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R V O

Marcos Luiz Bretas


Professor do Departamento de História
da Universidade Federal do Rio de Janeiro

As Empadas do
Confeiteiro Imaginário
A pesquisa nos arquivos da justiça
criminal e a história da violência
no Rio de Janeiro

N
ão é de hoje que os arquivos quando passou a ser muito utilizada, sob
de processos criminais atraem o impacto da história social inglesa e de
a atenção dos pesquisadores Foucault. Estas análises tor nar-se-iam
da história do Brasil. A preocupação lati- mais e mais comuns, na medida em que
na com o registro dos autos motivou a chegavam ao Brasil trabalhos de Robert
produção de documentos preciosos para Dar nton, Carlo Ginzburg e Natalie Z.
buscar tanto a identidade dos indivídu- Davis, baseados em fontes semelhantes.
os envolvidos como suas falas, O grande volume de trabalhos então pro-
freqüentemente alcançando grupos soci- duzido tinha como ponto de partida
ais que deixaram pouquíssimos registros metodológico a discussão sobre as pos-
de outros tipos. Fazer a revisão sibilidades de conhecimento histórico a
historiográfica destes estudos tomaria um partir dos processos; se seria possível ali
espaço alentado, além do que me propo- encontrar “a voz” de grupos excluídos,
nho aqui. Importa apenas marcar que ou apenas mais um discurso do poder,
após o uso inovador deste tipo de acer- com o qual só seria possível fazer uma
vo por Maria Sílvia de Carvalho Franco, história do poder judiciário.
ainda nos anos 1960, a análise de pro-
cessos criminais per maneceu pouco ex- É possível que esta discussão tenha fi-
plorada até o final da década de 1970, cado para trás, mas a riqueza e a diver-

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sidade encontradas nestas fontes me leva de Maio. Dona Julieta, aos quarenta
a retomar estas questões, propondo a anos, era viúva, e foi recebida pressuro-
multiplicidade de métodos e temas que samente por seus filhos – Hercília, de 23
os arquivos criminais podem oferecer e anos, Alice, de vinte e Alberto de 18 –
– o que talvez seja o ponto crucial – o que providenciaram a vinda do doutor
número de questões ainda por resolver. Júlio César Suzano Brandão, morador
Neste sentido, uma proposição curiosa, nas vizinhanças. O médico diagnosticou
mas fundamental, é que a riqueza dos um envenenamento alimentar e inquiriu
documentos foi utilizada para questões dona Julieta, que informou ter se alimen-
as mais diversas, deixando de lado seu tado apenas com pão e café antes de ir
aspecto mais óbvio, que é a história do para a cidade, onde comeu empadas e
crime e da violência no Brasil, sem men- pastéis de camarão na confeitaria do lar-
cionar a história da justiça. Como teste go de São Francisco 32, canto da rua dos
desta proposição, tentarei discutir neste Andradas. A suspeita de envenenamen-
trabalho se os processos criminais per- to foi comunicada à 16ª Delegacia de Po-
mitem pensar o Rio de Janeiro do início lícia, que abriu inquérito. A situação era
do século XX como uma cidade violenta. tão grave que dois dias depois dona
Julieta veio a falecer.
Seguindo este enfoque, pretendo apre-
sentar – provavelmente com muita sim-
As investigações dirigiram-se para a con-
patia – algumas das regras do que se
feitaria, suspeita de ter vendido os ca-
constitui como a história social brasilei-
marões fatais. O delegado ouviu no dia
ra recente. Um bom exemplo destas re-
seguinte os responsáveis. Primeiro falou
gras, que infelizmente já quebrei e es-
o senhor José Joaquim Ferreira, um por-
pero não seja tarde para remediar, é que
tuguês de 68 anos, sócio e gerente da
um trabalho comme il faut começa com
confeitaria. Ele negou qualquer possibi-
uma boa história. Fosse um folhetim, a
lidade de problema com as empadas e
próxima parte desta introdução seria
pastéis; no dia anterior haviam servido
intitulada: “Onde se explica o título des-
mais de mil pessoas, tendo vendido an-
te trabalho”.
tes das 9 horas da noite todas as três
Dona Julieta Cordeiro Dias chegou em mil e duzentas empadinhas e pastéis de
casa passando muito mal. O trajeto de camarão produzidos. Os produtos eram
bonde entre o largo de São Francisco e frescos, os camarões adquiridos no mer-
sua casa, na rua Santa Luísa, foi muito cado e rejeitados quando de má aparên-
penoso, entre vômitos e mal-estar, pre- cia. A cozinha tinha bom equipamento e
cisando mesmo da ajuda generosa da o estabelecimento gozava de bom con-
professora Elisa Brandão, que ia também ceito, tendo entre seus fregueses o almi-
no mesmo carro para sua casa à rua 24 rante Pinheiro Guedes e o doutor Guilher-

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me do Vale, médico de higiene. Conhe- cer o funcionamento das confeitarias do


