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“No cérebro as decisões mais rápidas são as emocionais, não as cognitivas. Isso faz do sistema límbico o foco
neurológico adequado ao ordenamento sócio-tecnológico que está orientado pela circulação de fluxos de natureza
diversa. Comunicação moderna é fluxo. Comunicação moderna é circulação, é velocidade. Desde os fluxos
financeiros até os fluxos informacionais.” – Muniz Sodré
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Elementos do resumo:
● Muniz Sodré de Araújo Cabral é um jornalista, sociólogo e tradutor brasileiro, professor emérito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Escola de Comunicação. Exerceu de 2009 a 2011 o cargo de
Presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
● Nasceu em São Gonçalo dos Campos, na região de Feira de Santana, filho do comerciante de tecidos, poeta
e vereador Antônio Leopoldo Cabral. Tem duas filhas, três netas e atualmente é casado com a também
professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Raquel Paiva.
● As Estratégias Sensíveis (2006) é o primeiro trabalho brasileiro sobre a importância crescente dos afetos na
cultura contemporânea e dialoga diretamente com a obra Antropológica do Espelho: Uma Teoria da
Comunicação Linear e em Rede (2002).
● Foi escrito em 2006, era em que os dispositivos eletrônicos consolidavam sua trajetória de sucesso no seio
dos lares brasileiros, bem como o início das redes sociais, jogos virtuais, entre outros. Assim, Muniz Sodré
preocupa-se com o fato de a mídia ser parte constituinte de uma nova forma de vida pautada nos
dispositivos eletrônicos e nas relações virtuais. A partir disso, explora o conceito de um novo bios que se
articula, depende e vive por meio dessas conexões na contemporaneidade.
● Sodré repara que a mídia referencia o homem, que passa a usá-la para dar sustentação à cultura e,
consequentemente à sua capacidade de compreender as coisas. Portanto a mídia é hoje, instrumento de
direcionamento ou de criação de subjetividades que surgem ou são moldadas e tornam-se dependentes,
sedentas por informações e tecnologia no que Muniz Sodré chama de bios midiático.
● Estratégias sensíveis (2006) visa tratar, de maneira sucinta, sobre a superioridade do sensível nas interações
humanas e suas formas de manifestação na sociedade contemporânea no campo das mídias, da política e
das expressões espontâneas da cultura.
● Engana-se quem vai a obra de Muniz Sodré esperando encontrar ali uma abordagem do tema do afeto na
sua forma mais expressivamente traduzida, encarada como manifestação sensível propiciada pela ação
artística em momentos individuais de exaltação. Ao contrário, nos três primeiros capítulos, o tema do afeto
é tratado em seu viés domesticado, sob controle das tecnologias midiáticas e a serviço da ação política e
econômica atuais, obviamente fortalecidas pela mediação dos veículos de comunicação.
● Estratégias sensíveis (2006) enreda o leitor por uma cativante e nada fácil trajetória sobre as diferentes
formas de pensar a questão do afeto como uma das manifestações mais evidentes e vigorosas de
interação e comunicação humanas.
● Tendo como premissa inicial a afirmação do estudioso Mario Perniola no sentido de que vivemos uma
época estética, concebida não em relação direta com as artes, mas fundada em regimes do sensível, ou do
estésico, Sodré lança a questão que deverá nortear todas as suas reflexões: a pergunta sobre a
possibilidade de existência de uma potência emancipatória na dimensão do sensível, do afetivo ou da
desmedida, para além, portanto, dos cânones limitativos da razão instrumental.
4.1. O AFETO:
● Presente em todas as formas de pensamento, o afeto diz respeito expressividade e interação humanas,
inclusive no plano da corporeidade, o que conduz a reflexão filosófica a focaliza-lo nas suas considerações
sobre o homem, suas experiências no mundo e com outros seres humanos. Sufocado ao longo dos séculos
pelo primado da razão cognitiva e pelo selo do processo civilizatório, o afeto constitui foco de discussão de
várias teorias, mesmo quando convocado para ilustrar, no negativo, os meandros da racionalidade.
