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Relatório
com a perspectiva, o tema, os conteúdos
programáticos e as opções pedagógicas
de um seminário de segundo ciclo em
Filosofia do direito
Coimbra
2013
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NOTA INTRODUTÓRIA
também e muito especialmente ao contraponto com outras reflexões metadogmáticas possíveis, confiadas à
teoria do direito e à metodologia jurídica (se não à política e à ética do direito). Para uma consideração deste
contraponto, vejam-se as sínteses exemplares (de Viehweg, Kaufmann, Pattaro, Posner e von der Pfordten)
que citei no Relatório com a perspectiva e os conteúdos, o programa e os métodos de ensino da(s) disciplinas de Teoria do
direito e (ou) Pensamento jurídico contemporâneo, polic., Coimbra 2008, p. 9, nota 11, às quais acrescentaria
agora os ensaios de Eric Hilgendorf e de Dreier incluídos em Brugger, Neumann, Kirste (Hrsg.),
Rechtsphilosophie im 21. Jahrhundert, Frankfurt, Suhrkamp, 2008, respectivamente «Zur Lage der juristischen
Grundlagenforschung in Deutschland heute» (pp. 111 e ss.) e «Rechtsphilosophische Standpunktprobleme»
(pp. 317 e ss.).
3 Refiro-me evidentemente à «renovação do estudo filosófico do direito» (com a reabilitação da
disciplina correspondente) decidida pela Faculdade de Direito de Coimbra em 1936, «renovação» que supera
o positivismo sociológico aproblemático dominante nas primeiras décadas do século XX e que, como se sabe, está
associada a um nome maior, o de Luís Cabral de Moncada. O percurso que assim se (re)inicia e que multiplica
os «lugares»-«patamares» da reflexão possível — oferecendo sucessiva ou simultaneamente (e quase sem
interrupção!) cursos de Filosofia do direito e do Estado, História do pensamento jurídico, Metodologia jurídica, Teoria do
direito e do Estado, Teoria do direito, Filosofia do direito, Filosofia do direito e metodologia jurídica e Pensamento jurídico
contemporâneo, mas também conferindo uma identidade única aos cursos de Introdução ao direito), não só nos
aparece como um percurso único na trajectória das Faculdades de Direito portuguesas, como também não
pode ser separado do contributo luminoso de Castanheira Neves.
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4 Nos termos do Regulamento Académico e Pedagógico do 2.º Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de
Direito de Coimbra (aprovado pela Assembleia da Faculdade em 2010 e alterado pela mesma em 2011), art. os 5.º
a) e 7.º e). A anualidade associada às unidades obrigatórias do «mestrado científico» entrou em vigor no ano
lectivo de 2011/2012.
5 «Regime lectivo» de seminário que, como veremos, não deverá porventura deixar de se articular
com um modelo de aulas teórico-práticas. Sendo certo que a exigência de seguir estes dois regimes (em
conjugação ou em alternativa) se combina no presente «mestrado científico» com a prescrição de um número-
-limite de vagas disponíveis (vinte e cinco). Cfr o mesmo Regulamento Académico e Pedagógico, art.os 8.º e 19.º
6 Vinculação que, sem prejuízo de uma dinâmica e de uma abertura sempre irrenunciáveis, me
pareceria já indispensável se a disciplina em causa correspondesse a uma formação de primeiro ciclo ou se o seu
«regime lectivo» envolvesse predominantemente aulas de exposição sistemática (ditas teóricas).
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ou da conversação que antecipa7! O que agora significa inscrever no seu progressus a ficção (que
se espera produtiva) de uma trama argumentativa relativamente descontínua, com as suas
perguntas e parêntesis (as suas texturas imitativas em permanente mutação!), mas também
com a sugestão frequente de caminhos alternativos (e outras tantas propostas de trabalho).
Como se à condução do seminário e das suas etapas se reservasse apenas o privilégio de uma
primeira leitura dos contextos e materiais reunidos… e tal primeira leitura (se não reescrita)
devesse cumprir-se menos oferecendo um texto acabado do que um guião ou itinerário
(aberto a novos recomeços).
Não será isto porém correr o risco de reconduzir a reflexão (que se diz) filosófico-
-jurídica a um discurso fragmentado, dominado (quando não pulverizado, na sua unidade)
pelas intencionalidades específicas e pelas «situações institucionais» dos problemas-
-territórios que vai explorando, assim mesmo condenado a agregar (ou na melhor das
hipóteses, a sobrepor) preocupações avulsas — e tudo isto como se a uma tal instância de
reflexão última, na sua incapacidade de recuperar o absoluto dogmático8 e a distância interrogante
que (na «claridade matinal da Europa»9) a emanciparam, mais não coubesse do que um
esforço acrescido de inteligibilidade, dirigido aos códigos e cânones imanentes às práticas
interrogadas (entenda-se, uma radicalização lograda das perguntas que as ditas arenas
problemáticas só por si já introduzem)? Importa reconhecê-lo. Reconhecendo também que
só evitaremos o risco desta pulverização e do continuum sem limites a que esta se abre —
ainda os riscos de uma reflexão «filosófica» puramente temática10? — se impusermos ao elenco
apenas ao «pensamento grego», como acontece no texto, mas também à «moral judaica»): The Idea of Europe,
cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa, Lisboa, Gradiva, 32006, p. 53.
10 Esta pergunta impõe-se, uma vez que a pulverização aqui considerada se distingue
dos temas possíveis um vínculo de relevância fundamental (que assim mesmo drasticamente
os circunscreva). Aquele que os torne indissociáveis do problema do direito e deste
enquanto problema de sentido11? Podemos dizê-lo. Antecipando desde já que o problema a ter
em conta neste juízo de relevância é decerto aquele que, independentemente das respostas que
lhe vierem a ser dadas, se nos impõe quando discutimos a possibilidade e a urgência de,
num tempo de pós-paradigma ou de ausência de paradigma como é o nosso — ferido
precisamente pela diferença e pela pluralidade, mas nem por isso menos dominado pela
presença positiva e negativa do paradigma perdido (e que é evidentemente aquele que o
normativismo moderno-iluminista consagrou!) —, interpelarmos criticamente o direito (um
certo direito) como um projecto culturalmente autodisponível ou como uma «forma de vida»
civilizacionalmente situada, entenda-se, como uma praxis de criação-realização de sentidos
comunitários específicos, com soluções de integração intencional e teleologicamente
inconfundíveis (unidas por uma determinada compreensão do problema da vida em comum),
cuja continuidade (na diversidade das suas precipitações históricas e das tarefas-funções que
estas lhe imputam) terá que ser identificada e assim mesmo submetida (nas suas pretensões
de validade-vigência) a um permanente exercício de fundamentação12.
também in Figueiredo Dias, Gomes Canotilho, Faria Costa (ed.), Ars iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof.
Doutor António Castanheira Neves, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 100-141].
11Problema de sentido (a comprometer-nos na nossa própria originariedade humana), com o alcance
(jasperiano) que nos permite contrapô-lo tanto ao problema do Ser quanto ao problema gnoseológico: ver
supra, nota 1.
12 Um problema ou núcleo de problemas em cuja formulação se reconhecem de imediato as
possibilidades da compreensão do jurídico que Castanheira Neves diz jurisprudencialista: sendo certo que, para
a determinação de relevância que nos importa, se trata afinal menos de explorar o jurisprudencialismo como
uma concepção do direito ou um modelo de pensamento jurídico entre outros possíveis (cuja identidade
importasse de algum modo determinar na trama discursiva, cada vez mais complexa, do pensamento jurídico
contemporâneo) do que de apostar na oportunidade reflexiva única de uma recuperação fundadora — uma
recuperação que, levando a sério as exigências da nossa circunstância, possa, sem rede (sem a garantia
dogmaticamente pré-determinada de uma resposta positiva), experimentar (na sua luminosa «simplicidade») o
originarium constitutivo da «pergunta pelo direito», que o é também, indissociavelmente, o do «mundo prático»
que esta pergunta inventa. Sem esquecer que na tematização deste originarium convergem hoje, segundo
Castanheira Neves, três grandes interrogações, todas elas a exigirem um esforço consciente de tematização:
aquela que interpela este originarium na radicalidade do seu problema prático e nas condições de emergência que lhe
correspondem, submetendo-se exemplarmente ao desafio das alternativas (a interrogação dirigida ao «por-
quê»); aquela que explora o «transcender situado» do jurídico reconstituindo a diversidade histórico-contextual
das suas funções (a interrogação dirigida ao «para-quê»); aquela enfim que, enfrentando este mesmo «transcender
situado» no seu sentido último, nos expõe ao problema decisivo da sua ordem de validade e do fundamento que
a sustenta (a interrogação dirigida ao « quê»). Ver muito especialmente Castanheira Neves, A crise actual da
filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, cit., pp. 146-147, «Uma reflexão filosófica sobre o direito —
―o deserto está a crescer... ou a recuperação da filosofia do direito?», Digesta, vol. 3º, cit., pp. 93-94 e «Pensar
o direito num tempo de perplexidade», in João Lopes Alves et al., Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em
comemoração do 70º aniversário. Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 4-5 (1.2. «Uma
Ursituation e os problemas implicados»), mas também (para um desenvolvimento do problema do «por-quê»),
«Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as condições da emergência do
direito como direito», in Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, vol. II, Coimbra,
2002, pp. 837 e ss., agora também nos Digesta, vol. 3º, cit., pp. 9 e ss., e «O direito interrogado pelo tempo
presente na perspectiva do futuro», in Avelãs Nunes / Miranda Coutinho (ed.), O direito e o futuro. O futuro do
direito, Coimbra, Almedina, 2008, pp.56-65 (3. a)).
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Acentuação que nos ajuda de imediato a perceber que o espectro dos temas
condutores capazes de (positiva ou negativamente) participarem nesta interpelação crítica
(ou de explorarem elementos que lhe são indispensáveis) — sem prejuízo da diversidade
com que se nos ofereçam e das conclusões negativas a que eventualmente conduzam —
está longe de deixar imune a perspectiva interrogante, já que antes e em contrapartida a
liberta da pretensão de neutralidade que ameaçava esvaziá-la para a submeter a uma
especificação-experimentação decisiva. Como se ao fim e ao cabo se tratasse de reconhecer
a circularidade (reciprocamente constitutiva) das duas tematizações em causa — a da
problema originário do direito (e do seu mundo prático) e a da reflexividade filosófica que
o interroga —, não decerto para remeter a última (e o seu patamar transdogmático) para
um indiscriminado horizonte global, antes para abrir a oportunidade de a (de os)
responsabilizar por um ponto de vista interno, se não mesmo, como veremos, por uma
certa perspectiva de participante. Mais uma vez, como uma oportunidade tout court, cujas
possibilidades e compromissos devem, permanentemente, ser submetidos ao fogo da nossa
circunstância. Uma oportunidade que não nos garante assim decerto infalivelmente a
felicitous performance de uma filosofia do direito stricto sensu — capaz de assegurar uma
«perspectiva de inteligibilidade», que sendo «nova e unitária»13, se mostre à altura da
Erschüterung do nosso tempo! —, mas que nos garante decerto a superação lograda das
velhas e das novas (se não novíssimas) filosofias temáticas… muito especialmente destas últimas
— e com elas também a superação do risco de fazer corresponder ao continuum infinito dos
problemas da vida em comum (continuum agravado quer pelo esvaziamento quer pela
heterogeneidade da(s) perspectiva(s) filosóficas) uma concepção do jurídico como um
acervo de recursos de institucionalização intencionalmente neutros (se não como um mero
regulativo sem limites)…
Acentuação que nos leva enfim directamente à escolha do tema (primus inter pares
numa sequência plausível de outros temas), bem como à forma da exposição que se propõe
sustentá-lo (e que antecipa um conteúdo programático possível).
O tema? Muito claramente, o do papel que a defesa e a rejeição (pluralmente ditas e
experimentadas) de uma pretensão de autonomia desempenham na recompreensão do direito
e do pensamento jurídico de que hoje precisamos, se não explicitamente, como veremos, o
do sentido que (perante as misinterpretations que ferem tal pretensão) deverá hoje assumir
uma tese de separação da juridicidade e do seu mundo prático. Sendo este o tema escolhido, é
porventura redundante acrescentar que a intenção de congruência — e de uma congruência
que se possa dizer indiscutível e inequívoca — com o vínculo (ou com o juízo) de relevância
que atrás esboçámos pesou (pesa) significativemente nesta escolha. Trazer para o primeiro
plano a conclusion-claim de autonomia associável ao mundo prático do direito e, mais do que
isso, insistir nos equívocos que a desfiguram (reconhecendo nestes o desafio temático
principal), significa, com efeito desde logo estar em condições de partir de uma experiência
de pluralidade tão expressiva quanto concentrada — podermos testemunhar o quase diferendo
que dilacera o discurso jurídico contemporâneo14… sem correr o risco de nos perdermos
nos seus labirintos15. Significa também, no pólo oposto, dever explorar as interrogações
últimas dirigidas ao problema do direito (à plausibilidade-pontualidade do seu homo humanus,
se não à oportunidade-urgência de uma reabilitação-reconversão do seu sentido
originário16), mobilizando como prius (não menos exemplarmente concentrado) uma
estrutura argumentativa transparente (alla maniera di Toulmin), entenda-se, um eixo reflexivo-
limite desenhado por um argumento e pelo seu contra-argumento…
14 Com um sentido que tenho privilegiado desde «Brauchen wir noch eine kritische Rechtstheorie?
Ein Konversationsstück mit Posner und Fish» (2004), in Bernd Schünemann / Marie-Theres Tinnefeld /
Roland Wittmann (Hrsg.), Gerechtigkeitswissenschaft - Kolloquium aus Anlass des 70. Geburtstages von Lothar Philipps,
Berlin 2005, pp. 23 e ss., depois também em Constelação de discursos ou sobreposição de comunidades interpretativas? A
caixa negra do pensamento jurídico contemporâneo, Porto, Edição do Instituto da Conferência, 2007, passim, «A
representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz : o “testemunho” crítico de um “diferendo”?», Revista
Lusófona de Humanidades e Tecnologias nº 12, ano 2007 /2008, pp. 90-109 e «Jurisdição, diferendo e “área
aberta”. A caminho de uma “teoria” do direito como moldura?», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge
de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, volume IV, 2010, pp.443-477, bem como no Relatório com a
perspectiva e os conteúdos, o programa e os métodos de ensino da(s) disciplinas de Teoria do direito e (ou) Pensamento
jurídico contemporâneo, cit., passim — sentido que (num reconfortante lugar paralelo) vejo também
expressamente convocado (ainda que sem as implicações estruturais que pretendo atribuir- lhe… por Sonja
Buckel, Ralph Christensen e Andreas Fischer-Lescano em «Einleitung: Neue Theoriepraxis des Rechts», in
Buckel/ Christensen /Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue Theorien des Rechts, Stuttgart, Lucius & Lucius, 2006, pp.
VII e ss.
15 Com a possibilidade ainda de poder confiar ao (dito) primeiro leitor dos materiais do seminário a
tarefa de reagir ao auditório real… e de assim mesmo, em função das necessidades e do interesse deste,
amplificar o referido testemunho, na sua extensão ou na sua sensibilidade às diferenças.
16Ver supra, nota 12.
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-multiplicação. Sem esquecer por fim que o esclarecimento possível (ou pelo menos o
caminho que o abre) virá com o patamar dos warrants, sendo precisamente em função do
desempenho desta tarefa de justificação-fundamentação (e estritamente para a cumprir) que
as perguntas radicais sobre o direito e o seu originarium constitutivo (concentradas no problema
da autodisponibilidade ou autotranscendentalidade prático-cultural, se não nos eixos do «por-
-quê» e do «quê»17) — e expostas à aventura das respostas que rejeitam a sua possibilidade-
-pontualidade — nos vão aparecer por fim transversalmente mobilizadas e selectivamente
exploradas…
No que diz respeito à forma do presente relatório, acrescentarei apenas que esta
procurará cumprir os propósitos que se esperam da dissecção habitual (justificação da
perspectiva e do conteúdo programático /programa tout court / métodos de ensino), atribuindo no
entanto à Primeira Parte — ao modo como esta articula a escolha do tema (e a antecipação
do seu desenvolvimento) com a preocupação de desvelar o seu auditório implícito (e de ir
assim cultivando um discurso em que este ou as suas reacções possam emergir) — uma
força geradora inquívoca [Primeira Parte: A justificação do tema e e de um
desenvolvimento em etapas]. O que lhe confere não apenas uma extensão mas também
um peso incomparavelmente maiores. Peso tanto mais evidente quanto é certo que, se nela
se tratará assim de antecipar todas as opções indispensáveis ao programa [Primeira Parte,
Tempo I] — programa cuja estrutura-itinerário a segunda parte se limitará a apresentar sob o
modus de um sumário parcialmente desenvolvido (combinando os conteúdos temáticos
principais com outros possíveis) [Segunda Parte: Um itinerário possível] —, não se
tratará menos de, ao explorar detidamente uma secção precisa desse programa (referida ao
debate do positivismo crítico) [Primeira Parte, tempo II], fazer (pontualmente) emergir o
diálogo do primeiro leitor com os outros hipotéticos leitores e de assim mesmo ir reflectindo
sobre o que se espera da relação pedagógica — o que desonera significativamente a última
secção do relatório, consentindo-lhe a possibilidade de se cumprir numa sequência breve de
anotações conclusivas [Notas conclusivas sobre os métodos «pedagógicos»:
encontros e desencontros do auditório implícito e dos auditórios reais].
PRIMEIRA PARTE
A justificação do tema e de um
desenvolvimento em etapas
A justificação que se segue integra dois tempos, com extensões, dinâmicas e recursos
muito diversos. Do primeiro, na sua contenção quase aforística, espera-se que cumpra uma
antecipação-esboço de todo o percurso da disciplina e das (seis) etapas que o compõem, na
sua relação imediata com o núcleo temático escolhido [Tempo I]. Do segundo, concentrado
detidamente em duas destas etapas (a quarta e a quinta) —na tensão pergunta-resposta que as
articula —, exige-se em contrapartida a transparência de um exemplo: um exemplo que, sem
se substituir ao percurso reflexivo correspondente, possa no entanto antecipar as
possibilidades que nele se abrem e assim mesmo ilustrar o que (com Gadamer) poderemos
dizer uma (certa) forma de «conversação responsável» — aquela forma que, sustentando
expressamente esta secção de perguntas-respostas, deverá (como já vimos) sustentar
igualmente o progressus da disciplina como um todo e assegurar a sua abertura [Tempo II].
Duas palavras me bastam para justificar esta escolha. Se em relação às três primeiras e à
última destas etapas estou em condições de convocar (e mesmo de me remeter para)
estudos disponibilizados noutros contextos (que podem assim apoiar as conclusões e
argumentos que aqui e a agora serão apenas esboçados a traço grosso18), o mesmo não
acontece em relação às duas restantes, cujo equilíbrio pergunta-resposta é precisamente
desencadeado pelo debate do incorporacionismo e pelas divisões complexas que este alimenta,
tanto no campo positivista como no campo não positivista — muito especialmente em relação
à quarta destas etapas, na qual um tal debate terá que ser directamente reconstituído. Na
impossibilidade dessa convocação-remissão, será este pois o «lugar» de tentar essa
abordagem e de simultaneamente assegurar a exemplificação (por amostragem) da forma e
da dinâmica que pretendo associar a todo o programa (mas que será decerto muito mais
explícita e intensa nalgumas das etapas): se não para propor um esquema reflexivo que se
substitua à reflexão enquanto tal (um mapa que se sobreponha ao caminho e nos poupe ao
esforço de caminhar!)… pelo menos para projectar no primeiro a antecipação plausível da
dinâmica do segundo… e estabelecer entre ambos a mais curta das distâncias possíveis…
Tempo I
convocado na sua auto-subsistência como «o problema fulcral que hoje se põe à reflexão
jurídica» — possibilidade que exige já um ponto de chegada, suficientemente claro para
nos permitir apostar n’o «significado» (e não apenas n’um dos significados plausíveis) de tal
autonomia (assim mesmo levada a sério no «todo da realidade histórico-cultural e humano-
social dos nossos dias»)21 —, comece por se reconduzir, não certamente por acaso, ao
problema do diferendo (ou quase diferendo) que tais contextos (de significação-realização)
determinam.