cia mesmo dona Julieta, freguesa cons- centro, numa época quando as empadas
tante, ainda que não se lembrasse de tê- tinham dois camarões! Isso se não for
la visto no dia anterior. Depois dele fa- lorota do Imaginário, afinal é costume
lou o confeiteiro José Imaginário, um mentir para a polícia... Uma afirmação
português de 27 anos, casado, morador básica dos estudos sobre polícia é que
na rua Paula Matos 174, chefe da cozi- boa parte da atividade policial cotidiana
nha. Este também negou a responsabili- não envolve qualquer tipo de ocorrência
dade do estabelecimento. A farinha vi- criminal. Investigações e esforços são di-
nha ensacada do Moinho Fluminense e rigidos para a apuração de fatos que
os patrões fiscalizavam os produtos, re- podem ter explicações triviais, mas que
jeitando os camarões que não achassem durante a investigação permitem ou exi-
bons. Ele fez questão de ressaltar que gem olhar para a vida das pessoas e suas
havia colocado pessoalmente dois cama- relações. Também os padrões de habita-
rões em cada empadinha. ção podem ser objeto de investigação
nos arquivos criminais. Assim como dona
Com o falecimento de dona Julieta foi
Julieta, morando ao lado de suas filhas,
pedida a autópsia, e passou-se algum
muitas portas – de diferentes grupos so-
tempo antes da família e o médico se-
ciais – se abrem aos inquéritos policiais,
rem ouvidos. Nada de novo surgiu; para
por circunstâncias mais ou menos fortui-
nós, talvez valha saber que dona Julieta
tas. Do ponto de vista das camadas mais
morava com o filho Alberto, funcionário
altas, podemos visitar a casa do despa-
público, habitando na casa ao lado sua
chante geral da alfândega, Bento Luís
filha Hercília, com o marido e sua ir mã,
Ribeiro Neto, brasileiro, casado, 38 anos,
sugerindo um tipo de estrutura
residente na vila Almeida, no Caminho
residencial familiar que pode ser carac-
do Açude. Eram seis horas da manhã
terístico desse período. Quando chegou
quando começava o dia de sua cozinhei-
o resultado da autópsia, vinte dias após
ra. A portuguesa Francisca Pereira da
a morte da vítima, ficou constatada uma
Silva, solteira de 39 anos e 1 metro e 48
hemorragia do cerebelo e nenhum sinal
centímetros – autópsias produzem infor-
de envenenamento. Desapontamento
mações próprias – tentava acender o fogo
para meus leitores mais sanguinolentos,
com álcool quando a garrafa explodiu
o delegado pediu e obteve o arquivamen-
ateando fogo às suas vestes. A criadagem
to do inquérito, pois não havia crime.
depõe em peso. Contam a mesma histó-
A tragédia de dona Julieta, direto dos ria – aparentemente pouco havia para
arquivos da oitava pretoria, não tem a contar – o jardineiro Leonardo, casado,
menor utilidade para a história do crime português, trinta anos, sabendo ler; a
no Rio de Janeiro. Mas onde mais conhe- copeira e arrumadeira Maria Eugênia

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Silveira, carioca de 28 anos, solteira e da em 115 anos. Talvez cansada da vida


analfabeta; a lavadeira e engomadeira e de dar conta sozinha do serviço domés-
Maria Cândida de Morais, portuguesa de tico, ateou fogo às vestes. Quanto não
25 anos, solteira e analfabeta e a ama- teria visto esta possível remanescente do
seca Maria Leopoldina das Virgens, viú- século XVIII! 2
va sergipana de 26 anos, analfabeta. Cin-
co pessoas constituíam a equipagem do Nas moradias populares as mulheres não
despachante Bento, inclusive uma ama, escapavam da ação policial. Vejamos
o que indica a existência de crianças, duas casas de cômodos: na da rua do
mas a família neste caso fica afastada Bispo 126 a polícia teve de arrombar o
do caso. Mulheres e crianças da elite não cômodo onde foi encontrada morta
deviam ser envolvidas em matéria poli- Praxedes da Conceição. Segundo a arren-
cial. 1 São quatro mulheres, todas sem datária da casa, a portuguesa Delfina
companheiro no registro civil, e um ho- Cunha, viúva de quarenta anos, fazia
mem casado. Esta diferença parece fa- quatro meses que Praxedes vivia de fa-
zer parte das exigências garantidoras da vor no porão – este personagem clássi-
respeitabilidade do lar, que poderia ser co da exploração, o locador de cômodos,
perturbada por homens solteiros ou mu- podia se dar ao luxo de alguma carida-
lheres casadas. Mais que isso, o jardi- de. Com mais ou menos setenta anos e
neiro é alfabetizado enquanto as mulhe- doente, a velha parda 3 era estimada por
res são todas analfabetas, ilustrando todos, como confirmam os depoimentos
mais um padrão de desigualdade de gê- dos moradores Marcos Guimarães, cari-
nero. Por fim, o mapa das origens cons- oca, quarenta anos, casado, cozinheiro,
titui o Rio da época: três portugueses – analfabeto; Canuta da Silva, fluminense,
bons trabalhadores, respeitáveis; uma 29 anos, casada, doméstica, sabendo ler,
carioca e a viúva ser gipana – como viú- e Adolfo Ferreira da Silva, carioca de 59
va mais experimentada no trato com as anos, casado, sabendo ler, sargento re-
crianças (teria filhos?). formado dos bombeiros.4 Situação seme-
lhante à da morte do químico industrial
Mais humilde era a residência de Manuel alemão Júlio Heimann, solteiro de qua-
Gomes da Silva, um português de 28 renta anos presumíveis. Havia apenas
anos, solteiro, que morava e tinha ar ma- poucos dias que ele tinha alugado a sala
zém na rua Leopoldo. Chamado do ar- da frente e um cômodo de José Ribeiro,
mazém à sua casa, de onde saía fuma- português, 36 anos, casado, mestre-de-
ça, levou consigo outro negociante – pro- obras e encarregado da casa de cômo-
vavelmente um sócio – e o caixeiro, e dos da rua Leopoldo 54. Seu vizinho na
encontrou morta a cozinheira Anacleta casa, o caixeiro Augusto José Fernandes,
de Jesus, preta, viúva, de idade estima- português de 33 anos, casado, sentiu o

