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ANTONIO CECILIO MOREIRA PIRES A DESCONSIDERAGAO DA PERSONALIDADE JURIDICA NAS CONTRATAGOES PUBLICAS A Ped aqtias 8B A Desconsideracdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires contudo, dispor uma linha sequer quando ao procedimento que deve ser adotado para a aplicagao da penalidade. E evidente que a lei de licitagdes e contratos limitou-se a exigir a observancia do contraditério e ampla defesa, sem, contudo, estabelecer maiores condicionantes acer- ado rito apropriado, isso sem falar da lei do prego que nada traz a esse respeito. Assim, considerando que a lei especifica nada traz sobre o rito processual a ser aplicado nas penalidades previstas nas legislacdes sobreditas, forcoso é concluir que devemos nos socorrer da Lei do Processo Administrativo Federal, de modo a obser- var a correta e necessdria aplicacao do devido proceso legal. 6.1 A instauragao do processo administrativo sancionatério nos moldes da Lei 9. O art. 5° da Lei 9.784/99 prevé, com clareza solar, a possibilidade de o proces- so administrativo ser instaurado de oficio, pela propria Administragdo ou a pedido do interessado. Mister se faz consignar, portanto, que o Administrador, em face de qualquer uma das penalidades previstas nas leis de regéncia da licitacdo, encontra-se obriga- do a instaurar processo administrativo, com vistas a deslindar se hd ilicito capaz de gerar san¢4o administrativa. Ainda que a Lei 9.784/99 seja silente quanto as formas de exteriorizagdo da instauracdo do processo administrativo, no temos diividas que a regularidade formal impée a edig¢ao de ato administrativo especffico, seja mediante decreto, portaria ou despacho. De toda sorte, qualquer um dos atos sobreditos deve conter a descri¢aéo dos fatos, 0 ilfcito e a sancdo em tese aplicavel, isso sem falar da identificagéo da auto- tidade. Melhor esclarecendo, o ato inaugural deve conter todas as informagGes ne- cessdrias de modo que o interessado possa conhecer a pretensdo da AdministracZo Piiblica, sendo vedada a utilizagaio de descriges genéricas de fatos, sem qualquer tipificagdo e correto enquadramento sancionatério, sob pena de ofensa ao devido processo legal. Em outro falar, se 0 ato inaugural for falho, impossfvel seré o pleno atendimento do direito de defesa. Quanto 4 instauragao do processo, por iniciativa do interessado, ela deverd ser Por escrito, salvo se for permitida a solicitagao oral, nos termos do art. 6° da Lei 9.784/99. Assim, o pedido do interessado devera conter o enderecamento, a sua iden- tificagdo ou de quem o represente, o domicilio do requerente ou local para o recebi- mento de comunicagées, a formulagao do pedido, com exposi¢&o fatica e devidamente fundamentada e, ao final, data e assinatura do requerente ou de seu representante. Na instaurago provocada do processo administrativo, a Administragéo seré instada a produzir uma atividade prestacional, seja no estrito interesse do adminis- trado, seja em razdo da protecao a direitos difusos ou coletivos. da Lei do Processo Administrative Federal 89 A Aplicagio Subsidi E de lapidar clareza que, na instauragéo provocada do processo administrati- vo, o particular estar a exercitar o seu direito de peticZo, nos moldes preconizados pelo art. 5%, inciso XXXIV, letra “a”, e art. 5%, XXXII. De qualquer modo, é certo afirmar que a Administracdo, em face de fato que possa se constituir em ilicito, encontra-se obrigada a instaurar o proceso adminis- trativo sancionatério. Nesse mesmo sentido, nada impede ao terceiro interessado que postule junto 4 Administracao o cumprimento de seu dever, até porque o art. 4e da Lei 8.66/93 é bastante claro ao dispor que todos quantos participem de lici- tagdo promovida pela Administragao Puiblica tém direito ptiblico subjetivo a fiel ob- servancia do pertinente procedimento estatuido em lei, isso sem falar que qualquer cidadao pode acompanhar o desenvolvimento do processo, desde que néo interfira de modo a perturbar ou impedir a realizacdo dos trabalhos. 6.2 A fase instrutéria do processo administrativo A Constituigao Federal, ao albergar o princfpio do contraditério e da ampla de- fesa, impés 4 Administracao Pablica a obrigatoriedade de instaurar processo admi- nistrativo, garantindo o respeito ao direito do cidadao.' Deveras, sera mediante uma boa instrucao processual, com o respeito aos di- reitos e garantias do cidadao, que teremos uma boa decisao administrativa que, em Ultima andlise, se constitui no interesse piiblico perseguido. Assim, uma vez instaurado o processo administrativo, com os cuidados devi- dos, inicia-se a fase instrutéria. Seré nessa fase que a Administracdo faré emergir a verdade material, mediante a producdo de provas (depoimento da parte, oitiva de testemunhas, inspe¢Ges, pericias, juntada de documentos), formando, assim, 0 con- vencimento da Administracdo. Nesses termos, qualquer prova ou informagio em direito admitida poderd ser requerida ou juntada no processo, vedada a prova obtida por meio ilicito, nos ter- mos do art. 30, da Lei 9.784/99. Nao podemos deixar de destacar que a instrugdo processual deve ser a menos onerosa possivel para o interessado. Alids, € com esse propésito que o art. 37 da Lei 9.784/99 preceitua: Sergio Ferraz; Adilson Abreu Dallari, com esteio em Odete Medauar, destacam que atualmente o processo ‘garantir 0 respeito aos direitos das pessoas, melhorar o contetido das decis6es administrativas, assegurar a eficécia dessas decisées, legitimar o exercicio das prerrogativas pi- blicas, assegurar 0 correto desempenho das atividades administrativas, aproximar-se mais dos ideais de justi- (¢a, diminuir a distancia entre a Administragdo e os cidadaos, sistematizar as decisdes administrativas,facilitar ‘controle da Administracio e ensejar a efetiva aplicagao dos princfpios que regem a atividade administrativa” (Processo administrative, p. 121). 90 A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires quando o interessado declarar que fatos e dados estdo registrados em documentos existentes na prépria Administrac4o responsavel pelo proceso ou em outro érgao administrativo, o érgéo competen- te para a instruc4o prover, de oficio, 4 obten¢4o dos documentos ou das respectivas cépias. Quanto aos prazos processuais, 0 art. 24 do diploma legal em exame é claro ao estabelecer que, inexistindo disposicao especifica, os atos do érgdo ou autorida- de responsével pelo processo, e dos administrados que dele participem, devem ser praticados no prazo de cinco dias, salvo motivo de forca maior. Determina, ainda, em seu pardgrafo tinico, a possibilidade de dilac&o de prazo, até o dobro, mediante comprovada justificativa. Assim, inexiste divergéncia entre o prazo do dispositivo constante da lei de processo administrativo federal e o prazo de defesa prévia determinado pelo art. 87, § 28, da Lei 8.666/93, sendo aplicavel apenas a hipétese de dilacao até o dobro do prazo, mediante comprovada justificativa. 6.2.1 A intimagao e o atendimento ao principio do contraditério Nao é demais dizer que nenhum ato processual deve escapar a apreciagao do indiciado. Assim, ainda que a Lei 8.666/93 nao traga em seu bojo maiores deta- thes sobre a questao da intimacdo, a Lei 9.784/99 estabelece um regramento bas- tante detalhado. Com efeito, a lei do processo administrativo federal é bastante detalhista quan- to a uma instrucdo contraditéri a) art. 29, incs. Ve X, estabelece a divulgacdo dos atos administrativos e a garantia dos direitos de comunicagio, de apresentacao de alegacées fi- nais, de produgao de provas e interposicao de recursos, respectivamente; b) art. 32, incisos Il, III e IV, estabelece a obrigatoriedade de ciéncia ao in- teressado da tramitacio dos processos administrativos, podendo este ter vista dos autos, obter cépia dos documentos, conhecer as decisGes proferidas, formular alega¢gSes e apresentar documentos antes da deci- 8&0, possibilidade de assisténcia por advogado, salvo quando obrigaté- ria a representacd c) art. 26, estatui a intimac&o dos interessados para ciéncia de deciséo ou efetivacdo de diligéncias; d) arts. 38, 39, 41 e 44, dentre outros, estabelecem a possibilidade de 0 in- teressado ter pleno acesso a fase instrutéria do processo, podendo jun- Ga Lei do Processo Administrative Federal 91. A Aplicagio Subsidi tar documentos, requerer diligéncias, aduzir suas alegacies e produzir provas, dentre outros. Destarte, as disposig6es aqui elencadas tém por finalidade permitir 0 efetivo acesso do interessado a lide propriamente dita. Assim, as disposigées do art. 2°, in- ciso V, que, em outras palavras, retratam o principio da publicidade, outro objetivo nao tém que o de permitir ao interessado o acesso ao processo administrativo. Quis ainda o legislador ordinario que sua intima¢ao ndo se realizasse tao somente de for- ma ficta — publicacdo em didrio oficial. Assim, as disposigdes do j4 aludido art. 22, inciso V, devem ser interpretadas em consonancia com o art. 26, caput, que estabe- Jece a exigéncia de intimacdo pessoal ao interessado. De outra parte, nao basta a mera intimagao do interessado se esse ato de cha- mamento ao processo no for efetivo, real e capaz de trazer em seu bojo um mini- mo de informagées que possibilitem a plena ciéncia do litigio. Esse ato, que em sua esséncia é a instauracao do contraditério, & portanto, de prec{pua importancia para o regular desenvolvimento do processo administrativo. Para uma intimasdo regular, que efetivamente atenda ao princfpio do contradi- tério, necessdrio se faz que o ato de chamamento ao processo contenha descri¢do sucinta dos fatos que ensejaram a lide e as sangGes em que poder incorrer, sob pena de nulidade. Em outras palavras, uma vez instalada processualmente a contro- vérsia, deve o interessado ser chamado a acompanhar 0 desenrolar do procedimento ja no inicio da fase instrutéria. Releva registrar que, embora a lei de licitacdes tenha estabelecido to somen- te o prazo de 5 (cinco) dias iteis para apresentacao de defesa prévia, sem estabe- lecer de forma explicita como aconteceré a instrugéo do processo sancionatério, a Lei 9.784/99 o faz de forma bastante detalhada, devendo ser aplicada de forma subsidiéria, de modo a atender plenamente o princfpio do devido processo legal. 6.2.2 O direito de defesa e o contraditério A intimago tem por condao propiciar ao litigante no sé o seu chamamento ao processo, mas também a sua defesa. Para tanto, as disposi¢Ges do art. 26, caput, re- Jativas a intimacao, devem ser complementadas com aquelas inseridas no contexto do art. 28, inciso X, e art. 3°, que determinam a obrigatoriedade de a Administracao abrir vistas do proceso, propiciando o pleno conhecimento de todos os elementos que o instruem, para que o indiciado possa ofertar sua defesa, produzir provas, ar- rolar testemunhas ¢ demais atos consubstanciadores de sua defesa. Prevé, ainda, a Lei 9.784/99 a motivacao como prerrequisito do ato administra- tivo, com indicagfo clara dos fatos e dos fundamentos juridicos que o sustentam. E nem poderia ser de outra forma, vez que a motivaco é prerrequisito fundamental 92 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires para o exercicio da ampla defesa. Seria de todo impossivel atacar o mérito se o liti- gante desconhecesse os motivos que levaram a Administraco a indicié-lo. Cumpre-nos deixar claro que nao basta 4 Administragao assegurar que os prazos previstos em lei, em obediéncia ao contraditério e a ampla defesa, sejam cumpridos. E preciso que o rito e a forma aplicados assegurem efetivamente a sua finalidade, qual seja: a defesa dos direitos do individuo, de forma que o ato admi- nistrativo obedeca ao princfpio do devido processo legal. Nao basta, portanto, que o contraditério e a ampla defesa sejam cumpridos apenas sob o aspecto formal; é preciso que sejam cumpridos também os requisitos de cardter substancial. A exemplo, ndo basta apenas que se cumpram os prazos previstos em lei, uma vez que o contraditério e a ampla defesa s6 estarao efeti- vamente assegurados quando esses mesmos prazos forem exequiveis. Lticia Valle Figueiredo observa: Deveras, se consignado prazo, ainda que seja formalmente dispos- to na lei, mas se for inadequado, como por exemplo, se houver juntada pela autoridade administrativa de ntimero enorme de do- cumentos ~ documentos, esses, que devem ser contraditados pelo administrado, ou, ent&o em auto de infracao, o Fisco reportar-se a fato passado hé longo tempo (dentro, obviamente, do prazo deca- dencial), porém depende de procedimentos dificultosos para o ad- ministrado (pessoa jurfdica ou fisica), é mister que haja compati- bilidade (razoabilidade) do prazo com a providéncia a ser tomada, para o cumprimento efetivo de devido processo em sentido mate- rial, inerente ao Estado de Direito. Em consequéncia, assegura-se o amplo contraditério porque a lei pretende seja assegurado direito de ampla defesa. Estar-se-ia garan- tindo formal e materialmente o amplo contraditério.? Reputamos que 0 art. 87, § 22, da Lei 8.66/93, embora tenha consignado apenas 0 prazo de 5 dias titeis para efeito de se ofertar a defesa prévia, deve a Administracao, ao instaurar o processo sancionatério, atentar para o efetivo cumprimento do direi- to de defesa do indiciado, de modo a garanti-lo formal e materialmente como muito bem alerta Liicia Valle Figueiredo. Assim, muito bem andou o legislador ao permitir, por forca do art. 24, pardgrafo tinico, da Lei 9.784/99, a dilacdo de prazo até 0 dobro, mediante comprovada justificativa, para pratica de ato processual. Diga-se de passagem, alids, que o direito de defesa no processo administra- tivo assume tal magnitude que, mesmo quando ausente, nao poderé a Adminis- tragao declarar a remincia de direito, confissao ou revelia, nos termos do art. 27 da Lei 9.784/99. Averbe-se, nesse sentido, que o pardgrafo tinico do art. 27 2 FIGUEIREDO, Liicia Valle. Curso de direito administrativo, p. 445. da Lei do Proceso Administrative Federal 93 A Aplicagio Subsidi determina que, no prosseguimento do processo, sera garantido direito de ampla defesa ao interessado. Intimamente ligado com o direito de defesa esta o principio da presun¢ao de inocéncia. Devemos lembrar que o processo administrativo sancionatério nao tem exclusivamente a finalidade de punir, mas antes dirimir um conflito, esclarecer os fatos, chegando-se ao final a duas conclusées possfveis: a auséncia de culpa, com a consequente absolvico do acusado ou a respectiva responsabilizaco pelos fatos noticiados no processo, com a devida penalizacao. Assim, se a finalidade fosse somente de punir estarfamos fazendo um prejul- gamento, na medida em que saberiamos, de antemio, que ao final do processo ad- ministrativo teriamos uma punicdo. Logo, coerente é a presungdo de inocéncia, até prova em contrario. Ainda que o principio da presuncdo de inocéncia se encontre insculpido no art. 52, LVII, de nossa Lei Fundamental, como direito dos acusados em sede penal, isto néo significa a impossibilidade de aplicacao no proceso administrativo, mormente naqueles de cunho sancionatério. Por conseguinte, ninguém poderd ser condenado antes de exercitar o seu sagrado direito de defesa. Doutra parte, segundo entendimento de Carlos Roberto Martins Rodrigues, a defesa ndo se circunscreve apenas & possibilidade de falar contra. O precitado autor vé também a possibilidade de se acusar, como meio de defesa, além do acompanha- mento do processo, o direito de indicar e ouvir testemunhas, requerer e produzir provas e produzir alegacdes.? Roberto Dromi, a luz do princfpio constitucional da defesa em juizo, previsto na Carta Magna Argentina, entende que a garantia de defesa no processo adminis- trativo compreende “o direito de ser ouvido, de oferecer e produzir provas, de ter uma decisdo fundada e de impugné-la”.* Nao é preciso tomar em conta maiores lic6es doutrinérias para se concluir, em suma, que o principio da ampla defesa traz consigo a ideia de que ninguém poderé ser condenado sem ser ouvido. Vale registrar ainda, que, embora procuremos examinar o contraditério e a am- pla defesa de forma dissociada, sempre encontraremos uma profunda interacdo en- tre ambos, até mesmo porque um é decorréncia do outro. Segundo entendimento de Ada Pellegrini Grinover, do contraditério emerge a defesa. Mas também observa que a defesa é a prépria garantia do contraditério.* Assim, por forca do contraditério, a defesa ha de ser prévia, hé de ser anterior ao ato administrativo decisério. Augustin Gordillo é incisivo: 3 RODRIGUES, Carlos Roberto Martins. Do direito de defesa no procedimento disciplinar. Revista de Direito ‘Administrativo. Rio de Janeiro, n® 128, p. 705, abr/jun. 1977. DROMI, Roberto. E! procedimiento administrarivo. Buenos Aires: Ciudade Argentina, 1996. p. 67. 5 GRINOVER, Ada Pellegrini. Garantias do contradit6rio e ampla defesa. Jornal do Advogado, nov. 1990, p. 9. 94 A Desconsideragio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires “em cada um dos aspectos dessa garantia, desde o ter acesso as atua- es, apresentar alegacées, produzir provas etc., insiste-se em que devam ser respeitados antes de se tomar decis4o que possa afetar direitos do individuo”£ ‘Ao lume das cristalinas ligdes de Augustin Gordillo e, por forca do art. 5%, inciso LY, de nossa Constituico, resta claro que a verdade sabida encontra-se revogada. Via de consequéncia, nao pode mais a Administragao, com base no conhecimento pessoal e direto do cometimento de determinado ilfcito administrativo, aplicar a sangdo que entender pertinente. De tudo isso, conclui-se que a Lei de LicitagSes, embora tenha estabelecido apenas o prazo formal de 5 dias titeis para a apresentagio de defesa prévia, deverd promover a necessdria produ¢ao de provas, com todos os requisitos a ela inerentes, por forca das disposigdes da Lei 9.784/99. 1 Aprova Aspecto que deve ser examinado com cuidado é a questo da produgao de pro- vas, notadamente em se falando de provas ilicitas. Oexame do art. 38, § 22, da Lei 9.784/99, é suficiente para se concluir que somente poderfo ser recusadas, mediante deciséo fundamentada, as provas propostas pelos in- teressados quando sejam ilicitas, impertinentes, desnecessérias ou protelatérias. Diividas nao hd quanto ao indeferimento de provas impertinentes, desne- cessdrias ou protelatérias, desde que observado o principio da motivacio. De maneira mais detalhada, o principio da razoabilidade deve ser observado, deven- do existir, entre o ato de indeferimento da prova, um nexo de pertinéncia com a situag4o examinada. Todavia, quanto a prova ilicita a questao é bastante delicada, tendo em vista que nenhum direito ou garantia é de carater absoluto e, portanto, se faz necess4- rio verificar a sua abrangéncia. Nesse sentido, interessante é a visio de Egon Bo- ckmann Moreira: art. 30 disp6e que: “séo inadmissiveis no processo administrativo as provas obtidas por meios ilfcitos”. E 0 § 2° do art. 38 estabelece que: ‘Somente poderdo ser recusadas, mediante deciso fundamen- tada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilfcitas, impertinentes, desnecessérias ou protelatérias.” © GORDILLO, A. Augustin. La garantia de defensa como principio de eficécia en el procedimiento adminis- trativo. Revista de Direito Pablico, 1969, p. 21. Ga Lei do Processo Administrative Federal 95 A Aplicagio Subsidi Numa breve andlise, parece-nos que 0 art. 30 refere-se a provas pro- duzidas extra-autos (“obtidas por meios ilfcitos”), enquanto que 0 $22 do art. 38 diz respeito ao pleito de provas realizado pelo particu- lar interessado a ser futuramente produzidas intra-autos. Quanto ao § 2° do art. 38 nao hé dividas em relacdo a sua plena incidéncia. Nao sera possivel 4 Administragao deferir produgao de prova ilfcita requerida pelo interessado. Tampouco ao agente puibli- co é possivel produzir espontaneamente tais provas. Ou seja: no corpo do processo administrativo no é admissivel a ati- vidade instrutéria ilfcita - compreendidas tanto aquelas cujos meios sao ilicitos (gravagdo nao autorizada, invaséo de domicilio, tortura, coagdo etc.) quanto as que visam o resultado probatério ilfcito (prova pericial que resulte em prejuizo ilegitimo a terceiro, superfaturamen- to de verbas, obten¢do de bem nfo titularizado pelo interessado etc). is Jé frente ao particular valem as ponderagées acima descritas. Uma vez existente a prova, e sendo juntada aos autos do proceso, caberé a0 érgao julgador avaliar — de forma fundamentada — se frente as pe- culiaridades do caso em concreto, ela merece ser aproveitada.’ No nosso entender, em face de prova ilfcita juntada aos autos do proceso, caberd ao julgador avaliar se, frente 4s nuances do caso concreto, ela poderd ser utilizada. De qualquer maneira, gostariamos de deixar claro que nao estamos defen- dendo a utilizagao da prova ilfcita como regra. Assim, na hipétese da prova em questao configurar ilicito gravissimo deve ser imediatamente descartada. Caso no 0 seja, e com sustentaculo nos principios da proporcionalidade, razoabili- dade e finalidade, deveré o julgador decidir se a prova obtida por meio ilfcito atenderd ao interesse publico. Em que pese 0 nosso entendimento, nao podemos deixar de registrar que 0 Superior Tribunal Federal j4 decidiu pela inutilizagdo da prova ilfcita em sede de direito penal.* MOREIRA, Egon Bockmann. Processo adminisirativo: principios constitucionais ¢ a Lei 9.794/99, p. 348- 349. * “A cléusula constitucional do due processo of Law encontra, no dogma da inadmissibilidade processual das rovas ilicitas, uma de suas mais expressivas projegies concretizadoras, pois o réu tem o direito de nao ser denunciado, de nao ser processado e de nao ser condenado com apoio em elementos probatérios obtidos ou roduzidos de forma incompativel com os limites ético-juridicos que restringem a atuacfo do Estado em sede de persecugao penal” (STF ~ Rextr, N® 251.454 - 4/GO - Rel. Min. Celso de Mello, despacho). 96 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagbes Pablicas * Pires 6.2.2.2. Diligéncias e laudos periciais Conforme expressa disposicao do art. 38 da Lei 9.784/99 o interessado poderé, na fase instrutéria e antes da tomada da decisio, juntar, dentre outros, pareceres & requerer diligéncias e pericias, devendo os interessados ser intimados da diligencia cordenada, com antecedéncia minima de trés dias dteis, mencionando-se data, hora e local de realizac4o, nos termos do art. 41 do diploma legal precitado. Com efeito, a hipétese juridica da diligéncia se justifica em razao de eventual diivida que deve ser sanada no decorrer da fase instrutéria, De sua vez, o laudo peri- cial ¢ documento de lavra de profissional que possui conhecimentos técnicos sobre a questo discutida no proceso administrativo. Eventuais dilig€ncias ou elaboracdo de laudos periciais conferem a parte inte- ressada a faculdade de acompanhar o desenrolar das provas, em estrita obediéncia ao principio do contraditério e ampla defesa, segundo o qual nada pode ser sub- traido do indiciado. Digna de nota é a questo da elaboragao de laudos periciais que, em se tratando de matéria estritamente técnica, nao é aconselhavel ser acompanhada diretamente pela parte interessada. O ideal é fazer-se representar por assistente técnico que te- nha dominio sobre a matéria ali discutida. 6.2.2.3 Pareceres Em linhas gerais o parecer é ato administrativo que expressa uma manifesta- ao opinativa. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello ensina que o parecer “é ato ad- ministrativo unilateral pelo qual se manifesta opiniao acerca de questao submetida a pronunciamento. Diz respeito a problema juridico, técnico ou administrativo”.? Assim, considerando que o parecer é uma opiniao, ainda que o art. 42, § 1, da. Lei 9.784/99, contemple a hipétese de parecer obrigatério e vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo nao tera seguimento, nao reputamos possi- vel que isso aconte¢a, posto que o processo administrativo nao poderd sofrer solu- Go de continuidade. Entretanto, cabe aqui lembrar que a hipétese contemplada no art. 42, § 12, da Lei 9.784/99, nao pode servir de desculpa para que o particular siga esperando in- definidamente por uma decisao da Administra¢ao Publica. Isto seria completamen- te desarrazoado e despropositado. De igual modo, a responsabilizagao do servidor, em razo da omissao, tam- bém nao resolve a situasio do particular. Em verdade estamos a frente do siléncio administrativo. * BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranba. Principios gerais de direito administrativo, p. 583. A Aplicagio Subsidifria da Lei do Proceso Administrative Federal 97 Nesse sentido, Cristiana Fortini, Maria Fernanda Pires de Carvalho Pereira e ‘Tatiana Martins da Costa Camarao entendem que, em face do siléncio administrati- vo, a auséncia de resposta deve ser considerada como “siléncio” positivo, afirman- do, textualmente, que a “inagdo deve ser entendida como recep¢ao ao pleito, de ma- neira a tornar desnecesséria a interferéncia judicial”.'° Com o devido respeito as juristas mencionadas, nao é esse o nosso entendi- mento. Para nés, o siléncio administrativo somente poderia ter efeito de deferimen- to ou indeferimento do pleito se assim a lei expressamente determinasse. Entender que o siléncio administrativo signifique deferimento do pleito, sem que a lei assim expressamente autorize, seria, em face das miltiplas possibilida- des que se afiguram cotidianamente na Administraso, trazer ao mundo do direito “uma incerteza juridica”. Em nosso pensar, em face da omissao, deverd o particular socorrer-se das vias judiciais. A toda evidéncia, se 0 ato que deveria ser praticado fosse vinculado, nada obstaria que o magistrado concedesse ao administrado o que fora postulado. Dou- tra parte, em se tratando de ato discriciondrio, caberia ao judicidrio determinar pra- 20 para 0 pronunciamento motivado da Administragao, sob pena de multa diéria.™ 6.2.2.4 O atendimento ao principio da motivagao enquanto exigéncia do contraditério e da ampla defesa Os atos administrativos devem ser motivados. Note-se que motivacao do ato administrativo é de tal relevancia que o art. 93, inciso X, da Constitui¢ao Federal determina que as decisées administrativas dos Tribunais devam ser motivadas. Daf a feliz observacao de Lucia Valle Figueiredo ao afirmar que “se quando 0 Judicidrio exerce funcdo atipica — administrativa — deve motivar, como conceber esteja o admi- nistrador desobrigado de tal conduta”?? Assim, todo ato administrativo, seja ele de cardter vinculado ou discricionario, deve ser motivado, independentemente de expressa provisdo em lei. Para melhor entendimento do principio da motivacao 6 adequado tragar a dife- renga entre motivo e motivaso. Nesta esteira, motivo é toda causa que produz ou tende a produzir uma aco, um efeito. No tocante 4 motivacao, essa se expressa pela justificativa apresentada. José Cretella Junior, ao discorrer sobre motivo e motivacao do ato administra- tivo, coloca o motivo como o elemento Iégico da formac&o da vontade, afirmando 2 FORTINI, Cristiana; PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho; CAMARAO, Tatiana Martins da Costa. Proceso advrinistrativo: comentarios & Lei 9.784/1999, p. 164, 4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 420. 2 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo, p.53. Agradecimentos Os meus mais sinceros agradecimentos ao meu orientador, Professor Clovis Beznos, dono de invejével cultura juridica, que com paciéncia e precisas observa des soube tao bem me conduzir na drdua tarefa de escrever uma tese de doutorado. Aos professores Marcio Cammarosano e Dinor4 Adelaide Musetti Grotti, pelas percucientes ponderacées e criticas feitas quando de minha qualificagao. As professoras Sonia Yuriko Kanashiro Tanaka e Carla Noura Teixeira, minhas colegas na Universidade Presbiteriana Mackenzie e amigas de todos os dias, apre- sento os meus agradecimentos por concordarem em integrar a banca examinadora da Pontificia Universidade Catélica. A todos os meus amigos que me acompanharam no desenrolar de meu traba- Iho, em especial aos Professores Rangel Perrucci Fiorin, Susana Mesquita Barbosa e Joao Manoel dos Santos Reigota ¢ Julio Cesar Chaves Cocolichio. Finalmente, um agradecimento especial para aquela que me recebeu de bragos abertos na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a minha queridissima amiga Pro- fessora Neyde Falco Pires, grande incentivadora deste trabalho. 98 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires que, se ndo houver motivo, nao haverd ato administrative. Nesse mesmo passo, 0 autor entende a motivac4o como a justificativa do pronunciamento. Nas palavras do autor, “ato motivado é aquele cuja parte dispositiva ou resoluta ¢ precedida de exposigéio de vazbes ou fundamentos que justificam a deciséio, quanto aos efeitos juridicos”.1 Em outro falar, os condicionantes faticos e de direito que estéo a ensejar a edigao do ato administrativo devem ser exaustivamente demonstrados, pelo que reputamos que toda atividade administrativa carece da devida e correta motiva- go, sob pena de vicio de ilegalidade. Rafael Bielsa assinala que “Os motivos- -pressupostos constituem elementos integrantes do ato, e sem eles a vontade esta viciada, 0 ato se invalida.”"* Nesse passo, o principio da motivagéo é essencial ao exercicio do controle da atividade administrativa, de sorte a se verificar o cumprimento do due process of Law. Liicia Valle Figueiredo coloca a motivagdo como ponto fulcral dos princ{pios consti- tucionais da atividade administrativa, afirmando, ao final: ‘A motivacdo atende as duas faces do due process of law: a formal ~ por- que esta expressa no texto constitucional basico; ¢ a substancial ~ sem a motivagdo no ha possibilidade de afericfo da legalidade ou ilegali- dade, da justi¢a ou da injustica de uma decisdo administrativa."* Carlos Roberto Siqueira Castro afirma ainda, com lucidez, que o atendimento ao principio da motivacio é elemento condicionante para se afastar a arbitrariedade e despotismo, in verbis: A bem dizer, a declinagéo dos motivos nas manifestagdes esta- tais criadoras, extintivas ou modificadoras de direitos, que carac- terizam os pronunciamentos de cardter decisério do Poder Piblico tornou-se por toda parte uma exigéncia do Estado Democritico de Direito. E que a idénea motivacao dos atos estatais que intercedam com interesses gerais da sociedade ou, singularizadamente, como interesses especificos de terceiros, afasta desde logo o sintoma do arbitrio e do despotismo, que a ordem constitucional repudia e o regime democrético deplora.'* © atendimento ao principio da motivagao extrapola a prépria estrutura do ato administrativo. Sua relevancia ¢ tal que se coloca como uma das garantias do Esta- ® CRETELLA JUNIOR, José. Curso de direito administrativo, 14. ed. rev. € atual. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 275-276, grifos do autor. “© BIELSA, Rafael. Principios del derecho administrative. 2. ed. Buenos Aires: Libreria y editorial El Ateneo, 1948. p. 75. 15 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administativo, p. 53. © SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. O devido processo legal e « razoabilidade das leis na nova constituigao do Brasil, p. 322. da Lei do Proceso Administrative Federal 99 A Aplicagio Subsidi do Democratico de Direito, na medida em que tem por condao afastar ou mesmo. debelar 0 arbitrio e o despotismo das autoridades. Uma vez gizados os contornos do principio da motivacdo, ainda que em aper- tada sintese, passemos a necesséria correlagao desse com o contraditério e a am- pla defesa. © princfpio do contraditério e da ampla defesa implica, necessariamente, a oportunidade que o interessado tem de reagir em face da Administrac4o. Entretanto essa oportunidade seria de todo impossivel de se realizar em concreto se ndo hou- vesse uma férmula, um método para se aferir se esta ou aquela atitude tomada pela Administragao verdadeiramente corresponde a espécie normativa prevista em lei. Para este fim, temos o principio da motiva¢do como instrumental adequado para se aferir se determinado fato, documento ou alegac4o influi sobre aquele ato que, de alguma forma, interfere na esfera particular do individuo. Diante das considerag6es precedentes cremos certo afirmar que a motivagao ¢ insita ao proprio principio do contraditério e da ampla defesa, estatuido no art. 5, inciso LV, da Constituigao Federal. Dessume-se, assim, que a motivagao encontra- -se implicita no comando constitucional precitado. Afinal, nao seria vidvel, possfvel ¢ exequivel o exercicio do contraditério e da ampla defesa se motivaco nao houvesse. Enfatize-se, nesse sentido, que a motivacao é o préprio sustentaculo do contra- dit6rio e da ampla defesa, pedra fundamental sem a qual o sagrado direito de defesa nao encontraria condi¢des de se sustentar. Por oportuno, advertimos que o aten- dimento ao principio da motivacao nao pode se limitar a despachos tao facilmente encontraveis em nossos Diérios Oficiais, tais como: indefiro por falta de amparo legal, sem dar as razdes que nortearam esse indeferimento, ou, ainda, indefiro conforme manifestagao de fls., e a manifestago de fls. simplesmente diz que o pleito deve ser indeferido por falta de amparo legal. Antonio Carlos de Aratijo Cintra muito bem elenca os requisitos da motivagao: A suficiéncia da motivag4o abrange a sua preciso, que importa le- var em conta as peculiaridades e circunstancias do caso concreto, nao se contentando com afirmagées genéricas e vagas, com meras repetig6es da linguagem da lei, com simples referéncia ao interesse ptiblico, a necessidade de servigo etc. Por outro lado, sob o aspecto formal, a motivagio deve ser clara e congruente, a fim de permitir uma efetiva comunicagéo com seus destinatérios. Realmente, se 2 motivacao for obscura, ininteligivel, contraditéria redundard na in- certeza e inseguranca sobre o verdadeiro significado do ato admi- nistrativo assim motivado. Assim, os requisitos da motivagdo so a suficiéncia, a clareza ea congruéncia."” ¥ ARAUJO CINTRA, Antonio Carlos de. Motive e motivagio do ato administrative. So Paulo: Revista dos Tri- bunais, 1979, p. 128-129, 100 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires ‘A motivagao deve ser precisa, sistemdtica, e ndo vaga e povoada por conceitos ocos. Somente assim ter-se-4 condi¢des de se discutir o mérito do ato administrati- vo; caso contrério, a defesa ficard limitada a questées de ordem processual e preli- minares relativas 4 formagio do ato administrativo. 6.2.2.5 Os principios da razoabilidade e da proporcionalidade em favor do contradit6rio e ampla defesa ‘Tem-se que 0 conceito do principio da razoabilidade nao foge ao sentido usual. Assim, razoabilidade, antes de tudo, é bom-senso. Na doutrina nacional Maria Pau- la Dallari Bucci expressa 0 contetido do princ{pio da razoabilidade: O principio da razoabilidade, na origem, mais que um principio juri- dico, é uma diretriz de senso comum ou, mais exatamente, de bom senso, aplicada ao direito. Esse “bom senso juridico” se faz neces- sdrio A medida que as exigéncias formais que decorrem do princfpio da legalidade tendem reforcar mais o texto das normas, a palavra da lei, que o seu espirito. A razoabilidade, formulada como princfpio jurfdico, ou como diretriz de interpretacdo das leis e atos da Admi- nistracao, €é uma orienta¢do que se contrapde ao formalismo vazio, a mera observancia dos aspectos exteriores da lei, formalismo esse que descaracteriza o sentido finalistico do Direito.”"* Assiste razo 4 autora ao afirmar que a razoabilidade implica bom-senso. Assim é que 0 atendimento ao principio da razoabilidade obriga a Administracao a pau- tar toda atividade administrada pela racionalidade, pela coeréncia e pelo equilibrio. Odete Medauar, por sua vez, assinala que o principio da razoabilidade encon- tra-se englobado pela proporcionalidade, assim se manifestando: Parece melhor englobar no principio da proporcionalidade o sentido de razoabilidade. O princfpio da proporcionalidade consiste, princi- palmente, no dever de nao serem impostas, aos individuos em geral, obrigacées, restricdes ou sangSes em medida superior Aquela estri- tamente necessdria ao atendimento do interesse piblico, segundo critério de razoavel adequagio dos meios aos fins." José Roberto Pimenta de Oliveira aduz: BUCCI, Paula Dallari. O principio da razoabilidade em apoio a legalidade. Cadernos de direito consti- tucional e ciéncia politica. So Paulo, 1994. p. 160-173. 8 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno, p. 143. A Aplicagto Subsididria da Lei do Processo Administrativo Federal 101 Majoritariamente a doutrina caminha para o entendimento de que, & luz do atual regime constitucional-administrativo, razoabilidade e proporcionalidade, como princfpios se equiparam, havendo entre eles uma sinonimia de significago juridica em seu perfil dogmatico, de- tectével na forma como se estruturam os respectivos contetidos, sob a égide da realidade constitucional configurada pelo Texto Magno de 1988, no qual se encartam e buscam seus fundamentos tiltimos.? Em que pese o entendimento dos autores supracitados, no nosso pensar, 0 princfpio da razoabilidade encontra-se intima e inarredavelmente ligado ao princi- pio da proporcionalidade, ainda que com contetidos juridicos distintos, como, alids, parece ser o entendimento de Carlos Ari Sundfeld.’! Para nés as atividades adminis- trativas devem ser pautadas pelo bom-senso (razoabilidade) de modo que os meios empregados sejam proporcionais 4 finalidade desejada (proporcionalidade). A importancia dos principios em comento, notadamente em se falando de pro- cessos sancionatérios, é significativamente relevante, levando o legislador a expli- citd-los como vetores do processo administrativo, nos termos do art. 22, caput, da Lei 9.784/99. Perceba-se que a incidéncia dos princfpios da razoabilidade e da proporcionali- dade devem ocorrer em todas as fases processuais, em especial no que diz respeito a fase instrutoria e deciséria. A fase instrutéria deve ocorrer com a necessaria celeridade e eficiéncia. A par disso a fase instrutéria consiste, ainda, em averiguar e comprovar os dados neces- sérios a tomada de decisio, devendo ser indeferidas as provas impertinentes e des- necessérias, inclusive aquelas de cardter protelatbrio. Logo, é mansa e pacifica a necessidade de balanceamento entre a necesséria celeridade e eficiéncia em relacao as decisdes que devem prestigiar o princfpio do contraditério e da ampla defesa, de modo a propiciar a obtencao da verdade material que serd o substrato da decisao que ira pér a controvérsia a termo. Entretanto os princ{pios da razoabilidade e proporcionalidade devem informar a decisdo administrativa. Assim, é evidente que a necessdria motivasao do ato admi- nistrativo decisério deverd ser norteada por ponderacées razoAveis e proporcionais entre 0 ilfcito cometido e a sang4o propriamente dita. Convém lembrar que o atendimento aos principios da razoabilidade e propor- cionalidade, em iltima anélise, implicam observancia do devido processo legal, em especial no que concerne ao aspecto substantivo. % — OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os principios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administra- tivo brasileiro, p. 158. 21 Carlos Ari Sundfeld observa que “a razoabilidade proscreve a irracionalidade, 0 absurdo ou a incongruén- ia na aplicagao (e, sobretudo, na interpretacéo) das normas juridicas. A proporcionalidade é expresso quan- titativa da razoabilidade” (Principia gerais do dirito piblico, 165). 102. A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires 6.2.3 As alegagoes finai Segundo o art. 44 da Lei 9.784/99 uma vez encerrada a instrucdo, o interessado terdo direito de manifestar-se no prazo maximo de dez dias, salvo se outro prazo for legalmente fixado. Trata-se, portanto, das denominadas alegacées finais que de- verdo ocorrer apés finda a instrugdo e antes do relatério final ¢ tomada de deciso administrativa.” Em sintese, as alegacGes finais se constituem nos argumentos que o interessa- do deverd aduzir de modo a comprovar o seu ponto de vista, com o objetivo de con- vencer a Administracao da inaplicabilidade da sangao. Como arremate a esse tépico nado podemos deixar de expressar nosso enten- dimento acerca das alegacées finais que, a nosso ver, se encontram “deslocadas”. Segundo pensamos, por forca do princfpio do contraditério e da ampla defesa, nada pode ser subtraido do interessado, como muito bem pondera Hely Lopes Mei- relles ao afirmar que a defesa é um principio universal nos Estados de Direito, nao comportando qualquer postergacdo ou mesmo qualquer restrico a sua aplicacfo.” Vale dizer, portanto, que qualquer prova, laudo ou documento deve ser submetido ao crivo do interessado, de modo que esse possa se manifestar. Assim, levando-se em consideracdo que a restri¢do ao direito de defesa ofende, em tiltima anélise, ao proprio Estado de Direito, hé que se observar que uma vez elaborado o relatério final devera esse ser submetido a final apreciago do interes- sado, ainda que inexista previsdo legal para tanto, dado a sua extrema relevancia no contexto do processo administrativo.’* E evidente, portanto, que apés a elaboracdo do relatério deve o particular inte- ressado manifestar-se pela derradeira vez, no podendo existir qualquer restricao ao principio do contraditério e da ampla defesa.* Vale dizer que a Lei 8.666/93 nao contemplou a figura das alegacées finais no processo sancionatério. Entretanto, nao temos dtividas que a obediéncia ao art. 44, da Lei 9.784/99 é medida que se imp6e. Nao podemos esquecer que a peca opinati- va que deve preceder a decisao da Administracdo pode, eventualmente, conter erros =" NOHARA, Irene Patricia; MARRARA, Thiago. Processo administraivo: Lei 9.784/99 comentada, Sao Paulo: ‘Atlas, 2009. p. 293. * MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 38. ed. atual. até a Emenda Constitucional 68, de 21.12.2011 por ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel, Sao Paulo: Malheiros, 2012. p. 757. % QSupremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Ordinério em Mandado de Seguranca n® 22.789- 7-RJ, que teve como relator 0 Ministro Moreira Alves, assim jé se pronunciou: “O relatério é uma pega de transcendental importéncia, que equivale, segundo alguns doutrinadores pétrios, pela sua prépria contextura uma verdadeira sentenca.” % PIRES, Lilian Regina Gabriel Moreira. Da instrucio do processo (arts. 36 a 47). In: FIGUEIREDO, Lii- cia Valle (Org). Comentdrios a le federal de processo administrativo. Belo Horizonte: Forum, 2. ed. 2008. p. 183. A Aplicacto Subsidiria da Lei do Processo Administrative Federal 103 ou ilegalidades, motivo pelo qual parece-nos bastante razoével a aplicacao subsi- didtia do dispositivo supramencionado.* 6.2.4 O relatério final Do ponto de vista da legalidade restrita, uma vez ofertada a defesa prévia, deve a Administra¢ao elaborar o relatério final, nos termos do art. 47 da Lei 9.784/99. As- sim, serd no relatério final que a autoridade competente para tanto deverd coligir to- dos os elementos constantes da fase instrutéria que deverao subsidiar a decisao final. Despiciendas maiores ilagdes para se concluir que o relat6rio final é de rele- vante importancia. Afinal, serd nessa pega que a autoridade incumbida da instrugao processual deverd manifestar o seu entendimento, devidamente motivado, propon- do a aplicago ou nao da sangao administrativa. Releva dizer que a necesséria isencao de animo e imparcialidade so elementos de todo necessérios, de modo que 0 relatério seja elaborado com uma abordagem suficiente e coerente com a fase instrutéria. 6.2.5 A decisdo Como dito alhures, é imperativo que o processo administrativo venha susten- tado por vetores principiolégicos consagradores da necesséria imparcialidade, pon- tilhada, ainda, pelo atendimento aos principios do contraditério, da ampla defesa e da motivacdo, de modo a subsidiar uma decisdo proferida em consonancia com os cAnones da justiga. 2 0 Superior Tribunal de Justica jé se pronunciou sobre a aplicabilidade do art, 44, da Lei 8.784/99, em anulagio do ato de habilitacéo que, a nosso ver, ¢ perfeitamente aplicvel ao processo sancionatorio. Segue a ecisio do STJ: “ADMINISTRATIVO. PROCEDIMENTO LICITATORIO. SERVIGO DE RADIOFUSAO SO- NORA. HABILITACAO ANULADA. MANIFESTACAO TEMPESTIVA NAO CONHECIDA. VIOLAGAO DO DIREITO AO CONTRADITORIO E A AMPLA DEFESA. 1, Trata-se de Mandado de Seguranga contra despacho do Ministro de Estado das Comunicagées, que, acolhendo parecer que reputou intempestiva a manifestagZo de defesa, anulou 2 habilitagdo da impetrante ‘em procedimento licitatério direcionado a prestagdo de servigo de radiodifusio sonora no Municipio de Vo- tuporanga/SP 2. Est comprovado nos autos que a impetrante protocolizou seu argumento de justificativa em 31.7.2009 (8. 127), portanto dentro do prazo de dez dias assinalado pela Comissio Especial de LicitagZo no Aviso publi- cado em 22.7,2009, 0 qual atende & norma do art. 44 da Lei 9.784/1999, 3, O ato impugnado viola direito liquido e certo ao contraditorio ¢ a ampla defesa da impetrante, por ter sido anulada sua habilitagao sem julgamento da manifestagdo tempestivamente apresentada. 4. Seguranca concedida” (MS 15.736/DE, Mandado de Seguranca 2010/0169.258-0, Rel. Ministro Her- man Benjamim, $1 — 1* Seco, data do julgamento 14.3.2011, Publicagao Dje 19.4.2011).. 104 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires Maiores ilagdes sdo desnecessérias para se concluir que o art. 48 da Lei 9.784/99 determina que a decisao prolatada em processo administrativo e devidamente moti- vada ~ art. 50 - consubstancia-se em um dever para a Administracao Piblica. E fato, ainda, que tal decisdo, nos termos do art. 49 do diploma legal em exa- me, deverd acontecer no prazo de 30 dias, contados do término da instrucdo, salvo prorroga¢ao por igual periodo expressamente motivada. Em boa hora o legislador estabeleceu prazo para que a Administragio se ma- nifeste, decidindo a questo discutida no bojo do processo administrativo, descar- tando a possibilidade de se invocar a discricionariedade administrativa, com vistas a justificar a auséncia do competente decisério. Porém o legislador, ainda que tenha evolufdo significativamente ao fixar pra- zo para a Administraco proferir a sua decisdo, nao estabeleceu qual seria a sancaio para o eventual descumprimento dessa regra, nem, tampouco, quais seriam as con- sequéncias juridicas para o administrado em face dessa omissao. Em outra oportunidade, j4 rechacamos qualquer posi¢do que defenda a tese de que o siléncio administrativo teria como significado, por exemplo, a aceitacZo ou rejeicao de determinada coisa, salvo se a lei expressamente atribuir tal efeito. Nao é demais dizer, todavia, que se a lei estabeleceu o exercicio obrigatério de uma competéncia e a Administracdo se omitiu, estaremos em face de uma ilegalida- de em razo da omissio, surgindo para o Administrado direito subjetivo de exigir da autoridade administrativa omissa a conduta comissiva imposta em lei - no caso a decisdo administrativa de aplica¢ao ou ndo da sangao ~ podendo fazé-lo na esfera administrativa, no exercicio do direito de peti¢ao (art. 58, XXXIV, “a”, da Constitui- 40 Federal), ou na via judicial. Outro aspecto que deve ser abordado de forma cuidadosa é a motivasao das decisdes da Administracdo Publica, que deve ocorrer, nas hipéteses elencadas nos incisos I a VIII, e as condigdes que deve observar, nos termos dos §§ 1° a 3°, todas do art. 50 da Lei 9.784/99. Segundo nosso pensamento, nao é 0 caso aqui de discutirmos a necessidade ou ndo da motivagao, tendo em vista que a Lei 9.784/99 dispoe claramente sobre 0 atendimento a tal principio, nao havendo mais lugar para qualquer discussio acerca da necessidade ou desnecessidade de se motivar os atos administrativos.” » Oswaldo Aranha Bandeira de Mello apontava a existéncia de duas correntes distintas: “A respeito da obri- sgatoriedade de enunciacéo da motivago dos atos administrativos hé duas posigGes antagdnicas, segundo se trate de atos decorrentes de podetes vinculados ou discriciondrios. Uma entende que os frutos de poderes vinculados no precisam trazer declaragio dos seus motivos, porquanto facil & a verificagao, para efeito de controle judicial, se o seu objeto é licito; enquanto os decorrentes de poderes discriciondrios necessitam de vir motivados, a fim de verificar-se, para efeito de controle judicial, se 0 ato foi praticado segundo o interesse coletivo em geral, e, ainda, em conformidade com o interesse coletivo que especifica a sua natureza, proprio de sua categoria. J4a outra pretende que, em se tratando de exercicio de poderes vinculados, se imp6e a moti- vvago do ato, sem 0 que ele ser invélido; ao passo que no caso do exercicio de poderes discriciondrios, se nfo constitui exigéncia legal, € dispensével” (Princtpios gerais de dreito administrativo, p. 537). A Aplicacto Subsidiria da Lei do Processo Administrative Federal 105 Entretanto nao podemos olvidar que o atendimento ao principio da motivagao é uma das garantias do devido processo legal substantivo. Em outro giro, é median- te o exame da motivacdo que serd possivel verificar a existéncia de uma congruéncia Jégica — razoabilidade e proporcionalidade — entre os motivos invocados e 0 conte- tido do ato administrativo. Assim, decisao prolatada fora dos parametros sobreditos é ato administrativo que ofende o devido processo legal substantivo, devendo ser expurgada do mun- do juridico. Sobremais, e no caso especifico do art. 50, inciso II, que nos interessa mais de perto por tratar, dentre outros, de san¢Ges administrativas, com mais razdo deve ser motivada, afinal quando o Estado intervém na esfera de direitos do particular, de forma autoexecutéria, é imperioso que se demonstrem os motivos faticos e de di- reito autorizadores da penalizacao. 6.2.6 O recurso ea revisdo administrativa O duplo grau de jurisdigao é prestigiado pelo art. 56 da Lei 9.784/99, que pre- vé expressamente a hipétese de recurso administrativo, por razdes de legalidade e de mérito. Com efeito, caber4 recurso administrative em razo de condutas contrarias a0 ordenamento juridico ou, ainda, contra decisdes de caréter discricionério onde se questiona o mérito da decisao. Ainda que nao haja razGes para se distinguir 0 controle decorrente do exercicio da autotutela de atos vinculados e discriciondrios, pensamos que o legislador muito bem andou ao fazer essa distincdo, de modo a se afastar qualquer interpretagao de cardter restritivo. De igual modo, feliz também é a hipétese prevista no § 1° do jé citado art. 56 que disp3e sobre o pedido de reconsiderago. Assim, o recurso dever4 ser encami- nhado a autoridade que proferiu a decisdo, a qual, se ndo reconsiderar no prazo de cinco dias, providenciaré o encaminhamento a autoridade superior.® Nesse mesmo contexto, o § 2° do art. 56 também vem a prestigiar a universa- lidade do principio do contraditério e da ampla defesa, na medida em que admite a 3* Celso Antonio Bandeira de Mello em examinando a questdo do pedido de reconsideragao com o sucessi- ‘Yo recurso administrativo observa: “com isso lei terminou por extinguir 0 recurso voluntério, criando um recurso de oficio sucessivo aos pedidos de reconsideracao nao atendidos. Reconhega-se que a solugao adotada na lei federal, conquanto esdrixula, na medida em que traz consigo uma alteragdo no conceito universal de ‘recurso’, ndo ofende tal dircito, pois a consequéncia do que nela se dispée em nada afeta 0 sentido da norma constitucional do art. 58, LV, que impée o direito de recurso. Ela apenas suprime 0 nomen jiris ‘pedido de re- considera¢io’, passando a englobé-lo no interior de um recurso ‘de oficio’, quando no reconsiderada a deci- 840” (Curso de dreito administrativo, p. 528). 106 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires interposi¢ao de recurso, independentemente de caucao, salvo se previsto em legis- lago especifica. Afora isso, o art. 57 dispde sobre o ntimero de instancias administrativas pelas quais o recurso podera tramitar — trés instancias — nada impedindo que lei especifi- ca disponha sobre a possibilidade da interposic&o de recurso hierarquico impréprio. Quanto 4 questdo dos prazos, cremos ser relevante destacar que a interposi¢ao de recurso, salvo disposicao legal especifica, deverd ocorrer em 10 dias, contados da ci€ncia ou divulgacéo oficial da decisao recorrida, devendo a autoridade administra- tiva proferir a sua decisdo no prazo de 30 dias, contados do recebimento dos autos pelo érgdo competente, salvo se a lei nao fixar prazo diferente, tudo nos termos do art. 59 da Lei Federal do Processo Administrativo. Por oportuno, registre-se que 0 recurso administrativo sera recebido apenas no efeito devolutivo, salvo disposico legal em contrério, conforme o art. 61 do diploma legal jA citado. Por tiltimo, de relevante importancia é o art. 64 que dispde sobre a possibili- dade da autoridade competente para decidir 0 recurso, confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decis4o recorrida, se a matéria for de sua com- peténcia, podendo ainda impor um gravame a situaco do recorrente, hipétese em que esse deverd ser cientificado para que formule suas alegagGes antes da decisao. Note-se que 0 aludido art. 64 consagrou o principio da verdade material permi- tindo, destarte, que a Administracdo nAo fique restrita Aquilo que as partes demons- traram no procedimento, com vistas a perseguir a verdade real, independentemente do que foi carreado aos autos do processo administrativo. ‘A magnitude da busca da verdade real dos fatos é de tal monta que se admite, inclusive, a pratica da reformatio in pejus, na medida em que previsto o agravamento da situagao em razio da interposicao de recurso administrativo. ‘Ainda que estejamos perante a possibilidade da pratica do reformatio in pejus, de- vemos receber com reservas tal hipétese, sob pena de se conceber verdadeira restri- ¢4o ao direito de se valer da instancia recursal. No nosso entendimento a reformatio in pejus, em principio, viria a restringir 0 contraditério e a ampla defesa que, apesar de prévio, desdobra-se em direito a recurso administrativo. Todavia queremos crer que o legislador resolveu a questo em razo da necessi- dade da prévia oitiva do recorrente, quando houver a possibilidade de agravamento da situagdo, conforme art. 64, pardgrafo tinico, da Lei 9.784/99. Doutra parte, também nao podemos aceitar que a reforma em prejuizo possa ‘ocorrer livremente. Parece-nos que o mais acertado é admitir o reformatio in pejus quando se tratar, tao somente, de flagrante ilegalidade que, em iltima andlise im- plica no exercicio da funco administrativa.? ® Sergio Ferraz e Adilson Abreu Dallari observam: “no é possivel agravar discricionariamente a situacéo do recorrente; somente pode haver agravamento por razées de direito, em virtude de algum vicio juridico, de alguma ilicitude na decisio recorrida. Havendo esse pressuposto, antes da decisao dever4 ser proporcionada a0 recorrente a oportunidade de exercer 0 contraditério e a ampla defesa. Dessa maneira fica preservaco 0 A Aplicagfo Subsididria da Lei do Processo Administrative Federal 1O7 De igual importancia, o art. 65 admite que processos administrativos de que resultem sangGes possam ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de oficio, quando surgirem fatos novos ou circunstancias relevantes suscetiveis de justificar a inadequacao da sangao aplicada, inadmitindo-se 0 agravamento da sancao. HA que se verificar, portanto, que a revisdo, de oficio ou provocada, recebe tra- tamento diverso do recurso administrativo. ‘Assim, bem acentuaram Sergio Ferraz ¢ Adilson Abreu Dallari, ao afirmarem que a mola propulsora da revisdo é a inadequaco ou a inconveniéncia da mantenga da penalidade imposta, em razdo do surgimento de fatos novos ou circunstancias relevantes que possam justificar a modificagSo pretendida.