Um quase diferendo que nos importa explorar como uma possível experiência de
pluralidade? Já o sabemos. Como sabemos também que esta será uma experiência
selectivamente construída, mas nem por isso menos exemplar, dos sinais de fragmentação
(de perda de unidade) que fazem da «conjuntura» de crise («cultural e civilizacional») em que
vivemos um indiscutível (tão perigoso quanto estimulante) tempo de «teoria do direito»22 (Not
fördert Rechtstheorie!23). Como sabemos ainda que a exposição do tema só fica completa
quando especificamos esta experiência, entenda-se, quando a concentramos na denúncia e
esclarecimento de duas misinterpretations principais, recorrentemente associadas ao exercício de
repetição que nos ocupa.
Que interpretações equivocadas?
(A) Por um lado, aquela que resulta de se confundir a pretensão de autonomia jurídica
(seja qual for a máscara que esta afivela e a prática ou discurso a que se dirige) com a
prescrição de «isolamento» cognitivo de um direito-forma e de um pensamento jurídico
formalista. Como se não fizesse sentido falar das pretensões de autonomia (e da sua
dimensão positiva) mas apenas da concepção formalista da autonomia. Ou como se a dita
pluralidade (nesta sua vertente positiva) fosse afinal uma falsa pluralidade. Quando muito a
pluralidade (relativamente reduzida) que corresponde ao espectro das concepções
normativistas. O que significa decerto reduzir as possibilidades de uma atitude jurídica
interna (e a experiência do direito como uma dimensão autónoma da prática e um domínio
específico do conhecimento) ao correspondente programa de auto-subsistência de um
21 Castanheira Neves, «O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade», in
J. A. Pinto Ribeiro (coord.), O homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira, Porto, 1999, p. 87.
Ver também «O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito», Digesta, vol. 3º,
cit., pp. 43 e ss.
22Tenho insistido nesta acentuação da pluralidade que converte a nossa circunstância num tempo de
teoria do direito (apto a testemunhá-la). Ver especialmente Relatório com a perspectiva e os conteúdos, o programa e os
métodos de ensino da(s) disciplinas de Teoria do direito e (ou) Pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp.8 e ss,
50-61, mas também «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de teoria do direito
reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria», in João Lopes Alves et al., Liber
Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra,
Almedina, 2009, pp. 261-314.
23Bernd Rüthers, Rechtstheorie. Begriff, Geltung und Anwendung des Rechts, 2ª edição (reformulada),
München, Verlag C.H. Beck, 2005, pp.3 e ss., 10 e ss., 20-23 («Konjunkturen und Krisen der Rechtstheorie»).
14
24 Para, como veremos, o dizermos com o próprio Jules Coleman. Ver infra, nota 130.
15
ensaiar uma concentração, como que em plano fechado, nas etapas IV e V —, o percurso da etapa IV
corresponde às seccções 1. e 2. (ver infra, pp. 44-132).
26 No desenvolvimento identificado na nota anterior, o percurso da etapa V corresponde por sua vez
27Como as formulações claramente manifestam, trata-se, nesta abordagem inicial, de conjugar (se
não sobrepor, sem prejuízo das suas diferentes perspectivas) os diagnósticos (da «actual situação
problemático-cultural») de Castanheira Neves e de Kurt Seelmann: do primeiro (em relação à crise do direito)
ver expressamente «O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito», Digesta,
vol. 3º, cit., pp. 43-47 e «Uma reflexão filosófica sobre o direito — o deserto está a crescer... ou a recuperação
da filosofia do direito?», ibidem, pp. 74-80 (1.), e ainda (já no que diz respeito às crises da filosofia em geral e
da filosofia do direito em particular) A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, cit., pp.
9-16, 16 e ss., 22 e ss. (2.); do segundo ver Rechtsphilosophie, 3. überarbeitete und erweiterte Auflage, München,
Beck, 2004, pp. 5 e ss. («Die Alternativendebatte oder: Recht ist nicht selbstverständlich»), 14-21 («Heute
eröterete Gründe für die Suche nach Alternativen») 92 e ss («Die Problematik der Alternativen und die
Leistungen des Rechts»). Ver infra, nota 31.
28 Veja-se o tratamento deste tema da pluralidade juridicamente relevante que propus em
«Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», in Nuno Santos
Coelho, Antônio Sá da Silva (ed.), Teoria do Direito. Direito interrogado hoje – o Jurisprudencialismo: uma resposta
possivel? Estudos em homenagem ao Senhor Doutor Antonio Castanheira Neves, Salvador: JusPodivm/Faculdade Baiana
de Direito, 2012, pp. 109 e ss., especialmente 117-127 (1.), e a síntese que ensaiei em «Law’s Cultural Project
17
.
(c) Refiro-me enfim, last but not least, à exigência de, na (dita) pragmática da academic
house, se reconhecer uma tendência esmagadora para identificar as pretensões de autonomia
e, muitas vezes também (ainda que nem sempre coincidentemente!) as ambições de
construir um perspectiva interna — numa palavra, a procura de traços identificadores ou de
compromissos prático-normativos intrínsecos (se não imanentes) às práticas e discursos
que se dizem jurídicos (quer se trate de defender-prolongar-reinventar uma tal procura ou
de a denunciar-rejeitar) — com a herança ou com os rastos-cicatrizes (em qualquer dos
casos com recursos analíticos explícitos) do paradigma em erosão-Detruktion29. Que
recursos? Em primeiro lugar, aquele que nos expõe a um cognitivismo jurídico acrítico30:
como se o problema a ter em conta nessa procura fosse sempre o do conceito de direito (ou
o deste numa relação de depuração construtiva com a pergunta «o que é o direito?»31).
and the Claim to Universality or the Equivocalities of a Familiar Debate» (incluindo a referência expressa aos
horizonttes civilizacionais), International Journal for the Semiotics of Law, Vol. 25, n. 4, Novembro 2012, pp. 489
e ss. 492-494 [1 «Signs (and Stages) of the Contemporary Juridical Pluralism»].
29 Identificado com a naturhistorische Anschauungsweise des Rechts e com a operatória (Handwerkzeug) que
o sustenta e que se diz Método Jurídico... mas também (evidentemente) com outros formalisms (e rule
conceptualisms) anglo-saxónicos... e então e assim, se quisermos, com um grande eixo iluminado pelas sínteses
fecundas da Theorie der juristischen Technik de Jhering e do system of classification de Langdell.
30 Importa não confundir o cognitivismo de aqui se fala com qualquer tomada de posição na querela
Depois aquele que, pressupondo como aquisição irrenunciável a recondução dos elementos
substantivos e das intenções materiais para um plano de (imediata) contingência histórico-
-social (ética, política, filosófica), quando não de explícita contingência decisória
(admitindo, no limite, apenas uma justificação estratégica), nos impede de situar a referida
procura de identidade neste plano. Finalmente aquele que, como consequência inevitável
do anterior, condena a mesma procura à determinação analítico-discursiva de formas ou de
procedimentos, confirmando a prevalência de um tratamento da autonomia como auto-
-subsistência racional (sustentada numa exigência de universalidade). Quer se trate de
defender-prolongar-reinventar uma tal procura e os argumentos de Kant (Weinrib, Habermas)
ou os argumentos de Langdell (Schauer, Alexander, Sherwin) que a iluminam, de a denunciar-
-rejeitar (Posner, Kennedy, Unger, Albert) ou de simplesmente a restemunhar, com uma
frustrada pretensão de equidistância (Fish)32? Importa acentuá-lo. O que significa
reconhecer uma afinidade perturbante entre pensamentos radicalmente distintos33. Como
se se tratasse assim de encontrar a deixa para as duas próximas etapas.
cit., pp.140-147 (V)], cfr. ainda «O princípio da legalidade criminal», Digesta, vol 1º, Coimbra, Coimbra
Editora, 1995, pp. 413-419, «O direito como alternativa humana. Notas de reflexão sobre o problema actual
do direito», ibidem, pp. 287-310, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 1993,
pp. 231-234, «Pessoa, direito e responsabilidade», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 6, 1996, pp. 38-40 e
«O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito», cit., pp. 53 e ss (IV) [ambos
também nos Digesta, vol.3º, cit., respectivamente nas pp. 154-155 e 62 e ss.]. Sem esquecer as sínteses mais
recentes propostas em «Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a
recuperação da filosofia do direito?», ibidem, pp.94-96, «O problema da universalidade do direito ou o direito
hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», ibidem, pp.118-121, «O direito interrogado
pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp.59-63, «Pensar o direito num tempo de perplexidade»,
cit., pp.11-15.
32 Procurei mostrar em que termos esta pretensão resulta frustrada sobretudo em Constelação de
contemporâneo que estimula (e pelos problemas que envolve) estaria perfeitamente em condições de, só por
si, oferecer ao nosso curso de filosofia do direito um outro grande tema condutor (ver infra, no sumário, pp. 196-
-197).
34 A expressão legalism, com o sentido amplíssimo que Posner lhe atribui — identificando a aposta
technique (…). [L]egalism hypothesizes that judicial decisions are determined by “the law” (…). [L]egalism
treats law as an autonomous discipline, a “limited domain”…» (Posner, How Judges Think, Cambridge
Massachussets, Harvard University Press, 2008, pp. 8, 41, 42). Explorei detidamente esta questão em «Post-
-scriptum. A “área aberta” e a predestinação pragmática. A análise económica do direito como “teoria
compreensiva” entre outras teorias compreensivas: o desafio e as reformulações de How Judges Think», in
Alexandre Morais da Rosa / Aroso Linhares, Diálogos com a Law & Economics, Rio de Janeiro, Lumen Juris,
2009, pp. 239-275. Ver também o meu «Jurisdição, diferendo e “área aberta”. A caminho de uma “teoria” do
direito como moldura?», cit., passim.
35«A objectividade, não sustentada por fundamentos “transcendentes” (…) mas por um fundamento
que, socorrendo-me da reconstituição proposta por Castanheira Neves [Castanheira Neves, Teoria do Direito
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão policopiada) pp.77-88 (versão em A4), pp. 42-49],
proponho nos Sumários desenvolvidos de Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 30-36 (2.1.2.3.).
20
explícita com o monismo pré-moderno37, vai tornar pensável — se não por si mesmo,
certamente em conjugação fecunda com a hipertrofia da episteme exigida pela Ideia de ciência,
ou ainda (e muito especialmente), através da superação irreversível de uma experiência do
jurídico enquanto jurisprudentia38 que o discurso de um direito encore à faire (ideal-
regulativamente pensado) exige e promete (logo que se possa tornar real)39.
Veritas que é também, não menos relevantemente, a que resulta da textualidade
enquanto tal (de uma compreensão não apenas constitutiva40, mas também global41, do texto):
não tanto porque as formulações mobilizadas manifestem as (se nos imponham como sinais
inequívocos das) exigências da universalidade racional (generalidade, abstracção, formalidade), mas
porque tais formulações e as significações que exprimem constituem elas próprias esta
universalidade, que não existe antes do texto e das significações nele imanentes (e que só por si
garantem o salto da volonté de tous para a volonté génerale, se não vereinigende gesetzliche Wille) — a
universalidade de um direito que (com Rousseau e Kant) poderemso dizer que só o é
enquanto tal na auto-obediência igualitária garantida pela generalidade… e na separação normas /
factos permitida pela abstracção… e na abstenção de interferir na matéria dos arbítrios assegurada
pela formalidade.
Veritas que é ainda a que resulta da relação (horizontal ou vertical, por coerência ou
por consistência, significativo-categorial ou sintáctico-arquitectónica, estática ou dinâmica) de
cada norma com a unidade (unidimensional) de todas as outras normas e com a categoria
37 No sentido que Ellscheid nos ensina a reconhecer: «Als “Methodendualismus” bezeichnet man in
erster Annäherung die Ansicht, vom Sein könnte nicht auf ein Sollen geschlossen werden; als
Methodenmonismus dagegen die Auffassung, das Sein umschliesse die Ebene der Werte und des Sollens…»
[Günter Ellscheid, «Das Naturrechtsproblem. Eine systematische Orientierung», in Kaufmann/Hassemer
(Hrsg.), Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, 6. Neubearbeitete und erweiterte Auflage,
Heidelberg, C. F. Müller Juristischer Verlag, 1994, p. 232). Importando esclarecer por um lado que a solução
dualista é aquela que defende um dever-ser integralmente autónomo, insusceptível de ser desimplicado ou
inferido de uma realidade-ser... e por outro lado que o «ser» a que as normas (através das características
enunciadas no tipo-hipótese) se dirigem não é já o de uma realidade essencial ou substancial — é muito
claramente o da realidade dos factos empíricos e discretos (que só se organizam e articulam na medida da sua
relevância jurídica, uma relevância que corresponde ao «preenchimento» em concreto de tais características
hipoteticamente antecipadas). De tal modo que ao monismo do cognitivismo jusnaturalista (que descobre nos
valores-bens uma normatividade e uma realidade inseparáveis) se oponha agora o dualismo do cognitivismo
normativista (enquanto contraponto-confronto do direito racionalmente auto-subsistente e da facticidade desarticulada
ou que se ficciona como desarticulada, decerto para encontrar em abstrato a pura relevância jurídica e para
submeter a realidade à «organização» que esta determina) — um dualismo metódico que culminará na
«dualização» do «direito-norma perante a realidade da sua aplicação» e na assunção da «irrelevância desta
realidade (i.e., dos problemas práticos que ela suscita) para a compreensão e (...) reconstituição da
normatividade jurídica…» (Castanheira Neves, «Matéria de facto — Matéria de direito», Digesta, vol. 3º, p.
323).
38 Ver infra, nesta Primeira Parte, Tempo II, 3.1.2. (a), pp. 137 e ss.
39 Ver infra, nesta Primeira Parte, Tempo II, 3.1.2. (b)’, pp. 141 e ss.
40 «[O] texto (…) [é] compreendido em termos não apenas expressivos, mas constitutivos: (...) a
significação jurídica é constituída exclusivamente pelo texto e só no texto, no seu conteúdo significativo, deve
ser procurada... » (Castanheira Neves, «O sentido actual da metodologia juridica», Boletim da Faculdade de
Direito, volume comemorativo do 75º tomo, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 140).
41 Com o alcance que Savigny exemplarmente consagrou ao levar a sério o binómio intra-textual /
extra-textual (exigindo que o primeiro inclua não apenas as significações literais mas também as significações
lógico-sistemáticas e históricas do texto). Para uma consideração esquemática deste binómio, vejam-se os
meus Sumários desenvolvidos de Introdução ao Direito, Coimbra, polic., 2008-2009, pp. 147-150 (2.1.).
21
O que implica ainda (como esta caracterização primeira não deixa de exigir!) ter em
atenção as diferenças que, em relação à pretensão de autonomia que nos ocupa, separam os
diversos ciclos de afirmação do normativismo (e outros rules formalisms), bem como as
intenções que distinguem as suas vozes maiores. Exploração na qual o papel do auditório real
poderá de novo emergir, determinando o peso das linhas e dos factores a considerar?
Importa dizê-lo. O que não significa que não se nos imponham aqui alguns limites. Aqueles
desde logo que nos estimulam a acompanhar a génese da pretensão de auto-racionalidade,
confrontando assim o normativismo onto-antropológico do direito natural racional de
seiscentos com os «argumentos» de Rousseau e de Kant (e com o ciclo do direito formalmente
racional que estes iluminam) — eventualmente acentuando a inesgotável posteridade destes
últimos… e ilustrando-a com algumas propostas exemplares (não certamente por acaso
remeto-me para os já cits. Sumários desenvolvidos de Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 37-48
(2.2.) e muito especialmente para «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de teoria do direito
reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria», in João Lopes Alves et al., Liber
Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra,
Almedina, 2009, pp. 261-314.
22
Sem esquecer que para aquele se trata de levar a sério uma intenção mediata de
racionalização teorética da prática (projectada num paradigma da aplicação) e para este de
respeitar uma dinâmica de aplicação-produção que culmina no conhecimento da «moldura» da
norma individual (e de assim mesmo superar um juridicismo autêntico, abrindo as portas ao
que, sempre com Posner, poderemos dizer um discurso da área aberta)47.
passando por Rawls e por Höffe. Infra daremos atenção à «variante» (não formalista) desta Abgrenzung sucitada
pelo positivismo crítico de Hart: infra, Tempo II, 1., pp. 44 e ss.
46 As formulações são de Castanheira Neves, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão policopiada) pp.79 -83, 94-110 (versão em A4), pp. 51-60].
47 Para uma exploração esquemática deste confronto vejam-se os meus Sumários desenvolvidos de
Teoria do direito e (ou) Pensamento jurídico contemporâneo (cit., pp. 121-122), onde invoquei a possibilidade
de se explorarem os exemplares «percursos de fronteira» frequentados (respectivamente) por Pattaro,
MacCormick, Jackson e Vermeule.
49 Nomeadamente o de Frederick Schauer: ver «Formalism», Yale Law Journal, 1988, pp. 509-548 e
«Positivism as Pariah», in Robert George (ed.), The Authonomy of Law, Oxford, Clarendon, 1996, pp. 31-55.
Para uma reconstrução do neo-formalist mode of practical reasoning (discutindo Schauer e Alexander), cfr. Gerald
Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World (vol. 11 de Pattaro, ed., A Treatise of
Legal Philosophy and General Jurisprudence), Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2011, pp. 388-399 («Formalism
23
3.2. Cumprida esta tarefa de demarcação, segue-se uma confirmação dos seus limites.
O que, como já sabemos, significa abrir espaço para outras duas compreensões da
autonomia e distingui-las claramente uma da outra, concentrando-as nas vozes exemplares
de Luhmann e de Castanheira Neves. Importando acrescentar que este é um passo que, em
função do equilíbrio global do nosso programa, há-de cumprir-se respeitando uma
assimetria expositiva de base: muito simplesmente porque… se este é o momento
oportuno para considerar, com o desenvolvimento merecido, a autonomia como
autodiferenciação sistémica (a cujo universo se não voltará), não é menos o momento para
expor apenas no seu núcleo de inteligibilidade (suficiente para esclarecer o contraponto
inconfundível com as anteriores) a concepção jurisprudencialista — cuja aposta, com o
desenvolvimento e a reexposição indispensáveis, será retomada recorrentemente nas etapas
V e VI.
Again: the Rule of Rules»). Ver ainda, reconstituindo um contraponto entre os argumentos de Shauer e os de
Kennedy (e relativizando as diferenças que os separam), Brian Z. Tamanaha, Beyond the Formalist-Realist Divide.
The Role of Politics in Judging, Princeton/ Oxford, Princeton University Press, 2010, pp. 162-167 («Kennedy and
Schauer on Formalism»).
50 Reconstituição que tentei em «Na “coroa de fumo” da teoria dos princípios: poderá um
tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», in Alves Correia, Jónatas Machado, João
Loureiro (ed.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, vol. III, Direitos e
interconstitucionalidade: entre dignidade e cosmopolitismo, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 395 e ss., 399-406
(2.1.).
51 Cfr. o estudo monográfico decisivo de Castanheira Neves, «O funcionalismo jurídico –
característica fundamental e consideração crítica no contexto actual do sentido da juridicidade», Digesta, vol.
3º, cit., pp. 199-318.
52Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1993, cit. na ed. de bolso de
das diferenças que os separam, é antes para acentuar a índole destas diferenças (e as
implicações que estas determinam). O que significa reconhecer que, para o funcionalismo
sistémico, a separação decisiva — aquela que o autoriza a defender uma experiência do
direito como sistema auto-diferenciado situado na sociedade em confronto explícito com
uma instrumentalização deste (dos seus recursos e instituições) a possíveis interpretaçãoes da
necessidade social (e aos fins transjurídicos que estas seleccionam) —, se cumpre (ou pretende
cumprir-se) afinal exclusivamente em função da opção por uma (específica) sociologia
sistémica e pela perspectiva que esta garante — em função, se quisermos, de um theoretical
turn ([als] Wende zur Theorie selbst-referentieller Systeme53), o qual não terá enquanto tal que ser
tematizado (e muito menos se justificar), decerto porque mobiliza razões intrínsecas às
comunicações do Wissenschaftsystem e não puras razões ético-filosóficas ou filosófico-
políticas (como aquelas que geraram a grande concepção formalista da autonomia), muito
menos representações de maximização estratégica ou de realização ideológica, se não de
reprodução material (como aquelas que presidiram à institucionalização do Estado social e que
justificam a fuga para a frente dos profetas da instrumentalização).
