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Durval Muniz (15 de setembro de 2019)
Vejo por todo lado um enorme entusiasmo com o filme Bacurau, dos diretores Kleber
Mendonça Filho e Juliano Dornelles, até porque o filme recebeu o prêmio do júri do
Festival de Cannes (sabemos como nosso complexo de vira-latas valoriza algo nacional
quanto e só quando reconhecido internacionalmente, muitos não teriam ido assistir o
filme se não fosse o prêmio), e na ocasião atores e diretores se posicionaram
publicamente de maneira bastante crítica em relação a situação política e social
brasileira. Esses eventos, de cara, prepararam uma recepção bastante favorável ao filme
entre os setores mais à esquerda do espectro político. A filmografia anterior de Kleber
Mendonça Filho também gerava a expectativa de estarmos diante de um novo trabalho
que continuaria o questionamento da violência inerente às relações sociais no Brasil, das
desigualdades sociais, dos problemas urbanos do país, como a especulação imobiliária,
dos traços, ainda presentes em nossas cidades, de nosso passado senhorial, escravista,
coronelista, patriarcal, paternalista, estamental, machista, racista, etc. Filmes como
o Som ao Redor e Aquarius, curtas metragem como Recife Frio e Eletrodomésticas,
credenciavam o cineasta como um renovador do imaginário em torno da própria região
Nordeste, trazendo para as telas a sua realidade urbana e metropolitana, as contradições
sociais e as relações sociais violentas e anacrônicas que constituem o próprio tecido
social da vida citadina nessa área do país. Todos esses elementos prepararam uma
recepção bastante favorável para o filme que, nos dias sombrios em que vive o país, foi
enunciado e elevado, por importantes críticos e intelectuais brasileiros, à condição de
símbolo de resistência das forças progressistas do país, diante da deliberada
perseguição às atividades culturais e, inclusive, da explícita censura a Agência Nacional
de Cinema e do desmonte das políticas de apoio a produção audiovisual brasileira.
Pretendendo ser uma narrativa distópica, ou seja, que apresenta uma localização
espacial e temporal imprecisas (oeste de Pernambuco, em um tempo futuro), seria,
também, a apresentação de uma realidade social aprisionada num presente sem utopias,
sem esperanças, um presente contínuo, como se estivessem todas as pessoas
aprisionadas numa espécie de pesadelo sem fim. A falta de sentido das ações da maioria
dos personagens, de toda a trama ali narrada, de tudo que se desenrola no filme, confere
esse caráter distópico pretendido pelos autores da trama. Muitos viram aí um brilhante
diagnóstico de nosso mundo contemporâneo, de nossa realidade nacional e global, um
dos fatores, talvez, para a premiação internacional da trama. O filme denunciaria esse
mundo sem utopias em que vivemos, esse mundo da violência gratuita, da banalidade da
violência e do mal, esse mundo facistoide e paranoide no qual sequer sabemos bem por
que estamos morrendo, quem está nos matando, que forças ocultas governam as nossas
vidas e delas se apoderam. A angústia e o mal estar provocados pelo filme, a náusea na
boca do estômago que nos acompanha na saída do cinema, o choque provocado pelas
imagens de extremada violência que compõem o filme, literalmente um banho de
Mas como toda obra artística, como toda obra que lida com imagens, Bacurau mobiliza
um arquivo imagético e enunciativo, mobiliza, inclusive, todo um imaginário constituído
pela própria produção cinematográfica brasileira, e, ao fazer isso, muitas vezes,
passamos da narrativa distópica para uma narrativa utópica e uma narrativa utópica
anacrônica. A sobrevivência das imagens, o anacronismo das imagens, tão bem
teorizados pelo historiador da arte Georges Didi-Huberman faz com que, muitas vezes,
os clichês imagéticos, muitos deles advindos da filmografia do Cinema Novo, reponha
em meio a narrativa distópica uma narrativa utópica anacrônica e estereotipada, que faz
com que esse pretenso tempo futuro em que se passaria a trama, que faz com que o
presente em que vivem presos os personagens, apareçam como sendo um passado ainda
não superado, como arcaísmos que teimam em sobreviver como fantasmas. Um filme em
que o desejo de morte se explicita, desde as primeiras cenas, povoadas de caixões e
cadáveres, com os quais se tropeçam pelas estradas, parece querer nos dizer que os
mortos não morrem, que muitos fantasmas obsedam nosso cotidiano e nos governam.
