são aquelas cujos subsistemas de agir
racional-com-respeito-a-fins é contido nos limites da legitimação das tradições culturais. Marx e
Schumpeter, na interpretação habermasiana, compreendem o capitalismo como um mecanismo
que garante a propagação permanente dos subsistemas de agir racional-com-respeito-a-fins, o
que abala o quadro institucional quando seu fundamento é a tradição cultural. O capitalismo,
durante a história mundial, chegou a institucionalizar o crescimento auto-regulado, mas foi
capaz de se livrar de todo quadro institucional ao valorizar o capital de forma puramente
privada.
De baixo para cima é uma pressão adaptativa permanente advinda do modo de produção,
através da troca e da empresa capitalista. De cima para baixo é a substituição das antigas
legitimações culturais que agora cedem lugar a éticas e credos subjetivos.
Cabe ainda notar que as legitimações de novo tipo surgem em substituição das tradicionais e
pretendem possuir um caráter científico. Mas, na medida em que passam a encobrir relações de
violência tornam-se ideologias. Por essa razão é que só há ideologias burguesas – e não pré-
burguesas.
v)
Habermas, nesse sentido, nota dois novos fatos no capitalismo atual: 1) a crescente intervenção
do Estado na economia e 2) uma cada vez maior interdependência entre pesquisa e técnica, cujo
resultado é transformar a ciência na principal força produtiva. É a partir disso que se dá a
ressalva de Habermas quanto às condições de aplicabilidade da economia política de Marx.
Habermas, então, endossa a tese de Marcuse segundo a qual a técnica e a ciência passam a
legitimar a dominação.
Quanto a tese 1, devido ao fato do intervencionismo estatal, não é mais possível continuar a
aplicar a crítica da economia política na medida em que o Estado não é mais simplesmente uma
“superestrutura”. O Estado passa a regular a sociedade, o que acaba por implodir a ideologia da
troca justa. E a crítica da economia política, enquanto uma crítica da ideologia, cai por terra.
Isso implica em dizer que o sistema de dominação não pode mais ser criticado imediatamente a
partir das relações de produção.
A dominação política, desse modo, exige outra espécie de legitimação. A legitimação pré-
burguesa é insustentável em razão do enfraquecimento das tradições. Habermas fala que no
lugar da ideologia da troca livre é posto um programa de substitutivos, cujo objetivo é
compensar as disfunções da troca. O sistema continua com o momento da ideologia burguesa do
rendimento, mas a desloca do mercado para o sistema escolar, além disso, garante um mínimo
de bem-estar social, segurança no trabalho e estabilidade dos vencimentos. Esse modelo,
embora restrinja as instituições de direito privado, assegura a valorização do capital e vincula a
si a hegemonia sobre as massas.
Nesse sentido, a política assume um caráter negativo, cujo objetivo é corrigir disfunções do
próprio sistema. A política não serve à realização de objetivos práticos, mas apenas à solução de
questões técnicas. A política de tipo antigo legitimava-se na contextura da interação – Habermas
diz que na sociedade burguesa também –, mas o programa de substitutivos inverte essa lógica,
excluindo questões genuinamente práticas por técnicas. Ele continua:
A solução de tarefas técnicas não depende da discussão pública. Discussões públicas poderiam,
antes, problematizar as condições de contorno do sistema, dentro das quais as tarefas da
atividade do Estado se apresentam como técnicas. A nova política de intervencionismo
do Estado exige, por isso, uma despolitização da massa da população (p. 330).
Resta ainda um ponto aparentemente cego do programa de substitutivos: como fazer que a
despolitização das massas seja plausível a elas próprias? Habermas cita Marcuse em sua
possível resposta: “fazendo com que técnica e ciência assumam também o papel de uma
ideologia” (idem).
vi)
vii)
O conflito entre as classes é atenuado por uma política de indenizações do Estado. Habermas,
no entanto, pondera: “Isto não significa superação, mas latência da oposição entre as classes”
(p. 334). O conflito continua na periferia do sistema, em setores sociais que não são explorados
(o sistema não vive de seu trabalho), mas privados de direitos – o que implica na diferença entre
formas de resistência: é impossível uma recusa de cooperação (uma greve, por exemplo), mas
sim apenas protestos sociais que acabam por ganhar a forma de um apelo.
viii)
Se forem aceitas as restrições aos conceitos de luta de classes e ideologia, cabe uma
reformulação mais geral no materialismo histórico, que começaria por recolocar a dualidade
entre relações de produção e forças produtivas em um nível mais abstrato; substituir esses
conceitos pelos deinteração e trabalho.
Habermas diz que o objetivo de Marx era transformar a adaptação passiva em ativa, submetendo
ao controle a mudança estrutural da sociedade. Embora não Marx, Habermas argumenta que
essa adaptação ativa foi pensada – tanto pelo planejamento capitalista quanto pelo socialismo
burocrático – através do modelo de agir racional-com-respeito-a-fins, e não na contextura da
interação. Isso leva à duplicidade do conceito de racionalização. Além do conceito já visto,
Habermas pensa em uma racionalização do quadro institucional, o que o faz apostar na
linguagem para tanto:
ix)
Por fim, Habermas tenta identificar o deslocamento da zona de conflitos capaz de fazer frente à
legitimação do capitalismo tardio. Ele encontra potencial de protesto nos estudantes
secundaristas e universitários.
Habermas faz três considerações a respeito desse grupo social: 1) os estudantes são
economicamente privilegiados, sua atuação política não diz respeito a um incremento das
compensações sociais; 2) A proposta de legitimação do sistema encontra resistência desse setor
por razões várias. Além de estarem relativamente imunes ao sistema de compensação, os
estudantes provêm da área de ciências sociais e filológico-históricas, de modo que desconfiam,
de partida, de toda ideologia tecnocrática; 3) A educação desses jovens se deu em meios
liberais, seja na família ou mesmo nas subculturas que participaram. Essa educação choca-se
com a forma de vida conservativa da economia e proporciona um questionamento das
alternativas postas pelo próprio sistema. Diz Habermas que o protesto dos estudantes não se
dirige a mais compensações, mas sim contra a própria ideia de compensação.
É sob essa base que Habermas, sem fazer um prognóstico peremptório, aposta na ação política
dos estudantes para a repolitização da sociedade e o questionamento da legitimação do
capitalismo tardio.
A obra trata de dois importantes autores da Filosofia Política contemporânea – Karl Marx e
Jürgen Habermas – para mostrar como a noção de emancipação deixou de estar atrelada à
sociedade do trabalho e ao socialismo para ser vinculada a lutas por direitos nos marcos das
democracias atuais. Se o conceito de revolução é fortemente empregado pelo movimento
operário no século XIX, os movimentos sociais posteriores à década de 1960 deixam de ser
definidos pelo conceito de classe social e evidenciam uma pluralidade de formas de vida e de
lutas políticas. O uso público da razão, a deliberação na esfera pública e a conquista de direitos
de cidadania passam a ser elementos centrais para a compreensão de emancipação. Para o
autor, não há uma escolha histórica pela reforma em detrimento da revolução – é a própria
oposição entre reforma e revolução que perde seu sentido nos debates políticos das
democracias contemporâneas.