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Paulo C. A. Raboni
São Paulo
2013
Solução de problemas experimentais em aulas de ciências nos anos iniciais do
Ensino Fundamental e o uso da linguagem cotidiana na construção
do conhecimento científico
Resumo: Na presente pesquisa investigamos o uso da linguagem por alunos dos anos
iniciais do Ensino Fundamental durante a realização de atividades práticas no contexto das
Seqüências de Ensino por Investigação (SEI). Nossas análises são fundamentadas na
Teoria da Enunciação, de Mikhail Bakhtin. Partimos do fato dos alunos possuirem um
vasto repertório de palavras cujos sentidos são permanentemente construídos em situações
concretas da vida cotidiana, e que usam fluentemente essas palavras, com sucesso, para
comunicar suas idéias em situações igualmente concretas. A articulação dessas palavras e a
referência que fazem aos fenômenos observados estão na base do conhecimento que o
aluno traz da vida cotidiana. Conhecer e explorar essa capacidade de expressão e
argumentação dos alunos parece-nos ser não apenas uma alternativa para o ensino de
ciências, mas uma condição para a adequada valorização dos conhecimentos prévios e para
a superação dos mesmos.
Palavras-chave: sequências de ensino por investigação, ensino de ciências, argumentação,
atividades práticas, séries iniciais.
Minhas atividades tiveram início no mês de agosto de 2012, ainda sem vínculo
formal com a Faculdade de Educação da USP, com a participação em algumas reuniões do
LaPEF e conversas com a supervisora, profa. Dra. Anna Maria Pessoa de Carvalho. Nesses
primeiros contatos foram estabelecidos pontos gerais do projeto e negociados os acessos às
aulas gravadas pelo grupo em projetos já desenvolvidos e outros em desenvolvimento.
Foram realizadas oito viagens com participação nas reuniões de grupo, entre
março e junho de 2013. No mês de abril, além da reunião do grupo, participei do 3º
Simpósio de Pós-Doutorado da FEUSP, nos dias 15 e 16.
1 As viagens e reuniões quinzenais foram o máximo permitido pela condição de não bolsista. Cabe
uma pequena explicação sobre a não existência de financiamento: a FAPESP só concede bolsa de pós-
doutorado para candidatos cujo doutorado não tenha sido concluído há mais de 7 anos; quanto ao CNPq, o
encaminhamento da documentação necessária não foi possível dentro do prazo determinado (setembro de
2012) porque ainda não tinha da minha instituição de origem (UNESP) as condições exigidas, a saber, o
afastamento integral.
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Os aspectos puramente quantitativos são aqui de pouca relevância, mas podem
dar uma idéia da dimensão do trabalho realizado. Foram lidos todos os livros e artigos
publicados pelas coordenadoras do LaPEF nos últimos anos, sobre “alfabetização
científica” e “seqüências de ensino por investigação”, bem como artigos em língua inglesa
discutidos pelo grupo durante o período de realização da pesquisa, dos quais foram feitas
traduções para fins didáticos.
Apresentação
O que deve ser aprendido nas aulas de ciências são, tanto conteúdos de ciências
quanto as formas de se fazer ciência (CARVALHO et al, 2011). Nenhum aprendizado
ocorre no vazio, desprovido de um conteúdo, e no caso das ciências os conteúdos devem
ser aqueles que permitam compreender o mundo, portanto extraídos do mundo, e
preferencialmente do mundo dos estudantes. São esses os conteúdos que fazem mais
sentido ou que carecem de sentido para os alunos, e que, de uma forma ou de outra,
precisam ser tratados. Não há aí nenhuma contradição a ser superada. Coincidem
necessidades e interesses dos estudantes e conhecimentos essenciais das ciências e suas
aplicações na construção e interpretação do mundo. Contradições existem entre essas duas
demandas verdadeiras e urgentes e o currículo tradicional, abstrato e formal, que não
permite nenhuma compreensão do mundo e que está inflado com detalhes da ciência de
pouca relevância científica. Somente um currículo degenerado como os de tradição
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enciclopédica e abstrata para separar o que originalmente está ligado no homem: a
curiosidade e o interesse quase naturais e as necessidades formativas e humanizadoras para
o estar no mundo de forma efetiva e consciente (GOODSON, 2007)
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ponto de aproximação entre a atividade científica e a aprendizagem de ciências. O
conhecimento, seja em sua produção, seja em seu aprendizado, começa com um problema
(BACHELARD, 1996; ILYENKOV, 2007).