Sabemos que essa é uma tese presente em todos os filmes de Kleber Mendonça Filho: o
passado da casa-grande e da senzala ainda não foi superado entre nós, seus fantasmas
ainda habitam nosso presente, até mesmo nas sonoridades que ouvimos ao nosso redor
e, notadamente, na violência extremada das nossas relações sociais. Só que, em Bacurau,
há um outro regime de anacronia, há outras imagens sobreviventes e fantasmáticas que
habitam a pequena e empoeirada cidadezinha do sertão: (já que oeste de Pernambuco é
sertão, não é tão utópica assim a trama) as imagens ligadas ao imaginário da revolução,
ao imaginário político das esquerdas no país, ao imaginário da transformação radical da
sociedade com uso da violência. Mais uma vez, num filme de Kleber Mendonça Filho, é a
sonoridade anacrônica da canção revolucionária de Geraldo Vandré que vem repor ou
propor um sentido para todo o sem sentido do que vemos, nauseados, à nossa frente, ele
canta: “se alguém tem que morrer, que seja pra melhorar”.
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necessária elaboração de um novo imaginário político por parte das forças da esquerda.
Ao repor, talvez até com a intenção de mostrar o sem sentido, nos dias que correm,
desse imaginário da revolução, ou, talvez apontando para sua ausência nos dias que
correm, e a falta de sentido da violência em que vivemos (o que é dito pela canção de
Vandré que pontua a trama), Bacurau termina por ter uma recepção que recoloca em
circulação esse imaginário, num momento em que a o fascismo e sua apologia da morte e
da violência dominam o país.
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Ao ver, estarrecido, a plateia vibrar e aplaudir entusiasmada, o fato de que uma cabeça
de um ser humano foi arrebentada por um tiro, fiquei a refletir como os intelectuais e
artistas de esquerda parecem não se dar conta de como o imaginário que veiculam está
muito próximo daquele veiculado pela direita, pelo fascismo. Não estaria na hora das
esquerdas enterrarem o imaginário jacobino da revolução, e produzirem outro
imaginário que não leve água para o moinho da legitimação da morte, do derramamento
de sangue, da desumanização do outro, daquele considerado inimigo, tão presentes no
imaginário das forças reativas e reacionárias? Nesse aspecto, as ambiguidades da
narrativa de Bacurau são reveladoras. A trama tem uma fácil recepção porque, num
primeiro plano, apela para o maniqueísmo de bases religiosas e cristãs entre as forças
do bem e do mal. Há os invasores, os estrangeiros, os alienígenas, os de fora, os
estranhos, que representam o mal (numa época de criminalização e ódio aos imigrantes,
aos estrangeiros, isso soa extremamente reacionário) e há os de dentro, os da
comunidade, os da pequena sociedade local, há os da terra, que representam o bem. A
anacrônica nostalgia da vida comunitária, da vida da cidade pequena, dos sertões, um
certo pastoralismo nostálgico, tão característico das esquerdas anos sessenta, aí se faz
presente. Os personagens que representam os de fora são caricaturais, rasos
psicologicamente, sem complexidade e profundidades humanas, porque claramente
estamos diante de tipos, os personagens-tipos, os personagens-símbolos da narrativa do
realismo italiano ou do Cinema Novo. Os diálogos em que pretensamente apresentam os
motivos para estarem participando da carnificina que estavam perpetrando, são de um
clichê e de uma banalidade psi que é de quase provocar riso: um deles não conseguiu
matar a mulher que o abandonou e agora estava externalizando a violência contra a
mulher que não conseguira realizar matando inocentes, sem saber bem do porquê (se
essa cena pretendeu ser uma crítica ao machismo e um aceno para o feminismo, é
lamentável. Reduzir a violência masculina a banalidades como essa é empobrecer em
muito o debate). Esse maniqueísmo favorece a recepção do filme por uma esquerda que
ainda pensa, muitas vezes, a luta de classes como uma luta entre as forças do bem e do
mal, de Deus e do diabo (leitura que Glauber Rocha sempre questionou, para fazermos
justiça a ele, embora seus filmes complexos não deixaram de alimentar esse imaginário).