Trata-se, com efeito, de reconhecer que só estaremos em condições de
experimentar a circularidade das «comunicações» juridicamente relevantes e a «conexão» de
operações sociais que efectivamente lhe corresponde (die als soziale Operationen
Kommunikationen sein müβen54) se, ao testemunhar uma dinâmica de variação gradual,
pudermos simultaneamente iluminar um processo de autodinamização no tempo55 ([als]
Temporalisierung der Komplexität56) e a «diferenciação funcional» que este reconstrói (funktionale
Differenzierung als evolutionäres Produkt57). Acentuação que se nos revela indispensável para
descobrir um certo direito positivo e (ou) a etapa da evolução do sistema jurídico que o
consagra … ou que continua a consagrá-lo na sua exclusividade (als Resultat dieser Evolution gibt
53 Luhmann, «Die Einheit des Rechtssystems», Rechtstheorie 14 (1983), p. 133. Nos termos
exemplarmente sintetizados por este ensaio, trata-se, como sabemos, de assumir como desafio a concepção de
um sistema que se quer auto-referencial, isto é, capaz de produzir (herstellen) a sua própria unidade («de produzir
como unidade aquilo que mobiliza-utiliza como unidade»): de tal modo que esta não resulte da convocação de
um princípio (Prinzip, Idee, Gesetz) mas da circularidade e recursividade imanente aos elementos que integram o
sistema [Ibidem, pp.129-131]. Sendo certo que por estes elementos (últimos) se entendem sempre
«comunicações» (die Gesllschaftsystem besteht aus sinnhaften Kommunikationen (…), nur aus Kommunikationen und aus
allen Kommunikationen) [Ibidem, p. 137]. Sem esquecer evidentemente que se trata também de justificar a
transposição (teoretico-sociologicamente relevante) das exigências de um sistema que se diz autopoiético («capaz
de constituir-produzir os elementos que o compõem através dos elementos de que se compõe») —... e de tal
modo que «a unidade (que para o sistema é indecomponível) de cada um dos elementos só possa ser
constituída através do sistema»... mas de tal modo também que as «fronteiras» que o sistema impõe sejam
rigorosa e implacavelmente «as suas» [Ibidem, pp. 131-134 (II)].
54 Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 41.
55 Ibidem, pp. 286-293 (V).
56 Ibidem, p. 290.
57 Ibidem, pp. 585-586..
25
es für das Rechtssystem nur noch positives Recht58). Uma etapa que (reflectida fielmente nas
aquisições-progressos de uma «teoria das fontes»… e nas vinculações cognitivas59 que esta
impõe) deixou de reduzir o direito positivo ao direito legislativamente imposto — para
mobilizar também os modos constitutivos (jurisdicionais e dogmáticos) de um autêntico
Juristenrecht60. Uma etapa ainda que segundo Luhmann, continua a proporcionar-nos uma
reprodução autopoieticamente lograda do sistema jurídico (e a distinguir este, na sua unidade,
de todas as outras ordens sociais)61. Sendo certo que a experiência a que esta etapa nos
expõe nos permite reconhecer que o direito positivo a ter em conta é — como será sempre
(enquanto o sistema jurídico garantir a sua diferenciação) — aquele e apenas aquele que a
clausura operativa — enquanto combina funcionalmente expectativas cognitivas e normativas62
— produz ou produzir (nur das Recht selbst kann sagen, was Recht ist63)64. Aquele direito que é
posto como válido e vigente pelo sistema jurídico… e pelo sistema jurídico enquanto mobiliza
58 Ibidem, p. 281.
59«Auch zwischen Gesetz und richterlicher Entscheidung besteht, was Normativität angeht, ein strikt
symmetrisches Verhältnis. (…) Nur kognitiv, nicht normativ ist der Richter vom Gesetz abhängig…» («Die
Einheit des Rechtssystems», cit., pp. 140, 142). Importa ter presente que todas as assimetrias (nomeadamente
aquelas que se cristalizam numa «teoria das fontes») irrompem na institucionalização da dinâmica sistémica
apenas através de uma aprendizagem cognitivamente mediatizada (que não põe em causa a Ausdifferenzierung).
Compreende-se assim que as leis valham «como normas» apenas «porque está previsto que sejam mobilizadas-
aplicadas (angewandt) nas decisões» (na mesma medida em que «as decisões exprimem um juízo normativo
relativo a uma situação» apenas porque tal possibilidade está «prevista nas leis»)… e que «entre a regra-Regel e a
decisão de aplicação-Anwendungsentscheidung» haja, «no que diz respeito à qualidade normativa, uma relação
circular». Decerto porque «a autopoiesis opera para além de toda e qualquer dedução e de toda e qualquer
causalidade» e não há «nenhuma recondução das normas a princípios últimos ou a instâncias últimas, nos
quais ou nas quais o normativo e o cognitivo (Normativität und Kognitivität), o valor e o ser (Geltung und Sein) se
fundam». O que é ainda concluir que «a normatividade é sempre e em toda a parte igual, enquanto
preservação de expectativas não falsificáveis...». Estas formulações exemplares impõem-se-nos em «Die
Einheit des Rechtssystems», cit., pp.140-141.
60 «Als Ergebnis dieser Errungschaften kann das Gesamtrecht als selbstgemacht, als positives Recht
dargestellt werden, und die Rechtsquellenlehre wird (…) im 19. und 20. Jahrhundert so reformuliert, daß
nicht nur die Gestezgebung, sondern auch die Rechtsprechung, auch das Gewohnheitsrecht, soweit Gerichte
es aufgreifen, und schließlich sogar die Rechtsdogmatik selbst als Rechtsquelle auftreten können…»
(Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, cit., pp. 289-290).
61 Ibidem, pp. 279 e ss.
62 Tenhamos presente a síntese proposta em «Die Einheit des Rechtssystems», cit., pp.138-143 (V).
Recordemos que a expectativa «beneficia de uma qualidade normativa (Sollqualität) sempre que, ao
compreendê-la, se determina também que ela não terá que ser alterada quando se experimenta a sua
frustração, violação ou não realização (im Enttäuschungsfalle)». Para as expectativas cognitivas (que exprimem
uma Wissensqualität) as exigências são precisamente as opostas (a falsificação é aqui determinante). Ora o
sistema de direito «precisa» desta distinção» para «combinar a clausura da autoprodução recursiva com a abertura
da sua relação com o meio». Enquanto constrói um sistema normativamente fechado e cognitivamente aberto? Bem o
sabemos. Normativamente fechado porque «livre de fins» ou de um «fim» materialmente traduzível… e de tal
modo que só o sistema possa conferir «qualidade normativo-jurídica» aos seus elementos; cognitivamente aberto
porque submetido à exigência de («em relação a cada um dos elementos do sistema e em relação à sua
reprodução permanente») ter que determinar se certos «pressupostos» («factuais») se cumprem ou não. O que
nos permite concluir que, se a «qualidade normativa serve a autopoiesis do sistema, a sua autopreservação
(Selbstkontinuierung) na diferença perante o meio-Umwelt», a «qualidade cognitiva serve a exigência de
coordenação-Abstimmung (sintonização, sincronização)» com o mesmo meio [p. 139].
63 Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 50.
64 É neste sentido que Luhmann reconhece que «a tese» da clausura normativa do direito «se dirige
desde logo contra a pretensão de que a moral possa valer imediatamente no sistema jurídico»: ibidem, p. 78,
itálicos nossos.
26
o símbolo ou os símbolos disponíveis desta validade-vigência65 (nur noch positives Recht (…),
[d]as heiβt: nur noch Recht, das vom Rechtssystem selbst durch Verfügung über das Symbol der
Rechtsgeltung in Geltung gesetzt ist66): símbolo ou símbolos que não poderão ser convocados
como unidades de sentido (ou compromissos práticos unitários)… mas como expressões de
uma diferença-Differenz… e de uma diferença que se manifesta ou se cumpre na (ou com) a
autopoiesis — na (ou com a) reprodução que a consuma. Die Rechtsgeltung beruht (…) nicht auf
Einheit, sondern auf Differenz. Sie ist nicht zu sehen, nicht zu «finden», sondern liegt in der laufenden
Reproduktion67.
Mais do que reconhecer no direito vigente uma totalidade (unitária) de «soluções
para problemas» (eine Gesamtheit von als konsistent praktizierten Problemlösungen68) , trata-se com
efeito de descobrir que a «realidade jurídica» (die juristische Wirklichkeit) se nos expõe
invariavelmente como o «correlato» (e nada mais do que o correlato) de um modo de
comunicação «auto-referencialmente construído» (das Korrelat einer selbstreferentiellen
Operationsweise)69 — modo este que, por sua vez, se pretende tão livre das pretensões
constitutivas de um compromisso de unidade (e da ideia, princípio ou objectivo-fim que o
pré-determina e que o conduz) quanto performativamente garantido pela diferenciação-
Unterscheidung codificação/ programação (ou por esta como uma forma de comunicação
interna).
Uma forma de comunicação interna que liberta a representação do tempo e a
experimentação presente do futuro (mas também o conceito de evolução) da possibilidade-
exigência de uma prognose empírico-explicativa (ou dos recursos que esta mobiliza)? Importa
reconhecê-lo. Reconhecendo simultaneamente que só estaremos em condições de explorar
esta «operação» social (e a especificidade das diferenças que esta consuma ou pode
consumar) se mergulharmos na pragmática dos paradoxos e na sequência de processos de
paradoxização / desparadoxização / socialização / reparadoxização que a constituem — o que, no
65Afirmação de validade-vigência que vemos dirigida ao sistema como um todo… e assim mesmo — num
confronto explícito com a Faktizität und Geltung de Habermas — afirmada na sua impoluta pureza jurídica
(livre das seduções da Diskursethik e assim mesmo capaz de superar um Kriterium, der nicht justiziabel ist ). Como
um Symbol axiologicamente vazio, que nada nos saberá dizer sobre a «qualidade material» (justiça, justeza,
eficácia, adequação social) de «uma lei, de uma sentença ou de um contrato»… e que não obstante confirma a
juridicidade destes e das comunicações que os integram! Um símbolo que não é seguramente uma Grundnorm...
ou uma qualquer outra condição hipotético-transcendental do direito... porque se descobre «como pura
forma…» — como o lado interior da forma (sendo o lado exterior o da não validade!). Decerto porque esta validade
(als ein Symbol ohne intrinsischen Wert) se limita a «simbolizar a aceitação da comunicação e com ela a autopoiesis
das comunicações do sistema jurídico» (na sua implacável reprodução-variação temporal). Assim em Das Recht
der Gesellschaft, cit., pp. 98-110 (VIII).
66 Ibidem, p. 280.
67 Ibidem, p. 281.
68 Ibidem, p. 277.
69 «Einheit», cit., p. 134.
27
70 Para uma reconstituição da pragmática dos paradoxos autonomizada por Luhmann (e uma
consideração das ordens de observadores nela implicados), cfr. o ensaio de Teubner, «Der Umgang mit
Rechtsparadoxien: Derrida, Luhmann, Wiethölter», cit.na trad. inglesa «Dealing with Paradoxes of Law:
Derrida, Luhmann, Wiethölter», in Oren Perez / Gunther Teubner (eds.), On Paradoxes and Inconsistencies in
Law, Hart, Oxford 2006, pp. 55-59 (III. Luhmann: Sociologizing Deconstruction»).
71 Luhmann, Das Recht der Gesellscahft, cit., p. 545.
72 Ibidem, p. 235.
73 Para uma especificação funcional da Gleich /Ungleich-Unterscheidung, cfr. ibidem, pp. 110-117 (IX),
Wert, wir nennen ihn Unrecht. Der positive Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt mit den Normen des
Systems übereinstimmt. Der negative Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt gegen die Normen des
Systems verstößt. Das, was wir soeben „Sachverhalt“ genant haben, wird vom System selbst konstruiert…»
(Ibidem, p. 178).
28
valorado pelo direito, «justo»/ «injusto», lícito / ilícito, legal / ilegal). Na mesma medida no
entanto em que exige que cada uma das suas comunicações (inscrita na circularidade
simétrica de todas as outras comunicações juridicamente relevantes) supere os (ou contribua
para a superação lograda dos) problemas-desafios que essa codificação suscita. Problemas-
desafios que reproduzem (especificam) eles próprios a grande paradoxia da inclusão do excluído
(da unidade do diferente e do contrário)… e que assim se concentram em dois grandes
núcleos: aquele em que o problema é directamente o da tensão unidade-diferença — ou o da
pretensão de encontrar no esquema-perspectiva da diferença a condição de unidade (ou de
relevância unitária) de um certo campo social — … e aquele que, ao contrapor observador e
observado, nos expõe à impossibilidade de «aplicar» auto-referencialmente o próprio
esquema-perspectiva — como se se tratasse afinal de reconhecer a «condição» de um
esquema-perspectiva que se dirige a todas as comunicações do sistema… sem se poder
dirigir a si próprio (die Unterscheidung mit der man beobachtet, nicht selbst bezeichnet werden
kann (…), die Beobachtung dient als blinder Fleck, nämlich als (…) nicht-vernünftige (…) Bedingung ihrer
eigenen Möglichkeit80). De tal modo que enfrentar-superar a cadeia de problemas-desafios que
estes núcleos concentram (e superá-los na imanência de cada decisão) signifique afinal
reconhecer que cada uma delas assimila à sua medida (e em função da posição-Stellung que
ocupa no sistema) uma espécie de semântica suplementar81.
Que não é senão a da programação. E não de qualquer programação. Mas daquela que
corresponde a uma exigência de condicionalidade — à exigência de condicionalidade que, sob o
modo do esquema «se… então» (Wenn-Dann-Form), ilumina o sistema jurídico… e que assim,
enquanto «mecanismo» ou «técnica de construção», combina funcionalmente expectativas
cognitivas e normativas, abertura cognitiva e clausura normativa82(Recht ist Recht bzw. kein
Unrecht, wenn die in den Programmen des Rechtssystems angegebenen Bedingungen erfüllt sind83).
Experiência de complementaridade código / programa (codificação binominal /
condicionalidade ) que deverá encontrar a sua especificação culminante — a sua última
especificação possível e neste sentido também a superação microscópica do paradoxo da inclusão
do excluído (aquela em que se cumpre a diferenciação concreta do que é valorado positiva e
negativamente pelo direito) — nas (em cada uma das) decisões judiciais efectivamente
consumadas. Ora isto graças à «forma de diferenciação interna» (autopoieticamente construída e
assim livre de qualquer «conotação hierárquica ou orgânica») que convoca o sub-sistema
79 Para o dizermos com Jean Clam (mobilizando a correspondência que este nos propõe): cfr «Une
nouvelle sociologie du droit? Autour de Das Recht der Gesellschaft de Niklas Luhmann», Droit et societé nº 33,
1966, pp. 413, nota 32.
80 Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, cit., p.188.
81 «Aus der Codierung ergibt sich aber nur ein Ergänzungs bedarf, ein Bedarf für “Supplemente”
etwa im Sinne von Derrida, ein Bedarf für hinreichend deutliche Instruktionen…(Ibidem, p. 189).
82 Na mesma medida em que se especifica nos desafios dos binómios auto-orientação / orientação para o
Mais uma vez não teremos que ficar por aqui, já que as exigências do auditório
implícito determinarão como complemento indispensável a consideração da proposta de
Teubner, muito especialmente a tematização das diferenças que, em relação ao problema da
autonomia, atingem muito significativamente a compreensão do sistema quando a vemos
associar-se por um lado a uma concepção de pluralismo jurídico (e com este à possibilidade
de «autopoiesis parciais») e por outro lado a um (certo) consequencialismo «limitado e realista»
(capaz de enfrentar com soluções específicas de incorporação e de exteriorização o problema da
colisão interdiscursiva dos subsistemas) — opções estas tanto mais perturbadoras quanto é
certo que convergem na superação da condicionalidade em favor de um programa relacional,
instituidor de um autêntico direito reflexivo (capaz de «regular indirecta e abstractamente» os
«processos de auto-regulação e auto-reflexão dos diversos subsistemas sociais»)87.
Sem esquecer que, a partir daqui, o auditório real estará por sua vez em condições
de explorar os caminhos do kollisionstheoretischer Institutionalismus aberto por Wiethölter,
invocando como interlocutores-guias não apenas Teubner e Ladeur mas também Ralph
Christensen e Andreas Fisher-Lescano88.
84 É a conhecida lição do capítulo 7 de Das Recht der Gesellschaft, cit., pp. 297-337.
85Aquelas que (inscritas em nicht-gerichtlichen Arbeitsbereiche) se responsabilizam directamente pelas
transformações associáveis ao processo evolutivo.
86 Ibidem, p. 322.
87Propus uma esquematização completa destas diferenças entre Luhmann e Teubner (com as
Christensen/ Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue Theorien des Rechts, cit., pp. 79-96.
30
presentes em todas as etapas que se seguem (muito especialmente, insista-se, nas duas
últimas)89.
A primeira acentuação impõe-se-nos para abrir o caminho, reconhecendo os
termos em que a compreensão jurisprudencialista, ao estabelecer uma «correlatividade
íntima» entre os problemas da autonomia e do sentido90 e ao conferir uma inteligibilidade
material inconfundível a ambos, rompe com a exigência de reconduzir as dimensões
substantivas a um plano de pura contingência (e de separar destas a identidade auto-
subsistente do jurídico) — pressuposição de contingência que, como vimos, é uma
condição necessária de possibilidade da invenção formalista do direito (em qualquer uma das
suas expressões possíveis), bem como um recurso imprescindível da tradução autopoiética
(ou do processo de desontologização que esta postula).
Esta afirmação da «correlatividade» autonomia /sentido, ao rejeitar a possibilidade (e
ao denunciar o perigo) de reduzirmos a vocação integradora da intenção à validade (e a força
da sua perspectiva normativa) a uma mera contingência (objectivável num consenso a
posteriori), traz consigo uma segunda exigência fundamental: a de assumir a materialidade em
causa na sua relação constitutiva com uma experiência de historicidade91. O que significa
por um lado rejeitar as respostas nas quais a defesa da validade material apareça vinculada a
uma representação necessária (ahistórica) do contexto comunitário (se não a uma pretensão
aproblemática de universalidade) e por outro lado levar a sério dois desafios decisivos — o
da autodisponibilidade prático-cultural e o da vinculação civilizacional92 (vinculação a uma
«civilização» que, ao querer-se «greco-romana, judaico-cristã e europeia», se diz também,
não certamente por acaso, «civilização de direito»93).
89 Para o esclarecimento da breve síntese proposta no texto (e uma indicação menos sumária da
direito», Digesta, cit., vol. 3º, pp. 47-8, «O problema da autonomia do direito no actual problema da
juridicidade», cit., pp. 90-91.
91 Ver supra, nota 12.
92 A convergência das pretensões de universalidade e de validade material só faria sentido hoje (só se
e no encontro humano-dialogante das culturas», Digesta, vol. 3º, pp. 102-105, 111 e ss.
31
94 Ver muito especialmente «A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido», Digesta,
vol. 2º, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp. 155 e ss., 167-180, e Metodologia jurídica, cit., pp.78-81, 152-157,
188-196, 278-283 (ßß).
95 Ver supra, ensaios citados na nota 31.
96 Assim em «Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp.19-20 (IV.1.).
32
Com mais três notas, brevíssimas, mas que se revelarão indispensáveis na orientação
do percurso que se segue: a primeira a submeter-nos ao desafio da recuperação da unidade
intencional direito/pensamento jurídico (a exigir que a auto-reflexão que se espera deste
pensamento, sem prejuízo dos degraus em que se situa, mobilize constitutivamente os
compromissos daquele direito)97; a segunda a mostrar-nos que tal reconstituição da
autonomia (do direito e/ou do pensamento jurídico) só poderá impor-se-nos como a
identificação de uma procura contextualmente situada, não isolada (sensível ao plano da
inteligibilidade cultural-comunitária associada ao mundo prático global e ao plano da
determinação societária justificado pelas exigências dos discursos político e económico), se
estivermos em condições de tematizar, como autêntico «corolário» do «sentido» daquela
autonomia (e do campo de possibilidades em que esta se traduz), um iniludível problema
de «limites» (e com estes a ameaça surpreendente de um indiferenciado panjuridismo)98; a
terceira enfim a concluir que a exigência de associar a tematização da autonomia do jurídico
a um plano de imanência microscópica (à compreensão de uma «prática titulada pessoal e
concretamente»99, traduzida numa realidade de controvérsias-casos e numa experiência
judicativo-decisória de realização) nos leva decerto a encontrar (a reconhecer) na «índole
autonomamente jurídica da função jurisdicional» um «contra-pólo» indispensável da «índole
política (comprometidamente política) da função legislativa»100, ou mais claramente, a
responsabilizar a primeira pela realização lograda de um certo sentido (e pela
intencionalidade material que lhe corresponde)101.
97Importa ter presente a defesa exemplar de uma perspectiva interna assumida por Castanheira
Neves no Relatório com a justificação do sentido pedagógico, o programa, os conteúdos e os métodos de um curso de Introdução
ao Estudo do Direito, Coimbra, 1976, pp. 13 e ss., 21-24, 33-43, 63-65.