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mau cheiro no quarto e chamou a polí- cutível vantagem de permitir a constru-


cia, que arrombou e encontrou o cadá- ção de indicadores mais objetivos para
v e r. D e p õ e m t a m b é m a s m o r a d o r a s sua quantificação. Ainda assim alguns
Rosália Carneiro, de 35 anos, e Adelaide problemas subsistem, especialmente no
Vaz Pereira de trinta, duas portuguesas que diz respeito à legitimidade social-
casadas e domésticas que moravam na mente conferida a certos usos da violên-
casa. 5 Residências coletivas de pessoas cia física. Algum uso da força em práti-
mais pobres ainda guardavam presente cas esportivas, na educação infantil ou
a figura da esposa que per manecia no na ação estatal é aceito e não deixa re-
lar, fora do mercado de trabalho. Aqui gistros. É absolutamente legítimo consi-
são os maridos que pouco aparecem. derar violenta uma sociedade pela for-
ma de educação de suas crianças pelos
Pelas mãos dos delegados de polícia é
pais, mas os indicadores desta violência
possível penetrar em residências, bares,
são, em geral, impressionistas. Ficamos,
locais de trabalho e inventariar a popu-
portanto, restritos à violência
lação que por ali passava – ou parte dela.
interpessoal passível de criminalização,
São ocorrências de caráter não criminal,
ainda que esta também, freqüentemente,
onde as dúvidas do historiador sobre a
escape das malhas da lei.
manipulação de infor mações podem ser
significativamente menores. Este mate-
Estabelecendo um conceito limitado de
rial parece indicar a existência ainda de
violência, torna-se possível começar a
inúmeros elementos a serem explorados
construir comparações. Definir a violên-
nos acervos da justiça criminal; mas ain-
cia de uma época e lugar significa
da continua de pé a questão sobre o uso
classificá-la em relação a outras épocas
das fontes para a história do crime, que
ou regiões. Dizer que o Rio de Janeiro
tentaremos discutir a partir da possibili-
era uma cidade violenta quer dizer, em
dade de se pensar a sociedade carioca
primeiro lugar, que os níveis de violên-
como violenta no início do século XX.
cia eram maiores que os anteriores ou
A primeira questão que precisa ser en- posteriores, ou que era uma cidade mais
frentada é definir o que vamos compre- violenta que outras da mesma época, es-
ender como “violência” neste trabalho. colhidas para a comparação. Aqui os cri-
Esta questão não é simples, permitindo térios de escolha podem ser diversos,
diferentes respostas que encaminhariam mas sempre difíceis de justificar: cida-
a pesquisa em direções as mais diver- des brasileiras, cidades latino-america-
sas. A solução mais simples é conside- nas, cidades mediterrâneas, capitais...
rar como “violência“ a ação física volun- Via de regra o que se vê é a comparação
tária de indivíduos sobre outros causan- com os dados disponíveis (nos dias de
do dor. Esta definição apresenta a indis- hoje, por exemplo, só se fala em Nova

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Iorque), ainda que as diferentes formas deria ser um bom indicador da penetra-
de coleta tornem arriscada qualquer con- ção de relações sociais de tipo moderno
clusão. ou capitalista no Brasil. Por outro lado,
como os dados apresentados por
A variação temporal parece ser um ele-
Holloway para o Rio de Janeiro do sécu-
mento importante a ser levado em con-
lo XIX, quando confrontados com as es-
ta. A criminologia contemporânea tem
tatísticas do início do século XX, pare-
aceitado algumas variações como carac-
cem indicar um movimento inverso ao
terísticas da construção das sociedades
europeu, com os crimes contra a pessoa
ocidentais modernas: em primeiro lugar
passando a suplantar os crimes contra a
haveria um declínio marcado da “violên-
propriedade, torna-se necessário apre-
cia” desde o fim da Idade Média até a
sentar hipóteses explicativas desta dife-
primeira metade do século XX – acentu-
rença. Uma primeira possibilidade é acei-
ado no século XIX – para depois come-
tar a análise clássica de Maria Sílvia de
çar um movimento ascendente nos últi-
Carvalho Franco, que considera o
mos cinqüenta anos. Em segundo lugar,
escravismo brasileiro do século XIX
parece haver um correspondente aumen-
como já dotado do espírito do capitalis-
to de crimes contra a propriedade, que
mo, voltado para o lucro, possível de ser
vão suplantando os crimes contra a pes-
obtido tanto no mercado como no furto.
soa, na medida em que se consolida a
Mas dados de outras regiões do Brasil,
sociedade capitalista.
apresentados por Maria Helena Machado
Esta variação na longa duração, ainda e Maria Cristina Wissenbach, por exem-
que aceita, não parece fazer muito sen-
plo, não correspondem ao que Holloway
tido diante da experiência colonial e encontrou no Rio de Janeiro. Desta for-
escravista brasileira, sem falar do cará- ma, a situação do Rio de Janeiro parece
ter meramente indicativo dessa tendên-
ser específica, mesmo no quadro do Bra-
cia, diante da inexistência de dados mi- sil do século XIX – nesse sentido se po-
nimamente confiáveis para análises de deria imaginar que só esta cidade já pe-
longo prazo. Olhando para frente, ao con-
netrara no mundo capitalista.7
trário, o movimento parece apresentar
alguma lógica, que per mite a construção
Com isso já chamamos a atenção para a
imaginária de um passado melhor: com-
importância da comparação com outras
parado com o que viria depois, o Rio de
cidades do mesmo período, ainda que a
Janeiro belle époque não pode ser con-
realidade urbana brasileira da virada do
siderado violento. 6
século fosse extremamente limitada, e o
Dentro desse contexto a correlação en- papel do Rio de Janeiro muito distinto
tre crimes contra a pessoa ou contra a do de outros núcleos urbanos menores. 8
propriedade tem maior significado. Po- As comparações mais facilmente realizá-