*° 6.3 Asancao admi ea Lei 9.784/99 ta na Lei 8.666/93 istrativa pre E de se ver, ainda que a legislacdo de regéncia ndo tenha estabelecido um pro- cedimento especifico para aplicac4o de sangées, a Lei 9.784/99 deve ser aplicada subsidiariamente. Decorrente disso, uma vez verificado 0 ilfcito, deve a Administra¢4o instaurar regular processo administrativo sancionatério, mediante a edigao de ato adminis- trativo especifico contendo todas as informag6es necessérias de modo que o in- teressado possa conhecer a pretensio da Administracio Piiblica, sendo vedada a utilizagdo de descrigdes genéricas de fatos, sem qualquer tipificacdo e correto en- quadramento sancionatério, sob pena de ofensa ao devido proceso legal. Apés isso, abre-se o prazo de 5 dias uteis para oferta de defesa prévia, ficando nesse mesmo ato franqueado vistas do processo ao interessado, sendo possivel pos- tular pela producao de provas documentais, periciais e testemunhais, dentre outras. principio da legalidade, que é fundamental no regime juridico administrativo e, ficam ressalvadas as garantias ‘constitucionais do cidadao” (Processo administrativo, p. 191). De sua vez Liicia Valle Figueiredo parece admitir 0 reformatio in pejus somente no exercicio da funco ad- ministrativa, ainda que reconheca que a Lei do Processo Administrativo Federal disponha efetivamente sobre ‘essa possibilidade: “Anteriormente, na I? edigao, escrevemos ser posstvel o reformatio in pejus, excluindo-a dos processos sancionatério e disciplinares. Todavia, remeditando o tema, em edigées posteriores, entendemos que esta apenas é possivel como co- natural 8 explicitagio da fungo administrativa. Portanto, quando o processo revisive for feito de ‘oficio’ pela Admi- ristragio ou, se provocadamente, encontrem-se outros envolvidos, como por exemplo, nos procedimentos concorren- ciais. Mas, na verdade, nao serd reformatio in pejus. Ll Todavia, ao que se nos afigura, a Lei federal 9.784/1999 possibilitou o refermatia in pejus. Veja-se a teor do art. 64 da lei, em que, claramente, se fala da possibilidade de ocorrer gravame para 0 aéministrado, quando, centio, dar-se-4 ao mesmo o direito de fazer suas alegag6es finais” (Curso de direito administrativo, p. 455-456). 2 FERRAZ, Sergio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo, p. 191. 108 A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires Uma vez encerrada a instrugao, o interessado devera manifestar-se, ofertando as suas alegacOes finais, no prazo de 10 dias. Apés isso ser elaborado o relatério final,2" com posterior decisao, que dever4 ser necessariamente motivada. 31 As conclusées constantes do item 6.3, a nosso ver, esto em consonancia com o principio da legalidade restrita, motivo pelo qual nfo contemplamos o nosso entendimento acerca de uma tiltima manifestaao do interessado ap6s a elaboracao do relat6rio final. 7 A Desconsideracao da Personalidade Juridica no Direito Privado Preliminarmente, é impositivo conhecer qual é a acep¢ao jurfdica concedida ao termo “pessoa”. No direito romano, somente se considerava pessoa o homem. Posteriormente, o conceito evoluiu, e passou a abarcar o sujeito de direitos, nao in- cluindo os escravos que eram objeto de direito. Disso deflui que para ser considera- do sujeito de direitos era necessirio ser livre e ser cidadao.! Maria Helena Diniz ensina que “pessoa” é 0 ente fisico ou coletivo suscetivel de direitos e obrigagses, sendo sindnimo de sujeito de direito, pelo que se extrai a existéncia das denominadas pessoa natural ¢ pessoa jurfdica.” Deocleciano Torrieri Guimaraes, por sua vez, conceitua “pessoa” como sendo: Ser que é capaz de exercer direitos ¢ contrair obrigages. O CC di- vidi-a em pessoa natural e pessoa juridica [...] As pessoas juridicas sio de direito piiblico, interno ou externo, e de direito privado. De direito publico interno sao a Unido, cada um dos Estados e o Dis- trito Federal, cada um dos municipios legalmente constituidos, e so civilmente responsdveis pelos atos de seus representantes. S40 pessoas juridicas de direito privado: as sociedades civis, religiosas, 1 NAHAS, Thereza Christina. Desconsideragda da pessoa juridica: reflexos civis e empresariais no dircito do tra. balho. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p.12. DINIZ, Maria Helena. Curso de dreito civil brasileiro: teoria geral do Direito Civil. 29. ed. So Paulo: Malhei. 105, 2012. v. 1. p. 115, 110 A Desconsideraao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires cientificas ou literdrias, as associagdes de utilidade ptblica e as fun- dagées; as sociedades mercantis.* De Placido e Silva faz as seguintes observacées acerca de “pessoa” e “Pessoa Juridica”: Derivado do latim persona, no sentido técnico-juridico, exprime ou designa todo ser, capaz ou suscetivel de direitos e obrigacGes. Praticamente, é 0 ser, a que se reconhece aptido legal para ser suj to de direitos, no que se difere da coisa, tida sempre como 0 objeto de uma relaso jurfdica. Essa investidura juridica, cometida a pessoa, no caréter de uma re- presentacfio, de que decorre a personalidade, em virtude da qual se firma 0 conceito, em que se tem a expressdo, é consequéncia da pré- pria formacio etimolégica do vocabulo. | Em oposigfo a pessoa natural, expresso adotada para a indicacfo individualidade juridica constituida pelo homem, é empregada para designar instituigdes, corporagées, associagdes e sociedades, que, por forca ou determinacdo da lei, se personalizam, tomam individua- lidade propria, para construir uma entidade juridica, distinta das pessoas que a formam ou que a compdem. Diz-se jurfdica porque se mostra uma encarnagdo da lei. E, quando nao seja inteiramente criada por ela, adquire vida ou existéncia legal somente quando cumpre as determinagoes fixadas por lei.* Com efeito, pessoa é, em principio, o ser humano. Todavia, 0 direito permite a criacdo de abstracdes, de ficcdes juridicas denominadas de pessoas juridicas. Segun- do Silvio Rodrigues, a pessoa juridica nasce em razao da deficiéncia humana, tendo em vista que, por vezes, o homem nio se encontra provido dos recursos necessérios para atingir determinada finalidade, sendo necessdrio associar-se a outros, de modo a constituir um organismo capaz de atingir 0 objetivo colimado.> Quanto ao nosso direito positivo, o art. 40 do Cédigo Civil Brasileiro estabele- ce a existéncia de pessoas juridicas de direito publico, interno e externo, e pessoas juridicas de direito privado. 3 GUIMARAES, Deocleciano Torrieri. Dicionério compacto juridico. 15. ed. S40 Paulo: Rideel, 2011. p. 453. * SILVA, De Placido e. Vocabulério juridico. 27. ed. So Paulo: Forense, 2006. p. 1038-1039. 5 RODRIGUES, Silvio. Direio civil I: parve geral. 34. ed. So Paulo: Saraiva, 2002. v.1, p. 86-70. A Desconsideracio da Personalidade Juridica no Direito Privado 111 Sem nenhum desprestigio as pessoas juridicas de direito piblico, passemos a nos debrucar sobre as pessoas juridicas de direito privado, com vistas ao desenvol- vimento da tese a qual nos propusemos defender. A pessoa juridica de direito privado O art. 45 do Cédigo Civil é bastante claro ao estabelecer que a existéncia legal das pessoas juridicas de direito privado comega com a inscri¢ao do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessério, de autorizagao ou aprovacio do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alteragdes por que passar 0 ato constitutivo. Fabio Konder Comparato ensina que a personalizacdo tem por escopo estabele- cer centro de interesses auténomos, distintos dos interesses das pessoas que com- poem a pessoa juridica.® E de se concluir que a pessoa juridica possui personalidade juridica diversa da- queles que integram a sociedade. De igual forma, a sociedade também possui patri- ménio distinto daqueles que integram o seu quadro societario. Logo, ao se personalizar a sociedade empreséria, e a ela conferir o titulo de “pessoa”, cria-se, por corolério, a autonomia patrimonial, na medida em que os s6- cios usam seu dinheiro ou bens para constituir a empresa e, a partir dai, esses pas- sam a pertencer a Sociedade. Nao é demais insistir que a autonomia patrimonial é uma das mais sobran- ceiras consequéncias da personalizacao, de forma a permitir que nao sé os sécios, como também seus administradores sejam considerados como pessoas distintas, pelo que so isentos de responsabilidade pelos atos sociais.’ Na hipétese de a sociedade contrair dividas, por essas responderd integralmen- te, até o montante de seu patriménio, como acontece com qualquer um de nés. A toda evidéncia, a personalidade jurfdica e a autonomia patrimonial so os limitado- res da possibilidade de perda dos bens dos sécios em decorréncia de determinado négocio licito mais arriscado.? Diga-se de passagem, alids, que o Cédigo Civil, em seu artigo 12, estabelece que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Em seu artigo 11, dis- poe sobre a intransmissibilidade e irrenunciabilidade dos direitos de personalidade, * COMPARATO, Fabio Konder; SALOMAO FILHO, Calixto. O poder de controle da sociedade andnima. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 356 7 NAHAS, Thereza. Desconsiderapao da pessoa juridica: reflexos civis e empresariais no direito do trabalho, p. 96. © DE SOUZA, Andre Pagani. Desconsiderago da personalidade juridica: aspectos processuais. In: BUENO, Cés- sio Scarpinella (Org). Téenicas de direito processual. 2. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2011. p. 74. (Coleco direito e processo).. 112 A Desconsideraa0 da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires “com exce¢ao dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade sao intrans- missiveis e irrenuncidveis, nao podendo o seu exercicio sofrer limita¢ao voluntaria”. Ora, se os direitos da personalidade sao de cardter intransmissivel e irrenun- cidvel, parece-nos bastante certo asseverar que suas obrigacGes, em regra, também. © serao e, portanto, em principio, as obrigacdes das pessoas juridicas nao poderdo ser cobradas das pessoas fisicas que a constituem. Impende considerar, ainda, que a personalizacao da pessoa juridica é de caréter instrumental, tendo por objetivo alcancar as finalidades a que ela se propée e que, necessariamente, devem ser lcitos e em consondncia com a ordem juridica em vigor. Doutra parte, caso a sociedade seja utilizada em desconformidade com os seus objetivos legais, impossivel seré invocar a questo da autonomia patrimonial, sur- gindo, assim, a teoria da desconsideragdo da personalidade juridica.’ 7.2 Breves reflexées histéricas sobre a teoria da desconsideracao da personalidade juridica Disregard Doctrine, ou Doutrina da Desconsideracdo, possibilita retirar, ainda que temporariamente, o véu da autonomia patrimonial e buscar 0 patriménio dos sécios. E certo, portanto, que a teoria da desconsidera¢ao da personalidade juridi- ca pressupée a existéncia de uma sociedade constituida de acordo com a legislacio aplicavel a espécie. Em um primeiro momento, a importancia da personalidade juridica com os efeitos que Ihe so inerentes era considerada insuscetivel de afastamento, configu- rando-se, pois, em um verdadeiro dogma. Porém, a partir do século XIX comesaram a surgir certas preocupacées relativas 4 mé utilizacao da autonomia patrimonial. Verifica-se que o berco da desconsideracao da personalidade juridica reside nos pafses que adotam o common law — Reino Unido e Estados Unidos da América. Se- gundo consta, a decisdo judicial precursora da teoria da desconsideracao da perso- nalidade juridica remonta ao ano de 1809, no caso Bank of United States x Deveaux, quando o juiz Marshall manteve a jurisdicao das cortes federais sobre as corporations —a Constituicdo Americana (art. 3°, secdo 24) reserva a tais érgaos judiciais as lides entre cidadao de diferentes Estados. Ao fixar a competéncia acabou por desconside- rar a personalidade juridica, sob o fundamento de que nfo se tratava de sociedade, mas sim de sécios contendores.'° * DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira (Coord.). Desconsideragio da personalidade da pessoa juridica: vis critica da jurisprudéncia. Sao Paulo: Atias, 2009. p. 4. © GUIMARAES, Marcio Souza. Aspectos modernos da teoria da desconsideracio da personalidade ju- ridica. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n° 64, 1 abr. 2003 . Disponivel em: . Acesso em: 26 ago. 2012. A Desconsideracdo da Personslidade Juridica no Direito Privado 113 O segundo caso ocorreu em 1897, na Inglaterra. Aaron Salomon, com mais seis membros de sua familia, criou uma company, em que cada s6cio era detentor de uma aco, reservando 20.000 acées a si, integralizando-as com o seu estabelecimento comercial, sendo certo que Aaron Salomon jé exercia a mercancia, sob a forma de firma individual. Os credores oriundos de negécios realizados pelo comerciante i dividual Aaron Salomon viram a garantia patrimonial restar abalada em decorréncia do esvaziamento de seu patriménio em prol da company. Com esse quadro, 0 juizo de primeiro grau declarou a fraude com o alcance dos bens do sécio Aaron Salomon. Ressalte-se, entretanto, que a House of Lords, reconhecendo a diferenciacao patrimo- nial entre a companhia e os sécios, nao identificando nenhum vicio na sua consti- tuicao, reformou a decisao exarada." Todavia, foi o alem&o Rolf Serick, da Universidade de Tiibingen, nos anos 1950, que se propés a sistematizar a teoria da desconsideragio da personalidade juridica, baseando-se em quatro principais proposigées: ( caso a estrutura formal da pessoa jurfdica seja utilizada da ma- neira abusiva, o juiz poderé descarté-la para frustrar o resultado con- trdrio ao Direito que se persegue; (II) nao é suficiente a alegacao de que sem a desconsiderac&o nao se possa atingir a finalidade de uma norma ou de um negécio juridico; (III) as normas fundantes nas qualidades ou capacidades humanas, ou que considerem valores hu- manos, também devem ser aplicadas as pessoas juridicas quando a finalidade da norma corresponder a esta classe de pessoas, admitin- do-se que se penetre na personalidade das pessoas situadas atras da pessoa jur{dica para comprovar se concorrem as hipsteses das quais depende a eficdcia da norma; (IV) se a forma da pessoa juridica for utilizada para ocultar a identidade que, de fato, existe entre as pes- soas que intervieram em um determinado ato, poder ser descartada tal forma quando a norma dos sujeitos interessados nao é puramen- te nominal, mas verdadeiramente efetiva.'? De qualquer modo, historicamente jé se encontrava consagrado que o pressu- posto para a desconsideracao da personalidade juridica reside na existéncia da en- tidade personalizada que, episodicamente, é ignorada em beneficio dos credores de boa-fé, em razdo de decisdo judicial, a titulo de excecdo do principio da separacdo patrimonial. Trata-se, portanto, do instituto do disregard of legal entity, ou simples- mente, para nds, desconsideracao da personalidade juridica. 1 Thidem, acesso em: 26 ago. 2012. = DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira (Coord). Desconsiderazio da pessoa juridica: visio critica da ju- risprudéncia. So Paulo: Atlas, 2009. p. 5, apud SERICK, Rolf. Forma e realta della persona giuridica. Traducéo de ‘Marco Vitale. Milano: Giufire, 1966, passim, 114 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires 7.3 A desconsidera no direito brasi da personalidade juridica ‘oO A desconsideracao da personalidade jurfdica tem como sustentdculo doutrind- rio e jurisprudencial a superacao da autonomia patrimonial, em razao de fraude ou abuso de direito cometido pelos integrantes de determinada sociedade. No dizer de Fabio Uthoa Coelho: Em razfo do princfpio da autonomia patrimonial, as sociedades em- presérias podem ser utilizadas como instrumento para a realiza¢ao de fraude contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medi- da em que € a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigagGes, endo os seus sécios, muitas vezes os interesses dos cre- dores ou terceiros sao indevidamente frustrados por manipulagbes na constitui¢o de pessoas jurfdicas, celebragio dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realizaco de operacdes societé- rias, como as de incorporacio, fusio, cisio."° Quanto ao nosso direito positivo, o primeiro diploma legal a tratar da ques- tdo foi a Lei 8.078/90 - Cédigo de Defesa do Consumidor - que em seu art. 28 assim dispée: Art. 28. O juiz poderd desconsiderar a personalidade juridica da socie- dade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infraco da lei, fato ou ato ilfcito ou violacdo dos es- tatutos ou contrato social. A desconsideragdo também ser4 efetivada quando houver faléncia, estado de insolvéncia, encerramento ou inati- vidade da pessoa juridica provocados por m4 administracao. [1 § 5 Também poderd ser desconsiderada a pessoa juridica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstéculo ao ressarci- mento de prejuizos causados aos consumidores. Logo em seguida sobreveio a Lei Antitruste — Lei 8.884/94, atualmente revoga- da pela Lei 12.529/11, que preservou a hipétese da desconsideracdo da personali- dade juridica, nos seguintes termos: Art. 34. A personalidade jurfdica do responsavel por infracao da or- dem econémica poderd ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infragdo da lei, fato ou ato ilicito ou violacao dos estatutos ou contrato social. 8 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 16. ed. Séo Paulo: Saraiva, 2012. v. 2, p. 55. A Desconsideracdo da Personslidade Juridica no Direito Privado 115 Pardgrafo tinico. A desconsideragao também serd efetivada quando houver faléncia, estado de insolvéncia, encerramento ou inatividade da pessoa jurfdica provocados por m4 administracio. Por sua vez, a Lei 9.605/98 sobre a responsabilidade por danos ao meio am- biente, onde o legislador pAtrio, mais uma vez, possibilitou a desconsideracao da personalidade juridica em seu art. 4°: ‘Art. 42 Poder ser desconsiderada a pessoa juridica sempre que sua personalidade for obstéculo ao ressarcimento de prejuizos causados & qualidade do meio ambiente. Finalmente, temos o Novo Cédigo Civil que, em seu art, 50, dispde sobre a des- consideracao da personalidade juridica nos seguintes termos: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade juridica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusdo patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Publico quando Ihe couber intervir no proceso, que os efeitos de certas e determi- nadas relages de obrigagdes sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sécios da pessoa juridica. Antes de passar ao exame de cada um dos dispositivos precipitados parece-nos importante lembrar que a desconsideracdo da personalidade juridica s6 deve acon- tecer a titulo excepcional, quando devidamente necessirio. Para que nfo reste qualquer diivida, releva enfatizar que a desconsideraco da per- sonalidade juridica é uma medida excepcional e como tal deverA ser tratada. Logo, nao faz qualquer sentido pensar em langar mo do instituto em comento sem antes restar claro a sua necessidade para o cumprimento da obrigago que se busca com a descon- sideracdo. Portanto nao haveria motivo para desconsiderar a personalidade juridica e buscar o patriménio dos sécios para fazer frente a eventuais débitos, se restar provado que, embora seja possivel a desconsideragao, a sociedade tem condigGes de, por si sd, arcar com os pagamentos devidos, sem o socorro do patriménio de seus sécios. Logo, a desconsideraco da personalidade juridica deve passar pelo crivo do principio da necessidade, que nao autoriza o afastamento do véu da pessoa juridica, ‘caso nfo reste comprovado que essa é a tinica forma vidvel de se atingir o fim pre- tendido que se constitui na satisfagio de eventuais débitos. 7.3.1 Desconsideragao no Codigo de Defesa do Consumidor © Cédigo de Defesa do Consumidor, conforme jé dito anteriormente, traz em seu bojo a desconsideragao da personalidade jurfdica, nos termos do artigo 28. 116 A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires Despiciendas maiores consideragées para se concluir que o Cédigo do Consu- midor tem por objetivo a protegao ao direito da parte mais fraca na relacdo juridica, no caso o consumidor, nos termos do art. 170 da Constituigo Federal, que estabe- lece os princfpios da ordem econdmica brasileira. Note-se, ainda, que 0 art. 28 do Cédigo de Defesa do Consumidor traz consigo um rol de hipéteses em que se autoriza a desconsideragao da personalidade juridi- ca, permitindo, inclusive, que 0 juiz da causa aplique de oficio o instituto estudado, diferentemente do Cédigo Civil que estabelece como condicao 0 requerimento da parte ou do Ministério Pablico. Insta esclarecer, ainda, que o art. 28, ao estabelecer que “o juiz poder4 descon- siderar a personalidade juridica da sociedade” nao traz consigo uma faculdade, mas antes um dever. Logo, correto é dizer que inexiste qualquer discricionariedade ao érgio judiciario, desde que presentes os elementos autorizadores da desconsidera- ao da personalidade juridica."* 7.3.2 Desconsideragao na Consolidagao das Leis do Trabalho A Consolidago das Leis do Trabalho - CLT - em seu art. 22, § 22, prevé a possi- bilidade de se considerar todo e qualquer grupo de empresas, bem como seus con- troladores como sendo uma entidade tinica, estabelecendo uma relacao de respon- sabilidade soliddria entre todas as empresas envolvidas. Tal qual o Cédigo do Consumidor, a legislagao laboral pauta-se pela protegao a parte mais fraca da relacdo, no caso o empregado. Tereza Nahas muito bem obser- va que o legislador ordindrio estabeleceu uma desigualdade de partes, de modo a manté-las iguais no plano da negociacao. Registra, ainda, a autora, que “somente haver4 ordem econémica regular se houver respeito & valorizacao do trabalho e ob- servancia ao princfpio da busca do pleno emprego”.= Com as devidas ressalvas de um nao conhecedor dos detalhes da legislacio laboral, parece-nos que a CLT é omissa quanto A responsabilidade dos sécios pelos débitos trabalhistas da empresa. Ainda que assim seja, nao é vedada a aplicacao da legislaco comum, nos termos do art. 8°, par4grafo tinico, da Con- solidacao das Leis do Trabalho, pelo que se entende perfeitamente possivel a aplicagdo subsididria do novo Cédigo Civil Brasileiro, possibilitando, destarte, que a execu¢do converta-se contra o patrim6nio dos sécios ou de seus gestores, nas hipéteses previstas em Lei. '* NAHAS, Thereza. Desconsideragio da pessoa juriica: reflexos civis e empresariais no direito do trabalho. 2. ed, rev. atual, Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 108. 5 Tbidem, p. 106-107. A Desconsideracto da Personalidade Juridica no Direito Privado 117 7.3.3 A desconsideracao da personalidade juridica ao lume da Lei 12.529/11 A Lei 8.884/94, conhecida por lei antitruste, foi revogada pela Lei 12.529/11, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorréncia, dispondo, ainda, so- bre a prevencao e repressao as infracdes contra a ordem econémica. Com efeito, segundo o art. 34 da Lei 12.529/11, a personalidade juridica do responsével por infracdo da ordem econémica poderd ser desconsiderada quando se caracterizar o abuso de direito, excesso de poder, infracao da lei, fato ou ato ilfcito ou viola¢ao dos estatutos ou contrato social, bem como nas hipéteses de faléncia, estado de insolvéncia, encerramento ou inatividade da pessoa juridica provocados por m4 administracao. O art. 34, em comento, é uma cépia das disposi¢ées constantes da lei revogada que, por sua vez, também copiou, praticamente, as regras estabelecidas no Cédigo do Consumidor. Assegura-se, entretanto, que no caso da Lei 12.529/11 nao se est4 a assegurar a parte mais fraca de uma relaco jurfdica, mas sim o interesse piblico imanente a essas relacdes. Dessume-se, portanto, que se presente o interesse piblico, aplicam-se, de pla- no, as regras do regime juridico administrativo, pelo que as disposicdes do Codigo Civil devem, em principio, ser afastadas. .4 A desconsideracao da personalidade juridica no direito ambiental O art. 3°, caput, da Lei 9.605/98, é cristalino ao dispor que as pessoas juridicas serao responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o determina- do em Lei, nos casos em que a infracdo seja cometida por decisao de seu repre- sentante legal ou contratual, ou de seu érgdo colegiado, no interesse ou beneficio da sua entidade. © exame da legislagao ambiental invocada leva-nos a uma conclusao por de- mais ébvia, na medida em que estabelece que as pessoas juridicas respondem pe- los atos de seus gestores, quando praticados no interesse ou beneficio da entidade. Deveras, todo e qualquer ato praticado em consonancia com os atos societarios da entidade se constitui em ato de empresa, cabendo a essa por ele responder. Na verdade, a questo da desconsideracdo da personalidade juridica encontra- -se prevista no pardgrafo tinico do art. 3° da Lei 9.605/98 que prescreve que a res- ponsabilidade das pessoas juridicas nao exclui a das pessoas fisicas, autoras, coau- toras ou participes do mesmo fato. Introducao O art. 87, incisos III e IV, da Lei 8.666/93, estabelece, respectivamente, a pena de suspensao temporaria de participacao em licitagéo e impedimento de contratar com a Administracdo, por prazo nao superior a 2 (dois) anos e a declaracao de ini- doneidade para licitar ou contratar com a Administracdo Publica enquanto perdura- rem os motivos determinantes da puni¢ao ou até que seja promovida a reabilitacdo perante a propria autoridade que aplicou a penalidade, que ser concedida sempre que 0 contratado ressarcir a Administragao pelos prejuizos resultantes e apés de- corrido o prazo de dois anos. Por sua vez, o art. 78, da Lei 10.520/02, dispde sobre o impedimento de licitar € contratar com a Unido, Estados, Distrito Federal ou Municipios e o descredencia- mento no SICAE pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuizo das multas previs- tas em edital € no contrato, ¢ das demais cominagGes legais. Todavia, em que pese 0 fato da legislacdo vigente estabelecer rigidas sancées aos licitantes e contratados que venham a cometer ilicitos, a pratica revela que isso nao suficiente, posto que, uma vez aplicada qualquer uma das sancoes restriti- vas do direito de licitar e contratar com a Administracao, os sécios da empresa se constituem em uma nova pessoa juridica, muitas vezes no mesmo endereco e com © mesmo objeto social ¢, assim, continuam a participar dos certames instaurados pelo Poder Ptiblico, burlando a Lei. Para coibir esse tipo de atitude que, sem diividas, configura fraude ¢ abuso da pessoa juridica, temos, como tinica saida, a utilizagao da teoria da desconsideracio da personalidade juridica, ainda que inexista expresso arrimo na legislagao das lici- tages ¢ contratos. 118 A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires ‘Aduz-se, portanto, que, embora o ato seja de responsabilidade da pessoa juri- dica, poderé também ser de responsabilidade dos s6cios ou de terceiros na hipétese desses terem colaborado para a ocorréncia de determinado fato. E oportuno salientar, que o par4grafo unico do dispositivo em quest4o, embora traga a necessdria vinculacdo entre o fato ocorrido e a pessoa a ser responsabilizada, ndo prescreve a necessidade dessa pessoa ser sécia ou gerente da empresa. Sobremais disso, o art. 42 prevé a desconsideragéo da personalidade juridica sempre que isso se tornar um obstéculo ao ressarcimento de prejuizos causados qualidade do meio ambiente. De forma hicida o legislador ordinério dispés, peremptoriamente, sobre a obri- gatoriedade do ressarcimento dos prejuizos ao meio ambiente, seja pela pessoa juridica ou, ainda, pelas pessoas fisicas a ela ligadas, penetrando, sempre que ne- cessério, no patriménio do diretor, do administrador, mandatério ou de outros que eventualmente tenham dado causa 4 degradac4o ambiental. Em sintese, no direito Ambiental a desconsidera¢ao da personalidade juridica independe da comprovasio de culpa ou atuaco com excesso de poder, bastando, to somente a ocorréncia da insuficiéncia patrimonial da pessoa juridica obrigada a reparar prejuizos por ela causados 4 qualidade do meio ambiente. 7.3.5 A desconsideracao da personalidade juridica no Novo Cédigo Civil Brasileiro A redago do art. 50 do NCC nfo deixa margens a ditvidas quanto a intengao do legislador dispor, em caréter genérico e abrangente, & teoria da desconsideracao da personalidade jurfdica, tendo, como parametro para a sua aplicago, a hipétese de abuso da personalidade juridica, seja em razio do desvio de finalidade ou pela confusdo patrimonial. Assinale-se, mais uma vez, que a regra tem como elemento norteador a exis- téncia da pessoa juridica a quem se conferem direitos, obrigacGes e patriménio pré- prios, excepcionadas as hipéteses previstas em leis especiais ou, no caso de abuso de personalidade juridica, caracterizada pelo desvio de finalidade ou pela confusao patrimonial. De forma mais simplista, a teoria da desconsideracdo da personalidade juridica somente ter condicées de prosperar em casos especificos. Relevante se faz esclarecer que 0 desvio de finalidade somente restar4 configu- rado quando a sociedade for utilizada para finalidades diversas daquelas estabeleci- das em seu objeto social. Quanto 4 confusao patrimonial, verificamos que tal situacao estar4 configurada em razo da auséncia de distingdo entre 0 patriménio social eo patriménio de um, de alguns ou de todos os sécios. A Desconsideracdo da Personslidade Juridica no Direito Privado 119 Cumpre-nos, ainda, deixar claro, curialmente claro que, segundo nosso enten- dimento, embora o art. 50 do NCC seja silente com relacdo a fraude, nao temos diividas de que essa hipétese se encontra inserida no conceito de abuso de persona- lidade jurfdica, notadamente quando se tratar de desvio de finalidade, até porque, parece-nos acertado dizer que a teoria em discussdo nasceu da necessidade de se reprimir condutas fraudulentas. Vale ainda registrar a posic¢Ao de Fabio Ulhoa Coelho: A aplicacdo da teoria da desconsideragio da personalidade juridica independe de previsao legal. Em qualquer hipétese, mesmo naque- las nfo abrangidas pelos dispositivos das leis que se reportam ao tema (Cédigo Civil, Lei do Meio Ambiente, Lei Antitruste ou Cédi- go de Defesa do Consumidor), estaré o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa juridica sempre que ela for ftaudu- lentamente manipulada para frustrar interesse legitimo do credor.'* Importa dizer, portanto, que a desconsideragao da personalidade juridica inde- pende de sua positivacao. Verifica-se, por conseguinte, que a sua positivaco veio apenas propiciar uma maior aplicacdo por nossos tribunais, até porque a nossa tra- digo juridica é de grande apego ao direito escrito. Todavia, insistimos nés, a desconsideracdo da personalidade jurfdica pode ocor- rer, ainda que desprovida de qualquer dispositivo legal, haja vista que integrante da teoria geral do direito. Esse é o entendimento de Diégenes Gasparini: E instituto que se aperfeigoa a qualquer ramo do direito, pois o abu- so pode ser praticado pela pessoa juridica com vista a lesar credores, prejudicar o Fisco, a ludibriar direitos dos familiares dos sécios, a escapar de sancdes administrativas, a fazer tabula rasa do interesse publico, a ignorar direitos do consumidor, a vilipendiar os direitos dos trabalhadores ¢ a burlar a lei, por exemplo, tendo como objetivo favorecer seus préprios sécios. E instituto, pode-se afirmar, da Teo- ria Geral do Direito."” Deveras, ndo se poe a dtivida de que se houver sécio ou sécios da pessoa juridi- ca agir de modo fraudulento, com abuso de direito, a superacao da personalidade sera medida impositiva. 38 CORLHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 16. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2012. v. 2,p.77. ¥ _ GASPARINI, Didgenes. Disregard administrativa. In: Direito Pilblico: estudos em homenagem a0 Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.187. 8 A Desconsideracao da Personalidade Juridica na Aplicacao das Penas Restritivas do Direito de Licitar ‘A Administragdo Publica, cotidianamente, se vé as voltas com intimeros pro- cessos licitatérios com os mais diversos niveis de complexidade. Aliado a isso, fre- quentemente, a Administracao, em razao do cometimento de ilicitos por parte do particular, torna-se obrigada a sancioné-lo, nos termos da legislacao em vigor. Contudo, nao raro, descobre-se completamente ludibriada, eis que os sdcios da sociedade empresarial sancionada, notadamente em se tratando de penas restriti- vas do direito de licitar e contratar, se constituem em outra pessoa juridica, muitas vezes com os mesmos sécios e no mesmo endereso e, assim, continuam a participar de certames ¢ a celebrar contratos administrativos. O expediente utilizado pelo particular é possivel em razao de que a pena aplica~ da abarca unicamente a pessoa juridica, nao atingindo a figura dos sécios. De con- seguinte, a aplicacdo das penalidades constantes das Leis 8.666/93 e 10.520/02, em grande parte das vezes, nao so suficientes para afastar as empresas penalizadas dos procedimentos licitatérios instaurados. N&o é demais lembrar que tudo isso decorre do fato de que as pessoas juridicas possuem personalidade propria, distinta dos seus sécios, podendo, portanto, assu- mir direitos e obrigacées. Por isso mesmo, é que a pena restritiva do direito de lici- tar € contratar torna-se ineficaz, levando-se em consideragio a possibilidade de os sécios constituirem outra sociedade, diversa daquela sancionada. Vimos que no direito privado, quando as pessoas juridicas sio utilizadas de forma ilicita, temos, para fazer frente a essa situacao, a teoria da desconsideracao A Desconsideracto da Personslidade Juridica na Aplicaglo das Penas Restritivas do Direito de Licitar 121 da personalidade juridica que, posteriormente, foi positivada, chegando-se a figura dos sécios e possibilitando, inclusive, que o patriménio desses responda perante os credores da pessoa juridica.? No direito piblico, em especial no direito administrativo, percebemos uma construcdo doutrinria e jurisprudencial que vem acontecendo paulatinamente. Os tribunais de contas e judiciais, pouco a pouco, vao estabelecendo os con: cionantes para a desconsideracao da personalidade jurfdica nas penas restritivas do direito de licitar. Cabe-nos lembrar que a desconsideragao da personalidade juridica, no campo das licitagdes e contratos, somente poderd ocorrer em consonéncia com o regime juridico administrativo pelo que passamos a examiné-lo. 8.1 Breves reflexGes acerca do regime juridico administrativo Lticia Valle Figueiredo expressa seu entendimento quanto ao regime juridico administrativo dizendo que se trata do “conjunto de regras e principios que regem a atividade administrativa no atingimento de seus fins”.? Por sua vez, Juan Carlos Cassagne, ao discorrer sobre o regime juridico da Ad- ministragdo Publica, observa: ) © STE reconheceu, em diversos julgados, a desconsideracéo da personalidade juridica, possibilitando, estarte a comunicacZo dos patriménios das pessoas juridicas e de seus sécios. Destaca-se em muitos julga- dos que a responsabilidade dos sécios passa a ser ilimitada, em se tratando de conduta dolosa ou culposa, da violagao de lei ou do contrato social. “Reputa-se ilfcita a sociedade entre cOnjuges maxime ap6s o Estatuto da mulher casada. O s6cio nao responde, em se tratando de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, pelas obrigagGes fiscais da sociedade, quando nao se impute conduta dolosa ou culposa, com violagdo de lei ou do contrato. Hipdtese ‘em que nao hé prova reconhecida das decis6es das instancias ordindrias de a sociedade haver sido criada ob- jetivando causar prejuizo 4 Fazenda, tampouco restou demonstrado que as obrigacdes tributérias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infracéo de lei, contrato social ou dos estatutos, por qualquer dos sécios (RE n* 108.278-SP); Como anotado no despacho inicial, a desconsideracao da personalidade juridica para extensao dos efeitos da faléncia ndo depende de aco auténoma e, uma vez lancada, abre a possibilidade de defesa. No caso concreto, hé elementos de conviccio que apontam para a confusdo patrimonial, independente- mente dos diferentes objetos sociais, como demonstrou a sindica. Ficou provado que a agravante foi consti- tuida como sociedade anénima ¢ dois meses depois adquiriu imével da empresa agora falida, por valor muito superior, nominalmente, seu capital social, sem prova da origem ou da destinacdo. Nao ha duivida de que Fil- ‘ros Logan foi ‘esvaziada’ para prejudicar seus credores, passando iméveis para a Abesa ¢ a industrializacéo e comércio de acessérios ¢ servigos correlatos para a empresa PNP, todas se confundindo patriménio entre si (ver fis. 107/121, 128/131, 163/1677 € 169/242) Bem ponderou, a propésito, o Procurador de Justica que o objetivo social da agravante nao é simplesmen- te civil e que se mostram presentes os requisitos da desconsideracao da personalidade juridica e de extenso dos efeitos da faléncia” (AI n* 475.564 AgRg. Relator Ministro Nelson Jobim, julgado 3.2.2004. Orgfo Julga- dor 2+ Turma, DJ 19.3.2004). 2 FIGUEIREDO, Liicia Valle. Curso de diveito administrativo, p. 65. 122 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires ‘A denominagio de regime exorbitante se mantém somente no senti- do convencional que no corresponde ao significado originério, pois seu contetido integra as prerrogativas do poder piiblico, com as ga- rantias que o ordenamento juridico instituiu em favor dos particula- res para compensar o poder estatal ¢ harmonizar os direitos indivi- duais com os interesses ptiblicos que o Estado persegue [...].? Celso Antonio Bandeira de Mello faz importantes ponderagdes acerca dessas prerrogativas ou privilégios: Esta posig&o privilegiada encarna os beneficios que a ordem juridica confere a fim de assegurar conveniente protecao aos interesses pu- blicos instrumentando os érgios que os representa para um bom, facil, expedito e resguardado desempenho de sua missfo. Traduz-se em privilégios que lhes s4o atribufdos. Os efeitos desta posico sao de diversa ordem e manifestam-se em diferentes campos.* Em outro falar, a atividade administrativa deve se submeter ao regime juridico administrativo, que se pauta por prerrogativas, observadas as garantias instituidas por nosso ordenamento juridico em favor do particular. O sé fato de pensarmos em prerrogativas leva-nos a afirmar, sem medo de errar, que o regime juridico administrativo encontra-se pautado pela incidéncia do prin- cipio da supremacia do interesse piiblico, desde que obedecidas, como, alids, nao poderia deixar de ser, as garantias instituidas em favor do particular, como muito bem expressa Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Daf a bipolaridade do Direito Administrativo: liberdade do in- dividuo ¢ autoridade da Administragdo; restrigdes e prerroga- tivas. Para assegurar-se a liberdade, sujeita-se a Administragdo Piiblica 4 observancia da lei e do direito (incluindo principios e valores previstos explicita ou implicitamente na Constitui¢&o); € a aplicago, ao direito piblico, do principio da legalidade. Para assegurar-se a autoridade da Administragao Publica, necesséria consecuco de seus fins, sdo-lhe outorgados prerrogativas ¢ pri- vilégios que Ihe permitem assegurar a supremacia do interesse publico sobre o particular’ 3 CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho administrativo, p. 122. * BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 70. 5 DIPIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 62. A Desconsideragio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 123 Destarte, toda atividade administrativa, inclusive o regime das san¢Ges admi- nistrativas, encontra-se pautado pela supremacia do interesse ptiblico e pelo prin- cipio da legalidade que se afigura como instrumento garantidor de direitos. Entretanto isso nao significa que a atividade administrativa encontra-se com- prometida tinica e exclusivamente com os principios sobreditos. A atividade admi- nistrativa deve se submeter ao “Direito, ao ordenamento juridico, as normas e prin- cipios constitucionais, assim também hé de se procurar solver a hipétese de norma omissa ou, eventualmente, faltante.”” Didgenes Gasparini, embora seja claro ao afirmar que, se a lei nada dispuser, nao pode a Administracdo Publica agir, nao deixa de reconhecer que o Poder Publico “deve agi, pois muitas vezes o interesse ptiblico, a moralidade administrativa e 0 dever de agir permitem sua atuacdo sem a existéncia de uma especifica lei”.® Com 0 mesmo pensamento Margal Justen Filho ensina: Mas é indispensével evitar que as consideragdes acima conduzam a identificar o principio da legalidade com a necessidade de existéncia de disposigao expressa no texto de uma lei. Quando se afirma que 0 principio da legalidade envolve a existéncia de lei, isso no pode ser interpretado como existéncia de disciplina legal literal e expressa. O principio da legalidade conduz a considerar a existéncia de normas juridicas, expresso que nfo é sindnima de “lei”, tal como exposto. Hi principios jurfdicos implicitos. Também ha regras jurfdicas im- plicitas. A disciplina juridica é produzida pelo conjunto das normas juridicas, o que exige compreender que, mesmo sem existir disposi- tivo literal numa lei, o sistema jurfdico poder impor restrigo au- tonomia privada e obrigatoriedade da atuag4o administrativa. Em suma, o princfpio da legalidade nao conduz a uma interpreta fo literal das leis para determinar o que é permitido, proibido ou obrigatério.? Concluimos, das ligdes colacionadas, que o atendimento ao principio da le- galidade nao significa que a Administragfo, para a consecucdo de suas atividades, necessite de expresso arrimo em lei. Em verdade, a atividade administrativa deve “Celso Antonio Bandeira de Mello diz que “Como expressao desta supremacia, a Administragao, por presentar o interesse piblico, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigacoes mediante atos unilaterais. Tais atos so imperativos como quaisquer atos do Estado. Demais disso, trazem consigo a decorrente exigibilidade, traduzida na previsio legal de sang6es ou providéncias indiretas que in- duzam 0 administrado a atacé-los (Curso de dreito administrativo, p. 96 ~ grifos do autor). 7 FIGUEIREDO, Liicia Valle. Curso de diveito administrativo, p. 42. © GASPARINI, Didgenes. Direito administrative, p. 62. 8 JUSTEN FILHO, Margal. Curso de direito administrative, 8, ed. Belo Horizonte: Forum, 2012. p. 141-142 124 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires estar em consonancia com o sistema juridico adotado. Melhor dizendo, deve acon- tecer sob a égide do regime jurfdico administrativo, que é informado pelos mais diversos principios. Celso Antonio Bandeira de Mello destaca como principios tfpicos do regime juridico administrativo: supremacia do interesse publico, legalidade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivacao, impessoalidade, publicidade, devido processo legal e da ampla defesa, moralidade administrativa, controle judicial dos atos administrativos, responsabilidade do Estado por atos administrativos, boa ad- ministraso, eficiéncia e seguranga juridica.” N&o € 0 caso aqui de discorrer sobre todos os princfpios do regime juridico ad- ministrativo, até porque j4 nos debrucamos sobre alguns no decorrer desse traba- lho. Vamos nos limitar a tecer consideracdes sobre aqueles que acreditamos sejam ‘ sustentaculo de nossa tese acerca da desconsiderac4o da personalidade juridica na aplicacao das penas restritivas do direito de licitar e contratar. 8.2 O problema da desconsideragao da personalidade juridica em razao de omissao legislativa no direito administrativo E fato que as penas restritivas do direito de licitar: (i) suspensdo tempordria de participagao em licitagao e impedimento de contratar com a Administra¢ao; (ii) declaracao de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administra¢4o Publica; (iii) impedimento de licitar e contratar com a Unido, Estados, Distrito Federal ou Municipios, isso sem falar nas demais penas previstas em outros diplomas legais, que nao as Leis 8.66/93 e 10.520/02, independentemente de qualquer diferencia- Gao que se possa fazer, tém por objetivo afastar as empresas da licitacao e do conse- quente do contrato administrativo. Nesse diapasao, é possivel afirmar que, se a pena néo atingir a sua finalidade, afastando a empresa dos procedimentos licitatérios e de seus consequentes contra- tos, a penalizacdo serd de todo ineficaz. Para aquelas hipéteses onde o licitante apenado simplesmente constituiu outra empresa, com os mesmos sécios e endereco, de modo a se furtar dos efeitos da san- 40 aplicada, a tinica hipdtese vidvel é a desconsideracao da personalidade juridica, de modo a se chegar na figura dos sécios, atingindo, assim, a pena, os seus regula- res efeitos juridicos. Porém, como jé dissemos desde logo, é preciso extrair de nosso ordenamento jurfdico a adequada sustentagio para a promogao da desconsideragao da personal dade juridica em face da inexisténcia de lei especifica que autorize a Administraco a tomar tal atitude. © BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de dieito administrativo, p. 128-129. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 125 Nesse sentido, vale lembrar que a Administragao deve submeter-se ao Dir to, as normas e aos principios que regem a atividade administrativa. Celso Antonio Bandeira de Mello ao discorrer sobre o principio da legalidade é incisivo ao dizer: Em suma, a lei, ou mais precisamente, o sistema legal, é o funda- mento juridico de toda e qualquer ac&io administrativa. A expressfio “legalidade” deve, pois, ser entendida como “conformidade & lei” e, sucessivamente, as subsequentes normas que, com base nela, a Ad- ministraco expeca para regular mais estritamente sua propria dis- crigdo, adquirindo entéo um sentido mais extenso."' Ora, se a legalidade deve ser entendida como “conformidade 4 lei e sucessiva- mente as subsequentes normas” é de se notar que nessa seara encontram-se elen- cados os principios atinentes 4 atividade administrativa.* Logo, descabe a Administragao Publica quedar-se inerte em face da auséncia de Jei autorizadora da desconsideragao da personalidade juridica nas penas restritas do direito de licitar e contratar, posto que isso seria eximir-se do cumprimento do in- teresse piiblico que, como dissemos, é indisponivel. Assim, a Administrago deve fazer uso da fungdo integrativa que, historicamen- te, éa primeira funcao assinada aos princfpios juridicos.”* E preciso extrair dos prin- cipios de estatura constitucional a necesséria autorizac4o para a utilizagao da teoria da desconsideracao da personalidade juridica na aplicacio das penas restritivas do direito de licitar e contratar. 8.3. O conteddo do principio da moralidade O principio da moralidade, com a Constituig4o de 1988, foi efetivamente con- sagrado como um dos diretivos da Administragdo Publica, embora tenhamos a ple- na convicgdo de que antes de nossa Lei Maior explicité-lo, ele j4 deveria nortear toda aatividade administrativa. Todavia nao é simples discorrer sobre o principio da moralidade que, se diga desde logo, no se trata da moral comum, mas da moral administrativa. A moralidade administrativa teve a sua origem no direito administrative fran- és, na obra de Maurice Hauriou. Em 1903, 0 autor j4 prelecionava que a moralida- 8 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 79. 2 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo, p. 45. 8 VALIM, Rafael. O principio da seguranga juridica no direito administrativo brasileiro, p. 38. 126 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires de administrativa se tratava “de uma nog&o puramente objetiva que 0 juiz adminis- trativo aprecia soberanamente, segundo as circunstancias, o meio, o momento”."* Alexandre de Moraes, dizendo sobre a dificuldade de se conceituar a moralida- de administrativa, preleciona: Pelo principio da moralidade administrativa, de dificil conceituacdo doutrindria, nao bastaré ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade; deveré ele, no exercicio de sua funcdo ptiblica, respeitar os principios éticos de razoabilidade e justica, pois a mo- ralidade constitui, a partir da Constituigéo de 1988, pressuposto de validade de todo ato da Administrac4o Publica.'* Entende 0 autor que o principio da moralidade encontra-se intimamente liga- do a legalidade, colocando-o como pressuposto de validade dos atos emanados da Administracao Publica. E de se concluir que a observancia do principio da moralidade, ao final, concede ao principio da legalidade uma nova colora¢o que vai muito além da mera legalida- de formal. Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa em seu magistério: A autonomia deste principio, jé de ha muito defendida entre nés por Helly Lopes Meirelles e José Cretella Jtinior, foi inquestionavelmen- te reforcada pela explicitacao conferida pela nova ordem constitucio- nal, no Capitulo reservado 4 Administracio Piiblica, (art. 37, caput), afirmando a moralidade como um aspecto especifico e singular do principio da licitude. Com efeito, a Constituicao de 1988, nao sé nesta como em muitas outras normas constitucionais, entre principios e preceitos, dirigi- dos ao Estado, a sociedade ou a ambos, tratou de aspectos da licitu- de, ora enunciando seu referencial de valor (substantivo), ora defi- nindo os instrumentos que devem garanti-la. L.] A moralidade administrativa, entendida como espécie diferenciada da moral comum, também atua como uma peculiar derivago dos conceitos de legitimidade politica e de finalidade piblica, tal como assim estudadas, pois é a partir da finalidade, sempre legislada, que * HAURIOU, Maurice; BEZIN, Guillaume. La declaration de volonté dans le droit administrative francais. Revue Trimestrielle de Droit Civil, 3/576, 1903, apud GIACOMUZZI, Guilherme. A moralidade administrativa e a boa fé da Administragdo Piblica (O contetido dogmético da moralidade administrativa). Sao Paulo: Malheiros, 2002. p. 68. % MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrative. 4. ed. atualizada até a Ec n® 53/06, Séo Paulo: ‘Atlas, 2007. p. 84. A Desconsideracto da Personalidade Juridica na Aplicacio das Penas Restritivas do Direito de Licitar 127 ela é prevista em abstrato, e a partir da legitimidade, como resultado da aplicaco, que ela se define em concreto.* Necessario se faz dizer que nao basta, pura e simplesmente, a legitimidade do agir do Estado, como também se revela insuficiente a mera conformidade do ato com a lei formal. Dessume-se, portanto, que a atividade administrativa nao pode ficar atrelada a mera subsun¢io do ato 4 letra fria da lei. Nao basta ser legal; deve ser legitimo, na medida em que deve observar os valores protegidos por nosso ordenamento juridi- co. Legitimo é mais do que legal. Ser ilegitimo, portanto, a pratica de atos divorcia- dos de sua finalidade. Mais uma vez Diogo de Figueiredo Moreira Neto: Para que 0 administrador pratique uma imoralidade administrativa, basta que empregue seus poderes funcionais com vistas a resultados divorciados do especifico interesse piblico a que deveria atender. Por isso, além da hipétese de desvio de finalidade, poderé ocorrer imoralidade administrativa nas hipéteses de auséncia de finalidade e de ineficiéncia grosseira da a¢do do administrador puiblico, em re- feréncia a finalidade que se propunha atender. Portanto, para que o administrador vulnere este principio basta que administre mal os interesses piiblicos, 0 que poderd ocorrer basicamente de trés modos: 1° através de atos com desvio de finali- dade piblica, para perseguir interesses que no sio aqueles para os quais deve agir; 2° através de atos sem finalidade publica; 3° atra- vés de atos com deficiente finalidade publica, reveladores de uma ineficiéncia grosseira no trato dos interesses que lhe foram afetos, (grifos do autor).” Marcio Cammarosano, entendendo existir uma maior abrangéncia do princfpio da moralidade, ensina: Para 0 Direito sé é relevante a ofensa a ele perpetrada. Mas sua reacdo é mais acentuada diante da invalidade (ofensa juridica) de- corrente de ofensa a valor ou preceito moral juridicizado. E ¢ mais acentuada porque o proprio Direito assim reconhece. Na medida em que o proprio Direito consagra a moralidade admi- nistrativa como bem juridico amparavel por ado popular, é porque esté outorgando ao cidadao legitimaco ativa para provocar 0 con- 6 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de dreito administrative: parte introdutéria, parte geral e par- te especial. 15. ed. rev. ¢ atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 104-108. » MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo, p. 105. 2 A Desconsideracdo da Fersonalidade Jurfdica nas ContratagSes Pablicas + Pires Para se chegar & conclusio da possibilidade da desconsideragao da personalida- de juridica na aplicacao das penas restritivas do direito de licitar e contratar, parti- mos do ilicito, que consideramos ser o condicionante da sancao, abordando as suas diversas espécies e centrando nossos estudos no ilfcito administrativo, com seus requisitos e excludentes. A par disso, discorremos sobre a san¢ao, enquanto fun¢ao administrativa e, portanto, submetida ao regime juridico administrativo, nao sem antes realizar um breve estudo de direito comparado sobre esse instituto juridico. Posteriormente, tratamos, por sua vez, das sangGes estatuidas pelas Leis 8.666/93 e 10.520/02, inclusive as penas de adverténcia e multa, envolvendo as questdes relativas a competéncia, efeitos e lapso temporal, tecendo inclusive algu- mas consideragSes sobre os demais diplomas legais que trazem em seu bojo san- 6es impeditivas do direito de licitar e contratar. A seguir desenvolvemos consideragdes acerca do denominado regime juridico sancionat6rio, abordando a principiologia pertinente, trazendo a baila, em um se- gundo momento, a questo do processo, tendo em vista que tal instituto é impres- cind{vel para que a Administracao venha a apurar 0 eventual ilicito, aplicando a cor- respondente pena, quando for 0 caso. A par disso, desenvolvemos consideragées acerca da aplicagao subsididria da Lei 9.784/99, quando da aplicacao das penas restritivas do direito de licitar e con- tratar, haja vista que as Leis 8.666/93 e 10.520/02 sao praticamente silentes quanto ao estabelecimento de um procedimento que atenda ao devido processo legal. De sua vez, tratamos da teoria da desconsideracao da personalidade juridica, na sua origem, ou seja, no direito privado, trazendo a contexto algumas consideraces hist6ricas até chegarmos ao direito brasileiro. Finalmente, tratamos da desconsideracdo da personalidade juridica na aplica- ao das penas restritivas do direito de licitar, fundando-a nos princfpios da morali- dade, indisponibilidade do interesse publico, eficiéncia e impessoalidade, no con- texto do devido processo legal substancial, abordando, ainda que rapidamente, a Lei Baiana de Licitagées, que prevé expressamente em seu texto legal a desconsideracao da personalidade juridica. 128 A Desconsideraao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires trole judicial dos atos que sejam invalidos por ofensa a valores ou preceitos morais juridicizados. Sao esses valores ou preceitos que compéem a moralidade administrativa. A moralidade administra- tiva tem contetido juridico porque compreende valores juridicizados, tem sentido a expressdo moralidade porque os valores juridiciza- dos foram recolhidos de outra ordem normativa do comportamento humano: a ordem moral. Os aspectos juridicos e morais se fundem, resultando na moralidade juridica, que é moralidade administrativa, quando reportada a Administracio Piiblica. O principio da moralidade administrativa esta referido, assim, nao di- retamente a ordem moral do comportamento humano, mas a outros princfpios e normas que, por sua vez, juridicizam valores morais."* De qualquer sorte, ainda que possamos identificar sensiveis diferengas acerca do entendimento do princfpio da moralidade entre os autores citados, vale dizer que, para nés, dito principio, em nenhum momento, se confunde com a legalidade, ainda que intimamente ligados, assim como também mantém uma intima relagio com o principio da razoabilidade. Corroborando 0 nosso entendimento Uadi Lam- mégo Bulos observa: O quid caracterizador da moralidade administrativa, por certo, est na aplicagdo justa, honesta ¢ razodvel da lei, Nao basta, apenas, apli- cé-la formalmente; é mister que se avalie o fato circundante, porque © cumprimento imoral de uma norma juridica equivale ao seu pré- prio descumprimento. Dai se dizer que a moral juridica é bilateral, imperativa, geral, sendo um corolério da aplicagéo equanime da lei.” Com essa mesma dtica, 0 escélio de José Roberto Pimenta Oliveira: Para o cumprimento do dever de moralidade administrativa, ¢ pres- suposto necessario - mas nao suficiente — da conduta pautar-se pelo princfpio da razoabilidade, ou seja, legitimar-se 4 luz do dever de idoneidade axiolégica, assimilado na relacdo e correlacdo estabele- cida no respectivo processo de formasio entre os pressupostos da aco, contetido e fim ptiblico colimado (apreendido em sua inser¢o sistemética na ordem jurfdica), em consonancia com o plexo de va- lores e princfpios constitucionais.