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Palavras de uso cotidiano e conhecimento científico
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Não há nenhuma garantia de que houve construção de conhecimento científico
apenas pelo uso de um termo do jargão científico. Por exemplo, afirmar que as coisas caem
por causa da gravidade, diz muito pouco sobre a compreensão do fenômeno, se o termo
“gravidade” não fizer parte de uma rede conceitual que lhe confira significado. Analisando
o mesmo fenômeno de queda, alguém que consegue perceber que, de quanto mais alto cai
um objeto maior será a “força” com que bate no chão, diz muito mais e demonstrou maior
compreensão sobre o fenômeno. Mesmo que o emprego de uma ou outra palavra seja feito
sem o rigor científico, o fato de usar uma palavra para designar um objeto indica que
houve um destaque do objeto de uma realidade ainda disforme, cujos elementos e suas
relações começam a fazer outro e novo sentido (LEFEBVRE, 1995). Do ponto de vista
científico, uma variável começou a ser identificada.
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Em geral muito tempo das aulas de ciências é utilizado para o ensino do
vocabulário correto, do ponto de vista da ciência, e a ênfase no domínio das definições.
Apesar de importante, mesmo que plenamente atingido, é um objetivo muito modesto para
a educação formal quando comparadas às necessidades atualmente postas: aprendizado de
conteúdos, procedimentos e atitudes, resumidamente. Muitas vezes nos preocupamos
excessivamente com o emprego da palavra correta pelos alunos, e pouco valorizamos as
conexões construídas por eles pelo uso das palavras que conhecem.
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pensamento, através da palavra, destaca elementos de um todo ainda disforme e sem
ordem, para organizá-lo segundo as estruturas da linguagem, nas quais as palavras
encontram sentidos. (LEFEBVRE, 1995).
Quando um aluno atribui uma palavra de uso comum, por exemplo “foi mais
longe porque pegou mais força”, ao se referir a um movimento retardado de um carrinho
ou uma bola, embora empregue “força” com sentido diferente daquele fisicamente correto,
indica que houve a percepção de uma variável importante. Em outras palavras, uma
palavra dirigida a um fenômeno, mesmo quando de forma incorreta, representa um
movimento de pensamento que destaca um detalhe do todo, que isola um elemento de uma
totalidade em processo de compreensão.
Esse ciclo de atividades forma um padrão sempre presente nas SEI. Porém
muitas delas requerem vários ciclos. São seqüências de atividades dentro de uma grande
seqüência que dá sentido ao conhecimento desenvolvido.
Ou ainda
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Como já amplamente demonstrado, o desenvolvimento das pesquisas nas
últimas décadas trouxe para a discussão uma diversidade de esferas presentes e que devem
ser consideradas no planejamento e no desenvolvimento das aulas de ciências. Para citar
alguns exemplos, as já mencionadas questões relativas à linguagem, o movimento CTS
(Ciência, Tecnologia e Sociedade), a ampliação do CTS pela incorporação das questões
ambientais (CTSA), o programa de ensino por mudança conceitual (POSNER, STRIKE,
HEWSON & GERTZOG, 1982). Apesar de importantes, o uso de atividades experimentais
não garante sozinho um bom ensino de ciências.
