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Herberto Helder
Em Poemas completos, Rio de Janeiro, Tinta da China, 2016
Como o centro da frase é o silêncio é o centro deste silêncio
é a nascente da frase começo a pensar em tudo de vários modos –
o modo da idade que aqui se compara a um mapa arroteado
por um vergão de ouro
ou o medo que se aproxima da nossa delicadeza
e que tratamos com o poder da nossa delicadeza –
temos de entrar na zoologia fabulosa com um talento bastante fabuloso
pois também somos a vítima da nossa vítima –
e ofereço à perscrutação apenas uma frase com buracos
assinalando uma cabeça escritora
assim era – dizia a própria cabeça – um queijo suíço
a fermentar como arcturus fermenta na treva celeste
e apura os volumes e a qualidade dos volumes
da luz –
desde que a atenção criou nas coisas o seu movimento
as formas ficaram sob a ameaça do seu mesmo
movimento –
o mais extraordinário dos nomes sempre esbarrou
consigo mesmo
com o poder extraordinário de ser dito –
qualquer vagar é de muita pressa e toda a rapidez
é lenta – basta olhar para a paisagem da escrita já antes
quando começa a abater-se pelo seu peso e o espírito
da sua culpa –
porque uma frase trabalha na sua culpa como a paisagem
trabalha na sua estação –
o merecimento a ver quem a ele chega primeiro
ao buraco do coração – ver ou ser visto –
ao buraco que transpira no meio do ouro –
se é ele o ouro ou se o ouro está em volta tremendo
como um nó vivo implantado em cheio na madeira –
e a única meditação moderna é sobre o nó
absorvendo a madeira toda – uma espécie de precipitação
convulsa da matéria para o seu abismo próprio –
e sobre a tábua despida incorporando cada nó que fica
a palpitar com a força do tecido inteiro
da tábua
e lançando na tábua a sua energia mergulhada
de nó –
porque em toda palavra está o silêncio dessa palavra
e cada silêncio fulgura no centro da ameaça
da sua palavra –
como um buraco dentro de um buraco no ouro dentro do ouro