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que torna um facto objecto da História não te, mas esse exame deverá sempre ter em
é o próprio facto em si mesmo, mas sim o conta que o essencial só se revela a quem
que eventualmente possa vir a representar sabe procurar e reconhecer o seu valor. Em
para o destino da humanidade. relação à observação do passado, só deve-
Toda a observação histórica deve captar remos ser atraídos por aquilo que nos per-
as dimensões ocultas e não apenas as apa- mite compreender e viver o presente e não
rentes e imediatas. Não apenas o que se basta, por isso, estudar os documentos anti-
pode captar segundo os parâmetros das di- gos, mas indagar o passado na paisagem, nos
versas taxonomias científicas, mas também monumentos, nas iluminuras, nos jogos, nos
o que pode ser captado segundo um registo contos, no imaginário colectivo, etc.
poético. Devem ser usadas todas as faculda- José Mattoso, conclui de forma pertinente:
des de observação, não apenas as racionais
mas também as volitivas, para que se possa Para mim, portanto, a História não é a co-
memoração do passado, mas uma forma de in-
apreender o real em todas as suas facetas.
terpretar o presente. Ao descobrir a relação
O autor entende ser este exercício um acto entre o ontem e o hoje, creio poder decifrar a
de amor: ordem possível do mundo, imaginária, porven-
tura, mas indispensável à minha própria sobre-
Um amor na plena acepção da palavra, isto é, vivência, para não me diluir a mim mesmo no
que não é contaminado pela tentação de possuir, caos de um mundo fenomenal, sem referências
dominar ou destruir, mas que mantém intacta a nem sentido (p.22).
alteridade, a radical separação do sujeito e do
objecto, e que tenta estabelecer a relação com Tentar mostrar que existe uma ordem no
ele através do verbo interior, em todas as suas
dimensões: o cântico de admiração, o diálogo mundo, eis, segundo o autor, o verdadeiro
do gesto, a descoberta do símbolo, o desenca- destino da História. Descoberta essa or-
deamento da palavra poética (p.18). dem, há que reparti-la entre o passado e o
presente; o passado deve ser estudado em
O Homem sempre foi fascinado pela His- grandes planos para que se possam encon-
tória. Este fascínio, na opinião do autor, tem trar as razões profundas dos movimentos
a ver com o facto de o Homem estar con- colectivos.
vencido de que pode encontrar no passado Relativamente à recolha de dados e à sua
respostas importantes sobre si próprio. O classificação, para que não sejam meramen-
desprezo sobre o passado exprime, por cer- te empíricos, devem utilizar-se modelos e
to, um olhar curto, obtuso e grosseiro sobre conceitos já utilizados pelas outras ciências
a vida. humanas, constituindo o fio condutor que
O importante, para o autor, é que a atitu- irá propor hipóteses interpretativas cuja
de contemplativa permite apreender a rea- solidez e fundamento serão posteriormente
lidade de hoje e de sempre como fonte de verificados com o material empírico.
lucidez e que permite relacionar as partes Por fim, encontradas as pistas, encontra-
com o todo, chegando-se, assim, a reunir, do o que nos interessa, é ainda necessário
num só acto, a análise e a síntese, a distinção demonstrar o que se descobriu, fazer rela-
e a composição. Depois de delimitada uma tórios, ou seja, somos chegados à fase da
área no campo da observação, deve ser exa- comunicação, à última fase da elaboração do
minada em todas as suas dimensões. texto histórico.
Para o autor, a atitude contemplativa não é O autor considera que a escrita da His-
oposta à atitude racional e científica. Muito tória é do domínio da arte; nessa escrita,
pelo contrário, uma vez que torna a ciência existem vários graus, desde o texto ingénuo
extremamente exigente e o rigor da obser- e um pouco rude, até ao texto fundador de
vação incansável. Essa atitude contemplativa uma nova era historiográfica, passando, lo-
levará também a não nos contentarmos com gicamente, por livros fastidiosos mas úteis,
os vestígios escritos do passado e a exami- compêndios para consumos escolares e or-
narmos o que se encontra por toda a par- denações esquemáticas e simples.