98 Ver muito especialmente Castanheira Neves, «O direito interrogado pelo tempo presente na
perspectiva do futuro», cit., pp. 69-81 (III., 1.) e «Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp. 27-
28 (V.2. «Os limites do direito»).
99 Ver supra, nota 90.
100 Castanheira Neves, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra,
Aposta em cujo grande arco podemos incluir assim (sem prejuízo das suas
diferenças) o pragmatismo interdisciplinar de Posner, o teleologismo tecnológico de Hans Albert e (na
explicativas — se não a confimar-consumar uma das profecias de Holmes (the man of the future (…) for the
rational study of law (…) is the man of statistics and the master of economics) — e a segunda (por sua vez à luz do apelo,
não menos persuasivo, do juiz Learned Hand) a exigir que as práticas e discursos do direito passem a integrar
a «nobre república das Letras»… ou pelo menos a reconhecer que estas práticas e os pensamentos que as
pensam permanecem «inacabados» (feridos na sua integridade ou entregues a arbítrios incontroláveis) se não
forem «alimentados» pelas (ou se não encontrarem «apoio» e «exemplo»-edification nas) «fontes de
conhecimento externo» que «as humanidades» (incluindo a filosofia e a crítica literária) lhes proporcionam.
Para reconstituir este exemplar «tale of two speeches», eloquentemente narrado por Balkin e Levison, ver
«Law and Humanities: An Uneasy Relationship», Yale Journal of Law & the Humanities, vol. 18, pp. 155-160
(«Introduction: Is Law Part of the Humanities? A Tale of Two Speeches»).
103 De acordo com a identificação privilegiada por Castanheira Neves: para além da Teoria do Direito.
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit.., passim, veja-se também a síntese proposta em «Entre o
‘legislador’, a ‘sociedade’ e o ‘juiz’ ou entre ‘sistema’, ‘função’ e ‘problema’ – os modelos actualmente
alternativos da realização jurisdicional do Direito», Digesta, vol. 3º, cit., pp. 161-198 e ainda «O funcionalismo
jurídico», cit., pp. 207-209 (Preliminares, 2.).
34
104 Nussbaum, Poetic Justice. The Literary Imagination and Public Life, Boston, Beacon Press Books, 1995,
Prefácio - xviii-xix.
105 Remeto-me para a abordagem da proposta de Hans Albert que desenvolvi em «Is Law’s Practical-
Cultural Project Condemned to Fail the Test of “Contextual Congruence”? A Dialogue With Hans Albert’s
Social Engineering», in M. Zirk-Sadowski, B. Wojciechowski, K. M. Cern (eds.), Legal and Communication
Strategies towards the Recognition of Minority Groups, Ashgate (Law, Language and Communication series by Anne
Wagner and Vijay K. Bhatia), 2013 (no prelo).
106 Um rule-formalism e um concept-formalism… se quisermos usar as fórmulas de Thomas Grey citadas
por Posner em How Judges Think, cit., p. 8, nota 16. O primeiro tipo é aquele que — ao identificar a frente
partilhada pelo normativismo legalista «continental» e pelo american legal formalism — invoca o direito como um
sistema autónomo de critérios-rules «pré-existentes», na mesma medida em que pressupõe uma realidade de
factos (empíricos) objectivamente determináveis e em que se que se dirige a este direito-objecto exigindo uma
determinação cognitiva em abstracto e um estrito paradigma de aplicação (baseado num discurso lógico-dedutivo)
[Ibidem, pp. 51 e ss., 103 e ss., 191-203, 371-372]. O segundo tipo de juridismo — correspondendo
genericamente àquele que (em The Problems of Jurisprudence) Posner caracteriza(va) como prudentialism (ou
epistemological traditionalism) — concentra-se por sua vez na exigência de compreender o direito como um
sistema (mais ou menos aberto) de critérios e princípios. Exigência também e ainda vinculada a uma
pretensão de autonomia (do direito e do pensamento jurídico)… mas que se distingue enquanto acentua a
perspectiva condutora de uma realidade de casos e a identidade metódica de um discurso prático-
35
trata com efeito assim apenas de reconhecer que todo e qualquer progresso efectivo nos
discursos do direito passa por uma renúncia explícita às exigências de autonomia (when law is
conceived of as an autonomous discipline, improvement is impossible)107. Trata-se de accentuar
directamente as afinidades que aproximam tal pretensão de autonomia da assunção de uma
dependência em relação ao passado, entenda-se, da vinculação (ou aspiração de vinculação) a uma
tradição ou ao diálogo-conversação que a prolonga108. O que para Posner significa poder
construir duas respostas claríssimas: a primeira para recomendar que substituamos toda e
qualquer reflexão possível sobre a «presença do passado» no presente (e no futuro) por uma
rigorosa contabilização de custos de transição109; a segunda para exigir que o direito deva ser
funcional-instrumentalmente concebido — como um puro «servidor da necessidade social»
(e das expectativas que lhe vão correspondendo)… — e assim também emancipado de uma
qualquer dependência constitutiva em relação ao passado110. Respostas que nos permitem
reconduzir uma experimentação presente (juridicamente relevante) do futuro a uma
contabilização de efeitos sociais empirico-explicativamente prognosticáveis… mas também
reconhecer que o futuro do direito (hoje pragmaticamente concebível), impondo uma ruptura
com o passado (ou com os discursos-argumentos que o mobilizam enquanto tal), impõe
também uma recusa criticamente assumida da pretensão de autonomia, ou mesmo mais do que
isso, um declínio irreversível de todos os discursos que a levem a sério. O que culmina numa
representação da interdisciplinaridade hetero-referencialmente exigida pelo direito: uma
representação que se propõe responder a um dos apelos-profecias de Holmes (the man of the
future (…) for the rational study of law (…) is the man of statistics and the master of economics111) não só
enquanto assume uma vertente exclusivamente empírico-explicativa mas também e muito
especialmente enquanto invoca o contributo decisivo (a oportunidade contextual preciosa)
de uma teoria do direito «sem direito». Uma teoria do direito que se distingue da filosofia jurídica (as
analysis of high-level law-related abstractions) e da doutrina — e desta associada a uma vertente de
reflexão metodológica (as legal reasoning, the core analytical component of adjudication and the practice of
prudencial… que se diz discurso analógico [How Judges Think, cit., pp.180-191]: um discurso analógico que, ao
reivindicar uma autonomia inconfundível (analogy (…) as (…) its own kind of thing), se pretende afinal tão
distinto da «aplicação» lógico-dedutiva dos critérios quanto da «realização-execução» baseada em programas finais
e orientada por uma previsão de efeitos (the celebration (…) of «legal reasoning by analogy» (…) [as] a methodology
unrelated to economic, policy , or pragmatic analysis (…), [thinks] that it can save case law from contamination by policy and
politics (…), and to support an alternative conception of legalism — legalism not as deductive reasoning but as set of techniques
for deciding cases without recourse to policy)[Ibidem, pp. 180, 184, 185, 372].
107 Ibidem, p. 376.
108 «Path dependence in law resembles another important concept, that of law’s autonomy (…) [;] to
the extent that a practice or field, whether it be music, mathematics, or law, is autonomous, developing in
accordance with its internal laws, its “program”, its “DNA”, its current state will bear an organic relation to
its previous states…» (Frontiers of Legal Theory, Cambridge Massachussets, 2001, p.159).
109 «We can thus expect to observe path dependence when transition costs are high relative to the
questionable aspiration and my own view is law is better regarded as a servant of social need, a conception
that severs the law from any inherent dependence on its past …» (Ibidem, p. 159).
111 A propósito do confronto entre as posições de Holmes e de Hand, ver supra, nota 102.
36
law)112— enquanto garante uma abordagem implacavelmente exterior: uma abordagem não só
interdisciplinarmente prosseguida como também «livre» de qualquer perspectiva ou arena
disciplinar… que se possa(m) (ou deva(m)) dizer jurídica(s) (legal theory is concerned with the
practical problems of law, but it approaches them from the outside, using the tools of other disciplines113)114.
Uma interdisciplinaridade que se nos expõe pragmaticamente iluminada pelo núcleo-
horizonte de um certo discurso económico — identificado com o marginalismo pós-
coasiano115 —, mas nem por isso menos capaz de agregar contributos preciosos da teoria das
ciências, da semiótica, da psicossociologia, da normative theory of rational choice, da teoria das
probabilidades (e outras quantitative scholarships)... enfim do narrativismo genealógico (as an
effective method of sceptical analysis)116!
112Mas então também da Jurisprudence anglo-saxónica (ou pelo menos da sua british translation), que
POSNER, com alguma ambiguidade de resto, associa sempre à legal (se não à moral) philosophy: veja-se agora
Law and Legal Theory in the UK and USA, Oxford, Oxford University Press, 1996, pp. 69-70.
113 Frontiers of Legal Theory, cit., p. 2.
114Para compreender o alcance desta interdisciplinaridade e do pragmatic turn que a alimenta é
imprescindível considerar toda a «Introduction» das Frontiers of Legal Theory, cit., 1-27 «The particular areas I
examine in this book (...) may seem little related to each other, but we shall see that they overlap and
interpenetrate, enabling us to glimpse the possibility of legal theory as an unified field of social science...»
(Ibidem, pp. 14-15). Para um confronto com a proposta de Fish (enquanto rejeição liminar desta
interdisciplinaridade), veja-se o meu «Brauchen wir noch eine kritische Rechtstheorie? Ein
Konversationsstück mit Posner und Fish», in Bernd Schünemann / Marie-Therese Tinnefeld /Roland
Wittmann (Hrsg.), Gerechtigkeitswissenschaft - Kolloquium aus Anlass des 70. Geburtstages von Lothar Philipps, Berlin,
Berliner Wissenschafts-Verlag 2005, pp. 23-45.
115 «What Holmes lacked was a social theory to take the place of the kind of internal legal theory
that he denigrated in the German theorists. We now have that theory; it is called economics…» (Ibidem, p.
207).
116 The Problems of Jurisprudence, Cambridge Massachussets, Harvard University Press, 1990, pp. 239-
244 («Holmes, Nietzsche and Pragmatism»), The Problematics of Moral and Legal Theory, Cambridge Mass.,
Harvard University Press, 1999, pp. 17 e ss. («Realism versus Relativism»), 53 e ss. («Moral casuistry»),
Frontiers of Legal Theory, cit., pp. 145 e ss. («Law’s Dependence on the Past»)
37
ou os movimentos law as musical and dramatic performance, law and film, law and culture, law and
image, law and emotions. O que implica desenhar um território comum frequentado por vozes muito
distintas: aquelas que se nos impõem quando damos atenção às exigências do narrativismo
«comunitarista» de Boyd White e da desconstrução transcendental de Balkin ou quando ouvimos os
apelos da justiça como diké justificados por Costas Douzinas; mas também aquelas que nos
interpelam quando identificamos o poetic judging (e o literary judicious spectator) de Martha
Nussbaum, a jurisprudence of comedy (e a comic view of Law) de John Denvir e o legal counter-
storytelling (alimentado por uma específica voice-of-colour thesis) de Richard Delgado; ainda
aquelas que reconhecemos quando ouvimos Martin Jay defender uma «tensão icónica criativa
entre alteridade e comensurabilidade... ou quando enfrentamos a inter-acção produtiva entre
regimes narrativos jurídicos e cinematográficos reconstituída por David A. Black; sem que deste
espectro amplíssimo se excluam evidentemente as propostas de Richard Weisberg, de Naomi
Mezey e de Robin West, a primeira a expor-nos ao exemplum (moralmente edificante) de uma
«reconstrução» de narrativas processuais, a segunda a defender um específico intertwinement
entre direito como cultura e cultura como direito, a terceira enfim a explorar o contraste entre os
«excessos do economic man» e as «possibilidades da literary woman»117 .
.
Tendências que, não obstante a oposição radical que desenham, convergem numa
compreensão do direito vinculada ao que, em contraponto com os (ditos) discursos
juridistas ou juridicistas, Posner diz um discurso de área aberta118? Parece-me indispensável
acentuá-lo.
117 Para uma identificação de alguns destes interlocutores e uma discussão dos seus contributos, ver
os meus «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura (law
as literature, literature as law) à analogia com uma poiesis-technê de realização (law as musical and dramatic
performance)», Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXX (2004), pp. 84-135, «Recht als dramatische und
musikalische Aufführung: eine fruchtbare Analogie?», in Schweighofer/ Liebwald / Drachsler, Geist (Hrsg.),
E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht. Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik, Tagungsband des 9.
Internationalen Rechtsinformatik Symposions Iris Wien 2006, Stuttgart/ München/…, Richard Boorberg
Verlag, 2006, pp. 468-475, «Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?», in
André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti Neto (org.), Direito & Literatura:
Discurso, Imaginário e Normatividade, Porto Alegre, Núria Fabris Editora, 2010, pp. 269-306, também no Boletim
da Faculdade de Direito, vol. LXXXV (2009), Coimbra, pp. 111-149 e muito especialmente «Law in/as
Literature as a- «Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Unavoidable Resistance to
Legal Scientific Pragmatism or The Fertile Promise of a Communitas Without Law?», in M. Paola Mittica
(ed.), Law and Literature. A Discussion on Purposes and Method. Proceedings of the Special WS on Law and Literature held
at 24th IVR World Conference in Beijing [pp. VII +145], publicado on line em Setembro de 2010, pp. 22-42,
disponível em http://www.lawandliterature.org/index.php?channel=PAPERS-ESSAYS, agora também em
B. Wojciechowski, P. Juchacz, K. M. Cern (eds.), Legal Rules, Moral Norms and Democratic Principles, Peter Lang,
Frankfurt am Main, 2013, pp. 257-282.
118 «Legalism’s inability in many cases to decide the outcome (…) and the related difficulty, often
impossibility, of verifying the correctness of the outcome, whether by its consequences or its logic (…), create
an open area in which judges have decisional discretion—a blank slate on which to inscribe their decisions—
rather than being compelled to a particular decision by “the law”. How [the judges] (…) fill in the open area is
the fundamental question that this book addresses, though lurking in the background and occasionally
coming to the fore is the question how they should fill it in…» (Posner, How Judges Think, Cambridge Mass.,
Harvard University Press, 2008, p. 9).
38
119 Para um desenvolvimento do que (sem confundir os contributos de Kelsen e Posner, nos seus
horizontes de sentido inconciliáveis) entendo poder dizer um modelo de «moldura» ou «área aberta», veja-se a
reconstituição que proponho em «Jurisdição, diferendo e área aberta. A caminho de uma teoria do direito
como moldura?», cit., passim.
39
tratasse de exigir uma emergência (histórica) dos segundos enquanto fundamentos de uma
condição específica de comparabilidade-tercialidade e de assim mesmo frequentar um
insuperável território de fronteira.
Aquele que nos expõe a uma conexão-tensão entre experiências de comunidade distintas
(e outros tantos contextos, ditos geral e especificamente jurídico) — se quisermos a uma
conexão entre dois diferentes modos de reivindicar-construir um sentido comunitário122. Mas
também e muito especialmente aquele que nos confronta com um processo permanente de
constituição-objectivação-realização: aquele que experimenta as objectivações normativas
(normativamente materiais) dos princípios enquanto as submete às exigências simultâneas de
uma dimensão axiológica (histórico-problematicamente aberta) — dimensão que postulam
(cuja experiência os constitui) e que no entanto não esgotam (porque esta os excede sempre
nas suas possibilidades normativas) — e de uma dimensão (vocação) dogmática
desoneradora («estabilizadora») — dimensão que os absorve como seu primeiro estrato e a
cujo desenvolvimento-sistema garantem por sua vez o dinamismo constitutivo de um
normans123.
122 Para uma compreensão da relação entre estes dois contextos e uma oportunidade única de
princípios: poderá um tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», cit., pp. 412-421 (3.).
125 Cfr o tratamento da realidade jurídica que propus em «Jurisprudencialismo: uma resposta possível
126 Se chegarmos à conclusão de que a multiplicação das situações institucionais (e dos códigos que
estas mobilizam) suscita processos de realização-determinação incompatíveis com um sentido material (ou
com a partilha deste), o compromisso prático pressuposto e o próprio horizonte de validade comunitária
estarão certamente ameaçados. Uma ameaça que já não será certamente aquela que reconduz tal validade à
solução contingente de um puro consenso a posteriori, porque é já aquela outra que, reconhecendo a
impossibilidade deste consenso (ou de uma sua repetição lograda), apenas preserva a possibilidade-limite de
evocar uma tal validade ou o princípio que a especifica (e que na situação em apreço a representa) como se de
um puro nomen (mais ou menos apelativo) se tratasse.
127 Ibidem, pp. 171-174 (3.3.3.)
43
Tempo II
social organization or whether instead it is better understood by seeing it as continuous with morality 130) —,
sem deixar de simultaneamente se reconhecer que uma tal inescapabilidade (enquanto
impossibiliadade de uma resposta autónoma baseada na experiência do direito vigente)
corresponde afinal, recto itinire, à necessidade de enfrentar os casos difíceis — coincidindo
assim (et pour cause) com a mobilização inevitável dos interstitial powers da jurisdição…
O que nos basta para perceber que o problema a ter conta (na implacável
articulação, se não sobreposição de todos estes planos) nos expõe inequivocamente à
herança de Hart… e neste sentido à exigência de reconhecer um positivist camp que,
rejeitando a redução dos cognitivismos empíricos, não menos inequivocamente recusa a
«redução lógico-formal» dos puros normativismos e outros formalismos (e, por maioria de razão, a
pretensão de autonomia associada ao paradigma da aplicação do normativismo dogmático)131. Um
positivist camp ele próprio comprometido com a representação metódica de uma área aberta?
Importa acentuá-lo. Sem esquecer as tensões que internamente o dividem (nomeadamente
quanto à articulação entre o plano da determinação teorética e o da realização metodológica
ou do jurisprudential method132). Mas sem esquecer também que o problema a enfrentar
nesta especialíssima tematização dos princípios nos reconduz, ainda sem soluções de
continuidade, a uma teoria da regra de reconhecimento (aos desafios que esta abre e às categorias
de inteligibilidade que a fecham, mas também às possibilidades de encontrar configurações
alternativas133)… e com esta tematização também inevitavelmente à discussão das
possibilidades de reacção-resposta (mais ou menos surpreendentemente) justificadas pelo
Postscript de The Concept of Law134.
Não se trata com efeito apenas de ter presente que Hart concebe a referida second
order rule (enquanto identifica a característica ou características gerais das primary rules) como
130 Esta pergunta pelo law’s place é um temas (prometidos) da trilogia que Coleman inaugurou com o
percurso auto-reflexivo (profundamente autocrítico, como ainda veremos) de «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., pp. 2-80. Embora as formulações mobilizadas acima nos apareçam todas na versão
publicada deste primeiro volet [ver pp. 79-80 («D. Law’s Place»)], a articulação-composição destas reproduzida
em itálico no nosso texto, essa encontrámo-la (para já) apenas num draft do início do referido estudo
disponibilizado para circulação privada na First Conference on Philosophy and Law (Neutrality and Theory of Law)
ocorrida em Girona em Maio de 2010 (o qual, pela expressividade da composição em causa e pela relevância
desta para o nosso tema, não resistimos a citar e a parafrasear). Este draft está hoje de resto disponível em
http://www.te.gob.mx/ccje/Archivos/jules_coleman.pdf (extraído em Janeiro 2013) [cit. do texto na p. 3 ] e
http://www.law.yale.edu/documents/pdf/Intellectual_Life/Coleman_ArchitectureJurisprudence1.pdf (ex-
traído em Março de 2013) [citação reproduzida no texto na p.2].
131 Para uma acentuação exemplar do modo como a perspectiva exterior moderada de Hart (The Concept
of Law, second edition with Posrtscript, Oxford, Clarendon Press, 1994, pp. 88 e ss.) se mostra apta a assumir
a normatividade rejeitando tanto o reducionismo empírico de Austin, Bentham, Holmes ou Ross quanto o
normativismo crítico-transcendental de Kelsen, ver Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the
Common Law World, cit., pp. 279-291. Ver também infra, nota 451.
