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Introdução
“Foi numa noite de lua que eu vi duas mulheres bebendo cachaça e girando na
rua. Mas uma era a Pombagira e a outra era a Maria Padilha”. O ponto da Pombagira
revela quem ela é: uma mulher que vive para liberdade. Pombagiras são mulheres
insubordinadas que andam nas ruas tanto de dia como de noite. Este ponto revela que
elas não andam sozinhas. A Rainha Pombagira está junto com Dona Maria Padilha. Elas
também andam em legião para proteger os seus domínios. A Rainha Pombagira Sete
Encruzilhadas é considerada a Rainha da Umbanda, religião genuinamente brasileira que
agrega tradições católicas populares, indígenas e afro-brasileiras. Na Cabana do Preto
Velho da Mata Escura, terreiro fundado em 1984, localizado no bairro Bom Jardim, em
Fortaleza-CE, a Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas incorpora no Pai Valdo de Iansã,
Pai de Santo que dirige o terreiro.
A umbanda, como culto organizado segundo os padrões atualmente
predominantes, teve sua origem por volta das décadas de 1920 e 1930, quando
kardecistas de classe média, no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul,
passaram a mesclar com suas práticas elementos das tradições religiosas afro-
brasileiras, e a professar e defender publicamente essa “mistura”, com o objetivo
de torná-la legitimamente aceita, com o status de uma nova religião. Mesmo antes,
porém, de aquirir um contorno mais definido, muitos elementos formadores da
umbanda já estavam presentes no universo religioso popular do final do século
XIX, sobretudo nas práticas bantos. Na cabula, por exemplo, como vimos, o chefe
do cultro era chamado de embanda – possível origem do nome da religião que se
formou pela ação desses líderes ou se confundiu com suas práticas. Cargos e
elementos litúrgicos da cabula também preservaram-se na umbanda, como o de
cambone, auxiliar do chefe do culto, ou a enba (ou pemba), pó sagrado usado
para “limpar” o ambiente dos rituais. Também na macumba o termo umbanda
designava o chefe do culto e uma de suas linhas mais fortes (cf. Ramos, 1940, p
121, 179). Embora faltem dados para reconstituir as diferenças entre linhas da
macumba, é possível supor que pela sua popularidade a linha de umbanda tenha
ganhado autonomia em relação às demais e passado a designar um culto à parte.
As origens afro-brasileiras da umbanda remontam, assim, ao culto às entidades
africanas, aos caboclos (espíritos ameríndios), aos santos do catolicismo popular
e, finalmente, às outras entidades que a esse panteão foram sendo acrescentadas
pela influência do kardecismo, como veremos adiante. Essa influência tornou-se
ainda mais significativa especialmente depois da reordenação por que passou o
heterogêneo universo da macumba, codificado e reinterpretado sob a inspiração
kardecista. (Silva, 2005. p. 106-107)
Este ensaio tem como objetivo refletir sobre a Rainha Pombagira Sete
Encruzilhadas e sua resistência enquanto corpo de mulher autônoma e sua
subversividade perante o mundo patriarcal e normatizado pelas ciências médicas e pela
Igreja Católica Apostólica Romana. A Rainha Pombagira é uma entidade espiritual das
encruzilhadas, das porteiras e da comunicação. Pombagira é um Exu Mulher, ou seja, é
uma guardiã dos caminhos do mundo espiritual e uma mensageira entre os dois mundos.
Os seguidores e admiradores da Pombagira veem nela uma amiga, uma conselheira e
uma advogada.
A Pombagira é, também, uma entidade subversiva porque é questionadora de uma
sociedade de valores morais que subjugam a existência da mulher. Sua presença marca a
transgressão da ordem e dos valores patriarcais em uma sociedade marcada pela
violência, pelo machismo e feminicídio. A Pombagira, como um Exu, representa a
desordem do mundo que se organiza pela desvalorização da mulher e do feminino. A
Moça (Anjos, 2017), com a sua gargalhada, beleza e magia, desvela o mundo da
liberdade, da autonomia e da emancipação da mulher.
A Pombagira é regida por uma ideia ambígua e pode representar uma imagem
invertida da concepção que situa o espaço doméstico como o espaço feminino por
excelência e onde os recursos femininos estão definidos complementarmente aos
personagens masculinos. As Pombagiras, ao contrário, são percebidas como uma
ameaça a esse espaço doméstico e às relações aí legitimadas, como bem o diz Silva:
No Brasil, Exu é também uma entidade masculina, porém a categoria dos Exus,
sobretudo na umbanda, abriga inúmeras outras entidades, como baianos, ciganos,
Zé Pilintra e Pombagira. Esta seria um trickster feminino que desafia a ordem
patriarcal da sociedade brasileira por meio da não aceitação da subordinação da
mulher aos papéis domésticos tradicionais de esposa e mãe. Embora ela possa
também ser vista como mãe, é como “mulher da rua”, e não “da casa” que a
Pombagira assume o estereótipo da prostituta. Nesse sentido, seu poder decorre
do domínio que manifesta sobre o seu corpo e sua vontade, ainda que lhe custe
uma reputação social estigmatizada. Ela se utiliza da diferença anatômica (pênis e
vagina) associada ao sexo biológico (macho e fêmea) e aos papéis de gênero
(masculino e feminino), para questionar por meio da jocosidade e da
licenciosidade o poder social que instaura relações de dominação a partir destes
marcadores sociais da diferença (2015, p. 78).
A Pombagira afronta o papel de mulher doméstica, mãe e/ou do lar. Ela é bela,
mas não é e nem quer ser recatada. Deste modo a Pombagira gargalha debochando do
mundo que a subestima. Sua presença em terra impõe o respeito do corpo da mulher
alicerçada pela desobediência ao patriarcado. “Este terreiro é governado por mulher”, diz
o ponto da Rainha. Ela está na roda. É a mulher que tem o domínio.