● Pivô de discussões seculares, o afeto acaba se integrando a um debate calcado na visão dicotômica entre o
racionalismo cognitivo e as perturbações da alma, em cujo seio vem sendo tratado como o lado
inapreensível ou secundário diante do primado do racionalismo cognitivo do logos unificador. Segundo
Sodré, isso se torna mais evidente no universo midiático, ou no bios virtual, em que as formas de ação
individual e social passam a ser mediadas por processos tecnológicos e, na qualidade de mediações,
assumem a feição do espetáculo.
● Afeto, emoção, sentimento e paixão são noções abordadas, de maneira cativante, a partir de seus conteúdos
etimológicos e das significações que adquirem ao longo dos séculos. Todas envolvem a realização estética
no sentido da proposição emocionalista do estar juntos, portanto, convocam não apenas a mente, ou o
espírito, para esta fruição, mas, em especial o corpo; são atributivas das transformações da corporeidade
que estão na origem das manifestações fóricas com que os sujeitos interagem no mundo.
● Nos fenômenos da simpatia, da antipatia, do amor, da paixão, das emoções, mas igualmente nas relações
em que os índices predominam sobre os signos com valor semântico, algo passa, transmite-se,
comunica-se, sem que nem sempre se saiba muito bem do que se trata.
● Profundamente imersos num processo civilizatório em que as imagens exercem um poder inédito sobre os
corpos e os espíritos, começamos de fato a nos inquietar com o mistério da realidade sensível de todos
esses signos visíveis e sonoros que administram o afeto coletivo e a também a indagar sobre o
encaminhamento político de nossas emoções. É aqui então que o agir ético-político, quando acontece, faz
emergir o ser comum como possibilidade de inscrição do diverso na trama das relações sociais, para além
das medidas fechadas da razão instrumental e da lei estrutural do valor: o capital.
● Muito antes de se inscrever numa teoria (estética, psicologia, etc.), a dimensão do sensível implica uma
estratégia de aproximação das diferenças – decorrente de um ajustamento afetivo, somático, entre partes
diferentes num processo –, fadada à constituição de um saber que, mesmo sendo inteligível, nada deve à
racionalidade crítico-instrumental do conceito ou às figurações abstratas do pensamento.
● As experiências sensíveis podem orientar-se por estratégias espontâneas de ajustamento e contato nas
situações interativas, mas salvaguardando sempre para o indivíduo um lugar exterior aos atos puramente
lingüísticos, o lugar singularíssimo do afeto.
● É verdade que as mídias e a propaganda têm mostrado como estratégias racionais não espontâneas podem
instrumentalizar o sensível, manipulando os afetos. Na maioria das vezes, porém, tudo isso se passa em
condições não apreensíveis pela consciência.
● A diversidade dos modos de sentir e, ao mesmo tempo, a singularidade por vezes radical de cada
experiência configurada fazem do sensível uma espécie de terreno brumoso para a consciência do sujeito
auto-reflexivo, porque o lançam numa imediatez múltipla e fragmentada, onde os julgamentos tendem a
ser mais estéticos do que morais.
● A matéria da estética considerada em sentido amplo é o modo de referir-se a toda a dimensão sensível da
experiência vivida.
● Sodré aborda todas essas questões com o intuito de compreender a viabilidade de seu papel na ação ética,
numa sociedade de interesses técnico-econômicos, baseada no consumo como a atual. Para o autor, a
estesia atingiu um tal grau de intensificação na sociedade capitalista atual, que se manifesta sob forma
codificada pela dinâmica de uma sensibilidade coletiva dirigida para o consumo, para as formas de
aglomeração, ou para o exercício do poder político, mais afeito à pura gestão tecnoburocrática do que a
uma ação ética.
4.4. O COMUM:
● O centramento na ideia de comum é ponto chave da reflexão de Muniz Sodré, pois pressupõe o estar
junto como condição fundamental para a construção dos sentidos. Deve ficar claro, no entanto, que o
princípio do estar junto não se efetiva pelo aglomerado físico de individualidades e, sim, pela sintonia
sensível das singularidades ou pela vinculação humana na pluralidade do comum.
