Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Arildo Ferreira Hostalácio
Prêmio Nacional de Literatura FUMEC
1º Edição Contos
Belo Horizonte
2009
O coronel e o cinema
Esta história, como outras que guardo, sei de ouvir contar. Tudo aconteceu
no início do século passado em localidade do interior de Minas Gerais, ali ás,
mais das Gerais do que das Minas. Coronel Antonino, um espanhol de
nascimento, mas mineiramente brasileiro, adotado que foi por essas paragens
onde fez grande fortuna. Com habilidade para o com ércio e aproveitando de
pequena poupança, que transportou por todo oceano, embrulhada em fino len ço
de linho. Esse, de rico bordado, fora presente de sua noiva Estelita. Catita, que
aos prantos o viu sumir colina abaixo. Jurara não esquec ê-la. Mas, ao botar
olhos nas serras dos gerais, e fundar-se a empreender tropa de com ércio, viu
esgarçar-se o linho, o bordado e o amor pela tal.
2
O coronel e o cinema
visita que por seu julgamento merecesse. Afora o gelo, coube-lhe tamb ém
inaugurar as ruas com o primeiro autom óvel que fazia desfilar por todos aqueles
empoeiramentos.
Casado nesta época com Dona Tiana, que lhe daria seis dos oito filhos que
conheceu. Os dois mais velhos, um menino, esse testemunha do ocorrido, e uma
menina eram frutos de união voluptuosa com Maria de Jesus, sitiante em uma de
suas fazendas. Dizem que a beleza da mulata chamou-lhe a aten ção e este caiu
por encantos montando com ela casa de certo conforto, onde viveu calorosa
paixão. Mas, como nada nesta vida é de eterno tempo, apareceu Dona Tiana,
rapariga de pequenos predicados, mas com alguma terra e bom dote, que se
somaria à sua já grande fortuna. Feito o fato do casamento, p õe-se ent ão fim ao
enlace com Maria.
Neste dia, como era de seu costume, Dom Antonino jazia em descanso de
sesta em sua poltrona especial. Do descanso, é bom lembrar, se exigia na casa
silêncio de igreja. O momento era sagrado, tudo deveria esperar o final de seu
repouso. E ali ficava o Coronel espachado em poltrona dessas de estofado e
tecido de finos fazeres, que fez vir direto de hotel chique da Capital, onde apeou-
se nela e de tanto conforto não saiu mais. Fez que lhe enviassem no mesmo dia
em que veio embora. Era para que assim que chegasse, pudesse se descansar.
Sua sesta durava em média hora e meia. Logo ap ós o almo ço, entornava
uma dose generosa de café, passado e servido por Inh á Ana, sua cozinheira
desde os primeiros dias. Então, depois de provido de uma de suas bebidas
prediletas, a outra era o leite gelado, punha-se ali na poltrona, finamente vestido
em terno de linho branco, sempre branco.
3
O coronel e o cinema
E não é que bem nessa hora apeiam em sua porta, e em comitiva, algumas
autoridades da comarca. A tal era encabe çada pelo Juiz Justo Delgado,
alcunhado de Juiz Justino, homem de baixa estatura, de m ãos pequenas e dedos
gordos e de hábitos discretos. Sua chegada na comarca coincidiu com a
pacificação da região. Era implacável quando o assunto era justi ça justa, como
gostava de falar. O prefeito Primo de Totonho, esse era g êmeo com mais dois
irmãos, Próximo e Último. Todos de Totonho, o pai, que os nomeou pela ordem
que lhe foram apresentados pela m ãe na hora da pari ção. O vig ário, padre
Inácio, que se dizia patrício de Dom Antonino, como gostava de chamar o
Coronel. E o delegado de polícia, o Zé Vela, que tinha esse apelido pelo h ábito,
adquirido no tempo dos confrontos, de colocar uma vela acesa nas m ãos de
cada um que por ele era extinto. A ideia era que esse encontrasse o caminho no
mundo das almas. A comitiva era formada por todos esses, al ém de outros
representantes do mundo oficial e social do lugar. A excita ção era tamanha que
parecia mais um bando de maritacas, claro, sem com isso querer ofender as
passarinhas.
4
O coronel e o cinema
- Mas não sabem os senhores que a tal hora o senhor Antonino, meu
marido, está a descansaire em sua sesta. E que ele n ão gosta de ser
interrompido! Encerra enfática com os olhos arregalados.
