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O ENSINO DE LITERATURA E A LEITURA LITERÁRIA1

Neide Luzia de Rezende

A Maria Antônia Granville


In memoriam

“O que se ensina quando se ensina literatura?” Tal pergunta levou-me a pelo


menos duas tentativas de resposta, a partir das quais farei algumas considerações,
tomando como base o ensino de literatura no nível médio da escolaridade2.
1. O que se ensina hoje na escola quando se ensina literatura, tendo como
premissa que, quando dizemos “literatura” trata-se do texto literário e não de
outra coisa – como simulacros, resumos, história da literatura, estilos de
época, conjunto de obras, etc.?
2. O que se ensinaria se de fato se “ensinasse literatura”, pressupondo-se ser o
texto literário o objeto do ensino de literatura?
No ensino de língua portuguesa destas últimas quatro décadas, a entrada das
teorias linguísticas no âmbito do ensino abalou concepções arraigadas, como a da
gramática normativa como conteúdo único de Língua Portuguesa no ensino básico.
Ainda que a correlação teoria-prática esteja longe de ser a ideal, os professores já não se
sentem seguros de defender esse “ensino tradicional da gramática”. Nesse contexto,

1
Este texto é decorrente de uma palestra (“O que se ensina quando se ensina literatura?”) no I Simpósio
Texturas do Saber, realizado no Ibilce – S. José do Rio Preto, em 23.11.2010 – , que coordenei junto com
Maria Antônia Granville, professora da instituição falecida neste ano de 2012, quando estávamos
organizando o II Texturas do Saber. Este texto, que se encontra nos anais do evento, seria em princípio a
base para um outro a ser incluído em livro que Maria Antônia tinha programado mas não teve tempo de
concluir. Penso que republicá-lo aqui responde a dois interesses meus: 1. trazer à memória minha amiga
e parceira, cujo empenho no trabalho a mantinha firme na luta contra o câncer; nos últimos dois anos,
estivemos juntas também em eventos de Maringá e Uberlândia; 2. outro interesse se encontra obviamente
no conteúdo do artigo, tema que desdobro há anos e foi o tema central de nossa I Jornada.
2
Uso como fonte os mais de dois mil relatórios de estágio que nestes 14 anos de docência foram
produzidos pelos alunos de minhas turmas do Curso de licenciatura em Metodologia do Ensino de Língua
Portuguesa na FEUSP; além disso, temos já cerca de 15 pesquisas desenvolvidas ou em desenvolvimento
pelos alunos de pós-graduação inseridos no grupo de pesquisa Linguagens na Educação sob minha
coordenação, voltadas prioritariamente para aspectos da leitura literária e o ensino de literatura. Ressalto
que me detenho no Ensino Médio apenas por uma necessidade de recorte, uma vez que considero a
literatura necessária em todos os níveis da escola básica, eu mesma ministrando no Curso de Pedagogia
da FEUSP a disciplina Texto e imagem: a literatura infantil na escola.
paulatinamente nas últimas décadas, a linguística textual e as teorias discursivas
instauraram um novo modelo, sendo quase hegemônica a vertente “teoria dos gêneros”,
(mal) fundamentada em Bakhtin. No caso da Literatura, as novas ferramentas
provenientes da própria linguística3, e abordagens literárias advindas de outras áreas
(psicanálise, sociologia, antropologia, filosofia...), instigam algumas tentativas de
mudança do ensino da literatura no nível fundamental e médio, incentivadas também
por propostas oficiais tanto no âmbito federal quanto estadual e municipal.