● Um novo conceito de comum privilegia a dimensão técnica do homem, porque passa a ser não só operado
pelas mídias e pelas tecnologias de distribuição da informação, como elas próprias se convertem no novo
espaço social ao qual o homem se integra organicamente. Por conseguinte, adquirem papel preponderante
nesse universo a imagem e o espetáculo, concebidos como formas de difusão constantemente presentes da
mensagem unívoca do mercado.
● O fato marcante a ressaltar no raciocínio de Sodré é a abordagem desses fenômenos como elementos
constitutivos da realidade. Não se trata, em síntese, de considerar a imagem e o espetáculo em suas
propaladas e polêmicas naturezas representacionais e, sim, de circunscrevê-los enquanto uma espécie de
ordenamento social, ou um bios midiático em que a partilha das experiências se consolida na dimensão de
uma antropotécnica sob a primazia dos efeitos de sentido de uma tatilidade generalizada.
4.5. A ALEGRIA
● Depois de nos conduzir num torvelinho de idéias, que cruza o terreno polêmico de discussão dos afetos ao
longo da formação do pensamento ocidental para revelá-los em suas exacerbações presentes no empenho
sedutor das tecnologias da comunicação, inclusive acionadas para a constituição de uma imagem
espetacularizada da democracia (cosmética), o autor nos envolve na atmosfera do regime afetivo da alegria.
Não a alegria como estado emocional reativo e, sim, o domínio de um sentimento afetivo pleno,
configurado como uma fusão da interioridade com a exterioridade, pela mediação do corpo, entregue à
expressividade livre, não-sígnica, nem domesticada, em sintonia existencial com o grupo e com o mundo.
● Por que a alegria? Ela não convoca causas para a sua existência. Tampouco é um contato com a
surpresa ou o inesperado. Está sedimentada num estado promotor de si mesmo, sem causa. Nesse sentido, a
alegria é análoga à liberdade política, ou seja, àquilo que está ausente nas formas de sensibilidades
acionadas pelas mídias.
● Como a mídia e a política podem, através do afeto, ganhar uma nova dimensão?
“Afeto é um dos nomes, uma das formas do sensível. Significa uma dimensão cognitiva que é diferente da
lógica, da racionalidade puramente argumentativa. Isso atravessa toda a História do Ocidente. É nas leis,
principalmente, também na República, que Platão faz a separação entre pa-ideia (a educação, a grande
cultura circulativa e argumentativa) e pa-itia (que quer dizer jogo, o que é lúdico: as relações amorosas, os
prazeres). O Ocidente de algum modo acompanha essa divisão e dá o primeiro lugar à razão instrumental e
à pa-idea, à grande formação educativa do homem para o domínio do mundo, do trabalho, para as leis, para
a ciência. No entanto, eu acho que o que a Modernidade tecnológica traz é a possibilidade de você
reinstalar o afeto, portanto o sensível na vida social porque a tecnologia, a técnica, não é equipamento,
apenas; é um outro modo de você se relacionar com a cultura e com o conhecimento. Quando você se dá
conta do que está em jogo (digamos, na televisão, na internet) não é mais a velha lógica platônica
argumentativa. Quando você se pergunta o que é que tá em jogo aí, você começa a redescobrir o sensível e
o afeto. Por exemplo: o que está em jogo, o que importa na televisão não é tanto o conteúdo da grande
cultura redistribuído, mas um novo modo sensível de se relacionar com o conhecimento que não passa pela
lógica da velha cultura. É um tipo de sociabilididade que se cria, uma sensibilidade. Se na televisão isso
não fica muito claro, fica mais claro na internet, onde é um tipo de lógica mais indicial, uma lógica que
implica a presença do usuário junto a qualquer produto cultural, à atividade dele, à comunicabilidade. Você
vê que o que está em jogo hoje, o que está acontecendo, por exemplo, nas redes sociais (que ainda são
muito superficiais, ainda é muita fofoca, é muito falatório), mas a mobilização que essas novas redes (que
eu chamo “afetivas”) criam é enorme, e é irreversível. E isso fatalmente virá refluir para a educação.