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6. Os alunos registram tudo o que fizeram, escrevendo e desenhando
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deslocamentos, ampliando as possibilidades de interpretação. As condições de produção
são determinantes na definição do discurso científico. Sobre isso, afirma Sirio Possenti:
O que faz com que um discurso seja científico não é o fato de que ele diz
verdades, assim como o que faz com que um discurso não seja científico não é o
fato de que ele não diz verdades. É perfeitamente possível haver enunciados
falsos que sejam científicos e enunciados verdadeiros que não o sejam. [...] O
que distingue os enunciados científicos dos não-científicos são suas condições
de produção. (POSSENTI, 1997, p. 12)
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Ocorre que no uso de atividades experimentais, assim como nas situações
cotidianas de diálogos entre crianças e adultos, os elementos estão presentes na situação, e
sobre eles os alunos possuem um repertório de palavras de uso comum. Os elementos de
que falamos, para as situações investigadas nesta pesquisa são água, papel alumínio,
metais, barquinho, entre outros, e processos como flutuação, imersão, e qualidades como
peso, tamanho, textura. Isso modifica as relações entre os alunos e o conhecimento pois
ocorrem múltiplas mediações: do professor entre o aluno e o conhecimento, do
conhecimento entre o aluno e os objetos, dos alunos entre os colegas e os objetos, e muitas
outras. É possível afirmar que o uso de atividades experimentais traz para o centro da aula
as principais caracteristicas dos espaços cotidianos da criança: as coisas e as palavras, ou
conforme Bakhtin, os elementos verbais e os elementos não verbais.
No âmbito desta pesquisa, serão utilizados nas análises das interações verbais
entre alunos e entre alunos e professor os conceitos da teoria da enunciação, de Bakhtin:
polifonia, tema, réplica, polissemia, gêneros do discurso. De Vygotsky, serão utilizadas as
noções de mediação e internalização como chaves da constituição humana. São essas as
principais noções que utilizo nesta minha tentativa de compreender a produção de sentidos
por alunos, em situações de ensino centradas em atividades investigativas.
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Para Bakhtin, “Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros
enunciados” (1997, p. 291), e ainda:
As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa
acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de palavras, trocam
enunciados constituídos com a ajuda de unidades da língua — palavras,
combinações de palavras, orações; mesmo assim, nada impede que o enunciado
seja constituído de uma única oração, ou de uma única palavra, por assim dizer,
de uma única unidade da fala [...] (Ibid., p. 297)
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Quem fala, ocupa um lugar social, histórico e ideológico, constituintes de seu
discurso. “A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de
um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à
forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora
dessa forma”. (BAKHTIN, 1997, p. 293)
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Os gêneros secundários estão relacionados a um conjunto cultural mais
complexo, predominantemente escrito e fortemente moldado pelas esferas sociais (literária,
científica, ideológica).
Num certo sentido, [...] no ensino das ciências na educação formal, ocorre
também, e com freqüência, o oposto disso. Elementos dos gêneros secundários
(ciências, artes etc.) são trazidos para uma esfera de utilização da língua,
marcada pelos gêneros primários. (RABONI, 2002, p. 99).
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possível pela variedade de histórias de vida entre os alunos e pelo encontro com o adulto,
em geral o professor, com base na estrutura curricular existente, é que as mudanças nas
formas de ver o mundo podem acontecer.
Além dos conteúdos e atitudes, têm sido colocados como objetivo do ensino de
ciências já no Ensino Fundamental I uma aproximação com o fazer científico, condensado
no termo “procedimentos”, ou ainda “habilidades”. Sobre essa aproximação, no que há de
comum entre o fazer ciência e o aprender ciência, tecerei alguns comentários que podem
ajudar a organizar o currículo e desenvolver as atividades.
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Apesar das diferenças existentes entre os conceitos espontâneos e os conceitos
sistematizados, ambos não configuram formas de intelecção antagonicas e
excludentes. No processo de elaboração da criança, eles articulam-se
dialeticamente. (p.125)
Talvez seja essa a principal caracteristica em comum entre essas duas esferas.