I. No Ensino Médio: ainda o domínio da história da literatura


A história da literatura centrada no nacionalismo literário ainda é de longe a
perspectiva dominante no ensino médio, desdobrando-se em sequência temporal numa
lista de autores e obras do cânone português e brasileiro e suas respectivas
características formais e ideológicas. O livro didático é o maior bastião dessa
perspectiva, tendo da História uma visão muito particular, com resíduos nada
desprezíveis do positivismo do século passado e do anterior, acrescido de uma visada
marxista (como disse uma vez de si mesmo Antonio Candido [1974], referindo-se ao
início de sua carreira de crítico literário, quando estava “tomado por um marxismo
positivista”).
Tendo, pois, o livro didático como apoio, o mais comum é que o professor de
ensino médio configure neste trabalho as mais diferentes estratégias: uma atividade oral
de leitura de fragmentos pelos alunos, seguida por perguntas e respostas, sendo que
estas já se encontram no manual do professor, ou seja, os alunos vão ter de se ajustar,
como no leito de Procusto, àquelas respostas elaboradas de antemão, que o próprio
professor provavelmente tampouco saberia responder se não as tivesse ao alcance;
cópia, no caderno, de trechos do livro e dos questionários para responder por escrito
com o objetivo muitas vezes de manter os alunos quietos e ocupados (paradoxalmente
procedimento até apreciado pelos próprios alunos, que veem nisso – cinicamente? –
uma atividade escolar por excelência); cópia do livro, na lousa, feita pelo professor para
os alunos copiarem (em geral, quando os alunos não têm o livro, procedimento que aos
observadores parece oportuno...); pesquisa sobre autores e obras, que os alunos fazem
pela internet apenas baixando os arquivos (alguns professores os querem copiados à

3
Mais representados nesse sentido por Saussure, Benveniste, Jakobson, Maingueneau, Bronckart, entre
os que mais aparecem nas bibliografias das disciplinas dos cursos de Letras no ensino superior .
mão...); seminários sobre autores e obras cujo cronograma igualmente segue a linha do
tempo da história da literatura nacional e a do antigo colonizador, etc.
Quando se pergunta aos professores (em situação de pesquisa ou àqueles que
acompanham a disciplina de MELP, Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa,
como alunos especiais) e aos licenciandos (que, instruídos pela disciplina de MELP, já
chegam às escolas para estágio com um viés distanciado e crítico) o que se ensina
quando se ensina literatura em classes do ensino médio, ciosamente respondem que, de
fato, não é literatura o que se ensina , mas “história da literatura”.
A chamada História da Literatura é muito ampla e não corresponde apenas a
uma visão da história, mas sobretudo não corresponde às modernas correntes da
História (“École des Annales”, “nova história”, “história das mentalidades” etc.). No
seu livro O demônio da teoria: literatura e senso comum, Antoine Compagnon (2003,
p. 218) diz que em 1969 “Barthes atacava com ironia a contextualização apressada que
muito frequentemente reivindica o nome de história literária, ou artística, quando na
realidade, limita-se a justapor detalhes heterogêneos”. Citando vários estudos, comenta
como desde então muito se criticou essa vertente, e que hoje em dia “a própria história é
lida cada vez com mais frequência como se fosse literatura, como se o contexto fosse
necessariamente texto” e pergunta: “que pode vir a ser a história literária, se o contexto
nunca é senão outros textos?”. Nesse sentido, chama a atenção para as concepções da
nova história e finaliza: “Não mais nos é permitida a consciência tranquila em termos de
história e de hermenêutica, o que não é motivo para desistir. Uma vez mais, a travessia
da teoria é uma lição de relativismo e uma desilusão” (p. 223).
Assim, à pergunta sobre o objeto do ensino de literatura, pode-se responder que
se pretende ensinar algo sobre movimentos estéticos e estilos de época seguindo-se uma
determinada linha do tempo, dar informação sobre grandes obras e suas características
numa pretensa relação entre texto e contexto. Como diz Geraldi (1997, p.83), no ensino,
“não se trata de trabalhar com dados ou fatos para, refletindo sobre estes, produzir uma
explicação. Trata-se de aprender/ensinar as explicações já produzidas e fazer exercícios
para chegar a respostas que o saber já produzido havia previamente fornecido”.
Nos últimos cinco anos, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo tem
fornecido às escolas uma grande quantidade de material didático (Jornal do Aluno,
Caderno do Aluno, Caderno do Professor e, mais recentemente, Propostas Curriculares,
além de outros materiais variados sobre leitura e escrita). Com isso, a coisa meio que se
complicou, uma vez que além desse material oferecido, sugere-se a utilização
concomitante de outros (das mídias), configurando-se como uma salada de concepções e
estratégias que deve confundir mais do que auxiliar o professor se este não tiver
conhecimentos sólidos para selecionar e tomar posição em relação a caminhos tão
amplos e diferentes. A concepção do livro didático, apesar de algumas novidades, é
sempre a “tradicional”4, entendendo-se aí a da convencional história da literatura,
enquanto a dos documentos do Estado, ainda que este não explicite claramente uma
base teórica, diversifica o elenco de obras, incluindo não só referências contemporâneas
como abrindo o leque de gêneros – o teatro passou a integrar com certa frequência as
apostilas tanto do Fundamental quanto do Médio (o que em princípio é muito bem
vindo!). Além disso, evidencia-se uma preocupação com o leitor, ao propor formas de
leitura e participação nos debates.
Entretanto, segundo os estagiários, parece haver uma dificuldade muito grande
de apropriação desse novo material didático – que em geral denominam “as apostilas do
governo” – e dessas estratégias, pois, além das queixas dos professores, observaram
uma prática de ensino que acabava adaptando-se a um esquema já conhecido, o qual
remete ao “tradicional” do livro didático, com aulas expositivas, perguntas e respostas
mecanizadas. A reflexão que me ocorre é que esse novo acaba sendo subsumido por
uma cultura escolar poderosa e é apropriado segundo uma concepção antiga, espécie de
sistema que assimila a novidade, readaptando-a ao seu velho modelo (a exemplo do que
parece se dar com os gêneros discursivos5, engolfados pelo método identificatório e
classificatório da gramática escolar tradicionalmente instituída6). Parece que se há algo
visto como “natural” na disciplina, é o ensino da gramática normativa e da história da
literatura, vertentes surgidas em momentos históricos precisos e que acabaram se