Fatalmente virá refluir pra cultura que produzimos, que reformamos. E isso já está na política, por inteiro.
Na verdade a política hoje é feita disso. Só que nós tomamos o “afeto” apenas no sentido “positivo”, afeto
como uma coisa boa. Mas o ódio também é afeto. O desprezo também é afeto. É o que afeta a gente, são as
afecções do corpo. Então a questão do afeto, a questão do sensível, é a questão de uma estética social. Não
se trata de bons ou de maus sentimentos. É a decisão de quem entra no jogo social por voz, por, por
visibilidade. É tudo isso que implica o afeto. A vida social é movida pelo sensível, não por razão.”
[Muniz Sodré em entrevista para Ciência & Letras, Canal Saúde, 6 de dezembro de 2012]
● Essa questão da sensibilidade, do afeto, tem algo a ver com ser brasileiro, especialmente?
“Não. Isto é, eu diria, universal. Eu acho que em qualquer lugar a tecnologia veio com a possibilidade de
instalar uma lógica afetiva. Mas no caso do Brasil nós temos que ver como é que esse afeto se forma, se
distribui, como é que no jogo das diferenças étnicas-culturais brasileiras têm formas particulares de estar
presente, de estar junto. No caso do Brasil, e foi isso que eu trouxe no último capítulo desse livro As
estratégias sensíveis (2006), fala-se sobre a alegria. E eu acho que talvez seja o único estudo brasileiro
sobre a alegria como a filosofia das massas no Brasil. Não a alegria da risada desabrida, mas a alegria como
essa provação sem restrições que você faz do real. Quando você aprova irrestritamente o real é quando
você afina uma corda de violão com a outra, a partir da outra corda. Aí quando você vê que tá igual o
som… Você pensa: você está alegre quando você está afinado com o real. Quando não existe desafinação
com você e o real, que é o instante. Então você se sente alegre. E sentir-se alegre é você ser transportado
pelas asas, sair da gravidade da terra e por um instante você sentir que não falta nada entre você e o mundo.
Esse sentimento da alegria tá presente no Brasil porque junto da religião afetiva do Cristianismo, que é a
religião do amor universal, da irradiação universal do amor, você tem os cultos afro-brasileiros, que são
religiões da alegria, não são religiões, eu diria, do amor. E a alegria de que? De estar vivo. De saber que o
mundo é maior do que você, de que o real é inesgotável. Isso é alegria: você sentir o real por um instante.
Portanto a alegria é litúrgica. É uma alegria séria.”
[Muniz Sodré em entrevista para Ciência & Letras, Canal Saúde, 6 de dezembro de 2012]
● Há um grande impasse no que diz respeito à passagem do plano do discurso (por exemplo, a retórica
da mídia) à ação concreta no mundo “real-histórico”; àquele instante de decisão entre acatar os
preceitos da moral vigente (valores consagrados pelo mercado, em que a prioridade é o Eu, o sucesso
individual) ou rechaça-los em nome da comunidade (em que a prioridade é o Outro, a família, o nós).
Muitos estudos do século XX dedicaram-se à descoberta do limite ou das motivações para tal escolha;
muitas áreas do conhecimento foram articuladas (Sociologia, Antropologia, Psicologia,
Neurociências) e muitos foram os conceitos utilizados para circunscrever o fenômeno: alienação,
ideologia, mediação, carisma, inconsciente. Como Sodré articulou e teorizou esses mecanismos de
troca?
Dissertando, por exemplo, sobre a simbolização. “Simbolizar quer dizer, na realidade, trocar. O que se
troca? Não é a natureza pela convenção, como faria crer qualquer argumento sofístico (instrumentalizando
o símbolo, pondo-o como um meio de comunicação a serviço de uma vontade fundadora), mas uma
convenção por outra, um termo grupal por outro, sob a égide de um princípio estruturante que pode ser o
pai, o ancestral, Deus, o Estado, etc. É o símbolo que permite ao sentido engendrar limites, diferenças,
tornando possível a mediação social (SODRÉ, 1983, p. 47).” É esse momento da simbolização, da troca ou
negociação simbólica (no qual o vínculo se faz presente), que interessa a Sodré. Circunstâncias históricas e
elementos situacionais podem servir de condições para sua emergência, o que não dirime o grau de
incerteza de sua ocorrência.