Os alunos diante dos problemas genuínos das SEI são solicitados a inventar explicações,
do mesmo modo como os cientistas precisam criar soluções para seus problemas de
pesquisa. Tanto na produção quanto na aprendizagem das ciências sob o enfoque das SEI,
há a necessidade de criar explicações sobre os fenômenos, sempre a partir dos
conhecimentos anteriores e através do aprimoramento das estruturas de pensamento e das
palavras que utilizamos para designar objetos e processos. Essa característica, talvez a que
mais nos distingue dos outros animais, é pouco explorada na escola, criando algumas
deformações sobre a atividade científica que apontarei brevemente.
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Conhecimentos, Habilidades e Atitudes
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assim como dos corpos coerentes de conhecimentos (teorias) disponíveis, que
orientam todo o processo. (p.129)
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Tal compreensão é necessária se queremos que nossos alunos tenham, ao final
de cada nível de escolaridade e compatível com cada idade, uma imagem adequada da
construção do pensamento científico.
CRONOGRAMA
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4. Junho/2013: finalização das análises e início da redação do relatório final da
pesquisa.
Metodologia da pesquisa
... nossas pesquisas procuram selecionar casos especiais para serem observados,
seqüências de ensino para serem registradas, contextos de aula para serem
estudados, enfim procuramos compreender, por meio de estudos de caso, como
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se dá essa relação, tão importante, que é o ensino e a aprendizagem durante uma
aula de Ciências. (CARVALHO, 1996, p.6)
Essas duas variações foram utilizadas nesta pesquisa, com resultados que
procurarei mostrar a seguir.
Foram analisadas oito aulas gravadas em video pelo LaPEF em uma classe de
3º ano do Ensino Fundamental, na qual foram desenvolvidas as atividades do capítulo 4 do
livro do 4º ano (CARVALHO; ET AL, 2011). Essa Sequencia de Ensino por Investigação
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tem como objeto “embarcações”, e se inicia com o problema prático do equilíbrio do
barquinho (CARVALHO, 1988).
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Quadro 1: as 8 aulas gravadas e analisadas
Aula 1: Problema da travessia do rio – nessa aula os alunos tem que resolver
um problema de travessia de um rio por três amigos, utilizando apenas um barco com
limitação de carga. Isso restringe as combinações possíveis e exige dos alunos um
raciocínio lógico bem característico. Nas indicações para essa atividade, a possibilidade de
o barco fazer várias viagens é o destaque. Ela está na página 82 do livro didático.
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proposta: quais delas “conseguirão levar sua carga sem dificuldades de um ponto a outro”.
A atividade está na página 88 do livro.
Aula 8: Mexilhão dourado – a partir dos resultados das duas ultimas aulas, 6 e
7, e finalizando o projeto, nesta aula são apresentados slides sobre a adaptação do mexilhão
dourado no litoral brasileiro e a superpopulação gerada a partir da inexistência de predador
natural para essa espécie em nossa costa. Novamente o conceito de equilíbrio é tratado,
mas com outro sentido.
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Para iniciar a aula a professora apresenta aos alunos o problema a ser resolvido.
Escrito em um cartaz colado na lousa, o problema é o seguinte:
O problema proposto:
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solução da aluna é válida e mesmo lógica, aplicando a mesma forma de travessia para os
três homens.
Sabrina: uma pessoa leva cada um dos três (A solução proposta pela aluna supõe um
quarto indivíduo. Se a massa desse quarto indivíduo somada a 80 Kg não ultrapassar os
135 Kg, a solução também é válida, uma vez que não está explicitado no enunciado que
“só” os três estão na beira do rio, e é também uma solução lógica. A inexistência de um
quarto indivíduo só pode ser considerada implicita se admitirmos que o contexto da
proposição do problema é o da busca de soluções lógico-formais, e que sempre há uma
solução. Essa é uma característica da escola e do seu modo de funcionamento, que inclui
um gênero do discurso).
Nicolas: mas como o barco volta?(Outros alunos sugerem o uso de um navio ou barco a
motor, e a proposta da corda retorna. Como nas outras propostas de solução, esta da corda
também é válida uma vez que não está explicito no problema que “não há outros recursos
além do barco”).