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veis são com cidades européias ou dos sária de resolução de conflitos. Deste
Estados Unidos, onde as estatísticas são tipo de cultura fariam parte os italianos,
abundantes, mas o poder explicativo das portugueses e espanhóis que compu-
comparações mais limitado. Além de pro- nham o grosso da imigração que viria a
cessos sociais bastante diversos, come- constituir a sociedade brasileira urbana
ça a se mostrar necessária a qualifica- do início do século XX. Aceitando-se este
ção dos graus de violência de que se está componente de identificação cultural de
falando. Mesmo definindo “violência“ sociedades mais afeitas ao uso da vio-
como um fenômeno relacionado com o lência, torna-se necessário buscar for-
uso da força física, esta ainda pode ser mas de avaliar a violência cotidiana, não
utilizada em graus bastante diversos, necessariamente de conseqüências fa-
desde as brigas de rua sem o uso de ar- tais. 9 Certamente, a sociedade carioca
mas, até o homicídio. O grau mais alto é do início do século XX apresenta um ele-
certamente o que atrai maior atenção e vado nível estatístico de pequenos con-
produz mais – e quiçá melhores – com- flitos, configurado no imenso registro de
parações. Além disso, como é comum ofensas físicas leves (artigo 303 do Có-
apontar-se para o número de ocorrênci- digo Penal de 1890). Por dá cá aquela
as criminais que escapam aos registros palha iniciava-se uma briga, que poderia
oficiais, o número de homicídios é um se travar a tapa, com objetos atirados –
dos que mais se aproxima das cifras re- o que houvesse disponível de imediato,
ais – provavelmente muito poucos homi- vassoura ou açucareiro –, ou quem sabe
cídios passam desapercebidos, exceto, mesmo na faca ou tiro, quando algum
talvez, em tempo de guerra. Assim, atra- dano mais grave poderia resultar. Outras
vés da taxa de homicídios, seria possí- cidades brasileiras do mesmo período
vel afirmar que o Rio de Janeiro do iní- não hesitavam em diagnosticar sua vio-
cio do século era uma cidade muito me- lência pela presença destes imigrantes
nos violenta que o Rio de Janeiro de desordeiros, como São Paulo ou Belo
hoje, e que, entre as cidades da época, Horizonte. 1 0 O caso do Rio de Janeiro
mantinha taxas já bem mais elevadas do era um pouco mais complicado; nosso
que as grandes capitais do mundo, ain- imigrante era principalmente o português,
da que se mantivesse num padrão com- menos identificado pela violência, mais
patível com a cultura mediterrânea, misturado no cenário social da cidade, e
encontrável em Roma ou Buenos Aires. avaliado talvez de forma positiva diante
da massa de homens pobres de cor oriun-
As chamadas sociedades mediterrâneas, dos da escravidão, de onde viriam os
onde a honra teria um papel fundamen- mais perigosos desordeiros e capoeiras.
tal na or ganização social, teriam a vio- Mesmo assim, para os dirigentes polici-
lência como uma forma legítima e neces- ais do período, a presença de imigran-

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tes era considerada como um dos prin- quente, latino, que faria de uma certa
cipais fatores explicativos para as ocor- forma de violência parte integrante da
rências criminais com que se defronta- cultura ou forma legítima de resolução
vam. de conflitos. Pelo primeiro a violência se
torna invisível, pelo segundo normal. Es-
Convém destacar que aqui começamos
tas explicações, quase que contraditóri-
a introduzir um novo tipo de problema
as, parecem fazer parte do senso comum
na discussão, peça importante na
para serem utilizadas quando se faz ne-
historiografia contemporânea. Quando
cessário explicar ou pedir comportamen-
pensamos se o Rio de Janeiro do início
tos em situações de conflito. Na ordem
do século seria uma sociedade violenta,
do discurso constrói-se a idéia de que
estamos nos referindo a um conceito
“o brasileiro” é coletivamente pacífico –
nosso de violência – ou a padrões pro-
povo ordeiro nas manifestações políticas
duzidos pelo historiador – ou estamos
– e individualmente violento na sua
discutindo dentro das categorias do pe-
domesticidade – resultado do sangue
ríodo, se os cariocas de então pensavam
quente e da latinidade.
viver numa cidade violenta? Mesmo sem
hierarquizá-los, é preciso reconhecer que Este enfoque geral torna improdutiva a
se tratam de dois problemas diferentes. discussão de conjunturas específicas,
A idéia de sociedade mediterrânea pode como a do início do século. A violência
ser proposta como modelo explicativo de seria um atributo constante no qual pe-
análise ou ser reconhecida nas explica- quenas variações ocorreriam pela entra-
ções produzidas pelos contemporâneos, da dos grupos estranhos produzindo ti-
como faziam os dirigentes policiais. En- pos de desordem pouco características.
quanto boa parte da historiografia cor- Se este tipo de abordagem pode satisfa-
rente se preocupa com a criminalização zer a certos grupos nas ciências sociais,
e o controle dos negros, o discurso utili- ele certamente não responde a questões
zado no período parece apontar para colocadas pela história. Ao contrário, a
uma preocupação muito maior com o produção e o vigor destas grandes teori-
mau imigrante, que estaria contaminan- as é que deve ser objeto de estudo. A
do a pacífica e ordeira sociedade brasi- honra como motivo de violência pode ser
leira. bastante importante, especialmente no
quadro das relações familiares em mu-
Dois grandes quadros explicativos pro-
dança no final do século XIX,11 mas não
venientes da área da cultura parecem se
deve ser tomada como variável
defrontar: de um lado a tradição ordeira
explicativa para todo a presença da vio-
do povo brasileiro, tor nando irrelevantes
lência na cultura carioca ou brasileira.12
ou exógenas as manifestações de violên-
cia. De outro a presença de um sangue Talvez o elemento central a ser guarda-