132 Ibidem, pp. 336-340 («Positivism and Jurisprudential Method»).
133 O que, como veremos, acontece tanto com Raz como com Coleman.
134 Hart, The Concept of Law, cit., pp. 238 e ss.
47
uma form of judicial customary rule… — entenda-se, como uma regra que se constitui e
manifesta enquanto se cumpre em práticas sociais reiteradas (de «aceitação» e de
«realização»), sendo estas práticas precisamente aquelas que traduzem operações de
«identificação» e de «aplicação» do Direito efectivamente cumpridas pelos tribunais (a form of
judicial customary rule existing only if it is accepted and practised in the law-identifying and law-applying
operations of the courts135). Trata-se também de tematizar o modo como, em nome de um
auto-denominado soft positivism136, o citado Postscript admite relacionar esta rule of recognition
com os principles. O que significa levar a sério a convencionalidade plena desta regra maior … e
então admitir que, para além dos critérios de identificação do jurídico (da validade jurídica)
determinados por um modus institucional autoritário, imputado ao exercício de uma voluntas-
potestas — critérios que o próprio Hart, invocando Dworkin, designa por pedigree criteria
(concerned only with the manner in which laws are adopted or created by legal institutions and not with their
content137) —, estejam à disposição das práticas de reconhecimento assim paulatina e
contingentemente construídas (e portanto também à disposição da regra que as
institucionaliza, na sua variabilidade histórico-social138) «critérios» (e «testes») de identidade-
-validade exclusivamente baseados na «conformidade» com exigências materiais (ditos,
também com Dworkin, interpretative test criteria), critérios que assim se identificam com (ou
que nos remetem para ) «princípios de justiça e valores morais substantivos», na mesma
medida em que se impõem às prescrições legislativas e às soluções da jurisprudência judicial
(ou a estas através dos argumentos situados que as convocam) como autênticos limites ou
filtros139 jurídico-constitucionais (in some systems of law, as in United States, the ultimate criteria of
legal validity might explicitly incorporate, besides pedigree, principles of justice or substantive moral values,
and these may form the content of legal constitutional restraints140)141.
case»! (para o dizermos com Kramer, em Where Law and Morality Meet, Oxford University Press, 2004, p. 2).
139 A expressão é usada por Postema para identificar a posição que denomina por modest inclusivism:
«for example, principles of fairness, justice or fundamental decency might be part of law when they function
(in the practice of legal argument) as filters for the rest of the substantive norms of law…» (Legal Philosophy in
the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p. 465)
140 Hart, The Concept of Law, cit., p. 247. Ver também a referência às substantive limitations («que se
encontram consagradas nas federal constitutions dos Estados Unidos e da Austrália») no nº 4 do cap. IV, que,
como se sabe, aparecia já assim na 1ª ed. de 1961 [Ibidem, pp.71 e ss. («The Sovereign Behind the
Legislature»)]
141 «The rule of recognition may incorporate as criteria of legal validity conformity with (…) specific
(…) moral principles or substantive values. (…) [As] I have said, in addition to such pedigree matters the rule
of recognition may supply tests relating not to the factual content of laws but to their conformity with
substantive moral values or principles.(…) [This] interpretivist test (…) [corresponds to ] a complex “soft-
positivist” form of (…) a criterion (provided by a rule of recognition) (…) identifying principles by their
48
content not by their pedigree. (…) Dworkin would certainly reject my treatment of his interpretive test for
legal principles as merely the specific form taken in some legal systems by a conventional rule of recognition
whose existence and authority depend on its acceptance by the courts…» (Ibidem, pp. 250, 258, 265, 267) .
142 Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p. 459.
143 Todas estas distinções, com excepção da última, serão exploradas expressamente infra: ver 1.2.2.
(pp. 67 e ss.) e 1.3.2.-1.3.3. (pp. 84 e ss.). No que diz respeito a esta última (que estará implícita nos diálogos
com Fuller e Simmonds) [ver desde já infra, pp. 57, 121 e ss., 163 e ss.], recordo que tem a ver com o
contraponto entre não positivismos ocupados com a reconstituição de exigências imanentes às práticas
comunitárias e não positivismos assumidamente jusnaturalistas: neste sentido, ver Postema, Legal Philosophy in the
Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 154-156 («Immanent Reason»), 549 e ss. («Natural-Law
Theory’s Ambitions»).
49
com outras práticas sociais / continuum com a moralidade), desempenha nesse debate. Posso
acrescentar que se trata de reconhecer…
(a) por um lado, que tal alternativa nos interpela sempre a partir do segundo termo —
com a inteligibilidade dinâmica que tanto a rejeição quanto a defesa da relação com a
moralidade (e as diferentes gradações destas) por assim dizer instalam…—,
(b) por outro lado, que a consciência desta dinâmica (associada à ausência-rejeição,
implícita embora, de um terceiro caminho ou das condições que nos permitam pensá-lo) nos
proporciona uma perspectiva indispensável para identificar estes campos oponentes — para
descobrir, sem equívocos, que afinidades os preservam e que divisões internas se mostram
com estas compossíveis.
Significa isto, com efeito, confiar à tese da separação entre direito e moral — ainda que à
tese da separação apenas quando referida ao problema da identificação do conteúdo do direito144
(especificação esta que veremos da maior importância!) — uma exemplar tarefa delimitadora:
não só nem principalmente porque a sua defesa (ao aglutinar-absorver os contributos da
tese das fontes sociais e da tese da discricionariedade) nos apareça em condições privilegiadas de
garantir à tensão agonística com o exterior um núcleo de identidade facilmente reconhecível
(responsável pela preservação do positivist camp), também e muito especialmente porque a
possibilidade de fazer corresponder a esta defesa acentuações-«interpretações»
relativamente diferenciadas justifica outras tantas gradações internas — cada uma delas por
sua vez como um desafio a ter em conta na determinação dos limites com o exterior… mas
também (et pour cause!) na analítica de comparação-avaliação das concepções oponentes
(identificáveis como candidatos negativos).
É neste sentido que poderemos começar por dizer que todos os discursos
acantonados neste «situado» campo positivista convergem enquanto rejeitam a relação
juridicidade / moralidade como componente necessária dos critérios de validade enunciados
pela regra de reconhecimento — cuja relevância (descritivamente fixada) admitisse como tal
projectar-se no concept of Law —, divergindo no entanto já quando esta última projecção
conceitual e a discussão correspondente têm exclusivamente a ver com a mera possibilidade
desta relação e então e assim com uma consagração contingente (os positivistas includentes
defendem que são conceptualmente possíveis moral criteria of legality, os positivistas excludentes
rejeitam esta possibilidade). Sendo precisamente esta divergência — ou pelo menos as
distintas conclusions-claims que a vão tornar possível — que algumas reacções críticas
144 «According to my theory, the existence and content of the law can be identified by reference to
the social sources of the law (e.g. legislation, judicial decisions, social customs) without reference to morality
except where the law thus identified has itself incorporated moral criteria for the identification of the law…»
(Hart, The Concept of Law, cit., p. 269).
50
exteriores (a começar pelas de Dworkin e de Alexy!), como que construídas em bloco, não
têm contribuído para esclarecer. Que conclusions-claims? Aquelas que Waluchow
exemplarmente distingue (as a matter of conceptual necessity, the legal validity of a norm can never be a
function of its consistency with moral principles or values /it is conceptually possible, but in no way
necessary, that the legal validity of a norm is in some way a function of its consistency with moral principles
or value), atribuindo a consagração auto-subsistente da primeira ao que diz uma strong
separation thesis (legality and morality are necessarily separate from one another), reservando para a
defesa da segunda (também na medida em que relativiza logradamente a primeira e se torna
compossível como uma reformulação desta) a designação (mais comum) de separability thesis
(legality and morality are only separable, not necessarily separate)145. Com esta acentuação , o eixo da
distribuição clarifica-se, concentando-se nas possibilidades da inclusão e (ou) da incorporação e
na dinâmica que estas impõem, precisamente enquanto são assumidas e exploradas pela tese
da separabilidade [1.1] e liminarmente rejeitadas pela tese da separação [1.2.]146. O que não
dispensa uma alusão final à refracção desta dinâmica no campo não positivista [1.3.].
1.1. Nas possibilidades da inclusão tout court e (ou) da incorporação… enquanto são
assumidas e exploradas pela tese da separabilidade147? Importará reconhecê-lo, começando por
dizer que a consideração das possibilidades em causa — no seu equilíbrio de exclusão (mera
inclusão) ou de convergência (inclusão e incorporação) — não só nos permite autonomizar as
duas representações do papel dos princípios morais a que o Postface de Hart alude — e que no
âmbito deste já pudemos identificar (moral principles as criteria for validating legal norms /moral
principles as legal norms) —, mas também nos autoriza a «situá-las»… distinguindo assim dois
degraus contíguos de consagração da tese da separabilidade:
145 Waluchow, «Legal Positivism, Inclusive versus Exclusive», in E. Craig (ed.), Routledge Encyclopedia
of Philosophy, London, Routledge, disponível em http://www.rep.routledge.com.libaccess.lib.mcmaster.ca
/article/T064 (extraído em Julho de 2012). «[P]ositivismo jurídico exclusivo: por razões de necessidade conceptual a
determinação do que é Direito nunca poderá ser uma função de considerações morais; (…) positivismo
jurídico inclusivo: é conceptualmente possível, mas não necessário, que a determinação do que é Direito possa ser
uma função de considerações morais…» (Margarida Lamy Pimenta, «“Positivismo jurídico inclusivo”:
afinament ou afastamento do positivismo jurídico?», in Bárbara Cruz et al., Teoria da argumentação e neo-
-constitucionalismo. Um conjunto de perspectivas, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 276-277, aqui convocando
explicitamente Waluchow),
146 Formulações que priviligiaremos a partir de agora, precisamente com o alcance que Waluchow
lhes atribui, sem prejuízo no entanto da atenção que daremos infra às críticas (também, et pour cause,
autocríticas!) de Coleman: infra, 2.2., pp. 96-103.
147 Trata-se de combinar as formulações de Waluchow (separação /separabilidade) com uma distinção
que diz respeito às possibilidades da segunda: aquela que Kramer sustenta entre inclusive legal positivism e
incorporationism, o primeiro (positivismo includente tout court) a identificar a proposta de Waluchow (mera
inclusão), o segundo (incorporacionismo) a referir-se às propostas de Coleman e do próprio Kramer (inclusão
e incorporação). Ver muito especialmente Kramer, Where Law and Morality Meet, Oxford University Press,
2004, pp. 2-9 («Inclusivism, Incorporationism and Exclusivism»). Será este o significado-regra que
atribuiremos a tais formulações no texto do presente relatório.
51
148 Waluchow, Inclusive Legal Positivism, Oxford, Clarendon Press, 1994, p. 82.
149 Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., p.25
150 Hart, The Concept of Law, cit., p. 247.
52
1.1.2. Sem soluções de continuidade abruptas (tanto mais que concertam a inclusão
estrita com uma autêntica incorporação), as gradações preferidas pela segunda concepção
da separabilidade [β)] — aquela que se abre com a alusão de Hart aos principles e que se
cumpre com as propostas decisivas de Coleman e de Kramer152 —, essas substituem as
acentuações relevantes, consumando no espectro em causa (ou na relevância dos seus
termos) uma espécie de inversão dinâmica. É que não se trata já de situar relacionalmente
inclusivismos mais modestos e menos modestos, mas de partir do acento tónico contrário para
relacionar gradativamente inclusivismos-incorporacionismos mais robustos e menos robustos.
Ora esta inversão é tanto mais exemplar quanto é certo que o argumento que a
determina mobiliza como warrant uma reacção-resposta (exemplarmente clara!) às
perplexidades do degrau anterior: trata-se, com efeito, de esclarecer que um
incorporacionismo autêntico ( e o processo de inclusão que lhe vai associado ou que define
o seu degrau precedente) não exige nunca, como condição de vigência, que o critério moral
contingentemente incorporado no corpus juris — manifestado pelas práticas
institucionalizadas de identificação ou de aplicação (officials’ law-ascertaining behaviour) desta ou
daquela regra de reconhecimento — seja por assim assim dizer formal e autoritariamente
objectivado numa prescrição legal ou numa decisão judicial (none of my arguments in support of
Inclusive Legal Positivism has implied that any moral criterion in this or that Rule of Recognition must be
expressed in some explicity form such as a statutue or a constitutional provision or a judicial opinion153)154 .
151 Neste sentido, cfr. Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p.
465, nota 5.
152 Sem prejuízo de o incorporacionismo robusto de Coleman, seriously taken, levar como que a uma
superação da tese da separabilidade ou pelo menos a uma subordinação desta à tese dos factos sociais: ver desde já
Coleman, «Beyond Inclusive Legal Positivism», Ratio Juris, vol.22, nº 3, pp. 359 e ss. Ao longo do nosso
percurso, tornar-se-á de resto indispensável, como veremos, distinguir «dois» Coleman: o primeiro como
interlocutor decisivo do debate, o segundo (aberto por «Beyond Inclusive Legal Positivism» e confirmado em
pleno pelo primeiro volet da «Architecture of Jursiprudence») a impor-se-nos para além deste debate ou a
esboçar uma tentativa para superar as suas «confusões». Reservaremos para o segundo um tratamento
autónomo [infra, 2.2., pp. 96 e ss.], sem prejuízo de anteciparmos algumas das suas formulaçãoes mais
rigorosas (sempre que tal se revele indispensável para perceber melhor o primeiro).
153 Kramer, Where Law and Morality Meet, p. 25
53
O que não constitui evidentemente um pormenos: uma vez esclarecido este pressuposto, as
divisões-gradações deixam de se construir em função da solução de fronteira da inclusion by
enactement (uma solução vulnerável decerto, porque facilmente assimilável pelas propostas
menos radicais do positivismo excludente155), passam antes a tematizar directamente a Rule of
Recognition — o que significa decerto permitir que a dinâmica condutora passe a
responsabilizar directa e autonomamente as propostas includentes. Como se, por um lado, no
plano interno, se tratasse de discutir o problema dos limites de conteúdo desta regra (ou das
práticas que lhe estão associadas) — e neste sentido também os modos mais extremos ou mais
moderados de incorporacionismo [1.1.2.1.]; como se, por outro lado, no plano externo, se tratasse
tanto de (numa frente explícita com os não positivismos, a começar pelo de Dworkin)
confirmar a importância da referida regra e do seu filtro convencional (upholding the Rule of
Recognition) ou da tese que os sustenta (to pursue (…) a wide-ranging defense of the Rule of
156
Recognition thesis) , quanto de — numa nova interpelação do positivismo excludente, esta
certamente livre da vulnerabilidade da primeira (porque decisivamente afastada das suas
fronteiras e das soluções de compromisso que estas autorizam) —, enfrentar recto itinere o
problema da tese dos factos sociais e das concepções que esta autoriza [1.1.2.2.].
154 «If the relevant officials treat a clause specifying certain conditions of substantive morality as
conditions of legality as part of the norm they apply in assessing conduct, then it is plausible that such a
clause is part of the relevant rule of recognition. If so, then moral principles are law of the relevant
jurisdiction; and their status as such depends on their content only…» (Coleman, «Beyond Inclusive Legal
Positivism», cit., pp. 367-368).
155 Como a de Shapiro: ver infra, 1.2.4., pp. 78 e ss.
156 Kramer, In Defense of Legal Positivism. Law Without Trimmings, Oxford, Oxford University Press,
as formulações do primeiro atribuem às possibilidades do incorporacionismo: ver Kramer, Where Law and
Morality Meet, cit., pp. 26.
158 Coleman, «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», in Coleman
(ed.), Hart’s Postscript. Essays on the Postscript to The Concept of Law, Oxford, Oxford University Press, 2005, p.
130. Esta formulação compõe-se deliberadamente para combater um dos argumentos decisivos de Dworkin
contra a regra de reconhecimento, o qual sustenta, como é sabido, que há uma incompatibilidade insuperável
nestas duas componentes: identidade enquanto convenção (factualmente) social e capacidade de impor critérios de
validade com conteúdo.
54
159 Coleman, The Practice of Principle. In Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory, Oxford, Oxford
University Press, 2001, p. 80.
160 Tendo em atenção esta abertura ou esta flexibilidade (de uma tese de convencionalidade levada
até às últimas consequências, acompanhada de um incorporacionismo também extremo), não nos espantará assim
que, sem deixar de permanecer fiel a uma tese de factos sociais, Coleman tenha vindo, ao longo do seu percurso
reflexivo (um dos mais estimulantemente autocríticos que conheço!), a relativizar (no que diz respeito ao core
claim do positivismo includente) a referência não apenas à tese da separabilidade (ponto a que já aludi!) mas
também à regra de reconhecimento (superando assim uma compreensão estrita desta última ou a rigorosa «matriz»
hartiana que, na identificação das suas componentes, começou por sustentar): admitindo falar (apenas) de
critérios de juridicidade /não juridicidade… e no limite («para além» mesmo desta referência!) exclusivamente da
indispensabilidade de uma actividade social de cooperação que, correspondendo à sua noção de social fact(s), se
mostre capaz de fixar estes critérios, entenda-se, capaz de «determinar os determinantes do conteúdo
juridico». É esta a lição imprescindível do recente (e perturbante) «Beyond Inclusive Legal Positivism» [ver
muito especialmente o nº 7 («Beyond Criteria of Legality»), cit., pp. 380-383], à qual (pese embora a
contenção analítica exigida a este relatório) não deixaremos de dar a atenção merecida. «[An] essential feature
of law (…) is that it involves some central, organizing, coordinating activities(…) [which] are are not
normative facts, (…)[which] are social facts (…), [and which] determine the determinants of legal content…»
(Ibidem, pp. 383, 384, nota 28).
161 Kramer, In Defense of Legal Positivism, cit., p. 143.
162 «Above that threshold, the system will be functional or efficient in a greater or lesser extent.
Below that threshold, however, it will be nonexistent —that is, nonexistent as a legal system — rather than
merely inefficient…» (Where Law and Morality Meet, cit., p. 28)
163 Ibidem, p. 6.
55
164 Coleman, «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», cit., p.130.
165 The Practice of Principle, cit., p. 77
166 Para um esclarecimento do contraponto rule of recognition/ regularized behavior / rule-governed behavior
(ao qual não podemos aludir senão grosseiramente), é indispensável ter presente o desenvolvimento
proposto em The Practice of Principle, cit., pp. 77-83 (1.). As importantes implicaçãoes metodológicas desta
concepção constituem por sua vez o núcleo fundamental da lecture eleven («Legal Content, Social Facts, and
Interpretive Practice»), ibidem, pp. 151-174.
167 Ibidem, p.80, nota 12, p.157.
168 Ibidem, p. 83. «The mistake is to suppose that the semantic content of the rule of recognition is
internal point of view is a necessary element of the practice of a rule of recognition, and is therefore itself an
existence condition of the rule. (…) There is no rule of recognition independent of convergent behavior
toward which participants take the internal point of view (…). The critical reflective attitude is the internal
point of view…» (Ibidem, pp. 83, 82).
56
apply certain standards for assessing the legality of conduct and adopt a critical reflective attitude (…) towards
their doing so171) —, por outro lado porque faz depender a especificação ou o preenchimento
logrado destas intenções de um processo temporalmente aberto de cooperação-negociação, do
qual não podem nem devem estar excluídas discordâncias e conflitos (the practice of applying
criteria of legality is best conceived as a shared cooperative activity (…), SCAs are familiar ways of
coordinating interaction among persons over a period of time, and admit of fundamental and penetrating
disagreement about how to continue the activity172)173.
se admita superar uma noção estrita de regra de reconhecimento: o que como sabemos, acontece com o próprio
Coleman (ver supra, nota 160 e infra, 2.2.).
174 The Practice of Principle, cit., pp. 78, 80-81.
175 Prescindiremos do problema dos limites deste content (nas suas difíceis fronteiras com o problema
pelas práticas dos officials (mesmo quando esta diga respeito apenas a problemas de
extensão)… muito simplesmente porque a regularidade destas (enquanto práticas que
constroem-seguem a regra de reconhecimento) deve ser levada a sério não apenas como um
factor de eficácia (como Coleman expressamente exige), mas também como uma condição de
existência — o que para Kramer significa decerto insistir na «diferença qualitativa»
(categorialmente relevante) entre uma ordem marcada pela regularidade (by a significant measure
of regularity) e uma ordem caracterizada por uma ausência significativa desta (by very extensive
irregularity), concluindo que só na primeira (porque ultrapassa um determinado limiar de
coesão e de uniformidade) teremos condições para reconhecer um autêntico sistema
jurídico (a fairly substantial degree of regularity is essential not just for the efficiency of a legal regime, but
also for its very existence as such)181.