Emerson: Um deles vai e leva o outro e volta (Nesse momento começam a pensar nas
combinações das massas)
Alunos n.i.: 60 ... 80 ... vamos pensar (A professora sai da sala e aumenta um pouco o
barulho, mas todos estão envolvidos na solução do problema. Nas falas não identificadas
se destacam os números “60”, “80”) – (A professora volta)
Isaac: o de 80 fica
Aluno n.i.: o de 80 vai até a metade do rio e espera...(Voltam as soluções não formais)
Professora: vamos gente. Pra tudo tem um jeito. (Muitas conversas na sala, mas
aparentemente relacionadas ao problema Percebe-se um certo desanimo nos alunos) –
(Conversas aumentam. Alguns alunos começam a brincar com a câmera. Há um princípio
de desordem, com muitas conversas fora do assunto)
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Professora: sim, eu sei a resposta (Respondendo a um aluno n.i. que questiona se o
problema tem solução).
Professora: Não dá tempo para ele fazer dieta (Os alunos começam a perder o interesse
pelo problema)
Professora: vamos fazer uma simulação (A professora sugere que façam uma simulação
para ajudar na solução do problema. Três alunos são chamados, ficam do lado direito da
sala).
Professora: e agora?
Vários alunos: o de 60 volta... agora os dois podem ir (Nesse momento o aluno que
representa o individuo de 60 Kg atravessa a sala de volta)
Vários alunos: aí... deu certo professora! (Concluindo a simulação, os três se encontram
do outro lado da sala, o que é muito comemorado com gritos e aplausos).
Análise da aula 1
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5. os dois, de 60 Kg e de 65 Kg, chegam na margem B e se juntam ao de
massa 80K. E o problema está resolvido.
São, portanto, dois tipos de discurso que aparecem entre as soluções propostas:
os primeiros lançam mão de outros recursos inexistentes na proposta do problema; a partir
de um certo ponto, o tipo de discurso muda, assumindo a busca por uma combinação de
massas. Nota-se no primeiro uma forma direta de solução – puxa de volta com uma corda,
cada um atravessa e empurra o barco. Já no segundo tipo, embora não pronunciada, existe
uma hipótese suspensa e em ação no raciocínio dos alunos - “se o de 60 for junto com o de
65”. A elaboração de hipótese não é exclusiva para essa modalidade de solução, uma vez
que pode também estar presente nas primeiras propostas - “se ele tiver uma corda...” - mas
não há articulação lógica. Se tem a corda, amarra o barco na corda e puxa de volta. Trata-
se de uma solução prática que não depende tanto da linguagem. Mas a solução lógica
depende fortemente da estruturação da linguagem, envolvendo sempre um “se... então”.
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difere do que normalmente é feito em aulas em que predomina a transmissão de
conhecimento, sendo interpretado pelo aluno como “nem a professora sabe”.
Professora: você deve fazer um barquinho que na água carregue o maior número de
pecinhas sem afundar (A professora apresenta o problema aos alunos, lendo
pausadamente. Nessa explicação, ela quase repete o que está escrito. Na lousa há também
uma frase: Sol, sem você, nem sombra do que sou).
Professora: podem começar. Todos os grupos começam a fazer o barco tradicional, com
dobradura. Mas o papel alumínio dificulta as dobras
Aluno n.i.: faz um barco, meu! O barquinho tradicional, que os alunos fazem em menos de
um minuto, afunda fácil.
Alunos n.i.: põe desse lado aqui. Aluno indicando ao colega sobre qual lado deveria ser
colocada a arruela. Nota-se na imagem a distribuição em toda a superfície do barco/balsa.
Gabriel: Filipe, monta logo essa ...coisa. Gabriel quase soltou um palavrão, se irritou com
Filipe e soltou as arruelas do alto, afundando o barquinho.Um grupo não faz dobra
nenhuma, deposita o papel alumínio na água e sobre ela as arruelas, bem distribuídas em
toda a superfície. Vários alunos falam ao mesmo tempo.