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do deste debate é que os contemporâ- balhos sobre a polícia têm tentado mos-
neos tinham explicações articuladas so- trar que o estado era mais complexo do
bre a violência em sua sociedade. Isso que isso, e que a transformação em ação
pode parecer óbvio à primeira vista e política dos discursos oficiais enfrenta-
objeto de uma extensa bibliografia so- va dificuldades de monta. Dentro dos di-
bre o discurso jurídico ou médico do iní- ferentes escalões do estado coexistiam
cio do século. Mas existe sempre o pro- diagnósticos diversos dos motivos e for-
blema, freqüentemente ignorado pela mas da violência carioca motivados por
historiografia brasileira, de tomar a dis- expectativas diversas e que acarretavam
cussão inter na de um grupo profissional contradições nas ações contra a desor-
– como médicos ou advogados – como dem; os problemas percebidos nos gabi-
expressão de questões sociais significa- netes não eram necessariamente os mes-
t i v a s . 1 3 Além disso, estas explicações mos que incomodavam os operadores na
nem sempre dão conta dos efeitos práti- ponta do sistema. Da mesma for ma,
cos destes discursos, isto é, de até que ações produzidas no policiamento coti-
ponto as preocupações e explicações da diano – como as inúmeras prisões por
violência presente na sociedade serviam vadiagem – podiam resultar num núme-
de orientação para ações individuais de ro mínimo de condenações pela justiça,
autoproteção ou para a definição de po- insensível à mecânica policial. 14
líticas públicas.
As ações públicas indicam uma percep-
A for mulação de políticas públicas de ção da existência de um grau significati-
contenção da violência no início do sé- vo de violência na sociedade. Em algu-
culo XX tem sido extensamente estuda- ma medida isto deve ser encarado com
da, sendo considerada uma das princi- desconfiança; aparelhos públicos de se-
pais matrizes de orientação do novo es- gurança precisam sempre apontar para
tado republicano. Para conter a pobreza a violência da sociedade até mesmo
urbana este estado teria optado por uma como forma de justificar sua existência
política de repressão constante – utilizan- e as verbas destinadas à sua manuten-
do por sua vez de violência, desta vez ç ã o . 1 5 Ainda assim, a inquietação das
oficial, ainda que nem sempre legal – que elites no final do século XIX era real,
atingia desde os sem-trabalho até os tra- mesmo que seus motivos talvez não fos-
balhadores que tentavam se organizar. sem. As transformações sociais do sécu-
Relatórios de ministros da justiça e che- lo haviam produzido uma massa de po-
fes de polícia oferecem abundante evi- bres urbanos que participou ativamente
dência destas preocupações e do esfor- de distúrbios e revoluções, ampliando
ço dos gestores do estado em produzir em muito o medo à multidão urbana e
ordem na capital da república. Meus tra- incentivando o desenvolvimento de um

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conhecimento “científico” dos comporta- Além disso, eram importantes ocasiões


mentos individuais ou coletivos que con- onde estes pequenos funcionários públi-
fir mava plenamente os temores. O Rio cos podiam demonstrar o seu poder, dis-
de Janeiro não escapava das agitações tribuindo justiça, protegendo amigos, e
populares – ao menos desde a revolta do criando teias de relações sociais nas
vintém em 1880 – e as elites governantes quais teriam alguma influência, ainda
e intelectuais estavam bem aparelhadas que bastante limitada – era o lugar da
com as teorias de Lombroso ou Le Bon construção e afirmação das pequenas au-
para interpretá-las. O aparato teórico eu- toridades locais. A situação não era mui-
ropeu, em sua aplicação brasileira, en- to diferente nos pequenos crimes contra
contrava nos elementos estranhos do que a propriedade: investigar ou não, colo-
seria a sociedade brasileira – estrangei- car pressão sobre suspeitos ou não, eram
ros ou negros – as razões da desordem. decisões que envolviam os padrões de
Ao mesmo tempo deslocava suas preo- relacionamento estabelecidos entre os
cupações dos eventos criminais mais fre- policiais e queixosos, o trânsito de auto-
qüentes para aqueles que de alguma for- ridade pública e poder. 16 Mas este pa-
ma poderiam afetar os membros da boa drão de ação não era definido por uma
sociedade: não havia grande preocupa- percepção clara da gravidade do proble-
ção com a pequena violência, mas com ma social; os policiais normalmente de-
as chamadas contravenções da vadiagem senvolvem uma visão bastante pessimis-
e do jogo ou com a prostituição, onde o ta da realidade, por conviver permanen-
sistema produtivo ou as boas famílias temente com as misérias humanas, que
poderiam ser atingidos. pode até aparecer sob a forma de um
discurso de agravamento dos problemas,
Os elementos da ponta do sistema, os mas que parece ser um componente de-
policiais que conviviam com o dia-a-dia rivado de sua posição na sociedade.
da população, buscavam estabelecer um
sistema de convivência possível com os Não são muitos os casos de policiais que
dirigentes que os empregavam e com os deixaram registrada – fora dos livros de
grupos sociais onde trabalhavam e, mais ocorrência das delegacias – sua percep-
que isso, viviam. De seu ponto de vista, ção sobre o problema do crime e da vio-
questões como prostituição ou jogo não lência na cidade. Por isso, parece extre-
deviam ser levadas tão a sério, sendo mamente valioso o livro Os ladrões no
parte de um cotidiano classificado pelo Rio , do delegado Vicente Reis. Seu sub-
menos como um mal necessário. Os pe- título já é delicioso: Sua crônica, suas
quenos conflitos, por outro lado, leva- operações, sua gíria, sua polinomia, seus
vam sempre reclamantes às delegacias, vulgos, seus retratos, gravuras descriti-
perturbando o sossego dos policiais. vas, episódios e tudo o mais concernente

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à vida e obra dos rapinantes que infes- está ao alcance de todas as bolsas,

tam a cidade do Rio de Janeiro, com ra- deixa de comer quem não quer, por-
mificações por São Paulo e Minas: estu- quanto o infeliz nunca bate em vão à

dos e observações minuciosas, 1898- porta do semelhante. O brasileiro é,

1 9 0 3 . 1 7 O jovem Vicente Reis iniciou em geral, generoso.


uma carreira como delegado de polícia
Demais, entre nós, o trabalho não es-
e escritor no Rio de Janeiro, antes de
casseia. Toda a gente encontra ocupa-
transferir-se para o Amazonas, onde par-
ção e o serviço tem sempre paga
ticipou por longo tempo da vida pública.
compensadora. 18
Neste livro ele utiliza sua experiência e
o depoimento de um escroque, o doutor Mesmo neste cenário paradisíaco, o po-