4
Segundo alguns autores de livros didáticos, as editoras resistem às propostas de mudança nessa área por
medo de não obterem a aprovação do MEC.
5
Segundo conclusão de Sandra Ferreira de Oliveira (2012, p. 172) ) em sua dissertação de Mestrado:
“ainda que a presença maciça dessa teoria nos documentos oficiais analisados neste trabalho seja uma
evidência da hegemonia desse paradigma, mesmo passados quase quinze anos da publicação do primeiro
documento de alcance nacional responsável pela irradiação dos fundamentos teóricos a ele associados
(PCN, 1998), não é possível afirmar que os professores de Português da rede pública de ensino tenham se
apropriado totalmente desses fundamentos e, ao que parece, das implicações dele”.
6
Segundo Maria Helena Moura Neves (2004, p. 116) “configura-se, pois, o ensino da gramática como
uma exposição e imposição de parâmetros, nos quais se devem simplesmente enquadrar, segundo
instruções mecânicas, as entidades isoladas em textos-pretextos prontos, ou em orações artificiais
especialmente construídas para tal exercitação”.
instalando como modelos “míticos”7. Aliás, num artigo da revista Educação e Pesquisa,
da FEUSP, o francês Jean Verrier, afirma a respeito do ensino de história literatura:
“Já no século XIX, Lanson, o pai da história literária, lamentava que se
ensinasse essa nova disciplina nos liceus uma vez que a maioria dos alunos
não havia lido as obras cuja história aprendia. O mesmo desvio apareceu
após os anos 1970 quando a entrada nas escolas de rudimentos de teoria
literária – que, de resto, se faziam bastante necessários, em particular de
narratologia e de semiótica – levaram os alunos a substituir por um saber
teórico a prática dos textos sobre os quais eram levados a teorizar.”
(VERRIER, 2007, p. 8)

Ao longo da última década, as questões sobre o tema trazidas pelos estagiários


de MELP que foram à escola pública mostram um quadro cada vez mais problemático.
Em geral, relatam aulas entediantes, improdutivas, desnecessárias, cujo conteúdo passa
efetivamente longe da literatura. Na maior parte das vezes não há aula, como, de resto,
pode ocorrer em outras disciplinas8. Nesse quadro, parece difícil propor uma mudança
de paradigma no ensino de literatura, uma vez que, na verdade, deveria ocorrer uma
mudança da escola, como disse, em 2006, Regina Zilberman, em palestra na FEUSP,
“na escola brasileira da sociedade de hoje, o desaparecimento da literatura é tal que se
trata, ao contrário, de se pensar em que outro tipo de escola poderia vigorar a leitura
literária”.
Como contraponto, ou para crer que é possível mudar, gostaria de lembrar que
em 2001, os documentos oficiais franceses instituíram nos programas de seus liceus
(etapa de escolaridade correspondente ao nosso ensino médio), a “leitura cursiva”, tipo
de leitura que supõe uma reconfiguração da noção de leitura literária. Descrita como
“forma livre, direta e corrente”9, “propõe-se como leitura autônoma e pessoal, autoriza o
fenômeno de identificação e convida a uma apropriação singular das obras. Finalmente,