Conclusão que justifica um incorporacionismo (mais) moderado ou suave (a milder version of
the Incorporationist Rule of Recognition182) ? Importa acentuá-lo. Trata-se, numa palavra, de
completar a trama argumentativa, reconhecendo que a assunção em pleno de um
incorporacionismo robusto (as a throughoing version183) — baseado na «invocação e na aplicação
sistemáticas de princípios morais com fundamentos puramente substantivos» (on content-
dependent grounds (…) [, i.e.,] establishing that moral worthiness is the lone sufficient condition for the
status of norms as legal norms184) — nos faz correr o risco (tanto maior quanto mais complexa,
dinâmica e heterogénea for a sociedade em causa185!) de admitir uma institucionalização da
vida em comum (ou núcleos parciais desta) que identifique-confunda juízos-julgamentos
jurídicos e morais (every legal judgment is a moral judgment through and through186)… e que assim
abra portas a um casuísmo extremo (a respostas baseadas em atitudes morais, cuja justeza,
enquanto possível unique correctness, nunca poderá ser demonstrada187)…
181 Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., pp. 27-28.
182 Ibidem, p.31.
183 Ibidem Importa ter presente que o incorporacionismo robusto que Kramer privilegia como
interlocutor dos seus argumentos é menos rigorosamente o de Coleman do que uma radicalização
(construída) das possibilidades que este abre.
184 Ibidem, pp. 28, 29.
185 «Perhaps those problems can remain within manageable limits in a very small and static and
highly homogeneous social unit, where moral attitudes are widely shared…» (Ibidem, p.30).
186 Ibidem, p.28.
187 «What has been presupposed by those arguments is not the indeterminacy of moral-truth values,
but the frequent indemonstrability and attendant controversiality thereof. That is, although each moral
problem tackeld by Incorporationist officials may lend itself to a uniquely correct solution, the unique
correctness frequently cannot be demonstrated in a way that will elicit widespread agreement. Regardless of
the existence of objectively right answers, controversy will abound irrepressibly…» (Ibidem, pp.31-32).
59
188 O que significa que tal casuísmo pode também até certo ponto (mas só até certo ponto!) ser
atenuado por uma prática lograda de precedentes-exempla: cfr. neste sentido as alusões ao modicum (degree) of
(systematic) consistency que os officials tenderão a garantir (nas suas respostas) enquanto typical moral agents (Ibidem,
pp. 28-29). «Although a system (…) will leave some room for officials to pursue a certain degree of
consistency among their decisions, there are ample reasons for thinking that the consistency in practice will
be meager…» (Ibidem, p.29)
189 Ibidem, pp. 28-29.
190 Sem prejuízo do seu maior ou menor peso identificador (mínimo, como sabemos, na última etapa
de Coleman!)…
191 É certo que estas formulações sucessivas do problema (ou do núcleo de problemas) nos fazem já,
ex abrupto, participar do singular percurso autocrítico de Coleman. Sem prejuízo da atenção que estas ou
outras diferenciações justificam, creio no entanto que as exigências da presente etapa serão mais
adequadamente enfrentadas se admitirmos uma sobreposição-simplificação dos argumentos que
60
autonomizam o incorporacionismo e se admitirmos voltar esta para o exterior (numa frente que, como se
esclarece no texto, terá dois interlocutores opostos)…
192 Coleman, «Beyond Inclusive Legal Positivism», cit., pp. 360-361.
193 Estas formulações são também as preferidas por Coleman em «Beyond Inclusive Legal
Positivism», cit., pp. 385 e ss.
194 «The Architecture of Jurisprudence - I», cit., pp. 62-63, 66-67.
195 Esta última formulação (acentuando a importância das CSAs no sentido que já esclarecemos)
corresponde à evolução do discurso de Coleman a que nos temos referido: em «Beyond Inclusive Legal
Positivism», o nosso Autor renuncia efectivamente ao recurso da «rule of recognition» como afinal também à
tese da separabilidade enquanto elementos necessários para formular a central claim do incorporacionismo. Se
o faz é no entanto para expressamente reforçar a inteligibilidade social do jurídico: ver «Beyond Inclusive Legal
Positivism», cit., pp. 383 e ss. Voltaremos a este problema infra, 2.2., p. 101.
61
Acentuar quer esta convergência quer este sentido de possibilidade é, com efeito, muito
relevante, uma vez que nos permite descobrir os interlocutores exteriores, sem prejuízo das
diferenças que os separam, a partir de um inequívoco common ground e enquanto o
frequentam…— quer dizer, enquanto rejeitam a convergência em causa, mas também
enquanto reivindicam (no todo ou em parte) experiências de necessidade!
196 « [W]hat matters is (…) the content of the rule of recognition (…) [:] moral principles can be
legally binding in a jurisdiction if there is a clause in the rule of recognition to that effect [;]such a clause
might make institutional features or substantive features of moral principles decisive (…); the status (…) of
moral principles (…) as law (…) depends on their content insofar as the rule of recognition makes the
content of such norms a condition of their legality » (Ibidem, pp. 367-368).
197 Ibidem, p. 375 e nota 18.
198 Continuemos ou não a identificá-la por este nomen. Ver desde já «The Architecture of Juris-
Jurisprudence - I», cit., p. 65) a distinguir duas proposições («Only social facts determine which facts contribute
to the law having the content that it does» e «Necessarily, only social facts contribute to the law having the
content that it does…»)… e a defender a associação privilegiada do positivismo includente à segunda destas
proposições [«[W]ith the exception of Hart, I know of no inclusive legal positivist who holds that it is
necessary truth that the determinants of legal content are fixed by social facts. (…) All to my knowledge —
and certainly me in particular — introduce inclusive legal positivism as a way of characterizing positivism,
not as a necessary truth about law. Again, Hart may be the exception…» (Ibidem, pp. 66-67)] — ora isto num
confronto exemplar com a proposta de «Beyond Inclusive Legal Positivism», em cuja análise pressupõe
aproblematicamente a primeira ou uma formulação equivalente como core claim of Inclusive Legal Positivism [ILP!]
(«Necessarily social facts determine the determinants of legal content») [«Beyond Inclusive Legal Positivism»,
cit., pp. 384 e ss. ].
62
Sem prejuízo das diferenças que os separam, entenda-se, sem esquecer que o citado
common ground é defendido por cada um dos interlocutores invocando razões contrárias. O que
significa que a frente (dita) interpretativista (se não jusnaturalista!) há-de estar em condições
de sustentar que «necessariamente factos morais e sociais são determinantes do conteúdo
jurídico»… ou que pelo menos é possível que apenas factos morais contribuam para esse
conteúdo… e que a frente do positivismo excludente há-de por sua vez reivindicar que
«necessariamente apenas factos sociais são determinantes» desse mesmo conteúdo»… ou que
pelo menos é esta a possibilidade-alternativa reconhecível-experimentável nos presentes
sistemas jurídicos200.
200 Para uma reconstituição de todo este espectro de proposições ver «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., pp. 61 e ss.
201 «Beyond Inclusive Legal Positivism», cit., p. 383-384.
202 Ibidem, p. 372.
203 Raz, «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation. On the Theory of Law and Practical
Reason, Oxford. Oxford University Press, 2009, pp. 91 e ss., 99-102 («Law as the authororitative voice of a
political community»).
204 Veremos em breve qual!
63
some legal effect (…), [constitutional or statutory] (…) references (…) to morality or moral rights (…) do
not make those standards part of the law205)…
205 Raz, «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., p. 193.
206 «U.K. and U.S. statutes give legal effect to company regulations, to university statutes, and to
many other standards without making them part of the law of the United Kingdom or the United States.
Conflict-of-law doctrines give effect to foreign law without making it part of the law of the land. Such
references make the application of the standards referred to legally required, and rights and duties according
to law include thereafter rights and duties determined by those standards. But they do not make those
standards part of the law. They no more become part of the law of the land than do legally binding contracts,
which are also binding according to law and change people’s rights and duties without being themselves part
of the law of the land…» (Ibidem, pp. 193-194).
207 Leslie Green especifica este argumento de Raz acrescentando dois warrants importantes (ambos
de inspiração hartiana): os standards, embora indiscutivelmente vinculantes, não constituiriam autêntico direito
vigente, por um lado, porque não estariam sujeitos às regras secundárias de transformação vigentes na referida
ordem jurídica, por outro lado, porque não estariam sujeitos ao poder criativo dos orgãos judiciais (a uma
autêntica insterstitial discritionarity). «A conflict-of-laws rule may direct a Canadian judge to apply Mexican law
in a Canadian case. The conflicts rule is obviously part of the Canadian legal system. But the rule of Mexican law
is not, for although Canadian officials can decide whether or not to apply it, they can neither change it nor
repeal it, and best explanation for its existence and content makes no reference to Canadian society or its
political system. In like manner, moral standards, logic, mathematics, principles of statistical inference, or
English grammar, though all properly applied in cases, are not themselves the law, for legal organs have
applicative but not creative power over them…» (Green, «Legal Positivism», http://plato.stanford.
edu/entries/legal-positivism/, sec. 3). Cfr. também o comentário de Postema, Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Common Law World, cit., pp. 471-472.
208 Coleman, The Practice of Principle, cit., pp. 106-108.
64
a relação factos normativos /direito vigente (entenda-se, para discutir as fronteiras de relevância
que circunscrevem os primeiros ou o seu contributo para o conteúdo do segundo).
Bastando-nos aqui lembrar que, em coerência com a opção justificada por esta versão suave
— mas também dando uma atenção especialíssima ao lugar paralelo da experiência
consuetudinária, enquanto experiência indiscutivelmente constitutiva de um autêntico
direito vigente, nem por isso menos associada a uma emergência prático-social imanente,
livre enquanto tal da sujeição a transformações autoritariamente abruptas e deliberadas (few
if any legal theories deny that customary norms have the status of full-fledged laws when they are as such
invoked by judges209) —, a relação se concentra no problema da resolução dos casos difíceis e na
exigência de partir da perspectiva destes (levada a sério com um mínimo de regularidade-
-unidade210) para identificar as «propriedades» dos princípios incorporados (contrasting the
properties of grammatical rules or diction rules, clubs’ rules or foreign laws with the properties of moral
principles)211. Trata-se, com efeito, de reconhecer que os standards em causa estarão
disponíveis para ser incorporados como autêntico direito vigente (e não apenas como
critérios tornados juridicamente vinculantes) se conjugarem (se responderem
afirmativamente, em simultâneo, a) duas exigências (cada uma delas necessária, mas, por si
só, insuficiente): terão por lado que corresponder a uma índole normativo-realizadora, que,
numa lógica de fundamentação, os torne referências normativas directas da resolução dos
casos difíceis (decision-justifying standards) — o que os distingue, desde logo, das citadas regras
gramaticais ou de dicção (the facts that judges rely on the free-floating rules of grammar and diction does
not mean that those rules are legal norms212) —, terão por outro lado que aparecer ao official que
os incorpora livres de uma origem institucional autoritária (mais ou menos centralizada) e
da possibilidade de transformação contingentemente heterónoma que procedimentalmente,
em termos mais prescritivos ou mais consensuais, lhe esteja por assim dizer associada (free-
floating standards) — o que os distingue agora tanto dos estatutos das associações ou dos
clubes quanto dos critérios autoritário-prescritivos que integram ordenamentos
espacialmente concorrentes (in their substance, such rules and foreign laws do indeed lie entirely within
the deliberate control of people other than the officials of the legal regime L213) . Conjugação decerto
discutível e que (na actual experiência de pluralismo de ordenamentos jurídicos) deixa
1.2. A discussão do continuum com a moralidade não pode porém ficar por aqui,
ignorando o que (sempre com Waluchow) poderemos dizer uma tese de separação no plano
da «identificação» do conteúdo . É certo que o percurso anterior, ao tematizar o eixo da
inclusão — ao considerar o sentido das «estratégias» discursivas dos positivistas includentes (e
sobretudo dos incorporacionistas!), tanto na sua gradação/diferenciação internas [1.1.1.]
quanto na sua projecção exterior [1.1.2.] —, nos basta porventura para perceber o
overlapping consensus que as vozes do positivismo excludente constróem, não só enquanto
sustentam a projecção categorial da necessidade da separação mas também e muito
especialmente enquanto rejeitam a possibilidade de tratar exigências morais, na auto-
subsistência das razões que estas oferecem, como autênticos princípios jurídicos (moral
principles cannot enter into the law (…), [cannot] become elements of the law / necessarily, moral
214 Ver Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 472 e ss.
215 Kramer, When Law And Morality Meet, cit., p. 41.
216 Ibidem, pp.41-42.
66
principles are extra-legal, never to be counted among the propositions of law217). Para perceber o
significado desta tese de separação (libertando-a de equívocos fáceis) importa no entanto
frequentar um pouco mais este território. No fundamental (sem prejuízo de outros temas
possíveis), eu diria que importará esclarecer em que termos (e até que ponto) é que a
rejeição da incorporação, alimentada por uma tese de fontes sociais no seu sentido mais forte
(as a strong social thesis or sources thesis218), nos pemite continuar a considerar o binómio
continuum com as instituições sociais / continuum com a moralidade. Rejeitar a incorporação não
significa aqui, com efeito, ter que optar pelo primeiro termo da alternativa e romper com o
segundo (como à primeira vista se poderia pensar!), significa antes (sem qualquer paradoxo)
estar em condições de pretender-exigir, com um sentido embora de possibilidade-contingência
— tal como acontece de resto com o incorporacionismo (ainda que por razões e com
resultados distintos) —, uma autêntica solução de equilíbrio (uma solução que convoque em
simultâneo os dois pólos e que apazigue as suas tensões). Também aqui o caminho está longe
de ser único ou traçado num único plano.
respectivamente por Kramer e Postema (When Law And Morality Meet, cit., p. 5, Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Common Law World, cit., pp. 358-359).
218 Para um confronto das teses forte e fraca da teoria das fontes (enquanto proposta de trabalho para
o seminário!), veja-se evidentemente Raz, The Authority of Law, second ed., Oxford/New York, Oxford
University Press, 2009, pp. 45 e ss. («Sources of Law») [«The difference between the weak and the strong
social thesis is that the strong one insists, whereas the weak one does not, that the existence and content of
every law is fully determined by social sources (…). I shall rename the strong social thesis “the sources thesis”
(…). A law has a source if its contents and existence can be determined without using moral arguments (but
allowing for arguments about people’s moral views and intentions, whicha are necessary for interpretation,
for example). The sources of a law are those facts by virtue of which it is valid and which identify its
content…» (Ibidem, pp. 46, 47-48)]. Vejam-se também os argumentos com que Waluchow (reconstituindo
criticamente o authority argument) se distancia desta strong thesis, aproximando-se do que Raz diz uma weak thesis
(concentrada exclusivamente nas condições da institucionalidade e da eficácia, estas compatíveis com uma
identificação da validade-vigência do direito baseada em argumentos morais): Waluchow, Inclusive Legal
Positivism, cit., pp. 82 e ss., 123-141. A propósito da tese das fontes, acrescente-se que Raz sistematiza o
debate que nos ocupa (o confronto positivismo excludente/positivismo includente/interpretativismo não positivista),
recriando um contraponto claríssimo entre três teses (the sources thesis: all law is source-based/ the incorporation thesis
: all law is either source-based or entailed by source-based law/ the coherence thesis: the law consists of source-based law together
with the morally soundest justification of source-based law): neste sentido ver «Authority, Law and Morality», Ethics in
the Public Domain, Oxford, Clarendon Press, 1994, pp. 210 e ss., 221-226 («The Coherence Thesis»), 226-230
(«The Incorporation Thesis»), 230-235 («The Sources Thesis»).
67
219A formulação deve-se (et pour cause!) ao inclusivista Waluchow: «Legal Positivism, Inclusive versus
Exclusive», cit., início da seccão 3. («Inclusive and Exclusive Positivism»).
220 Distinção a que apenas aludimos supra.
221 Tom Campbell, Prescriptive Legal Positivism: Law Rights and Democracy, London, Cavendish
Publishing, 2004, p. 248; Jeremy Waldron, «Normative (or Ethical) Positivism», in Coleman (ed.), Hart’s
Postscript, cit., pp.412, 431-433 (VIII) [ver especialmente as notas 7 e 66].
222 Basta recordar a primeira secção do Postscript («The Nature of Legal Theory»), The Concept of Law,
cit., pp. 239-244 [«My account is descriptive in that it is morally neutral and has no justificatory aims…»
(Ibidem, p.240)]. Vejam-se no entanto as discussões de Waldron (relativizando esta pureza com uma
reinterpretação da proposta de Hart) [«Normative (or Ethical) Positivism», cit., pp. 428-431 (VII)] e de
Postema (mostrando a compossibilidade da exigência descritiva do autor de The Concept of Law com a intenção
«prático-crítica» do seu positivismo, no seu compromisso político-moral com a individual freedom) [Legal
Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 336-340]. Sem esquecer o importante estudo
de Stephen Perry (outro conhecido normative positivist), intitulado precisamente «Hart’s Methodological
Positivism», in Coleman (ed.), Hart’s Postscript, cit., pp. 311 e ss (estudo que se propõe mostrar-nos que a
teoria do direito de Hart «não é moralmente neutra», embora o seu «compromisso com o positivismo
metodológico» o impeça de ir mais longe na compreensão da normatividade associada à juridicidade).
223Veja-se a discussão de «Negative and Positive Positivism» proposta por Waldron em «Normative
(or Ethical) Positivism», cit., pp. 413 e ss. Sem esquecer a esclarecedora discussão da normative jurisprudence em
geral (e de Stephen Perry em particular) proposta por Coleman em «Normativity and Naturalism», The Practice
of Principle, cit., 175-208. «If Perry’s arguments fail to capture the actual arguments that underwrite Hart’s
commitments to these salient features of law — its commitment to rules, the internal point of view, and the
guidance function — they cannot support a claim for a more general normative jurisprudence …» (Ibidem, p.
207).
68
224É a proposta de Tom Campbell: para além da obra citada (na qual a designação oscila entre ethical
e prescriptive legal positivism), ver também The Legal Theory of Ethical Positivism, Aldershot, Dartmouth, 1996,
passim (esta fiel ao primeiro rótulo). «Although I now tend to use the term “prescriptive legal positivism”
(and sometimes, to distinguish it from the authoritarian Hobbesian tradition, “democratic positivism”),
instead of “ethical positivism”, this is a loss insofar as the label “ethical positivism” helps to bring out an
important aspect of the theory, namely the thesis that a legal system conforming to the ideals of prescriptive
legal positivism cannot operate without ethical practices governing the behaviour of those who administer
and those who are subject to the system…» (Prescriptive Legal Positivism, cit., p. 11).
225 Reconhecendo embora a possibilidade de confusão com a noção de positivismo normativo (por
contraponto com um positivismo empírico), é esta a designação preferida por Waldron: «Unfortunately (…), that
term has also been used in recent years to describe a different thesis—namely, the version of legal positivism
that identifies law with norms (as opposed to brute facts about power, commands, and sanctions). On this
account, the theories of H. L. A. Hart and Hans Kelsen qualify as versions of normative positivism even if
they are not in themselves normative positions. (…) The term “ethical” seems [however] unsatisfactory to me
(…) In this paper I shall mostly use the label “normative positivism”, despite the possibility of confusion…»
[«Normative (or Ethical) Positivism», cit., pp. 411-412].
226 Postema confere ao contraponto normative / conceptual um sentido significativamnte mais amplo,
compossível com divisões tanto no território positivista —no qual este nasceu (precisamente como um
contraponto entre normative positivism e methodologically analytic positivism) quanto no território não positivista
[«The methodological distinction cuts across the entire jurisprudential spectrum, since one can imagine
strictly conceptual arguments for a conception of law along natural-law lines as well as a normative argument
for a strictly positivist conception of law…» (Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law
World, cit., p. 338)]. Ver também ibidem, pp. 565-575 (a propósito da normative jurisprudence de Waldron).
227 Ver muito especialmente Waldron, «Normative (or Ethical) Positivism», cit., pp. 419-422 (IV). A
(«Democratic Aspects of Ethical Positivism») e Postema, ob. cit., pp. 566 e ss. (caracterizando o pensamento
de Waldron).