Cornélio, para descrever as práticas dos licial alerta para os perigos. Como as leis

criminosos cariocas. Seu diagnóstico ini- são frágeis e a polícia mal preparada, a

cial é típico do pensamento policial: o “gatunagem desterrada da Europa” está

Rio, ao contrário da Europa, seria uma se estabelecendo por aqui, o crime vem

cidade muito pacífica, pois os ricos não aumentando, e “atinge a mil o número

ostentam sua riqueza e os pobres não dos rapinantes conhecidos” na cidade.

passam necessidade, pois há fartura de Se a violência como problema era per-


trabalho: cebida ou apontada com freqüência por

A opulência, companheira inseparável


aqueles que deveriam enfrentá-la como

dos milionários e das pompas que as ri-


função pública, a questão se torna mui-

quezas lhes dão, raramente se desco-


to mais complexa quando tentamos ava-

bre na capital federal.


liar a percepção dos habitantes da cida-
de. Assim como tentamos indicar a difi-
Em geral a gente apatacada, entre nós,
culdade de tratar o Estado como uma to-
economiza para gozar no exterior, onde
talidade, o mesmo ocorre com o conjun-
se desforra dos tristes dias de um pas-
to da população. Recortes de classe, o
sado cheio de amarguras provenientes
povo, camadas populares, a opinião pú-
de um labor incessante, compensando-
blica, diversas categorias ou recortes
os com a delícia que despertam os
podem ser propostos, sem satisfazer ple-
novos climas, os ares estranhos, cos-
namente como configuração de diferen-
tumes e usos diversos.
tes grupos que compartilhavam o espa-
Acresce que no Rio de Janeiro ninguém ço urbano. Problema metodológico
sofre as torturas da fome, o que não crucial e que só pode ser resolvido por
se dá na Itália, em Londres, em Paris. opções artificiais. Uma das formas mais
Nesta abençoada terra onde, graças a comuns é utilizar a imprensa, repositório
Deus, o que diz respeito a gênero de melhor estruturado de uma improvável
consumo, no tocante à alimentação, – em todos os sentidos – opinião públi-

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A C E

ca. Através dos diversos jor nais, revis- cidade vivia sob um “grande medo”, que
tas, ou utilizando alguns cronistas recor-
não deve ser tomado como mera ma-
rentes no início do século – Machado de
nifestação histérica de setores médi-
Assis, João do Rio, Lima Barreto e Olavo
os cercados por uma realidade de ex-
Bilac entre os mais citados, mas há uma
trema iniqüidade social. As classes po-
infinidade de outros – é possível cons-
pulares também se vêem ameaçadas
truir diferentes visões do problema da
pelas hordas de desocupados e desva-
violência carioca. Seria extenso demais
lidos que perambulam pelas ruas da
tentar analisar cada cronista e seu dis-
capital...21
curso sobre a violência – ou qualquer
Neste ponto, a evidência da imprensa
outro tema. Para nossos objetivos basta
parece ser bastante limitada. As recla-
deixar claro que se tratam de posições
mações de fato existiam, mas é difícil
bastante distintas, assim como podem
precisar quem reclamava e, principal-
ter os jor nais. A expansão da imprensa
mente, quem não reclamava e qual era
diária no início do século XX motivou
o objeto das reclamações. Fica sempre
uma diversificação de estratégias para
para a imaginação do leitor o que acon-
conquistar o público, entre as quais o
tecia quando alguém estava se queixan-
apelo a narrativas e crimes foi das mais
do que “maltas de menores desocupados
empregadas. Discutir a violência tendo
cometiam toda a sorte de desatinos, [...],
como fonte o Jornal do Comércio, o Cor-
no bulevar 28 de Setembro”. 22 O desati-
reio da Manhã , ou A Noite pode levar a
no de uns podia ser a alegria de outros...
resultados bastante diversos. A tentati-
O espaço urbano carioca vivia em rápi-
va mais consistente de analisar o trata-
da transformação, onde visões
mento jor nalístico dos problemas urba-
conflitivas sobre a ordem urbana eram
nos foi feita por Eduardo Silva. 19 A par-
expressas nessas opiniões publicadas na
tir de uma coluna do Jor nal do Brasil que
imprensa, que procuravam mobilizar su-
busca dar voz a seu público, Eduardo
porte do Estado e de seus agentes repres-
constata que preocupações com a vio-
sivos. As manifestações na imprensa in-
lência na cidade estavam entre as mais
dicam que setores não diretamente en-
freqüentemente apresentadas no jor nal,
volvidos na gestão do Estado tinham al-
mas que incidiam principalmente sobre
guma preocupação com o ajuste de um
o comportamento das forças públicas de
código coletivo de ordem urbana. O que
segurança. Quando Eduardo menciona
parece um pouco mais difícil de ser veri-
que “viver no Rio era muito perigoso na-
ficado é até que ponto esta percepção
queles dias”, 20
o problema principal era
da desordem influía sobre o comporta-
a arbitrariedade de policiais e outros
mento cotidiano.
agentes. Mesmo assim, Eduardo sugere
– parafraseando Georges Lefebvre – que a Para avançar um pouco nesta questão

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R V O

será conveniente introduzir a questão ao trabalho do delegado Vicente Reis.


das vítimas e dos crimes que sofrem. Não Sua tipologia dos criminosos é extensa
é recente a demonstração pelos estudos e variada:
de crime que o cidadão comum é a víti- Entre os ladrões destacam-se:
ma da maior parte dos crimes. No Rio de
1º - Os que matam para roubar.
Janeiro não parece ter sido diferente, e
2º - Os que agarram a vítima pela gar-
os habitantes da cidade eram expostos
ganta.
– de vez em quando – a atentados con-
tra sua integridade física ou proprieda- 3º - Os que assaltam no mar.

de. Mas o perfil que parece emergir do 4º - Os que narcotizam.

estudo destes casos sugere exatamente 5º - Os que fazem banhos de mar.