Ocorre uma agitação geral na classe, com quase todos os alunos falando ao
mesmo tempo, nos grupos e com a professora. Havia uma dificuldade em entender o
problema proposto quanto a diferença entre “todas as pecinhas” e “o maior número de
pecinhas”. Vários alunos falam ao mesmo tempo, não sendo possível compreender as falas
pela gravação. Gabriel coloca um barco sobre o outro, para suportar mais pecinhas, e
outras crianças fazem gestos enquanto falam, para indicar aos colegas o formato ideal do
barco. O principal gesto é movendo a mão lateralmente com a palma para cima, dando a
noção de base, suporte.
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Aluna n.i.: espalhadas. Respondendo a professora sobre como deveria colocar as pecinhas
Professora: por que?
A mesma aluna: porque se colocar de um lado só o barco afunda. Durante esse breve
diálogo, outros alunos circulam pela sala olhando como foram feitos os outros barcos.
Aluno n.i.: olha embaixo Gabriel, olha que tem um buraquinho. Aluno levanta uma
hipótese sobre o afundamento do barco. Gabriel olha e confere, e não tem buraquinho, logo
deve afundar por outro motivo.
Vários alunos: ó, ó, para, deixa...olha o que ele fez. As falas são muito mais de censura do
que de organização da ação.
Professora: você acha isso legal... da sua parte? A professora se dirige a Bruno
questionando seu comportamento no grupo
Aluno n.i.: para Bruno
Aluno n.i.: não dá pra fazer. Muitos alunos estão de pé e não parecem concentrados na
tarefa.
Professora: agora senta todo mundo. Qual foi o grupo que conseguiu colocar o maior
numero de pecinhas sem afundar?
Vários alunos: a Yara
Professora: a Yara vai falar
Yara: primeiro foi o Pedro que inventou. Aí... só que ele fez um lado maior e os outros
todos menores. Aí... afundou um dos menores. O maior ficou retinho. Aí eu peguei e fiz os
mesmos lados.. aí... não afundou. Yara fala completando com gestos movendo a mão
verticalmente com as palmas voltadas para o centro do “barco imaginário”, desenhando no
espaço a base e as bordas maiores e menores.
Professora: e na hora de colocar as pecinhas... como vocês colocaram?
Yara: devagarinho
Outra aluna: espalhadas
Yara: a gente colocou dos lados... e não afundou.... aí...a gente colocou assim. Ao dizer
“assim” a aluna faz gestos de pinça com os dedos, demonstrando cuidado.
Professora: e esse grupo aqui, por que não conseguiu? O que aconteceu? Além de tudo o
que aconteceu, que eu sei, o que foi com o barquinho?
Aluna: afundou. A professora pergunta ao grupo do Bruno sobre a atividade, mas já
sabendo o resultado e o motivo. A pergunta ganha o sentido de repreensão, o que deixa
envergonhada uma das alunas. A vergonha pode ter sido ampliada pela presença da
câmera, bem próxima desse grupo.
Professora: por que afundou o barquinho de vocês?
A mesma aluna: colocou muito rápido. Tava jogando...
Professora: e o grupo do Gabriel?
Aluno: a gente só fez assim ó ... fez uma coisinha assim desse jeito. Ao responder, pega o
barquinho com as duas mãos e indica o que foi feito.
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Professora: como é que se chama essa coisinha?
Aluno: ah... o barco. A gente fez o barco desse jeito: a gente dobrou (gesto) ... outro... mas
aí só ficou um tempo parado... só foi a gente colocar mais um ... (pausa) ... afundou. Ao
falar e fazer gestos, o aluno dá a compreensão do que foi feito. A pausa entre “mais um” e
“afundou”, bem como a entonação empregada, conferem à frase o sentido de causalidade:
bastou mais um para provocar o afundamento. O gesto final foi feito com uma arruela na
mão.
Professora: e você acha que foi por que? O que aconteceu?
Gabriel: porque a gente pensava que tinha um buraquinho (mostra o fundo do barco) ...
mas aí tava dobrado e a água entrava por aqui junto
Depois das explicações de alguns grupos, outros tentam refazer, e a professora tenta
controlar a classe, que já não demonstrava interesse pela atividade. Depois da apresentação
do segundo grupo, houve muita conversa nas apresentações dos demais.