Subscreve, ainda, a ideia que a escrita em no tempo. Talvez a entrega apaixonada a esta
História é um discurso pessoal, resultante contemplação possa realmente aproximar as
palavras que balbuciamos para transmitir o que
da interpretação de quem escreve, e enten- aí se revela como a palavra única que o Homem
de ser o discurso que recorre à “retórica”, e o mundo pronunciam e ninguém jamais che-
ao “enciclopedismo” ou à “erudição”, subju- gará a dizer (p.42).
gante do leitor a uma determinada ideia ou
sentimento, ou apenas ao prazer de dominar, Na medida em que a orientação moder-
alienante e não libertador. na se está a encaminhar no sentido de um
De seguida, Mattoso parte para uma refle- tecnicismo crescente dos métodos, não se
xão subordinada ao tema A História – Arte ou compadecendo já “com o velho ideal huma-
Ciência (p.31), e refere não admitir, de for- nista do sábio pesquisador de papéis velhos,
ma alguma, a arbitrariedade da investigação cuja principal ferramenta de trabalho era a
histórica, nem na fase da heurística, nem na
paleografia” (p.43), o historiador moderno
fase da elaboração do texto. Entende ser a
tende a identificar-se com um homem de
crítica actual mais exigente. Para este facto
negócios.
têm contribuído as “ciências empíricas pro-
É citado, então, Geoffrey Barraclough,
priamente ditas, ou que usaram maciçamen-
te os seus dados, como o exame químico do como sendo um bom guia para uma visão
suporte, da escrita e da tinta, a codicologia de conjunto. Actualmente, já não interessam
e o aperfeiçoamento da paleografia” (p.35). os factos em si, mas a sua repetição; não a
Como auxiliares, são referidos os métodos acção individual, mas sim os movimentos de
quantitativos e estatísticos, disciplinas da massa.
Matemática e a sua aplicação rigorosa. As- Emerge, assim, para a historiografia, a no-
sim sendo, estamos a entender a História ção de que se podem reconstituir no pas-
como Ciência. sado sistemas organizados de acções que
Podemos entendê-la também como Arte, mantêm um grau apreciável de continuidade
uma vez que ela só pode alcançar o passa- temporal, a que se chama estruturas sociais.
do por meio de sinais e representações da Contudo, não se podem usar como refe-
realidade e não por um exame directo da rência os conceitos e padrões de compor-
própria realidade. tamento actuais. Há que reconstituir os do
Por fim, o autor conclui ser afi- passado. Todavia, há que ter em conta que
nal a História “uma representação de os documentos históricos raramente expli-
representações”(p.38) e, na sua opinião, citam o que é normal e quotidiano. Será ne-
devem-se distinguir três aspectos: “a qua- cessário, então, fazer uma revisão das fontes
lidade da forma, a habilidade na escolha e para que se possa detectar aquilo que, de
interpretação dos dados e a carga poética facto, nos interessa. De novo, o autor refere
do seu sentido global” (p.39). Neste sentido, outras ciências humanas que podem auxi-
a História é “um saber, e não propriamente liar o historiador, como a Antropologia e a
uma ciência” (p.38). Sociologia, que permitirão que não se pas-
Não é possível deixar de citar um pará-
se ao lado de importantes referências do-
grafo que aparece mais à frente e no qual o
cumentais, que nos possam dar uma ajuda
autor, na sua maneira poética, humilde, sim-
preciosa para que possamos averiguar o que
ples, mas carregada de sabedoria, e até de
é ou não essencial.
certa forma acutilante, nos transmite uma
conclusão a que chega: Deixando, então, de lado o fio condutor
de Barraclough, o autor vai abordar outro
Para descobrir o que por dificuldade de lin- tipo de historiografia mais difícil de preci-
guagem se chama o mistério da História e que, sar nas suas modalidades concretas e para
afinal, talvez seja tão simples como a clarida- a qual não é fácil prever um destino único.
de do sol ou a escuridão da noite, parece não José Mattoso refere-se às investigações que
haver técnica, ciência nem arte que cheguem.
Parece ser necessário juntá-las todas e ceder pretendem captar as categorias mentais pre-
ao fascínio de contemplar a vida do Homem dominantes no passado e que utilizam, pri-