*® CAMMAROSANO, Marcio. O principio constitucional da moralidade e o exercicio da fungao administrativa. Belo Horizonte: Férum, 2006. p. 113. (grifos do autor) % BULOS, Uadi Lammégo. Curso de direita constitucional. Sao Paulo: Saraiva, 2007. p. 796. 2 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os principios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administra- tivo brasileiro, p. 259. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 129 Parece-nos que a licao do mestre é bastante elucidativa. O cumprimento do principio da moralidade, além de pautar-se pela necessdria razoabilidade, deve-se pautar por uma idoneidade valorativa, em que a agdo deve buscar necessariamente © fim piiblico desejado. Contudo, ainda que a finalidade legal no contexto do principio da legalidade se afigure importante, nao podemos deixar de registrar, como muito bem acentua ‘Marcio Cammarosano que seria inadequado restringir a abrangéncia do princ{fpio da moralidade tao somente aos fins almejados. A moralidade administrativa deve ser entendida, portanto, dentro de um contexto maior, abrangendo todo um plexo de normas que juridicizem valores morais. 8.4 Ocontetido do principio da eficiéncia O principio da eficiéncia foi explicitado pelo legislador constitucional com a de- nominada reforma administrativa, mediante a edicZo da Emenda Constitucional ne? 19/98, embora ja fosse reconhecido h4 muito pela nossa jurisprudéncia.” André Ramos Tavares, sustentado no art. 70, da Constitui¢ao Federal, anota so- bre a existéncia implicita do princ{pio da eficiéncia em nosso ordenamento juridico, antes da citada EC 19/98: © principio da eficiéncia foi introduzido expressamente na ordem constitucional como a chamada reforma administrativa (promovida pela Emenda Constitucional n° 19/98). O princfpio, assim, passa a figurar expressamente entre aqueles j4 constantes do caput do art. 37. A maioria da doutrina patria, contudo, ja assinalava a existéncia do princtpio da eficiéncia como decorrente dos demais principios admi- nistrativos. Certamente um dos aspectos mais salientes do principio da eficién- cia é a busca da economicidade na Administracao, exigida pelo art. 70 ao estabelecer a fiscalizagdo de seu cumprimento.” De qualquer modo, impende considerar qual o contetido do princfpio da eficién- cia, de modo a gizar os seus contornos juridicos. 2 CAMMAROSANO, Marcio. O principio constitucional da moralidade e o exerccio da fingao administrativa, p. 106, ® _ O Superior Tribunal de Justiga muito bem proclamou ao dizer que “a Administragao Publica é regida por varios principios: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (Const. Art. 37). Outros também evi- denciam-se na Carta Politica. Dentre eles, 0 principio da eficiéncia. A atividade administrativa deve orientar-se para alcancar resultado de interesse piblico”. BRASIL. ST] - 6* Turma — RMS n* 5.590/95 - Rel. Min. Luiz, Vicente Cernicchiaro. 2 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 1159. 130 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires No direito italiano Elio Casetta diz que © critério de eficiéncia indica a necessidade de se medir a propor¢do de resultado da agéo organizacional e a quantidade de recursos uti- lizados para se alcancar determinado resultado; isso representa a ca- pacidade de uma organizacao de atingir os seus objetivos mediante uma combinago étima de insumos.* De seu turno, Celso Antonio Bandeira de Mello observa: A Constituicao se refere, no art. 37, ao principio da eficiéncia. Ad- virta-se que tal principio nao pode ser concebido (entre nés nunca é demais fazer ressalvas 6bvias) sendo na intimidade do principio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiéncia justificaria postergacao daquele que é o dever administrativo por exceléncia. O fato 6 que o principio da eficiéncia nao parece ser mais do que uma faceta de um principio mais amplo ja superiormente tratado, de ha muito, no Direito italiano: o prinefpio da boa administragéo. No nosso entender, o princfpio da eficiéncia nao pode ficar restrito a uma me- lhor utilizago dos recursos publicos. Doutra parte, também conclufmos que as ati- vidades administrativas nao mais se satisfazem com a simples observancia da lega- lidade, embora seja correto afirmar que nfo possa existir eficiéncia fora do contexto do princfpio da legalidade. Demais disso, a funcao administrativa, como, alids, nao poderia deixar de ser, submete-se ao princfpio da legalidade e, por conta do princtpio da eficiéncia, deve buscar o melhor resultado. Entretanto persiste, ainda, a pergunta: qual o contetido do principio da efi- ciéncia? Licia Valle Figueiredo examinando de forma detalhada os aspectos relativos ao contetido do principio da eficiéncia, nao sem antes criticar o “empréstimo” de figu- ras juridicas oriundas do direito alienigena, ensina: E de se perquirir o que muda com a inclusio do princfpio da eficién- cia, pois, ao que se infere, com seguranga, 4 Administragio Piblica sempre coube agir com eficiéncia em seus cometimentos. Na verdade, no novo conceito instaurado de Administrago Geren- cial, de “cliente”, em lugar de administrado, 0 novo “cliché” pro- duzido pelos reformadores, fazia-se importante, até para justificar 2% CASETTA, Elio. Compendio di diritto amministrativo: undicesima edizione riveduta ¢ aggiomata. Milano: Giuffre Editore, S.p.A. 2011. p. 26. 2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 125. ‘A Desconsideracéo da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 131 perante o pais as mudangas constitucionais pretendidas, trazer ao texto o principio da eficiéncia. ‘Tais mudangas, na verdade, redundaram em muito pouco de subs- tancialmente novo, ¢ em muito trabalho aos juristas para tentar compreender figuras emprestadas sobretudo do Direito Americano, absolutamente diferente do Direito brasileiro. Mas que é eficiéncia? No Diciondrio Aurélio (estamos trazendo a contexto as definicdes desse Dicionério, ainda que popular, por forca de sua ampla divulgacio), eficiéncia é “aco, forca, virtude de produ- zir um efeito, eficacia”. Ao que nos parece, pretendeu o “legislador” da Emenda 19 simples- mente dizer que a Administracio deveria agir com eficdcia. Todavia, © que podemos afirmar é que sempre a Administracdo deveria agir eficazmente. E isso o esperado dos administradores. ‘Todavia, acreditamos possa extrair-se desse novo principio constitu- cional outro significado aliando-se 0 art. 70 do texto constitucional, que trata do controle dos Tribunais de Contas. Deveras, tal controle deverd ser exercido nao apenas sobre a legali- dade, mas também sobre a legitimidade e economicidade; portanto, praticamente chegando-se ao cerne, ao nticleo, dos atos praticados pela Administracao Publica, para verificacao se foram uteis o sufi- ciente ao fim que se preordenavam, se foram eficientes.”* A autora, com vistas a tragar o perfil do principio da eficiéncia, traz a contexto oart. 70 de nossa Carta Constitucional, concluindo pelo controle da legitimidade e economicidade. Francisco Pedro Jucé, concebendo a eficiéncia enquanto administrago geren- cial, aponta a eficécia como meta para uma gestdo capaz de auferir boas decisbes: A Administragio e 0 administrador, nas suas atividades, hdo de obser- var técnicas, procedimentos, recursos, modelos e parametros de qua- lidade operacional que possibilitem alcancar realmente os objetivos pidblicos propostos, restando servigos de qualidade, que atendam as necessidades coletivas piblicas, ao inveresse geral da sociedade. Vislumbramos aqui o que podemos chamar de obrigatoriedade da profissionalizagdo da burocracia estatal. A concepcao do servidor piblico como profissional especializado, capaz de producao, produ- tividade e eficiéncia dentro de padrées compativeis com a demanda da sociedade em seu atual estagio. FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo, p. 64-65. 132. A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires Gerir com eficiéncia — mais que isso, com eficdcia — produzindo re- sultados reais e concretos no atendimento das demandas. Isto impli- ca também a qualidade do processo decisério e da decistéo mesmo, durante o processo de gestio, donde temos a busca pelo constante aperfeigoamento, evolugéo e melhora dele.” Se eficiéncia implica eficdcia, é de se concluir que a Administragdo deve estar devidamente preparada para atingir tal objetivo, seja no que diz respeito aos seus agentes publicos, seja no que diz respeito 4 sua propria estrutura. Maria Sylvia Za- nella Di Pietro ensina em seu magistério: principio da eficiéncia apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relagdo ao modo de atuagao do agente publico, do qual se espera o melhor desempenho possivel de suas atribui- .Oes, para lograr os melhores resultados; e em relaco ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administracao Pitblica, também com 0 mesmo objetivo de alcangar os melhores resultados na pres- taco do servigo piblico.* Sustentados nas ligdes precedentes, volvemos a enfatizar que, sem o despres- tigio da necesséria legalidade, a eficiéncia traz para a Administragao Pablica a obri- gatoriedade de desenvolver mecanismos para o exercicio de uma atividade adminis- trativa eficaz, célere e de qualidade, de sorte a atingir os fins desejados. 8.5 O contetido dos principios da supremacia e indisponibilidade do interesse ptblico Anteriormente j4 discorremos acerca da supremacia do interesse ptiblico so- bre o particular. Em outro giro, segundo esse principio, o interesse piiblico sobre- puja o interesse do particular. Deveras, autoriza-se & Administracio a sacrificar 0 direito do particular, em razao de um interesse maior. Esse interesse maior, esse interesse de todos nada mais é que o interesse ptibli- co. E mister assinalar que a supremacia do interesse ptiblico, embora conceda uma série de prerrogativas para a Administracdo, também vem acompanhada de restri- Ses determinadas pela lei. Disso deflui, logicamente, que os interesses piiblicos no estao A livre disposico do Administrador. 2 JUCA, Francisco Pedro. Direito administrativa. In: TANAKA, Sonia Yuriko Kanashiro. Séo Paulo: Malheiros, 2008. p. 264. 2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 83. A Desconsideragio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 133 A lei, ao investir o Administrador de prerrogativas para a concretiza¢ao dos in- teresses ptiblicos, tornou-os inalienaveis. E 0 caso, portanto, de dizer que o Admi nistrador exerce fungdo. Diogo de Figueiredo Moreira Neto diz: Portanto, é fungao da norma legal, ao enunciar um interesse puiblico especifico, cometer ao Estado, através de qualquer de suas entidades e 6rgios, ou mesmo a particulares, o encargo finalfstico de satisfazé- -lo, definindo, em consequéncia, competéncias, condicées de prote- do e os direitos e deveres juridicos correlatos.” Eduardo Garcia de Enterria e Tomds-Ramon Fernandez, ao explicar a origem legal do poder, deixam claro que “os poderes sao inaliendveis, intransmissiveis e irrenunciaveis, justamente porque sao indisponiveis pelo sujeito enquanto criagdo do Direito objetivo”.> Vale dizer, a Administragao deve agir exercitando os seus poderes para concre- tizar o interesse piiblico perseguido. A indisponibilidade do interesse ptiblico, em ultima andlise, é dever. Nas palavras de Edmir Netto de Aratijo: Na realidade, como os interesses ptblicos da Administracao nao se acham entregues a livre disposico do administrador, o que decorre com relac&o a tais valores no é simples poder, mas dever, obrigacao, para o agente deles curar, objetivando o cumprimento da finalida- de piiblica, como efeito da existéncia do interesse ptiblico do qual é parametro. A consequéncia imediata da indisponibilidade é que os direitos concernentes a interesses ptblicos s4o em principio inalie- néveis, impenhordveis, intransigiveis, intransferiveis a particulares, ou, em uma palavra, indisponiveis.”' Alerte-se, por oportuno, que o principio da indisponibilidade do interesse publi- co, por vezes denominado de principio da finalidade, encontra-se ligado, de forma inarredével, com as finalidades publicas, que séo impositivas e cogentes, inexistindo liberdade por parte do Administrador de dispor livremente do interesse publico.”* ® MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo, p. 98. % GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNANDEZ, Tomés Ramé6n. Curso de derecho administrative, p. 481. * ARAUJO, Edmir Neto de. Curso de direito administrativo, p. 74. © DIPIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativ, p. 66. ® Ruy Cirne Lima ensina que “A relagao juridica se estrutura ao inflaxo de uma finalidade cogente, cha- ma-se relagdo de administra¢do (LIMA, Ruy Cire. Sistema de Direito Administrativo Brasleir, t. I. Porto Alegre, 1953, § 3s, p. 25). Na administracfo, o dever e a finalidade so predominantes (Principios de diveito administra- tivo. 7. ed, rev. e atual. por Paulo Alberto Pasqualini. So Paulo: Malheiros, 2007. p. 105-106). 134 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires 8.6 O principio da impessoalidade © principio da impessoalidade encontra-se previsto no art. 37, “caput”, da Constituigdo Federal de 1988 que, & primeira vista, pode ser confundido com a igualdade e a finalidade. José Afonso da Silva, h4 muito, aponta que o principio da impessoalidade “significa que os atos e provimentos administrativos sao imputéveis nao ao fun- cionério que os pratica mas ao érgao ou entidade administrativa em nome do qual age o funcionario”.* Celso Antonio Bandeira de Mello, por sua vez, afirma que o principio da im- pessoalidade nao é sendo o proprio principio da isonomia. Nas palavras do autor: Nele se traduz a ideia de que a Administrac4o tem que tratar a todos os administrados sem discriminacées, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguicées s4o toleraveis. Simpatias ou ani- mosidades pessoais, politicas ou ideolégicas néo podem interferir na atuac&o administrativa e muito menos interesses sectérios, de facg6es ou grupos de qualquer espécie. O principio em causa nao é senao 0 préprio principio da igualdade ou isonomia.*5 Marcio Pestana assevera que a impessoalidade direciona-se aos atos adminis- trativos de carater discriciondrio de modo que a decisao atenda ao interesse piiblico, sem qualquer favoritismo ou preferéncia pessoal.** Nao temos diividas de que o principio da impessoalidade pode levar & igualdade, mas com ela nfo se confunde.*’ Melhor dizendo, para nés, a impessoalidade decorre do principio da isonomia. Todavia tem a impessoalidade contetido prdprio. A Admi- nistragao hd de tratar a todos no mesmo pé de igualdade — isonomia. De conseguinte, para tratar a todos no mesmo pé de igualdade, ndo poderd incorrer em atos que im- portem em prejuizos ou preferéncias a quem quer que seja - impessoalidade. De consequéncia, a impessoalidade deveré nortear toda a atividade administra- tiva de sorte a impedir favoritismos ou desfavoritismos, que s6 pode ter como vetor tinico a consecuciio do interesse ptiblico. © DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positive, p. 667. 3 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administativ, p. 117. 36 PESTANA, Marcio. Direito administrative brasileiro. 2. ed. rev. ¢ atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 223-224, » FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo, p. 62. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 135 8.7 A desconsideragao da personalidade juridica no contexto das licitagdes e contratos Consoante dissemos anteriormente, as penas restritivas do direito de licitar e contratar tém por objetivo alijar do processo de contratag6es piblicas aquelas em- presas que, de alguma forma, tenham praticado ilicito administrativo. Todavia, uma vez sancionada a empresa, nada obsta que os sdcios se consti- tuam em uma nova pessoa juridica, totalmente distinta daquela apenada, com a finalidade de continuar a participar dos certames licitatérios, em nitida fraude 4 legislacao vigente. Evidentemente, nao pode a Administrac4o quedar-se inerte em face de tal ili- citude, em razo de inexistir lei autorizativa da desconsideracaio da personalidade jurfdica na aplicago das penas restritivas do direito de licitar e contratar. Segundo pensamos, quedar-se inerte perante a hipétese em comento se constitui em ilegali- dade por omissao. Esse é o entendimento de Luciano Chaves de Farias que observa: Caso o Tribunal de Contas (ou autoridade administrativa), ciente da utilizago irregular ou abusiva de uma sociedade por parte de seus membros, deixe de adotar a providéncia adequada (a aplicasaio da desconsiderag4o da personalidade juridica), estara omitindo-se quando tinha o poder-dever de agir. Tal omiss4o administrativa tra- duz frontal ofensa ao princfpio da superioridade e indisponibili- dade do interesse ptiblico, bem como traduz indiferenga para com os principios da moralidade e da eficiéncia. Em suma, permanecer inerte diante da utilizagdo abusiva ou fraudulenta de uma pessoa juridica, sob argumento de que inexiste expresso dispositivo le- gal autorizador da desconsideracao, afronta os mencionados prin- cipios da Administracao Publica.* Assim, ainda que o agir da Administracao em sancionar 0 licitante ou contrata- do tenha sido legitimo, ainda que a sangio esteja em consonancia com a lei formal, ‘o nosso ordenamento juridico exige muito mais que a mera legalidade do ato, exige- -se, pois, legitimidade, eficdcia. Hé que se questionar quais os condicionantes para se atingir a legitimidade e a eficdcia na aplicaco das penas previstas nas leis de regéncia das licitacSes quando verificado abuso da pessoa juridica? A nosso ver, tal questionamento encontra-se indene de dividas. A resposta hé de ser solvida pelo Direito, mais especificamente mediante a conjugacao de principios. 3 FARIAS, Luciano Chaves. Aplicagio da teoria da desconsideracio da personalidade jurfdica na esfera ad- ministrativa. Boletim de Direito Administrative — BDA, Ago. 2007, p. 944. 136 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires Logo, a sangao administrativa imposta 4 empresa, cujos sécios venham a se constituir em outra pessoa jurfdica, e continuem a participar de licitacbes, exige da Administracao providéncias no sentido de langar mao da desconsideraco da perso- nalidade juridica, como modo de conferir legitimidade a sang perpetrada. Dito isso, uma vez verificada a incidéncia de um dos pressupostos da desconsi- deragao da personalidade juridica — fraude, desvio de finalidade ou confusao patri- monial - cabe 4 Administrac&o agir.” Pensar de outra forma é aviltar o Direito, é aviltar os valores por ele tutelados, é compactuar com a fraude, é, em tiltima andlise, desconsiderar o principio da mora- lidade administrativa, que exige do administrador um agir de acordo com 0 Direito. Ao dizermos que o principio da moralidade oferta 4 Administraco o sustenté- culo adequado para a desconsiderago da personalidade jur{dica, néo podemos es- quecer que agregado a esse, temos outro principio de igual magnitude, o principio da indisponibilidade do interesse piblico, a impulsionar a Administragao a uma to- mada de decisdo que venha ao encontro do interesse puiblico. ‘Temos como inquestiondvel que o principio da indisponibilidade do interesse ptiblico é norma que exige a desconsideracao da personalidade jurfdica. Afinal, a ‘Administragdo, ao sancionar o contratado, visa com esse ato impedir 0 acesso as li- citag6es e contratos piblicos. Esse é o interesse publico, que a doutrina, a uma sé voz, identifica como de natureza indisponivel. Deveras, em razo da indisponibilidade do interesse piiblico, que obriga a Ad- ministraso a atingir o fim colimado, nos encontramos no campo da funcao admi- nistrativa. Decorrente disso, a Administragdo tem o dever de concretamente reali- zar a abstracdo prevista nas normas juridicas. Nao é demais dizer, ainda, que, hodiernamente, se reconhece que os prin- cfpios ndo so meras recomendacées de carter orientativo. Antes de tudo, so normas de cardter obrigatério, ainda que seu contetido seja genérico. Celso An- tonio Bandeira de Mello, exortando o leitor a importancia do principio, faz a sua jd célebre observacd § O Tribunal de Contas da Unido jé decidin acerca da necessidade de se configurar apenas um dos pressu- postos para a incidéncia da desconsideracéo da personalidade juridica: “Tomada de Contas Especial. Convé- nio. Presenca de elementos objetivos necessérios & aplicagSo da teoria da desconsideraco da personalidade juridica, Identificagio dos sécios responsiveis pelo dano. Citagao. Audiéncia. tl 20. A legislacao brasileira é cristalina quanto & possibilidade de desconsideracao da personalidade juri- dica, seja no Cédigo de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), seja no Cédigo Civil (Lei n® 10.406/2002). 21. Lei n* 8.078/90: tl 24, Para aplicacao da teoria da desconsideracéo da personalidade juridica, basta que ocorra ao menos um dos requisitos para sua aplicacéo ~ fraude, desvio de finalidade ou confuséo patrimonial” (Acérdao n° 10.928/2011 ~ Processo TC 013.014/2011-0 - Tomada de Contas Especial - 2+ Camara. Rel. Min. Aroldo Cecraz). A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar_ 137 Violar um princfpio é muito mais grave que transgredir uma nor- ma qualquer. A desatengao ao principio ofende nao apenas a um especifico mandamento obrigatério, mas a todo o sistema de co- mando. & a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionali- dade, conforme o escalao do principio atingido, porque represen- ta insurgéncia contra todo o sistema, subversao de seus valores fundamentais, contumélia irremissivel a seu arcabouco légico e corrosdo de sua estrutura mestra.*° Diante disso, e & mingua de legislaco que autorize a desconsideracdo da perso- nalidade juridica, deve a Administracao lancar mao dessa figura, com base nos prin- cfpios da moralidade, e indisponibilidade do interesse puiblico. Jessé Torres Pereira Junior e Marines Restelatto Dotti observam com bastante propriedade: No caso de fraude no procedimento licitatério, ha evidente ofensa ao principio da moralidade. Uma empresa constituida com desvio de finalidade, com abuso de forma e em nitida fraude 4 lei, que venha a participar de processos licitatérios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma tome parte de um contrato firmado com o Poder Publi- co, afronta os principios de direito administrativo. No particular, se, num lado ha o principio da legalidade como con- trole da atuaco administrativa, noutro, existem principios (como o da moralidade administrativa e o da indisponibilidade do interes- se ptiblico) que também hio de ser respeitados pela Administragio Publica. Diante de tal conflito, no intuito de se extrair a maior eficdcia da atuagiio do Poder Piiblico no caso conereto, deve-se proceder pon- deraco, de modo que se atinja a melhor solugao, harmonizando os teferidos dogmas, sem que a aplicagao de um deles acarrete o sacri- ficio de outro. Nao por outra razio, o princfpio da legalidade tem sido tratado numa concep¢4o moderna, que nao exige tao somente a literalidade formal, mas a andlise sistemdtica do ordenamento juridico.*! Maiores consideragdes s4o desnecessdrias para se concluir que a auséncia de lei especifica nao poder servir de motivacdo para a Administracdo deixar de desconsi- derar a personalidade jurfdica da empresa, chegando na figura dos sécios, sob pena # BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrative, p. 975. 4! PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marines Restelatto Dotti. A desconsideracéo da personalidade juridica em face de impedimentos para participar de licitagdes e contratar com a Administracio Piblica: limi- ‘tes jurisprudenciais. Boletim de Licitapdes e Gontratos — BLC, jul. 2011, p. 664. 1 ANorma Juridica e 0 llicito O direito s6 pode existir em funcdo do homem, na medida em que o ser huma- no, como animal gregério, é levado a formar os mais diversos grupos sociais. Nesse contexto, por forca de uma natural interagdo, as mais diversas relacdes sociais so desenvolvidas, notadamente aquelas pautadas pela subordinacao. Com efeito, todas essas relades devem ser limitadas, de modo a possibilitar uma convivéncia pacifica, harmoniosa e eficaz, devendo, para tanto, existir um re- gramento capaz de regular todas essas interagdes humanas. Ainda que toda e qualquer norma tenha como caracteristica influenciar 0 com- portamento do individuo, interessa-nos mais de perto aquela regra que tenha por objetivo submeter toda uma sociedade. Em tiltima andlise, estamos falando do Es- tado, no exercicio de seu poder politico, que dispde de amplos poderes para impor uma efetividade normativa.' Em outras palavras, trata-se das normas juridicas que delimitam a liberdade do homem, em prol do bem-estar social, garantindo assim a paz e a ordem. Nesse sentido, temos para nés que necessario se faz diferenciar as normas ju- ridicas das demais normas. Com esse objetivo, ha que se perquirir, inicialmente: o que é norma? De forma singela, a norma é aquela que dita um comportamento. Se assim a entendermos, temos que a norma, ao ditar um comportamento, por conse- quéncia, esta a delimitar aquilo que é normal e aceitével ~ em consonancia com o 1 DINIZ, Maria Helena. Compéndio de introducaa & ciéncia do direito: introdugao A teoria geral do direito, & fi losofia do direito, & sociologia juridica ¢ & légica juridica: norma juridica e aplicacio do direito. 23. ed. rev. ¢ atual. S40 Paulo: Saraiva, 2012. p. 24. 138 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires de afrontar os princfpios da moralidade administrativa e indisponibilidade do inte- resse ptiblico, deixando, assim, de atingir o interesse publico colimado. O que se reclama, portanto, é uma visao material do direito, nao mais voltada para o frio apego da lei, mas voltada para os resultados e a busca da eficiéncia pre- conizada por nosso ordenamento juridico constitucional, afastando-se, destarte, de uma disciplina ritualistica até pouquissimo tempo ensinada e empregada. Assim, se concluimos que o prinefpio da eficiéncia, insistimos em dizer, sem o desprestigio da necesséria legalidade, traz para a Administracao a obrigatoriedade de desenvolver mecanismos para 0 exercicio de uma atividade administrativa eficaz, é imperiosa a decretacao da desconsideragfo, de modo a se atingir o interesse ptiblico. Vale trazer a pelo o entendimento de Luciano Chaves de Farias, com rela¢o ao cotejo dos princfpios sobreditos com o principio da legalidade: Diante desse cendtio, os mais agodados podem inferir que a decre- taco da disregard pelos Tribunais de Contas (como também pela Ad- ministracdo Pablica em geral), por néo existir previséo legal, enseja- ria violaco ao principio da legalidade, vetor de toda a Administragao Publica. Assim, poder-se-ia, prematuramente, visualizar um aparen- te conflito entre os principios: de um lado estaré a obediéncia ao principio da legalidade e de outro, como dito, o necessario respeito aos principios da superioridade e da indisponibilidade do interesse publico, da moralidade ¢ da eficiéncia. Qual deles deveria prevalecer ao ser realizada a técnica da ponderacao? Na verdade, essa hipdtese de conflito entre principios inexiste. O principio da legalidade nao se limita a exigir que a atuacao ad- ministrativa encontre respaldo expresso em norma especifica que disponha exatamente sobre a situa¢do 0 com a qual o administra- dor se depara no caso concreto. Ao revés, quando o principio da legalidade impée a sujei¢éo ao administrador ptiblico aos coman- dos legais, esta reclamando, em especial, sua submissao ao orde- namento juridico vigente. Deveras, 0 nosso ordenamento juridico deve ser entendido como um sistema, promovendo-se, portanto, uma conciliagio entre os princ{pios da legalidade, mora- lidade, eficiéncia e indisponibilidade do interesse ptblico. A reforcar a nossa tese, encontramos também o principio da impessoalidade que veda & Administra¢ao comportamentos que impliquem favoritismos ou prejuf- zos a. quem quer que seja. 2 FARIAS, Luciano Chaves. Aplicapio da teoria da desconsideragdo da personalidade juridica na esfera administra- tiva, p. 944. #8 FERRAZJUNIOR, Tércio Sampaio, Introduplo ao estudo do direto: técnica, decisio, dominagao, p. 177. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 139 Ora, o sé fato das sancées administrativas restritivas de licitar e contratar nao surtirem os efeitos desejados, em razao do abuso da pessoa juridica, sem que a ad- ministracdo tome qualquer providéncia, com vistas a decretar a desconsideracao da personalidade jurfdica, sera elemento suficiente para se concluir pela inobservancia do principio da impessoalidade, dentre outros j4 mencionados, como, aliés, muito bem apontam Jessé Torres Pereira Junior e Marines Restelatto Dotti.“ Nesta hipétese, a todas as luzes, estard havendo um favorecimento para aquele que, as sabendas, se encontra descumprindo a lei. A partir disso, a Administracio estaria a premiar a empresa licitante que, uma vez apenada, se constitui em outra pessoa juridica, no mais das vezes com os mesmos sécios e o mesmo endereco, pre- judicando nao 6 a Administracao Publica, mas também aos demais licitantes, com- prometendo a imparcialidade e lisura dos atos do Poder Piblico. E cristalino, portanto, que o princfpio da legalidade nao pode ser entendido de maneira divorciada dos demais principio norteadores da atividade administrativa. Afora isso, nfo é demais lembrar que os princ{pios possuem muito mais que uma programaticidade. Eles se constituem em normas juridicas capazes de impor uma obrigacao legal.** Nesse mesmo contexto é o entendimento de Paulo Bonavides: A proclamacdo da normatividade dos principios em novas formula- des conceituais e os arestos das Cortes Supremas no constitucio- nalismo contemporfneo corroboram essa tendéncia irresistivel que conduz a valoracio e eficdcia dos prine{pios como normas chaves de todo 0 sistema juridico; normas das quais se retirou 0 contetido ind- cuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a cficdcia das Constituigdes.** Com esse panorama, a desconsideracao da personalidade jurfdica encontra-se efetivamente autorizada pelo nosso ordenamento, ainda que sem lei especifica para a decretacdo da desconsiderago na aplicacao das sancdes restritivas do direito de licitar e contratar. ‘Ademais disso, vem a propésito, o art. 4 da Lei de Introducdo ao Cédigo Civil que permite ao juiz, quando a lei for omissa, que se decida de acordo com a analo- gia, costumes e principios gerais de direito. Luiz Nunes Pegoraro examinando a questo sobre o prisma do principio da le- galidade, da moralidade e da Lei de Introdugéo ao Cédigo Civil Brasileiro, observa: “PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marines Restelatto Dotti. A desconsideragdo da personalidade ju- ridica em face de impedimentos para participar de licitagées e contratar cont « Administragao Piiblica: limites jurispru- denciais, 647. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Harvard University Press, 1978. p. 44. * BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. rev. ¢ atual. S30 Paulo: Malheiros, 2010. p. 286. 140 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires No caso de fraude ao procedimento licitatério, ha manifesta ofensa ao principio da moralidade, pois uma empresa constituida com desvio de finalidade, com abuso de forma e em nitida fraude 8 lei, que venha a participar de processos licitatérios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma tome parte em um contrato firmado com o Poder Piiblico, afronta as premissas elementares do Direito Administrativo. No particular, se, num lado, hé o principio da legalidade como con- trole da atuacao administrativa, noutro, existem principios como o da moralidade administrativa e o da indisponibilidade do interesse pi- blico que também hio de ser respeitados pela Administragao Publica. Diante de tal conflito, no intuito de se extrair a maior eficacia da atuagao do Poder Piiblico no caso concreto, deve-se proceder a me- lhor interpretacfo, de modo que se atinja a melhor soluc&o, harmo- nizando os referidos dogmas, sem que a aplicaco de um deles acar- rete o sacrificio de outro. Nao por outra razo, o principio da legalidade deve ser tratado numa concepgao moderna, que nao exige tao somente a literalidade for- mal, mas anélise sistemética do ordenamento juridico vigente. Portanto, o simples fato de nao haver norma especifica autorizando a desconsiderago da personalidade juridica nao pode impor a Admi- nistrag4o que permita atos que afrontem a moralidade administrati- va e os interesses ptiblicos envolvidos. Embora nao haja regra legal especifica, deve-se empregar a analogia e os princfpios gerais de Di- reito (Lei de Introdugao ao Cédigo Civil, art. 7° “sic”). Daf porque se aplica, com uma maior flexibilidade, a teoria da desconsiderag4o da personalidade juridica na esfera administrativa. Ora, até com base no préprio princfpio da legalidade, néo parece ra- zolivel permitir 0 abuso de direitos e a validade do ato, praticados com manifesto intuito de fraudar a lei.” Nessa linha, se apés regular processo administrativo restar provada a nitida in- tengo de fraudar a lei, a tinica forma de se atingir a plena eficdcia do ato adminis- trativo sancionatério ser4 a desconsideracdo da personalidade juridica, fazendo com que as penas restritivas do direito de licitar e contratar sejam estendidas aos sécios, de modo a responderem solidariamente pela lesdo causada. Esse € 0 entendimento de Jessé Torres Pereira Jiinior e Marines Restelatto Dotti: “£ juridicamente possivel & Administraao Publica, enfim, desconsi- derar a personalidade juridica de sociedade empresarial, para o efei- # PEGORARO, Luiz Nunes. Desconsideragéo da personalidade juridica no procedimento licitatério. Campinas: Ser- vanda Bditora, 2010. p. 82-83. A Desconsideracio da Personslidade Juridica na Aplicaglo das Penas Restritivas do Direito de Licitar 141 to de estender-lhe a penalidade aplicada a outra, tendo sido aquela constituida ulteriormente a esta, pelos mesmos sécios e com o mes- mo objeto social, no evidente intuito de ladear o impedimento de- corrente da sancao e viabilizar a participagfo da nova sociedade em licitagBes e contratages com o Estado? A resposta é afirmativa. Como forma de garantir 4 Administragao Publica instrumento eficaz de combate a fraude, é de admitir-se, em homenagem aos principios que, na Constituigao da Reptiblica, tutelam a atividade administrativa do Estado, a desconsideracao da personalidade juridica da sociedade constituida em fraude 4 lei e com abuso de forma, mesmo diante do fato de inexistir previsao le- gal specifica, para o que ha expressivo apoio doutrinério e se con- tam indmeros precedentes na jurisprudéncia recente dos tribunais judiciais e de contas.* Como muito bem anota o autor supramencionado, os nossos tribunais judi- ciais, com muita propriedade, tém se manifestado acerca da desconsideragao da per- sonalidade juridica no contexto das penas restritivas de licitar e contratar: “Administrativo — Recurso ordindrio em Mandado de Seguranga — Licitagdo. Sango de inidoneidade para licitar — Extensdo de efeitos, & sociedade com o mesmo objeto social, mesmos sécios e mesmo enderego ~ Fraude 4 lei e abuso de forma - Desconsideracao da personalidade juridica na esfera administrativa ~ Possibilidade — Principio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses péblicos. — A constitui¢géo de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sécios e com 0 mesmo endereco, em substituicéo a outra declarada inid6nea para licitar com a Administragao Pablica Estadual, com o objetivo de burlar & aplicagdo da sancao adminis- trativa, constitui abuso de forma e fraude & Lei de Licitagoes Lei 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicacdo da teoria da desconsi- deraco da personalidade juridica para estenderem-se os efeitos da sangfo administrativa 4 nova sociedade constituida. ~ A Administragao Pablica pode, em observancia ao principio da mo- ralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses piibli- cos tutelados, desconsiderar a personalidade juridica de sociedade constituida com abuso de forma e fraude & lei, desde que facultado ao administrado o contraditério ¢ a ampla defesa em processo admi- nistrativo regular. PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marines Restelatto Dotti. Politicas piiblicas nas licitagdes e contra- tapbes administrativas, 2. ed. rev, atual. e ampl. Belo Horizonte: Férum, 2012. p. 363, 142, A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires ~ Recurso a que se nega provimento.® Vale ainda trazer a pelo as ponderacdes apontadas pelo Ministro Castro Meira em seu voto: Firmado o entendimento de que a Recorrente foi constituida em ni- tida fraude 2 lei e com abuso de forma, resta a questio relative 4 possibilidade de desconsideracao da personalidade juridica, na esfe- ra administrativa, sem que exista um dispositivo legal especifico a autorizar a adocao dessa teoria pela Administra¢ao Publica. A atuacao administrativa deve pautar-se pela observancia dos prin- cipios constitucionais, explicitos ou implicitos, deles néo podendo afastar-se sob pena de nulidade do ato administrativo praticado. E esses principios, quando em conflito, devem ser interpretados de maneira a extrair-se a maior eficdcia, sem permitir-se a interpretaco que sacrifique por completo qualquer deles. Se, por um lado, existe o dogma da legalidade, como garantia do ad- ministrado no controle da atuacao administrativa, por outro, exis- tem Principios como o da Moralidade Administrativa, o da Supre- macia do Interesse Publico e o da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Puiblico, que também precisam ser preservados pela Administracao. Se qualquer deles estiver em conflito, exige-se do hermeneuta e do aplicador do direito a solugao que melhor resul- tado traga 4 harmonia do sistema normativo. Aauséncia de norma especifica nfo pode impor & AdministragZo um atuar em desconformidade com o Principio da Moralidade Adminis- trativa, muito menos exigir-lhe o sacrificio dos interesses ptiblicos que esto sob sua guarda. Em obediéncia ao Princ{pio da Legalidade, nao pode o aplicador do direito negar eficdcia aos muitos principios que devem modelar a atuagao do Poder Publico. Assim, permitir-se que uma empresa constituida com desvio de fi- nalidade, com abuso de forma e em nitida fraude a lei, venha a par- ticipar de processos licitatérios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma tome parte em um contrato firmado com o Poder Pitblico, afronta aos mais comezinhos principios de direito administrativo, em especial, ao da Moralidade Administrativa e ao da Indisponibili- dade dos Interesses Tutelados pelo Poder Publico. ‘A concepgdo moderna do Princfpio da Legalidade nao esta a exigir, to somente, a literalidade formal, mas a intelecgo do ordenamento jurfdico enquanto sistema. Assim, como forma de conciliar 0 apa- Superior Tribunal de Justica ~ ROMS n® 15.166 ~ BA (2002/0094.265-7) ~ Rel. Min. Castro Meira. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 143 rente conflito entre o dogma da legalidade e 0 Princfpio da Morali- dade Administrativa é de se conferir uma maior flexibilidade a teoria da desconsideragéo da personalidade juridica, de modo a permitir 0 seu manejo pela Administragdo Péblica, mesmo a margem de previ- so normativa especifica.*° Este também tem sido o entendimento do Tribunal de Justic¢a do Estado de Sao Paulo: LICITAGAO ~ AGAO DECLARATORIA DE NULIDADE - Empre- sa vencedora que possui o mesmo gerente, sécios e objeto social de empresa suspensa de licitar pelo fato de ter sido declarada inidénea em Bauru ~ Documentos que demonstram estarem localizadas na mesma regio, possuem os mesmos representantes técnicos ~ Niti- da pretensao de fraudar a licitacao e burlar a lei - Desconsideracao da personalidade juridica ~ Contrato nulo ~ Sentenga mantida ~ Re- curso nao provido.*! De igual modo o Egrégio Tribunal de Contas da Unido também tem proferido decisdes admitindo-se a desconsideracao da personalidade juridica. Representagdo formulada com fulcro no art. 113, § 1%da Lei de Lici- tac6es. Empresa constitufda com o intuito de burlar a lei. Fraude em licitagdo. Audiéncia. Rejeicdo das raz6es de justificativa. Declaragao de inidoneidade de licitante. Nulidade do certame e da contratagio. 1. Confirmado que a empresa licitante foi constituida com o nit do intuito de fraudar a lei, cabe desconsiderar a sua personalidade juridica de forma a preservar os interesses tutelados pelo ordena- mento jurfdico. 2. Deve ser declarada a nulidade de licitagéo cujo vencedor utilizou- -se de meios fraudulentos. LJ 13. CONCLUSAO 13.1 Diante dos fatos descritos, est caracterizado que as empresas Fox, Rio Fort e Falcon sio administradas pelo mesmo grupo de pes- soas que mantém até mesmo relagGes de parentesco entre si. 13.2 As alegagées feitas pela empresa Falcon no sentido de que as empresas no possuem qualquer vinculo nao procede, visto que em 5 BRASIL. Superior Tribunal de Justica - ROMS n® 15.166 -BA (2002/0094.265-7) ~ Rel. Min. Castro Meira. 5 BRASIL. Tribunal de Justica do Estado de So Paulo. ApCV n* 994.09.386.867-1. Rel. Des. Urbano Ruiz, 144 A Desconsideraao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires certos momentos compartilharam a mesma sede, tiveram testemu- nhas comuns, apresentaram diversas trocas gratuitas de s6cios en- volvendo o mesmo grupo de pessoas, além de possufrem objetos sociais semelhantes. 13.3 Ademais, as declaracées feitas pela Sra. Marluce Pampolha de Queiroz mostram que o Sr. David nfio agiu com boa fé e que foram constituidos sécios “laranjas” com a finalidade de burlar o ordena- mento juridico. 13.4 Assim, com 0 intuito de conferir eficdcia aos incisos XIII e XIV do art. 4° da Lei n? 10.520/02, no caso concreto deve ser desconsi- derada a personalidade juridica das empresas Falcon, Fox ¢ Rio Fort, alcangando a pessoa do Sr. David Antonio Teixeira Figueira.” Em summa, a constituigéo de uma nova sociedade, com os mesmos sécios e com © mesmo endere¢o, em substituicao a outra que esteja impedida de licitar e con- tratar com a Administracdo, com o n{tido objetivo de burla 4 sano administrativa aplicada, constitui abuso de forma e burla a lei de licitagdes, ensejando a aplicacao da teoria da desconsideracio da personalidade juridica de modo a estender a sancao figura dos sécios. 8.8 A desconsideracao da personalidade juridica decretada pela Administracao Publica Admitida a desconsiderac&o da personalidade juridica na aplicagao das penas restritivas do direito de licitar e contratar para que a Administra¢do possa atingir a figura dos s6cios, independentemente da existéncia de lei especifica autorizativa, cabe perquirir se tal ato estaria a ensejar a atuacao do Poder Judicidrio ou poderia ser decretado pela Administragao Publica. Em outro dizer, cabe aqui questionar se a desconsideracio da personalidade jur{dica 6 de cardter autoexecutério.3 © BRASIL. Acérdio n® 0928/08 ~ Plenério ~ TC - 003.533/2006-1 — Representacéo - Relator: Benjamin Zymler. Varios sao os acérdaos do E. Tribunal de Contas da Unido admitindo a desconsideracao da personali- dade jurfdica: “Sumério: Tomada de Contas Especial. FUNASA. Melhorias sanitérias domiciliares. Inexecuco do objeto. Desconsideracio da personalidade juridica, Ato de competéncia de érgao colegiado. 1. A desconsideragao da personalidade juridica, nos casos de abuso de direito, seré decidida pelo colegia- do competente para julgar 0 processo em que ocorrer a questo incidental. 2. Ao decidir pelo levantamento do véu da personalidade juridica, o Tribunal indicaré os administradores ou sécios responséveis pelo abuso de direito, que responderao pelo dano imposto ao Erério. 3. Somente se procederd a citagao dos sécios ou administradores responsaveis pelo abuso de direito, apés 4 deliberacao do Tribunal acerca da desconsideracao da personalidade juridica da empresa responsivel pelo dano ou beneficiada com pagamentos irregulares” (Brasil. Acérdao n° 1.891/2010 - TC 013.685/2009-1 ~ To- mada de Contas Especial ~ Plenério, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues). 5 Segundo nosso entendimento 0 ato administrativo & provido ou no de autoexecutoriedade, ainda que Celso Antonio Bandeira de Mello entenda de maneira distinta: “c)Exigibilidade ~ é a qualidade em virtude da qual o Estado, no exercicio da fungao administrativa, pode exigir de terceiro o cumprimento, a observan- A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 145 Concluimos, ainda, que uma vez configurado um dos pressupostos da descon- sideracdo da personalidade jurfdica, deve a Administracdo tomar as providéncias ca- biveis 4 espécie, sob pena de omissao. Ora, se assim é, nao haveria sentido em, apds tudo isso, a Administracdo precisar se socorrer do Poder Judicidrio de modo a atin- gir os seus objetivos, ainda que em um primeiro momento pensemos na autoexe- cutoriedade apenas quando a lei expressamente a prever.* Por tudo isso, poderfamos afirmar que a desconsideragao da personalidade ju- ridica da empresa licitante ou contratada deveria possuir carater autoexecutdrio. Cabe aqui, todavia, um exame mais aprofundado da matéria. Diogo de Figueiredo Moreira Neto assim se pronunciou: A Executoriedade é, portanto, a regra da execugéo administrativa, em- bora sempre sujeita a duas inafastaveis condicionantes, uma positiva ¢ outra negativa. A condicionante positiva é a satisfacéo do préprio pressuposto da exequibilidade, pois s6 0 ato exequivel se torna execu- torio. A condicionante negativa é a inexisténcia de qualquer excecdo legal especifica, pois a legislacdo poderé submeter a execucdo de cer- tos atos administrativos a um prévio controle de legalidade, caso em que se transferir4 ao Poder Judiciario, com vistas a acautelar, desde logo, nessas hipéteses excepcionais, quaisquer direitos fundamentais Ll. O ato executério, também se denomina de ato autoexecutério, para destacar a autossuficiéncia do agente no emprego da forca e a conse- quente desnecessidade de intervengdo de outro agente, da Adminis- tracdo ou do Judicidrio, para autorizé-la. Sob outro aspecto, o emprego da executoriedade, como instru- mento destinado a tornar efetiva a agéo administrativa publica, nao ha de ser considerado como uma faculdade da Administracao, de que possa ela valer-se ou ndo a seu talante, mas de um poder- -dever, de carater mandatério, sempre que presentes os pressu- postos legais de atuacao.5* ia, das obrigagées que impés. Néo se confunde com a simples imperatividade, pois, através dela, apenas se cconstitui uma dada situago, se impGe uma obrigacio. A exigibilidade € 0 atributo do ato pelo qual se impele A obediéncia, ao atendimento da obrigacao jé imposta, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciério para induzir o administrado a observé-la. d) Executoriedade - ¢ a qualidade pela qual o Poder Pablico pode compelir materialmente 0 administra- do, sem preciso de buscar previamente as vias juciciais, ao cumprimento da obrigago que impds ¢ exigiu” (Curso de direito administrativo, 423). Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina: “No direito administrativo, a autoexecutoriedade nao existe, tam- bbém em todos os atos administrativos; ela s6 € possivel: 1. quando expressamente prevista em lei 2. quando se trata de medida urgente que, caso no adotado de imediato, possa ocasionar prejutzo maior para o interesse piiblico” (Direito administrativo, p. 207). 5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de diveito administrative: parte introdutéria, parte geral e parte especial. p. 161-162. 146 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires E de se notar que a autoexecutoriedade deverd existir como meio de assegurar a efetividade da ac4o administrativa, constituindo-se, nas palavras do autor sobredito em um poder-dever da Administraco Publica. Licia Valle Figueiredo observa, por sua vez, que a autoexecutoriedade somente poderd ser utilizada se prevista em lei ou na exata medida da necessidade administrativa.** As consideragées até aqui desenvolvidas sao suficientes para se concluir como perfeitamente possivel a autoexecutoriedade da decisao administrativa que venha a desconsiderar a personalidade juridica de empresa licitante ou contratada. Note-se que 0 ato administrativo, j4 em seu nascedouro, encontra-se jungido ao interesse puiblico. A par disso, segundo o principio da legalidade 4 Administragio 86 é dado fazer o que esté na lei, decorrendo dai, 0 atributo da presuncao de legiti- midade e veracidade. Logo, os atos administrativos sao obrigatérios para todos aqueles que se en- quadrem em determinada hipétese. E 0 que se denomina de imperatividade. Assim, como muito bem afirma Edmir Netto de Araujo, sera em razdo da pre- sungdo de legitimidade ou veracidade e da imperatividade que o ato administrativo, diferentemente do ato de direito privado, sera autoexecutério, uma vez que o inte- resse piiblico sobrepuja os interesses privados, ressalvadas aquelas hipdteses que 0 autor chama de direito estrito, quando caberé 4 Administraco, tal qual ao particu- lar, se socorrer do judicidrio (desapropriacées, execucées fiscais).°” Nessa linha de entendimento, a autoexecutoriedade deve ser entendida no con- texto da funcao administrativa, em razao da indisponibilidade das competéncias da Administra¢do, revelando-se, pois, em dever. Em razo de tudo isso, adequado se faz afirmar que a desconsideracao da per- sonalidade juridica na aplica¢4o das penas restritivas do direito de licitar e contratar deverd ocorrer de forma autoexecutéria. Esse também é o entendimento de Jessé ‘Torres Pereira Junior e Marines Restelatto Dotti: A indagacdo imediatamente seguinte é a de se saber se a desconsi- deragdo dispensaria a interven¢ao do Poder Judiciério, uma vez que, em esse, implica restri¢go de direito garantido pela Constitui¢o como a maior amplitude, qual sejaa do acesso isondmico a licitagdes e contratos administrativos. A resposta é também afirmativa, gracas & chamada autoexecutoriedade dos atos administrativos e desde que previamente assegurada 4 sociedade acusada a ampla defesa em pro- cesso administrativo regular. 5 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo, p. 195. ” ARAUJO, Edmir Netto de. Curso de diveito administrativa, p. 479 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marines Restelatto Dotti. Politicas piiblicas nas licitagdes econtra- taphes administrativas, p. 363 A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicacio das Penas Restritivas do Direito de Licitar 147 A Corte de Contas da Unido Federal vem pelo mesmo caminho, no sentido de entender pela autoexecutoriedade do ato administrativo de desconsideragao da per- sonalidade juridica, consoante se depreende do julgado a seguir: SUMARIO Pedido de reexame. Representacdo. Licitacdo. Edital. Cldusula impe- ditiva de participacao de interessados suspensos por ente distinto da administragéo publica. SangGes aplicadas a pessoa juridica. Alcance dos efeitos. DeterminaGes. Interposi¢4o de recurso. Conhecimento. Negado provimento. LJ N&o raro, integrantes de comissdes de licitagdo verificam que so- ciedades empresdrias afastadas das licitagGes puiblicas, em razdo de suspensao do direito de licitar e de declaracao de inidoneidade, re- tornam aos certames promovidos pela Administrao valendo-se de sociedade empreséria distinta, mas constituida com os mesmos s6- cios e com objeto social similar. Por forca dos princfpios da moralidade piiblica, prevengo, precau- 40 e indisponibilidade do interesse piiblico, o administrador pibli- co est4 obrigado a impedir a contratacao dessas entidades, sob pena de se tornarem indcuas as sangées aplicadas pela Administracao. instituto que permite a extensdo das penas administrativas 4 en- tidade distinta é a desconsideracdo da personalidade jurfdica. Sem- pre que a Administracdo verificar que pessoa juridica apresenta-se & licitagZo com objetivo de fraudar a lei ou cometer abuso de direito, cabe a ela promover a desconsideracdo da pessoa juridica para Ihe estender a sancio aplicada. Desse modo, nfo estaré a Administraggo aplicando nova penali- dade, mas dando efetividade 4 sanc4o anteriormente aplicada pela propria Administracao.”* Calha aqui, por pertinente, lembrar que varias sio as decisGes do E. Tribunal de Contas da Unido acerca da desconsideracdo da personalidade juridica, independen- temente de qualquer socorro do Judiciério.® BRASIL. Acérdio 2.218/2011, TCU — 1 Camara. Data do Julgamento 12.4.2011, Rel. Min. José Miicio Monteiro. © © Ministro Aroldo Cedraz jd consignou no voto constante do Acérdao 2.589/2010, TCU - Plendrio, Data de Julgamento 29.9.2010, que a jurisprudéncia do Tribunal de Contas da Uniao é uniforme, no senti- do da adogao da teoria da desconsideracao da personalidade juridica para alcangar administradores ou sécios de entidades privadas, reais responsaveis por ilicitos geradores de prejuizo ao erério, quando tal atuacéo ilfcita fica demonstrada, objetivando resguardar o interesse piiblico com o ressarcimento ao erério. Pode ser citados os acérdaos 2.990/2006, 1.300/2009 ¢ 1.525/2009 de 14 Camara, 294/2002 e 3.135/2006 de 2* ‘Camara e 83/2000, 182/2000, 189/2001, 463/2003, 195/2004, 143/2006, 873/2007, 2.151/2008, 79/2009, 791/209 € 1.209/2009 de Plenério, 4 A Desconsideragio da Personalidade Juridica nas ContratagSes Pablicas + Pires regramento estabelecido ~ e, por exclusao, aquilo que é anormal - em dissonancia com a norma. Assim é que a norma é descritiva de um comportamento, adquirindo, pois, forca de mandamento. Interessante € a posi¢éo de Gofredo Telles Junior, ao diferenciar norma de mandamento, Sé ser norma o mandamento que condiz com a normalidade do am- biente. Em outro dizer, para se considerar como norma, é preciso que esse orienta- tivo de comportamento se encontre de acordo com aquilo que é considerado como bom ou mau, conveniente ou inconveniente, dentro de determinada comunidade2 Quanto 4 norma jurfdica, Norberto Bobbio observa que “o problema de distin- guir as normas jurfdicas de outros tipos de normas é, como tem sido denominado, © das ‘caracteristicas diferenciais’ da norma juridica — frequentemente subvalorado e rechagado, mas que surge continuamente ~ é problema que nao se resolve, se fi- carmos nos limites de um estudo puramente formal das proposicdes normativas”.* HA de se ver que Norberto Bobbio afasta, de plano, o critério formal, com vistas a reconhecer as diferencas entre normas juridicas e nao juridicas. Para o autor em questo, nao basta o reconhecimento de que as normas juridicas esto constitufdas por imperativos negativos ou por normas técnicas, tendo em vista que a téo conhe- cida formula “se A é, ent4o B deve ser” pode aplicar-se a muitas outras normas.* Norberto Bobbio, afastando o crit para caracterizar a norma: io formal, delineia os seguintes critérios, a) ocritério de individualizar a norma juridica mediante 0 seu contetido, atribuindo-se uma bilateralidade que consiste no fato de a norma juridi ca estabelecer, ao mesmo tempo, um direito para um sujeito e um dever Para outro sujeito; b) ocritério do fim, eis que o direito regula relagdes especificas, tendo por finalidade ultima a conservacao da sociedade; ©) ocritério do sujeito que dita a norma, sustentado na teoria de que a nor- ma é uma expresso do poder. Em suma, normas juridicas sao ditadas por quem tem o poder soberano; d) critério jusnaturalista. Nao serao juridicas todas as regras, mas, tao somente, aquelas que se inspiram em determinados valores, notada- mente a justica. e) critério da natureza das obrigagGes. 2 TELLES JUNIOR, Gofredo. 0 direito quantico: ensaio sobre o fundamento da ordem juridica. 6. ed. rev. Séo Paulo: Max Limonad, 1985. p. 257. » BOBBIO, Norberto. Teoria general del derecho. 2. ed. Santa Fé de Bogot4: Colombia, 1999. p. 99. * Idem, ibidem, p. 98-99. 148 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires Outro aspecto que deve ser observado com bastante cuidado é a obediéncia ao princ{pio do contraditério e da ampla defesa, por forca do art. 5, LV, de nossa Mag- na Carta, devidamente regulado pela Lei 9.784/99 - Lei do Processo Administrativo Federal, como, alids, ficou consignado pelo nosso Superior Tribunal de Justica no julgamento proferido no RMS ne 15.166 - BA. ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE SEGURANCA. LICITAGAO. SANGAO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSAO DE EFEITOS A SOCIEDADE COM O MES- MO OBJETO SOCIAL, MESMOS SOCIOS E MESMO ENDEREGO. FRAUDE A LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERACAO DA. PERSONALIDADE JURIDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINC{PIO DA MORALIDADE ADMINISTRA- TIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PUBLICOS. (1 Convém registrar, por oportuno, que a aplicagéo desta teoria de es- tar precedida de processo administrativo, em que se assegure ao in- teressado o contraditério e a mais ampla defesa, exatamente como realizados no caso dos autos. [...].®! Com efeito, o regime de direito ptiblico no permite que atos emanados da Administragao Ptiblica que, de alguma forma, invadam a esfera de direitos do par- ticular, prosperem sem a necesséria obediéncia ao principio do contraditério e da ampla defesa. 8.9 A obediéncia ao principio da motivagao no ato administrativo da imposigao da desconsideragao da personalidade juridica E de rigor que a aplicagao de penalidades atenda ao principio do contraditério e da ampla defesa, haja vista que, em face das disposig6es do art. 5%, LV, de nossa Lei Maior encontra-se revogada a verdade sabida. Demais disso, o atendimento ao principio do contradit6rio e da ampla defesa de- vera ser efetivo, nao podendo se constituir no atendimento de uma mera finalidade. ‘Logo, de modo a propiciar a defesa do interessado no proceso, deve a Adminis- tracdo motivar os seus atos, notadamente em se tratando do ato administrativo de © BRASIL. Superior Tribunal de Justica ~ STJ. Recurso ordindrio em MS nt 15.166-BA 2002/0094.265-7 Rel. Min. Castro Meira. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 149 imposicao de pena, que venha a desconsiderar a personalidade juridica do licitante ‘ou contratado. E inerente ao princ{pio da motivagao que a Administracao venha a demonstrar a licitude de seus atos, impondo, assim, a necessidade de se indicar os motivos féti- cos e de direito determinantes para que se tome esta ou aquela decisao. Carlos Roberto de Siqueira Castro coloca a questo da motivacéo como uma das exigéncias do Estado Democrético de Direito que nao pode tolerar decisdes ar- bitrarias e, portanto, desbordadas de nosso ordenamento juridico. A bem dizer, a declinaco dos motivos nas manifestagGes estatais ctiadoras, extintivas ou modificadoras de direitos, que caracteri- zam os pronunciamentos de carater decisério do Poder Piiblico tor- nou-se por toda parte uma exigéncia do Estado Democritico de Direito. B que a idénea motivacao dos atos estatais que intercedam com interesses gerais da sociedade ou, singularizadamente, como interesses especificos de terceiros, afasta desde logo o sintoma do arbitrio e do despotismo, que a ordem constitucional repudia e 0 regime democritico deplora. Nao importa por qual Angulo se olhe a questo. A conclusdo é uma s6: o aten- dimento ao principio da motivacao é regra na edig4o dos atos administrativos, nos termos do art. 50, Il, da Lei 9.784/99.5 Com esse panorama, o atendimento ao princ{pio do contraditério e da ampla de- fesa implica, necessariamente, a oportunidade do interessado reagir em face da Admi- nistracdo e isso somente sera possivel mediante uma adequada motivacao “que deve demonstrar que a infrac4o administrativa foi praticada e que 0 acusado foi o autor do delito, com base em minudente andllise da prova produzida nos autos”. Vem a talho expressar nosso entendimento quanto ao disposto no art. 5°, inciso LV, da Constituicdo Federal, que assegura o contraditério e a ampla defesa “com os meios e recursos a eles inerentes”, que, ao nosso ver, referem-se, dentre outros, 4 necessaria motivacao do ato. Cumpre notar que a relevancia da motivagio é tal que nao admite, sob nenhu- ma hipétese, arremedos de justificativas, como muitas vezes encontramos nas im- © SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. O devido processo legal e « razoabilidade das leis na nova Constituijio do Brasil, p. 322. © Em nosso pensar as disposicées do art. 50, da Lei 9.784/99, devem ser entendidas de modo extensivo, eis que, para nds, todos os atos administrativos devem ser motivados. & DE MELLO, Rafael Munhoz. As sangdes administrativas luz da Constituigto Federal de 1988, p. 236. © _ Entendemos que o principio do contraditério e da ampla defesa assegura as seguintes garantias: presun- ‘do de inocéncia, instrugao contraditéria, plenitude da defesa, publicidade dos atos, decisées motivadas, du- Tago razoével do processo etc. 150 A Desconsideraao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires prensas oficiais de nosso pafs. Antonio Carlos de Araiijo Cintra faz observagao a esse respeito: A suficiéncia da motivacao abrange a sua precisdo, que importa levar em conta as peculiaridades e circunstancias do caso concreto, nfo se contentando com afirmagées genéricas e vagas, com meras repeti- Ses da linguagem da lei, com simples referéncia ao interesse puibli- co, A necessidade de servico etc. Por outro lado, sob o aspecto for- mal, a motivac&o deve ser clara e congruente, a fim de permitir uma efetiva comunicacéo com seus destinatarios. Realmente, se a moti- vacao for obscura, ininteligivel, contraditoria redundaré na incerteza ¢ inseguranga sobre o verdadeiro significado do ato administrativo assim motivado. Assim, os requisitos da motivacao sao a suficiéncia, aclareza ea congruéncia. Se a motivacao, como muito bem anota Antonio Carlos de Aratijo Cintra, deve ser suficiente, clara e congruente, acreditamos que, a isso, deva ser acrescentada a necessidade de bem demonstrar a dosimetria da penalidade imposta, principalmen- te em se tratando da desconsideracao da personalidade juridica que exige, 4 mingua de lei specifica, um considerdvel exercicio de interpretacao. 8.10 A natureza juridica do ato administrativo de desconsideracdo da personalidade juridica No decorrer desse trabalho muitas foram as dividas que nos assaltaram. Toda- via, aquela que mais nos incomodou foi com relacdo 4 natureza juridica do ato san- cionatério da desconsideragao da personalidade juridica do licitante ou contratado. Cremos nés que a davida com relagao 4 natureza juridica do ato administrativo em comento decorreu do fato de, em um primeiro momento, consider4-lo sob uma ética genética. Melhor dizendo, a questo deve ser assim entendida: uma coisa ¢ 0 ato admi- nistrativo de imposi¢o de pena restritiva do direito de licitar; outra coisa é estender os efeitos da pena restritiva do direito de licitar aos sdcios da empresa fraudadora. Ora, em se tratando de uma san¢4o administrativa, nao temos dividas de que se trata de uma restricao de direito, no caso, uma restricao ao direito de licitar e contratar, decorrente de regras expressas. Ou seja, estamos perante uma conse- quéncia juridica desfavoravel, em razdo de que o particular atuou em dissonancia com um dispositivo legal. & ARAUJO CINTRA, Antonio Carlos de. Motivo e motivapio do ato administrativo. So Paulo: Revista dos Tri- bunais, 1979. p. 128-129. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 151 Entretanto, o que se discute nao é a mera imposi¢ao da sangao, nos moldes das Leis 8.666/93 e 10.520/02. Discute-se, sim, qual a natureza do ato que impde a extensio da sangao aos sécios das empresas apenadas, pois que, por dbvio, nao se trata de uma restricao a nenhum direito. Com mais precisdo, discute-se 0 fato de os sécios de uma empresa apenada, com qualquer uma das penas restritivas do direito de licitar e contratar, se consti- tufrem em outra, fraudando a Administrac4o. De certo, esse ato nao pode se cons- tituir em uma restrigao de direito, pelo simples fato de nao ser dado a ninguém o direito de burlar a Lei. Ao contrario, devemos entender que o ato de extens4o da pena aos sécios da sociedade empreséria trata-se, em verdade, de uma reconducdo aos trilhos da lega- lidade, na medida em que a segunda empresa foi criada para burlar os efeitos do cometimento de um ilicito administrativo, como alertam Jessé Torres Pereira Junior e Marines Restelatto Dotti: Do ato administrativo de desconsideracéo da personalidade juridica de sociedade empresiria, que age com comprovado abuso de direito e pratica fraude contra a Administracdo, nao surte supressio de direito algum, porém, ao revés, restauracio de direito que o abuso ¢ a fraude pretenderiam eliminar. Pondere-se que a sociedade fraudadora estava impedida de participar de licitagdo e de contratar, cabendo & Adminis- tracSo, no exercicio regular de seus poderes-deveres de atender 3 or- dem juridica, fazer prevalecer o impedimento nesta previsto.” Por assim dizer, entendemos que o ato que venha a desconsiderar a personali- dade juridica da empresa de modo a estender a pena restritiva de licitar e contratar aos sécios desta tem cardter declaratério, eis que a Administrago estara reconhe- cendo uma situagao juridica decorrente de outra preexistente. 8.11 A desconsideracao da personalidade juridica como ato de obediéncia ao devido processo legal substancial Deixamos claro que a desconsideracao da personalidade juridica nas licitagdes e contratos ptiblicos tem a sua raiz, o seu sustentdculo, nos principios da moralidade, eficiéncia, indisponibilidade do interesse puiblico e impessoalidade. Entretanto, € conveniente esclarecer que a aplicacao de sanc4o e a eventual desconsideracao da personalidade juridica, se for o caso, deverd estar pautada pelos princfpios da motivacao, razoabilidade e proporcionalidade. © PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marines Restelatto Dotti. Politicas piiblicas nas licitagdes contra- tapSes administrativas, p. 365. 152. A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires Em outro dizer, caso concreto deverd ser ponderado de tal maneira que afas- te a incidéncia de arbitrariedade. Essa ponderacao, por dbvio deve atender aos cri- térios de bom-senso e sensatez, com vistas a se constituir uma decisao de justiga, atingindo-se, pois, a finalidade da lei. Lticia Valle Figueiredo diz que a aplicagéo do devido processo legal, em seu sentido substantivo, serd o meio inesgotavel para a garantia dos direitos individuais, coletivos e difusos, bem como para o correto exercicio da fun¢ao administrativa.* Carlos Roberto de Siqueira Castro observa que o due process of law transformou- -se em um postulado genérico de legalidade, exigindo que os atos do Poder Pitblico estejam em absoluta consonancia com a nocao de um direito justo.” Isso porque, as sabendas, a fungGo administrativa exige o dever de perseguir e alcancar o interesse piblico no cotidiano das atividades administrativas. Disso deflui que, no exercicio da fungSo administrativa, o atendimento aos principios da razoabilidade e da proporcionalidade se revelam nos fundamentos juridicos para a correta interpretago e aplicaco dos principios da moralidade e eficiéncia, isso sem falar na propria indisponibilidade do interesse piblico que é insita a fungao admi- nistrativa enquanto dever, bem assim como o princ{pio da impessoalidade. José Ro- berto Pimenta Oliveira aduz: Verifica-se, pois, que a aplicacao do principio da razoabilidade cons- titui uma exigéncia procedimentalizada para a correta aplicacdo dos principios e regras informativos do regime juridico-administrativo. Depende a razoabilidade, na sua formulacao e aplicagao prética, dos elementos colhidos nas circunstancias faticas ¢ juridicas do proble- ma de fato, em face da qual permitiré, com a sua exigéncia de pon- deraco instrumental justificada, identificar qual a solugo material a prevalecer na concretizacao do direito administrativo.” Com efeito, o devido processo legal substancial tem por objetivo proceder “ao exame da razoabilidade (reasonableness) ¢ da (rationality) das normas juridicas e dos atos do Poder Piblico em geral.””' Ser4, portanto, mediante a observancia do princi- pio da razoabilidade e proporcionalidade que se encontrard a justa adequaco, a ra- © FIGUEIREDO, Liicia Valle. Estado de diteito ¢ devido processo legal. RDA 209/7-18. Rio de Janeiro: Re- novar, jul/set. 1997, p.18. © SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. 0 devido processo legal e « razoabilidade das leis na nova constituigao do Brasil, p. 152. 7 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os principios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administra- tivo brasileiro, p. 233. 7 BARROSO, Luis Roberto. Interpretapto e aplicagio da Constituipao: fundamentos de uma dogmitica consti- tucional transformadora. 4. ed. S40 Paulo: Saraiva, 2001. p. 214. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 153 cionalidade e bom-senso entre os meios e os fins colimados na a¢ao administrativa. Qualquer coisa além disso implicar4 ofensa ao devido processo legal substancial. Por tudo isso é correto afirmar que a decisio administrativa que venha a admi- tir a desconsidera¢ao da personalidade juridica da empresa licitante ou contratada, observadas as considerac6es precedentes, seriam suficientes para o atendimento do devido processo legal substancial. Acentue-se que a Administragao, ao exarar decisao com vistas a desconsiderar a personalidade juridica de determinada empresa, em tiltima andlise, encontra-se extraindo da lei e dos princfpios norteadores dessa deciso a sua maxima eficiéncia, exercendo uma considerdvel atividade criadora que, a mingua de legislacao especifi- ca, é capaz de autorizar tal hipdtese, em razdo do devido processo legal substantivo que se constitui em uma pauta aberta, de forma a permitir que a Administracdo-Juiz diga o direito perante o caso em concreto. Enfim, a cada pessoa deve ser concedido aquilo que lhe é devido, de forma a se atingir o valor supremo da justica. 8.12 As sancées de acordo com a Lei Baiana de Licitagées A Lei Baiana de Licitacdes, Lei 9.433/05, veio a dispor sobre as licitagdes e con- tratos administrativos pertinentes a obras, servicos, compras, alienaces e locacdes no ambito dos Poderes do Estado da Bahia. Em princfpio, nada obsta que um ente federado, no exercicio de sua competén- cia suplementar, venha a regular a matéria no seu 4mbito de competéncia, mediante a edico de normas especificas, tendo em vista que a Unido é dado, tao somente, a competéncia privativa para legislar sobre normas gerais de licitagao e contrata¢ao, Nos termos do art. 22, inciso XXVIII, de nossa Constituic4o Federal. Contudo, a Lei 9.433/05, em seu art. 187, dispde de maneira diferente acer- ca das penalidades administrativas, bem como em seu art. 200 prevé a hipéte- se da desconsideracao da personalidade juridica do licitante ou contratado na aplicagdo das penas restritivas do direito de licitar e contratar, quando assim se mostrar necessario. Antes de nos debrucarmos sobre a quest4o propriamente dita, nado temos como deixar de questionar se seria possivel ao Estado da Bahia, no ambito de sua competéncia, inovar, estabelecendo sang6es administrativas em desconfor- midade com 0 art. 87 da Lei 8.666/93, bem como a hipdtese da desconsideracdo da personalidade juridica. Com isso, estaremos a trazer A baila a velha, mas no tao pacifica, discussio acerca da competéncia da Unido para legislar privativamente sob normas gerais de licitag4o e contrata¢4o. 154 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piiblicas + Pires 8.12.1 O que sao normas gerais? Nao é nenhuma novidade que a Constituigao Federal, em seu art. 22, inciso XXVII, estabelece que a Unido Federal tem competéncia privativa para legislar “so- bre normas gerais de licitagao e contrata¢do, em todas as modalidades, para as ad- ministragdes publicas diretas, aut4rquicas e fundacionais da Unido, Estados, Distri- to Federal e Municipios, obedecido ao disposto no art. 37, XXI, e para as empresas publicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, II”. Ainda que as disposig6es constantes do inciso XXVIL, do art. 22 de nossa Mag- na Carta revelem-se, 4 primeira vista, como cristalinas, muito se discutia e ainda se discute sobre o que s40 normas gerais de licitacdo e contratacdo, posto que disso re- sultaré o fator determinante para que Estados, Distrito Federal e Municipios, no uso de sua competéncia suplementar, editem normas especificas de licitagGes e contratos. Assim, a Unido Federal, no uso de sua competéncia, fez publicar a Lei 8.666/93 que é taxativa em dizer que “esta Lei estabelece normas gerais sobre licitaces e contratos administrativos....”. Ora, com isto, j4 de inicio, estabeleceu-se um im- passe: todos os dispositivos constantes da Lei de Licitagdes so normas gerais? Se assim for entendido pouco ou muito pouco sobraria para os demais entes politicos que integram a Administracao Publica. Pensar que os dispositivos constantes da Lei 8.666/93 se constituem, a unani- midade, em normas de caréter geral, no é entendimento adequado e deve, de pla- no, ser descartada. Com efeito, a errénea interpretagao da Lei 8.666/93 acabaria em colocar por terra a autonomia dos demais entes politicos. Com isto, é de se concluir que nem tudo na Lei 8.66/93 pode ser considerado como normas gerais.” Alids, nesse ponto, chegamos ao grande impasse: 0 que so normas gerais? Hely Lopes Meirelles diz que devemos entender por normas gerais aquela lei que estabeleca principios e diretrizes aplicdveis indistintamente a todas as licitacdes e contratos administrativos, tornando-se, pois, obrigatérias para a Unido, Estados, Dis- trito Federal e Municipios. Alerta, ainda, o autor, que os entes federados nao podem ® Margal Justen Filho faz importante observacao acerca das normas gerais: “A disputa sobre o conceito de normas gerais no ambito das contratagées chegou ao conhecimento do STF. Em diversas oportunidades, hou- ‘ve questionamento sobre a natureza de certos dispositivos legais. © STF ndo formulou uma solugao ampla ¢ satisfatéria, aplicdvel a todos os casos. Lembre-se que negar uma disposico da Lei n* 8.666 a condico de “norma geral” no equivale a negar sua constitucionalidade. O dispositivo valerd como disposico especifica no Ambito da Unio, liberando-se os demais entes federativos para disciplinar com autonomia a mesma maté- ria, A decisdo mais antiga foi produzida na ADI n? 927-3/RS. O STF reputou constitucionais os arts. 1" 20 118 da Lei n® 8.696 e a grande maioria dos dispositivos objeto de questionamento foi reconhecida como enquadré- vel no conceito de normas gerais. Mas reconheceu que algumas disposigdes nao podiam ser assim qualifica- das. Tais dispositivos foram reputados como normas exclusivamente federais. Ou seja, apenas apresentavam natureza vinculante no ambito da Unido e de suas administracéo direta e indireta”. Vide, ainda ADI n? 3.098, rel. Min. Carlos Veloso, j. em 24.11.2005, DJ de 10.3.2006; ADI n¢ 3.059/MC, rel. Min. Carlos Britto, j. em 15.4.2004, Dj de 20.8.2004; ADI n¢ 3670, rel. Min. Sepélveda Pertence, j. em 2.4.2007 e Adin Ne 2.990, rel. p/oac. Min. Bros Grau, j. em 84.2007. (Comentirios a lei de licitagGes e contratos administrativos, p. 19-20). A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 155 ir contra os principios norteadores da licitagao, nem retirar o seu carater competitivo, nem discriminar os interessados, e, muito menos, falsear o seu julgamento.”* Diogo de Figueiredo Moreira Neto,” sintetizando o entendimento de diversos autores, indica que normas gerais como aquelas que: a) estabelecem principios, diretrizes, linhas mestras ¢ regras juridicas ge- rais (Biihler, Maunz, Burdeaus, Pontes, Pinto Falco, Claudio Pacheco, Sahid Maluf, José Antonio da Silva, Paulo de Barros Carvalho, Marco Aurélio Greco); b) nao podem entrar em pormenores ou detalhes nem, muito menos, esgo- tar o assunto legislado (Matz, Biihler, Maunz, Pontes, Manoel Goncal- ves Ferreira Filho, Paulo de Barros Carvalho e Marco Aurélio Greco); ©) devem ser regras nacionais, uniformemente aplicdveis a todos os entes publicos (Pinto Falco, Souto Maior Borges, Paulo de Barros Carvalho, Carvalho Pinto e Adflson de Abreu Dallari); a) devem ser regras uniformes para todas as situagSes homogéneas (Pinto Falcdo, Carvalho Pinto e Adilson de Abreu Dallari e) sécabem quando preenchem lacunas constitucionais ou disponham so- bre areas de conflito (Paulo de Barros Carvalho e Geraldo Ataliba): f)_ devem referir-se a questdes fundamentais (Pontes e Adilson de Abreu Dallari); g) sao limitadas, no sentido de nao poderem violar a autonomia dos Esta- dos (Pontes, Manoel Goncalves Ferreira Filho, Paulo de Barros Carvalho e Adflson de Abreu Dallari); h) nao so normas de aplicacao direta (Burdeau e Claudio Pacheco). A luz dessas ponderagées, no temos dividas em concluir pela existéncia de elementos comuns a todos os autores: as normas gerais constituem-se em uma li- mitacao que impede a edi¢ao de normas de contetido particularizante. Assim, para n6s, sfo normas gerais aquelas com um cardter sobranceiramente mais abstrato, desprovidas de maiores detalhes e mimticias, destinadas a estabelecer uma diretriz para os demais entes politicos da Federacao. Feitas essas consideragGes, resta-nos apontar, segundo nosso entendimento e, sem qualquer pretensao de esgotar a questo, as normas que possuem cunho emi- nentemente geral na lei de licitagdes e contratos. Assim, aqueles dispositivos re- Jativos A obrigatoriedade da licitacAo, relativos aos principios norteadores do MEIRELLES, Hely Lopes. Licitagdo econtrato administrativo, p. 58-59. % MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competéncia concorrente limitada: 0 problema da conceituacio de normas gerais, separata da Revista de Informardo Legislativa 100, ano 25, out./dez. 1988, p. 149-150, 156 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires procedimento, bem como aqueles que estatuem as modalidades, tipos, prazos e sanges devem ser considerados normas de cunho geral. Para nés, qualquer norma que venha a afetar direta ou indiretamente o interes- se dos licitantes deve estar inclufda dentre aquelas com natureza de norma geral, como € 0 caso da san¢ao. 8.12.2 As sangées da Lei Baiana de Licitacgées e as normas gerais Como dito anteriormente, a Lei 9.433/05 inovou no que diz respeito as sancdes administrativas aos candidatos a cadastramento, aos licitantes e aos contratados. Para entender a questo, nada melhor que as expressas disposigdes da Lei: Art. 186, Ao candidato a cadastramento, ao licitante e ao contrata- do, que incorram nas faltas previstas nesta Lei, aplicam-se, segundo a natureza e a gravidade da falta, assegurada a defesa prévia, as se- guintes sangées: I-multa, na forma prevista nesta Lei; Il suspensio temporéria de participagiio em licitaco e impedimen- to de contratar com a Administrac4o, por prazo nao excedente a 5 (cinco) anos; Ill - declarac&o de inidoneidade para licitar ou contratar com a Ad- ministra¢ao Publica, enquanto perdurarem os motivos determinan- tes desta punicao e até que seja promovida sua reabilitacao perante a Administragao Publica Estadual; IV - descredenciamento do sistema de registro cadastral. Pardgrafo tinico. As sang6es previstas nos incisos Il, Ill e IV deste artigo deverdo ser aplicadas ao adjudicatério e ao contratado, cumu- lativamente com a multa. Uma simples comparagao das penas previstas no comando sobredito, com aque- las dispostas na Lei 8.666/93 e Lei 10.520/02 ser4 bastante para se concluir que houve uma significativa inovagao por parte da Lei 9.433/05, do Estado da Bahia. Observe-se que foi retirado do rol de penalidades a adverténcia; a suspenso temporaria de participacao em licitagao e impedimento de contratar com a Admi- nistracdo teve o seu prazo estendido para 5 anos; a declaraco de inidoneidade nao dispée sobre prazos minimos ou maximos; e, finalmente estabeleceu-se, enquanto pena, o descredenciamento do sistema de registro cadastral. Segundo nosso entendimento, o Estado da Bahia extrapolou a sua competéncia ao estabelecer sang6es em desconformidade com aquelas previstas no art. 87 da Lei 8.666/93, e ainda, suprimir a pena constante do art. 72 da Lei 10.520/02. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 157 Ora, as sangées encontram-se intimamente ligadas com principios fundamen- tais da Constituicdo de 1988, tais como legalidade, moralidade e supremacia do in- teresse puiblico, afetando diretamente o interesse dos licitantes, motivo pelo qual a sancdo deve ser considerada norma geral, pelo que se conclui que o art. 186 da Lei Baiana de Licitag6es e Contratos é inconstitucional, podendo ensejar batalhas juri- dicas que, certamente, poderiam ser evitadas. 8.12.3 A positivagaéo da desconsideracao da personalidade juridica pela Lei Baiana de Licitagées e Contratos Por tiltimo, quanto & desconsideragdo da personalidade juridica na aplicacao das penas restritivas de licitar, muito bem andou o legislador ordinario do Estado da Bahia. O art. 200 do diploma legal das licitagdes e contratos da Bahia assim dispoe: Art. 200 Fica impedida de participar de licitago e de contratar com a Administragao Piblica a pessoa juridica constitufda por membros de sociedade que, em data anterior & sua criacdo, haja sofrido pena- lidade de suspensao do direito de licitar e contratar com a Adminis- tracGo ou tenha sido declarada inid6nea para licitar e contratar ¢ que tenha objeto similar ao da empresa punida. ‘Com essa previsao legal, procura o Estado da Bahia ter arrimo expresso em lei para evitar que os sécios de dada empresa se constituam em outra e continuem a participar das licitagdes. Assim, existe expressa previsdo legal de que a suspenso e a declaragao de inidoneidade sao extensiveis 4 nova empresa. De todo modo, impende considerar que a aplicaco da desconsideraco da per- sonalidade juridica, nos moldes preconizados pela Lei 9.433/05, exige a ocorréncia dos seguintes pressupostos: (i) 20 menos um sécio da antiga empresa penalizada deverd integrar a nova sociedade; (ii) aplicagao de penalidade suspensao ou inido- neidade; (ji) os objetos sociais deverao guardar similitude. Aspecto interessante de se observar é a questo do lapso temporal para a apli- cacao do disregard. No nosso entendimento, para se aplicar a desconsideracao da personalidade juridica de dada entidade, seria necessario que a sua antecessora jé ti- vesse sido penalizada. Todavia, nao parece ser esse o entendimento que Edite Mes- quita Hupsel e Leyla Bianca Correia Lima da Costa observam: Alias, se constituida a nova entidade quando ja se encontrava instau- rado 0 processo administrativo para apenagao da outra pessoa juridi- ca, a presungao de fraude se faz presente e autoriza, no nosso sentir, a aplicagéo do impedimento. A Norma Jurfdica eo Micito 5 Assim, nao é errado afirmar que o pensamento de Norberto Bobbio indica que 0 critérios por ele elencados nao s4o exclusivos, néo podendo também ser valora- dos como verdadeiros ou falsos, mas sim como mais ou menos oportunos de acor- do com o contexto dos problemas. Utilizando-se do “ser” e do “dever ser”, conclui que, se a aco real no corresponde & aco prescrita, se diz que a norma é violada, pelo que a violacao se constitui no ilicito. E o critério da resposta a violacio.5 No nosso entendimento, Norberto Bobbio, ao afastar o critério formal para caracterizar o ilicito, estd a descartar Hans Kelsen, que coloca 0 ilicito “como uma condicao da sangao”.§ De qualquer sorte, ¢ independentemente do parametro utilizado, ndo nos é de- feso asseverar que o direito traz consigo um critério dicotémico, dividindo os atos e condutas em licitos e ilfcitos. Por conseguinte, a nogao de licito e ilicito nao € privativa de nenhum ramo do direito, pelo que afirmamos, genericamente, que, uma vez rompida a ordem juridi- ca, cabivel seré a aplicacao de uma sanc4o, seja ela de cardter patrimonial ou restri- tiva de direitos. Logo, ainda que se possa adotar uma gama de critérios para caracterizar 0 ilfci- to, ndo conseguimos nos afastar de Hans Kelsen, na medida em que concebemos 0 ilfcito como condigao da sancao.’ Assim é que sangio e ilfcito so categorias juridicas rec{procas, decorrentes de imputacdo, e ndo em razo de causalidade natural ou légica. Nao é demais enfatizar que a norma prevé um modelo de conduta que, se nao observada, tera uma conse- quéncia: a configurac&o do ilfcito, do qual decorre a sanc4o. Destarte, inexiste qualquer diferenga ontoldgica,? entre as diversas modalida- des de ilfcito - penal, administrativo, civil etc. — existindo, em principio, apenas um grau de tutela, decorrente de uma discricionariedade legislativa.' Por assim dizer, quando o direito impde ou profbe determinada coisa nao deixa qualquer margem que seja, havendo uma tinica solu¢ao que, se ndo adotada, sujeita o infrator 4 correspondente san¢ao. © BOBBIO, Norberto. Teoria general del derecho, p. 104, © KELSEN, Hans. Teoria geval do direito e do Estado, Sao Paul KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado, p. 56. * DIAS, Eduardo Rocha. Sanjées administrativas aplicaveis alicitantes e contratados. Sao Paulo: Dialética, 1997. p16. + Por ébvio a afirmagao de que inexiste diferenca de cardter ontolégico nos ilicitos nao é pacifica. Susana Lorenzo afirma que a distingdo tem um caréter ontolégico, sustentada em valores éticos, morais ¢ sociais (Sanciones Administrativas. Montevideo: Julio César Faira Editores, 1996. p. 41). ¥® Emilio Doleini afirma que a orientagao de lege ferenda pode ser seguida ou no pelo Poder Legislativo (Ganzione penale e sanzione amministrativa: problemi di scienza della legislazione. Revista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 1984, p. 591). ‘Martins Fontes, 1998. p. 56. 158 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires A data da instauragao de processo administrativo, entdo, e nao da aplicagdo da penalidade, deve ser entendida como marco a partir do qual passa-se a presumir fraude na constituicgo da nova empresa sendo autorizada, neste caso, a extensdo do impedimento & nova pessoa juridica.”* Com todo o respeito ao entendimento das autoras, parece-nos que admitir a desconsideracao da personalidad juridica de uma segunda entidade, enquanto nao findo 0 processo administrativo de penalizaco de uma primeira entidade seria, em iltima andlise, realizar um prejulgamento, em muito se aproximando da verdade sabida que se encontra revogada em razo da obediéncia ao principio do contradité- tio e da ampla defesa em sede administrativa, pelo que mais uma vez asseveramos que a estrita obediéncia ao devido processo legal, é medida que se impée, sob pena do ato ser fulminado pelo Poder Judiciario. 8.13 A desconsideracao da personalidade juridica na Lei Anticorrup¢ao Recentemente foi publicada a Lei 12.846 de 1° de agosto de 2013, com vaca- tio legis de 180 dias, que disp6e sobre a responsabilizacao administrativa e civil de pessoas juridicas pela pratica de atos contra a Administracao Publica, nacio- nal ou estrangeira. Vislumbra-se, de plano, que o objetivo da legislacao é, em tiltima anilise, for- talecer os Orgdos de controle, aumentando significativamente o rigor das sangdes impostas 4s empresas em razao de crimes de corrupsio, abordando, inclusive, a hi pétese de fraude nos procedimento licitatério, dispondo, também sobre a possibi dade da desconsiderac&o da personalidade jurfdica. De todo modo, nao é o nosso objetivo fazer um exame da legislagao denomi- nada de anticorrupcao em sua integralidade, mas, tdo somente, naquilo que diga respeito & questo de responsabilizaco e aplicagao de sancdes em razio de fraude na licitagdo, abordando a questo da possibilidade de desconsidera¢ao da perso- nalidade juridica. Com efeito, o diploma legal sobredito aplica-se as sociedades empresérias ¢ as sociedades simples, personificadas ou nao, independentemente da forma de orga- nizagZo ou modelo societério adotado, bem como a quaisquer fundacdes, associa~ Ges de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial = HUPSEL, Edite Mesquita; COSTA, Leyla Bianca Correia Lima. Comentirios a lei de lcitagées e contratagées do Estado da Bahia, Belo Horizonte: Forum, 2006. p. 461. A Desconsideracio da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 159 ou representac&o no territério brasileiro, constituidas de fato ou de direito, ainda que temporariamente. Desta feita, e obedecendo ao estatuido pelo art. 927 do Cédigo Civil Brasileiro, que admite, dentre outros, a responsabilidade objetiva quando expressamente pre- vista em Lei, 0 art. 2%, da Lei 12.846/13 dispde que as pessoas juridicas serao res- ponsabilizadas objetivamente, nos ambitos administrativo e civil, em razao de atos lesivos previstos na legislacZo em comento, dispensando, portanto, a incidéncia do dolo ou da culpa, subsistindo, ainda, a responsabilidade da pessoa juridica nas hi- poteses de alteracao contratual, transformagdo, incorporagio, fusao ou cisao socie- taria, conforme art. 4° da legislacdo precitada. Doutra parte, o art. 3° admite a responsabilidade individual dos dirigentes ou administradores da pessoa juridica ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou participe do ato ilicito, na medida de sua culpabilidade, implicando, pois, na apu- rasao de dolo ou culpa, independentemente da responsabilizacao da pessoa juridica. De qualquer modo, naquilo que diz respeito 4 responsabilidade objetiva, seja no Ambito administrativo ou civil, essa nao dispensa a configuracao do nexo de cau- salidade entre o comportamento da pessoa juridica — ago ou omissao — e o dano ex- perimentado pela Administra¢do, lembrando-se, por pertinente, a possibilidade de configuracao das excludentes da responsabilidade civil que devem ser consideradas para efeito de responsabilizacao. Silvio de Salvo Venosa ensina que “sao excludentes de responsabilidade, que impedem que se concretize o nexo causal, a culpa da vitima, o fato de terceiro, 0 caso fortuito e a forca maior e, no campo contratual, a cldusula de nao indenizar”.”° Por conseguinte, ainda que se trate de responsabilidade objetiva as excludentes sempre poderio ser invocadas a depender do fato ocorrido. Quanto a responsabilidade objetiva da pessoa juridica, ndo podemos deixar de tecer uma critica a tal disposigao. Impende considerar que para efeito de configu- aco do ilfcito 0 seu pressuposto ¢ o descumprimento de um dever legal ou con- tratual, exigindo, assim, a existéncia de um elemento subjetivo de todo reprovavel. Em nosso sentir, a aplicagao da san¢ao administrativa, consoante nos posicio- namos anteriormente, exige a presenga do elemento volitivo, posto que inerente ao regime juridico sancionador, a ponto de Lucia Valle Figueiredo afirmar que os procedimentos sancionatérios caracterizam-se pela incidéncia dos princfpios do processo penal.” Logo, punir alguém em razdo da mera ocorréncia de determinado fato, sem que reste comprovado a reprovabilidade da conduta, em tiltima andlise desborda do contexto do Estado Democratico de Direito. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 3. ed. S40 Paulo: Atlas, 2003. v. IV, p. 164. FIGUEIREDO. Lticia Valle. Direito administrative. 8. ed. Sao Paulo: Malheiros, 2006. p. 431 160 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires 8.13.1 Dos atos lesivos 2 Administragao Publica nacional ou estrangeira e responsabilizagao administrativa Nos termos do art. 5° da Lei 12.846/13, constituem atos lesivos aqueles que atentem contra o patriménio ptblico, contra os principios da Administra¢ao Pi- blica ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim de- finidos: (a) prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente publico, ou a terceira pessoa a ele relacionada; (b) comprovadamente, fi- nanciar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a pratica dos atos il{citos previstos nesta Lei; (c) comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa fisica ou juridica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiérios dos atos praticados. Esse mesmo dispositivo, em seu inciso IV, dispde especificamente sobre as licitagSes e contratos nos seguintes termos: (a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinacao ou qualquer outro expediente, o carater competitive de procedimento licitatério publico; (b) impedir, perturbar ou fraudar a realizagdo de qualquer ato de procedimento licitatério puiblico; (c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; (d) fraudar licitacdo publica ou contrato dela decorrente; (e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa juridica para participar de licitagao ptiblica ou celebrar contrato administrativo; (f) obter vantagem ou beneficio indevido, de modo fraudulento, de modificagdes ou prorrogacées de contratos celebrados com a administra¢ao publica, sem autoriza¢éo em lei, no ato convocatério da licitacao publica ou nos respectivos instrumentos contratuais; (g) manipular ou fraudar o equilibrio econémico-financeiro dos contratos celebrados com a administragao pti- blica. Finalmente, em seu inciso V ficou estabelecido como ilfcito a hipétese de se dificultar atividade de investigacao ou fiscalizacao de érgaos, entidades ou agentes puiblicos, ou intervir em sua atuacdo, inclusive no Ambito das agéncias reguladoras e dos érgios de fiscalizacdo do sistema financeiro nacional. HA que se observar que o caput do art. 5%, ao dispor sobre as hipéteses consi- deradas como atos lesivos 4 Administrac4o - atentado contra o patriménio publico, contra os principios da Administracao Publica e contra compromissos internacio- nais — o fez de maneira restritiva, j4 estabelecendo em seus incisos os diversos ilici- tos passiveis de responsabilizacao, até porque, em se tratando de ilicitude, o princi- pio da legalidade restrita deve ser observado pelo que reputamos pela configuraco de um rol exaustivo. Com relagio a responsabilizacao administrativa, a Lei Anticorrupgao estabele- ce sang6es significativamente pesadas 4 pessoa juridica. Nesse sentido, o art. 6° da Lei 12.846/13 prevé como sangoes as seguintes penalidades: (a) multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do tl- timo exercicio anterior ao da instaura¢ao do processo administrativo, excluidos os tributos, a qual nunca ser4 inferior 4 vantagem auferida, quando for possivel sua estimacdo; e (b) publicagdo extraordindria da decisdo condenatéria. A Desconsideraco da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar 161 Avulta esclarecer que se nao for possivel aferir o valor do faturamento bruto da pessoa juridica, a multa estipulada em lei sera de R$ 6.000,00 a R$ 60.000.000,00, nos termos do § 4°, do art. 6° da Lei 12.846/13. De sua vez, na- quilo que diz respeito 2 publicacdo extraordindria da decisdo condenatéria, dispositivo seguinte determina que tal hipétese ocorrer4 na forma de extrato de sentenca, as expensas da pessoa juridica, em meios de comunicacao de grande circulagdo na area da pratica da infracao e de atuacao da pessoa juridica ou, na sua falta, em publicagao de circulagéo nacional, bem como por meio de afixago de edital, pelo prazo minimo de 30 (trinta) dias, no préprio estabelecimento ou no local de exercicio da atividade, de modo visivel ao piiblico, e no sitio eletré- nico na rede mundial de computadores. Ao que nos parece, a questo da publicagdo extraordindria da sentenga conde- natéria tem por objetivo a mais ampla e irrestrita publicidade com vistas a informar a sociedade civil sobre os fatos que ensejaram a aplicacao da penalidade. 8.13.2 A competéncia para aplicagao da sancao e procedimento A Lei Anticorrupgdo é bastante clara ao dispor sobre a instauracdo e julga- mento do processo administrativo que, nos termos do art. 8°, ficaré a cargo da autoridade maxima de cada 6rgao ou entidades dos Poderes Executivo, Legisla- tivo e Judicidrio, que agird de oficio ou mediante provocagao, observado 0 con- traditério e a ampla defesa. Tratando-se do Poder Executivo Federal, a Corregedoria Geral da Uniao (CGU) teré competéncia concorrente para instauragao dos processos quer visem a apura- ‘cdo de responsabilidade das pessoas juridicas ou para avocar processos jé instaura- dos, para exame de sua regularidade ou para corrigir o andamento processual. Em apertada sintese, 0 processo administrativo devera ser conduzido por co- missao especialmente designada para tanto, composta por dois ou mais servidores estaveis que, por intermédio de seu érgao de representaco judicial, poderdo re- querer as medidas judiciais necessdrias para a investigacdo e o processamento das infragSes, inclusive busca e apreensfo, além de poder, ainda, em cardter cautelar, propor a autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou proceso objeto da investigacao. O processo administrativo em questao, consoante expressa disposi¢do do art. 10, § 3°, deverd atingir o seu regular término no prazo de 180 dias, contados da data da publicacfo do ato que instituiu a Comissdo, prorrogaveis mediante ato motivado da autoridade instauradora. Ao final do processo dever ser apresentado relatério sobre os fatos apurados, com eventual responsabilidade da pessoa juridica, sugerin- do, motivadamente, as sangGes a serem aplicadas. 162. A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires 8.13.3 A desconsideragao da personalidade juridica nos termos da Lei 12.846/13 Conforme o art. 12 da Lei Anticorrupgao, a personalidade juridica poderé ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prdtica dos atos ilicitos previstos na Legislacao em exame ou para provocar confusdo patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das san¢ées apli- cadas & pessoa jurfdica aos seus administradores e s6cios com poderes de adminis- traco, observados o contraditério e a ampla defesa. Pela primeira vez, temos uma legisla nacional a prever a desconsideracao da personalidade juridica em sede administrativa. Destarte, seré possivel desconsiderar a personalidade juridica em razo das pe- nas previstas no art. 6°, decorrentes dos ilicitos determinados pelo art. 52, ambos da Lei 12.846/13, desde que configurado abuso de direito pela pessoa juridica ou para provocar confusao patrimonial. Veja-se que muitos dos ilfcitos previstos no art. 5° aplicam-se especificamente a licitag6es e contratos. Nesse sentido, afora as penas previstas nos arts. 86 e 87, IIe IV da Lei 8.666/93 e art. 7° da Lei 1.052/02, as quais nos reportamos anteriormen- te, a Administracdo poder4 também aplicar as penas do art. 6° da Lei 12.846/13. Impende, ainda, considerar que o art. 30 da Lei Anticorrupcao também dei- xa claro que a aplicagdo das sang6es previstas no art. 6® ndo afeta os processos de responsabilizacao e aplicacao de penalidades decorrentes de ato de improbi- dade administrativa nos termos da Lei 8.429/92, e atos ilicitos alcangados pela Lei 8.666/93 ou outras normas de licita¢Ges e contratos da Administracao Pu- blica, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratacées Puiblicas - RDC institufdo pela Lei 12.462/11. Em razo de tudo isso, concluimos que, embora seja possivel desconsiderar a personalidade juridica, atingindo a figura dos sdcios e administradores, em razio dos ilicitos insculpidos no art. 5? da Lei 12.846, isso somente poderd acontecer em funcdo das penas determinadas pelo art. 6° do diploma legal citado - multa e pu- blicacao extraordindria — nao atingindo aquelas penas da legislacio especificas das licitagSes e contratos. Assim, em que pese que a teoria da desconsideracao da personalidade juridica tenha evolufdo em nosso direito positivo, naquilo que diz respeito a essa possibi- lidade em sede administrativa, perdeu-se uma grande chance de estendé-la a apli- cagao das penas restritivas do direito de licitar e contratar, pelo que essa hipétese somente reunir4 condigdes de subsistir em razdo de toda a principiologia que ora invocamos no presente trabalho. Conclusao Considerando que norma juridica prevé um modelo de conduta, na hipotese de sua inobservancia, teremos como consequéncia 0 ilicito, do qual decorre a sancdo, que hd de acontecer de acordo com o regime juridico pertinente. Quanto ao ilfcito administrativo, ainda que inexista qualquer disposicZo em lei, 0 aspecto relativo 8 culpa ou dolo deverd ser apurado, sob pena de se re- duzir a questo & aplicacao da letra fria da lei, em franco desrespeito ao Esta- do Democratico de Direito, fundado no principio da dignidade humana. De sua vez, a sancao administrativa somente poder ser concebida no con- texto da funcao administrativa, constituindo-se em um dever para a Admi- nistragdo, exigindo-se, em carater preliminar, a obediéncia ao devido proces- so legal, de modo a apurar 0 ocorrido. Problema imanente 4 san¢4o administrativa sao os conceitos juridicos inde- terminados que ensejam interpreta¢ao, com posterior subsungao. A lei de licitagdes e contratos, bem como a legislacao do prego, estabelece- ram as sangées passiveis de serem aplicadas aos licitantes e contratados, en- sejando, contudo, uma série de interpretacdes possiveis. Quanto & velha questdo dos efeitos da pena posicionamo-nos juntamente com aqueles que entendem que a pena de suspensao temporaria do direito de licitar e impedimento de contratar com a Administracao faz efeito perante a pessoa juridica que aplicou a pena, enquanto a declara¢ao de inidoneidade e o impedimento de licitar e contratar, previsto na Lei do Pregao, fazem efei- to perante toda a Administragdo Publica. 164 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas + Pires 10. 12. 13. 14, Quanto 4 competéncia para aplicacao das penalidades, nao resta dtivida que a declaracdo de inidoneidade, por expressa previsdo legal, devera ser aplica- da pelos Ministros de Estado e Secretdrios estaduais ou municipais, devendo seguir a mesma regra quando da aplicago da pena de impedimento de licitar e contratar, ainda que inexista qualquer disposicao legal a esse respeito. As sangdes administrativas submetem-se a um regime proprio, denominado regime sancionatério, informado por regras e princfpios que thes so carac- teristicos, decorrentes do principio do Estado Democratico de Direito. A aplicacdo da sangio administrativa s6 retine condig6es de prosperar se realizada mediante a instauracdo de regular processo administrativo, nos moldes da Lei 9.784/99. Segundo o art. 22, inciso I, de nossa Lei Fundamental é competéncia priva- tiva da Unido, legislar sobre matéria processual, incluindo-se nesse género o processo administrativo em sentido estrito (processo administrativo litigio- so). Nesse sentido, a Lei 9.784/99 nao pode ficar restrita 4 Unido Federal, devendo estender-se aos Estados, Distrito Federal e Municipios. Considerando que as sang6es restritivas do direito de licitar e contratar nao contam com uma disciplina especffica nas legislacdes de regéncia, a aplicacZo subsididria da Lei 9.784/99 é medida que se impGe, como meio de preservar o direito do licitante ou contratado. Em que pese o fato de as leis de regéncia das sang6es restritivas do direito de licitar estabelecerem, de forma simplista, a obediéncia ao principio do con- traditério e ampla defesa, é impositivo que isso aconteca mediante apresen- tagio de defesa prévia, instrucao probatéria, alegagées finais, cabendo, ainda, apés a decisdo, a interposicao de recurso administrativo, se for o caso. Em sintese, nenhum documento, nenhum ato, pode se realizar sem o conheci- mento do acusado, sob pena de ofensa ao devido proceso. Ainda que 0 nosso ordenamento contenha expressa previsdo legal para des- consideracao da personalidade juridica, como é o caso do direito do consu- midor, da Lei do CADE, da Lei de responsabilidade por dano ambiental e do Cédigo Civil, essa encontra-se inserida no contexto da Teoria Geral do Di- reito, podendo ser aplicada independentemente de expressa previsao legal, posto que no seria de direito preservar a pessoa juridica quando essa agiu com fraude ou abuso de direito. As sangGes restritivas do direito de licitar e contratar, segundo a legislacao vigente, s4o aplicdveis to somente A pessoa juridica. Contudo, os principios da moralidade, da indisponibilidade do interesse publico, da eficiéncia e da impessoalidade sao elementos suficientes para sustentarem a desconsidera- do da personalidade jurfdica, haja vista que inexiste expressa disposi¢ao le- gal para tanto no direito administrativo. 15. 16. 17. 18. 19. Conclusto 165 Uma vez verificada a incidéncia de um dos pressupostos da desconsidera- ¢4o da personalidade juridica - fraude, desvio de finalidade ou confusaio patrimonial — cabe 4 Administraco agir. Assim, ndo pode a Administrac4o compactuar com a fraude, posto que a moralidade administrativa, exige do administrador um agir de acordo com o Direito; pela indisponibilidade do interesse publico deve a Administracao sancionar o licitante ou contratado de modo a impedir 0 seu acesso As licitagSes e contratos piblicos. Esse é 0 interesse publico, que a doutrina, a uma sé voz, identifica como de nature- za indisponivel; de sua vez o principio da eficiéncia obriga a Administracao a desenvolver mecanismos que assegurem uma atividade administrativa eficaz de modo a se atingir o interesse puiblico; por tiltimo 0 principio da impessoalidade vem obrigar a Administracfo a decretar a desconsideracao da personalidade juridica, posto que estaré havendo um favorecimento para aquele que, as sabendas, encontra-se descumprindo a lei. Mais uma vez, ainda que inexista expresso arrimo em lei para a desconside- racdo da personalidade juridica na aplicacdo das penas restritivas do direito de licitar e contratar, defendemos posicao que autoriza a Administracao a executar tal ato, sem o socorro do judiciério, de modo a cumprir o interesse puiblico com a efetividade que o caso requer. O ato de apenamento, bem como o ato administrativo que desconsiderar a personalidade juridica do licitante e contratado deverao ser exaustivamente motivados, de modo a possibilitar a efetiva defesa do particular e, em con- comitante atendimento aos princfpios da razoabilidade e proporcionalidade, atender ao devido processo legal substancial, na medida em que a Admii trago estiver no exercfcio da atividade criativa do direito. A par de tudo isso, conclufmos que a Administragdo nao pode mais se omitir em face de fraude e abuso de direito das empresas participes de licitago, ndo promovendo a desconsideracéo da personalidade juridica, alegando a inexisténcia de expressa previsdo legal, sob pena de responsa- bilidade do Administrador. Ainda que a teoria da desconsideracao da personalidade juridica tenha dado um grande passo em razao da edi¢do da Lei 12.846/13, naquilo que diz respeito A essa possibilidade em sede administrativa, perdeu-se uma grande chance de se estender essa hipétese para as penas restritivas do direito de licitar e contratar. Bibliografia ALESSI, Renato. Principi di diritto amministrativo. Milano: Dott. * Giuffré Editore, 1971. __ Instituciones de derecho administrativo. Trad. t.l, 3. ed. ARAUJO CINTRA, Antonio Carlos de. Motivo e motivagiio do ato administrativo. S40 Pau- lo: Revista dos Tribunais, 1979. ARAUJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. e atual. Sao Paulo: Saraiva, 2010. ARBELLAEZ, Jaime Ossa. Derecho administrativo sancionador: una aproximacion dogma- tica. 2. ed. Colémbia: Legis, 2009. ATALIBA, Geraldo. Repiiblica e constituigao. 2. ed., 4* tiragem. Sao Paulo: Malheiros, 2007. AVILA, Humberto. 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A ilicitude, nesse passo, € formalmente afirmada pelo tipo que prevé © modelo de conduta proibida. Nao ha ilicitude capaz de autorizar a incidéncia da norma sancionadora, se ndo houver um tipo prevendo a expressa proibicao desse comportamento.!” Dessume-se, portanto, que 0 tipo é o elemento fulcral para a caracterizagao do ilfcito, devendo conter uma descri¢éo pormenorizada da conduta considerada proi- bida, de sorte a propiciar a todos um entendimento relativo 4 censurabilidade da ilicitude. Em suma, é uma questo de seguranca juridica. 1.1. As diferengas entre ilicitos Consoante jé disse, desde logo, nao concebemos diferenciais de cardter ontolé- gico acerca do ilicito, posto que entendemos inadequado adotar um critério metaju- tidico como diferenciador entre ilicito penal e administrativo. No nosso sentir, diferenciar ilicitos com base em critérios da gravidade da con- duta delituosa ou na diversidade de interesses tutelados encontra ébices a partir do momento em que devemos observar como o direito estipulou determinada coisa para finalmente chegarmos a uma conclusio. Acompanhando as conclusdes alcancadas por Rafael Munhoz de Mello, é im- possivel afirmar que um comportamento ilfcito de menor gravidade estaria a ense- jar um ilicito administrativo e um de maior gravidade corresponderia a um ilicito penal. E bem verdade, portanto, que nao se pode diferenciar o ilicito em razio do comportamento do individuo infrator, sem levar em conta o ordenamento juridico.” 1 OSORIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador. 3. ed. rev. atual. ¢ amp. Sao Paulo: Revista dos ‘Tribunais, 2009. p. 261 ® Rafael Munhoz de Mello afirma que as teorias qualitativas e quantitativas “so imprestéveis para uma anilise juridica da distingao entre crime e infragao administrativa” (Princ(pios constitucionais de direito adminis- 168 A Desconsideracao da Personalidade Juridica nas ContratagSes Piblicas * Pires BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. rev. e atual. Séo Paulo: Malhei- ros, 2010. BUCCI, Maria Paula Dallari. O principio da razoabilidade em apoio & legalidade. Cader- nos de direito constitucional e ciéncia politica. Sa0 Paulo: 1994. BULOS, Uadi Lammégo. Curso de direito constitucional. Sio Paulo: Saraiva, 2007. CAETANO, Marcello. Principios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro: Fo- tense, 1989. CAMMAROSANO, Matcio. O principio constitucional da moralidade e 0 exercicio da fungfio administrativa. Belo Horizonte: Férum, 2006. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 3. ed. 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Para coibir esse tipo de atitude, que, sem dtividas, configura fraude e abuso da pessoa juridica, a Unica saida 6 a uti- lizagéo da teoria da desconsideragao da personalidade juridica, objeto de andlise deste trabalho, qua envolveu pesquisa @ ‘exame da doutrina nacional e estrangeira, bem como da legislagao e jurisprudéncia. ANTONIO CECILIO MOREIRA PIRES 6 advogado @ consultor juridico em Sao Paulo, mestre e doutor em Direito do Estado pela Pontificia Universidade Ca- télica de Sao Paulo (PUC/SP). Professor de Direito Administrative da Universida- de Presbiteriana Mackenzie (UPM), nos cursos de graduagaio e pés-graduagaio lato sensu, @ professor convidado dos cursos de pés-graduagao da Universi- dade Federal do Mato Grosso e Escola Superior de Direito Constitucional. No decorrer da sua carreira, atuou também na Administragéo Publica Municipal, Es- tadual e Federal, inclusive em organis- mos internacionais, exercendo os mais diversas cargos. Autor do livro Direito Administrativo (vol. 10 da Colegao Exame da Order), publi- cado pela Atlas. ADESCONSIDERAGAO — PERSONALIDADE JURIDICA CONTRATACOES PUBLICAS © objetivo deste livro é examiner a hipstese da desconsideragao da personalidade juridica na aplicago das penas restritivas do direito de licitar e contratar com a Administragéo Publica, mais precisamente no que diz respeito as sangdes estatuidas pelo art, 87, incisos Ill e lV, da Lei 8.666/93, e art. 7° da Lei 10.520/02. A Administragao Publica, no exercicio da atividade sancionatéria, com vistas a afastar licitantes contratados que tenham cometido ilicitos edministrativos, termina por constatar que a pena aplicada no surte 0 efeito desajado, haja vista que, ato continuo, aquele que se encontra im- pedido de licitar e contratar com 0 Poder Publico constitui nova empresa, mantidos os mesmos ‘sdcios 8 enderego, configurando flagrante burla a lei e abuso da personalidade juridica. Ainda que a Legislago Federal no contemple dispositivo que autorize a desconsideragao da per- sonalidade juridica, mediante a edic&o de ato da Administracao Publica, tal hindtese encontra ‘sustentaculo nos principios norteadores do regime juridico administrativo, permitindo que a pena aplicada seja estendida aos sécios. © autor, procurou, assim, extrair de nosso ordenamento juridico a necesséria autorizagao para a desconsideragao da personalidade juridica, de sorte que as penas restritivas do direito de licitar e contratar tenham a necesséria efetividade. Para tanto, partiu-se da ocorréncia do ilicito, enquanto condicionante da sancao, passando-se ao exame de cada uma das penas previstas na lei de regéncia das licitages, com a necessaria instauragao de processo administrative es- Pacifico, até se chegar na desconsideragao da personalidade juridica em sede administrativa. APLICAGAO. ‘Obra destinada a todos os estudiosos do direito administrativo, mostrando-se de relevante interesse aos servidores publicos, notadamente advogados, juizes e promotores. Leitura com- plementar para a disciplina Licitagées e Contratos dos cursos de graduagao e pés-graduagdo em Direito Administrativo e Administrag¢&o Publica. atlas.com.br A Norma Jurfdica eo Micito. 