● O que Sodré quer dizer com “comum”? Qual ideia ele tenta passar?
Como esclarece Muniz Sodré, a ideia de comum pressupõe o “estar junto” como condição fundamental
para a construção dos sentidos. Entretanto, o princípio de “estar junto” não se efetiva pelo aglomerado
físico de individualidades, mas pela sintonia sensível das singularidades ou pela “vinculação humana na
pluralidade do comum”. Tal movimento provoca a desestabilização daqueles hábitos consagrados pela
tradição, em direção a novos horizontes de percepção e cognição diante da multiplicidade fenomênica..
“O compartilhamento é um nível consciente do comum. Mas o comum é prévio à própria sociabilidade das
relações conscientes. Quer dizer: não é possível não viver em comunidade. Então quando, na oposição que
se faz à comunidade e sociedade, que é uma oposição feita pela sociologia, e é um movimento recente dos
comunitaristas, que incentivam a cooperação, a solidariedade, o compartilhamento, o comum que eu falo
precede isso. O comum vai na direção do que diz Roberto Espósito: o comum na verdade é um vazio. Não
há nada no comum. É um pouco vazio como no poema de Lao Tsé, sobre o vaso (o que permite que tenha
água dentro de um vaso, uma garrafa, não são as paredes da garrafa nem as paredes do vaso, o que permite
que a água seja contida ali é o vazio). O que faz a roda rodar, se movimentar, não é o raio, mas o vazio
entre os raios. E assim por diante. O vazio é a plenitude da criação e do sentido. É difícil pensarmos nisso
porque nós pensamos a partir do cheio. O que faz as coisas existirem, as coisas que nós vemos são os seres,
mas o que movimenta os seres é o não-ser, é o vazio. Então você tem dois tipos de vazio e dois tipos de
nada. Você tem o vazio-vazio ou o nada negativo e o vazio-pleno. O vazio que faz a sociabilidade é o vazio
pleno, é um vazio que nos leva a preencher de sentido as coisas. Ora, isso é o comum. O que é incomum
entre nós é uma possibilidade vazia que nós preenchemos historicamente, com nossa criatividade, com
nossas relações, com o que produzimos, com o que dizemos (nesse segundo nível). Portanto eu digo: não é
possível não viver em comunidade. Todos nós vivemos em comum, queiramos ou não; só somos gente,
seres humanos, no comum. Agora num segundo nível, ter a consciência desse comum é mais difícil, é
complicado, porque nós vivemos naquilo que a sociedade moderna criou, onde nós somos indivíduos
isolados ligados por relações jurídicas ou psicológicas, como cidadãos, como consumidores. Esse é um
segundo nível que nós aceitamos ou não. Nós podemos nos isolar ou compartilhar. Mas mesmo isolados,
ainda estamos no comum. Nós só vivemos a partir do comum: do que comemos, do que vestimos…
Mesmo que sejamos solitários. Ora, esse segundo nível onde há conflitos, quando estamos muito próximos
a relações de conflitos, ele é neutralizado por uma sobreposição a esse comum originário que a mídia, que
as tecnologias da comunicação fazem. A mídia neutraliza o aspecto contraditório, o aspecto conflitual que
decorre do comum. Porque o comum não é harmonia, o comum é laço e o laço às vezes é extremamente
doloroso, é agonístico. Talvez a melhor metáfora pra mostrar esse laço é a casa do porco espinho, de
Schopenhauer: no inverno o porco espinho se aproxima dos outros pra se esquentar, mas quanto mais
próximo o porco espinho, mais ele se fere por causa do espinho. As relações humanas também são assim;
essas relações, digamos, de desgaste da relação. Quanto mais próximas são as pessoas, mais os espinhos
crescem, ferem. Ora, isso é conflito. Então harmonia do comum não é a paz, a pacificação. É às vezes
armação e as vezes diferenciação; quer dizer atenção do estar perto, atenção do estar junto. A mídia
neutraliza. Você não tem conflito com a mídia: ela neutraliza as tensões do cotidiano, as tensões do
comum. Daí a força dela. Ela nos oferece um universo, que eu chamei de bios virtual, onde nós podemos
imergir sem conflito real. Porque no conflito por redes sociais basta você desligar a rede, você não
participar dela. Mas no nível da relação interpessoal (briga de patrão e empregado por salário, briga de
marido e mulher por relação de amor, brigada de pai com filho por questão de paternidade ou de
ascendência) são conflitos que repercutem ao nível do psiquismo e da carne. Carne, portanto, é o problema.