A luta entre imperialistas e nacionalistas, a luta entre ianques e brazucas (nacionalismo
rastaquera partilhado pela direita boçal), serve de leitmotiv para a vibração de galera de
campo de futebol diante de uma cabeça colonialista explodida por um tiro de um
brasileiríssimo e sertanejo bacamarte (talvez também uma homenagem a um dos
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primores da cultura popular pernambucana, a qual o filme está cheio de referências e
reverências: os bacamarteiros de Caruaru)
Mas em segundo plano, um aspecto que não me parece ser bem recepcionado pelas
plateias, o filme relativiza o maniqueísmo ao colocar entre as forças do bem
personagens bastante questionáveis: um dos “heróis” da trama, havia acabado de
retornar a Bacurau, para participar do enterro da matriarca e líder da comunidade
(encarnada por outro ícone da cultura popular pernambucana, a cirandeira Lia de
Itamaracá, que no final do filme adquire a condição de entidade sagrada. As esquerdas
brasileiras sempre tiveram um pé na sacristia e no misticismo), vindo da cidade onde
vivia como matador de aluguel. As imagens dos “tecos” que dava na cabeça de suas
vítimas, gravadas por câmeras de segurança, se tornam, inclusive, uma atração
midiática, nas noites pouco animadas de Bacurau. As crianças se reúnem em torno da TV
para assistirem as execuções sumárias e a soldo, de nosso “herói” que luta contra as
forças invasoras e imperialistas. O grande líder da “resistência”, aquele que vai se lavar
com sangue e se mostrar um exímio cortador de cabeças (qualquer semelhança com
nossos presídios não é mera coincidência), está foragido das forças da ordem, da polícia,
não sabemos bem porque e vive escondido no miradouro de uma grande barragem sem
água (a distopia futurista e sertaneja seria também, encarnada pelas obras faraônicas
contra as secas, entregues a um futuro de mudanças climáticas e agressões à natureza,
que as reduziria a condições de ruinas, de escombros, como costumam ser figurados os
espaços distópicos). As forças do bem, as forças nacionais, os rebeldes, os resistentes,
parecem também beirar a marginalidade (seria fruto das condições sociais? Seria o
capitalismo à brasileira o responsável por produzir, entre os pobres, esses heróis
marginais? A violência que externalizam seria fruto do ódio ao sistema, ou seria reações
individuais a condições adversas da vida? O filme não trás nenhum elemento de
resposta). A ambiguidade da situação é notória: os líderes da defesa da cidade são
aqueles que vivem no mundo da violência e do crime. Uma liderança intelectual como o
professor ou como a médica não são aqueles que se colocarão a frente da luta sem
sentido que ali se trava. A quase selvageria de Lunga, o homem vindo das margens do
social, se sobrepõe a sabedoria dos intelectuais da cidade.
Num país tomado pelo desejo de morte, como esse em que vivemos. Num país onde os
governantes de plantão fazem a apologia da morte e da violência. Num país que elegeu
um presidente que faz arminha com as mãos, e que é partidário da liberação
indiscriminada do uso de armas. Num país em que um governador de estado vibra com a
morte de uma pessoa. Num país em que um adolescente negro é chicoteado como um
antigo escravo porque roubou chocolates para matar a fome. Num país em que um
deputado, vestido com farda militar, oferece, no plenário da Assembleia Legislativa, dez
mil reais para quem mate um bandido, em que lideranças de esquerda estão sendo
mortas. Num país em que as milícias estão no poder, significa resistência um filme que
alimenta esse imaginário da violência e da morte, gratuitas e sem sentido? A pretexto de
fazer uma narrativa distopica, os dois cineastas fazem uma narrativa sem sentido. A
história é literalmente mal contada, as ações parecem gratuitas e desproporcionadas.