7 De qualquer sorte, ainda que considerdssemos que os ilicitos fossem ontolo- gicamente iguais, o que nao é 0 caso, hd diversas espécies deles. Para melhor com- preensio da figura juridica do ilicito, importante se faz estudar as suas espécies, a saber: ilfcito penal, civil e administrativo. Guido Zanobini adota como critério a autoridade que tem competéncia para impor a sangao como diferenciador dos ilfcitos. Assim, se o ordenamento juridico confere & autoridade jurisdicional o dever juridico de impor a sano ao administra- do, estaremos diante do ilicito penal, ao passo que se a competéncia for atribuida a uma autoridade administrativa, estaremos perante um ilicito dessa natureza."? Em outros termos, ¢ adequado dizer que, uma vez rompida a ordem juridica pe- nal, civil e administrativa, estaremos perante 0 ilicito penal, civil e administrativo, Tespectivamente, pelo que é acertado afirmar que a distingdo entre as diversas tipo- logias de ilicitos reside no seu regime juridico, como, alias, afirma Daniel Ferreira.'* Régis Fernandes de Oliveira anota a inexisténcia de diferenca de contetido de crime, contraven¢ao ¢ infragdo administrativa, posto que todos decorrentes da le- gislagdo vigente, pelo que aponta como critério diferenciador um dado formal: Nao ha diferenga de contetido entre crime, contravencao e infracao administrativa. Advém ela da lei, exclusivamente. Inexiste diferen- ca de substancia entre pena e sangao administrava. Crime e contra- vencao sao julgados por érgao jurisdicional, enquanto infracao, por érgdo administrativo. A decisdo jurisdicional tem eficdcia propria de coisa julgada, enquanto que a decisao administrativa tem cardter to s6 de estabilidade, é presumivelmente legal, imperativa, exigivel € autoexecutéria. Crime e contravenc4o sdo perquiriveis através da policia judicidria e devem submeter-se a processo proprio previsto na legislacdo processual; a infracdo ¢ apurdvel por qualquer forma de direito, desde que prevista em lei, independendo de rigorismo for- mal, a maneira do processo civil ou penal. Em suma, 0 fundamental para a distingao é o regime juridico e, em especial, a especifica eficdcia juridica do ato produzido.® jurista precitado, de sua vez, também coloca a questo do ilicito como decor- rente exclusiva e estritamente da lei. trative sancionador: as sangSes administrativas & luz da Constituigao Federal de 1988. Sao Paulo: Malheiros, 2007. p. 58). ® ZANOBINI, Guido. Rapport fra diritto anministrative ei dritt penae: scritti vari di diritto pubblico. Milano: Givffrd, 1995. p. 140 FERREIRA, Daniel. Sangées administrativas, p. 60-61. 1 OLIVEIRA, Régis Fernandes de. infragies e sancées administrativas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 32 8 A Desconsideracdo da Fersonalidade Jurfdica nas ContratagSes Pablicas + Pires Concluindo, é o regime juridico que tipifica determinado instituto, qualifican- do-o, por exemplo, como pertencente ao direito publico ou privado, integrando-o a esse ou Aquele ramo do direito. Em tiltima andlise, o regime juridico se consubstan- cia no critério diferenciador do ilicito. Afirmamos, portanto, que o critério diferenciador do ilicito é 0 regime juridico propriamente dito e nao a san¢ao, argumentando-se a favor de nossa tese que dado o ilicito, deve ser a san¢ao que deve acompanhar a mesma tipologia da ilicitude. 1.2 Conceito de ilicito administrativo Em razao de tudo que se disse até agora, nao podemos nos furtar de enfrentar a questo conceitual do ilicito. Nesse passo, avulta lembrar que o ilfcito decorre de uma conduta humana considerada contraria ao comando da norma juridica, sob regime juridico administrativo, ensejando uma consequéncia restritiva de direitos. Heraldo Garcia Vitta professa: ilicito administrativo: € o descumprimento de dever (conduta con- tréria a0 comando da norma), pelo destinatério da norma juridica, cuja san¢Zo possa ser imposta por autoridade administrativa (no exercicio da fungao administrativa) em virtude do ordenamento ju- ridico conferir-lhe tal competéncia.’° Concordamos, parcialmente, com o conceito de ilicito administrativo expres- sado por Heraldo Garcia Vita. Dizemos, parcialmente, em raz4o do autor colocar, como critério diferenciador do ilfcito, a autoridade que tem competéncia para apli- car a sanco, diferentemente de nés, que damos tal crédito ao regime jurfdico. Daniel Ferreira, por sua vez, sustentado nos conceitos de sangao administrativa e de ilicito, observa que a infraco administrativa é: “o comportamento voluntario, violador da norma de conduta que o contempla, que enseja a aplicacdo, no exercicio da funcao administrativa, de uma direta e imediata consequéncia juridica, restritiva de direitos, de cardter repressivo”.'” Conquanto a conceituacao de Daniel Ferreira traga em seu bojo 0 condicionan- te da funcao administrativa, sobre a qual ainda nfo nos debrugamos, queremos crer que tal observacdo revela, nada mais, nada menos, a questo do regime juridico ao qual se subordina a sano administrativa. De toda forma, ¢ com sustentaculo nas considera¢6es expendidas, temos que 0 ilicito administrativo se constitui em uma conduta humana, realizada em desacordo 6 VITTA, Heraldo Garcia. A sangdio no direito administrative. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 35. ¥ FERREIRA, Daniel, Sangles administrativas, p. 63. A Norma Jurfdica eo Micito. 9 com normas sob a égide do regime jurfdico administrativo, a que corresponde uma consequéncia restritiva de direitos, consubstanciada em uma san¢éo. 1.3 Os condicionantes do ilicito administrativo Desnecessarias maiores ilagées para se concluir que a lei considera determinados comportamentos como ilicitos, estabelecendo, ato continuo, a existéncia de sancdes administrativas como uma maneira de desencorajar a pratica dessas condutas. Nesse sentido, e invocando Celso Antonio Bandeira de Mello, certo é dizer que a pratica do ilicito, diga-se de passagem, nao s6 o administrativo, exige a voluntarie- dade. E possivel afirmar, portanto, que um dos condicionantes do ilicito adminis- trativo se traduz na escolha prévia de se eleger, ou nao, determinada conduta para ser praticada.® Doutra parte, nao podemos esquecer que vivernos sob a égide do denominado Estado Democratico de Direito, pelo que se exige, para a imposic&o de qualquer sango, que o ilfcito venha previamente definido em lei como tal. Assim, seré mediante a observancia do princfpio da legalidade que teremos a previsibilidade da ilicitude, proporcionando ao administrado a possibilidade de se escolher entre o licito eo ilicito. Desse modo, o comportamento a ensejar a san¢ao nada mais é que a tipificag4o determinada em lei como antijuridica. Afora parte isso, temos que a questao da culpa ou dolo também é impositiva para se configurar o ilfcito administrativo. Em realidade, para uma conduta ser con- siderada ilicita, além de se coadunar ao comando tipico proibitivo, é preciso que ela entre em testilha com os valores legalmente protegidos. E preciso, pois, o elemento subjetivo da culpabilidade. Isso tanto é verdade que no direito privado nao se admite a responsabilizacéo sem culpa, nos termos do art. 186 do Cédigo Civil Brasileiro. Marcal Justen Filho pondera: Um Estado Democratico de Direito abomina o sancionamento pu- nitivo dissociado da comprovacao da culpabilidade. Nao se pode admitir a punicéo apenas em virtude da concretizacdo de uma ocorréncia danosa material. Pune-se porque alguém agiu mal, de modo reprovavel, em termos antissociais. A comprovasfio do ele- mento subjetivo é indispensavel para a imposic&o de penalidade, MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de dieito administrative. 29. ed. rev. ¢ atwal. até.a EC n° 68, de 21.12.2011. Sao Paulo: Malheiros, 2012. p. 872. ™ VITA, Heraldo Garcia. A sango no diveito administrativo, p. 36 10 A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires ainda quando se possa atender uma objetivacao da culpabilidade em determinados casos.” Isso significa que o comportamento do autor da infracdo é preponderante para a configuragao do ilicito, sendo necessaria a existéncia da negligéncia, impericia ou imprudéncia ou, ainda, a vontade de produzir um resultado antijuridico. Ainda que doutrinadores de nomeada pensem de maneira distinta, como Otto Mayer,” que admite a existéncia da pena sem culpa e, com a mesma posicao Ma- nuel Gémez Tomillo e Ifiigo Sanz Rubiales,”? ressaltamos que além da ocorréncia objetiva do evento danoso é preciso, ainda, restar configurada a questo subjetiva do agente, a ensejar a aplicacfo da penalidade.*? Calha aqui, por pertinente, assi- nalar que para nés pouco importa se o legislador previu ou nao a questo subje- tiva, sendo, portanto, impositiva a averiguacdo dessa questo, ainda que a lei seja silente a esse respeito. Observe-se que admitir a configuragao do ilicito, sem a incidéncia do aspecto subjetivo, é incorrer em verdadeira contradico performatica, na medida em que tal hipdtese seria negar que o direito se encontra informado por normas outras, que nao a simples regra determinada em lei.2* 2 JUSTEN FILHO, Margal. Comenirios a lei de lictagies e coniratos administrativos. 15. ed. Sao Paulo: Dialéti- ca. 2012. p. 885. % MAYER, Otto, Derecho administrativo alemn. Trad. De Horicio H. Heredia e Emesto Krotoschin, 2. ed. Buenos Aires Depalma, 1982. t. , p. 104 ® TOMILLO, Manuel Gémez; RUBIALES, Inigo Sanz. Derecho administrativo sancionador: parte geral. teoria general ¢ préctica del derecho penal administrativo. 2. ed. Aranzadi: Thompson Reuters, 2010. p. 376 ¢ 401. ® Eduardo Garcia de Enterria ¢ Tomas-Ramon Fernandez ensinam que um dos principios do dircito ad- ministrativo sancionador é justamente da culpabilidade, que supe imputagao, dolo e culpa na ago san- Gionével (Curso de derecho administativo, v. I, p. 173). De seu turno, Susana Lorenzo, no Umiguai, evidencia a necessidade da culpa ou dolo nas infracbes administrativas (Sanciones administrativas. Montevideo: Julio César Faira, 1996. p. 82). 2 George Marmelstein Lima, em seu artigo “Decido contra a minha consciéncia: a pretensdo a corrego a contradi¢ao performativa” muito bem explica a questao da contradicéo performativa defendida por Robert Alexy, sustentando que o sistema juridico tem por objetivo uma corregao, pelo que devem ser justas e moral- mente corretas. Nas palavras do autor, “Alexy sugeriu que, na perspectiva dos participantes do sistema juri- dico, haveria uma necesséria conexao l6gica entre direito e moral, pois, ao assumir a pretensao a corregao do sistema juridico, os participantes engajam-se num empreendimento que busca alcanar solugdes moralmente corretas, dentro da ideia de correcao adotada pelo sistema juridico”. Para compreender como Alexy chegou a essa conclusio, é preciso distinguir entre a perspectiva do obser- vador externo ¢ a perspectiva do participante do sistema juridico, ‘Quando nés analisamos um documento como o “estatuto do PCC”, estamos realizando uma “leitura ex- tema’, j4 que nao participamos daquele sistema normativo (presumo que o leitor nao seja membro do PCC). [Nessa perspectiva externa, somos capazes de fazer uma clara distingdo entre a norma ¢ a justiga. Verios ali varias regras de conduta, a serem seguidas pelos membros do PCC, mas somos capazes de dizer que matar alguém sem piedade pelo simples fato de nfo ter contribufdo com a sua cota é uma medida desproporcional ¢, porque nao dizer, injusta, errada e desumana. Nessa perspectiva externa, é perfeitamente possivel separar norma e a moral. Daf porque a tese positivista de separacio entre o direito e moral seria correta na perspec- tiva do observador externo. A Norma Jurfdica eo Micito 11 Admitir que 0 ilicito se configura unica e exclusivamente pelo rompimento do comportamento determinado na lei seria, em tiltima anélise, reduzir toda a quest4o ao contexto da mera legalidade, deitando por terra os valores protegidos pelo direi- to, incorrendo em um positivismo puro. Deve, assim, o julgador, examinar 0 caso & luz do direito, e nao sé com sustentaculo na letra fria da Lei. Heraldo Garcia Vitta assinala que o Estado Democratico de Direito brasileiro encontra-se fundado na dignidade da pessoa humana (art. 1: III, da Constituicao Federal), ensejando, portanto, 0 correto exame do dolo ou da culpa do infrator, de maneira a evitar arbitrariedades.** Fabio Medina Osério, além da dignidade da pessoa humana, aponta, também, como condicionantes para a configura¢do do ilicito, o exame da culpa e do dolo, em Tazo de outros dispositivos de estatura constitucional — individualizagao da pena (art. 52, XLVI), devido processo legal formal e substancial (art. 52, LV), bem como outros, ainda que nao expressamente previstos. Aponta, ainda o autor, a Emenda Constitucional 45/04 que acresceu ao art. 5°, de nossa Lei Fundamental, o § 32, pelo ‘Quem analisa um sistema juridico de fora, sem se engajar na sua realizagao, ¢ perfeitamente capaz de di- zer que uma lei ou uma decisao sao “conformes ao direito” e, ac mesmo tempo, discordar do seu contetido, por entender que s40 moralmente infquos. O conceite de direito adotado por um observador externo que esté interessado em descrever um sistema juridico qualquer sem participar de sua formago néo precisa embutir nenhum elemento valorativo. © observador externo pode incluir, na sua definicSo de direito, normas que no aceita moralmente, sem que caia em contradic&o, pois, com isso, nfo se est necessariamente concordando ‘com o seu contetido ou mesmo sugerindo a sua obediéncia A situagio & diferente se a perspectiva adotada for a do participante, ou seje, daquele que estd engajado na realizacio do direito, elaborando normas juridicas para serem obedecidas pelos demais individuos. Quem participa da realizacio do direito (como um juiz ou um legislador) pretende que as suas decis6es sejam con- sideradas como corretas, pois deseja que 0 direito seja obedecido e, para isso, sempre formula uma pretensio A correcdo. Quando um juiz diz que X € direito pretende fazer com que as demais pessoas acreditem que X é correto e, por isso, deve ser seguido. Logo, nessa perspectiva, seria contraditério dizer, ao mesmo tempo, que X € incorreto, mas deve ser seguido de qualquer modo, ‘Quem assim age, segundo Alexy, estaria cometendo uma contradigao performativa, que ocorre toda vez que hd uma discrepancia entre aquilo que foi dito ¢ aquilo que o interlocutor, de fato, pratica. Qualquer pes- soa que faz parte de um sistema juridico e, nessa condicZo, participa da formula¢ao das normas desse sistema, admite implicita ou expressamente que © sistema possui uma pretensao 4 corregao. Logo, essa pessoa no pode, 2 um s6 tempo, dizer que o sistema juridico é correto, mas nao é correto. (O que Alexy quer dizer ¢ 0 seguinte: os julzes e legisladores usam necessariamente a palavra dieito num tom de aprovagio ou de recomendacdo. Por isso, na perspectiva dos participantes, ou seja, daqueles que si0 responsiveis pela formulacao das normas juridicas, a ideia de “corre;a0” (direito implica algo correto) ¢ em- butida como uma propriedade logicamente necesséria ao conceito de direito. Haveria, portanto, um vinculo ‘brigatério entre direito e corregao dentro dessa ética. E por isso que, para Alexy, tanto o juiz quanto o legislador incorrem numa contradi¢ao performativa quando pretendem que as suas deliberac6es sejam consideradas como direito e, apesar disso, assumem que ‘essas mesmas deliberagdes sejam injustas e moralmente erradas. “Os participantes de um sistema jurfdico nos mais diversos niveis formulam necessariamente uma pretensao A corre¢éc. Se é na medida em que essa retensio tem implicacSes morais, fica demonstrada a existéncia de uma conexo conceitualmente necessé- tia entre direito e moral.” (Disponivel em: . Acesso em: 2 abr. 12 as 12:38). 2 VITA, Heraldo Garcia. A sangdo no diveito administrativo, p. 36. 12. A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas Contratasées Piblicas + Pires qual os Tratados e Convengées Internacionais sobre Direito Humanos foram trans- formados em direitos fundamentais.** Ainda que o exame da culpa e do dolo se encontre amplamente consagrado no Ambito do direito penal, é bastante adequado afirmar que tal exigéncia também atin- ge 0 direito administrativo por forca de nosso ordenamento juridico constitucional. Logo, o dispositivo relativo a individualizacao da pena somente se encontrar& observado se todos os aspectos que revestem o caso em concreto forem examina- dos, de modo a carrear um julgamento justo, em observancia ao devido processo legal formal e substancial, garantindo-se, destarte, a dignidade da pessoa humana. 1.4 As excludentes da ilicitude Consideram-se excludentes da ilicitude as hipéteses em que a infracdo sera, para todos os efeitos, inexistente. Celso Antonio Bandeira de Mello enumera como hipdteses ndo sanciondveis de conduta as seguintes: “(1) fato da natureza (forca maior); (2) caso fortuito; (3) estado de necessidade; (4) legitima defesa; (5) doenca mental; (6) fato de terceiro; (7) coagao irresistivel; (8) erro; (9) obediéncia hierdr- quica; (10) estrito cumprimento do dever legal; (11) exercicio regular de direito”. Assevera 0 autor, ainda, que as oito primeiras hipdteses configuram a auséncia de voluntariedade e as trés tiltimas hipéteses excludentes da sancao.”” Com efeito, em se falando de estado de necessidade, legitima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercicio regular de direito ha de se perquirir quais destas hipéteses, constantes do art. 23, do Cédigo Penal brasileiro, aplicam-se a0 direito administrativo. Fabio Medina Osério afirma: Uma conduta reconhecida como ilegal e formal e materialmente en- quadrada em um tipo proibitivo dificilmente teré uma justificacdo, porque o Direito Administrative nao admite a maioria das conheci- das figuras do Direito Penal, v. g., legitima defesa ou consentimento do ofendido, notadamente em matéria de ilicitos contra a Adminis- tragdo Publica. Cabe aqui uma reflexdo. No nosso sentir, ainda que as figuras sobreditas nao se apliquem, em sua integralidade ao direito administrativo, tais como as citadas por Fabio Medina Osério, temos que outras tantas, como forga maior, caso fortuito, 25 OSORIO, Fébio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 262. 2 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 866. 4 OSORIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 262. A Norma Juridica e 0 Micito. 13 estado de necessidade, coagio e ordem do superior hierirquico se classificam como excludentes da ilicitude, como, alids, muito bem observa Heraldo Garcia Vita” Nao admitir tais possibilidades seria o mesmo que dizer que o sistema juridico nao teria, sequer, uma pretensio a corre¢ao, composta nao sé por elementos mo- rais, mas também por aspectos concernentes a justica, seguranca juridica e respeito aos precedentes.?° Bastariam essas considera¢Ges para se concluir pela necessidade do dolo ou da culpa, como elementos necessdrios para a configuraco do ilicito. Todavia, acredita- mos que a questo se resolve, examinando dois dispositivos distintos, a saber: art. 37, § 62, da Constitui¢ao Federal e art. 65 do Cédigo de Processo Penal. Ora, 0 art. 37, § 6°, de nossa Lei Maior, em sua parte final, estabelece o direito de regresso do Estado contra o agente piblico responsavel pela ocorréncia do dano, nos casos de dolo ou culpa. Tal disposigao deve ser entendida de forma ampliativa, aplicando-se qualquer ilicito administrativo. Mais uma vez no podemos deixar de nos socorrer de Fabio Medina Osério: Se para um mero ressarcimento ao erdrio resulta exigivel uma res- ponsabilidade subjetiva, muito mais se exigiré no campo do Direi- to Punitivo, onde a gama de direitos fundamentais potencialmente atingidos encontra ressondncia muito maior e onde essa mesma res- ponsabilidade subjetiva nao pode ser vista com iguais contornos, eis que sua funcionalidade adquire novos significados. Por um racioci- nio baseado na isonomia, na analogia interna 4 Constituicdo, no sis- tema normativo unitariamente concebido, no postulado da raciona- lidade, hé que se concluir que a culpabilidade resulta também deste comando constitucional, a partir do qual se vislumbra um horizonte mais denso a responsabilidade subjetiva no Direito Sancionador.*! Alinhado a tudo isso, temos, ainda, o citado art. 65 do Cédigo de Processo Pe- nal brasileiro, ao estabelecer que o reconhecimento de causa excludente da antiju- tidicidade na esfera penal faz coisa julgada no ambito do direito administrativo.* Por conseguinte, uma situagdo tipificada, em prine{pio, como ilicito, poderé ser indene de sangao, desde que configuradas situagées que a justifiquem. % VITA, Heraldo Garcia. A sangio no diveito administrativo, 56-57. % LIMA, George Marmelstein. “Decido contra a minha consciéncia: a pretensio & correcdo ¢ a contradicéo performativa”. Disponivel em: Acesso em: 2 maio 2012. 2 OSORIO, Fébio Medina. Dircito administrativo sancionador, p. 350-351 = OLIVBIRA, Regis Fernandes de, Infragdes e sangdes administrativas, p. 47. 2 A Sancao Juridica Antes de nos debrugarmos sobre a questao da sangdo jurfdica, cumpre-nos esclarecer que a nossa abordagem se circunscreve as sangdes em sentido estrito (sang6es aflitivas), embora seja possivel considerd-las em sentido amplo (sangdes premiais). Assim, apartemo-nos, desde logo, das sang6es premiais, que embora se constituam em uma alternativa construtiva mediante um beneficio estatuido por lei, nao é fator relevante para o desenvolvimento de nossa tese.! Posto isto, e apds esse breve estudo acerca do ilicito, importante se faz tragar os contornos juridicos de seu consequente légico, a sancdo. Em outro dizer, a norma prescreve dado comportamento que, se descumprido, configura o ilfcito, a ensejar uma sancao. Despiciendas maiores ilacdes para se concluir pela intima relagao entre ilicito € sanga0. Grosso modo, sé ha sangao se houver ilicito, pelo que sem sangao nao ha ilicito2 Nesse contexto, consideramos que as relagdes sociais so permeadas por cons- tantes conflitos que devem, sobremaneira, ser regulados pelo legislador, prevenindo a eclosao desses problemas, mediante a edicdo de normas de comportamento e, no mesmo passo, estabelecendo reprimendas mediante sang6es. ‘Ainda que as sangées premiais nao venham recebendo a devida atencdo da doutrina, ha expressa previsio de tal hipétese, na érbita federal, no art. 94, inciso XI, do Decreto-lei 200/67, estabelecendo a “instituicdo, pelo Poder Executivo, de reconhecimento do mérito aos servidores que contribuam com sugestées, planos ¢ projetos nao elaborados em decorréncia do exercicio de suas fungdes ¢ dos quais possam resultar aumento de Produtividade e redugao dos custos operacionais da administragao 2 DE MELLO, Rafael Munhoz. As sangées administrativas & luz da Constitwigdo Federal de 1988, p. 37. A Sangfo Juridica 15 Nao podemos esquecer, todavia, que a sangdo nfo decorre tinica e exclusiva- mente de ordenamentos juridicos, remontando inclusive a tempos imemoriais, sob a forma de infringéncia de um mal ao infrator, na mesma medida por ele praticado, configurando, assim, um dos mais primitivos conceitos de sancdo,? isso sem falar da sangdo social e moral. De qualquer sorte, importa-nos mais de perto gizar os contornos da sangao ju- ridica. Com efeito, temos que a sancdo juridica nada mais é que uma consequéncia desfavordvel, pela violagao de uma regra, nos termos da Lei. Concebemos, portanto, que o direito de punir surge a partir do momento que ocorre a violagdo de um valor juridico tutelado pelo direito, ensejando a aplicaco da correspondente sang4o que deve necessariamente encontrar-se prevista em lei. S6 o legislador pode estabelecer as penas que valem para a sociedade como um todo. Disso tudo, dessume-se, obrigatoriamente, que o individuo tem o dever de se sujeitar a legislagdo vigente, abstendo-se de transgredir a lei, de sorte a nao come- ter 0 ato delituoso. Hans Kelsen observa: “Dizer que uma pessoa é juridicamente responsével por certa conduta ou que ela arca com a responsabilidade juridica por essa conduta significa que ela esta sujeita a sancao em caso de conduta contraria”.* Releva lembrar que, embora possfvel a adesdo voluntaria das normas jurfdicas, isso nem sempre acontece. Assim, a san¢ao é forma de garantir o cumprimento da norma que, se transgredida, dever4 ser imposta, coativamente, pelo Estado. Com sustentdculo nessas répidas consideracdes, concluimos que a san¢4o ju- ridica ¢ a consequéncia negativa, de cardter punitivo, em razdo da violacdo de um comportamento prescrito em nosso ordenamento juridico, que deve ser aplicado pelo Estado, observado o devido processo legal. 2.1 Asangao nos ordenamentos juridicos alienigenas De fato, a competéncia punitiva do Estado ocorre tanto no ambito do Poder Judiciério como no Ambito do Poder Executivo. Eduardo Rocha Dias afirma que a competéncia punitiva da Administracao Piblica decorre de resquicios de centraliza- fo do poder antes das revolugées burguesas.° Na Alemanha e Itdlia é possivel identificar uma evolugao jurisdicionalizadora das infrag6es administrativas a partir da nova ordem constitucional instaurada pela Revolugao Francesa e pela Teoria da Diviséo de Poderes. Essa evolucio, que apon- tava para jurisdicionalizacao, com exce¢ao da Austria e Suga, que mantiveram uma 3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrative: parte introdutéria, parte geral e par- te especial. 15. ed. rev. refundida e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 116. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito do Estado. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 93. 5 DIAS, Eduardo Rocha. Sanpées administrativas aplicdveis a licitantes e contratados, p. 23. 16 A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires competéncia sancionadora auténoma da Administrasfo, acabou produzindo uma hipertrofia da legislacao penal, sobrecarregando o aparelhamento judicial, levan- do a uma despenalizacao de condutas. E fato, portanto, que muitas condutas, em um primeiro momento tipificadas como crimes, passaram, pouco a pouco, por um processo de descriminalizacao, sendo punidas por autoridades administrativas. Na ‘Alemanha e Itdlia identifica-se uma remessa 4 competéncia administrativa daqueles delitos considerados menores e, concomitantemente, uma repenalizacao de condu- tas outras que vao adquirindo uma maior reprovabilidade social, como no caso dos delitos econémicos e em matéria de urbanismo e meio ambiente.* Em Portugal, percebe-se uma forte influéncia da doutrina alem{. Todavia, diferentemente da Alemanha, a Constituicao Portuguesa dispoe expressamen- te sobre as infragdes administrativas em seu art. 165, 1 “d”, na medida em que atribui ao legislador competéncia para legislar sobre o regime geral de puni¢do das infracées disciplinares, bem como dos atos ilicitos de mera ordenagio social e do respectivo processo. Reconhece-se, portanto, no direito portugués, os ilicitos de mera ordena¢do so- cial, destinados a proteger valores secundarios da sociedade” Na Franca, assevera Jean Rivero, houve uma grande resisténcia de atribuir com- pet@ncia punitiva 4 Administracao Piiblica.’ Ainda assim, o intervencionismo eco- n6mico terminou por impulsionar as atribuigdes punitivas que foram confiadas as autoridades administrativas. E de se ver que a competéncia repressiva da Adminis- tragao Péiblica na Franga decorreu do Conselho Constitucional daquele pais.’ No que diz respeito a Espanha, a Lei Fundamental desse pais, tal qual a Consti- tuigdo Portuguesa, dispde sobre uma disposicao especifica relativa aos ilicitos, nos termos do art. 25, 1, consolidando em cardter definitivo o ius puniendi do Estado, dividido em penal e sancionador administrativo. Ainda que a Espanha tenha passado por uma redemocratizacao, é interessan- te constatar que, ainda assim, a Administragao Publica concentra grande parte das competéncias punitivas, afora aquelas sangSes que impliquem privacio da liberda- de, consoante expressa disposi¢ao do art. 25, 3, da Constitui¢ao Espanhola. Por fim, no direito brasileiro inexiste qualquer disposigo acerca de sanco pela Administracao Publica. Todavia, a nossa Lei Fundamental se constitui em um sis- tema aberto de regras e principios que, alias, se encontra expresso no art. 5%, § 2%, ao dispor que “os direitos e garantias expressos nesta Constituicao ndo excluem outros decorrentes do regime e dos principios por ela adotados, ou dos tratados in- 5 VILA, Antonio Dominguez. Constitucién y derecho sancionador administrative. Madrid: Marcial Pons, Edicio- nes Juridicas y Sociales, 1997. p. 19-20. 7 MODERNE, Franck. Sanctions administratives et justice constitutionnelle, Paris: Economica 1993. p. 175. * RIVERO, Jean. Les Libertes Publiques: les droits de l'homme, Paris: PUF, 1991. p. 32. t. 1. * DIAS, Eduardo Rocha. Sanpies administrativas aplicdveis a licitantes e contratados, p. 35. A Sangfo Juridica 17 ternacionais em que a Repiblica Federativa do Brasil seja parte”. Nesse passo, mui- to bem anota Eduardo Rocha Dias que distingue duas ordens de principios cons- titucionais relativos s Sancées editadas pela Administracao Publica: os principios de contetido material ~ princfpio da legalidade das infragdes e das sangoes e seus corolérios (tipicidade, irretroatividade e proporcionalidade) e principio da respon- sabilidade - ¢ os de contetido procedimental - devido processo legal, presungao de inocéncia, reconhecimento ao direito de defesa, da decisao e possibilidade de con- trole jurisdicional,”° nos quais mais & frente nos debrucaremos com maior detenga. 2.2 Asangao administrativa Seguindo nossa ordem de raciocinio, é imperioso que se passe ao exame da san¢4o administrativa, objeto, portanto, do direito administrativo. Sem maiores de- Jongas, é de cristalina clareza que as sancGes administrativas nada mais so que atos administrativos editados pela Administracao, no exercicio da fungao administrativa."' Com esse recorte, necessdrio se faz o exame da funcdo administrativa para uma melhor compreensao do conceito de san¢ao administrativa. 2.2.1 Fungcao administrativa O direito administrativo pode ser entendido como 0 conjunto de normas e prin- cipios que regem a Administracao Publica que, por meio do exercicio das atividades administrativas, objetivam a consecucdo do interesse puiblico. A atividade administrativa outra coisa no é que nao a denominada fungao ad- ministrativa que, no dizer de Roberto Dromi, é de tal relevancia que se constitui no objeto do direito administrativo.? Augustin Gordillo, por sua vez, afirma, com apropriada razfio, que o conceito de fun¢do administrativa compreende toda a atividade dos érgaos administrativos e também a atividade dos érgios legislativos e judiciais excluidas as suas fungdes especificas.!? Em outras palavras, o autor conceitua a fungado administrativa, consi- derando o seu aspecto orgénico-material, na medida em que conjuga o érgdo a ati- vidade desenvolvida. © Tbidem, p. 37-38. 1 VERZOLA, Maysa Abrahao Tavares. Sango no direito administrativo, So Paulo: Saraiva, 2011. p. 60. © DROMI, Roberto. Derecko administrative. 12. ed., act.~ Buenos Aires ~ Madrid ~ México: Ciudad Argenti- za: Hispana Libros, 2009. p. 474 3 GORDILLO, Augustin. Tratado de derecho administrativa. t. 1. Parte Geral. 7. ed, Belo Horizonte: Del Rey e Fundacién de Derecho Administrativo, 2003. p. X —1. ANTONIO CECILIO MOREIRA PIRES A DESCONSIDERACAO DA PERSONALIDADE JURIDICA NAS CONTRATACOES PUBLICAS SAO PAULO EDITORA ATLAS S.A. - 2014 18 A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires Renato Alessi, de sua vez, preleciona que a fungao administrativa cinge-se & emissa4o de comandos sustentados por preceitos normativos abstratos, objetivando a sua completa e imediata operatividade."¢ Da ligo em comento, dessume-se que, para o autor em questo, a fungao administrativa encontra-se intimamente conec- tada 4 legalidade. Dentre os doutrinadores patrios, vale destacar a posi¢ao de Celso Antonio Ban- deira de Mello que assevera: Ora, a Administrag4o Publica esté, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatério objetiva-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade. E em nome do interesse pi- blico — 0 do corpo social - que tem de agir, fazendo-o na conformi- dade do intentio legis. Portanto, exerce ‘funcao’, instituto como visto — que se traduz na ideia de indeclinavel atrelamento a um fim prees- tabelecido e que deve ser atendido par ao beneficio de um terceiro.'* De qualquer maneira, os autores precitados, de uma forma ou de outra, colo- cam a fungi administrativa sob o regime da estrita observancia da lei. Até porque isso ndo poderia ser diferente, na medida em que a Administracdo deve trabalhar em regime de estrita subserviéncia 4 lei. A norma abstrata concretizar-se-d através da atuacdo operativa direta da Administraséo, mediante a edicZo do ato adminis- trativo, que traz em seu bojo a finalidade tinica de concrecao do interesse puiblico. Logo, quando da concretizagao da abstracAo prevista em lei, temos 0 ato admi- nistrativo, decorrente da denominada fun¢o administrativa. E evidente que o ato administrativo implica, pois, no exercicio dos denominados poderes administrati- vos que, vez por outra, para atingirem o interesse publico, devem submeter o parti- cular, obrigando-o & pratica de determinada coisa. 2.2.2 Poder administrativo Considerando que a atuacdo administrativa implica exercicio da autoridade esta- tal, emanada da lei, certo € dizer que teremos como resultado a cria¢ao, modificaso ou extingao de relagGes juridicas, com vistas 20 cumprimento do interesse piblico. Nesse sentido, a atuacéo administrativa, como muito bem preceitua Jaime Ossa Arbeléez, “é 0 resultado do exercicio de um poder emanado da lei”.”* 4 ALESSI, Renato. Principi di diritto amministrativo. Milano: Giuffré Editore, 1971. p. 10. 5 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de dreito administrative, p. 101 © ARBELARZ, Jaime Ossa. Derecho adiministrativo sancionador: una aproximacién dogmética. 2. ed. Colémbia: Legis, 2009. p. 72. A Sangfo Juridica 19 Deveras, a atuacao administrativa somente podera acontecer fulcrada na lei, posto que dessa decorrem os poderes da Administrac4o Publica. Eduardo Garcia de Enterria e Tomas-Ramon Fernandes ensinam que o principio da legalidade se expressa em um mecanismo técnico preciso, na medida em que a lei atribui pode- res 4 Administracao.”” Claro esta, portanto, e acompanhando o pensamento de Celso Antonio Bandei- ra de Mello, que esses poderes existem para a consecugo do interesse piiblico, su- jeitando a Administragao ao seu diuturno exercicio, na medida em que nao podem deixar de ser manejados. Merecem destaque as palavras do mestre: E que a Administrago exerce fungao: a fungéo administrativa. Exis- te fungdo quando alguém esta investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tan- to, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes sao instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na fungio nao teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, ‘deveres-poderes’, no interesse alheio.'* Forcoso € concluir que se esses poderes nao passam de deveres do Administra- dor Publico, pelo que se vislumbra ser muito mais adequado falar em funcao admi- nistrativa, como muito bem preceitua Lucia Valle Figueiredo: A funcao administrativa consiste no dever de o Estado, ou de quem aja em seu nome, dar cumprimento fiel, no caso concreto, aos co- mandos normativos, de maneira geral ou individual, para a reali- zagao dos fins ptblicos, sob regime prevalente de direito publico, por meio de atos e comportamentos controlaveis internamente, bem como externamente pelo Legislativo (com 0 auxilio dos Tribunais de Contas), atos, estes, revisiveis pelo Judiciério."® Da ligdo trazida a colagdo conclui-se que funco administrativa é dever do Esta- do, com vistas a concretizar atos gerais e individuais, sob regime de direito piblico, € sujeito ao controle. Nesse contexto, cumpre-nos deixar claro, curialmente claro, a nossa posigao de entender o poder como uma fun¢’o administrativa consubstanciada em um dever. * GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNANDEZ, Toms Ramén. Curso de derecho administrative. Tomo 1 1. ed. peruana. Version latino americana, em base a La duodécima edicion (Palestra-Temis, 2006). Reimpres- sién febrero 2011. p. 478. 18 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de diveito administrativo, p. 72. ® FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de diveito administrativa. 9. ed., rev. amp. e atual. até a Emenda Constitu- ional 56/2007, Sao Paulo: Malheiros, 2008. p. 34. 20 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires A realidade é que o Administrador Piiblico, objetivando a concretizacao do interes- se piiblico, deve gerir bens e interesses coletivos, que nao se encontram & livre dis- posi¢o de quem quer que seja, implicando, com efeito, manejamento compulsério de poderes que the foram conferidos. Assim, se os interesses publics nfo esto disponiveis, temos que concluir que o Administrador tem o dever de manejar os poderes a ele conferidos, pelo que é muito mais acertado falar em dever-poder ou, ainda, melhor dizendo, em fungao administrativa. 2.2.3 A funcao administrativa punitiva Despiciendas maiores consideragdes quanto ao fato da doutrina, macicamen- te, defender a ideia de um poder punitivo estatal, comumente denominado de jus puniendi. Todavia, no nosso entender, nao se trata de um poder de punir ou de um poder sancionatério como muitos preferem. Trata-se do exercicio da fungao admi- nistrativa punitiva. Melhor esclarecendo, o Estado, perante 0 caso em concreto, e uma vez verificada, apés regular processo administrativo, a ocorréncia do ilicito tem co dever de punir o infrator da ordem juridica. De qualquer modo, considerando que o exercfcio da funcdo administrativa pu- nitiva encontra-se umbilicalmente ligada 4 imposi¢ao da sangdo administrativa, re- legamos um melhor exame da questo para um segundo momento. 2.3 A sancao administrativa e sua finalidade Mais do que trazer A baila um conceito de sancao administrativa, urge conhecer os elementos caracterizadores dessa figura juridica. Para tanto, volvemos a exami- nar a doutrina, com vistas a coletar maiores subs{dios para melhor cumprimento desse desiderato. Eduardo Garcia de Enterria e Tomés-Ramon Fernandez observam que a sangZo administrativa “é um mal infringido pela Administra¢do a um administrado, como consequéncia de uma conduta ilegal”.*° José Suay Rincén ensina que a sancao administrativa “é qualquer mal infligido pela Administracao ao administrado, em consequéncia de um comportamento ile- gal, que resulta de um procedimento administrativo e com a finalidade exclusiva- mente repressora”.”" 2 ENTERRIA, Eduardo Garcia; FERNANDEZ, Tomés Ramén. Curso de devecko administrativo, p. 1064. 21 RINCON, José Suay. Sanciones administrativas. Bolonha: Publicaciones del Real Colégio de Espafia, 1989, p55. A Sangfo Juridica 21 Finalmente, para Marcelo Madureira Prates, com uma conceituagao mais elabo- ada, expressa o seu entendimento acerca da san¢ao administrativa: Para nés, san¢ao administrativa € medida punitiva prevista em ato normativo, que pode ser aplicada diretamente pela Administracao no ambito das suas relagdes jurfdicas gerais, a quem, sem justifica- , deixe de cumprir um dever administrativo certo e determinado normativamente imposto.2 Das ligdes colacionadas, é possivel afirmar que o elemento aflitivo e punitivo em razao do descumprimento de uma norma é ténica que se identifica nos concei- tos em exame, com pequenas variagdes terminoldgicas. Assim, com escélio nas ligdes precedentes, e em raz4o do nosso entendimento acerca da sancao juridica que j4 expressamos em outra oportunidade, temos para nés que a san¢ao administrativa é uma consequéncia negativa, que se constitui em uma medida de caréter punitivo, que deve ser aplicada pelo Estado, ou quem lhe faca as vezes, no exercicio de sua func&o administrativa, em razéo do descumpri- mento de um comportamento prescrito em lei, e observado 0 devido processo legal. Conveniente se faz, ainda, examinar com mais detenca o conceito de sancZo administrativa. Nesse sentido, a consequéncia negativa decorre da pratica de um ilfcito, que se traduz em um comportamento reprovavel previsto em lei. Releva en- fatizar que essa consequéncia negativa se constitui sempre em uma medida de ca- rater punitivo. Nesse mesmo passo, apenas ser considerada sanc4o administrativa aquela aplicada pelo Estado ou quem the faga as vezes, no exercicio de sua fungio adminis- trativa e, portanto, sob a égide do regime juridico administrativo, apartando-a, des- de logo, da san¢ao penal. Avulta salientar que nfo sé o Poder Executivo encontra- -se incluido em nosso conceito, mas também os Poderes Legislativo e Judiciario, no exercicio de suas funs6es atipicas e, portanto, de caréter administrativo. Doutra parte, convém lembrar que muitas vezes a san¢4o administrativa nao tera cardter autoexecutério, pelo que a Administragao ser4 obrigada a se socorrer do Poder Judiciério. Porém isso nao retira o fato inarredavel de a sangao, enquanto prescricao, ocorrer mediante ato administrativo.” Por derradeiro, quanto a finalidade, a sanc&o nao pode ser considerada um fim em si mesmo, ou seja, a sancdo nao pode ser concebida com a finalidade de punir. A sanco possui uma finalidade pedagégica, na medida em que o seu escopo é evitar a ocorréncia de comportamentos reprovaveis.** 2 PRATES, Marcelo Madureira. Sango administrativa geral: anatomia ¢ autonomia. Coimbra: Almedina, 2005. p. 54. 2 FERREIRA, Daniel. Sangées administrativas, p. 34 2 Heraldo Garcia Vitta observa: “toda sancio tem por finalidade desestimular as pessoas a cometerem ilic tos. A punigao no € 0 fim da pena; € efeito, apenas, do ato impositivo desta, ao sujeito. Toda sangao acarreta 22 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires 2.4 Os regimes de sujeicgao da sangao administrativa ‘A questo dos regimes de sujeigéo da sano administrativa ¢ aspecto que nao podemos deixar de abordar e expressar a nosso entendimento. Guido Zanobini é da opiniao que existem regimes jurfdicos distintos para as sancSes administrativas, a saber: sangdes dos deveres gerais, como aquelas decor- rentes diretamente do ordenamento juridico, de caréter absolutamente compulsé- rio e sancSes dos deveres particulares aquelas decorrentes de um liame especial.” Eduardo Garcia de Enterria e Tomas-Ramén Fernandez fazem importante ob- serva¢ao quanto as relacbes de sujeicao especial, naquilo que diz respeito a sangao disciplinar, tendo em vista que nessa espécie sempre se reconheceu uma titulari- dade natural da Administracao, decorrente de uma atuacéo em seu 4mbito interno ‘ou doméstico. Afora isso, aponta também que nessa relacdo de sujeicao especial 08 ilicitos sancionaveis derivam de condutas valoradas com critérios deontolégicos estritamente juridicos ~ falta de probidade, atentado grave a dignidade dos funcio- nérios ou da Administracdo, sendo que tradicionalmente dispensaram-se os requi- sitos gerais de legalidade e tipicidade, substituindo essas regras por uma potestade doméstica, legitimada por uma simples posicao de submissao geral.26 Renato Alessi, de sua vez, separou a supremacia geral da Administracdo, da- quela sujeicao de cardter especial decorrente de uma sujeicao especifica do particu- lar frente 4 Administragao Publica.” Em que pese o entendimento dos doutrinadores em comento, e com o respei- to devido, nao vislumbramos motivos pelos quais as sangGes devem ser tratadas de formas diferenciadas. No nosso sentir, pouco importa se a sangao decorreu de uma norma a todos enderegada ou em razdo de um liame mais especffico, isto porque os seus condi- cionantes sempre sero os mesmos: decorréncia de um comportamento reprovavel, previsto em lei, ensejando do Estado, no exercicio de sua fungao administrativa, a imposic&o de uma sanco.”* Em nosso entendimento, sobejam, portanto, motivos para considerar a existén- cia de um tinico regime de sango, com eventuais caracteristicas e nuances préprias. a punigao do infrator, mas o fim dela nao ¢ este, o de evitar condutas contrérias ao Direito. Isso decorre do regime democratico de Direito, do principio da dignidade da pessoa humana, do respeito aos valores funda- mentais” (A sangio no direito administrativo, p. 67). 3 ZANOBINI, Guido. Le sanzioni amministrative, Torino: Fratelli Bocca Editori, 1924. p. 54. 2% ENTERRIA, Eduardo Garcia; FERNANDEZ, Tomés Ramén. Curso de derecho administrativo, p. 1071. 2 ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo, tI, 3. ed., p. 227. % Daniel Ferreira observa: “Nao obstante doutrinadores de nomeada tratem em apartado das sancées ad- ministrativas subsumiveis a cada regime — geral ou especial ~ filiamo-nos & corrente que compreende haver justificativa mais do que suficiente para um estudo genérico, consoante 0 qual 0 tema das infracées sancSes, ‘pela sua propria esséncia, ndo autorizaria tal cisdo” (Sandes administrativas, p. 40). A Sancfo Juridica 23 2.5 Asangao administrativa enquanto dever Nao é demais lembrar que nao concebemos as diversas manifestagdes da Ad- ministracdo Publica enquanto exteriorizaco de poderes, mas sim de deveres, pelo que é muito mais correto falar-se em dever-poder. Também j4 expressamos 0 nosso entendimento quanto 4 denominada funcZo administrativa, enquanto dever do Estado, com vistas a concretizar atos gerais e in- dividuais, sob regime de direito ptiblico, ¢ sujeito ao controle, motivo pelo qual o dever-poder se traduz no inarredavel exercicio da fungo administrativa. Diante disso, acertado se faz apartar-nos da ideia de poder, dizendo que a san- do administrativa decorre do exercicio da fungdo administrativa, ainda que tal afirmaco padega de divergéncias doutrindrias.? De qualquer modo, e a partir do momento que concebemos a sancao administrativa como decorrente da funcao ad- ministrativa, certo € afirmar que a imposicao de penalidade ser4 impositiva para a Administragao. Logo, se o particular cometer um ilicito, tal fato deveré ser apurado e, se comprovada a conduta reprovavel, cabivel serd a aplicagao da sanco, salvo nas hipéteses de excludentes da ilicitude. Ainda que muitos autores vejam na imposicao de sangdo uma faculdade, cre- mos ser impossivel falar em discricionariedade quando da aplicagao da sang4o. Tra- ta-se de inarredavel dever para a Administragao. Celso Antonio Bandeira de Mello, em percuciente observacao, ensina: Registre-se, por tiltimo, que uma vez identificada a ocorréncia de in- fracdo administrativa, a autoridade nao pode deixar de aplicar a san- 0. Com efeito, hé um dever de sancionar, ¢ nao uma possibilidade discriciondria de praticar ou no tal ato. A doutrina brasileira, mesmo em obras gerais, costuma enfatizar tal fato em relacdo ao dever disci- plinax, invocando o art. 320 do Cédigo Penal, que tipifica a figura da » Fabio Medina Osério nao vé na sang administrativa qualquer ligaco com a fun¢io administrativa, a saber: “Devemos mencionar, desde logo, a defesa de um conceito autonome de sangao administrativa para © Direito brasileiro, redimensionando ¢ redefinindo alguns de seus elementos tradicionais, a partir de uma conexio mais profunda com o Direito Administrativo, no lugar de atrelar-nos & ideia de funcao administra- tiva punitiva. Esse conceito vem sendo abertamente defendido por nés desde 1999, num trabalho que pu- blicamos sobre a ma gesto piiblica a luz do Direito administrativo sancionador brasileio, também publicado na Europa. Ali, pela primeira vez no campo escrito, tivemos a oportunidade de sustentar a necesséria vincula- ‘do da sancio administrativa as dimensGes material e formal do Direito Administrativo, rompendo a logica vigente em torno a predominancia exclusiva da dimensdo formal, como se a sanglo estivesse ligada concei- tualmente a fungao administrativa” (Direito administrativo sancionador, p. 76). Com pensamento diametral- mente oposto encontramos as ligoes de Heraldo Garcia Vitta: “embora o Estado seja uno, apresenta-se sob diversas formas ou modalidades de potestades. Pode-se falar, dessa forma, em potestade sancionatéria ou punitiva; e que a ideia de potestade em ou poder resulta de dois elementos, 0 dever ¢ o poder, sendo este instrumental para o cumprimento daquele. A ideia de poder implica a ideia de dever”. (A sangao no direito administrativo, p. 64). Na mesma linha de entendimento temos o pensamento de Rafael Munhoz de Mello: “Isso significa que a sancfo administrativa é manifestago da funcio administrativa” (As sangées administra- tivas a luz da Constituigdo Federal de 1988), p. 64. 24 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires condescendéncia criminosa, mas o dever de sancionar tanto existe em relacfo a inftagbes internas quanto em relaco as externas.” Lacia Valle Figueiredo, enfatizando a imposicao da penalidade, ensina: Doutra parte, a aplicagéo de sangées unilateralmente, pela Admi- nistragao também nfo é prerrogativa a disposigéo do administrador, algo a ser desfrutado pelo administrador. Bem ao contrério. Enten- demos a imposiao de sangdes como dever administrativo. A omis- so, em determinados casos, dard ensejo, por exemplo, a aco po- pular. Aplicar penalidades € dever. Insistimos, nao é direito. E traco caracterfstico do contrato administrativo. Porém, é dever.*! A tudo isso, entendemos conveniente acrescentar que, se a sangao tem um ca- rdter ndo sé repressivo, mas também um aspecto corretivo, mais acertada ainda se faz a imposicio da pena, de modo a surtir os seus efeitos pedagdgicos. 2.6 A questao dos conceitos juridicos indeterminados na sancdo administrativa As sangées administrativas, diferentemente daquelas de cardter penal, nao pos- suem tipos descritos com preciséo, sendo expressas mediante vocdbulos plurissig- nificativos, denominados de conceitos juridicos indeterminados, pelo que muitos entendem existir discricionariedade na escolha da pena, pautada pelos princ{pios da razoabilidade e proporcionalidade.” » MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 880. 3 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo, p. 527. 2% Maria Sylvia Zanella Di Pietro comenta a dicotomia doutrindria acerca dos conceitos juridicos indetermi- nados. Averba a autora que naquilo “que diz respeito aos conceitos juridicos indeterminados, ainda hé muita polémica, podendo-se falar de duas grandes correntes: a dos que entendem que eles nao conferem discriciona- riedade & Administras0, porque, diante deles, a Administragdo tem que fazer um trabalho de interpretagao que leve a Ginica solugdo valida possivel; ¢ a dos que entendem que eles podem conferir discricionariedade & Administragao, desde que se trata de conceitos de valor, que impliquem a possibilidade de apreciagao do inte- resse piiblico, em cada caso concreto, afastada a discricionariedade diante de certos conceitos de experiéncia ou de conceitos técnicos, que néo admitem solu;des alternativas Com relagao ao objeto e contedido, o ato sera vinculado quando 2 lei estabelece apenas um objeto como possivel para atingir determinado fim; por exemplo, quando a lei prevé uma tinica penalidade possivel para punir uma infracéo. E serd discriciondrio quando houver varios objetos possiveis para atingir 0 mesmo fim, sendo todos eles validos perante 0 direito; é 0 que ocorre quando a lei diz que, para a mesma infragéo, a Ad- ministrago pode punir os funciondrios com as penas de suspensio ou de multa” (Direito administrativo. 25. ed, Sio Paulo: Atlas, 2012. p. 222, grifos da autora). A Sangfo Juridica 25 Confessamos que, por diversas vezes, meditamos sobre o tema dos conceitos juridicos indeterminados e a discricionariedade, levando-nos as mais diversas con- clusées e, por conseguinte, a modificar 0 nosso pensamento. De qualquer sorte, é evidente que nao podemos passar a largo dessa questdo. Cabe-nos enfrenté-la. Eduardo Garcia de Enterria e Tom4s-Ramon Fernandez ensinam que, nos con- ceitos juridicos indeterminados, a lei faz referéncia a uma esfera de realidades, cujos limites, todavia, nao se encontram perfeitamente delineados, ainda que tenha por objetivo delimitar um caso em concreto. Observam, ainda, os autores, que tais con- ceitos podem ser conduzidos a uma zona de certeza (existe boa-fé ou nao), enfati- zando que a indeterminagao do enunciado nfo se traduz em uma indeterminago de sua aplicaao no caso em concreto.* Em Portugal, José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira assina- Jam que a concep¢ao mais moderna nao entende possfvel fazer uma nitida distingio entre interpretacao de conceitos indeterminados e discricionariedade. Asseveram Os autores que a interpretacdo de uma norma nao pode ficar restrita a uma vonta- de preexistente, posto que ser4 no momento da aplicagio dessa que o seu sentido sera fixado.* Ainda que existam divergéncias doutrindrias, ndo vemos 6bices em afirmar que, mesmo perante um conceito unissignificativo ou teorético, sempre haveré es- ago para a interpretacdo que, em ultima andlise, pode ficar restrita 4 mera questo de significante e significado. Assim, se aceitamos que nos conceitos unissignificativos é possivel falar de in- terpretagio, ainda que reduzida 4 mera hipotese de se identificar significante e sig- nificado, com muito mais razao sera necess4ria a interpreta¢ao perante os conceitos indeterminados. Antonio Francisco de Souza muito bem expressa a questao da interpretacao pe- rante os conceitos juridicos indeterminados: A interpretacao e aplicagao dos conceitos indeterminados é sempre uma actividade da Administragao vinculada 4 lei, pois caracteriza sempre situag6es em que apenas hé uma solucdo justa; uma pes- s0a ou é idénea, ou nao o é; um edificio ou ameaca ruina, ou néo; um edificio ou tem valor monumental, ou nao; uma manifestacao ow representa perigo para a ordem e seguranga piiblica, ou no... Podemos naturalmente discutir sempre, em caso de divida, sobre © ‘sim’ ou 0 ‘nao’, ou seja sobre se no caso concreto o Tatbestand de um conceito legal indeterminado jé est preenchido ou nao. Mas por © GARCIA DE ENTERRIA.; FERNANDEZ, Tomés-Ramon. Curso de derecho administrativa, p. 496 2 DIAS, José Eduardo Figueiredo; OLIVEIRA, Femanda Paula. Nopées findamentais de direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2005. p. 111 26 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires isso mesmo, nao se podem verificar simultaneamente as duas solu- s6es, conjuntamente ou em alternativa. A interpretago e aplicaco de conceitos legais indeterminados representam pois sempre uma actividade de reconhecimento ou constata¢ao de uma realidade exis- tente. Perante essa constatacdo, a lei impée sempre 4 Administracéo uma e s6 uma modalidade de comportamento. A AdministracZo esta pois vinculada a decidir no sentido imposto pela lei... ‘Apreciar’ a idoneidade de uma pessoa é reconhecer, melhor, declarar algo que j4 existe (ou nao existe) previamente e nunca ‘atribuir’ por acto (livre) da Administragéo essa qualidade. Se isso fosse possfvel significaria que a realizacao de certos direitos fundamentais dos particulares de- penderia de livre critério de autoridade administrativa, 8 semelhancga do que acontecia no Estado de Policia.** Assim, se considerarmos a discricionariedade como uma margem de liberdade que remanesce da lei, de modo que o Administrador possa escolher aquilo que Ihe pareca mais adequado ao interesse piblico, nao vislumbramos como correto dizer que os conceitos juridicos indeterminados estao a ensejar discricionariedade ou uma certa discricionariedade. Certo se faz dizer que, mediante interpretago, deve-se chegar & conclusio daqui- Jo que é “emergéncia”, “urgéncia”, “grave perturbacao da ordem” para, posteriormen- te, tomar-se a atitude adequada, tendo como finalidade ultima o interesse piblico.** Em suma, nao € no bojo dos conceitos juridicos indeterminados que se aloja a discricionariedade, de modo a possibilitar uma margem de liberdade ao adminis- trador na escolha de seu comportamento. Dizemos, portanto, que estamos entre aqueles que defendem a necessidade de, perante um conceito indeterminado, haver interpretagéo*’ com posterior subsun¢ao. 8 SOUZA, Antonio Francisco de. Conceitos indeterminados no direito administrativo, Coimbra: Almedina, 1994, . 205-207. %* Marcello Caetano observa: “mas se esté no exercicio de poderes discricionérios, o legislador apenas lhe marca o destino, o fin que deve atingir: - Assegure a ordem pablica! Defenda a satide pablica! Garanta o abas- tecimento pablico! - deixando ao critério de quem tem de agir a escolha dos meios ou processos de o conse- guir, como se 20 viajante se deixasse liberdade de optar por qualquer dos itinerérios possiveis para chegar a0 ponto do destino” (Principios findamentais do diveito administrative. Reimpress4o da edigdo Brasileira de 1977. 