Os seres do bios virtual são os seres desencarnados, são os seres de puro espírito (espírito no sentido de
imateriais). Mas são atraentes porque neutralizam o conflito e nos dão um certo gozo nessa simulação de
existir. Por isso que é possível no espaço da máquina e com a máquina realizar a relação sexual como se
fosse real. Então nós temos uma vida substitutiva, uma duplicação, um desdobramento sem transcendência
da vida porque antigamente quando se duplicava a vida, se duplicava na direção de uma transcendência que
era Deus ou de uma transcendência que era um ideal qualquer. Ora, Deus tende a desaparecer na História e
ficar pra dentro do homem (no sentido fora da palavra). Quando ele tende a desaparecer, a carência de
transcendência faz com que passemos a acreditar em qualquer coisa porque não é possível não acreditar. O
homem não pode viver sem acreditar em alguma coisa, não vive na pura imanência. Aí surgem as religiões
fundamentalistas, você vê a força do fundamentalismo no mundo hoje, que têm força junto às massas
desenraizadas porque lhe falta possibilidade de crença, de crer. Quando a luta política desaparece, você
corre pra algum tipo de religião dessa ou então você corre pra um sentimento moral de indignação. Você
nota que a indignação hoje é uma força política mundial pois hoje ela é capaz de nos levar às ruas. Por que?
Porque ela tá no lugar de uma crença. Em que? Ainda não se sabe. Então deixamos de crer, teoricamente,
em Deus. Deixamos de crer nas grandes benesses do capital, que prometia progresso ilimitado. Deixamos
de crer no amor eterno. Deixamos de crer na própria sexualidade como resgate do corpo, na medida em que
se banalizam as relações. No espaço desse fim da crença, do desaparecimento da crença, é que a crença fica
mais forte como unicidade. O comum, portanto, a crise do comum ao nível das relações sociais, é
aumentada por essa multiplicação das máquinas. O problema, portanto, da comunicação, é o problema do
comum.”
[Entrevista de Muniz Sodré no DVD Olhar UFPB]
“Você não torna ‘comum’ necessariamente falando. Você torna comum organizando as partes dispersas. A
comunicação é um sistema de organização do comum. E por ser um sistema de organização do comum, ele
é central, extremamente importante e não é uma propriedade da consciência; ele está antes da consciência,
é a comunicação que permite a consciência. Porque a comunicação não é fala. A fala pode ser
consequência dela; ela é essa junção: ela é inconsciente e consciente também. É por isso que é impossível
você não se comunicar. Comunicação não é comunhão, que é quando se dá uma perfeita compreensão. Mas
isso é uma visão da comunicação em cima do modelo linguístico. E comunicação não é isso. Língua da
ordem do signo e comunicação é da ordem do símbolo. A comunidade é da ordem do simbólico. O comum
preexiste ao sujeito porque você não decide viver em comunidade; a comunidade está em você. A
comunidade não é uma relação entre pessoas. A comunidade é a relação da pessoa com o entre, ela já está
dentro. Mesmo que você não queira viver em comunidade você vive, e mesmo que você não queira se
comunicar, você se comunica. É impossível você não se comunicar. O heremita, por exemplo, aquele ser
que está na floresta, é o que mais se comunica: todo mundo sabe que ele é heremita: a mensagem dele está
sendo passada o tempo inteiro.”