- Pelo tamanho da comitiva vê-se que deve ser muito importante tal assunto
e imagino de muitas urgências, insiste Dona Tiana, fazendo com os dedos como
se contasse dinheiro.
5
O coronel e o cinema
resolvia a bater destilava tal veneno que de t ão poderoso consumia, por toda,
qualquer peçonhenta que por desventura lhe atravessasse o caminho.
-Dona Tiana, cruzou o silêncio o vigário, desculpe nossa imprud ência, mas é
que hoje, a pouco, haverá reunião na câmara e precisamos ter com Dom
Antonino um dedinho de prosa. É coisa rápida, visita de m édico.
Disse tudo caminhando para dentro, encabe çando a romaria de gentes que
tomavam os corredores da casa. Todos se achegam e se acomodam. Dona Tiana
chama de lado o filho de seu marido e fala:
-Você! Vá lá dentro e veja em que altura está o sono do senhor seu pai.
Se achares prudente, avise dos incômodos.
Menino ainda em seus doze para treze anos, o filho mais velho do Coronel
vivia ali por determinação expressa de seu pai. Esse quando se casou avisou a
noiva que tinha dois filhos com Maria de Jesus e fazia quest ão da companhia de
seu primogênito. É claro que a noiva aceitou, apesar de muito a contra gosto, e
era por isso que tornava a vida do menino um verdadeiro calv ário. Mas essa é
outra história.
6
O coronel e o cinema
- Não pai.
- Comissão?
Ordena para servir a todos uma taça de leite gelado. Vou lavar-me e
7
O coronel e o cinema
Com isso Dona Tiana se dirige para a cozinha e lá manda Inh á Ana
separar as taças para servir o leite às visitas como ordenara seu Antonino. Na
sala essas faziam pequenos comentários sobre os hábitos de sesta do Coronel.
8
O coronel e o cinema
aparece o Coronel. Era uma presen ça, em seus quase dois metros de altura
trajando, como de sempre, um terno de linho branco, sempre branco. A pele
clara e olhos azuis quase verdes denunciavam sua origem ib érica.
Mesmo já quase nos sessenta anos, sua pessoa impunha a todos o respeito
e a autoridade dantes. Sua chegada, na sala, provoca o rebuli ço de todos. V êm
os cumprimentos e saudações.
- Buenas senhores, buliu seu Antonino, que os trazem aqui nessas horas?
Pelo tamanho da fila é coisa séria.
- Não é bem isso, anuiu o prefeito, na verdade é causa de justa apela ção.
9
O coronel e o cinema
- Bueno, se era para me fazer elogios caro Primo recebo com gratid ão, e j á
me dou por satisfeito, entonces, podemos ter por encerrada a visita.
- Não, entrou no assunto o Dr. Justino e aos risos completou, que isso Seu
Antonino, ainda não é para despachar as gentes!
- Pois é. É que o Primo falou de cora ção, o senhor sabe. Mas, o que nos
traz aqui, é que para hoje temos na câmara reunião deliberativa. E necessitamos
do senhor uma confirmação para uma demanda que pretendemos assumir.
- É que nossa cidade tem crescido muito, hoje j á somos l íderes na regi ão.
E, inclusive com sua ajuda, já temos a escola, o col égio das irm ãs e o clube
que já está no finzinho, emendou doutor Justino.
10
O coronel e o cinema
- Mas falta ainda uma coisa que vai nos colocar no mapa do estado como
uma comunidade progressista, falou o vigário.
11
O coronel e o cinema
- Mas essa é umas razões que precisamos de seu apoio, emendou doutor
Justino.
- É fato que sabedor de seu apoiamento, ele não vai botar embargo no
intento da comunidade, reforçou o prefeito Primo.
- Si... Meu apoiamento... Durval... Divagou por uns tempos o Coronel, como
que a abrir as portas de suas memórias, e por à tona algumas lembran ças.
Quanto a Durval Peregrino era personagem antiga nas vidas da maioria dos
presentes. Desde cedo se pôs de picardia, às vezes, ou de ambi ção, na maioria,
contra os interesses dos outros. Era inimigo bravo e de certo ponto cruel.
Submetia seus interesses a todos, e muitos se viam ref éns de sua brutalidade.