Afinal, porque um nazista (o clichê é constante no filme) está interessado numa terra
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onde Judas perdeu as botas e o cinema brasileiro amarrou o seu burro? Afinal, porque
estão matando as pessoas indiscriminadamente, inclusive crianças? Há cenas que nos
leva a concluir que estão matando pelo mero prazer de matar (após liquidar um casal
que fugia amedrontado de Bacurau em um veiculo, os matadores sentem desejo de fazer
sexo, ali mesmo no matagal), mas isso é reduzir a violência a um mero impulso natural
(sabemos que como animais temos impulsos agressivos e violentos, mas afinal somos
seres sociais e culturais que passam por um processo de socialização que recalca e
sublima essas tendências agressivas). Será que vamos repor esse imaginário de que o
sertão nordestino é o lugar de homens animalizados, violentos, selvagens, fora da
civilização? Eu suspeito que Cannes premiou o filme porque, justamente, os europeus
adoram se reafirmarem como centro da civilização e se deleitam quando a produção
cultural da “periferia” assume o que seria a selvageria ou a barbárie de seus costumes e
sociedades.
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O filme está cheio de clichês típicos do cinema brasileiro para agradar as plateias
internacionais, uma reposição de lugares comuns que facilita a recepção do filme. As
cenas de sexo sem nenhum propósito, em situações as mais inusitadas, reforçando o
imaginário que torna o Brasil um dos destinos preferidos do turismo sexual. O nu
despropositado do casal que habita uma casa de taipa perto da cidade e que são
atacados pelos invasores por serem líderes da comunidade. Ele cultiva ervas e distribui
pequenas capsulas alucinógenas que animam o espírito da resistência (denúncia do
tráfico de drogas? Valorização dos saberes tradicionais, das drogas naturais? Expressão
do próprio surrealismo da situação e da trama, do próprio mundo em que vivemos?) O
imaginário em torno do sertão, a cidadezinha perdida no meio do nada, embora, como
habita o futuro, esteja cheia de aparatos tecnológicos modernos, usados, no entanto,
muitas vezes para fins arcaicos (o drone dos invasores que tem o formato de um disco
voador de filme B é puro nonsense). O indispensável cortejo religioso, pois sem
messianismo e sem cangaço (os “heróis” da trama, onde se inclui uma Maria Bonita,
remetem ao imaginário do cangaço, como a cena das cabeças cortadas na porta da
igreja) não há Nordeste ou sertão (mesmo distópicos), como não existem sem coronéis e
jagunços (mesmo que hoje o coronel chegue de carro moderno, caminhões de som e
traga aparatos tecnológicos e os jagunços andem de motocicleta e se vistam com roupas
de rali). Bacurau termina por reproduzir o mesmo imaginário sobre o Nordeste, de terra
da violência bárbara e sem sentido, terra onde a religiosidade se mistura com o crime. O
uso de atores naturais, remetendo a tradição pasoliniana do Cinema Novo, tem a
pretensão populista de colocar a verdadeira cara do povo no cinema. Será que Kleber
Mendonça Filho e Juliano Dornelles querem ser os novos Glauber Rochas, alimentando o
mesmo imaginário sobre o Nordeste, sobre o sertão que a filmografia glauberiana
alimentou e fez circular, com beleza e maestria? Cannes já os reconheceu, talvez porque
tenha reconhecido neles a reposição do imaginário do Cinema Novo, em tempos de
distopia, e não de utopia.
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sempre foi mais transformadora do que a revolta e a revolução sanguinárias. Será
mesmo a morte o caminho para melhorar? Será matando o outro, o inimigo, o estranho,
o diferente, o distinto, o distante, que vamos melhorar o mundo em que vivemos?
Tornar-se homicida, assassino, mesmo com a justificativa de melhorar, representa
efetivamente avanço humanitário? Se justificamos a possibilidade da morte e do
extermínio do outro, como vamos política e eticamente nos contrapormos as forças da
morte que querem nos eliminar e exterminar por sermos de esquerda, comunistas,
vermelhos, petistas, maconheiros, gays, feministas, trans, negros, do candomblé, ateus,
etc, etc, etc. Ao invés de celebrarmos o poder transformador da morte, do sangue
(imagem mais judaico-cristã impossível), não seria melhor celebramos o poder
transformador da vida? Ninguém tem que morrer, ainda mais para melhorar!