[Colóquio com Muniz Sodré sobre comunicação e produção cultural realizado na ECO - UFRJ, em 2012, pelo LECC
(Laboratório de Estudos de Comunicação Comunitária da UFRJ) em comemoração aos 70 anos do professor]
● O ato de comunicar nos permite o prazer do vínculo, e a forte adesão à internet, provocada pela
conexão que ela nos oferece, nos mostra isso: ao mesmo tempo em que amplia as potencialidades
comunicativas, o bios midiático tem criado espaço para o desenvolvimento do consumismo, como se
estivesse em ação uma motriz objetificadora que apaga as relações eu-tu e privilegia as relações
eu-isto. Como podemos pensar este paradoxo?
Não há paradoxo. Basta invocarmos o conceito de comunidade (ação recíproca entre agente e paciente,
portanto, comunicação enquanto ser-em-comum, vinculação fusional entre um eu e outro), para dar
margem à expansão de seu escopo até a dimensão coletiva, onde a vinculação aparece como a radicalidade
da diferenciação e da aproximação entre os seres humanos, e daí, como a estratégia sensível que institui a
essência do processo comunicativo, este que John Dewey chamava de “interação comunal”.
“Na Ética a Nicômoco, Aristóteles diz que o homem na pólis grega se move em três esferas existenciais:
política (bios politikos) , dos prazeres (bios apolaustikos) e do conhecimento (bios theoretikos) . Então são
esferas do conhecimento, mas ao mesmo tempo esferas existenciais que o cidadão grego se movia. Mas ele
diz uma coisa curiosa: que poderia haver um quarto bios, que é o bios do comércio. Mas o bios do
comércio não está voltado para a felicidade, para a integração do homem na cidade-estado; os outros estão.
Portanto não seria um bios pleno. E o bios precisa de felicidade, de integração do homem na cidade. E eu
me dei conta de que a mídia moderna é esse quarto bios, o bios que Aristóteles recusou. Porque a mídia
está reboque do comércio e da tecnologia e também não está voltada pra felicidade de ninguém, mas busca
uma integração do sujeito na sociedade por via do capital financeiro; e é do capital essa integração. Ora,
então esse bios midiático, esse bios virtual, é esse tipo de sociedade que nós estamos vivendo hoje. Nós
estamos cada vez mais nos movendo em um solo que não é um solo físico, é um solo da informação. A
informação é o solo desse bios. Há de fato uma ‘dupla face’ do bios midiático. Por um lado esse conceito
gira ao redor da indústria do século XXI: a tecnologia da informação, de onde o substrato real do fenômeno
pode ser designado como inteligência artificial. Este é o caminho tendencial da apropriação de instituições
sociais por organizações de indústria ou pelas burocracias de Estado. Por outro [lado], há os ‘objetos de
menor porte’, abrangidos por uma perspectiva de ‘sociedade civil’, que tem a sua atenção voltada para
famílias, comunidades, organizações voluntárias, sindicatos e movimentos de base espontâneos. Nesse
outro lado, é preciso considerar a força do vínculo comunitário. Com a rede (começou com a televisão e
continuou com a rede), criou-se uma realidade paralela, uma outra realidade que nós habitamos, nós
vivemos nela. Nós pensamos que pisamos apenas no solo físico, mas nós também pisamos num solo
imaterial que é o solo da informação, somos cada vez mais regidos e guiados por informação. E isso
constitui como uma outra cidade. Um outro país. Senão um outro continente. Que nós não tocamos, ele é
imaterial. É essa realidade paralela. Só que é essa realidade paralela que vai progressivamente tornando
difícil a distinção entre verdade e mentira.”
[Muniz Sodré em entrevista ao programa Trilha de Letras, na TV Brasil]
“O quarto bios é feito de virtualidade, é feito de informação. Nós queiramos ou não, quando andamos pela
rua, nós trilhamos, estamos existencialmente caminhando em informação. A informação é o solo de que é
feita a sociedade contemporânea. E falamos cada vez mais com máquinas e as máquinas falam cada vez
mais entre si. Seja em um sinal na rua, seja esses objetos nômades que a gente usa pra medir a pressão, pra
consultar a hora, pra falar com os outros… É essa esfera, digamos, abstrata, com relação à fala concreta,
com relação ao andar concreto, que eu chamei de bios midiático ou bios virtual. Nós vivemos dentro dele.