69
cognitivismo pudesse por inteiro justificar). Antes razões morais ou de moralidade política229
(alimentadas por expectativas sociais e corroboradas por outros tantos efeitos). Aquelas que
(para o dizermos com Waldron) nos revelam tal tese como nuclearmente boa (a good thing), se
não «indispensável» (something to be valued and encouraged)230…
O que para Waldron significa frequentar um espaço lógico intermédio (a little bit of in-
-between)… e então e assim (uma vez mais sem paradoxo!) admitir que se possa partir da
condição-diagnóstico de um positivismo negativo e da sua ordem de possibilidade-contingência
— um diagnóstico que Coleman assume (constrói de toutes pièces) como uma condição de
inteligibilidade da opção includente… —… para, em alternativa, prescrever regulativo-
pragmaticamente (as a matter of normative pragmatics) um positivismo excludente autêntico (normative
positivism assumes negative positivism and prescribes exclusive positivism)! Como se se tratasse afinal
de reconhecer que não é categorialmente impossível admitir que alguns «juízos jurídicos»
dependam da «verdade» (do mérito material) de determinados juízos morais (aqui teríamos o
core claim do positivismo negativo), sustentando de imediato (com um rigor implacável) que
os únicos moral judgments ou affirmative values de que podem depender os juízos jurídicos são
no entanto afinal… aqueles (e apenas aqueles) que as teses excludentes — e muito
especialmente a tese da separação — estão em condições de garantir, de desencadear ou de
favorecer (normative positivism might therefore be read as a position that condemns the inclusive possibility
that negative positivism leaves space for)231. Não sendo outra de resto a opção justificada por Tom
Campbell (the nature of ethical positivism is prescriptive hard positivism232)233 quando defende que,
contra as abordagens analíticas tradicionais ([the] old style analytical theory), importará tratar a
concepção positivista sempre como uma inequívoca «teoria ética e normativa»: o que significa
reconhecer a «preferência», que tal teoria «exprime», por um certo «tipo de sistema
jurídico»… mas então também defender que este será invariavelmente um sistema de regras
gerais — regras que, por sua vez, hão-de poder ser univocamente «identificadas» e
«aplicadas», sem que nessa «identificação» e «aplicação» se recorra (ou se torne indispensável
recorrer), constitutivamente, a juízos morais controvertidos (a system where (…) there is a set of fairly
specific general rules that can be identified and applied without recourse to contentious moral or other
229 Incluindo-se nesta também uma certa role morality (a call for ethical conduct on the part of participants in
their various roles), distinta da personal morality: «I call this theory “ethical positivism” partly because the
positivism in question is justified by a political morality and not by pure conceptual analysis, but also because
the theory requires ethical practitioners, particularly ethical judges and lawyers, to make it work…»
(Campbell, Prescriptive Legal Positivism: Law Rights and Democracy, cit., p. 114).
230 Waldron, «Normative (or Ethical) Positivism», cit., p. 411.
231 Ibidem, pp. 413-414 (II).
232 Campbell, Prescriptive Legal Positivism, cit., p. 28.
233 «Ethical positivism presupposes soft positivism, holding that a legal system, with conceptual
propriety, may or may not incorporate morality within its rule of recognition, but this claim is ancillary to its
main contention that a legal system ought not to include moral criteria in the authoritative list of sources of
law. This is a prescriptive, not an analytical nor descriptive, form of hard or exclusive positivism…» (Ibidem, p.
26).
70
speculative matters, a system that is possible for citizens to understand and follow (…) and judges to apply
without recourse to controversial first-order moral judgments234).
1.2.3. Um plano de novo globalmente partilhado, mas muito mais específico do que
o primeiro (decerto porque reconhecemos nele a Hart’s agenda e a sua concepção da tese da
discricionariedade, com a rejeição inequívoca do formalismo normativista), é aquele em que a
compossibilidade do continuum com a moralidade e da tese da separação — esta última
directamente concentrada na rejeição (sem concessões) da possibilidade da inclusão-
-incorporação (moral considerations are never among the existence or validity conditions of law235) — nos
aparece justificada pela perspectiva da realização em concreto, se não mesmo pelo
problema da resposta aos casos difíceis. A exploração mais eloquente desta compossibilidade,
acompanhada pelo entendimento de que não há uma racionalidade jurídica que se possa dizer
autónoma236 — pelo menos enquanto discurso «conforme ao direito» (conforme às fontes
sociais) dirigido à resolução de casos237— , é certamente aquela que devemos a Raz.
that legal reasoning is autonomous… » [Raz, «Postema on Law’s Autonomy», Between Authority and
Interpretation, cit., pp. 376, 379]. Importa no entanto acrescentar que esta rejeição da tese forte da autonomia do
legal reasoning não impede Raz de reconhecer um domínio limitado de emergência de razões de coerência
dogmática (ditas artificial reasons), as quais intervirão sempre que não seja possível encontrar razões morais
(«naturais») para decidir entre duas alternativas; para um desenvolvimento desta especificação, ver sobretudo
«On the Authonomy of Legal Reasoning», Ethics in the Public Domain, cit., pp. 326 e ss., 335-340 (V). «Legal
doctrines are justified only if they are morally justified, and they should be followed only if it is morally right
to follow them (…). When morality runs out, however (…), legal doctrine takes on a life of its own. There it
is quite properly independent of (…) moral considerations. Within these bounds legal reasoning is
autonomous. How extensive this autonomy is depends on the extent to which morality runs out and leaves
the courts faced with incommensurate options…» (Ibidem, p. 340).
237 Nesta afirmação vai pressuposta uma distinção entre dois níveis ou dois aspectos do discurso
jurídico e (ou) entre os juízos conclusivos a que conduzem: (a) o primeiro (reasoning about law, reasoning to law)
ocupado em estabelecer o conteúdo do direito vigente, se não em abstracto (o que dificilmente poderá
acontecer com os precedents), pelo menos sem a preocupação condutora de responder a um caso-problema
(reasoning about what the law is, reasoning to the conclusion that the content of law is such and such, reasoning whose sole
premises are that the law is such and such and whose (…) conclusions merely state the content of existing law ); (b) o segundo
(reasoning according to law) preocupado em determinar respostas para problemas juridicamente relevantes e
muito especialmente para controvérsias concretas, nesta última acentuação sobretudo enquanto judicial
reasoning (reasoning about how legal disputes should be settled according to law, reasoning to conclusions which entail that,
according to law, if a matter were before a court, the court should decide thus and so[,] (…) or that since it is before the court this
how it should be decided ) [«Postema on Law’s Autonomy», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 376-379
(«The Autonomy of Legal Reasoning»); ver também «On the Autonomy of Legal Reasoning», Ethics in Publiuc
domain, pp. 310 e ss ]. Esta distinção é da maior relevância, já que, segundo Raz, só o primeiro aspecto da legal
reasoning, através precisamente da sources thesis e da identificação do direito que esta defende, se pode dizer
autónomo, quer dizer, obtido sem recurso à moral reasoning (sendo certo que a autonomia em que participa diz
menos respeito ao legal reasoning enquanto tal do que ao próprio direito) [«Understood in that sense (…) the
thesis is an aspect of the thesis of the autonomy of law…» («Postema on Law’s Autonomy»,cit., p.377)].
Correspondendo o reasoning according to law a um processo discursivo não autónomo, porque nuclearmente
interpretativo (o que para Raz significa reconhecer um recurso permante a considerações morais!), nada nos impede
no entanto de acentuar que ele integra, como etapa indispensável do seu iter, um momento de mobilização
71
cognitiva das fontes (correspondente ao reasoning about law, entenda-se, a um establishing what has been done by the
authorities). Acentuar isto é, com efeito, darmo-nos conta de que as fronteiras da determinação autónoma do
direito vigente são ultrapassadas… sempre que o intérprete-julgador experimenta um problema de
indeterminação deste direito ou sempre que se confronta com a possibilidade institucional de o transformar.
Segundo Raz, tais problemas e as opções correspondentes não podem ser resolvidos com source-based norms…
mas apenas com o recurso a standards e princípios extra-jurídicos, devendo enquanto tal dizer-se a matter of
morality! Para uma reconstituição criticamente atenta desta proposta (acentuando justamente a sua
impossibilidade de desenvolver uma autêntica reflexão metodológica, bem como a «insatisfação» que resulta
da sua desconsideração dos princípios jurídicos e do seu intra-systemic role), veja-se Postema, Legal Philosophy in
the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 377-388. Sem esquecer o texto do mesmo Postema que
sucitou a esclarecedora resposta de Raz: «Law’s Autonomy and Public Practical Reason», in Robert George
(ed.), The Autonomy of Law, cit., pp. 79 e ss.
238 «Postema on Law’s Autonomy», Between Authority and Interpretation, cit., p. 378.
239 Ibidem.
240 «On The Autonomy of Legal Reasoning», Ethics in Public Domain, cit., p. 340. Sem prejuízo da
the conservative and the innovatory factors in legal interpretation)244, não deixa também de, muito
especialmente, atender aos diversos equilíbrios entre rotina(s) e inovação (continuidade e
mudança, identificação e transformação do direito vigente245) proporcionados pelos
diferentes enquadramentos institucionais — com o exemplo-limite da liberdade trans-
formadora (as a power to alter) a ser atribuído aos «tribunais superiores» dos common-law legal
systems (e à sua, em princípio ilimitada, possibilidade de optar entre following, distinguishing or
overruling established law, mesmo quando este último direito se nos imponha autoritariamente
com um sentido preciso e determinado)246.
and use other devices to ensure that the law as applied to the case is not unjust. Therefore, in such countries,
all judicial decisions rely on at least one additional premise — ie that there is nothing in the situation that
would justify modifying the law, or its application to the case, by this court on this occasion…» [«Postema on
Law’s Autonomy», Between Authority and Interpretation, cit., p. 377].
247 «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 183-190 («Even Judges are
Humans»).
248Importa ter presente que as second-order reasons (que o direito especificamente mobiliza) se nos
impõem como reasons to act for a reason (positive second order reasons) ou reasons to refrain from acting for a reason
(exclusionary reasons); a autoridade indissociável da experiência do direito caracteriza-se por sua vez como ability
to change reasons, o que significa que a sua forma de normatividade se baseia em decisões que enquanto reasons
for action se mostram capazes de substituir (replace, preempt) «algumas das razões» que com ela se conexionam
(the preemption thesis). É este, como se sabe, um dos principais recursos analíticos propostos por The Authority of
Law, cit., pp. 3 e ss. («Legitimate Authority») [ver especialmente pp.16-19 («Normative Power») ], 53 e ss.
(«Legal Reasons, Sources and Gaps»), 78 e ss. («The Institutional Nature of Law»), 210 e ss.(«The Rule of Law
and its Virtue»).
249 «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 183-4.
73
moral considerations apply to people and, in doing so, advances (…) moral concerns rather than undermine
them250), com os standards morais a tornarem-se no todo ou em parte vinculantes… não
enquanto tais (pelo conteúdo que auto-subsistentemente os distinga), mas porque, por
referência a fontes sociais autoritárias (e às rules que estas constituem), podem ser efectivamente
identificados como jurídicos (made (…) into a law of the relevant legal system 251)… e de tal modo
que aquele conteúdo passe a depender integralmente dos non-evaluative matters of fact que
correspondem a estas fontes (law modifies morality by making the realization of ideals possible252,
moral standards may be binding as law, though only in virtue of beeing identified by their social source253);
(b) a segunda possibilidade é, em contrapartida, a de standards que, embora
vinculantes (tornados vinculantes) pelas práticas juridicamente institucionalizadas — e por
força do carácter social destas, se não de um fenómeno explícito ou implícito de reenvio
(determinado por prescrições legislativas ou precedentes judiciais) — , preservam no
entanto o seu carácter originário, sem serem incorporados no direito vigente254 (standards merely
enforceable according to law (…), [i.e.,] binding according to law but not themselves part of the law255);
(c) a terceira possibilidade é, enfim, a de standards morais que, não sendo
incorporados no corpus juris, também não se oferecem como vinculantes, sendo mobilizados
pela discretion dos julgadores (moral standards may be nonbinding, and enter into legal argument as
discretionary standards256), por um lado para superar os limites, as insuficiências (de extensão e
intensão) das legal rules, por outro lado (ainda que muitas vezes sem soluções de
continuidade), para orientar a tomada de decisão destes julgadores (enquanto law makers)
relativamente a posíveis transformações do direito vigente (reasoning according to law to a
practical conclusion will be shaped both by the law’s authoritative directives and often, by moral
considerations that are not among the law’s valid norms257).
cit., p. 107.
257 Para o dizermos com Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit.,
p. 462.
258 «Introduction», Between Authority and Interpretation, cit., p. 4, nota 2.
74
identification of law never requires the use of moral arguments or judgements about its merit 259) com a
afirmação (trivial embora260) de que há relações necessárias entre juridicidade e moralidade (there
can be no doubt that there are necessary connections between law and morality261, there are conceptually
necessary connections between law and morality which no legal positivist has any reason to deny 262), só que
agora muito significativamente tematizada como dimensão integrante da própria
compreensão do jurídico: não só nem principalmente como um elemento relacional que
possamos descobrir numa determinação possível do conceito de direito — determinação esta
que, mesmo quando preserva (como deve) o carácter não reflexivo deste conceito263, só pode
aspirar a um tratamento contingente ou paroquial, «culturalmente» condicionado, da
264
experiência da juridicidade (the concept of law is itself a product of a specific culture )! —, antes
como uma pretensão de inteligibilidade que importa reconhecer indissociável da própria
«natureza» do jurídico (a claim about the nature of all law, and of all legal systems, and about the nature
of adjudication, legislation, and legal reasoning, wherever they may be, and wherever they might be265) — e
que como tal se torna acessível ao esforço de uma teoria do direito «universal», capaz de por
isso mesmo se dizer allgemeine (general theory of law)266. Bastar-nos-ão aqui duas alusões, a
convocar duas concepções maiores: a de Raz decerto (numa sequência directa com as
considerações anteriores… e com este sentido da natureza do direito267), mas também a de
Shapiro.
259 «The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism», in George Pavlakos
(ed), Law, Rights and Discourse: The Legal Philosophy of Robert Alexy (Hart Publishing, 2007), pp. 17 e ss., cit. na
versão on line disponibilizada em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=999873 (extraído em
Junho 2012), p. 5.
260 Porque partilhada com distintas comprensões da juridicidade (a começar pelas jusnaturalistas),
não lhe podendo desse modo ser atribuído um carácter demarcador: «About Morality and the Nature of Law»,
Between Authority and Interpretation, cit., p. 168.
261 Ibidem.
262 «The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism», cit., p.4.
263 «[T]ne concept of law is not reflexive, ie, it applies to social practices in societies ,where the
concept itself is either used nor known…» («On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.
99).
264 Ibidem, p.95
265 Ibidem, p.99
266 Ibidem, pp. 31, 41 e ss, 91-96.
267 Este contraponto conceito/natureza é detidamente explorado em três comunicações recentes [«Can
There be a Theory of Law?», «Two Views of the Nature of the Theory of Law…», «On the Nature of Law»],
com as quais (não certamente por acaso) se inicia Between Authority and Interpretation, cit., pp. 17-125.
75
se abrem diversas instâncias de não exclusão (só assim devendo ser entendidas as aparentes
oportunidades de incorporação!)268 —… e se em simultâneo reconhecermos, por outro lado,
sem qualquer paradoxo, que tais juízes «não estariam sujeitos ao direito se não estivessem
sujeitos à moralidade»269. A natureza do direito que assim universalmente nos interpela é
decerto a de uma estrutura de autoridade: estrutura que é responsável por um «sistema de
normas, standards e doutrinas» e que se nos oferece simultanea e circularmentemente
constituída por este270 — na mesma medida em que impõe um conteúdo auto-
subsistentemente identificável, um conteúdo que para ser identificado não precisa de
recorrer à argumentação moral (sources thesis), nem sequer a uma representação dos
problemas e das razões que as suas específicas razões de segunda ordem substituíram (the
271
preemption thesis) ; estrutura que se distingue no entanto (et pour cause)272 por uma pretensão
de legitimidade e por esta indissociada da representação de uma tarefa moral (law, by its nature,
is an institution with a moral task to perform273).
É de uma tal conjugação (levada a sério como uma articulação irredutível) que
resulta a atribuição ao jurídico de uma capacity to claim, bem como a identidade da pretensão
correlativa (the law claims for itself moral force), na qual o núcleo autoridade aparece associado
a uma exigência moral de legitimidade (as a claim to legitimate authority, que se diz tanto to moral
authority quanto to moral legitimacy), justificando esta, por sua vez, a pretensão de «tratar os
deveres jurídicos» (legal obligations) como «autênticos deveres (morais)» (real moral obligations),
deveres que assim emergem (arising out) do próprio direito (no system is a system of law unless it
includes a claim of legitimacy, of moral authority)274.
A chave para compreender a especificidade desta abordagem (evitando
reconstituições equivocadas) está de resto no uso rigoroso do termo claim (Raz uses the word
‘claim’ advisedly, intending to invoke at least part of its literal meaning275).
268 «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 195-198 («So-called incorpora-
preemption thesis a uma autêntica tese de separação ou mesmo de separabilidade: «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., pp.44 e ss. («The truth about positivism and the separability thesis»). «[T]he
conventional understanding is that exclusive legal positivism is the natural and correct way of giving
expression to the separability thesis. This is a natural mistake but a deep one. The Razian version of exclusive
legal positivism is not a way of giving expression to the separability thesis for it derives from rejecting the
separability thesis…» (Ibidem, p.52, itálicos nossos).
273 Raz, «About Morality and the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p. 177.
274 «Hart on Moral Rights and Legal Duties», apud Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century:
276 Raz, The Authority of Law, cit., pp. 16 e ss. («Normative Power»).
277 A formulação, reconstituindo o pensamento de Raz, deve-se a Coleman, «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., p.51.
278 «About Morality and the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p. 178.
279 «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.112
280 Ibidem.
281 Ibidem, p. 103.
282 Ver exemplarmente «The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism, cit,
passim. «There is (…) nothing in [Alexy’s] (…) argument (…) to show that the concept of law includes moral
elements. It only shows that the law includes such elements, ie that the law can include a norm that grossly
unjust laws are invalid, if, for example, the legislature passes a statute to that effect. On that assumption,
consistent with everything in the argument, the concept of law needs include nothing but that the law is
whatever the legislature legislates. (…). Law claims to have legitimate authority, in the sense that legal
institutions both act as if they have such authority, and articulate the view that they have it. This is, of course,
a moral claim but it is not a claim to moral correctness. It is in the very nature of authoritative rules that they
are binding even if not correct. So authorities (police, courts, administrative agencies) can be aware both that
the rules they apply are morally wrong, and that they are morally binding on them and on their subjects. Of
course, if they have power (whether legally sanctioned power or not) to change them or to refrain from
applying them they may have to do so. But that is not always the case, and when it is such actions are not
77
always authorised by law, hence it is not true that the law makes a claim to moral correctness…» (Ibidem, pp.
14, 12).
283 «Claiming moral authority is not the same as having moral authority. A claim, for Raz, has to be
capable of being true or false…» (Gardner, «How Law Claims, What Law Claims», cit., p.2).
284 Acentuando justamente este ponto e conferindo um sentido possível à tese da separação (ao
contrário do que acontece com Coleman) — o que é afinal situar o problema do debate positivismo
incorporacionista/ positivismo excludente no seu plano mais rigoroso —, veja-se Kramer, In Defense of Legal
Positivism, cit., pp.197-198.
285Raz, «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.116
286 A formulação é de Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p.
350. Segundo Postema as duas acentuações oponentes correspondem a processos contrários (nem por isso
menos eloquentemente articulados) de «fortalecimento» e de «enfraquecimento» do positivismo de Hart.
287 A formulação, particularmente feliz (embora menos preocupada em reconstituir a coerência do
discurso de Raz!), deve-se a Coleman: « The Architecture of Jurisprudence - I», cit., p. 53.
288 «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp.99-106
289 Raz conclui precisamente que uma abordagem do direito que considere apenas o aspecto
conferido pela modernidade, com a sua ênfase na experiência regulativa da legislação (law as a means of social
regulation by deliberate design with the purpose of securing certain desired goals): ibidem, pp.99-100.
78
conform to reason, that is to make it more likely that they will, given good will, conduct themselves as reason
requires291) , a esta cabe-lhe, em contrapartida, mostrar esta autoridade e os seus standards
como elementos integrantes de uma determinada comunidade política, uma «comunidade
capaz de uma acção independente» (in the context of a political community standards are the
standards of the community because they stand in certain relations to the political organs of the
community292) — se não com ela plenamente identificados, pelo menos a reconhecerem na
aspiração de identificação algo de intrinsecamente valioso (law as an object for identification, as
playing an important role in people’s sense of who they are293).
291 «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.112.
292 Ibidem, pp.102-103.
293 Ibidem, p.106.
294 Shapiro, Legality, Oxford Mass., Belknap Press of Harvard University Press 2011, pp. 186-188
(«The Legal Point of View» ). «The legal point of view asserts that the norms of the legal system are legitimate
and binding and hence that moral questions are to be answered on the basis of those norms. (.…). The legal
point of view always purports to represent the moral point of view even when it fails to do so…» (Ibidem, 186,
187)
295 Shapiro, «Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», Ratio Juris, vol.22 nº 3, p. 329.
«If legal activity is planning activity, then it is intuitive to think that ordinary laws are plans. Moreover, the
fundamental laws of a legal system, i.e., its constitution, are best understood as plans as well. They are plans
for planning. They regulate the process of law creation and application…» (Ibidem, p. 333). Para um
desenvolvimento, ver Legality, cit., pp. 118 e ss. («How to do Things with Plans»), 195 e ss. («The Planning
Thesis», «The Path of Law»).