A professora inicia a aula perguntando aos alunos o que havia sido feito na aula
anterior, para dar continuidade ao “projeto” de ciências. O desenvolvimento da aula segue
o roteiro das pp. 84-94 do livro 4 da coleção “Investigar e aprender: ciências”. Cabe
destacar que a aula anterior (aula 2) havia sido dada duas semanas antes. Mesmo assim,
muitos alunos se lembraram de detalhes da aula.
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Nesse diálogo estabelecido, a professora procura fazer com que vários alunos
falem, e através das perguntas vai trazendo da memória dos alunos a descrição das ações e
dos resultados, assim como as explicações que foram dadas na ocasião da atividade
experimental. O fazer parece favorecer a memória, pois os alunos vão descrevendo com
muitos detalhes, todos os aspectos importantes da atividade realizada. A fala da professora
é crucial nesse exercício de memória. As palavras da professora vão suscitando palavras
nos alunos, conduzindo o diálogo que, ao fim, contempla o essencial do experimento do
barquinho.
Já no pensamento conceitual:
… o sujeito classifica não mais com base em suas impressões imediatas, mas
isolando diferentes atributos dos objetos, colocando-os numa categoria
específica por uma relação com um conceito abstrato codificado numa palavra.
Análise e síntese consolidan-se e articulam-se. (idem)
A instrução dada pela professora para a tarefa foi: “vocês acabaram de falar,
agora vão escrever”. Não tive acesso à produção escrita desses alunos, em parte porque as
atividades foram desenvolvidas no contexto de outro projeto, cerca de seis meses antes do
início de minhas análises. Não havia previsão de uso futuro dessa produção dos alunos.
Mesmo assim, cabe uma breve discussão sobre as diferenças entre falar e escrever.
Novamente segundo nossos autores de referência, a escrita e a fala não são o mesmo
processo que se manifesta de formas diferentes. São processos diferentes que requerem
diferentes funções psicológicas (VIGOTSKI, 2001). Mesmo com a vivência pelos alunos
das situações que são convidados a descrever através da escrita, falta-lhes o motivo para
escrever. Para quem e para que escrever? Há aí, segundo o referencial bakhtiniano, uma
lacuna nos processos de enunciação (BAKHTIN, 2006). A materialidade de um enunciado
ocorre em grande medida pela necessidade do falante comunicar suas idéias a outrem. Sem
essa necessidade, a comunicação se torna até mesmo desnecessária. Claro que em situações
escolares as produções dos alunos têm o caráter avaliativo, e o professor quase sempre
verifica a qualidade dos textos produzidos, corrige, aponta erros e atribui uma nota. Os
alunos escrevem para o professor. Ainda que haja uma finalidade para essa escrita, o
professor sabe o conteúdo do texto, e novamente o sentido e a necessidade de escrever
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ficam comprometidos. Para que escrever para alguém que sabemos que sabe o que será
escrito? Da mesma forma quando um aluno responde a uma pergunta feita pelo professor,
cuja resposta sabemos que é conhecida, perde-se um dos principais elementos da
enunciação, e o processo se torna artificial. Esse é outro aspecto que diferencia muito a
atividade científica da aprendizagem de ciências na escola. Uma forma de preencher esta
lacuna, a da inexistência de um motivo concreto para a escrita, pode ser a realização de um
trabalho em várias escolas, no qual os alunos devem comunicar seus procedimentos e
resultados aos alunos da outra escola. Se os dados tiverem caracteristicas regionais, como
por exemplo relativas ao tamanho de uma sombra e sua variação com a latitude, essa troca
de textos pode se tornar ainda mais interessante. A replicação do trabalho de Eratóstenes
da medida do raio da Terra tem essa característica. Na situação em análise, os alunos
demonstram dificuldade para escrever o que souberam falar com desenvoltura.