38 reimpressio portuguesa. Coimbra: Almedina, 2010. p. 146). 3 Entendemos que os termos empregados de forma vaga relegam ao intérprete a sua apreciagéo, conside- rando nfo sé a conjuntura social do momento, mas principalmente o interesse piiblico em jogo, que ser o ele- ‘mento condicionante para trazer os conceitos plurissignificativos a uma zona de certeza positiva ou negativa. 3 As Sancoes Decorrentes da Lei 8.666/93 e Lei 10.520/02 e demais Legislacoes Vigentes As sabendas, 0s arts. 22, inciso XXVIL, e 37, XXI, ambos de nossa Constituicio Federal, foram regulamentados pela Lei 8.666/93, aplicavel a todos os Poderes da Uniao, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municipios, bem como aos fundos es- peciais, autarquias, fundacées piiblicas, empresas ptiblicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou pelos entes federados precitados. Com efeito, a Lei 8.666/93, que estabelece as regras atinentes ao procedimento licitatério e respectivo contrato administrativo, dispde, em seu art. 58, que o regime juridico do contrato administrativo confere Administra¢ao Publica, dentre outros, a prerrogativa de “aplicar san¢6es motivadas pela inexecucdo total ou parcial do ajuste”. Impende, pois, considerar que as prerrogativas mencionadas decorrem do prin- cipio da supremacia do interesse puiblico sobre o particular. Convém observar que, em razo dessa supremacia, autorizado esté & Administracdo, inclusive, sacrificar 0 direito do particular, sem contudo amesquinhé-lo. Por conseguinte, a Lei 8.666/93 dispde sobre sanc6es administrativas em seus arts. 86 e 87. Com efeito, o art. 86 estabelece a hipétese da multa de mora, em ra- 280 do atraso injustificado na execucao do contrato. Doutra parte, 0 art. 87 prevé, em razio de inexecugao total ou parcial do contrato, a aplicagfo das sangdes de ad- verténcia, multa, suspensao temporaria de participagao em licitasao e impedimento de contratar com a Administracao, e, finalmente, a declaracao de inidoneidade para licitar com a Administrac4o Publica. © 2013 by Editora Atlas S.A. Capa: Nilton Masoni Projeto gréfico e composi¢éo: CriFer — Servicos em Textos Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pires, Antonio Cecilio Moreira A desconsideracéo da personalidade juridica nas contratagdes ptiblicas / Antonio Cecilio. Moreira Pires. ~~ S80 Paulo: Atlas, 2014. Bibliografia. ISBN 978-85-224-8608-3 ISBN 978-85-224-8609-0 (PDF) 1. Contratos administrativos — Brasil 2. Desconsideragao da entidade juridica 3. Direito administrativo - Brasil 4. Pessoa juridica - Brasil. Titulo. 13-1225 cpD-35(81) indice para catalogo sistematico: 1. Brasil : Desconsideragao da personalidade juridica : Direito administrative 35(81) TODOS 05 DIREITOS RESERVADOS - £ proibida a reproducéo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violagéo dos direitos de autor (Lei n® 9.610/98) & crime estabelecido pelo artigo 184 do Cédigo Penal. ~~ Editora Atlas S.A. Nébias, 1384 Rua Conselhei Campos Elisios 01203 904 Sio Paulo SP 011 3357 9144 atlas.com.br 28 A Desconsideracdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Por sua vez, 0 art. 7° da Lei 10.520/02 dispde que quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, no celebrar 0 contrato, deixar de entregar ou apresentar documentacio falsa exigida para o certame, ensejar o retardamento da execuco de seu objeto, nao mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execugao do contrato, comportar-se de modo inid6neo ou cometer fraude fiscal ficara impedido de licitar e contratar com a Unido, Estados, Distrito Federal ou Municipios, sem prejuizo das multas previstas em edital e no contrato, e das demais cominagées legais. Passemos, pois, a conhecer cada uma das sang6es sobreditas. 3.1 Aplicag&o de sancio pela nao assinatura do contrato O art. 64 da Lei 8.666/93 prescreve que caberd & Administracao convocar o adju- dicatério para assinar o termo de contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalen- te, dentro do prazo e condicées estabelecidos, sob pena de decair o direito a contrata- do e sem prejufzo das sancSes previstas no art. 81 do aludido diploma legal. Por sua vez, o art. 81 da Lei 8.666/93 estabelece que a recusa injustificada do adjudicatario em assinar 0 contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo estabelecido pela Administragao, caracteriza o descumprimento total da obriga- ‘co assumida, sujeitando-o as penalidades legalmente estabelecidas. Nesses termos, e considerando que a no celebracdo da avenga caracteriza descumprimento total do contrato, o intérprete obrigatoriamente ser4 remetido para o art. 87 da Lei de Licitagdes e contratos que dispoe sobre as penas em caso de inexecuc&o total da avenga que, mais adiante, estaremos examinando. 3.2 Multa por atraso na execucao do contrato O art. 86, “caput”, da Lei 8.66/93 é de lapidar clareza, ao estabelecer multa de mora, em razao de atraso injustificado na execugao do contrato, subordinando tal hi- pétese a expressa disposicao no edital ou no contrato administrativo. Entretanto a lei de licitagSes e contratos nao especffica o percentual e demais con- dicionantes para a aplicacao da multa de mora, pelo que tais disposiges deverao estar minudeadas no instrumento convocatério (art. 40, III) e no contrato (art. 55, VII), ten- do em vista que seria inadmissivel que, ao se configurar o atraso injustificado, e tendo a ‘Administragao o dever de sancionar, essa se sustentasse pela discricionariedade. Por ébvio, deverfo o instrumento convocatério e o contrato estabelecer, a par- tir de quando a multa dever4 incidir, o seu montante, e qual ser o procedimento necessério para tanto. ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10,820/02 e demais Legislacées Vigentes 29 Infere-se, também, da andlise do dispositivo em questo, a possibilidade conco- mitante de rescis4o do contrato administrativo, com aplicac&o de penalidades, per- mitindo-se, inclusive, que a Administracdo se apodere da caugao depositada pelo contratado, promovendo os descontos dos pagamentos eventualmente devidos pela Administragao ou, ainda, se for 0 caso, a cobranca judicial, nos termos do art. 86, §§ 2° e 32, da Lei 8.666/93. Como nfo poderia deixar de ser, impde-se, ainda, a observancia do princfpio do contraditério e da ampla defesa, haja vista a manifesta interferéncia da Adminis- tracao na esfera de direitos do particular. Assim, o § 2°, do art. 86 da Lei 8.666/93, estabelece que a multa, aplicada apds regular processo administrativo, seré descon- tada da garantia do respectivo contratado. Ainda que aludido dispositivo imponha a instauracdo de processo administrativo apenas para a aplicacdo de multa, é claro que essa exigéncia se espraia para todos os atos previstos no art. 86 da Lei 8.666/93, devendo ser obedecido nao sé para o ato de imposi¢ao de multa, mas também a perda de garantia e resciso contratual, até que o principio do contraditério e ampla defesa, no processo administrativo, é exi cia constitucional, nos termos do art. 58, inciso LV. Por derradeiro, lembramos ainda que, se constatada a ocorréncia de motivos que justifiquem o inadimplemento, nao ha que se falar em aplicacao de sancao. 3.2.1 A rescisao do contrato prevista no art. 86, § 12, da Lei 8.666/93 Considerando que o “caput” do art. 86 da Lei de Licitagdes dispée que a res- cisdo decorre de atraso injustificado na execuc&o do contrato, certo ¢ dizer que a hipdtese de rescis4o, em principio, ¢ aquela prevista no art. 78, incisos I a IV, do diploma legal citado, devendo a Administra¢ao optar, por uma ou outra, em razao dos condicionantes faticos apresentados no caso em concreto, até porque a configu- racdo de uma ou outra hipétese nem sempre ensejard a resciséo do contrato. Alids, o Tribunal de Contas da Unido assim ja decidiu: E possivel ter a exata nog&o de que nem todas as hipéteses elencadas no art. 78 da Lei 8.66/93 imp6em, se ocorrerem, necessariamente, a resciso do contrato firmado entre a Administracao Piiblica. Esse entendimento encontra respaldo na jurisprudéncia desta Casa, rea- firmada no Acérdao 1.108/2003 — Plenério, de minha Relatoria, pro- latado nos autos do TC 013.546/2002.! } BRASIL. Tribunal de Contas da Unio. Acérdao 1.517/2005, Plendrio, rel. Min. Benjamin Zymler. 30 A Desconsideragio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires De todo modo, examinemos com mais detenga a hipdtese de rescisao com a questo da perda da garantia. Da leitura do dispositivo em comento conclui-se que o valor da multa seré com- pensado com os valores que o contratado tinha a receber. Se isso no for suficiente, deve a Administracao recorrer a garantia prestada, promovendo a sua execucao, que podera acontecer em sede administrativa ou judicial. Alerte-se que a questo da execucao judicial de garantia real dependerd do regi- me juridico a que o contratante se submete. Assim, se o contratante for a Fazenda Publica ou Autarquia, o crédito se caracterizara como fazendario, pelo que perfeita- mente possivel a instauragdo de um processo de execuc4o. Caso se trate de uma so- ciedade de economia mista, por exemplo, necesséria a instauragéo de um processo de conhecimento, com vistas a se obter, mediante sentenga, um titulo executivo.? 3.3 As sancées previstas no art. 87 da Lei 8.666/93 A inexecucdo parcial ou total da avenca sujeita o contratado as penas do art. 87 da Lei 8.666/93, a saber: i — adverténcia; ii — multa, na forma prevista no instru- mento convocatério ou no contrato; iii - suspens4o temporaria de participagéo em licitagao e impedimento de contratar com a Administra¢ao, por prazo nao superior a 2 (dois) anos; e iv — declaracao de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administracao Piiblica enquanto perdurarem os motivos determinantes da punicZo ‘ou até que seja promovida a reabilitacao perante a propria autoridade que aplicou a penalidade, que ser concedida sempre que o contratado ressarcir a AdministracZo pelos prejuizos resultantes e apés decorrido o prazo de 2 anos. 2 Margal Justen Filho observa: “A Administra¢do deverd ser satisfeita pelo valor da multa e (ou) das perdas € danos. Para tanto, podera demandar o particular. O ine. Il alude & execugao da garantia contratual, mas a questo deve ser melhor esclarecida. Uma ver verificada a rescisdo, a Administracao tem o dever de definir 0 ‘montante das perdas e danos sofridos. Para tanto, deverd promover procedimento administrativo, respeitando 0s princ{pios jé referidos e detalhados do contraditério e da ampla defesa. Uma vez apurado o valor da divida, seu montante deverd ser exigido do particular que poder pagar espontaneamente ou nfo. Quando a garantia for real, a situacao apresenta maior complexidade. A Administracao nao tem a faculda- de de se apropriar da garantia ou de executd-la a seu préprio talante. Haverd necessidade de recorrer ao Poder Judiciério. O valor das perdas e danos deverd ser cobrado judicialmente. O processo de cobranga judicial dos valores dependerd do regime juridico aplicével. Quando se tratar da Administracio Direta e de autarquias, incidiré o regime da Lei n® 6.830. O seu crédito ser caracterizavel como fazendério e sua exigéncia poderd fazer-se através de processo de execugio. Mas serd necessério 0 cumprimento dos requisitos legais ali previstos. O titulo executivo serd certidao da divida ativa, € nfo a decisfo administrativa que rescindiu 0 contrato. ‘Quando se tratar da outra entidade da Administracéo Paiblica Indireta, o regime seré 0 comum. A enti- dade dever4, por isso, promover processo de conhecimento, através do qual obterd titulo executivo. Apenas apbs deter 0 titulo executivo & que poderd desencadear a execucio” (Comentarios @ lei de licitagdes e contratos ‘aidministrativos, 15. ed. $20 Paulo: Dialética, 2012. p. 780). ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10.520/02 demais Legislacées Vigentes 31. Um perpassar de olhos sobre as disposiges do art. 87 nos parece suficiente para se chegar & conclusao que, a principio, existe uma gradacdo das penalidades em exame. Forcoso é concluir, assim, pela ilegalidade de se apenar 0 contratado com a sanc¢ao de adverténcia para aquele que tenha apresentado documentagio falsa na licitagao ou, de outra banda, sancionar com a pena de inidoneidade aquele que te- nha atrasado determinada obrigacao contratual. E uma questo de razoabilidade e proporcionalidade. De qualquer modo, mister se faz, em um primeiro momento, discorrer sobre Os aspectos materiais das sangGes constantes do art. 87 da Lei de Licitagdes e Con- tratos, para, posteriormente, nos debrucarmos sobre a questo principiolégica e as- pectos de cardter procedimental. 3.3.1 Adverténcia A pena de adverténcia deve ser utilizada para aquelas questes que se consti- tuem em “falhas leves (art. 87, 1); deverd ser aplicada por escrito, apontando-se o fato que a gerou”.? ‘Admite ainda, a pena de adverténcia, a sua cumulacdo com a pena de multa, nos moldes preconizados pelo art. 87, § 2°, da Lei 8.66/93. Todavia, a Lei de Licitacoes e Contratos nao traz maiores disposig6es com relagao 4 pena em comento, fato esse que pode ser suscitado como impeditivo para a penalizacao do particular.‘ Entretanto esse nao é o nosso entendimento. Nao chegamos a afirmar que a aplicagdo de sano dispensa o atendimento ao principio da legalidade, como na doutrina alienigena.> Ao contrério, o atendimento ao principio da legalidade é im- 3 MEDAUAR, Odete. Direito administrative moderno, 11. ed. rev. ¢ atual. Sdo Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 215. * _ Margal Justen Filho observa: “A Adverténcia corresponde a uma sangdo de menor gravidade. Supde-se sua aplicagao para condutas de inexecugao parcial de deveres de diminuta monta. A adverténcia pode ser cumula- da com a multa, mas no s6 com as demais espécies sancionatérias. Pela propria natureza, a adverténcia en- volve dois efeitos peculiares.O primeiro reside na submissao do particular a uma fiscalizacéo mais atenta. No se trata de alterar as exigéncias impostas, que continuam as mesmas. Haverd, porém, um acompanhamento mais minucioso da atividade do particular, tendo em vista haver anteriormente descumprido seus deveres. O segundo consiste na cientificagao de que, em caso de reincidéncia (espectfica ou genérica), o particular sofre- 14 uma punigao mais severa. A omissio legislativa dificulta a estruturagao do segundo efeito da adverténcia. Alli deve especificar ndo apenas quando a adverténcia é cabivel, como também estabelecer as consequéncias ‘em caso de reincidéncia. Tal como se encontra na lei, é impossivel definir esse segundo angulo” (Comentérios Ale’ de licitagSes e contratos administrativos, p. 891), * Gaston Jéze afitma: “ A falta de texto legal que assinale explicitamente a sangao, nao pode ser deduzida com a inexisténcia desta. [..] No momento atual a jurisprudéncia tende a estabelecer duas regras: 1. As irre- gulatidades que viciam os atos realizados pelos agentes piblicos tém, em principio, uma sangdo, ainda que a lei ndo assinale expressamente. 2. As irregularidades que viciam os atos realizados por simples particulares nfo tém, em principio sangao quando a lei nfo a dita especialmente” (Principios generales del derecho administrati- ‘vo. Bogota: Axel Ecitores, 2010, p. 61 - Traduzido por Carlos Garcia Oviedo). Na mesma linha de pensamento 32_A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires positivo. A questo, em verdade, esbarra no principio da tipicidade, naquilo que diz respeito & necessidade de se exaurir o tipo pressuposto da sancio. Deveras, necessdrio se faz considerar que a lei de licitagdes previu expressa- mente a hipétese de sancao para o descumprimento do contrato. Todavia essa pre- visio nao contempla, detalhadamente, as hipéteses de cabimento da adverténcia, bem como das demais san¢Ges estatuidas no art. 87 da Lei 8.666/93. Nesse sentido, em razo do principio da legalidade e da tipicidade, seria possi- vel dizer que, em um primeiro momento, impossfvel seria o sancionamento do par- ticular na hipétese de inadimpléncia. Afinal nossa Carta Constitucional, jé em seu art. le, é clara ao dizer que a Republica Federativa do Brasil se constitui em um Es- tado Democratico de Direito, sendo, portanto, impossivel, o apenamento com base em critérios de ordem discriciondria. Entretanto, em nosso entendimento, uma vez estabelecida em lei a hipétese da sangao, nada obsta que o seu detalhamento venha disposto em regulamento proprio ou mesmo no edital e no contrato. Alids, esse é o entendimento de Mar- al Justen Filho: O tema desperta especial atengao no Ambito da Lei ne 8.666, que contemplou um elenco de sang6es, mas no definiu, de modo razoa- velmente preciso, as hipéteses de sua aplicacao. Defende-se a tese da infragao ao princfpio da legalidade, sob o fundamento de que nao & compativel com a Constituicdo remeter a discricionariedade admi- nistrativa a eleigao das infracdes e a determinagao das hipsteses de incidéncia de aplicagéo de punicdes. A continuidade da situago de omissao legislativa acaba tomando inécuas ponderagSes tais como essa, na medida em que ndo é admis- sivel que a lesa aos interesses fundamentais permaneca impune. Cabe apenar os infratores, mas sem prestigiar o arbitrio e a prepo- téncia. A soluggo consistird em exigir que, por meio de ato regula- mentar ou no corpo do préprio edital, fossem estabelecidos pressu- postos bisicos delimitadores do sancionamento.* Esse também é 0 entendimento de Eduardo Rocha Dias: temos Agustin Gordilo que observa: “A administracao Péblica tem geralmente reconhecida, tradicionalmente, a faculdade de impor sang6es aos contratados por inadimplemento, ainda que nao expressamente prevista em lei ou no contrato. Porém com o progressivo avanco das técnicas contratuais, que produzem documentos bastante minuciosos acerca das potestades sancionatérias da administracao, caminha-se no sentido de que essa ideia importa numa restri¢fo daquela potestade admitindo somente o razoavelmente implicito no texto do contrato ou, desde logo, na lei" (Tratado de derecho administrative, p. XI - 25 ~ 26). © JUSTEN FILHO, Marcal. Comentarios lei de licitagdes e contratos administrativos. 15. ed. Sé0 Paulo: Dialética, 2012. p. 883. ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.66/93 ¢ Lei 10,520/02 e demais Legislacées Vigentes 33 se 0 ato convocatério do certame e 0 contrato preveem expressa- mente nfo apenas as sanc6es aplicéveis, dentre aquelas estabeleci- das na Lei 8.666/93, mas também duas “hipdteses de incidéncia”, nao ocorre lesao ao princ{pio da tipicidade. Essa previsao, caracteri- zando uma colaborac&o entre a lei ¢ 0 edital e o contrato deve ater- -se aos seguintes limites: (a) ser o desdobramento analitico das ex- pressées sintéticas contidas na Lei 8.66/93 (explicitacaio dos “atos ilfcitos”), por exemplo, descrevendo-se condutas tipificadas por ou- tras leis como crimes ou infragées administrativas, ou dos atos que caracterizem “inexecucdo contratual”, habeis a constituirem 0 pres- suposto de sancionamento dos licitantes e contratados); (b) nao ul- trapassar 0 contetido seméntico das expressdes contidas na lei, mas apenas preencher a vacuidade dos termos genéricos nela encontra- dos (assim, dentre as hipdteses de inexecu¢do contratual sé podem ser listadas situagdes caracterizadoras de descumprimento dos de- veres impostos aos licitantes e contratados: da mesma forma, no tocante ao inciso II do artigo 88 da Lei 8.666/93, sé podem ser san- cionadas condutas ilfcitas que importem em frustrar os objetivos da licitagio); (c) estipular os critérios de aplicago das sanc6es, a partir dos principios constitucionais da atividade punitiva do Estado (ampla defesa, devido processo legal, proporcionalidade, non bis idem ete.), bem como o procedimento a ser seguido no sancionamento.’ ‘Na trilha percorrida, perfeitamente possivel que o edital e contrato estabelecam os pressupostos nao sé da pena de adverténcia, mas também das outras hipéteses de incidéncia previstas em Lei. 3.3.2 Multa A multa pela inexecugo total ou parcial do contrato se constitui em pagamen- to em dinheiro, a titulo de sanc4o, nos termos do art. 87, inciso II, da Lei 8.666/93. De qualquer sorte, a multa jé foi objeto de nossas ponderacdes, quando do exame do art. 86, do jA citado diploma jurfdico, cabendo apenas lembrar que o edital e con- trato deverao ser detalhados com relaco as hipéteses cabiveis para a sua aplicacdo, bem como o seu montante. No dizer de Lucas Rocha Furtado: O art. 87 da lei, como visto anteriormente, indica as penalidades a serem aplicadas a contratado em caso de inexecuco total ou parcial do contrato. DIAS, Eduardo Rocha. Sanpdes administrativas aplicaves a licitantes e contratados, p. 83. 34 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires B importante observar que a lei se restringe a indicar as sangdes ad- ministrativas cabiveis, mas nao determina em que situag6es deverao elas ser aplicadas. A especificagao da sang4o a ser aplicada e a indi- cago de quando seré ela aplicada deverio ser feitas pelo edital (ou convite) e repetidas no contrato. E ainda indispensdvel que sejam indicados os valores das multas a serem aplicadas, além, é evidente, dos casos de sua aplicagio.t Afora isso, néo podemos deixar de assinalar, mais uma vez, que a multa pode ser conjugada com qualquer uma das outras sang6es, nos termos do art. 87, § 28, da Lei 8.666/93, observado, ainda, o principio do contraditério e da ampla defesa que, mais a frente, iremos nos referir. 3.3.3 Suspensao temporaria de participagao em I e impedimento de contratar com a Admii A sango de suspensao temporaria de participaco em licitaco e impedimen- to de contratar com a Administra¢ao, por prazo nao superior a 2 anos, encontra-se prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/93. Nao é preciso maiores consideragdes para se concluir que a pena em questo tem, por consequéncia, a impossibilidade do particular participar de licitagdes ou mesmo contratar com a Administracdo. De outra parte, o prazo da pena em questdo deve ser imposto em perfeita con- sonncia com o princfpio da razoabilidade e proporcionalidade. Garrido Falla ensina que a “Administragao Publica sé pode impor sangGes que sejam razodveis e admiti- das, em sua espécie, pelo dircito administrativo, e nao caprichosas ou arbitrérias”” Esse também é 0 entendimento de Roberto Dromi: “A aplicacao de sangées ad- ministrativas devem acontecer dentro da legalidade e razoabilidade, que implicam na comprovago do fato e a correlativa san¢ao.”"° Nesse sentido, a dosimetria da pena ser4 condigao de legalidade da suspensao temporiria de participacao em licitagdo e impedimento de contratar com a Admi- nistrago. Por fim, alertamos que as demais questées relativas 4 pena em exame, tais como 4mbito de abrangéncia ¢ eficdcia, serao posteriormente estudadas. § FURTADO. Lucas Rocha. Curso de licitagdes ¢ contratos administrativos. 3. ed. rev. ¢ amp. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 451. * ALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo, p. 412. © DROMI, Roberto. Derecho administrative, p. 595. ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10,520/02 e demais Legislacées Vigentes 35 3.3.4 Declaragao de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administragao Publica Em que pese o fato de o art. 87 da Lei 8.66/93 nao trazer qualquer disposico, explicitando as hipéteses de aplicagio da pena de inidoneidade, nao temos diividas de que a pena em apreco deva ser reservada para os casos do cometimento de ilici- tos. Sonia Yuriko Kanashiro Tanaka pondera: ‘Assim sendo, a declaragdo de inidoneidade é, sem divide, a pena de maior gravidade, que s6 deve ser aplicada nas faltas evidentemente execréveis, ilicitas. Por esse motivo, a lei federal atribui competéncia para aplicé-la ndo a Administrago contratante, mas to somente a0 Ministro de Estado, secretério estadual ou municipal, conforme o caso (art. 87, § 39." Comungamos do mesmo entendimento professado por Sonia Tanaka. A pena de inidoneidade deve ser entendida como aquela de maior gravidade, motivo pelo qual deve ser imposta pelos Ministros de Estado e seus respectivos correspondentes nos Estados e Municfpios. Sobremais disso, prevé, ainda, o dispositivo em quest4o que, findo o perfodo de 2. anos, serd possivel ao particular postular pela sua reabilitacao, desde que res- sarcida a administragdo de seus prejuizos, nos termos do art. 87, inciso IV, da Lei 8.666/93. Impende considerar que o dispositivo relativo 4 pena de inidoneidade deve ser interpretado com cautela, posto que nem sempre haverd qualquer prejuizo a ressar- cir. Nessa hipétese, deve o particular aguardar, tao somente, o lapso temporal de 2 anos para propugnar pela sua reabilitacao. Por fim, ¢ bom que se diga, ainda, que o art. 87, inciso IV, da lei federal dispde sobre ato vinculado, ou seja, uma vez cumpridos os requisitos, deve o particular ser reabilitado. 3.3.5 Uma anilise das diferengas entre as penas de suspensao e declaracao de inidoneidade Muito se discutiu, e ainda se discute, sobre as diferencas existentes entre as penas de suspensao tempordria de participagdo em licitacdo e impedimento de con- tratar com a Administrago e declaracdo de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administracao Ptblica. 8 TANAKA, Sonia Yuriko Kanashiro. Conceppio dos contratos administrativos. So Paulo: Malheiros, 2007. p. 160. 36 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Discute-se a questao dos efeitos da pena, da competéncia para a edigao da san- do, e por fim a questo do lapso temporal. A questo dos efeitos da pena tem merecido uma maior atencao da doutrina e da jurisprudéncia, haja vista que, do ponto de vista pratico, ambas importam na restric¢do do direito de licitar e contratar. Entretanto a matéria ora discutida é intrin- cada e bastante complexa, merecendo especial aten¢ao. 3.3.5.1. Os efeitos da pena de suspensio e declaracao de inidoneidade Preliminarmente, interessante se faz examinar os diversos posicionamentos doutrinarios acerca da matéria em exame que é bastante controvertida. Hely Lopes Meirelles observa: A suspensio provisoria pode restringir-se ao érgdo que decretou ou a referir-se a uma licitago ou a um tipo de contrato, conforme ex- tens&o da falta que 2 ensejou; o mesmo ocorre em relaco & inido- neidade, que s6 opera efeitos perante a Administragao que a declara, pois que, sendo uma restricio de direito, ndo se estende a outras Ad- ministragSes. Assim a declaracgo de inidoneidade feita pela Unido, pelo Estado ou pelo Municipio s6 impede as contratagées com as entidades ¢ 6rgos de cada uma dessas entidades estatais, e se decla- radas por reparticGes inferiores s6 atua no seu Ambito e no de seus 6rgdios subordinados."* Lucas Rocha Furtado de igual modo, mas com razdes outras, também faz dis- tingdo entre as penas de suspensao e declaracAo de inidoneidade. A suspensio temporaria somente é valida e, portanto, somente im- pede a contratacaio da empresa ou profissional punido durante sua vigéncia perante a unidade que aplicou a pena; a declaragdo de ini- doneidade impede a contratacdo da empresa ou profissional punido, enquanto nfo reabilitados, em toda a Administraco Publica federal, estadual e municipal, direta e indireta.”” Carlos Ari Sundfed, interpretando as disposicdes do art. 87, incisos III e IV, da Lei 8.66/93, também conclui pela distingdo entre as penas em debate: © MEIRELLES, Hely Lopes. Licitagao e contrato administrativo. 15. ed. atual. Traduzido por BURLE FILHO, José Emmanuel; BURLE, Carla Rosado; FRANCHINI, Luis Fernando Pereira. Sao Paulo: Malheiros, 2010. p. 337. FURTADO, Lucas Rocha. Curso de lictagées e contratos administrativos. 3. ed. rev. e amp. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 400. As Sang6es Decorrentes da Lei 8.66/93 ¢ Lei 10,520/02 e demais Legislacées Vigentes 37 Quanto a abrangéncia dos efeitos, o art. 87, inc. II, diz que a sus- penso profbe o punido de contratar com a Administragao enquan- to, pelo art. 87, inc. IV, a declaragdo de inidoneidade implica a in- viabilidade de contratar com 2 Administragao Piblica. A presenga ou auséncia do adjetivo (Piblica) sugere a invocagdo das definicoes contidas no art. 62, incs. XI e XII. Segundo o primeiro, Administra 40 Publica é: a administracdo direta c indireta da Unido, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municipios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade juridica de direito privado sob controle do Poder Pi- blico e das fundag6es por ele instituidas ou mantidas. De acordo com 0 outro, Administracdo € o “érgao, entidade ou uni- dade administrativa pela qual a Administraco Publica opera e atua concretamente”. Como 0 art. inc. XI, ao definir a Administragao Publica, enu- mera os varios entes federativos (Unido, estados, Distrito Federal e municipios), 0 que o art. 6°, inc. XII, nao faz quando conceitua a Administracéo, ocorreu a alguns intérpretes imaginar que a decla- rac&o de inidoneidade produz efeitos em relaco a todos os entes estatais do Pais, enquanto a pena de suspensdo interdita ao punido apenas o mercado do ente sancionador. Entendo como equivocado esse raciocinio, pois, conforme o art. 62, inc. XI, a Administracao é a expressdo concreta da Administracao Publica. Logo, nao se trata, como supéem esses intérpretes, de conceitos contrapostos, um mais abrangente que 0 outro. Em suma: ao menos para os fins que nos ocupam, Administragao e Administragao Piblica séo sinénimos, donde inexistir, por conta do emprego de uma ou outra expresso, diferenga quanto ao alcance dos efeitos da suspensao e da declaracao de inidoneidade. Isto posto, resta ainda responder a diivida sobre se a imposicfio de uma dessas penalidades por um ente estatal impede ou nao 0 atingi- do de licitar e contratar com todos os demais. LJ ‘Mas 0 problema é 0 total siléncio da lei quanto a abrangéncia dessas sangées, e a circunstancia de o género das normas envolvidas impor a interpretaco restritiva. Dai a necessidade de acolher, como corre- ta, aintelecco segundo a qual o impedimento de licitar s6 existe em relacéo & esfera administrativa que tenha imposto a sancfo. Adotar posigo oposta seria obrigar alguém a deixar de fazer algo (isto é, deixar de participar de licitagao, deixar de contratar) sem lei especi- fica que o imponha, em confronto com o principio da legalidade que, especialmente em matéria sancionatéria, deve ser entendido como da estrita legalidade. 38 A Desconsideracdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Em resumo: em face do contetido da Lei n° 8.666/93 nao ha como sustentar, seja em relacdo a suspensao, seja em relacdo a declarac4o de inidoneidade, que a sanc4o aplicada por um ente federativo reper- cuta nas licitagdes e contratag6es de outro. ‘Mas uma questo ainda permanece: a da repercussio dessas penali- dades nas licitagdes e contratagdes das diversas entidades do mesmo. ente federativo. Quanto a esse tépico, deve-se atentar para a circunstancia de o art. 87, § 32, da Lei n® 8.666/93, haver reservado a agentes politicos (Mi- nistros, Secretarios de Estado ou de Municipio), com exclusividade, a competéncia para decretar a inidoneidade de empresa. Logo, essa pena néo estd disponivel para os dirigentes ou servidores de pessoas da Administracdo indireta, os quais deverdo, se apurada falta que as justifique, encaminhar o assunto para deciso dos agentes apontados. A indicagao de agentes politicos como competentes tem dois senti- dos. De um lado, reservam-se san¢6es graves a autoridades de maior porte, com isso protegendo os particulares contratados pela Admi- nistragao. De outro, viabiliza-se a extensao dos efeitos da sancao a todos os entes da mesma Administrac4o Publica (federal, estadual, distrital ou municipal, conforme o caso). Assim, a sancao de inidoneidade para licitar e contratar com a Administrac&o deve ser imposta por agentes politicos da Unido, estado, Distrito Federal ou municfpio, impedindo a contratacao ou habilitacdo do apenado pelos entes administrativos (Adminis- tracdo direta, autarquias, fundagdes governamentais ¢ empresas estatais) da mesma unidade federativa respons4vel pela aplicacao da penalidade, e apenas por eles. Jé para a pena de suspensdo tempordria da participacdo em certame licitatério e de impedimento de contratar, a Lei n° 8.666/93 nao es- tabelece a centralizacéo, nos agentes politicos, da competéncia para sua imposicao. Assim, esse poder espalha-se pelos diversos érg4os da Administracao direta e pelos variados entes da Administracao in- direta. Mas, em contrapartida, coerentemente com 0 carter menos grave dessa pena, seus efeitos se restringem &s licitagées e contrata- Ges do érgao ou pessoa estatal que a aplicar. Resumindo entfo as conclusdes que podem ser sacadas da Lei n® 8.666/93: a) fato de uma empresa haver sido atingida pelas penas do art. 87, incs. IIT (suspensdo) ou IV (declaragéo de inidoneidade), aplicada por érgao/entidade de certo ambito federativo, no a impede de participar de licitagio ou de contratar com érgfo ou entidade de outro ambito federativo (isto é, de outro munici- pio, de outro estado, da Unio, conforme o caso). ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10,520/02 e demais Legislacées Vigentes 39 b) _O fato de uma empresa ser atingida pela pena do art. 87, inc. IV (declaragao de inidoneidade), a impede de participar de licitagdes ou contratagées de todos os érgios ou pessoas do ente federativo que a puniu (ex.: a declaracéo de inidoneida- de de certa empresa pelo Governador de Sao Paulo inviabiliza sua contratag4o por qualquer érgao ou pessoa da Administra- 40 paulista, direta e indireta). ©) O fato de uma empresa sofrer a aplicaco da san¢do prevista no art. 87, inc. III (suspensao temporsria da participacdo em lici- tagGes e contratagées), s6 inviabiliza sua contratac4o pelo mes- mo 6rgo ou pessoa juridica que a puniu."* Nessa mesma linha de entendimento vale trazer a pelo o Egrégio Tribunal de Contas da Uniao: Existem duas interpretagdes possiveis para o dispositivo: a de que 0 termo “administragao” refere-se apenas ao érgao que aplica a pena- lidade e aquela que o DNER apresenta em sua justificativa, de que o impedimento abrangeria todos os érgios da Administragao Pablica na esfera do érgio sancionador. O responsavel traz em sua defesa a tese do administrativista Marcal Justen Filho. Nao é esse 0 entendimento do Tribunal, conforme podemos obser- var nas DecisGes 369/99, 226/00 e 352/98 do Plenario. Desta ultima proferida no Processo TC 017.801./95-8, destaco trés fortes argu- mentos para combater a tese acima: As sangGes elencadas no art. 87 da Lei 8.666/93 encontram-se em escala gradativa de gravidade: adverténcia, multa, suspensio do di- reito de licitar e declaragéo de inidoneidade. Percebe-se a intencao do legislador de distinguir as duas dltimas figuras, de forma a per- mitir ao administrador que penalize uma falta ndo t4o grave apenas com a suspensio do direito de licitar e contratar com a Administra- 40, por prazo n&o superior a dois anos. Por outro lado, a sano mais grave seria declarar 0 licitante inidéneo para contratar com a Administra¢4o Publica. O legislador utilizou os conceitos da prépria Lei, art, 6%, incisos XI ¢ XI, para definir a abrangéncia das duas san- es: a primeira aplica-se apenas 4 Administracdo como érgio, enti- dade ou unidade administrativa que atua concretamente, e a segun- da aplica-se a administragdo direta e indireta da Unido, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municfpios. % SUNDFELD, Carlos Ari. A abrangéncia da declaragdo de inidoneidade e da suspensiio em participagao em licitagdes Doutrina 240/169/MAR./2008. Disponivel em: Acesso em: 5.4.2012. 40 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires Tais dispositivos cuidam de restri¢ao de direito, pelo que devem ser interpretados de forma restritiva. Nao se permite estender a lei pe- nal, aplicd-la por analogia ou paridade, reprimindo agées e aplican- do penas sem fundamento especifico e prévio. A impropriedade de termos ou lapso na redagéo no se presume, deve ser demonstrada cabalmente, sob pena de praticar a injustica. O art, 97 da Lei comprova a diversidade de abrangéncia das suas sangGes, suspensio do direito de licitar e declarago de inidoneida- de. E crime admitir & licitagao ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidéneo, para a qual existem penas de deten- Gao de 6 meses a 2 anos e multa. Essa constatagao ratifica o enten- dimento de que o impedimento de licitar ou contratar com alguém apenado com a sangio do art. 87, inciso III, restringe-se ao érgio ou entidade que aplicou a sango, j4 que nao hé quaisquer ébices a que outros érgéos venham fazé-lo."* Enfatize-se, ainda, que o entendimento expressado no decisério sobredito € voz corrente no Tribunal de Contas da Unido, & vista de outras decis6es com igual escélio.¥* De outra parte, o Superior Tribunal de Justiga em reiteradas decisdes tem en- tendido a questo de maneira diversa, nao fazendo qualquer distincao entre as pe- nas de suspensio e declaracao de inidoneidade: ADMINISTRATIVO. SUSPENSAO DE PARTICIPACAO EM LI- CITACGOES. MANDADO DE SEGURANGA. ENTES OU OR- GAOS DIVERSOS EXTENSAO DA PUNICAO PARA TODA A ADMINISTRAGAO. 1. A punigao prevista no inciso Ill do artigo 87 da Lei n? 8.66/93 nao produz efeitos somente em relacio ao érgdo ou ente federa- do que determinou a punigao, mas a toda a Administragao Piiblica, pois, caso contrério, permitir-se-ia que empresa suspensa contratas- se novamente durante o perfodo de suspensio, tirando desta a efi- cacia necessaria. 2, Recurso especial provido.” “| BRASIL. Tribunal de Contas da Unido. Decisao n° 36/2001 do Plendrio do TCU. “© Tribunal de Contas da Unido, em consonancia com os Acérdaos 1.727/2006, da 1? Camara e Acérdao 1? 842/2005, jé determinou ao INCRA/PB ¢ FUNASA/PB, respectivamente, que se abstivessem de estabele- cer em seus editais de licitagao a vedacao de participagao de licitantes que tivessem sido apenadas com a sus- pensio do direito de licitar, salvo na hip6tese de que referido ato fosse imposto pelo realizador do conclave. "BRASIL. Superior Tribunal de Justica. RESP 174.274/SP. Recurso Especial 1998/0034745-3, Relator Mi- nistro Carlos Meira, Orgio Julgador: Segunda Turma, Data do Julgamento: 19.10.2004, DJ 11.2004, p. 294 (rifos no original). ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10.520/02 demais Legislagées Vigentes 41. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANGA. ADMINISTRATI- VO. LICITAGAO. SANCAO IMPOSTA A PARTICULAR. INIDO- NEIDADE. SUSPENSAO A TODOS OS CERTAMES DE LICITA- GAO PROMOVIDOS PELA ADMINISTRACAO PUBLICA QUE E UMA. LEGALIDADE. ART. 87, INC. II, DA LEI 8.666/93. RECUR- SO IMPROVIDO. I-A Administrago Piiblica é uma, sendo, apenas, descentralizado 0 exercicio de suas fungoes. Il - A Recorrente nao pode participar de licitacZo promovida pela Administragao Publica, enquanto persistir a sang4o executiva, em virtude de atos ilicitos por ela praticados (art. 88, inc. I, da Lei 8.686/93). Exige-se, para habilitagao, a idoneidade, ou seja, a capa- cidade plena da concorrente de se responsabilizar pelos seus atos. III — Nao h direito Ifquido e certo da Recorrente, porquanto o ato impetrado 6 perfeitamente legal. IV - Recurso improvido.!® ADMINISTRATIVO ~ MANDADO DE SEGURANCA - LICITACAO - SUSPENSAO TEMPORARIA - DISTINCAO ENTRE ADMINIS- TRACAO E ADMINISTRACAO PUBLICA - INEXISTENCIA - IM- POSSIBILIDADE DE PARTICIPAGAO DE LICITAGAO PUBLICA — LEGALIDADE - LEI 8.666/93, ART. 87, INC. III. ~E irrelevante a distingao entre os termos Administracdo Publica e Administragao, por isso que ambas as figuras (suspensio tempord- ria de participar em licitago (inc. Ill) e declaragao de inidoneidade (inc. IV) acarretam ao licitante a no participagao em licitagées e contratag6es futuras. — A Administragao Piblica é una, sendo descentralizadas as suas fungées, para melhor atender ao bem comum. ~ A limitagao dos efeitos da “suspensao de participagao de licitaga nao pode ficar restrita a um érgio do poder puiblico, pois os efeitos do desvio de conduta que inabilita 0 sujeito para contratar com a Ad- ministragao se estendem a qualquer érgio da Administracao Piiblica. Recurso especial nao conhecido.'? De fato, a matéria € reconhecidamente polémica. Ainda que essa discussdo jé te- nha sido propalada quase & exausto, cabe-nos tecer algumas consideragSes a respeito dos efeitos das penas de suspensao ¢ inidoneidade, para a final tomada de posi¢io. 8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiga. RMS 9.707/PR. Relatora Laurita Vaz ~ Segunda Tarma ~ DJ 20.5.2002 p. 115 (grifos no original) ¥ BRASIL. Superior THbunal de Justica. REsp 151.567/RJ - Relator: Ministro Francisco Peganha Martins ~ Segunda Turma — Dj 14.4.2003, p. 208. 42. A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires Adiantamos, desde logo ao leitor, que em nosso entendimento as penas de sus- pensdo e declaracao de inidoneidade diferenciam-se em razo de seus efeitos. Nesse sentido, passemos, pois, a delinear o nosso pensamento. Um breve examinar da legislacao de regéncia é suficiente para se verificar uma diferenca: a suspensdo temporéria de participac4o em licitac4o e impedimento de contratar refere-se 4 Administrasao, enquanto a declaragao de inidoneidade refere- se 4 Administra¢4o Publica. Nao é demais lembrar as basilares lig¢ées de hermenéutica juridica: a lei nao traz palavras indteis. Agregado a isso, temos, também, que se o legislador quis fa- zer uma diferenca é porque existe uma diferenca. Nessa linha de entendimento, o diferencial apontado encontra-se insculpido no art. 62, incisos XI e XII, ambos da Lei 8.666/93, como, alias, assevera Carlos Ari Sundfeld. Impende, pois, considerar que no inciso XI do art. 6% da Lei 8.666/93 encontra- ‘mos o conceito legal de Administracao Publica, que deve ser entendida como a administracéo direta e indireta da Unido, dos Estados, do Distrito Federal ¢ dos Municipios, abrangendo, inclusive, as entidades com personalidade juridica de direito privado sob controle do poder pi- blico e das fundages por ele institufdas ou mantidas. De sua vez, no que diz respeito ao inciso XII, temos 0 conceito legal de Admi- nistragao, que fica circunscrito ao “érgao, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administra¢ao Publica opera e atua concretamente”. Em linhas gerais, a Administracdo Piiblica deve ser entendida sob a concep¢o mais genérica possivel, abrangendo, pois, a Administragio Publica direta e indireta de qualquer um dos Poderes da Unio, Estados, Distrito Federal e Municipios. Via de consequéncia, é perfeitamente possivel concluir que a declaragao de ini- doneidade faz efeito perante toda a Administracéo Publica, pouco importando se a decisdo foi emitida pelo Munic{pio, Estado ou Unido. Quanto 4 Administragdo, e nos termos do jé aludido inciso XII do art. 6° da Lei 8.66/93, a sua abrangéncia é significativamente menor, eis que restrita ao érgio, entidade ou unidade pela qual a Administragao Publica opera. Calha aqui, por pertinente que é, lembrar que o érgo pubblico nfo passa de uma expresso da estrutura ao qual pertence, como muito bem ensina Rodolfo Carlos Barra ao dizer que “o érgio nasce da organizacao e, por sua vez, a sintetiza. O Orgao 6 uma sintese unitéria da organizacao”.2” 2 BARRA, Rodolfo Carlos Barra. Tratado de derecho administativo: organizacién y funcién publica. La Iglesia Buenos Aires: Editoria Abaco de Rodolfo Depalma. t. 2. p. 111-112. ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10,520/02 e demais Legislacées Vigentes 43 Ainda que diversas sejam as concepgoes doutrinérias sobre 0 érgio puiblico,” é claro que tal figura no se constitui em uma personalidade juridica, Em verdade, © érgao piiblico que, em tiltima andlise, deve ser entendido como uma unidade de competéncia, expressa a vontade da personalidade juridica que integra. Destarte, a pena consistente na suspensdo temporaria de participacdo em li- citagao e impedimento de contratar estaria a fazer efeito perante a pessoa juridica sancionadora, pouco importando qual o Srgao que emitiu tal decisao, vez que, este tiltimo, estd apenas a expressar a vontade da primeira. 3.3.5.2 A questo da competéncia para aplicagao de penalidades A Lei 8.666/93 nao traz maiores subsidios acerca da competéncia para apli- cacao das sancées administrativas. Limita-se a dizer que a sanc4o estabelecida no inciso IV do art. 87 — declara¢do de inidoneidade ~ deve ser aplicada exclusi- vamente pelos Ministros de Estado e Secretérios Estaduais ou Municipais, con- forme o caso. Todavia é impossivel deixar de notar que o legislador, ao estabelecer que a de- clarac&o de inidoneidade fosse aplicada apenas por autoridades superiores do Poder Executivo, outra intengo nao teve, que nao estabelecer uma gradacdo das penas constantes do art. 87, reforcando, inclusive, o nosso entendimento quanto aos efei- tos da pena. De qualquer sorte, vilido é registrar que uma vez fixada a competéncia para aplicacdo da pena de inidoneidade, figurando como sujeito ativo agentes politicos, retirou-se dos demais agentes ptiblicos considerdvel parcela de poder. Quanto as demais penalidades, a Lei de Licitagdes e Contratos nao estabelece a competéncia para tanto. A esse respeito Lucas Rocha Furtado professa: Distinguem-se a suspensdo temporaria e a declaracdo de inidoneida- de em razo dos seguintes aspectos: 1. A suspensao temporaria pode ser aplicada, conforme disponha normativos internos do érgo ou entidade contratante, por qualquer gestor; a declaracdo de inidoneidade somente poderé ser aplicada por Ministro de Estado ou por autoridade equivalente.” 2) MARIENHOFE Miguel. Tratado de derecho administrativo. 4. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot. 1990. tomo 1, p. 517 e $19. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 144. MEDAUAR, Odete. Direita administrativo moderna. 16. ed. rev., atual. ¢ ampl. de acordo com a lei do regime diferenciado de ccontratagdes piblicas - RDC ~ Lei 12.462/2011. S40 Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 61. 2 FURTADO, Lucas Rocha, Curso de licitagdes ¢ contratos administrativos, p. 400. 44 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires Esse também é o entendimento de Ronny Charles Lopes de Torres. O autor as- severa que a “suspensio pode ser aplicada pela autoridade responsével pelo proce- dimento”.> Sem embargo, as demais penalidades poderao ser aplicadas por outros agentes piblicos, sem prejuizo da hipétese de os Ministros e Secretarios estaduais ou mu- nicipais aplicarem, de igual modo, a adverténcia, multa e suspensio.** Por tiltimo, ‘observamos apenas que a competéncia para a aplicacfo das sangdes, em exame, de- verd estar determinada no instrumento convocatério e no contrato, para que inexis- ta qualquer divida. 3.3.5.3 O lapso temporal da suspensdo e declaracao de inidoneidade Mais uma vez, examinando o art. 87 da Lei 8.666/93, constamos, desde logo, que a suspensdo temporaria de participa¢4o em licita¢do e impedimento de contra- tar com a Administragao nao pode superar prazo superior a dois anos. Em outro dizer, o prazo maximo de vigéncia da referida pena é de dois anos. De sua vez, o mesmo dispositivo legal nao estabelece prazo mAximo para a de- claracdo de inidoneidade. Limita-se a fixar que a pena em questo deveré perdurar enquanto os motivos determinantes da puni¢ao se fizerem presentes ou até que seja promovida a reabilitacao, perante a autoridade que aplicou a sancao, que sera concedida desde que decorrido o prazo de 2 anos e ressarcida a Administrago dos prejuizos eventualmente por ela suportados. Com relacao a questao do ressarcimento dos prejuizos causados 4 Adminis- tragao é preciso ter cautela, posto que nem sempre existirao prejuizos a ensejar ressarcimento. Logo, nessa hipétese a reabilitacdo dependerd exclusivamente do decurso do lapso temporal de dois anos, como, alids, ja nos posicionamos ante- riormente.”* % DE TORRES, Ronny Charles Lopes. Lei de licitaydes publicas comentada, 3. ed. rev. amp. e atual. Bahia: Sal- vador: Juspodivm, 2010. p. 376. * Hely Lopes Meirelles com muita propriedade observa: “No nosso entender, a esses agentes piblicos deve também caber a competéncia para a pena de suspensao a ser prevista em lei, pois nao se compreende e niao é razoavel termos agente com autonomia administrativa para aplicar pena de inidoneidade e nao termos para pena semelhante, como a suspensio.” MEIRELLES, Hely Lopes. Licitago e contrato administrativo, p. 337. 2% Mareal Justen Filho ensina: “Existem condutas graves que néo produzem danos ao patriménio piiblico ‘mas que comportam punicéo severa. Suponha-se, por exemplo, a falsificac4o de documentos indispenséveis & participaco em licitaglo. A descoberta da pratica da ilicitude poderia acarretar a declaracao de inidoneidade, pressupondo-se, é claro, que assim estivesse cominado em lei (Comentarios a lei de licitapBes e contratos advinis- trativos, p. 896). ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10,820/02 e demais Legislacées Vigentes 45 3.3.6 O impedimento de licitar e contratar com a Uniao, Estados, Distrito Federal ou Municipios O art. 7%, da Lei 10.520/02, estabelece a hipdtese de penalizagao para aquele que, quando convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, nao celebrar ocontrato, deixar de entregar ou apresentar documentagdo falsa exigida para o cer- tame, ensejar o retardamento da execucao de seu objeto, ndo mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execugao do contrato, comportar-se de modo inidéneo ou co- meter fraude fiscal. O dispositive em foco, nos casos supramencionados, ensejam a aplicagao da sangdo de impedimento de licitar e contratar com a Unido, Estados, Distrito Federal ou Municipios e o descredenciamento no SICAF, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4° da Lei 10.520/02, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem preju{zo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominagées legais. Nao ha dtividas de que o impedimento de licitar e contratar com a Unido, Esta- dos, Distrito Federal ou Municipios pelo periodo de até cinco anos é pena gravissi- ma, que pode levar qualquer empresa 4 quebra. Em que pese tal fato, a Lei 10.520/02 nAo disciplinou com maiores detalhes a aplicagao da pena sobredita. Entretanto o art. 9°, do mesmo diploma legal, estabe- Jece com hialina clareza a aplicacao subsididria A Lei 8.666/93. Nesse diapasio, e tratando-se da imposicdo de pena de natureza gravissima, co- mungamos da opinido de Vera Scarpinella no sentido de que a pena somente poderé ser imposta por agentes politicos (Ministros de Estado, Secretdrios Estaduais e Mu- nicipais), na forma do que dispée o art. 87, inciso IV, da Lei 8.666/93, observado 0 contraditério e ampla defesa que, mais & frente, estaremos abordando.?* Porém, ainda que se possa aplicar subsidiariamente a Lei 8.666/93, notada- mente o art. 87, inciso IV, necessario se faz deixar claro, curialmente claro, que o impedimento de licitar e contratar previsto no art. 7# da Lei 10.520/02 é pena com- pletamente distinta da declaragao de inidoneidade, e com ela nao se confunde. No que diz respeito abrangéncia da pena, mais uma vez nos deparamos com divergéncias doutrindrias. Joel de Menezes Niebuhr ensina que o art. 7° da Lei 10.520/02, ao dispor sobre a amplitude da sangao administrativa, utilizou a con- jung&o alternativa “ou” o que significa que o impedimento de licitar e contratar abrangeria unicamente o ente federativo que aplicou a penalidade” 2 SCARPINELLA, Vera. Licitagdo na madalidade de prego: Lei 10.520, de 17 de julho de 2002. So Paulo: Ma- Iheiros, 2003. p. 165. 2 NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregdo presencial e eletrOnico. 3. ed. Curitiba: Zénite, 2005. p. 232. 46 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagées Pablicas + Pires Vera Scarpinella, em posigo diametralmente oposta, e discordando de Carlos Ari Sundfeld, afirma que nao faria sentido que o impedimento de licitar e contratar com a Administra¢ao Publica abarcasse determinada esfera administrativa e outra nao. Nas palavras da autora: nao faz sentido que o impedimento de contratar com a Administra- Go Piiblica seja valido para uma especifica esfera administrativa e para outra no. O licitante que cometer quaisquer das infragdes pre- vistas no art. 7° da lei e for sancionado por um dado Municipio, por exemplo, carrega consigo a sangao para quaisquer outros pregées de que pretenda participarem todas as esferas administrativas.”* Comungamos da mesma opiniao de Vera Scarpinella, entendendo que a pena de impedimento de licitar e contratar abrange toda a Administracao Pabli- ca. Quando o legislador utilizou-se da conjungao “ou” ao mencionar as pessoas politicas que poderiam aplicar a pena em apreco, no o fez com a intencdo de restringir a abrangéncia da sancao a determinada esfera de poder, mas téo so- mente corrigir um erro da lei de licitagdo que se utiliza da terminologia Admi- nistragéo/Administragao Publica, semeando diividas quanto a edicao da pena praticada pelos poderes legislativo ou judicidrio. Insta discutir, ainda, uma questo que ora ou outra € suscitada: considerando que a pena de impedimento de licitar e contratar é distinta daquelas insculpidas no art. 87 da Lei 8.66/93, seria possfvel a aplicacdo dessa pena a contratos decorren- tes de outras modalidades, que nfo o pregio? Pensamos que nao! Trata, pois, o art. 7° da Lei 10.520/02, de norma especifica, estabelecendo uma san¢do decorrente das licitacGes na modalidade de pregao. Desse modo, nao enten- demos possfvel que empresa participe de licitacio, na modalidade de pregao, seja apenada com a declaraco de inidoneidade ou suspensio temporéria do direito de licitar, ainda que a parte final do dispositivo estabeleca a possibilidade de multa e demais cominac6es legais. ‘A bem da verdade, a parte final do dispositivo propicia 4 Administrago a pos- sibilidade de sancionar aquele que incorrer em ilicito nas penas de adverténcia e multa de mora, afora a gravissima pena de impedimento de licitar e contratar. Até porque nao haveria sentido em aplicar a suspensdo ou a declarao de inidoneidade quando a lei de regéncia do pregdo estabelece pena especifica para ilicitos conside- rados de natureza grave pelo legislador. Nesse mesmo passo, também no haveria sentido de cumular as penas de sus- pensio, inidoneidade e impedimento de licitar, haja vista que as trés sang6es es- tariam a restringir o direito de licitar e contratar, pelo que entendemos indevida a sobreposicao de penas. 3 SCARPINELLA, Vera. Licitago na modalidade de pregdo: Lei 10.520, de 17 de julho de 2002. p. 165. ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10,520/02 e demais Legislacées Vigentes 47 3.3.7 As penas restritivas do direito de licitar e contratar nos demais diplomas leg; A questio das penas restritivas de licitar e contratar sao significativamente re- levantes para o Estado. Em razo disso, outros diplomas legais, que no somente a legislacao especifica de licitacdes e contratos, preveem, explicitamente a aplicacao de sangGes para aqueles que cometeram ilicitos capazes de afast4-los das contrata- ges puiblicas. A Lei de Improbidade Administrativa, Lei 8.429/92, em seu art. 12, incisos Ia Ill, estabelece sanco restritiva do direito de licitar e contratar: Art. 12. Independentemente das sanges penais, civis e administra- tivas previstas na legislacdo especifica, esté o responsavel pelo ato de improbidade sujeito as seguintes cominagées, que podem ser aplica- das isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fat 1—na hipétese do art. 98, perda dos bens ou valores acrescidos ili- citamente ao patriménio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da fun¢ao piiblica, suspenso dos direitos politicos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até trés vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibigéo de contratar com o Poder Publico ou receber beneficios ou incentivos fiscais ou crediticios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa juridica da qual seja sdcio majoritario, pelo prazo de dez anos; Il—na hipétese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patriménio, se concorrer esta circunstancia, perda da fungao ptiblica, suspensao dos direitos politicos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibi¢ao de contratar com o Poder Publico ou receber beneficios ou incentivos fiscais ou crediticios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurfdica da qual seja sdcio majoritario, pelo prazo de cinco anos; III —na hipétese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se hou- ver, perda da funcdo pitblica, suspensao dos direitos politicos de trés a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remunerasio percebida pelo agente e proibicdo de contratar com 0 Poder Ptiblico ou receber beneficios ou incentivos fiscais ou credi- ticios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa juridica da qual seja sécio majoritério, pelo prazo de trés anos. Lembramos que as medidas punitivas constantes da Lei de Improbidade Ad- ministrativa sero proferidas pelo Poder Judiciério, quando do julgamento de aco civil piblica. 