7
Não obstante esse ensino seja dominante na escola média, gostaria de apontar aqui algumas variantes
colhidas junto aos professores, tanto em situação de pesquisa quanto nos relatórios dos estagiários: leva-
se em consideração os gostos dos alunos, ao debater obras pelas quais eles se interessam fora da escola;
busca-se introduzir outros suportes, como cinema, vídeo, tevê... para de certo modo “substituir” a leitura
ou complementar as aulas de literatura, com informação sobre o conteúdo das obras (a mudança de
suporte evidentemente acompanha as mudanças de sentidos para os quais é importante sensibilizar os
alunos, mas para isso o professor realmente precisa ser bem preparado), dentre outros.
8
Nos últimos anos, tem aumentado o número de estágios interrompidos em razão das faltas dos
professores; há mesmo professores que têm como hábito faltar uma vez na semana, para conseguir dar
conta do trabalho nas precárias condições em que este se realiza.
9
B.O. no de 12 de julho de 2001 – Programa para o ensino médio geral e técnico – Língua Francesa,
citado por Annie Rouxel em “Apropriação singular das obras e cultura literária” (ROUXEL,
LANGLADE, REZENDE, no prelo)
ao favorecer uma outra relação com o texto, permite que se considerem também os
leitores reais” (ROUXEL, no prelo)10.
No nosso sistema educacional, ainda que as práticas de ensino resistam às
mudanças, esses exemplos de perspectivas novas vindas de fora têm penetrado os
documentos oficiais e pesquisas acadêmicas têm investido em visadas teóricas mais
condizentes com a vida contemporânea. Por exemplo, paulatinamente nos documentos
vem se impondo a expressão “leitura literária” para falar da literatura na escola, ainda
que de modo geral não se atente conceitualmente para o seu significado e potencial da
expressão para o ensino.
Assim, admitamos a possibilidade de introduzir mudanças dessa ordem no
ensino brasileiro, ou seja, que os textos literários pudessem de fato ser apropriados pela
escola como conteúdo de ensino. O que isso implicaria para a aprendizagem?11?
Trata-se de um deslocamento considerável ir do ensino de literatura para o de
leitura literária, uma vez que o primeiro se concentra no polo do professor e o segundo,
no polo do aluno. Esse deslizamento de ênfase não se inscreve apenas no âmbito da
literatura, mas se encontra no âmago das tendências pedagógicas contemporâneas. À
transmissão de conteúdos se contrapõem as habilidades e competências, e a resultados e
produtos se sobrepõe o processo. Isso pressupõe que a formação do aluno não se perfaz
mais num só sentido, ou seja, a partir do que o professor ensina, desconsiderando se o
aluno de fato aprende: acompanhar o processo de aprendizagem do aluno e dar a ele o
tempo necessário é mais importante do que cobrir uma lista de conteúdos previamente
definida12.
Evidentemente, num país como o nosso, marcado por desigualdades sociais
enormes e manifestas profundamente na escola, esses e outros benefícios das teorias
pedagógicas dominantes em nossa época se configuram mais como um ideal, ainda
muito distante da realidade, pelo menos nas regiões metropolitanas das grandes cidades,
em especial na capital paulista, que oferece o contexto para nossas reflexões. Não
abdicamos, contudo, desse e de outros ideais de um mundo melhor, e sabemos que as

10
No congresso “O Texto do Leitor”, na cidade de Toulouse, França, em 2008, no qual estive presente,
alguns expositores relatavam resultados positivos do programa.
11
Lembro que meu discurso se situa no âmbito da escola pública, particularmente da rede pública do
estado de São Paulo, e mais particularmente ainda das escolas da capital.
12
Em princípio, seria este um dos fundamentos básicos para a mudança do sistema seriado para o sistema
de ciclos no ensino fundamental; entretanto, temos observado a tendência de o primeiro “engolir” o
segundo, deixando apenas o seu esqueleto.
mudanças de paradigmas são demoradas e dependem de outras transformações, como
indica Moscovici (2009, p. 41):
“Pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e
da cooperação. Representações, obviamente, não são criadas por um
indivíduo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma
vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão
oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas
representações morrem”.