que não havia uma grande preocupação
6º - Os saltadores de janela.
com a própria segurança. Do ponto de
7º - Os que destroem os obstáculos à
vista do público, podemos considerar
sua passagem, por meio de instru-
que um par efetivo da violência é o
mentos para tais fins criminosos
medo, e a adoção de medidas para evi-
apropriados...
tar ser alcançado pelos problemas. É cla-
ro que tais medidas devem variar pela 8º - O s que visitam galinheiros,

capacidade dos grupos em se proteger coradouros e casas vazias.

ou por sua disposição em correr riscos Entre os gatunos há os que trabalham

em troca do usufruto da vida na cidade, com dois dedos e os que se valem da

variando, portanto, com o poder aquisi- boa fé alheia.

tivo, a idade ou o sexo dos agentes. Ain- Quanto aos primeiros notam-se:
da assim, podemos apontar para uma sig-
1º - Os que furtam objetos de bolso.
nificativa tranqüilidade na vida carioca
2º - Os que se aproveitam dos descui-
do 1900. O perfil dos crimes contra a
dos, do desmazelo de qualquer
propriedade parece indicar a prevalência
pessoa.
de batedores de carteiras ou de furtos
de quintais e residências através de por- 3º - Os que furtam amostras expostas

tas deixadas abertas – uma grande cida- à porta de casas comerciais e, na

de que ainda podia se dar ao luxo de se impossibilidade de se entregarem

preocupar com ladrões de galinhas. a esse meio de rapinagem, saquei-

am os pobres infelizes que, por


Não existe qualquer levantamento mais
qualquer causa, bebedeira ou ata-
detalhado dos crimes contra a proprie-
que, são encontrados caídos nas
dade no período. O que podemos des-
ruas e praças públicas.
crever vem da leitura de registros de
ocorrência policial, das notícias de jor- 4º - Os que furtam animais. 23

nal, ou então, mais uma vez, recorrendo A lista se inicia com criminosos perigo-

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sos, mas uma leitura mais cuidadosa público a desistir de seus prazeres, sen-
destes grupos permite que percebamos do o combate ao consumo de bebidas
que sua classificação é feita por crimes restrito a alguns poucos doutrinadores,
isolados. Os nove nomes listados entre tanto no campo progressista como no
os que matam para roubar são indivídu- conservador. 25
os presos por crimes que tiveram algu-
Ainda não existem pesquisas sobre bri-
ma repercussão na cidade, incluindo o
gas ou pequenas agressões. Se for pos-
célebre Ferreira das Degoladas, acusa-
sível nos basear nos trabalhos dedicados
do de matar a prostituta Clara Mery, a
a crimes de morte, feitos por Sidnei
Madame Holofote, num processo que
Chalhoub e Carlos Antônio Costa Ribei-
Evaristo de Morais considerou bastante
ro, podemos perceber como os eventos
irregular, e em que seu cúmplice Antô-
violentos estão diretamente ligados à his-
nio Riachuelo, foi absolvido. 24 A maio-
tória dos envolvidos e sua teia de rela-
ria de nomes citados se dedica aos pe-
ções.26 Neste contexto, os acontecimen-
quenos crimes, batendo carteiras ou en-
tos violentos eram, em certas circunstân-
trando em casa alheia, até chegar nos
cias, compreendidos e até legitimados,
que furtam em galinheiros – tipos como
mesmo quando praticados pelos traba-
o Bico Doce, o Galo, o Manuel Peru ou o
lhadores policiais. A incompreensão e a
João Galinha. A própria descrição do de-
atribuição do “motivo fútil” vinha de
legado demonstra a prevalência dos pe-
cima, do discurso dos setores moraliza-
quenos crimes.
dores da elite.27 Tal violência, mais uma
vez, não parece ser ameaçadora, pois era
A violência física, por sua vez, ocorria
originária duma violação de regras que
em espaços e situações comuns, onde a
deveriam ser conhecidas. Podia, assim,
freqüência pública era diversificada e só
ser condenada, mas não afetava as con-
evitada por grupos da elite que preferi-
dições de existência.
am ler sobre ela, em João do Rio. Parte
desta violência era encarada como natu- O Rio de Janeiro do início do século XX
ral nestas situações e mesmo necessá- convivia, portanto, com uma violência
ria como reação a violações de códigos que poderia parecer pequena para nós,
infor mais de conduta. Testemunhas e cem anos depois, ou enorme para os de
policiais pareciam “compreender” as cinqüenta anos antes. Grande também
motivações de lutas e conflitos, ainda para um londrino, ou quem sabe normal
que promotores e delegados os atribuís- para um romano. Podia assustar o bur-
sem a motivos fúteis. No mundo da di- guês, que gritava pela ação policial, ou
versão, o álcool podia fazer crescer pe- ser admirada en passant por aqueles que
quenas disputas e os conflitos podiam brevemente pensavam: “Teve o que me-
ser exagerados. Mas isso não levava o receu...”. Poucos mudavam seu ritmo de

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R V O

vida por causa dela. Continuariam a co- – e a chorar seus mortos, que mesmo
mer os dois camarões das empadinhas sem violência participavam da tragédia
do nosso confeiteiro – pelo menos aque- da condição humana. E sobre eles, o his-
les com entrada nas confeitarias chiques toriador faz seu ofício.