48 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagées Piblicas + Pires De qualquer modo, vale registrar que as sang6es estabelecidas no diploma legal em exame so de berco constitucional, nos termos do art. 37, § 42, de nos- sa Lei Fundamental. Assim, ficou estabelecido que os atos de improbidade ad- ministrativa importarao na suspensio dos direitos polfticos, na perda da fun¢gao publica, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erario, sem prejuf- zo de aco penal especifica. ‘Ainda que se possa dizer que a proibicdo de contratar com o Poder Piiblico nao se encontra prevista no aludido § 4%, do art. 37, da Constituico Federal e, portan- to, poder-se-ia inquin4-la de inconstitucional, nao é esse o entendimento corrente. Entende-se que o dispositivo constitucional em exame reporta-se a um rol exempli- ficativo e nao taxativo.” De sua vez, a Lei Organica do Tribunal de Contas da Unido, Lei 8.443/92, em seu art. 46, determina a possibilidade de a Corte de Contas declarar a inidoneidade de licitante, pelo perfodo de até 5 anos, a saber: Art. 46. Verificada a ocorréncia de fraude comprovada & licitaco, 0 Tribunal declarard a inidoneidade do licitante fraudador para partici- par, por até cinco anos, de licitacao na Administrago Pablica Federal. E bom que se diga, desde logo, que a pena de inidoneidade prevista no art. 46 da Lei 8.443/92 em nada se confunde com aquela prevista no art. 87, IV, da Lei 8.666/93, diferenciando-se em razdo do prazo, na medida em que a primeira prevé a possibilidade de apenamento pelo perfodo de até 5 anos, de competéncia do Tri- bunal de Contas da Unido, e a segunda em lapso temporal minimo de 2 anos, de competéncia da Administracao contratante.2° » Wallace Paiva Martins Jiinior, com sustentéculo em doutrinadores de nomeada, observa: “Ampliando lici- tamente a previsdo constitucional, a Lei Federal nt 8.429/92, ainda estipula duas outras sangSes de reforcado cardcer moral ao agente piblico, beneficiério e participe: o pagamento de multa civil ea proibigao de contratar com 0 Poder Pablico e receber beneficios ou incentivos fiscais ou crediticios. Ha suficiente respaldo consti- tucional nessa ampliagao. De ordinrio, somente & legislagao infraconstitucional compete o estabelecimento de sangoes ou penalidades contra o ato ilicto. O art. 37, § 4", da Constituicao Federal ¢ norma formalmente constitucional, dado que o moderno constitucionalismo é analitico. Nenhum ébice se apresenta a legislacéo infraconstitucional para estabelecer outras sancées a0 ato ilfcito. Juarez de Freitas observa que as sancdes previstas na Constitui¢éo so principais, mas 0 art. 37, § 48, remete A legislacio infraconstitucional a repres- 840 da improbidade administrativa ‘em tragos néo taxativos’. José Antonio Lisboa Neiva explica que ‘a Cons- tituigéo Federal estipulou algumas consequéncias em caso de comprovacao da improbidade administrativa, em rol exemplificativo, mas nao teve o objetivo de exaurir todas as providencias punitivas, razdo pela qual a inclusdo de outras cominagGes seria compativel com o texto constitucional” (Probidade administrativa, 4. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2009. p. 370). % BRASIL. O Superior Tribunal Federal assim jé decidiu: “Conflito de atribuicdo inexistente: Ministro de Estado dos Transportes ¢ Tribunal de Contas da Uniao: area de atua¢ao diversas e inconfundiveis. 1. A atuagao do Tribunal de Contas da Unido no exercicio da fiscalizacéo contabil, financeira, orgamentéria, operacional ¢ patrimonial das entidades administrativas nao se confunde com aquela atividade fiscalizatéria realizada pelo préprio érgio administrative, uma vez que essa atribuico decorre do controle interno insito de cada Poder e aquela, do controle externo a cargo do Congresso Nacional (CE, art. 70). 2. © poder outorgado pelo legis- lador a0 TCU, de declarar, verificada a ocorréncia de fraude comprovada 8 licitaglo, a idoneidade do licitante ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10,520/02 e demais Legislacées Vigentes 49 A Lei 9.504/97, que estabelece normas para as eleigdes, em seu art. 81, estabe- lece a hipétese de proibigdo de participagdo em licitag6es e celebragdo de contratos administrativos para aqueles que fizerem doagées e contribuigdes além do permi- tido em Lei: Art. 81, As doagGes e contribuigées de pessoas juridicas para cam- panhas eleitorais podero ser feitas a partir do registro dos comités financeiros dos partidos ou coligacoes. § 1° As doagées e contribuigées de que trata este artigo ficam limita- das a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior & eleicao. § 2 A doagdo de quantia acima do limite fixado neste artigo sujeita a pessoa juridica ao pagamento de multa no valor de cinco a dez vezes a quantia em excesso. § 3° Sem prejuizo do disposto no pardgrafo anterior, a pessoa juridi- ca que ultrapassar o limite fixado no § 1° estarA sujeita 4 proibicao de participar de licitag6es ptiblicas ¢ de celebrar contratos com 0 Po- der Publico pelo perfodo de cinco anos, por determinagao da Justica Eleitoral, em processo no qual seja assegurada ampla defesa. A proibicdo de participar de licitagdes ptiblicas e celebrar contratos com o Po- der Publico, prevista na legislagao eleitoral, reveste-se de circunstancias um pouco diferentes daquelas estatuidas pela Lei de Improbidade Administrativa pela Lei Organica do Tribunal de Contas da Unido Federal. Note-se que a aludida pena somente poderé ser proferida em processo de com- peténcia da justica federal, em razo de ilicito eleitoral.” Nao podemos deixar de fraudador para participar, por até cinco anos, de licitago na Administrago Pablica Federal (art. 46, da Lei n® 8443/1992), no se confunde com 0 dispositivo da Lei de LicitagSes (art. 87), que — dirigido apenas aos, autos cargos do Poder Executivo dos entes federados (§ 3°) -é restrito ao controle interno da Administragao Pablica e de aplicacao mais abrangente. 3. Nao se exime, sob essa perspectiva, a autoridade administrativa sujeita 20 controle externo de cumprir as determinacao do Tribunal de Contas, sob pena de submeter-se as sang6es cabiveis, 4. Indiferente para a solucdo do caso a discussto sobre a possibilidade de aplicagao da sangao ~ genericamente considerada - pelo Tribunal de Contas, no exercicio do seu poder de fiscalizacio, & passivel de questionamento por outros meio processuais (AgR 3.606/DF, STE, Rel. Min. Septiveda Pertence. Pleno, ‘unfnime, DOU 27.10.2006) 3! “QUESTAO DE ORDEM. REPRESENTACAO. ELEICOES 2010. DOACAO DE RECURSOS DE CAMPA- NHA ACIMA DO LIMITE LEGAL, PESSOA JURIDICA, PEDIDO DE LIMINAR. INCOMPETENCIA DO TSE. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZO COMPETENTE. 1. A competéncia para processar ¢ julgar representaco por doacio de recursos acima do limite legal & do jufzo ao qual se vincula o doador, haja vista que a procedéncia ou improcedéncia do pedido no alcanca 0 conatério. 2. BRASIL. Nos termos do art. 81, § 38, da Lei 9.504/97, a aplicagao das sangdes nele previstas pressupée que ilicito eleitoral seja reconhecido em processo no qual se assegure a ampla defesa, o que ocorrerd em sua plenitude se a representagio for julgada pelo juizo eleitoral do domicflio do doador. 5O A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires observar que a pena prevista no art. 81, § 3°, da legislagao eleitoral, seré totalmente indcua se a empresa no participar de licitacdes. Também nao podemos esquecer da Lei 9.605/98, que dispoe sobre sangdes penais e administrativas decorrentes de condutas e atividades lesivas ao meio am- biente. O art. 72, § 8°, inciso V, do diploma legal em comento, é cristalino ao esta- belecer a proibigo de contratar com a Administracao Piiblica, pelo periodo de até 3 anos, a saber: Art. 72. As infragdes administrativas so punidas com as seguintes sangées, observado o disposto no art. 6 (.] § 8° As sangGes restritivas de direito so: El \V - proibicao de contratar com a Administracao Publica, pelo perio- do de até trés anos. Verifique-se que a pena sobredita deveré acontecer sob a égide do regime juri- dico administrativo, exigindo, portanto, a instauragdo de regular proceso adminis- trativo, com observancia do contraditério e ampla defesa.*? 43. BRASIL. Questo de ordem resolvida no sentido de nao conhecer da representagao e determinar re- messa dos autos ao juiz eleitoral competente” (Processo 981-40.2011.600.0000 - Representagao n? 98.140 — Brasilia/DF — Acérdao de 9.6.2011, Rel. Min, Fétima Nancy Andrighi — grifos no original). SAO PAULO (Estado) regulamentou a matéria mediante a edico do Decreto 54.704/09. Artigo 1* Sao competentes para aplicar a sango de proibi¢éo de contratar com a Administragdo Pablica estadual pelo periodo de até 3 (trés) anos, estabelecida no artigo 72, § 8°, inciso V, da Lei Federal n® 9.605, de 12 de fevereiro de 1998: 1-0 Secretério do Meio Ambiente; Ilo Diretor-Presidente da CETESB - Companhia Ambiental do Estado de So Paulo; Pardgrafo tinico. A competéncia fixada por este artigo poderd ser delegada no ambito do érgao ou entida- de respectiva, mediante ato especifico publicado no Dirio Oficial do Estado. Artigo 2° A penalidade a que alude o artigo 1* deste decreto: 1 poderd ser aplicada isolada ou cumulativamente com outras sangGes decorrentes de infrages adminis- trativas ambientais, assegurado o direito a ampla defesa e 20 contraditério; I seré formalizada por despacho motivado, publicando-se no Diario Oficial do Estado extrato contendo 0 seguintes elementos: 4) origem e miimero do processo em que foi proferido o despacho; ') prazo do impedimento para contratar com a Administragao Pablica estadual; ©) fiundamento legal da sangdo aplicada: ) nome ou razAo social do punido, com o niimero de sua inscrigo no cadastro da Secretaria da Receita Federal do Brasil Artigo 3° Apés o julgamento dos recursos ou transcorrido o prazo sem a sua interposicao, a autoridade competente para aplicacio da sancfo providenciaré a sua imediata divulgacio no s{tio sistema eletrOnico de registro de sang6es, inclusive para o bloqueio da senha de acesso a Bolsa Eletrni- ‘As Sang6es Decorrentes da Lei 8.666/93 ¢ Lei 10.520/02 demais Legislagdes Vigentes 51. A propésito, em que pese o fato da legislagao prever a proibicao de contratar com o poder puiblico, nao temos dtividas de que essa restricdo estende-se ao proces- so licitatério, até porque nao haveria sentido de uma empresa encontrar-se proibida de contratar, por forca da legislacdo eleitoral, que pudesse participar do certame e, apenas por ocasiao da celebracio do contrato, fosse obstada de assind-lo. Doutra parte, a Controladoria Geral da Unido, em razao do art. 18, § 19, da Lei 10.683/03, detém competéncia para a aplicacdo de penalidade administrativa, em razo de omissdo da autoridade competente, a saber: Art. 18. A Controladoria-Geral da Unido, no exercicio de sua compe- téncia, cabe dar o devido andamento as representagbes ou dentincias fundamentadas que receber, relativas a lesdo ou ameaca de lesdo a0 patriménio pablico, velando por seu integral deslinde. § 1° A Controladoria-Geral da Unido, por seu titular, sempre que constatar omissao da autoridade competente, cumpre requisitar a ins- tauragdo de sindicancia, procedimentos e processos administrativos outros, e avocar aqueles jé em curso em érgio ou entidade da Admi- nistrago Pablica Federal, para corrigir-lhes 0 andamento, inclusive promovendo a aplicagao da penalidade administrativa cabivel. O art. 18, § 12, da Lei 10.683/03, é bastante claro ao conferir competéncia Controladoria Geral da Unido para a utilizacdo da figura juridica da avocacdo, na hipdtese da autoridade competente para aplicacao de sangGes se omitir em cumprir tal desiderato. Contudo, no nosso sentir, no é caso de avocagao. Avocagao importa na possi- bilidade da autoridade superior chamar para si as fungGes originalmente atribuidas ao seu subordinado.”* Nesse sentido, inexistindo subordinagao hierarquica entre a Controladoria Ge- ral da Unido com os Ministérios subordinados a Presidéncia da Republica, enten- demos que nao se trata da avocacao, mas de verdadeira impropriedade legislativa. ca de Compras do Governo do Estado de Sao Paulo ~ Sistema BEC/SP e aos demais sistemas eletrdnicos de contratasao mantidos por 6rgios ou entidades da Administragao Publica estadual. Artigo 4: A aplicagéo da sangéo indicada no artigo 1* deste decreto impede a contratacio do infrator, por ‘érgfos ou entidades da Administracdo Paiblica estadual, enquanto perdurarem os efeitos da punicéo. Attigo 58 O Secretério do Meio Ambiente e o Diretor-Presidente da CETESB poderdo expedir normas complementares para orientacfo das agdes a serem adotadas no cumprimento das disposig6es deste decreto. Artigo 6¢ Este decreto entra em vigor na data de sua publicacZo. Paldcio dos Bandeirantes, 21 de agosto de 2009 JOSE SERRA MBIRELLES, Hely Lopes. Licitaydo e contrato administrativo, p. 129. 52_ A Desconsideracdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Finalmente, a Lei 12.529/11, que estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorréncia, dispondo, ainda, sobre a prevencdo e repressio as infracdes contra a ordem econémica, também prevé em seu art. 38, inciso II, sangdo restritiva do di- reito de licitar e contratar: Art. 38. Sem prejuizo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse ptiblico geral, poderao ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumula- tivamente: (1 Il ~ a proibigdo de contratar com instituig6es financeiras oficiais e participar de licitacdo tendo por objeto aquisig6es, alienagées, realizacdo de obras e servicos, concessao de servicos publicos, na administraco piiblica federal, estadual, municipal e do Dis- trito Federal, bem como em entidades da administracao indire- ta, por prazo no inferior a 5 (cinco) anos; (grifo nosso). Tal qual a sangdo decorrente da lei ambiental, a sangao prevista na novel legis- lago do CADE submete-se ao regime juridico administrativo, impondo, pois, a ins- tauragao de processo administrativo, observado o contraditério e a ampla defesa. 4 O Regime Juridico Sancionatério Celso Antonio Bandeira de Mello ensina em seu magistério que sé é possivel falar em uma disciplina juridica em face de um conjunto sistematizado de principios e regras a lhe dar identidade.’ Otto Mayer afirma, com preciso, que o direito do Estado reconhecidamente possui conceitos juridicos fundamentais que Ihes so proprios e que lhe dio um ca- rater diferenciado a sua estrutura interna? Assim, o direito administrativo é regido por regras ¢ principios préprios que o apartam do direito privado, formando o denominado regime juridico administrati- vo. Em outras palavras, a esse conjunto de principios e regras, que formam o regime juridico administrativo, deve se submeter toda a atividade administrativa. Entretanto, hodiernamente, tem-se ouvido, diga-se de passagem, com bastante frequéncia aqueles que defendem a existéncia de um regime juridico sancionatério® Nesse contexto, hd que se indagar a possibilidade de existir dentro de um regime juridico maior um regime juridico menor, especifico para as sancdes administrativas Passemos a expressar 0 nosso pensamento. 1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de diveito administrativo, p. 53. 2 MAYER, Otto, Derecho administrativo alemén. Tomo I, p. 156. 2 FERREIRA, Daniel. Sangdes administrativas, p. 84. 54 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires 4.1 O regime juridico sancionatério no contexto do regime juridico administrativo Jaime Ossa Arbellaez afirma que sé se pode falar em um direito administrativo sancionador em face de um poder punitivo estatal, considerado dentro de um or- denamento préprio que estabeleca, com clareza, as normas processuais, tipifique a falta, precise a dosimetria da pena e consagre um minimo de garantias, tendo em vista que a pena imposta em raz4o da infracéo administrativa nao é mais que uma consequéncia de um ilicito que requer um tratamento similar ao ilicito penal.* De sua vez, Marcelo Madureira Prates observa que atividade sancionadora de- senvolvida pela AdministracZo goza das prerrogativas de autoridade, estando su- jeita aos limites genericamente impostos as diversas manifestacdes dos poderes administrativos, regulada, portanto, pelo direito administrativo e apenas subsidia- riamente influenciada por principios e regras penais que, no dizer do autor, sfo em verdade principios e regras decorrentes do direito ptiblico sancionador. De qualquer modo, a doutrina, de uma maneira ou de outra, com maior ou me- nor intensidade, afirma que as sang6es administrativas guardam certa similaridade com as sang6es de caréter penal. Todavia, certo é dizer que direito penal e direito administrativo sancionador ou repressivo nao se confundem, embora seja possivel verificar semelhancas em seus institutos. Por oportuno, convém salientar que nao estamos a dizer que rechacamos a ideia de unidade do ordenamento juridico,’ mas que estamos a reconhecer a coexis- téncia de diversos regimes juridicos dentro desse ordenamento com caracteristicas proprias de cada um. Posto isto, perfeitamente possivel falar em um regime juridico sancionador no contexto do regime juridico administrativo. Assim, entendemos o regime juridico sancionador como um conjunto de principios e regras regedores da atividade san- cionat6ria, no exercicio da fun¢do administrativa. Com sustentéculo nas consideragdes precedentes, passamos a examinar as ca- racteristicas do regime juridico sancionatério. “ ARBELLAEZ, Jaime Ossa. Derecho administrativo sancionador: una aproximacién dogmatica, p. 126. ° PRATES, Marcelo Madureira. Sango administrativa geral: anatomia ¢ autonomia, p. 39, «NIETO, Alejandro, Derecho administrativo sancionador. 2. ed, Madi: Tecnos, 1994. p. 167. (Diteccién) BAR- DAIL, Joaquim de Fuentes; MINCHOT, Pilar Cancer; PINEDO, Igndcio Pinedo (Coordinacién). GONZALEZ, Idoya Arteagabeitia; CABALLERO Fabiola Gallego. Manual de derecho administrativo sancionador. Tomo I. 2. ed. ‘Navarra: Thomson Reuters Aranzadi. p. 85 ss. + Tércio Sampaio Ferraz Jiinior observa: Bastante importante é a questo do ordenamento como sistema unitério, isto 6, sua concepco como repertério ¢ estrutura marcados por um principio que organiza e man- tém 0 conjunto como um todo homogéneo (Introdugéo ao estuda do direito: técnica, deciso, dominacio. 7. ed. Sao Paulo: Atlas, 2011. p. 177). © Regime Juridico Sancionetério 55 4.1.1 O Estado de direito enquanto principio Independentemente de qualquer disceptac4o doutrinéria, certo é afirmar que Estado e Poder sao ideias indissocidveis.* Com efeito, esse poder estatal constitui- -se no denominado poder politico que sofreu significativas alteragSes com o adven- to das revolugdes americanas e francesas, e respectivas constituicdes decorrentes. ‘A Constituigao norte-americana, primeira constituiga0 moderna, instituiu 0 presidencialismo como forma de governo e 0 federalismo com forma de Estado. Por sua vez, a Franca pés-revolugdo, com vistas a impor rigidas leis que refletissem 0 ideal revolucionario de “igualdade” e “fraternidade”, insculpidos na Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadao, editou uma legislagao de transico, posterior mente substituida pelo Code Civil des Frangais.° Vale registrar que, a partir de entfo, o exercicio do poder politico nao mais se resumia a uma imposigdo de normas a terceiros, mas também a elas se submetia. Nasceu, ent&o, o Estado de Direito que realiza suas atividades sob o manto da Lei. Serd esse Estado de Direito que, no nosso caso, se constitui em um Estado De- mocratico de Direito, que atuaré sob o manto da legalidade, nos termos do art. 1° de nossa Lei Fundamental. Avulta asseverar que o Estado Democratico de Direito deve ser entendido enquanto principio, posto que albergado no Titulo I de nossa Cons- tituigao Federal - Dos Princfpios Fundamentais -, espraiando-se, pois, por todo 0 nosso ordenamento. Entretanto, como muito bem aponta Rafael Munhoz de Mello nao basta a sub- missdo a lei e jurisdigao para caracterizar o Estado de Direito. E preciso examinar a questo pelo aspecto substancial, de modo a se garantir os direitos fundamentais do individuo.” Assim, para a garantia efetiva dos direitos fundamentais, outros princfpios, de maior densidade, sero capazes de evitar a arbitrariedade estatal." * Norberto Boobbio afirma: “aquilo que ‘Estado’ e ‘politica’ tem em comum (¢ é inclusive a razo da sua intercambiabilidade) & a referéncia 20 fendmeno do poder . [...] Por longa tradicao 0 Estado ¢ definido como © portador da summa potestas; ¢ a andlise do Estado se resolve quase totalmente no estudo de diversos pode- +res que competem 20 soberano. A teoria do Estado apoia-se sobre a teoria dos trés poderes (0 legislativo, o executivo, 0 judiciario) e das relagdes entre eles” (Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da politica ‘Tradugao: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 76-77). * GUSMAO, Paulo Dourado. Introdugao ao estudo do diveito. 43. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 309. © MELLO, Rafael Munhoz de. Principios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sangSes admi- nistrativas a luz da Constituigao Federal de 1988. p. 95. 2 José Joaquim Gomes Canotilho grafa, em sintese, que alguns princfpios devem ser considerados prin- cipios constitucionais estruturantes, que seréo densificados por subprincpios (Direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 1099). 56 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires 4.1.2 O principio da legalidade Nao é demais dizer que o princfpio da legalidade deve nortear toda a ativida- de administrativa do Estado. Ruy Cirne Lima j4 apontava em seu magistério que a “Administracao deverd submeter-se ao principio da legalidade, que constitui a regra basica dos atos administrativos.”'? De mesmo pensamento, Garcia de Enterria e Tomas-Ramon Fernandez afir- mam que: a Administracao é uma criagao abstrata do direito e nado uma ema- nag¢ao pessoal de um soberano e atua submetida necessariamente a legalidade, a qual, de sua vez, € uma legalidade objetiva, que se sobrepde a Administragéo e ndo um mero instrumento ocasional.!? A nossa Constitui¢ao, seguindo a doutrina patria e alienigena, tratou da maté- ria ao dispor, em seu art. 5¢, inciso II, que “ninguém ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sendo em virtude de lei”. Em outro giro, somente se pode impor ao particular a obrigagfo de fazer ou nfo fazer determinada coisa, sendo em virtude de lei. No mesmo texto legal, temos ainda, no art. 37, “caput”, a legalidade como um dos vetores da Administracao Publica, direta e indireta, de quaisquer uns dos pode- res da Unido, Estados, Distrito Federal e Municipios, de onde se diz que a Adminis- tragao sé pode fazer aquilo que se encontra previsto em Lei. Disso se pode concluir que a Administracdo somente poderd agir licitamente em consonancia com uma competéncia expressamente determinada em lei. Disso deflui, em outras palavras, que no siléncio da Lei nfo poder a Administragao agir. Ainda que tal entendimento ecoe quase que de forma unanime na doutrina, nao po- demos deixar de registrar as ligdes de Liicia Valle Figueired Todavia, o princfpio da legalidade néo pode ser compreendido de maneira acanhada, de maneira pobre. E assim seria se o administra- dor, para prover, para praticar determinado ato administrativo, tives- se sempre que encontrar arrimo expresso em norma especifica que dispusesse exatamente para aquele caso concreto. Ora, assim como o principio da legalidade é bem mais amplo do que a mera sujei¢ao do administrador a lei, pois aquele, neces- sariamente, deve estar submetido também ao Direito, ao ordena- ® LIMA, Ruy Cirne. Principios de diveito administrativo. 7. ed. rev. e reelaborada por Paulo Alberto Pasqualini. Sfio Paulo: Malheiros, 2007. p. 223. 3 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNANDEZ, Tomds-Ramon. Curso de derecho administrativo, p. 470-471. © Regime Juridico Sancionatério 57 mento juridico, as normas e princfpios constitucionais, assim tam- bém hé de se procurar solver a hipétese de a norma ser omissa ou, eventualmente, faltante.'* No nosso entender, assiste razo a autora, na medida em que o direito se faz no s6 em raz4o da mera literalidade da lei, mas, antes, em razo da interpretaco. Claro esté, todavia, que esse pensamento, nao pode ser concebido de forma absolu- ta, sendo relativizado em cada caso. De qualquer modo, para aquilo que nos interessa, a legalidade representa uma garantia ao administrado, determinando dentre outros, o comportamento que o in- dividuo deve ter, sob pena do cometimento de ilfcito. Marcal Justen observa que “tipificar legislativamente a ilicitude e sua sangao equivale a atribui ao particular a possibilidade de escolha entre o licito ¢ 0 ilicito”.'* Assim, foi com o objetivo de ofertar uma maior garantia ao individuo que o art. 58, inciso XXXIV, da Constituicao Federal ¢ de lapidar clareza ao dispor que “nao h4 crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominago legal”. Em apertada sintese, em matéria penal, esta consagrado que somente a lei & capaz de estabelecer as condutas e penas correspondentes (principio da reserva legal), bem como ser essa mesma lei que deve delimitar detalhadamente a con- duta punivel. Do mesmo modo, o principio da legalidade deve ser concebido no ambito do direito administrativo sancionador. Entretanto, nao podemos descartar a existéncia de lei que venha a estabelecer genericamente uma sancdo. Nessa hipétese, hé que se perquirir se a aplicacdo de pena prevista em lei genérica padeceria do vicio maior de inconstitucionalidade. Segundo nosso pensamento, uma vez estabelecido 0 ilicito e a sancdo, ainda que genericamente, nada obsta que essa lacuna seja preenchida pela edicao de regu- Jamento préprio. Esse posicionamento, entretanto, nao esta a supor que o ato em. comento possa inovar a ordem juridica.'° Perfeitamente possivel sera que o regu- Jamento disponha sobre a matéria, de forma a propiciar a execucdo da sancao. No dizer de Régis Fernandes de Oliveira: % FIGUEIREDO, Liicia Vale. Curso de dreito administrativo, p. 42. 8 JUSTEN FILHO, Marcal. Comentarios a lei de licitagdes e contratos administrative, p. 813. 6 Oswaldo Arana Bandeira de Mello, com propriedade, aborda a questio do regulamento no ordenamen- to patrio: “Assim os regulamentos hao de ter por contetido regras organicas processuais destinadas a pér ‘em execugo os principios institucionais estabelecidas por lei, ou para desenvolver os preceitos constantes, a lei, expressos ou implicitos, dentro da drbita por ela circunscrita, isto é, as diretrizes, em pormenor, por ela determinadas. Nao podem os regulamentos autorizados ou delegados ser elaborados praeter legem, porquanto seu campo de ago ficou restrito a simples execucao de lei” (Princfpios gerais de direito administrativo, p. 370). Sumario Intvodugdo, 1 1 ‘A Norma Juridica e 0 Tiicito, 3 1.1 As diferencas entre ilicitos. 6 12 Coneeito de ilicito administrative, 8 1.3 Oscondicionantes do ilicito administrative, 9 14 As excludentes da ilicitude, 12 A Sancio Juridica, 14 2.1 Assangio nos ordenamentos jurfdicos alienigenas, 15 2.2 Asangio administrativa, 17 2.2.1 Fungao administrativa, 17 2.2.2 Poder administrativo, 18 2.2.3 A fungao administrativa punitiva, 20 23. Assangio administrativa e sua finalidade, 20 24 — Os regimes de sujeicao da sangao administrativa, 22 25 Asancio administrativa enquanto dever, 23 2.6 A questo dos conceitos juridicos indeterminados na sangdo administrativa, 24 As Sangdes Decorrentes da Lei 8,666/93 e Lei 10.520/02 e demais Legislagdes Vigentes, 27 3.1. Aplicagao de sangao pela nao assinatura do contrato, 28 3.2. Multa por atraso na execugio do contrato, 28 3.2.1 A rescisio do contrato prevista no art. 86, § 18, da Lei 8.666/93, 29 3.3. As sangGes previstas no art. 87 da Lei 8.666/93, 30 3.3.1 Adverténcia, 31 3.3.2 Multa, 33 3.3.3 Suspensdo temporiria de participacio em licitagdo e impedimento de contratar com a Administracao, 34 3.3.4 Declaragdo de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administragio Pablica, 35 5B A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Pode ocorrer que a hipétese legal seja bastante ampla e abrangente, de forma a recolher farta possibilidade fatica. Imaginemos lei que dispusesse: o regime disciplinar dos estabelecimentos oficiais de en- sino sera previsto em regimento, podendo ser aplicadas as penas de repreensio, suspensio ¢ expulséo. Com base em tal dispositi- vo legal, a autoridade administrativa ird limitar, via normativa regi- mental, quais as hipéteses de infrag6es possiveis, fixando, entfo, de acordo com a gravidade, as sangOes respectivas.”” Dessume-se, por conseguinte, que nesse caso, a lei contempla competéncia dis- cricionaria, até porque dificilmente o legislador poderia prever todas as hipéteses ‘ou comportamentos posstveis dos administrados. E importante assinalar, portanto, que o regulamento tera por objetivo limitar a margem de discricionariedade do Ad- ministrador Péblico."® Em suma, o principio da legalidade sempre deverd ser observado. 4.1.3 O principio da tipicidade Em razo das consideragdes expendidas quando do exame do principio da le- galidade, hé de se concluir que a reserva legal, no ambito do direito administrativo sancionatério, nao tem a mesma extensao daquele constante do direito penal, visto ser poss{vel a utilizago do regulamento. Aliés, essa hipétese também vem contem- plada no direito espanhol.” Fulcrados, ainda, nos pensamentos precedentes, nao nos é defeso afiancar que © principio da tipicidade ¢ decorrente légico do vetor da legalidade, eis que a descri- a0 do comportamento tido como ilfcito deve constar de lei. Nas palavras de Juan OLIVEIRA Regis Fernandes de. Infragdes e sangées administrativas, p. "Rafael Munhoz de Mello, examinando a questo do regulamento no campo das sangdes administrati- vvas afirma que: “Ao outorgar a Administragao competéncia discricionéria, a lei permite que o agente admi- nistrative complemente a disciplina normativa da matéria, seja definindo normas procedimentais a serem adotadas pelos agentes administrativos, seja complementando conceitos previstos na lei. Nao se est, aqui, criando novos direitos e obrigacGes, mas sim aclarando suas extens6es, complementando-se a diccio legal. Eis af o papel do regulamento administrativo.” Principios constitucionais de direito administrativo sancio- nador (Princfpios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sangGes administrativas a luz da Cons- tituigdo Federal de 1988. p. 118). % PUIG, Manuel Rebollo et al, observam: ‘Afirmado anteriormente, resulta obrigado indicar, ato continuo, que o ambito da reserva de lei no Direito Administrativo sancionador nao tem a mesma extenso que 0 ocu- pado pela reserva de lei no Direito Penal. Com efeito, ¢ uma evidéncia empirica, tal como se discorrerd mais adiante, que o ordenamento espanhol permite, submetido a diversas restricbes ¢ limitagSes, a colaboracéo regulamentar no ambito administrativo sancionador. E dizer que se admite a existéncia de normas sanciona~ doras de classe inferior a classe da lei, ser que isso se constitua uma vulneracao do princfpio da reserva le- gal” (Derecho administrativo sancionador. In: Colecién El derecho admiiserativo en la jurisprudéncia Valladolid: Lex Nova, 2010. p. 117-118). © Regime Juridico Sancionatério 59 Carlos Cassagne: “Uma das principais garantias que possuem os cidadaos e os in- dividuos em geral é moldada pelo principio da tipicidade, que exige que a conduta passivel de punicao seja descrita ou definida por lei.”2° Afora parte isso, e de modo a concretizar 0 principio do Estado de Direito, © atendimento ao principio da tipicidade, em tiltima andlise, também decorre do principio da seguranga juridica, impedindo, pois, que o individuo seja surpreendido com a imposicgo de penalidade, decorrente de um comportamento que no sabia ser proibido.” A todas as luzes, a seguranga juridica se constitui em elemento in- dispensdvel a concretizagao do Estado Democratico de Direito.* Sobremais, néo podemos nos furtar de examinar problema jé mencionado, mas ainda nao discutido com a aten¢do que merece: a quest4o das normas que exigem uma regulamentago para propiciar a correta execucdo da san¢ao. 4.1.3.1 O regulamento A fungao regulamentar exercida pelo Poder Executivo remonta & época do po- der monérquico# Nos dias de hoje, o regulamento tem por objetivo propiciar a fiel execugio da lei. Segundo Roberto Dromi, os regulamentos administrativos se constituem em declaracao unilateral efetuada no exercicio da funco administrativa, produzindo efeitos juridicos gerais em forma direta.* Diégenes Gasparini, examinado a questo do regulamento no Direito Brasilei- ro, observa: O ato que se origina do exercicio da atribuigao regulamentar chama- -se regulamento. Pode, em nosso ordenamento, ser definido como ato administrativo normativo, editado mediante decreto, privativa- mente pelo Chefe do Poder Executivo, segundo uma relagdo de com- patibilidade com a lei para desenvolvé-la.”* 2 CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho administrative. 9. ed. Tomo IL. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2008. p. 588. 2 Frank Moderne grafa que “Apenas uma determinacao precisa dos ilicitos e das sancoes atendem ao requi- sito de seguranca juridica em um Estado de Direito” (Repression administrative et protection des liberteés devant le juge constitutionnel: les legons du Droit Comparé. In: MELANGES, René Chapus. Droit administra tif. Paris: Montchrestien, 1992. p. 423) 2 VALIM, Rafael. O principio da seguranga juridica no direito administrativo brasileiro. Sfo Paulo: Malheiros, 2010. p. 45. 2 VERZOLA, Maysa Abrahio Tavares. Sango no direito administrativo, p. 101 2 DROMI, Roberto. Derecho administrativo, p. 474. 2 GASPARINI, Didgenes. Direito administrativo. 17. ed. revista ¢ atualizada, So Paulo: Saraiva, 2012. p. 56. GO A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Extrai-se da li¢ao do mestre que o regulamento, no direito patrio, somente reine condicées de prosperar, se de execuco, pelo que as suas disposicdes nfo podem ser contra legem ou praeter legem.?° Cumpre notar que é com essa dtica que o art. 84, IV, da Constituiso Federal, estabelece a competéncia privativa do Presidente da Reptiblica para, dentre outros, expedir decretos e regulamentos para a fiel execucao da Lei. Nessa medida, necessério se faz deixar claro que as normas regulamentares no podem superar as disposic&es da lei, no podendo modific4-la ou ab-rogé-la. A cabo de tudo isso, os regulamentos devem obedecer aos limites impostos pela Constitui- Go Federal e pelas leis infraconstitucionais. De qualquer sorte, ainda que exista uma série de rfgidos limites de ordem cons- titucional e legal ao regulamento, temos que concluir que alguma novasio o instru mento normativo em pauta deve trazer. Entretanto nao se p6e a diivida que é preci- so ter cautela. No caso das sangGes, as inovacdes devem ficar restritas 4s questGes de ordem procedimental e de dosimetria da pena. Nas palavras de Daniel Ferreira: Nesse sentido, nao nos esquecemos do contratado pela Administra- ‘40 Publica que, apés firmar o respectivo ajuste, assume, como seus, varios encargos decorrentes do préprio objeto contratual e até entao ndo assim previstos em lei. De igual forma os servidores publicos que, depois de lograrem éxito em concurso puiblico, se submetem indis- cutivelmente ao ‘poder hier4rquico’ proprio desse tipo de situacao, na qual em principio, toda determinaco de autoridade superior, ain- da que verbal, deve necessariamente ser cumprida. Tais deveres ndo decorrem direta e imediatamente da lei, mas de outra norma (juridi- ca) para cuja submissdo houve, em regra, um concurso voluntario. E © seu ndo cumprimento pode dar azo a aplicago de sangGes, desde sempre genericamente conhecidas, mas cuja indicacao precisa pode ter sido feita por instrumento outro que nao a lei (pelo contrato ad- ministrativo ou mediante um regimento interno, respectivamente).” Sobejam motivos para se concluir que o regulamento é imprescindivel para o direito administrativo, na medida em que seria impossivel ao legislador prever to- das as hipéteses necessérias para o regular exercicio da func4o administrativa. » Edmir Netto de Araijo observa que “O direito brasileiro, entretanto, em face do principio da legalidade estrita erigida a nivel constitucional, ¢ particularmente avesso 4 admissio do regulamento autnomo, pri- meito porque o art. 84, IV, da CF, ao mencionar os regulamentos para ‘fiel execugao das leis’ aos auténomos nao se refere, depois porque principalmente apés a Constituicao [...] 0 artigo BRASIL. 24 do Ato Disposigdes Constitucionais Transitérias (ADCT) da carta vigente revogou todos os dispositivos legais que atribuissem, permitissem ou delegassem ao Executivo competéncia do Congreso Nacional, especialmente no que se re- fere 4 aco normativa. Mesmo assim certos autores 0 admitem, especialmente se a matéria de competéncia do Executivo ainda nao foi disciplinada por lei formal, apesar da contradi¢o etimol6gica: uma norma ‘regula- ‘mentadora’ pressupGe uma norma por ela ‘regulamentada’. Mas é pacifico para toda a doutrina, inclusive para autores que admitem o regulamento auténomo, que o decreto regulamentador no pode dispor contra legem ou praeter legem” (Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. € atual. S40 Paulo: Saraiva, 2010. p. 60, grifos do autor). 2” FERREIRA, Daniel. Sangies administrativas, p. 96. © Regime Juridico Sancionatério 61 Todavia, no caso das sangdes administrativas, insistimos: 0 ilfcito e a corres- pondente pena devem estar previstos em lei. 4.1.4 O principio da irretroatividade Quanto ao principio da irretroatividade, nao vislumbramos maiores discepta- 6es doutrinérias ao afirmar que no direito administrativo sancionador proibi- do aplicar sangiio em razdo de fato ocorrido antes da entrada em vigor da norma sancionadora. No direito pétrio, o principio da irretroatividade encontra-se previsto no art. 52, incisos XXXVI e LV da Constitui¢ao Federal, art. 150, III, do Cédigo Tributario e os §§ 12, 2° e 3e do art, 62, da Lei de Introducdo ao Cédigo Civil. Fabio Medina Osério, examinando a questo da irretroatividade da Lei, ensina que: A irretroatividade das leis sancionadoras decorre, em realidade, dos principios da proporcionalidade e da seguranga juridica, ambos de origem constitucional, mostrando-se invidvel interpretar o sistema de modo a sancionar condutas que, antes, ndo admitiam determi- nadas sangées, eram licitas ou no proibidas pela ordem juridica.”* Dessas colocagées conclui-se que nao seria légico e razodvel admitir que lei posterior viesse a sancionar comportamentos ocorridos antes da vigéncia da legisla- 40 sancionadora. E por isso que o principio da irretroatividade da lei impede efei- tos pretéritos, até porque nao haveria sentido de uma lei obrigar surtir efeitos antes mesmo de existir. A lei que se hé de aplicar é aquela vigente no tempo da consumacao dos fatos. Sob esse aspecto, a irretroatividade impede, nao s6 em matéria sancionadora ad- ministrativa, a tipificacdo de infragdes e sangdes ocorridas antes da vigéncia da lei, assim como no direito penal. Deflui, também, do principio da irretroatividade, que lei formal posterior nZo poderd agravar a sancfo jé imposta aquele que cometeu comportamento considera- do ilfcito em determinado lapso temporal. Convém salientar, ainda, que a questo da irretroatividade da lei tem impor- tancia tal que foi incorporada aos tratados internacionais europeus como um dos principios gerais de direito.” 2 OSORIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 266. 2 ARBELAEZ, Jaime Ossa. Derecho administrativo sancionador: una aproximacién dogmatica, p. 299 62 _A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires No direito patrio a irretroatividade da lei também é considerada princ{pio de ordem publica superior.*° Enfatizamos que a irretroatividade da lei é decorrente légico do principio da legalidade, na medida em que é uma garantia do indivi- duo. Anote-se, por fim, que a irretroatividade também decorre do principio da seguranga juridica. 4.1.5 A retroatividade da lei mais benigna Se de um lado a irretroatividade, consoante j4 exposto, 6 uma garantia e uma certeza juridica para o individuo, a questo da retroatividade se afigura polémica conforme acentua Rafael Munhoz de Mello. André Franco Montoro observa que em favor do principio da “retroatividade”, existe uma ponderdvel razo de ordem social: a lei nova deve representar a melhor maneira de re- gular determinada situagao; é razoavel, por isso, que ela se aplique a todos os casos, inclusive retroativamente.** Note-se, todavia, que o autor nao faz qualquer distingao entre a retroatividade das leis penais ou administrativas. °° MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princtpias gerais de direito administrativo, p. 323, 81 Rafael Munhoz de Mello afirma: “Na Itélia a Lei 689/1981 tratou apenas da irretroatividade da lei mais rave, nada dispondo acerca das leis que beneficiam os infratores. Entende a doutrina italiana que nao se tra- ta de uma lacuna, mas sim de uma ‘precisa sclta del legislatore e rflete la convinzione di dover evitare una completa assimilazione delVlecito ammainistrativo a quello penale’ - entendimento compartilhado pela Jurisprudéncia das Cortes Italianas. Jana Espanha 2 Lei 30/1992 expressamente acolhe a retroatividade da lei mais benéfica na seara do direi- to administrativo sancionador dispondo que ‘las disposiciones sancionadoras producirin efecto retroactive en cuanto {favorezcan al presunto infractor’ (art. 128.2). Nao obstante solucionada a questao no campo infraconstitucional, ‘a doutrina sustenta que a garantia ndo esté inserida na Constituico de 1978, que prevé apenas para as nor- mas penais. Logo, a disposicdo ‘puede ser derogada o excepcionada por cualquier outro precepto de rango legal sin que com ello se vulnere la Constitucién.” Na Franca a regra da retroatividade da norma mais benéfica é acolhida pela jurisprudéncia que reconhece, todavia, ‘qu’une disposition législative expresse puisse écarter ou aménager I ‘application dece principe au nom de consi- dérations d’intévét general’. E dizer, o principio nao vincula o legislador ordindrio — 0 que significa que nao tem status constitucional, No Brasil a doutrina majoritaria entende que a lei mais benéfica retroage. fa opiniao de Régis Fernandes, Daniel Fereira, Heraldo Garcia Vitta, Edilson Pereira Nobre Jiénior, Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dall: (Princfpios constitucionais de direito administrativo sancionador. As sangées administrativas @ luz da Consticuigao Federal de 1988. So Paulo: Malheiros, 2007. p. 58) 3 MONTORO, André Franco. Introdugio & ciéncia do direito. 28. ed. rev. ¢ atual. So Paulo: Revista dos Tri- bunais, 2009. p. 445. © Regime Juridico Sancionatério 63 abio Medina Osdrio* e Rafael Munhoz de Mello entendem que no direito administrativo ¢ impossivel a retroatividade da lei. Em linhas gerais os autores assi- nalam que a Constituig&o Federal s6 faz meng&o & retroatividade em sede de direito penal, o que impossibilita a sua extensdo para o direito administrativo. Quanto a nés, encontramo-nos dentre aqueles que entendem possivel a retroa- tividade da lei, em raz&o do advento de norma mais benigna. E de se verificar que o nosso ordenamento, em princfpio, admite a possibilida- de de lei posterior retroagir. Nessa esteira, nada obsta que o legislador confira eficd- cia retroativa 3 lei, observados os limites estabelecidos pelo constituinte. Averbe-se que, quando a Carta Magna, em seu artigo 5°, inciso XXXVI, dispde que “a lei nao prejudicard o direito adquirido, o ato juridico perfeito e a coisa julga- da” torna-se evidente que nossa Lei Fundamental deu guarida a retroatividade da lei. Assim, entende-se que, respeitados 0 direito adquirido, o ato juridico perfeito e a coisa julgada, serd perfeitamente possivel a lei retroagir. Nesse sentido, e por mais que tenhamos meditado sob a questo, nao concebe- mos que a norma prevista no art. 5°, XL, de nossa Lei Fundamental possa restringir- -se unica e exclusivamente ao direito penal, notadamente em face do inciso XXXVI do dispositivo constitucional sobredito. H& quem entenda que, para se aplicar a retroacdo da lei mais benigna, é preci- 0 que esta se encontre vigente quando da decisdo definitiva.°> Nao é esse 0 nosso entendimento. O exame do art. 65 da Lei 9.784 poe acima de qualquer dtivida que em face de pedido de revisao de deciséo administrativa, em razao de “fatos novos ou circunstancias relevantes suscetiveis de justificar a inadequacao da san¢ao” esta a admitir, entre outros, a possibilidade de lei mais benéfica retroagir. 4.1.6 O principio do non bis in idem Franck Moderne ensina em seu magistério que se trata de um principio pré- prio do Estado de Direito contemporaneo.** Reputa-se, que o non bis in idem é uma ® Fabio Medina Osério entende que "Se no Brasil ndo hé dividas quanto a rettoatividade das normas penais mais benéficas, parece-nos prudente sustentar que o Diteito Administrativo Sancionador, neste ponto, nao se equipara ao Direito Criminal, dado ao seu maior dinamismo” (Direto administrativo sancionador, p. 263). ™ Rafael Munhoz de Mello expressa a sua concordincia com Fabio Medina Osério acerca da impossibili- dade de retroatividade da lei, no ambito do direito administrativo sancionador: “Com o respeito devido aos autores que entendem de outra forma, parece acertada a posigao defendida por Fabio Medina Osério. A regra a irretroatividade das normas juridicas, sendo certo que as lei s4o editadas para regular situagées futuras. O dispositive constitucional que estabelece a retroatividade da lei penal mais benéfica funda-se em peculia- tidades tinicas do direito penal, inexistentes no direito administrativo sancionador”. (Principios constitucionais de direito administrative sancionador: as sangbes administrativas a luz da Constituicdo Federal de 1988. p. 154). 2% VERZOLA, Maysa Abrahio Tavares. Sango no dieito administrativo, p. 155. 3* MODERNE, Franck. Sanctions administrative et justice constitutionnelle,p. 263. 64 A Desconsideragio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires garantia do individuo de impedir a duplicidade do julgamento e, portanto, da dupla sangZo pelo mesmo fato. E de se notar que o principio do non bis in idem traz consigo a ideia da impos- sibilidade de responsabilizar o individuo mais de uma vez, pelo mesmo comporta- mento considerado ilicito. Em outro dizer, a observancia do princ{pio sobredito tem por objetivo impedir ‘os excessos da Administraco Publica, tolhendo, destarte o exercicio do Poder Esta- tal de modo a conformé-lo ao principio do Estado de Direito. Fabio Medina Osério traca, com perfeigao, os fundamentos do non bis in idem: Intimamente ligado aos principios da legalidade ¢ da tipicidade, o principio da proibiggo do bis in idem, cujas raizes remontam ao devi- do processo legal anglo-sax6nico, também atua em matéria de Direi- to Administrativo Sancionador, possuindo um largo aleance teérico € restritos alcance e significados praticos. Tal principio, em nosso sistema, est constitucionalmente conectado as garantias da legali- dade, proporcionalidade e, fundamentalmente, devido processo le- gal, implicitamente presente, portanto, no texto da CF/88.” Importante mencionar que se o sustentéculo fundamental do non bis in idem & © devido processo legal, a observancia dos principios da razoabilidade e proporcio- nalidade so impositivos no campo do direito administrativo sancionatério como instrumentais inibidores do poder estatal. José Roberto Pimenta Oliveira, por sua vez, suscita a face inibidora da razoabilidade e proporcionalidade: Razoabilidade e proporcionalidade inibem ou limitam qualquer atuacao administrativa desprovida do respeito que a Constituicao estabelece aos érgaos e entidades que devem diuturnamente respon- der pela étima efetivacdo dos interesses coletivos prestigiados pelo sistema normativo, posto 4 cura administrativa.® Ainda que a impossibilidade de apenar duas ou mais vezes o individuo em ra- zo de um comportamento considerado ilfcito, nao podemos deixar de examinar a questao desse mesmo comportamento tipificar sanc4o administrativa e penal. O direito espanhol, durante muito tempo, admitiu que pelos mesmos fatos © cidadao poderia sofrer uma dupla punig&o (administrativa e penal). Entretanto, hodiernamente essa possibilidade encontra-se superada em razo das decisdes pro- OSORIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 273. 5 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os principios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administra- tivo brasileiro, p. 37. © Regime Juridico Sancionatério 65 feridas pelo Tribunal Constitucional ~ Sentenga de 30 de novembro de 1981, que estabeleceu a impossibilidade do non bis in idem, que segundo esse mesmo Tribunal, é vetor que se encontra intimamente coactado aos principios da legalidade e tipi- cidade reconhecido no art. 25 da Constituigéo Espanhola. Admite-se, apenas, uma excego a essa regra geral: quando se tratar de sancdes proferidas no ambito das re- laces de sujeicao especial.” No direito pAtrio, a questo da independéncia de instancias ndo nos parece ofertar maiores discussdes em razdo da triparticdo dos Poderes Estatais. O nosso judiciério muito bem tem expressado a questo da independéncia de instancias.® Logo, se o comportamento do individuo configurar ilfcito penal, administra- tivo ou civel, cabivel serd a sua apuracdo nas respectivas esferas juridicas. Signi- fica, portanto, que o non bis in idem nao se aplica quando se tratar de instancias distintas. Sobremais disso, também nao podemos olvidar as hipéteses suscitadas por Heraldo Garcia Vitta, com a qual manifestamos a nossa concordancia. O autor admite a possibilidade de duas sangdes administrativas, como, por exemplo, uma de ordem tributdria e outra de ordem tipicamente administrativa, em razio do descumprimento de dois deveres distintos, isto sem falar da hipétese de a lei prever duplo sancionamento administrativo, como na hipétese do art. 87, § 2° da Lei 8.666/93."" GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo Garcia; FERNANDEZ, Tomés Ramén. Curso de derecho administrativo, p. 1087. “BRASIL. Tribunal Regional Federal 1* Regio. Apelagdo Civel n? 2001,36.00.010121-9/MT. Desembar- gador Federal Carlos Olavo: “Processual civil. Apelagao, Agdo Civil Péblica por ato de improbidade admi- nistrativa, Revelia. Auséncia de intimagao dos atos processuais (art. 322 do CPC) Inexisténcia de nulidade. Ex-Prefeitos. Convénio, Mudanga unilateral do objeto. Construgio em local diverso do fixado. Constituigao de ato improbo. Condenacao pelo Tribunal de Contas. Independéncia das esferas administrativas e judicial Art. 12 da Lei 8.429/92. Inexisténcia Bis in idem. Pena de multa. Corregéo Monetéria. Incidéncia a partir da data da sentenca. Juros. Termo inicial. Data da liberagao das verbas. Incidéncia 0,5% a.m. (meio por cento ao més) até 10 de janeiro de 2003. Taxa selic a partir desta data. Justiga gratuita. Suspensdo da exigibilidade dos hhonordrios ¢ das curas. Lei. 1060/50. 3. Aquele que pratica ato improbo esté submetido as diferentes esferas de responsabilidade previstas pelo ‘ordenamento juridico. Nao havendo que se falar em dupla punicdo, nos termos do art. 12 da Lei de improbi- dade Administrativa. BRASIL. Decidiu 0 STF no MS 23.625-DF, Rel. Min, Sepilveda Pertence, j. 8.11.2001, Informativo do STE 250: ‘A rejeigao de dentincia por insuficiéncia de provas nao impede a responsabilizacao pelos mesmo fatos ‘em instancia administrativa, uma vez que as instancias penal e administrativa sao independentes.” “Nas palavras de Heraldo Garcia Vitta: “Se uma pessoa importa mercadoria sem autorizacao do érgio sani- ‘thrio do pais importador, e sem efetuar o pagamento do tributo, responderd nas duas ordens administrativas: sanitéria e tributdria. Hé duas infracdes administrativas, porque dois deveres foram descumpridos, ocorrendo violagao de diferentes normas administrativas. Além dessa possibilidade, o ordenamento poderé determinar expressamente, para a mesma conduta, ‘duas ou mais sanc6es administrativas, por descumprimento de um mesmo dever, ou por aftonta & mesma na- tureza administrativa” (A sansdo no dieito administrativ, p. 36). G6 A Desconsideracdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires 4.1.7 Culpabilidade Para se falar em responsabilidade é preciso que se possa imputar o fato que se constitui em infracdo a uma pessoa, seja ela pessoa juridica ou fisica. Nesse mesmo asso, é perfeitamente possivel examinar se essa pessoa ¢ “culpada” ou “inocente”. Como muito bem anota Rafael Munhoz de Mell “Ser culpado” significa contribuir para a ocorréncia da infracao ad- ministrativa em situacées em que era exigivel comportamento di- verso. De modo singelo, pode-se afirmar que “ser culpado” significa nao ser inocente[...] O principio da culpabilidade veda a imposico de sanc4o administrativa retributiva a pessoas que nao contribuiram de modo algum para a ocorréncia da infraco administrativa, ou a fi- zeram a despeito de terem agido licitamente e adotado a diligéncia exigida no caso concreto.” Entretanto a discussao é muito maior. Discute-se, em verdade, a questo do dolo ou da culpa nas sancées administrativas. Em linhas gerais, 0 conceito de dolo encontra-se intimamente ligado com a pratica voluntaria de um comportamento proibido, enquanto a culpa depende de imprudéncia, impericia e negligéncia. No direito espanhol, afirmam Eduardo Garcia de Enterria e Tom4s-Ramon Fer- nandez que a san¢ao administrativa durante muito tempo foi imposta em razao de responsabilidade objetiva, prescindindo, portanto, de dolo ou de culpa. Essa posi- ‘40, posteriormente, foi condenada pela jurisprudéncia e depois pela regra de apli- ca¢&o dos princfpios do direito penal ao direito administrativo.* Certo é dizer que no direito penal, para a configuragao do ilicito, é necessario muito mais que o evento danoso. E necess4rio conjugar 0 comportamento taxado de ilfcito com uma conduta subjetiva reprovavel.** No direito privado, parece-nos que a questo do dolo ou culpa algo pacifi- co. Com efeito, 0 art. 186 do Cédigo Civil Brasileiro é bastante claro ao dispor que “aquele que, por aso ou omissao voluntéria, negligéncia ou imprudéncia, violar di- reito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilicito”. Entretanto no direito administrativo sancionador inexiste legislaco a dispor sobre a observancia do principio da culpabilidade no exercicio do ius puniendi esta- tal, para nés funcdo sancionadora. Ainda que seja assim, a doutrina patria tem en- ® MELLO, Rafael Munhoz de. Principios constitucionais de diveito administrativo sancionador: as sancSes admi- nistrativas & luz da Constituigéo Federal de 1988. p. 184 © ENTERRIA, Eduardo Garcia; FERNANDEZ, Tomés Ramén. Curso de devecko administrativo, p. 1080. WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal: una introduecién a la doctrina de la accién finalista Reimp,, Montevideo/Buenos Aires: Editorial Ibdef, 2001, p. 118 © Regime Juridico Sancionatério 67 tendido que a sangao administrativa requer 0 exame da culpabilidade.* Nesse mes- mo passo, muito bem andam as decisdes de nossos THibunais.“ Em outras palavras, a san¢ao administrativa sé deve ser imposta ao particular quando minimamente configurada a sua culpa. “Nas palavras de Marcal Justen Filho: “A configurago de infracGes pressupde a reprovabilidade da conduta do particular: Isso significa que a infragao se caracterizaré pelo descumprimento aos deveres legais ou contra- tuais, que configure materializagao de um posicionamento subjetivo reprovével. Como decorréncia, a imposicio de qualquer sanc&o administrativa pressup6e 0 elemento subjetivo da caulpabilidade” (Comentéris d lei de licizagSes e contratos administrativos, p. 853). “BRASIL, Decisio proferida pelo ST): “Processual. Administrativo. Ago Civil Pablica. Improbidade Admi- nistrativa. Art. 10, caput, da Lei 8429/92. Licitagdo. Participagdo indireta de servidor vinculado a contratante. Art. 9, lle § 3°, da Lei 8666/93. Falta suprida antes da fase de habilitagGo. Simula 07/ST). Auséncia de dano ‘0 erério, Mé-f6. Elemento subjetivo essencial a caracterizacao da improbidade administrativa. 