E essa esfera é impulsionada pelo capital e pelo mercado. Os sistemas de informação são modos
imprescindíveis ao modo de acumulação do capitalismo nessa fase global. Então juntos informação e
mercado são as duas faces visíveis do capitalismo financeiro. E isso avança sobre os modos de vida de cada
um de nós. Dentro desse bios midiático são muitas as agências, são muitos os modos de falar, são muitos os
discursos de acordo com os interesses das empresas, também. Por exemplo: a Publicidade é um dos grandes
vetores disso no mercado porque toda Publicidade é interpelativa. Toda Publicidade tá sempre falando com
‘tu’, há sempre um ‘tu’ implícito ali, você tá sempre sendo interpelado. E o que ela lhe diz sempre: ela lhe
fala de desejos. Porque quando eu disse que esse bios atinge as condutas, a maneira com que cada um se
porta é que os desejos passaram a ser estimulados e controlados por esse sistema. Nós vivemos numa
sociedade em que essa pressa e essa urgência são a pressa e a urgência de tentar satisfazer desejos, não são
mais necessidades. Necessidades nós temos de comer, de sobreviver… necessidades ligadas ao corpo,
naturais. Mas em cima dessas necessidades se monta uma panóplia que não têm mais a ver com a
satisfação, apenas, têm a ver com substituir esse desejo por outro. Um desejo nunca é realmente satisfeito.
A Publicidade é um mecanismo desse tipo: é um mecanismo de instigar desejos, mas, ao mesmo tempo,
controlar, administrar esses desejos. Então ela é central nesse bios, nessa nova forma de vida. Nós corremos
atrás dos desejos não mais para satisfazê-los, mas pra satisfazer o impulso de correr atrás dos desejos.
[Muniz Sodré em entrevista a TV Câmara do Rio]
● Quais dimensões do imaginário escapam ao bios midiático? Seria ele capaz de compreender a
subjetividade que é transcendência?
“Veja só, a imagem em circulação está no centro do processo de mudanças qualitativas em termos de
configuração social por efeito da articulação da tecnologia eletrônica com a vida humana, à qual subjaz a
lógica dos algoritmos e cuja superfície é a imagem, a ser entendida lato sensu como visualidade e como
imaginário sociocultural. O mundo-imagem é a superfície da globalização, mas, diferentemente do
passado, o objetivo não é olhar criticamente sob a superfície e, sim, ampliar, pela circulação, a imagem,
assim como se faz ampliar e circular o capital financeiro. Nessa ordem de coisas, a imagem vai perdendo a
sua força reflexiva e, cada vez mais, ajustando-se à lógica dos enunciados linguísticos. O algoritmo é o
extremo desse tipo de imagem. Ele ainda nada sabe de subjetividade.”
● Em As estratégias sensíveis (2006), encontramos uma reflexão acerca do crescente protagonismo da
estética como recurso de produção de sentido no contexto contemporâneo da comunicação
midiatizada. A estética pode ser pensada como um meio de produzir conhecimento no contexto de
hiperconexão ou a ideia aristotélica da imagem como mediadora do saber não tem mais validade nos
dias de hoje? Seria necessária, também, uma problematização ontológica para a imagem, assim como
proposta para a comunicação?
“Em Aristóteles, a imagem (phantasma) é uma mediação sem a qual a alma não pode conhecer. Na
mediação clássica, imagem é algo que se interpõe entre o indivíduo e o mundo para construir o
conhecimento; na midiatização, desaparece a ontologia substancialista dessa correlação, e o indivíduo (ou o
mundo) converte-se, ele próprio, em imagem gerida por um código tecnológico. Nesta nova chave
conversora do real, em realidade compatível com a lógica organizacional (no limite, o mercado como nova
teodicéia), a própria ideia de mediação se enfraquece. Quero crer que, nesse livro meu a que você se refere,
está dada uma problematização da imagem.”
“A cultura é um novo instrumento de dominação. Porque a dominação pelo mercado se faz pela cultura” -
Muniz Sodré