N O T A S

1. Arquivo Nacional. Processo T8.3238, 24 set. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
2. Arquivo Nacional. Processo T8.3260, 15 jun. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
3. Aqui fica bem clara a mistura do registro cotidiano com as categorias policiais. Onde mais
encontrar pardos? Fique claro que emprego o ter mo numa concessão à narrativa.
4. Arquivo Nacional. Processo T8.3250, 22 out. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
5. Arquivo Nacional. Processo T8.3263, 11 fev. 1909 (8 a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).
6. Aqui já se percebe que o problema não pode ser abordado apenas pelo aspecto quantitativo.
Voltaremos à questão da reconstrução positiva do passado mais à frente.
7. Esta comparação é ainda muito precária e se baseia em dados apresentados por Thomas H.
Holloway, Policing Rio de Janeiro : repression and resistance in a 19th century city, Stanford,
Stanford University Press, 1993; Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão: trabalho,
luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888, São Paulo, Brasiliense, 1987 e Maria
Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São
Paulo, 1850-1880, São Paulo, Hucitec, 1998.
8. Para um trabalho comparativo do gênero sugerido, na América Latina, ver L yman L. Johnson,
“Changing arrest patterns in three Argentine cities: Buenos Aires, Santa Fe, and Tucuman,
1900-1930”, em L yman L. Johnson, The problem of order in changing societies : essays on
crime and policing in Argentina and Uruguay, Albuquerque, University of New Mexico Press,
pp. 117-148.
9. A literatura antropológica sobre sociedades mediterrâneas e honra é bastante extensa. Qual-
quer estudo deve partir de Julian Pitt-Rivers e da coletânea de J. G. Peristiany, Honor and
shame : the values of Mediterranean society, Chicago, University of Chicago Press, 1966. Ver
também o trabalho de síntese de Frank Henderson Stewart, Honor , Chicago, University of
Chicago Press, 1994 e a utilização destes conceitos para o Rio de Janeiro feita por Sueann
Caulfield, Em defesa da honra : moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-
1940, Campinas, Editora da Unicamp, 2000.
10.Para São Paulo ver Boris Fausto, Crime e cotidiano : a criminalidade em São Paulo, 1880-
1924 , São Paulo, Brasiliense, 1984, e Maria Inez Machado Borges Pinto, Cotidiano e sobrevi-
vência : a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914, São Paulo, EDUSP,
1994. Sobre Belo Horizonte ver Luciana Teixeira de Andrade, Ordem pública e desviantes
sociais em Belo Horizonte, 1897-1930, dissertação de mestrado em sociologia, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1987.
11.Não deve ser por acaso que a violência nas relações de gênero tem ocupado lugar de desta-
que entre as preocupações historiográficas sobre crimes no início do século XX.
12.Mesmo assim, parece-me que as indicações do texto clássico de Maria Sílvia de Carvalho
Franco sobre a legitimidade da presença e do exercício da violência no mundo dos homens
pobres no Brasil têm sido muito pouco explorado. Este é o caso de um trabalho onde algumas
deficiências extremamente visíveis têm obscurecido seus méritos e insights ainda profunda-
mente atuais.
13.Este problema já foi bastante apontado na literatura de matriz foucauldiana. Ver as críticas de

Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pág.21


A C E

Edmundo Campos Coelho, As profissões imperiais : medicina, engenharia e advocacia no Rio


de Janeiro, 1822-1930, Rio de Janeiro, Record, 1999 e José Leopoldo Ferreira Antunes, Me-
dicina, leis e moral : pensamento médico e comportamento no Brasil, 1870-1930, São Paulo,
UNESP, 1999.
14.Muito se fala na repressão a vadiagem no Rio de Janeiro, mas ainda é preciso levantar muitos
dados. Um bom ponto de partida é Marcelo Badaró Mattos, Vadios, jogadores, mendigos e
bêbados na cidade do Rio de Janeiro do início do século , dissertação de mestrado, Universi-
dade Federal Fluminense, 1991. Para se ter uma idéia da importância e do volume dos pro-
cessos de vadiagem, um breve levantamento das sentenças do juiz da 3a Pretoria Criminal
entre 8 de outubro e 12 de novembro de 1916 contabiliza 101 processos, sendo que setenta
contra vadiagem, que resultaram em 37 absolvições e 33 condenações. Neste caso, o núme-
ro de condenações é mais significativo do que o encontrado por Badaró, mas é difícil avançar
qualquer interpretação.
15.Da mesma forma, precisam apresentar bons resultados sob pena de perder poder. É uma
contradição característica dos sistemas policiais e que pode ser muito importante na produ-
ção e análise de estatísticas criminais. Ver o interessante trabalho de Howard Taylor, “The
politics of the rising crime statistics of England and Wales, 1914-1960” em Crime, histoire &
societés , v.2, n. 1, 1998, pp. 5-28.
16.O tema é mais bem desenvolvido em meu livro Ordem na cidade : o exercício cotidiano da
autoridade policial no Rio de Janeiro , 1907-1930 , Rio de Janeiro, Rocco, 1997.
17.Vicente Reis, Os ladrões no Rio, Rio de Janeiro, Laemmert, 1903.
18.Idem, pp. 2-3.
19.Eduardo Silva, As queixas do povo , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
20.Op. cit ., p. 106.
21.Idem, p. 119.
22.Idem , p. 122.
23.Vicente Reis, op. cit., pp. 24-25.
24.Evaristo de Morais, Memórias de um rábula criminalista, Rio de Janeiro, Briguiet, 1989, pp.
115-121.
25.A propaganda anti-alcoólica, por oposição, adotava um tom dramático. Ver Hermeto Lima, O
alcoolismo no Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914 e Evaristo de Morais,
Ensaios de patologia social: vagabundagem, alcoolismo, prostituição, lenocínio, Rio de Janei-
ro, Leite Ribeiro, 1921.
26.Sidnei Chalhoub, Trabalho, lar e botequim : o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro
da belle époque, Rio de Janeiro, Brasiliense, 1986 e Carlos Antônio Costa Ribeiro, Cor e
criminalidade : estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Editora UFRJ,
1995.
27.Uma discussão que não vou travar aqui diz respeito a como outros setores da elite considera-
vam normais certas manifestações de violência na pobreza, carregando na descrição dos
tipos brutos que vivem neste universo, dos quais não se poderia esperar outro tipo de atitude.

A B S T R A C T
The aim of this article is to discuss if the criminal processes allow to think the city of Rio de
Janeiro as a violent city in the beginnings of the twentieth century. The author points out the
identity of the individuals involved in those varied circumstances of violence and exposes the
multiplicity of methods and themes that the criminal archives may offer to the researchers of the
recent history of Brazil.

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