1, O cardter sancionador da Lei 8.429/92 é aplicével aos agentes publicos que, por ago ou omissio, violem os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, lealdade as instituigGes € notadamente: (a) importem em enriquecimento ilicito (art. 98); (b) causem prejufzo ao erério publico (art. 10); (c) atentem contra os principios da Administracao Publica (art. 11) compreendida nesse tépico a lesio & moralidade ad- ministrativa. 2. A m&-fé, consoante cedigo, premissa do ato ilegal e improbo e a ilegalidade s6 adquire o status de improbidade quando a conduta antijuridica fere os principios constitucionais da Administracao Piblica coad- juvado pela mé-intengao do administrador. 3.A improbidade administrativa esté associada a nogdo de desonestidade, de mé-fé do agente piiblico, do que decorre a conclusao de que somente em hipéteses excepcionais, por forga de inequivoca disposigao legal, que se admite a sua configurasao por ato culposo (artigo 10, da Lei 8.42/92) 4. O elemento subjetivo é essencial a caracterizacio da improbidade aéministrativa, sendo certo, ainda, que a tipificagao da lesdo ao patrimOnio péblico (art. 10, caput, da Lei 8429/92) exige a prova de sua ocor- réncia, mercé da impossibilidade de condenagao ao ressarcimento ao erdrio de dano hipotético ou presumi- do, Precedentes do ST}: REsp 805.080/SP PRIMEIRA TURMA, Dje 6.8.2009; REsp 939.142/RJ, PRIMEIRA ‘TURMA, DJe 104.2008; REsp 678.115/RS, PRIMEIRA TURMA, DJ 29.11.2007; REsp 285.305/DE, PRIMEI- RA TURMA; DJ 13.12.2007; e REsp 714.935/PR, SEGUNDA TURMA, DJ 8.5.2006. 5. In casu, a auséncia de mé-fé dos demandados (elemento subjetivo) coadjuvada pela inexisténcia de dano ao patriménio pablico, assentado no voto condutor do acérdao recorrido, verbis: “consoante se infere da pericia levada a efeito, os servicos contratados foram efetiva e satisfatoriamente prestados, nao tendo sido registrado qualquer prejuizo ou perda financeira e/ou contébil causado & Administracdo e, a0 revés, reco- nhecida pelo Tribunal de Contas do Estado a regularidade da licitaggo (fls. 857/861). Na verdade, nfo restou demonstrado no curso do processo a pritica de ato ilfcito dos réus que constitufsse lesfo ao erério priblico e possibilitasse a indeniza¢ao pelos prejutzos suportados” (fl. 1458), revela error in judicando a andlise do ilfcito apenas sob 0 Angulo objetivo. 6. Ademais, a exegese das regras insertas no art. 11 da Lei 8.429/92, considerada a gravidade das sangBes erestrigBes impostas ao agente piiblico, deve se realizada com ponderacio, maxime porque uma interpretacéo ampliativa poderd acoimar de improbas condutas meramente irregulares, suscetfveis de correso administra- tiva, posto ausente a mé-fé do administrador pablico e preservada a moralidade administrativa e, a fortiori, ir além do que o legislador pretendeu. LJ” (BRASIL, Recurso Especial n? 939.118-SP - 2007/0071082-0. Rel. Min. Luiz Fux). Vili A Desconsideragio da Personalidade Jurfdica nas Contratagées Pablicas * Pires 3.3.5 Uma andlise das diferengas entre as penas de suspenséo ¢ declaracéo de inidoneidade, 35 3.3.5.1 Os efeitos da pena de suspensio e declarayao de inidoneidade, 36 3.3.5.2 A questo da competéncia para aplicagao de penalidades, 43 3.3.5.3. © lapso temporal da suspensao e declaragao de inidoneidade, 44 3.3.6 O impedimento de licitar e contratar com a Uniao, Estados, Distrito Federal ou Municfpios, 45 3.3.7 _ As penas restritivas do direito de licitar e contratar nos demais diplomas legais, 47 4 O Regime Juridico Sancionatério, 53 4.1 O regime juridico sancionatério no contexto do regime juridico administrativo, 54 4.1.1 0 Estado de direito enquanto principio, 55 4.1.2 O principio da legalidade, 56 4.13 O principio da tipicidade, 58 4.1.3.1 © regulamento, 59 4.1.4 0 principio da irretroatividade, 61 4.1.5. Arretroatividade da lei mais benigna, 62 4.1.6 0 principio do nom bis in idem, 63 4.17 Culpabilidade, 66 5 O processo administrativo, 68 5.1 O conceito de processo administrative, 70 5.2 O conceito de procedimento administrativo, 71 5.3 Proceso ¢ procedimento administrativo, 72 5.4 Aspectos constitucionais do proceso administrative, 73 5.5 ALLei do Processo Administrative Federal & luz da Constituigao Federal, 75 5.6 Os principios informadores da Lei do Processo Administrativo Federal, 77 5.6.1 _O principio da publicidade, 79 5.6.2 Principio da oficialidade, 80 5.6.3 Principio do informalismo, 80 5.6.4 Principio da gratuidade, 81 5.6.5 Principio do devido processo legal, 82 5.6.5.1 A cléusula do devido processo legal no direito brasileiro, 83 6 A Aplicagio Subsidiéria da Lei do Proceso Administrativo Federal nas Sangdes Decorrentes das Licitagdes e Contratos, 87 6.1 A instauragao do proceso administrativo sancionatério nos moldes da Lei 9.784/99, 88 6.2 A fase instratéria do processo administrativo, 89 6.2.1 A intimagao € 0 atendimento ao principio do contraditério, 90 6.2.2 O direito de defesa eo contraditério, 91 6.2.2.1 Aprova, 94 6.2.2.2 Diligéncias ¢ laudos periciais, 96 6.2.2.3 Pareceres, 96 6.2.2.4 OQ atendimento ao principio da motivagdo enquanto exigéncia do contraditério e da ampla defesa, 97 6.2.2.5 Os principios da razoabilidade e da proporcionalidade em favor do contraditério ¢ ampla defesa, 100 6.2.3 Asalegagdes finais, 102 6.24 Orelatériofinal, 103 6.2.5 Adecisdo, 103 6.2.6 Orrecutso ea reviséo administrativa, 105 6.3 A sancio administrativa prevista na Lei 8.66/93 e a Lei 9.784/99, 107 5 O Processo Administrativo E impossivel a aplicagao de qualquer san¢4o administrativa sem a instauracio de um processo administrativo, com observancia do contraditério e da ampla defesa. Nes- se sentido, necessario se faz 0 exame desse instituto, ainda que em rdpidas pinceladas A Constituigdo de 1988 trouxe uma nova dimensio ao processo administrativo, na medida em que o art. 5¢, inciso LV, a ele se refere de modo expresso.' Todavia, cumpre-nos lembrar que a terminologia “processo” vem, costumeira- mente relacionada ao direito processual civil e penal como meio de se dirimir um litigio em sede jurisdicional. Essa ideia de processo, de cunho estritamente jurisdi- cional, tem rafzes histéricas, determinadas pelo predominio de uma concepso es- sencialmente privatista do processo, a0 menos até meados do século XIX. Além disso, pde-se também que a atividade administrativa poderia ser exer- cida livremente. Esse pensamento contrapée-se, logicamente, a ideia de processo, que pressupée uma atividade regrada, condicionada a determinados parametros preestabelecidos.? De acordo com essa ética, Eduardo J. Couture compreende 0 processo dentro de um contexto jurisdicional, correspondendo a uma sucessao de atos direcionados Art. LJ] Ly ~ aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, ¢ aos acusado em geral so assegurados 0 con- traditério e ampla defesa, com os meios ¢ recursos a ela inerente; 2 MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrative, S40 Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 11-13. © Processo Administrative 69 para a obtencio da coisa julgada, que se destina a resolugao de conflitos perante ér- gios jurisdicionais.? Nesse sentido, o autor parece entender pela existéncia do pro- cesso tao somente no exercicio da fun¢Ao jurisdicional. De seu turno, Roberto Dromi ensina que o procedimento administrativo é 0 ins- trumento juridico pelo qual se viabiliza a relacdo administrado com a Administracao.* Hartmut Maurer também faz referéncia ao processo administrativo, dizendo que “procedimento administrativo em sentido amplo é cada atividade da autorida- de administrativa dirigida 4 promulgacao de uma decisio, a execucao de uma outra medida ou a conclusao de um contrato”.5 Para Marcello Caetano, proceso e procedimento nao passam de sinonimia, sig- nificando uma sucessao ordenada de atos preestabelecidos, com vistas 4 formacao ou a execucdo da decisdo de um érgio ou de uma pessoa juridica de direito ptiblico.* A doutrina que se dedicou a discutir a existéncia de processo no ambito da Administrac&o Publica é bastante vasta. No século XX, em especial nas décadas de 1970 e 1980, os processualistas e administrativistas inclinaram-se a aceitar a ideia de uma processualidade administrativa no contexto dos poderes estatais. Odete Medauar, debrucando-se sobre a questo da existéncia do processo administrativo, elenca como razes dessa mudanga de mentalidade os seguintes fatos: (a) a concepsao publicista do processo fez com que a ideia de a¢do se tor- nasse um direito independente do direito subjetivo material; (b) deslocamento da preocupacdo cientifica para o tema da jurisdicdo, possibilitando ressaltar a ideia desta como Poder estatal; (c) a viséo do processo como relacio juridica, permi- tindo uma 6tica como um conjunto de posic6es juridicas ativas e passivas, e néo somente como sucesso de atos.” A doutrina administrativista, deste modo, passou a preocupar-se com a questao do processo, vez que a otica da atividade administrativa foi se alterando através dos tempos, sendo necessario a fixagao de parametros, em especial no que concerne as oportunidades de o cidadao ser ouvido nas suas relacdes com o Estado. A par disso, conclui-se, em sintese, que esses foram os fatores determinantes para que a concep¢ao do processo néo ficasse restrita ao aspecto puramente jurisdi- cional, mas, também, fosse estendida 4 Administrac4o Publica. Quanto a nés, nao vemos maiores raz6es para, apds a promulgacao da Consti- wigao de 1988, persistir qualquer resisténcia em se aceitar a ideia de um processo 3 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesual civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma. 1993. p. 123. 4 DROMI, Roberto. Derecho administrativo. p. 1105. 5 HARTMUT, Maurer. Diveito administrativo geral. Traducéo de Luis Afonso Heck. Barueri: Manole, 2006. p. 529, © CAETANO, Marcello. Principios fundamentais do direito administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 511. 2 MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo, p. 15. 70 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires administrativo, isso sem falar da edigao da Lei 9.784/99, que veio a regular o pro- cesso administrativo federal. 5.1 O conceito de processo administrativo A conceituagao sempre é uma tarefa dificil, uma vez que o objeto estudado nor- malmente possui varios condicionantes e nuances que dificultam a consecugio desse objetivo. Em matéria de processo administrativo, a tarefa nao é menos 4rdua, prin- cipalmente se considerarmos que cada érgo integrante do Poder Estatal imprime caracteristicas proprias e especificas ao instituto juridico do processo administrativo. De qualquer modo, e considerando que inexiste um conceito legal de proces- so administrativo, o exame da doutrina é 0 caminho que se apresenta como ponto de partida. Didgenes Gasparini afirma que o processo administrativo em sentido restrito ¢ aquele destinado a solver uma controvérsia de natureza administrativa, nao descar- tando, todavia, aquilo que denomina de processo administrativo em sentido amplo, pratico, consistente no registro dos atos da Administragao Publica, ao controle do comportamento dos administrados e se seus servidores, a compatibilizar os interes- ses ptiblico e privado, a punir seus servidores e terceiros, a resolver controvérsias administrativas e a outorgar direitos a terceiros no exercicio do poder de policia.* Diogo de Figueiredo Moreira Neto conceitua o proceso administrativo como uma sucesstio de manifestagées de vontade, cada uma delas iden- tificada singularmente como um ato administrativo, que se dispdem coordenadamente para atingir um objetivo final, que caracterizaré, em cada caso, um distinto processo administrativo.? Em outras palavras 0 autor considera processo aquele de carter litigioso e no oso. Para Herndndez Corujo processo administrativo é “o conjunto de tramites, atuag6es e formalidades ordenadas, a que tém de sujeitar-se a Administracao e os administradores, no exercicio de sua atividades e direitos, efetivadas essas atuagGes por um conjunto de regras e princfpios jurfdicos”."° Para o autor, encontra-se in- serido no contexto do processo toda a atividade administrativa, seja ela de carater contencioso ou nao. © GASPARINI, Didgenes. Direito administrative, p. 1067-1068, * MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de dreito administrative: parte introdutéria, parte geral e par- te especial. 15. ed,, rev, refundida e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 179. © CORUJO, Hernandez, Procedimientos administratives internos. 1995. p. 7. © Proceso Administrative 71 Com todo respeito ao entendimento dos autores colacionados, nao consegui- mos entender como processo administrativo aquele de carater nao contencioso. Segundo pensamos, e acompanhando Lucia Valle Figueiredo, que acolheu os ensinamentos de Massimo Severo Gianini, a figura do processo administrative comporta apenas aqueles que desenvolvem uma atividade destinada a solucionar io, uma controvérsia.? Para nés, quando a Constituicdo Federal, em seu art. 5%, LV, assegurou a obediéncia do contraditério e da ampla defesa nao 6 nos processos judiciais, como também nos processos administrativos, ficou imanente a tal figura o deslinde de uma controvérsia, de um litigio. Trata-se, portanto, daquilo que Diégenes Gasparini denomina de processo administrativo em sentido estrito. 5.2 O conceito de procedimento administrativo ‘Apés tomada de posi¢ao acerca da questo conceitual do processo, examine- mos o denominado procedimento administrative. Comecemos com as considera- des de Hely Lopes Meirelles: Procedimento administrativo (procedimento administrativo — opéra- tion administrative — Administrativvrtfahren) & a sucesso ordenada de operacées que propiciam a formacao de um ato final objetivado pela Administragao. E 0 iter legal 2 ser percorrido pelos agentes publi- cos para a obtenco dos efeitos regulares de um ato administrativo principal.” De sua vez, Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina que: Procedimento é 0 conjunto de formalidades que devem ser observa- das para a pratica de certos atos administrativos; equivale a rito, @ forma, a proceder; o procedimento se desenvolve dentro de um pro- cesso administrativo."* Por fim, Celso Antonio Bandeira de Mello observa em seu magistério: © Lidcia Valle Figueiredo pondera: “Entendemos, por consequéncia, como se verificou, que se possa referir ‘a processo, em sentindo estrito, quando estivermos diante dos denominados de segundo grau, por Giannini, quer seja disciplinadores, sancionatérios ou revisivos (quando houver, portanto, ‘litigantes’ ou ‘acusados’); do contrério, como requisito essencial da atividade administrativa, normal de explicitagéo da competéncia, hhaverd procedimento, que se conterd dentro do proceso em sentido amplo” (Curso de direito administrativo. 9 ed. p. 436). 2 MBIRELLES, Hely Lopes. Licitagdo e contrato administrativo, p. 164. & DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 678. 72. A Desconsideragao da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Temos, até o presente, nos referido a procedimento ou proceso porque os autores ¢ até as leis mencionadas divergem sobre a ter- minologia adequada para batizar tal fenémeno. Nao hd negar que a nomenclatura mais comum no Direito Administrativo é proce- dimento, expressdo que se consagrou entre nés, reservando-se, no Brasil, 0 nomen juris processo para os casos contenciosos, a serem solutos por um “julgamento administrativo”, como ocor- re no “processo tributério” ou nos “processos disciplinares dos servidores publicos”. Nao é 0 caso de armar-se “um cavalo de batalha” em torno de rétulos. Sem embargo, cremos que a termi- nologia adequada para designar 0 objeto em causa é “processo” sendo “procedimento” a modalidade ritual de cada processo. & provavel, ou ao menos muito possivel, que a partir da lei federal, em sintonia com ela, comece a se disseminar no pais a lingua- gem “processo”. Quanto a nés, tendo em vista que nao ha paci- ficagéo sobre este tépico e que em favor de uma milita a tradi- 40 (“procedimento”) e em favor de outra a recente terminologia legal (“processo”), daqui por diante usaremos indiferentemente ‘uma ou outra.'* No nosso sentir, o nticleo das considerages doutrindrias retroesbocadas reside no fato de se entender o procedimento administrativo enquanto um rito, uma for- malidade, como muito bem diz Celso Antonio Bandeira de Mello “uma modalidade ritual de cada processo”. 5.3 Processo e procedimento administrativo Considerando que, para nés, somente sera processo administrativo aque- le que for destinado a solucao de uma controvérsia, por forca de nossa Consti- tuigao Federal, mais precisamente em razao do art. 5%, LV, que coarctou a este instituto o contraditério e a ampla defesa, insta esclarecer, que ndo estamos a olvidar que a nossa Lei Maior, em diversas outras oportunidades, faz men¢do ao processo administrativo, sem, contudo, estabelecer qualquer condicionante re- lativo 4 solugao de controvérsias. esses casos, devemos entender que o legislador constitucional refere-se ao processo administrativo em sentindo amplo que, em verdade, se trata de um mero procedimento administrativo. “4 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 496. © Processo Administrative 73 Em suma, esposamos as Ligdes de Lticia Valle Figueiredo" e Odete Medauar."* Processo administrativo sempre teré um cunho litigioso, a0 passo que o procedi- mento administrativo se constitui no cumprimento de um rito de ordem formal. 5.4 Aspectos constitucionais do processo administrativo Nossa Constituigdo Federal, em diversas oportunidades, conforme visto an- teriormente, exige o processo administrativo,”” em face de determinadas atuacdes administrativas. Via de consequéncia, as atividades administrativas ficam circuns- critas a padrdes constitucionais como, por exemplo, a exigéncia de contraditério e ampla defesa no processo administrativo — art. 5%, LV - ou mesmo & realizacéo de compras, servigos e obras mediante a instauragdo de procedimento administrativo especifico - art. 37, XXI. Temos assim que o processo administrativo e também o procedimento admi- nistrativo se constituem em instrumentais assecuratdrios de direitos. Em outro di- zer, O processo, enquanto garantia, é um instrumental pelos quais se asseguram 0 exercicio e gozo de bens e vantagens.”* Desta feita, 0 processo administrativo se constitui em uma das facetas do Es- tado Democritico de Direito. Imputou-se 4 ideia do Estado Democritico de Direito 15 Lucia Valle Figueiredo ensina: “Temos, pois, processo (género): 1) procedimento, como forma de atuacio norma da Administracio Piiblica; 2) procedimemto, sequéncia de atos ordenada para a emanagfo de um ato final, dependendo a validade do ato posterior sempre de seu antecedente, subdividindo-se em: (a) procedi- ‘mentos nominados; (b) procedimentos inominados; 3) processo, em sentido estrito, em que a litigiosidade ‘ou as ‘acusagGes’ encontram-se presentes, obrigando-se o contraditério e a ampla defesa: (a) processos revi- sivos; (b) processos disciplinares; (c) processos sancionat6rios” (Curso de dieito administrative. 9. ed. p. 436). % Odete Medauar, de igual modo, observa: “No aspecto substancial, procedimento distingue-se de processo porque, basicamente, significa a sucessao encadeada de atos. Processo, por seu lado, implica, além do vinculo entre atos, vinculos juridicos entre os sujeitos, englobando direitos, deveres, poderes, faculdades, na relacao processual. Proceso implica, sobretudo, atuacao dos sujeitos sob prisma contraditério” (Direito administrative tmoderno, p. 178). * A Constituicéo de 1988 em diversas passagens utiliza-se da expresséo “proceso administrativo” ou simplesmente “process”. 1ss0 significa o reconhecimento do processo em sentido estrito (contencioso) ¢ proceso em sentido amplo (procedimento administrativo) nas atividades da Administragéo Piblica, como demonstram os seguintes dispositivos: o inc. LV do art. 5%: “Aos litigantes, em processo judicial ou adminis- trativo, e aos acusados em geral so assegurados o contradit6rio e a ampla defesa, com 05 meios e recursos a ela inerentes;” o inc, LXXII do art. 5% “Conceder-se-& habeas data [...] b) para retificagio de dados quando néo se prefira fazé-lo por proceso sigiloso judicial ou administrativo;” o inciso LXXVIII que assegura a todos “no “Ambito judicial e administrativo, a razodvel duracao do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitagao”; 0 inc. XXI do art. 37: “ressalvados os casos especificados na legislagao, as obras, servigos, com- pras ¢ alienagées serao contratados mediante processo de licitacdo piblica[...]”; O servidor piblico estavel s6 perder 0 cargo em virtude de sentenca judicial transitada em julgado ou mediante processo administrative ‘em que Ihe seja assegurada ampla defesa. SILVA, José Afonso. Curso de dreito constitucional positivo. 35. ed. rev. e atual. S4o Paulo: Malheiros, 2012. p.425. 74. A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires a imposigao de o Estado criar o direito, submetendo-se a este e 4 vontade do povo, garantindo aos individuos a inexisténcia de livre arbitrio dos governantes. As pon- deragdes de José Afonso da Silva melhor elucidam a questi A democracia que o Estado Democritico de Direito realiza ha de ser um processo de convivéncia social numa sociedade livre, justa e so- lidéria (art. 32, 1), em que o Poder emana do povo, e deve ser exer- cido em proveito do povo, diretamente ou por seus representantes cleitos (art. 12, parégrafo tinico); participativa, porque envolve a par- ticipacdo crescente do povo no processo decisorio e na formacao dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupée assim o didlogo entre opinides e pen- samentos divergentes e a possibilidade de convivéncia de formas de organizaco ¢ interesses diferentes da sociedade; hé de ser um pro- cesso de liberacdo da pessoa humana das formas de opressdo que nao depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, polfticos sociais, mas especialmente da vigéncia de con- digdes econémicas suscetiveis de favorecer o seu pleno exercicio.”” Da licgéo do mestre extrai-se que no Estado Democratico de Direito reside o modo de formago e atuacao do governo, onde o povo é peca fundamental, na me- dida em que fica estabelecido um governo do povo para o povo. Pretendeu o legis- lador constitucional, portanto, possibilitar a crescente participagéo do povo no processo decisério governamental e a liberacdo da pessoa humana das formas de opressdo. Assim, verifica-se como uma das manifestacées palpaveis da democracia, estabelecida em nosso ordenamento fundamental, ofertando, destarte, a real opor- tunidade de o individuo manifestar-se perante uma decisdo proferida pela Adminis- tragao Piiblica, através do instrumental processo administrativo. Palmilhando, ainda, o principio do Estado Democratico de Direito nao pode- mos deixar de registrar a questo do necess4rio atendimento ao principio da legali- dade, verdadeiro pressuposto do principio prefalado. Averbe-se, portanto, que ao considerarmos a legalidade como pressuposto do Estado Democratico de Direito, encontramos nessa seara uma das formas da limi- taco do poder. A essa limitacdo, imanente ao Estado Democratico de Direito, deve vincular-se ao instrumental consubstanciador da atividade administrativa. Para me- lhor esclarecimento, temos que o processo administrativo, bem como o procedi- mento administrativo, sao meios para submeter toda a atuacdo estatal a determina- das regras — legalidade — que colocam o particular em condigSes de ver seus direitos respeitados em face dos Poderes Estatais. Em tltima anélise, nfo s6 0 processo administrativo, como também o procedimento administrativo, se constitui em ati- vidade regrada, objetivando a contencao do poderio estatal. 8 SILVA, José Afonso. Curso de dieito constitucional positivo, p. 121-122. © Processo Administrative 75 5.5 A Lei do Processo Administrativo Federal a luz da Constituicao Federal De tudo o que vimos ate o presente momento, certo é dizer que ao direito ad- ministrativo deve corresponder o direito processual administrativo, que possui ca- racteristicas, princ{pios e normas diferenciadas de seus congéneres — processo pe- nal, processo civil, processo trabalhista - todos auténomos entre si.?° Cumpre-nos concluir, portanto, que o processo administrativo € espécie do ge- nero processo” Assim é, que a Lei 9.784/99, conforme expressa disposicao de seu art. 1°, estabelece “normas basicas sobre o processo administrativo no ambito da Administracao Federal direta e indireta, visando, em especial, 4 protecao dos direi- tos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administragéo”. No mesmo dispositivo, mais precisamente no § 1%, dispde, ainda, que seus preceitos aplicam-se também aos érgaos dos Poderes Legislativo e Judicidrio da Unido, quan- do no desempenho de fungao administrativa. Entretanto as disposicdes contidas na Lei 9.784/99 nao podem ser maiores do que os mandamentos constitucionais. Assim, ao invocarmos o art. 22, inciso I, de nossa Lei Fundamental, forcoso 6 concluir que o diploma legal em comento nao pode aplicar-se unicamente 4 Unido Federal. Para se chegar a essa conclusdo verifique-se que a Constituicdo Federal, em seu art. 22, inciso 1, estabelece, dentre outros, como competéncia privativa da Unido, legislar sobre matéria processual.”” Note-se, portanto, que a nossa Lei Fundamen- tal, atribuiu 4 Unido Federal competéncia privativa para legislar sobre 0 género “proceso”, encontrando-se, af encartadas, as suas espécies: processos civil, penal, trabalhista e o administrativo. A partir do momento que se admite a exist@ncia do denominado processo admi- nistrativo, em razdo de sua expressa mencio pelo legislador constitucional, imposs{- vel serd afastar a ideia de que o processo administrativo, é espécie do género proces- so, cuja competéncia para legislar, volvemos a enfatizar, é privativa da Unido Federal. Sob um olhar mais atento, resulta claro que o art. 24, inciso XI, néo pode ser invocado para refutar nossa tese, eis que ficou estabelecida a competéncia concor- rente para a Unido, Estados e Distrito Federal, legislar sobre “procedimentos ad- ministrativos” e nao sobre “processos administrativos” que, para nés, so figuras absolutamente distintas. 3 CRETELLA JR, José. Pritica do processo administrativo. 8. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 37-38. 2. PETIAN, Angélica. Regime juridico dos processos administrativos ampliativos e restritives de direto. Sé0 Paulo: ‘Malheiros, 2011. p.46. 2 BRASIL. Art, 22, Compete privativamente & Unido legislar sobre: I- direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrério, maritimo, aerondutico, espacial e do tra- balho. 76 A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Entendemos que todas as normas que digam respeito ao processo administrati- vo em sentido estrito - processos litigiosos - encontram-se sob o manto da compe- téncia privativa da Unido, nos termos do art. 22, I, da Constituico Federal, dentre as quais vale destacar 0 direito ao conhecimento do teor do ilfcito, direito 4 duracao razoavel do processo, direito de arrolar testemunhas e a notific4-las, direito a uma instrugo, direito ao contraditério e defesa, direito a nao ser sancionado com pro- vas ilfcitas. Cristiana Fortini, Maria Fernanda Pires de Carvalho Pereira e Tatiana Martins da Costa Camario, ainda que nao afirmem que somente a Unido pode legislar sobre processo administrativo, ensinam: Superada a constatagio de que a lei incide no ambito federal, cumpre ir além: ou seja, verificar se a lei possui aplicabilidade para regula- mentar situagdes ocorridas além da esfera federal, isto 6, no 4mbito da Administrago Publica Estadual ou Municipal. ‘As normas que consagram principios tém aplicacdo imediata para além da esfera federal, e, em caso de lacuna nas leis estaduais ou mu- nicipais que disciplinam processos especificos, aplicar-se-4o as nor- mas gerais basicas, servindo de critérios gerais a serem seguidos.”* Conforme dissemos, ¢ ndo é demais repetir, para que se faga claro, embora as autoras precitadas nao atestem sobre a competéncia privativa de a Unido Federal legislar sobre processos administrativos de natureza litigiosa, vislumbram, de pla- no, que normas de caréter principiol6gio, dentre as quais figura o contraditério e ampla defesa, principio indissocidvel dos processos em que se instalam uma contro- vérsia, sfo de aplicabilidade imediata, que devem ser por todos observados.* ® FORTINI, Cristiana; PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho; CAMARAO, Tatiana Martins da Costa. Processo administrative: comentarios & Lei 9.784/1999. 3. ed. rev. ¢ atual. de acordo com a viso dos Tribunais. Belo Horizonte: Férum, 2012. p. 35. 2 Ainda que néo tenhamos qualquer decisio sobre a competéncia privativa da Unido legislar sobre proces- 803 administrativos em sentido estrito, vale trazer deciso do Superior Tribunal de Justica que acmite a utili- zagio da Lei 9.784/1994, para Estados e Munic(pios em face da auséncia de lei especifica: “ADMINISTRATIVO”. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMEN- TO. SERVIDOR PUBLICO ESTADUAL. INERCIA DA ADMINISTRAGAO. DECADENCIA ADMINISTRA- TIVA. AUSENCIA DE LEI ESTADUAL ESPECIFICA. LEI 9.784/99. APLICABILIDADE. PRECEDENTES. QUESTAO NAO ARGUIDA NO RECURSO ESPECIAL. INOVACAO DE TESE. IMPOSSIBILIDADE. AGRA- VO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. A jurisprudéncia do Superior ‘Tribunal de Justiga firmou-se no sentido de que, ausente lei especifica, a Lei 9.784/99 pode ser aplicada de forma subsidiaria no ambito dos Estados-Membros, tendo em vista que se trata de norma que deve nortear toda a Administrayao PUblica, servindo de diretriz aos seus demais 6rgios. 2. Em sede de agravo regimental ou de embargos de declaracfo, no cabe & parte inovar para conduzir & apreciagao desta Corte temas nao ventilados no recurso especial. 3. Agravo regimental improvido (BRASIL. AgRg no Ag 815.532/RJ. Agravo regimental no agravo de ins- trumento 2006/027524-6, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5# Tarma, data do julgamento.15.3.07, publicado em 23.4.07, p. 302). © Processo Administrative 77 Pensar de outro modo seria entrar em testilha com a Constitui¢ao Federal, na medida em que a Unido detém competéncia privativa para legislar sobre processo, incluindo-se, portanto, aquele de cardter administrativo. Ao que se viu, a Lei 9.784/99 nao pode ficar restrita 4 Unido Federal, devendo aplicar-se no ambito dos demais entes federados naquilo que diz respeito as regras do processo administrativo em sentido estrito (de carater litigioso), podendo estes iltimos estabelecerem, mediante Lei, regras especificas para os seus procedimen- tos, quando do exercicio da atividade administrativa nao contenciosa. Cumpre lembrar, ainda, que a legislagio de regéncia dos processos administra- tivos federais nao afaste a incidéncia de outras normas mais especificas para este ou aquele processo, consoante se depreende do art. 69 que dispée sobre a possibilida- de de continuarem a reger-se por legislacao prépria, aplicando-se, subsidiariamen- te, a Lei 9.784/99. 5.6 Os principios informadores da Lei do Processo Administrativo Federal Cabe, aqui, em carter preliminar, tecer algumas consideracdes acerca dos prin- cipios, ainda que em breve sintese, antes de examinarmos os princ{pios constantes da Lei do Processo Administrativo Federal. Karl Larenz ensina que o principio “deve ser entendido como uma pauta ‘aberta’, carecida de concretizacao — e s6 plenamente apreensivel nas suas concretizacoes””*. Carlos Ari Sundfeld averba que “os principios s4o as ideias centrais de um sis- tema, ao qual dao sentido légico, harmonioso, racional, permitindo a compreensio de seu modo de organizar-se”.”* De sua vez, Geraldo Ataliba observa: Encontramos também: ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PUBLICO. PENSAO POR MORTE. FILHA SOL- ‘TIRA. MAIOR DE 21 ANOS. DECADENCIA ADMINISTRATIVA. APLICAGAO RETROATIVA. INCIDEN- CIA DA LEI N* 9.784/99 NO AMBITO ESTADUAL. Sendo 0 ato que concedeu a pensdo anterior & Lei n? 9.784/99, o prazo quinquenal para sua anulagao co- mega a partir da vigéncia do mencionado regramento. Possibilidade de apticacio da Lei 9.784/99 no ambito estadual. O prazo de § anos, estabelecido pela Lei 9.784/99, & contado a partir da edigo da referida lei. Agravo regimental desprovido” (AgRg no Ag 683.234/RS. Agravo regimental no agravo de instrumen- to 2055/0088716-9. Rel. Min. José Arnaldo Fonseca, 5* Turma, data do julgamento 8.11.05, publicado em 5.12.05, p. 366) % LARENZ, Karl. Metodologia da ciéncia do direito. § ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1.989, p. 200. 2 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito piblico. 5. ed. 38 tiragem. So Paulo: Malheiros, 2012. p. 143, Sumario ix 7 A Desconsideracao da Personalidade Juridica no Direito Privado, 109 7 72 73 ‘A pessoa juridica de direito privado, 111 Breves reflexGes hist6ricas sobre 2 teoria da desconsideraZo da personalidade jurfdica, 112 ‘A desconsideracio da personalidade juridica no direito brasileiro, 114 7.3.1 Desconsideracio no Cédigo de Defesa do Consumidot, 115 Desconsideracao na Consolidacao das Leis do Trabalho, 116 A desconsideragao da personalidade jurfdica a0 lume da Lei 12.529/11, 117 ‘A desconsideragao da personalidade juridica no direito ambiental, 117 A desconsideracéo da personalidade juridica no Novo Cédigo Civil Brasileiro, 118 8 A Desconsiderago da Personalidade Juridica na Aplicagao das Penas Restritivas do Direito de Licitar, 120 8a 82 83 84 85 86 a7 88 89 8.10 8.1L 812 813 Conclusiio, Breves reflexées acerca do regime juridico administrative, 121 problema da desconsideracéo da personalidade juridica em razio de omissio legislativa no direito administrative, 124 © conteido do principio da moralidade, 125 O contetido do principio da eficiéncia, 129 © contedido dos principios da supremacia e indisponibilidade do interesse piblico, 132 principio da impessoalidade, 134 A desconsideragao da personalidade juridica no contexto das licitagSes e contratos, 135 ‘A desconsideragao da personalidade juridica decretada pela Administragao Pablica, 144 A obediéncia 20 prinefpio da motivac4o no ato administrativo da imposicéo da desconsideracéo da personalidade juridica, 148 ‘A natureza juridica do ato administrativo de desconsideracao da personalidade juridica, 150 ‘A desconsideracao da personalidade juridica como ato de obediéncia ao devido rocesso legal substancial, 151 ‘As sangGes de acordo com a Lei Baiana de LicitagGes, 153 8.12.1 O que sio normas gerais?, 154 8.12.2. As sangGes da Lei Baiana de Licitagbes ¢ as normas gerais, 156 8.12.3 A positivacao da desconsideracao da personalidade juridica pela Lei Baiana de Licitagdes e Contratos, 157 ‘A desconsideracio da personalidade juridica na Lei Anticorrupgao, 158 8.13.1 Dos atos lesivos a Administracao Pablica nacional ou estrangeira ¢ responsabilizagao administrativa, 160 8.13.2 A competéncia para aplicagao da sang e procedimento, 161 8.13.3 A desconsideracio da personalidade juridica nos termos da Lei 12.846/13, 162 163 Bibliografia, 167 7B A Desconsideracio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Os principios séo linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurfdico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos érgios do governo (poderes constituidos). Eles expressam a substancia tiltima do querer popular, seus objeti- vos e designios, as linhas mestras da legislacao, da administracéo e da jurisdicdo. Por estas nado podem ser contrariados: tém que ser prestigiados até as tiltimas consequéncias.”” Do cotejo das licdes em exame, depreende-se que o principio é um vetor para © intérprete. E inequivoco, portanto, que o principio impede a adogao de condutas incompattveis com os valores por ele protegidos. Sérgio Ferraz € Adilson de Abreu Dallari observam que diante de uma lacuna normativa, diante da falta de normagio ex- pressa para uma determinada situaco, diante de uma diwida inter- pretativa, deve-se decidir 0 caso concreto 3 luz dos princfpios, da maneira mais condizente com o significado do principio ou dos prin- cipios aplicdveis 4 especifica questo em exame.”* Entretanto, cabe-nos arguir, qual a natureza juridica do princfpio? Humberto Avila com muita propriedade ensina: ‘Normas ndo sfo textos nem um conjunto deles, mas os sentidos cons- trufdos a partir da interpretacao sistemdtica de textos normativos. Daf se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpre- taco; ¢ as normas em seu resultado. O importante é que no existe correspondéncia entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverd uma norma, ou sempre que hou- ver uma norma deveré haver um dispositivo que lhe sirva de suporte. Em alguns casos h4 norma mas nao hé dispositivo. Quais sao os dis- positivos que preveem os principios da seguranca juridica e certeza do Direito? Nenhum. Ento hé normas, mesmo sem dispositivos es- pecificos que lhes déem suporte fisico.”” Conclui-se, portanto, que os princfpios, em ultima andlise, se constituem em uma norma, ainda que nao positivada. ¥ ATALIBA, Geraldo. Repiblica e constituigdo. 2. ed. 42 tiragem. S4o Paulo: Malheitos, 2007. p. 34. % FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. So Paulo: Malheiros, 2001. p. 49. ® AVILA, Humberto. Teoria dos princpios: da defini¢&o & aplicagio dos princfpios juridicos. 9. ed. amp. € atual. So Paulo: Malheiros, 2009. p. 30. © Processo Administrative 79 Posto isto, passemos ao exame dos principios constantes da Lei 9.784/99. O art. 28, “caput”, da Lei 9.784/99 estabelece os princfpios vetoriais do processo ad- ministrativo, a saber: legalidade, finalidade, motivac4o, razoabilidade, proporcio- nalidade, moralidade, ampla defesa, contraditério, seguranga juridica, interesse publico ¢ eficiéncia. Ademais disso, néo é demais dizer que o rol de principios estabelecidos pelo art. 22, “caput”, da Lei 9.784/99 se constitui em rol exemplificativo, determinando, pois, que outros princfpios implicitamente previstos na legislacdo de regéncia de- vem ser observados. Registre-se que no rapido exame que faremos dos princfpios constantes da Lei 9.784/99, em que pese o nosso entendimento acerca das figuras jurfdicas do “pro- cesso” e “procedimento”, estaremos acompanhando a terminologia do diploma le- gal precitado, a saber: processo. Finalmente, faz-se mister consignar que neste capitulo nao estaremos discorren- do sobre todos os prine{pios regentes do processo administrativo. Vamos nos limitar a dissecar aqueles principios tipicamente processuais, deixando aqueles imanentes A atividade administrativa para os capitulos seguintes, salvo uma ou outra exce¢ao. 5.6.1 O principio da publicidade O principio da publicidade vem estatuido no art. 37, “caput”, da Constituigdo Federal, devendo nortear toda a Administragdo Piblica de qualquer um dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municipios. Desde logo, é de se notar que a transparéncia dos atos administrativos encon- tra-se umbilicalmente ligada ao principio do Estado Democratico de Direito, pre- visto no art. 1¢ de nossa Lei Fundamental, na medida em que o povo € 0 titular do poder, podendo, destarte, conhecer os atos de seus representantes. Assim que os processos administrativos que tramitam pela Administraco Publica podem ser acessados pelos interessados, nos termos do arts. 22, incisos Ve X, e 3° inciso II, da Lei 9.784/99, propiciando a oferta da defesa, isto sem falar do art. 46, assecuratério do direito do interessado ter “ciéncia da tramitagao dos pro- cessos administrativos em que tenha a condi¢ao de interessado, ter vistas dos au- tos, obter cépia de documentos neles contidos e conhecer as decisdes proferidas”. ‘Trata-se, portanto, a publicidade, de regra inafastével, ressalvadas as excegdes relativas a seguranga da sociedade e do Estado, consoante as disposigdes do art. 5°, inciso XXXII, da Constituico Federal. Afora parte isso, pode, ainda, a publicidade sofrer constri¢4o em razdo da defesa da intimidade ou o interesse social, na forma do que dispée 0 art. 52, LV, de nossa Lei Fundamental. A publicidade constitui-se, portanto, em requisito de eficdcia do ato adminis- trativo, evitando o arbftrio e a ofensa dos direitos individuais, na medida em que propicia o controle da Administracao. 80 A Desconsideragdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires, Desta feita, atos administrativos sigilosos, procedimentos e decisGes secretas n&o passam de uma péssima heranga, fruto do autoritarismo de outros tempos. To- dos os atos e provimentos da AdministracZo devem, de alguma forma, ser alvo de publicidade para que possam produzir os seus juridicos efeitos. 5.6.2 Principio da oficialidade O principio da oficialidade, também conhecido como impulso oficial ou impul- sao de oficio, traz consigo a possibilidade de a Administracdo, independentemente da provocagao do administrado ou servidor, instaurar 0 processo por sua livre ini- ciativa e, ainda, a obrigatoriedade de tomar todas as providéncias para a sua regular tramitacdo e instrug&o, de modo a se atingir a decisdo final. Acentue-se, portanto, que a instauracao do processo administrativo é imperati- va para o agente publico no exercicio de sua fungao administrativa. Impende, pois, considerar que o principio da oficialidade encontra-se expresso na Lei 9.784/99, em seu art. 22, XII, ao prever a “impulsao, de oficio, do processo admi- nistrativo, sem prejuizo da atuagao dos interessados”. Doutra parte, o art. 5° do diplo- ma legal supracitado prevé a hipétese de o proceso deflagrar-se de oficio ou a pedido do interessado; no art. 29, encontra-se a hipétese de a instrucdo processual realizar-se “de oficio ou mediante impulsdo do érgio responsével pelo processo”. Por derradeiro, encontra-se prevista a reviséo, que sempre sera possivel, independentemente da atua- so direta do interessado, nos termos do art. 65, “caput”, do diploma legal retrocitado. Enfatize-se, por oportuno, que independentemente da expressa previsdo legal atinente 4 oficialidade, é evidente que sua incidéncia existe em qualquer processo administrativo. A incidéncia do principio em questo é de cardter obrigatério para a concretizacdo do interesse publico e, no que toca A revisibilidade de oficio, encon- tra-se arrimo no principio da autotutela, expressamente reconhecido pela Simula 473 do STE. Verdade é que a instauracdo do processo administrativo significa a pendéncia de uma decisdo que, em suma, se constitui no interesse ptiblico perseguido, que nao pode ser descurado. Isso tanto é verdade que o art. 48 da Lei do Processo Ad- ministrativo Federal dispde, expressamente, que a “Administragdo tem o dever de explicitamente emitir deciséo nos processos administrativos e sobre solicitagSes ou reclamacées, em matéria de sua competéncia.” 5.6.3 Principio do informalismo A obediéncia & forma visa o estabelecimento de um rito procedimental, de sorte a atender ao interesse puiblico, protegendo, no mesmo passo, os direitos do particu- lar, de modo a no amesquinhé-lo. © Proceso Administrative 81 De fato, o princfpio do informalismo, também conhecido por principio da obe- diéncia 4 forma ou do formalismo moderado ndo significa, sob qualquer prisma, auséncia de forma. Ao contrario, as formas processuais administrativas existem. To- davia so significativamente mais simples do que aquelas encontradas no processo judicial, evitando, destarte, que o administrado possa ver os seus direitos deitados por terra por razGes de cardter meramente formal. Nao se olvide, em momento algum, que este ou aquele processo administra- tivo, por razées de cardter estritamente legal, implicam uma maior rigidez formal, a guisa de se preservarem os direitos individuais dos particulares. Ainda que seja possivel encontrar formas mais ou menos rigidas no direito administrativo, mesmo Tesses casos, e, por vezes, também para assegurar 0 direito individual do particu- Jar, a questao da forma pode e deve ser vista por outro prisma. No dizer de Ant6nio Carlos Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco: A experiéncia secular demonstrou que as exigéncias legais quanto & forma devem atender critérios racionais evitando-se 0 culto das for- mas como se elas fossem um fim em si mesmas. Esse pensamento € a manifestacao do principio da instrumentalidade das formas, o qual vem dar a justa medida de legalidade formal.” Em rigor, a questo da forma somente poderd ser atendida na medida neces- sdria para curar o interesse ptiblico, sem prejuizo dos direitos do particular, como, ali4s, muito bem preceitua a Lei do Processo Administrativo Federal que, em seu art. 22, inciso VIII, determina a “observancia das formalidades essenciais 4 garantia dos direitos dos administrados” e, logo a seguir, impée, em seu inciso IX, a “adocao de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, seguranca e respeito aos direitos dos administrados”. Logo, uma vez atingidos os valores prote- gidos em lei, eventuais defeitos de ordem meramente formal devem ser relevados, sob pena de se estabelecer 0 indesejado “culto das formas”. 5.6.4 Principio da gratuidade Como muito bem salienta Filvia Helena Gioia Paoli, a gratuidade ¢ forma de garantir ¢ viabilizar o exercicio do direito de peti- Sob 0 aspecto formal, ndo s6 0 proceso judicial, mas também o proceso ad- ministrativo, onde tenha se instalado uma controvérsia, somente reunird condig6es de prosperar, se observado 0 contraditério e a ampla defesa, nos termos do art. 5°, LY, de nossa Constituicéo Federal. Entende-se, assim, que o devido processo, em seu aspecto procedimental, garante 4 parte, como muito bem ensina André Ramos ‘Tavares, utilizagdo da plenitude dos meios juridicos existentes.”” % SANDIM, Emerson Odilon. O devido processo legal na Adminisiragio Piiblica com enfoques previdenciérios. S40 Paulo: LTr, 1997. p, 63-64. 3 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: principios constitucionais ¢ a Lei 9.784/99. 3. ed. atual., revista ¢ aumentada. Séo Paulo: Malheiros, 2007, p. 224 ss; TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. So Paulo: Saraiva, 2002. p. 483; BARROSO, Luis Roberto. Interpretagto e aplicagao da Constitui- fo: fundamentos de uma dogmética constitucional transformadora. 4. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2001. p. 214 = 228. 2 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 10. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2012. p. 648. 84 A Desconsideragio da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Embora a doutrina nao seja pacifica’* quanto ao significado de devido proces- so legal procedimental, temos que seu contetido abrange a defesa técnica, a cita- 40, produgao de provas, juiz natural, publicidade das decisées, recursos, duplo grau de jurisdicao. Entretanto nao pode mais a clausula do devido processo ser concebida apenas do ponto de vista procedimental. O devido processo, antes de tudo, deve ser conce- bido em sua faceta substancial. Como dito anteriormente, somente apés a Décima Quarta Emenda ea sua sis- temitica aplicaciio pela Suprema Corte Americana a cléusula do devido proceso foi tomando corpo, agregando ao aspecto procedimental uma abrangéncia substancial, de tal sorte que a razoabilidade e 0 contetido do ato legislativo possam ser aprecia- dos pelo juiz. Em outras palavras, somente observa os ditames do devido processo legal substancial aquela lei que nao agride os princ{pios fundamentais consagrados no mandamento constitucional. Carlos Roberto de Siqueira Castro, examinando a questo, e com sustentaculo no direito norte-americano, vé na cléusula do devido processo legal substantivo im- Pportante instrumento protetor das liberdades piiblicas: © exame do direito yankee possibilitou, a sua vez, a melhor com- preensao das duas fases dessa garantia constitucional, a processual (procedural due process) e a substantiva (substantive due process). Esta ultima, muito especialmente, revelou-se uma inesgotavel fonte de criatividade constitucional, a ponto de haver se transformado, ao lado do principio da igualdade (equal protection of the laws), no mais importante instrumento juridico protetor das liberdades publicas, com destaque para a sua novel fungao de controle do arbitrio legis- Jativo e da discricionariedade governamental, notadamente da “ra- > Para Nelson Nery Jinior o devido processo legal € formado por subprincipios: (i) isonomia: ji) juiz e promotor natural; (i) inafastabilidade do controle jurisdicional; (iv) contraditorio; (v) proibigao da prova ili- Cita; (vi) publicidades dos atos processuais; (vil) duplo grau de jurisdi¢ao; (viii) motivagao das decisoes judi- ciais. Principios do processo civil na Consttuio Federal. 6. ed. S40 Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 42. Para Antonio Carlos de Araijo Cintra; Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco o devido processo legal possui o seguinte contetido: (i) juiz natural; (i) ampla defesa e contraditério; (ii) igualdade processual; Gv) publicidad; (v) motivagio; (vi) vedacio as provas ilicitas; (vi) inviolabilidade do domicilio; (vii) sigilo das comunicagées e dados; (ix) presungéo de no culpabilidade; (x) vedacéo a identificacdo datiloscépica de pessoas jé identificadas civilmente; (xi) indenizacdo por erro judicidrio e por pristio que supere os limites da condenagZo; (xii) decretagao de prisdo apenas por autoridade judicidria comperente; (xii) imediata comuni- cacao da prisao ao juiz; (xiv) direito a identificagao dos responsaveis pela prisao ou pelo interrogatério; (xv) liberdade proviséria, nos casos estipulados em lei; (xvi) vedagao a incomunicabilidade do preso (Teoria geral do ‘processo. 23. ed. So Paulo: Malheiros, 2007. p. 88-91). No campo do direito administrative Licia Valle Figuei- redo explicita os seguintes principios, como decorrentes do devido processo legal: (f) “juiz natural” ou admi- nistrador competente; (fi) amplo contraditério; (ii) igualdade entre as partes; (iv) motivacao das decisées; (v) direito a produgao de provas; (vi) verdade material; (vii) informalismo a favor do administrado; (vii) direito a revisibilidade; (ix) direito & defesa técnica; (x) direito ao siléncio; ¢ (xi) proibico de reformatio in pejus (Curso de direito administrativo, p. 444 — 454). © Processo Administrative 85 zoabilidade” (reasonableness) e da “racionalidade” (rationality) das normas juridicas e dos atos em geral do Poder Publico.” O que se deduz é que o sentido substancial do devido processo permite 0 exa- me do contetdo da lei de acordo com critérios de racionalidade e razoabilidade. Estamos perante a possibilidade de se examinar 0 mérito da disposi¢do legislativa, alijando do mundo juridico a lei arbitraria, repelindo, assim, discriminacSes desar- razoadas ou protecionistas. Nesse mesmo sentido, 0 pensamento de Lticia Valle Figueiredo: Na emenda 14, hé uma grande transformagio, isso porque jé ndo mais se fala apenas do devido processo legal, mas de igual protecio da lei: equal protection of law. Ent&o, depois da Emenda 14, sobretudo com a aplicagdo que a Suprema Corte Americana fez da cléusula, dé- -se abrangéncia muito maior. O devido processo legal passa a signi- ficar a “igualdade na lei”, e nfo s6 perante a lei. £ uma distancia enorme entre respeitar-se a igualdade em face da lei € outra coisa, como a breve passo nos referiremos, é se atentar para a igualdade dentro da lei. Assim, 0 due process of law passa a ter contetido material e nao mais apenas formal — passa a ter duplo contetido e vamos ver que, tam- bém, em alguns prine{pios processuais, aparece com duplo conteti- do, com contetido substancial e com contetido formal. Somente seré due process of law aquela lei — e assim poderd ser aplicada pelo Magistrado — que nao agredir, nao entrar em confronto, no entrar em testilha com a Constitui¢ao, com os valores fundamentais con- sagrados na Lei das leis.” A precitada autora agrega ao aspecto substantivo do devido processo o princi- pio da igualdade, ou, mais precisamente, a igualdade na lei e nao somente a igualda- de perante a lei que, no seu entendimento, s4o coisas absolutamente distintas. Lucia Valle Figueiredo esposa teoria de que a observancia do devido processo depende, preliminarmente, da observancia do principio da igualdade. Assim, se o ato legis- lativo estabelecer um discrimen, esse deve guardar uma proporcionalidade com a fi- nalidade desejada, néo podendo ser desarrazoado ou ilégico, sob pena de se ferir 0 princtpio da igualdade na lei e, via de consequéncia, o devido proceso legal. % SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituipdo do Brasil, p. 3, grifos do autor. “FIGUEIREDO, Licia Valle. devido processo legal e a responsabilidade do estado por dano decorrente do planejamento. Génesis, Revista de Direito Administrative Aplicado, Curitiba (6), setembro de 1995, p. 612. 86 A Desconsideracdo da Personalidade Juridica nas Contratagies Pablicas + Pires Com efeito, a 6tica substantiva do devido processo permite ao Poder Judicidrio estabelecer um controle de constitucionalidade de leis, em consonancia com os va- lores e preceitos protegidos pela Constitui¢ao Federal. Em que pesem as conclusées alcangadas por Lucia Valle Figueiredo, cabe aqui arguir se a questo do devido processo legal substancial estaria restrita exclusiva- mente a igualdade na lei? Apés refletirmos sobre essa questo, instigados por Clovis Beznos, nosso orien- tador, é de se concluir que o devido processo substantivo encontra-se intimamente ligado com a questo jurisdicional. Isso tanto é verdade que serd licito ao julgador adentrar na substancia da lei, apartando-a de nosso ordenamento jur{dico quando em desacordo com preceitos e valores protegidos pelo direito. Resulta, daf, que o juiz, a par de um texto constitucional permeado por princi- pios que exigem uma constante interpretagdo, tenha um significativo espaco para o exercicio de uma atividade criadora. Coerentemente com essa linha de pensamento, esté claro que a criagio judicial nao pode se equiparar ou substituir a atividade legislativa.* Entretanto, o atendi- mento ao devido processo legal substancial ¢ capaz de tornar possivel ao juiz “dizer © direito”, servindo, pois, como uma pauta aberta para canalizar valores que deixa- ram de ser protegidos no contexto da atividade legiferante, de modo a acomodé-los no contexto de nosso sistema juridico. Finalmente, vale lembrar que a cldusula substantiva do devido processo nao se restringe apenas ao legislativo no exercicio de sua fungao legiferante. Aplica-se, também, aos atos do Poder Executivo, permitindo o controle dos atos normativos disciplinadores de liberdades individuais. “Maria Rosynete Oliveira Lima afirma que a “interpretacao ¢ criagao judiciais néo so, pois, atividades an- titéticas, jf que 0 juiz, ao trabalhar com as normas, acaba por reproduzi-las, aplicd-las e realiz4-las em novo e diverso contexto, de tempo e lugar” (Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 236). 6 A Aplicacao Subsidiaria da Lei do Processo Administrativo Federal nas Sancoes Decorrentes das Licitacoes e Contratos J& examinamos, nos capitulos precedentes, as penas constantes dos arts. 86 € 87 da Lei 8.66/93, bem como aquela prevista no art. 7%, da Lei 10.520/02. Entre- tanto nada foi falado acerca do procedimento necessario para a aplicagao de penali- dades, pelo que passamos a examinar a questao. A multa de mora, prevista no art. 86 da Lei 8.666/93, somente podera ser aplica- da apés a instauracao de regular processo administrativo. De sua vez, logo a seguir, 0 art. 87 prevé que pela inexecucdo total ou parcial do contrato a Administracdo poder, garantida a prévia defesa, aplicar as sancées de adverténcia, multa, suspensao tempo- raria de participagao em licitacao e impediment de contratar com a Administracio, e, finalmente, a declarac4o de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administra- 40 Publica. No § 2° do mesmo dispositivo — art. 87 - encontra-se estabelecido que as sancoes de adverténcia, suspensao ¢ declaracdo de inidoncidade poderao ser aplicadas juntamente com a multa, facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo pro- cesso, no prazo de 5 (cinco) dias titeis. Por tltimo 0 § 3° dispde que para a declaracao de inidoneidade fica facultada a defesa do interessado no respectivo proceso, no pra- zo de 10 (dez) dias contados da abertura de vista. No que concerne ao art. 7° da Lei 10.520/2002, estabeleceu-se o impedimento de licitar e contratar com a Unido, Estados, Distrito Federal ou Municfpios, sem,

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