Era sabido que Coronel Antonino e o Durval cultivavam diferen ças antigas,
começou sabe-se lá quando, mas o porquê, por certo, foi alguns dos muitos
abusos de Durval, quando ainda eram vizinhos. E aquilo que era apenas
desavença virou perseguição, mudou-se para política, e se instalou como destrato.
Mas a coisa desandou mesmo há exatos dez anos, antes do acontecido, quando
culminou em encontro derradeiro entre os dois e selou-se a tiros um acordo. A
destreza com armas de fogo e a frieza do Coronel o fez, mais uma vez,
vencedor. Certeiro, deitou em Durval dois bala ços, um no alto do peito e o outro
no joelho direito. Caído esparramado no ch ão, esse viu o Coronel se aproximar
12
O coronel e o cinema
- É sabido que a única pessoa viva a quem ele deve respeito é o senhor.
Confirmou padre Inácio.
- Que isso, minha filha, não se aflija por detalhes, é coisa pouca algo em
torno de cem contos. Defendeu-se o prefeito.
- Si, interpôs Coronel Antonino, mas segue o enterro, meu caro, isso deve
ter um fim.
13
O coronel e o cinema
- E não pode ser menos, que é para mostrar a todos a lideran ça de Dom
Antonino, com ele abrindo a lista com esse aporte, n ão h á ningu ém que tenha
coragem de negar menos que isso, arrematou doutor Justino.
- Pelo amor de Deus, meu marido, diga alguma coisa, insiste Dona Tiana.
- Si... Dom Antonino faz uma pausa e continua, é do saber de todos que
Durval não se mete mais a pelear comigo. Quanto a isso podem dar por garantia
minha palavra, e avisem a ele, que abono a desapropria ção. Melhor ainda,
pensando bem, ele pode fazer é uma doa ção. É isso mesmo, digam a ele que
preciso que doe o tal terreno para a constru ção do cine-teatro. E que se veja
depois com o prejuízo.
14
O coronel e o cinema
- Meu Deus! Disse definhando Dona Tiana, que nessa hora sentiu sua alma
fugir-lhe do corpo.
- Estou aqui a pensar e entendo que cem contos não d ão para nada. Quem
sabe não seria melhor que os senhores empreendessem da seguinte maneira.
Primeiro, vocês têm todo meu apoio na questão com o Durval. Segundo, assumo
compromisso com todos os presentes e dou meu aval no recolhimento de fundos
para o início das obras. E terceiro, proponho a voc ês darem a andar de tudo.
Façam o projeto, a fundação, a alvenaria e o telhado, isso pronto, eu assumo.
15
O coronel e o cinema
- Mas... Quanto vai custar tudo isso? Já sem sentir as pernas tentou
indagar a esposa.
- Mas que alegria! Dom Antonino, que alegria! Repetia o vig ário.
- Pois entonces, façam como estou falando. Vão até a câmara e deem a
andar as cousas. Avisem a Durval de meu intento. E podem levar a todos meu
compromisso.
16
O coronel e o cinema
pé, pôs-se diante da cadeira ocupada por seu Antonino, e fez-lhe refer ência com
a cabeça.
- O senhor meu marido por acaso enlouqueceu? O senhor sabe com o que
se comprometeu? Por acaso tem bebido às escondidas?
O Coronel, por sua vez, ouvia os grunhidos de Dona Tiana com um sorriso
17
O coronel e o cinema
de canto, como que se divertisse com a rea ção dela. É claro que a conhecia a
tal ponto de não esperar dela atitude diferente. Por isso fitava a mulher como a
esperar uma síncope. Depois de deleitar-se com a rea ção de sua esposa, seu
Antonino, interveio com a mão. O que provocou de sua senhora imediata rea ção
de silêncio.
- Chega Senhora, já basta, não entendo sua rea ção. N ão v ê que ao inv és
de gastar cem contos, economizei. Por acaso a senhora acredita que eles v ão
passar do alicerce. Parece não conhecê-los. O que é isso. Acha mesmo que
algum dia conseguirão erguer alguma coisa. Pois, diferente do que a senhora
está aí a cuspir, não só conservei meus contos como ainda buli com o coisa
ruim do Durval Peregrino, fora o prazer de ver a senhora sapatear e se espumar
toda. Pode ter coisa melhor?
Pois não é que até seu desenlace, o que demorou mais de trinta anos, o
cine-teatro não passava de um mal acabado alicerce.
18