II. A leitura literária e suas implicações

1. Prática social
Como prática social, ou seja, na vida cotidiana de todos nós, quando lemos, a
leitura da obra literária sugere, antes de tudo, um movimento de identificação: lemos o
que gostamos de ler, seja porque temos um gênero preferido – suspense, policial,
romance, poesia, crônicas etc. –, seja porque recebemos indicação de uma obra por
parte de alguém cuja opinião respeitamos; também porque a obra faz sucesso, ou então
porque queremos reler... são muitas as variantes, sem contar que, como professores ou
críticos, além das nossas leituras preferidas, lemos por que precisamos no exercício da
profissão – variante que gostaria de deixar de lado neste texto –, sendo que cada uma
delas influencia a outra. A verdade é que a leitura literária “não obrigatória”, que
fazemos por vontade própria, promove antes de tudo uma identificação e é geralmente
vivida subjetivamente pelos leitores:
“O leitor empírico é todo mundo, nós todos, você e eu quando lemos
um texto. Pode-se ler de mil maneiras, lei alguma impõe uma maneira
de se ler e, frequentemente, utiliza-se o texto como receptáculo de
suas próprias paixões, que provêm do exterior do texto ou do que o
texto suscita fortuitamente nele.” (ECO, 2000, p.17)

Ler de mil maneiras tem a ver também com interesses, proficiências, ideologias,
esfera de atividade do leitor etc. etc. Pode-se ler para “fugir da realidade”, para “ler uma
boa história e passar o tempo”, mas também para “viajar para outros lugares
imaginariamente” – expressões usadas por alunos do curso de Licenciatura numa
pesquisa sobre o quê e por que liam –, conhecer outras experiências, aprender com elas,
num processo de identidade e alteridade. Alberto Manguel, quando fala de suas leituras,
estabelece relação íntima delas com o momento de sua vida e com a situação histórica
do lugar e do momento (Journal d’un lecteur, apud ROUXEL, “O advento dos leitores
reais”, no prelo).
Daniel Pennac, em Como um romance, elenca “os direitos imprescritíveis do
leitor”13, que dá a este liberdade total em relação às estratégias de leitura, as quais
respondem à individualidade de cada um.
Entretanto, a escola é menos livre que a sociedade: lida com objetivos e
conteúdos inseridos num currículo ou programa. A literatura que ali adentra está
submetida a essas necessidades escolares, mas isso não significa que teorias e práticas
sejam imutáveis, ao contrário, a escola, assim como todo elemento de cultura, é
histórica, e precisa mudar.
A seguir faço algumas considerações de como essa dimensão individual e social
da leitura pode fecundar o ensino da literatura na escola contemporânea.

2. Prática escolar
Um dos jargões mais frequentes na escola é o de “formar leitores”. Ora, mas que
leitor? Leitor que não lê literatura, que tem contato com simulacros ou com chavões da
história literária? Na tradicional perspectiva de formação do leitor, caberia ao ensino
fundamental “despertar o gosto” e, ao ensino médio, um aprendizado sobre a execução
das obras e sobre a história literária.
Como se supõe que o aluno que chega ao fundamental já é um leitor, “no ensino
médio, frequentemente, a subjetividade do leitor é deixada de lado em benefício da
observação do jogo das formas, e esse fenômeno é ampliado pelos desvios tecnicistas
tantas vezes denunciados, mas sempre em execução nas tarefas”, escreve Annie Rouxel
(no prelo) sobre a realidade da escola francesa, o que mostra que tanto lá quanto cá,
universos literários distintos, a escola se defronta com questões similares.
Pois bem, tendo em vista esses pressupostos sobre a leitura literária, voltamos a
nossa pergunta inicial: “O que se ensinaria se de fato se „ensinasse literatura‟,
pressupondo-se ser o texto literário o objeto do ensino de literatura?”
Retomo aqui as cinco dimensões do processo de leitura que Vincent Jouve
(2002) por sua vez toma de Gilles Thérien:

13
“1. O direito de não ler; 2. O direito de pular páginas; 3. O direito de não acabar um livro; 4. O direito
de reler; 5. O direito de ler qualquer coisa; 6. O direito ao bovarismo (doença sexualmente transmissível);
7. O direito de ler em qualquer lugar; 8. O direito de ler uma frase aqui outra ali; 9. O direito de ler em
voz alta; 10. O direito de calar.”
- é um processo neurofisiológico, “uma atividade de antecipação, de estruturação
e interpretação” (p. 18);
- um processo cognitivo, em que a leitura “solicita uma competência. O texto
coloca em jogo um saber mínimo que o leitor deve possuir se quiser prosseguir a
leitura” (p. 19);
- um processo afetivo, e destaca a importância das emoções que “estão de fato na
base do princípio de identificação, motor essencial da leitura de ficção.” (p. 19);
- um processo argumentativo: “Qualquer que seja o tipo de texto, o leitor, de
forma ou menos nítida, é sempre interpelado. Trata-se para ele de assumir ou
não para si próprio a argumentação desenvolvida” (p. 22);
- um processo simbólico: “O sentido que se tira da leitura (reagindo em face da
história, dos argumentos propostos, do jogo entre os pontos de vista) vai se
instalar imediatamente no contexto cultural onde cada leitor evolui. (...) A leitura
afirma sua dimensão simbólica agindo nos modelos do imaginário coletivo, quer
os recuse, quer os aceite” (p.22).

Ora, essas dimensões são perfeitamente “escolarizáveis” e não se opõem em


absoluto a uma leitura letrada e mais especializada. Impossível exercitar a metaleitura –
recorrente na escola – sem a leitura das obras que se abordam (assim como é impossível
aprender análise gramatical sem um uso proficiente da língua). Assim como é
impossível se implicar afetivamente na leitura só com a leitura de fragmentos do livro
didático e nas respostas aos questionários do livro didático.
Talvez um dos maiores problemas da leitura literária na escola – que vejo,
insisto, como possibilidade – não se encontra na resistência dos alunos à leitura, mas na
falta de espaço-tempo na escola para esse conteúdo que insere fruição, reflexão e
elaboração, ou seja, uma perspectiva de formação não prevista no currículo, não cabível
no ritmo da cultura escolar, contemporaneamente aparentada ao ritmo veloz da cultura
de massa.
Essas questões foram trazidas por nós nas Orientações Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio, de 2006, do MEC14, texto que permanece curiosamente ignorado

14
As autoras, denominadas consultoras no documento: Enid Yatsuda Frederico, Maria
Zélia Versiani Machado e Neide Luzia de Rezende.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf
em prol dos antigos PCNEM, de 2000, os quais mobilizam justamente a concepção de
ensino de literatura aqui criticada.

Referências bibliográficas
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Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: UNESP, 1992, sob o título de
“Entrevista”, p. 231-246)
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GERALDI, João W. Identidades e especificidades do ensino de língua. In: _____.
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JOVER-FALEIROS, Rita. Didática da leitura na formação em FLE: em busca dos
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MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais. Investigações em psicologia social.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
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OLIVEIRA, Sandra F. de. O conhecimento sobre os gêneros discursivos: uma pesquisa
junto a professores de língua portuguesa da rede pública do estado de São Paulo. Diss.
Mestrado. FEUSP, 2012.
ROUXEL, Annie. “O advento dos leitores reais”. Tradução Rita Jover-Faleiros. In:
ROUXEL, Annie. LANGLADE, Gérard., REZENDE, Neide. L. de. Leitura subjetiva e
ensino da literatura. São Paulo: Alameda Editorial, no prelo.
______. “Apropriação singular das obras e cultura literária”. Tradução: Amaury C.
Moraes. In: ROUXEL, Annie, LANGLADE, Gérard, REZENDE, Neide. L. de. Leitura
subjetiva e ensino da literatura. São Paulo: Alameda Editorial, no prelo.

VERRIER, J. Vãs querelas e verdadeiros objetivos do ensino de literatura na França,


Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 33, n.2 , p.207-213, mai./ago.2007.

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