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tamanho do barco...” (em itálico o que foi acrescentado pela professora). A aproximação
área=tamanho foi feita para aproximar o sentido pretendido daquele mais conhecido pelas
crianças, ainda que não sejam sinônimos.
Tinha o de 60, o de 65 .... e o de 80... e só tinha um barco que dava 180... 130
(ajudada pela professora) ... aí o de 60 e o de 65 foram para o outro lado. Aí o de 60 voltou
pra pegar o de 80 ... aí o de 60 ficou e aí o de 80 foi pra lá deixou o barco pro de 65 ... e o
de 65 foi buscar o de 60”.
Na leitura, algumas palavras são enfatizadas pelo tom de voz e por uma breve
pausa que isola a palavra: excedessem, equilibrado (p.87). São palavras que a professora
sabe que não são do vocabulário comum das crianças, e mais que isso, representam
conceitos importantes na compreensão do texto e na correspondência do mesmo com a
realidade material. O interessante é que isso é feito intuitivamente, e reflete uma
expectativa do falante em relação ao interlocutor, marcando igualmente diferenças sociais
e diferentes lugares de onde se fala e para quem se fala. (BAKHTIN, 2006).
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Aluna: por causa que tem peso dos dois lados
Professora: ia equilibrar (faz gesto com as duas mãos em forma de pinça, uma de cada
lado, movendo-se para cima e para baixo simultaneamente e de forma sincronizada) ... não
é a mesma coisa das pecinhas?
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questão fica ainda mais ampliado, pela inclusão de outra experiência vivida pelos alunos,
que contém elementos verbais e elementos não verbais.
Professora: o que vocês fizeram para resolver o problema? Qual foi o modelo do
barquinho? Como vocês colocaram as pecinhas?
Professora: vocês viram o da Yara, parecia uma forma de bolo. Agora escrevam e
desenhem como vocês fizeram. Os alunos escrevem e desenham por aproximadamente 6
minutos, e a professora acompanha andando pela sala
Professora: vocês não fizeram direto o barquinho que deu certo...! Comentário feito ao
passar pelos grupos e constatar que os alunos desenhavam o último modelo construído, no
formato de balsa, deixando os outros de lado.
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Professora: ela errou os espaços iguais... ela distribuiu as pecinhas... A professora circula
pela sala e vai traduzindo o que os alunos falam e também gesticula, enquanto os alunos
escrevem, desenham e fazem pequenos comentários e perguntas.
Professora: depois de terminar, vocês vão ler um texto. O texto proposto é o da página 84
do livro 4 da coleção.
Para a análise das interações verbais que ocorrem em aula, são muito úteis as
categorias apontadas por Mortimer e Silva(MORTIMER e SILVA, 2010)
A professora fala em vários momentos que “se tiver muito tapiti e pouco
alimento...”, “se tiver muita jaguatirica e pouco tapiti”, mostrando o desequilíbrio causado
no ambiente e que pode levar à extinção (destaca com o tom de voz e falando
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pausadamente: vai acabando essa espécie) de determinadas espécies. Alguna alunos se
lembram do sapo-cururu e sua dependência em relação aos insetos.
Esta é uma breve descrição das atividades desenvolvidas nesses últimos oito
meses. Considero o saldo geral muito positivo. O contato com outra instituição, com um
grupo de pesquisa consolidado e com muita história no cenário nacional do ensino de
ciências, o rompimento do isolamento que o formato da minha instituição de origem impõe
- com unidades distantes espalhadas pelo estado, tudo isso contribuiu para uma maior
inserção na pesquisa em ensino de ciências. O que posso dizer é que foi uma experiência
decisiva para minha atuação, em especial na graduação em pedagogia e na pós-graduação
em educação, por ter permitido uma ampliação considerável da minha visão sobre a
pesquisa e sobre a formação de professores para as séries iniciais. Trata-se de uma
avaliação pessoal. Neste relatório científico, presto contas do que realizei graças ao
afastamento das minhas atividades de docência, e a partir do exposto, cada leitor terá
condições de fazer sua própria avaliação.
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