Metodologia
Por fim, realizei entrevistas abertas com o Pai Valdo de Iansã para que ele me
desse sua percepção sobre a Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas e sua presença na
vida cotidiana da comunidade de terreiro.
Discussão
Seu mito de cortesã em terras europeias converge com o mito de Maria Padilha
contado por Monique Augras (2009) e dá conta das histórias dessas entidades da
Umbanda, religião que muitos autores defendem que nasceu no Rio de Janeiro por volta
dos anos 10/20 do século XX. Augras conclui que as Pombagiras
São figuras transgressoras, que em tudo correspondem à inversão dos valores
prezados pela boa sociedade. E tudo aquilo que dizia respeito à sexualidade
feminina deu nascimento a uma nova categoria de entidades, designadas pelo
vocábulo genérico de Pombagira, já que, como os Exus, seu nome é legião e, de
acordo como os adeptos, existiriam milhares de Pombagiras. (2009, p. 16)
Birman (1985, p. 14-15) lembra que, diferente das santas católicas, onde se
encontra modelos de sacrifício em vida, embate permanente com as tentações e busca de
perfeição, a Pombagira (como os Exus) não estão disponíveis nestes modelos
subservientes. Além de tudo, se a igreja católica (pelo menos o modelo de igreja mais
tradicional) combate o fenômeno da possessão, a Umbanda convive com ela como algo
benéfico não evidenciando a dicotomia que separa o bem e o mal.
A pesquisa de Menezes (2019) revela que a Pombagira
na condição de entidade espiritual traz a aura de sagrada, vem do outro mundo,
por meio do transe dá conselhos às mulheres e ajuda na solução dos seus
problemas cotidianos, legitimando tanto para as mulheres como para os homens
questões com as quais encontram dificuldades em solucionar no cotidiano. A
Pombagira age como conselheira, se coloca como auxiliadora espiritual, mas
também transfere a responsabilidade para as próprias mulheres que precisa seu
comando, sob sua influência, apoderando-se da energia emanada. (p.103)
E continua:
A Pombagira, da forma como se apresenta nos rituais, fala dos lugares de poder
por um caminho de enfrentamento ao sexo oposto. Fala dos sofrimentos
característicos das mulheres submissas ao homem, colocando-a na condição de
sujeito, portadora de poder de condução e decisão. É importante lembrar sempre
da diversidade, dos comportamentos femininos e das brechas que foram sendo
criadas e que nos possibilitam vislumbrar as posições das mulheres sobre a
sexualidade, que é o principal canal por onde passam as discussões de gênero. E
nesse sentido, a Pombagira nos parece uma brecha para as mulheres, pois por
meio da sua manifestação permite às mulheres que se coloquem como poderosas
e por isso, maravilhosas. (p. 103)
À guisa de conclusão
A Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas da Cabana do Preto Velho da Mata
Escura tem corpo que é presente e subversivo. É corpo de mulher.
Presente porque venceu a morte e realiza a experiência do sagrado quando
incorpora no mundo material atendendo os desejos de quem acredita nela. A Moça, que
também é Rainha, é uma advogada entre os dois mundos. É também aquela que
aconselha, ampara e ouve todos e todas que querem uma palavra de amor. Sua festa
pode ser considerada a festa da transgressão dos corpos porque rompe com modelos
instaurados pelas instituições presididas por homens brancos, héteros e ligados à
sociedade capitalista dominante.
É corpo subversivo porque não corresponde a ideia de mulher doméstica e mãe. A
Moça é mulher das encruzilhadas e das transgressões. Ela canta, dança, bebe, fuma e dá
sua gargalhada. Pombagira é mulher de sete maridos. Trabalha girando no meio do salão.
Ri e debocha dos homens marcando sua insubmissão ao mundo do patriarcado e do
machismo presentes na sociedade brasileira.
A experiência da presença da Rainha Pombagira desvela que ela é uma mulher
que rompe com as barreiras do corpo com a sua magia e sua força. Seu corpo exibe uma
plástica exuberante chocando a sociedade da moral e dos bons costumes. Pombagira
não é dos bons costumes porque não empreende o modelo da recatada e do lar, muito
pelo contrário.
Mulher potente, Rainha da Umbanda, Exu Mulher, Rainha do Amor… Tudo isso é a
Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas. A entidade é um modelo envolvente para os
estudos de gênero e feminista porque, com a sua presença permeada pela subversão de
valores morais, nos ajuda a pensar as realidades de mulheres que não correspondem aos
modelos da sociedade normativa e patriarcal.
Referências
ANJOS, Jean Souza dos. A Festa da Moça: notas sobre a festa de Dona Pombagira.
Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais). Departamento de Ciências Sociais.
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.
BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense, 1985.
GUARINELLO, Noberto Luiz. Festa, trabalho e cotidiano. In: Festa: Cultura &
Sociabilidade na América Portuguesa. JANCSÓ, István., KANTOR, Iris (Org). São Paulo:
Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. (Coleção
Estante USP – Brasil 500 anos. v.3).
PORDEUS JR., Ismael. Umbanda: Ceará em transe. Fortaleza: Museu do Ceará, 2002.
PRADO, Adélia. Adoração noturna. In: Vida Doida. Porto Alegre: Alegoria, 2006. P. 50.
VALE, Alexandre Fleming Câmara. Por uma estética da restituição: notas sobre o uso
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2014. Disponível em:
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/21234/1/2015_art_afcvale.pdf Acesso em: 17
Jun. 2019.