79
296 O contributo mais original está porventura no modo como logradamente capta a dimensão
temporal , projectando-a tanto na relação entre os planos (e planos de planos) e na estrutura complexa que estes
geram (nested structure) quanto na incompletude (partiallity) e indeterminação (indeterminacy) destes — o que
corresponde a uma compreensão especialmente atenta do que diz a incremental feature of legal regulation. Ver a
síntese proposta em « Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», cit., pp. 329-333 e o
contributo indispensável de Legality,cit., pp.120-122, 277-279, 345-352.
297 Ibidem, pp. 276-277. « I think that the planning theory is at least Hartian in spirit, if not in
when the pedigreed norms run out (…), the social planning that the law provides runs out as well. The fact
that judges routinely rely on moral considerations in such instances simply indicate that they are engaged in
further social planning…» (Ibidem, p. 276). «The legal requirement that judges look to morality to resolve (…)
[hard] cases is a mandate to engage in further social planning. The pedigree-less norms that they eventually
apply, then, must be understood as the creation of a new plan/law, not the finding of an old plan/law. For if
the old plan/law could only be found through moral reasoning, there would be absolutely no point in having
such plan/law…» («Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», cit., p. 334, também assim em
Legality,cit., pp. 276-277).
300 Shapiro, «On Hart’s Way Out», in Coleman, Hart’s Postscript, cit., pp. 186-191.
301 «Someone is motivationally guided by a legal rule when his or her conformity is motivated by the
fact that the rule regulates the conduct in question.(…)A person is epistemically guided by a legal rule when he
learns of his legal obligations from the rule provided by authority and conforms to the rule » (Ibidem, p.173,
itálicos meus).
302 Shapiro, «Law, Morality, and the Guidance of Conduct», Legal Theory, vol.6, p. 129, apud Cindy
L. Phillips, «Rescuing Inclusive Legal Positivism from the Charge of Inconsistency» (2011), Philosophy Theses.
Paper 81, http://digitalarchive.gsu.edu/philosophy_theses/81 (extraído em Agosto de 2012), p. 24 (excerto
também reproduzido em Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., p. 61).
303 Como o próprio Coleman esclarecedoramente acentua (ao reconstuir o argumento de Shapiro)
[“Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis»,, cit., pp.142 e ss.], a incorporationist
rule of recognition, sempre que faz referência a princípios morais auto-subsistentes, identifica como direito uma
regra cujo conteúdo é (apenas) «age moralmente» (quando muito, «guia a tua conduta por regras morais»). Se
admitirmos que a rule of recognition, por si só, já nos impele a «agir moralmente» (one is, after all, already moved to
act morally by the rule of recognition), poderemos perceber que a segunda regra (the rule «act morally»), não
acrescentando nada de significativamente prático à regra que a identifica, não preencha a condição da diferença
que Shapiro entende indispensável para podermos falar de regras de direito (legal rules must in principle be capable of
making a practical difference). Ora se a regra identificada não é uma regra de direito, também o não será a regra de
reconhecimento que a identifica (thus, the classic incorporationist “rule of recognition” cannot, in the end, be a rule of
recognition at all) [Ibidem, p. 143]. Igualmente esclarecedora é a síntese do mesmo argumento, agora
reconstituída por outros dos visados (precisamente Kramer!): «Because moral principles incorporated into the
law will never lead to conclusions other than those dictated by the Rule of Recognition under which the
80
[a]… há por um lado que garantir a chamada logic of planning (LOP), a saber que a
identificação desse direito (da sua «existência» ou do seu «conteúdo») não possa ser
determinada por uma «deliberação que tematize os méritos correspondentes»304 (moral rules
validated by an inclusive rule of recognition cannot be action guiding in the manner in which legal rules are
supposed to be action guiding305) ou que, ao consultar princípios morais, mobilize as first-order reasons
que as source-based rules se propuseram substituir306 (after all, the point of having plans is to obviate
the need for deliberation on the merits307, deliberation on the merits would violate the logic of planning because
it would unsettle precisely what the plan aims to settle308, the judge will not be treating the rule as a
peremptory reason for action, given that her compliance is conditional on her judgment about the moral
appropriateness of following the rule309)…
[b]… mas há também por outro lado que perceber que a planificação oferecida pelo
direito não é uma qualquer (the aim of the law is not planning for planning sake310), distinguindo-se
precisamente pelo carácter moral do seu objectivo (Moral Aim Thesis311) — é que não se trata
apenas de «compensar as deficiências de formas alternativas (não jurídicas) de planeamento»
(de resolver os problemas sociais que estas formas não resolvem» e de assim oferecer
recursos que permitam às comunidades superar a «complexidade, litigiosidade e
arbitrariedade da vida em comum» ), trata-se também de desenvolver bem este objectivo de
compensação, «adoptando e aplicando planos moralmente sensíveis» e de um «modo moralmente
legítimo»312 (law is first and foremost a social planning mechanism whose aim is to rectify the moral
deficiences of the circumstances of legality313) .
Importando no entanto acrescentar que o teleologismo em causa está longe de
invocar «valores» ou mesmo «fins» materialmente «específicos» (there are no substantive goals or
values that laws are supposed to achieve or realize)314. Nos mesmos termos em que a moralidade
envolvida nos aparece exemplarmente submetida a uma perspectiva de efeitos (mobilizando
num plano constitutivo os custos e os benefícios da planificação e os riscos de uma
planificação ineficiente315), também o problema do direito e da sua consideração as a valuable
principles have been incorporated, they do not satisfy the Practical Difference Thesis. They are therefore only
ersatz legal norms in Shapiro’s view…» (Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., p.61).
304 Shapiro, «Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», cit., pp. 333-334.
305 A fórmula, reconstituindo os argumentos de Shapiro, deve-se a Cindy L. Phillips, «Rescuing
L. Phillips, «Rescuing Inclusive Legal Positivism from the Charge of Inconsistency», cit, pp. 21-22.
310Shapiro, Legality, cit, p.171.
311 Ibidem, pp.170 e ss. («The Circumstances of Legality»), 213 e ss.
312 Ibidem, p. 171.
313 Ibidem, p. 172.
314 Ibidem,p.173.
315 Para um desenvolvimento, ver ibidem, pp. 138-143, 170 e ss.
81
institution316 nos interpela sem superar a sua identidade instrumental, antes confirmando a
inteligibilidade das leis (as social plans) como outros tantos «meios universais» (explícitos all-
-purpose tools para atingir fins que de outro modo as comunidades em causa não estariam em
condições de prosseguir): muito simplesmente porque o «problema fundamental» do jurídico
não é, segundo Shapiro, o de resolver, em termos teleologicamente inconfundíveis, «um
certo e particular dilema moral», mas antes e em contrapartida o de saber «como resolver os
dilemas ou perplexidades morais em geral»; tratando-se assim de concluir que uma
comunidade precisa do direito «sempre que os seus problemas morais» —«sejam estes quais
forem»! — se nos apresentem em termos tais (are so numerous and serious, and their solutions are so
complex, contentious and arbitrary) que se possa reconhecer a inferioridade efectiva das formas não
jurídicas de institucionalização (that non legal forms of ordering behavior are inferior ways of guiding,
coordinating and monitoring conduct)317.
A segunda razão para mobilizar Shapiro tem a ver directamente com o puzzle que
nos ocupa e com o modo como a recriação do positivismo excludente assumida pelo defensor
da Planning Theory se tem vindo a reflectir fecundamente no campo oponente. Não se trata
com efeito apenas de impor uma contra-reacção do positivismo includente, trata-se de
alimentar internamente esta contra-reacção, permitindo que o argumento da diferença prática
confirme as divisões conhecidas, quando não suscita uma nova divisão-distribuição…
316Ibidem,
p.172
317Ibidem,
p. 173 («Law as a Universal Means»).
318 Coleman, «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», cit., pp. 142-
-147.
319Ibidem,
pp. 146-147 e nota 59. Segundo Coleman, se tais princípios não introduzem uma diferença
no plano da instrumental guidance (enabling individuals to pursue their interests (…), goals and projects), introduzem-na
82
categorial320, mas a defender que, no plano empírico, o excesso de normas privadas de relevância
instrumental deva ser considerado como um sinal indiscutível da ausência daquelas qualidades
formais de regularidade, estabilidade e consistência que, na sua perspectiva, são como já
vimos indispensáveis à existência (e não apenas à eficácia) de um «regime jurídico» (where
most of the norms applied by a large-scale scheme of governance do not form such reasons, the scheme will lack
the regularity and coordination that are indispensable for the existence of a legal regime) — o que por sua
vez lhe permite defender que os princípios morais, mostrando-se embora incapazes de
proporcionar independent reasons no plano instrumental, continuem a valer e vincular como
normas autênticas (non-source-based legal norms)… precisamente nos «casos difíceis» (num
«domínio» que entende significativamente excepcional) , sempre que «os source-based legal
standards não proporcionem a orientação determinada» (the determinate guidance) que tipicamente
se espera destes (that thesis reserves a place for non-source-based norms, but the place is correctly
characterized as the domain of exceptionality rather than the domain of tipicality)321.
A nova divisão-distribuição, encontramo-la sobretudo nas preocupações de
Waluchow e na reconstituição do campo includente que estas lhe sugerem. Se Shapiro
sustenta que a exigência da conformidade com os princípios morais (a justificar o recurso a non
pedigreed norms) impede uma guidance autêntica (tanto no plano motivacional quanto
epistemológico) — isto quer se trate de conceber a conformity to morality como uma condição
necessária ou como uma condição suficiente da validade jurídica —, podemos dizer que o inclusivist
camp converge na rejeição global deste argumento… mostrando-se não obstante sensível à
distinção introduzida… e mais uma vez por razões pragmático-estratégicas (implicadas na
resistência ao diagnóstico de Dworkin!). O que para Waluchow significa reconhecer uma
convergência das suas posições com as de Kramer (enquanto sustentam uma «necessity»
thesis)… e um afastamento de ambos em relação à «sufficiency» version of inclusive positivism que
seria defendida por Coleman322!
1.3. Não menos exemplar (ainda que certamente por outras razões) se nos
apresenta a projecção do debate do incorporaccionismo (e da dinâmica que este explora) no
campo não positivista, justificando assim uma nova estação (brevíssima embora) do nosso
percurso. O contraste é inevitável: se a discussão interna, justificada pelo campo positivista,
vive (como acabámos de experimentar!) de um tecido de diferenciações analiticamente
muito complexo — impondo uma reformulação permanente das categorias de
inteligibilidade nucleares (separação-separabilidade, fontes sociais, diferença prática,
sempre por certo no plano da justificação. «The difference law makes can be understood justificatorily as well
as instrumentally…» (Ibidem, p. 147).
320 Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., pp. 59-64 («What Happens in Hard Cases»).
321 Ibidem, p. 64.
322 Waluchow, «Legal Positivism, Inclusive versus Exclusive», cit., sec 5 («The practical difference
thesis»).
83
Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 467-470 («Natural-
323
as one which anyone adjudicating a given case has the duty to apply even though it has not yet been posited
by the social facts of costum, enactment or prior adjudication324) —, trata-se também de projectar a
experiência de uma diferenciação em degraus, tal como a vimos contruída por aquele
primeiro debate, numa especificação relevante das possibilidades da segunda linha e do seu
«novo» jusnaturalismo: com Robert George a aproximar-se da ordem de possibilidade de Coleman
— de uma mobilização de non-pedigreed moral principles dependente das authoritative
determinationes da jurisdição e das práticas que estas efectiva e contingentemente
institucionalizem325… — e com Finnis, defendendo embora a mobilização autónoma de
self-evident incommensurable moral general principles326 (e a independência dos seus standards
relativamente às convenções da prática327), a justificar uma compreensão da discretion do
julgador (e das suas moral options) que, em nome da rejeição da one right answer thesis, afirma
perturbantes afinidades com Raz e outros positivistas excludentes (na sua vertente
assumidamente normativa ou regulativa)328…
324 Finnis, «The Natural Law: the Classical Tradition», in Coleman/ Shapiro (ed.), The Oxford
Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law, Oxford, Oxford University Press, 2002, p.10.
325George, «Natural Law and Positive Law», in George (ed.), The Authonomy of Law, cit., pp. 321 e ss.
Cfr. ainda os comentários convergentes de Postema e La Torre, respectivamente em Legal Philosophy in the
Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 468-469 e em «On Two distinct and Opposing Versions of
Natural Law: “Exclusive” versus “Inclusive”», Ratio Juris, vol. 19 nº 2, 2006, pp. 201-202.
326 Todos eles enquanto especificações mais ou menos próximas do master principle do integral human
fulfilment: ver Finnis, «The Natural Law: the Classical Tradition», cit., pp. 26-30 (10. «Reasons»). Ver também
as secções muito esclarecedoras que, neste texto, Finnis dedica aos diálogos demarcadores com os
positivismos excludente e includente (pp. 7-15). Recordemos de resto que a afirmação desta auto-evidência
(per se nota), numa revisão drástica do ontologismo associável ao discurso tomista (mas sem prejuízo de
continuar assim a reivindicar a sua herança), assimila componentes deontológicas assumidamente modernas
(indissociáveis do contributo de Descartes e de Kant): ver neste sentido Maria Magdalen Owen, «The
Thomistic Conception of Natural Law: Does It Commit the Naturalistic Fallacy?»,
http://digitalcommons.liberty.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1244&context=honors (extraído em Julho
2011), pp. 22-25 («Self-evident»).
327Bem como a diferença irredutível de intenções e de papéis que separa legislação e jurisdição
(diferença esta iluminada pela autonomia do legal reasoning e pela reabilitação da phronêsis… ainda que
discordadndo frontalmente da one right answer thesis de Dworkin). Ver muito especialmente «Adjudication», nº
14 de «The Natural Law: the Classical Tradition», cit., pp. 34-37.
328 Postema vai ao ponto de falar de um «Natural-Law Positivism»: Legal Philosophy in the Twentieth
September 2009 («Global Harmony and Rule of Law»), agora também na Ratio Juris, vol. 23 nº 2, 2010, pp.
167–82. Ver também «On the Concept and the Nature of Law», Ratio Juris, vol. 21 nº 3, 2008, pp. 281–299.
Para além evidentemente de The Argument from Injustice (ver infra, nota 337).
85
resto para considerar o cruzamento desta agenda com a tese do unrichtiges Recht (visível
nalguns rounds do confronto Hart/Fuller), do que para ceder aos limites do debate
incorporacionista. Uma cedência que, por um lado, se manifesta na mobilização aproblemática
dos binómios perspectiva do participante/ perspectiva do observador, necessidade / possibilidade(-
convencionalidade), inclusão / exclusão (da moralidade), inclusão/exclusão (de normas moralmente
defeituosas) — e que assim alimenta a tentativa de submeter o campo não positivista a uma
distribuição plausível (equivalente logrado do confronto Raz/Coleman ou das sombras que
este projecta) —, uma cedência que por outro lado não deixa de impor um preço — passando
este precisamente pela concentração drástica no problema do direito injusto (se não na
pergunta dirigida aos «defeitos morais» da legislação e aos seus graus)… mas também (et pour
cause!) por uma simplificação significativa das teses oponentes (que é também, não menos
exemplarmente, a de um tratamento indiferenciado das suas vozes)330. É deste
compromisso que resulta o desenho final, no qual Alexy mobiliza os degraus excludente e
includente do «positivismo» — simplificadas nas teses (respectivamente) da exclusão necessária
e da inclusão convencional da moralidade —, para lhes opor três versões (que diz) excludente,
super-includente e includente de «não-positivismo»: (a) a primeira destas três (atribuída à dupla
Beyleveld/Brownsword), a excluir a possibilidade de considerar jurídica toda e qualquer
norma ferida de um defeito moral331; (b) a segunda (inscrevendo Finnis numa galeria
habitada por S. Tomás e Kant), a submeter a apreciação dos defeitos morais das prescrições
legislativas a uma perspectiva de resultados e à possibilidade-exigência de, na conexão
juridicidade /moralidade, se distinguirem relações de classificação e de qualificação (classifying
and qualifying connections) — de tal modo que os defeitos morais relativos a estas segundas
(ditas relações de qualificação) não excluam a juridicidade (a validade jurídica) da prescrição
autoritária correspondente332; (c) a terceira enfim (aquela com que Alexy se identifica, por
«adequadamente» representar a dual nature of law), a «seguir a fórmula de Radbruch»,
330 Como o próprio Raz muito justamente denuncia: « Perhaps Alexy is simply addressing himself to
a German audience, and refuting, or attempting to refute, legal theories of a kind identified in Germany as
‘legal positivism’. Perhaps, though his references to Hart show that he does not intend it that way…» (Raz,
«The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism», cit., p. 1)
331 «The Dual Nature of Law», cit., pp. 268-269 (Ratio Juris, vol. 21 nº 3, cit., p.176), «On the
Concept and the Nature of Law», cit., p. 287. Ver também Alexy, «Effects of Defects—Action or Argument?
Thoughts about Deryck Beyleveld and Roger Brownsword’s Law as a Moral Judgment» (2006), Ratio Juris,
vol. 19 nº 2, pp.169-179, e numa reconstituição alternativa Peter Koller, «Der Begriff des Rechts und seine
Konzeptionen», cit., pp. 163-165 («Starker Rechtsmoralismus. Beyleveld und Brownsword»).
332 «The Dual Nature of Law», cit., pp. 269 (Ratio Juris, vol. 21 nº 3, cit., p.177), «On the Concept and
defendendo que «os defeitos morais só retiram a validade jurídica» às prescrições em causa
quando o «limiar da injustiça extrema» for «ultrapassado»333.
Importando acrescentar que esta classificação nos interessa por si mesma, pelas
tensões que pressupõe e pelas sobreposições a que recorre — com um resultado que, por uma
via inteiramente diferente daquela a que aludimos no exemplo anterior, não deixa de
confirmar as surpreendentes afinidades do positivista Raz e do jusnaturalista Finnis (agora
relativamente ao problema do direito injusto)! —, mas que nos interessa mais ainda pela
conformação que acaba por impor à proposta do próprio Alexy (não apenas no plano dos
recursos de formulação mas nas soluções sustentadas). Ao ceder (ao não conseguir resistir)
ao enquadramento do «incorporacionismo» — afastando-se assim paradoxalmente da herança
de Radbruch!334 —, Alexy permite com efeito que não só a oposição tradicional segurança
/justiça (principle of legal certainty/ principle of justice)335, mas também algumas das preocupações
condutoras do discurso prático do nosso tempo — muito especialmente aquelas que
encontram nas tensões real / ideal, dogmático / crítico, particular/universal os seus contextos de
organização privilegiados — venham, com prejuízo das suas significações e dos palcos
heterogéneos em que estas emergem, a ser assimiladas (e depois drasticamente convertidas)
pelo contraponto juridicidade/ moralidade. Como se a possibilidade de pensar o direito como
intenção ou como «aspiração» (as the embodiment of an elevated aspiration336) ou de o proble-
matizar a partir da sua dimensão (dita) ideal implicasse paradoxalmente abandonar uma
perspectiva jurídica para assumir as possibilidades crítico-reflexivas de uma perspectiva
moral. Ou mais rigorosamente, como se a pergunta dirigida à relevância de um momento de
validade (independentemente da resposta positiva ou negativa que lhe vier a ser dada) nos
333 «The Dual Nature of Law», cit., pp. 269-270 (Ratio Juris, vol. 21 nº 3, cit., pp. 176-177), «On the
juridicamente relevante (e o seu übergesetzliches Recht) nem para reconhecer os «conteúdos» específicos do
«valor da justiça»: «Aber Rechtssicherheit ist nicht der einzige und nicht der entscheidende Wert, den das
Recht zu verwirklichen hat. Neben die Rechtssicherheit treten vielmehr zwei andere Werte: Zweckmäßigkeit
und Gerechtigkeit…» (Radbruch, «Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht», in Radbruch,
Gesammtausgabe, Band 3, Rechtsphilosophie III, Heidelberg, C.F. Muller, 1990, p. 88)
335 Acriticamente preservada na sua inteligibilidade normativística… e assim mesmo mobilizada para
iluminar as três versões de não positivismo: com as propostas excludente e super-includente a corresponderem a
equilíbrios «incorrectos» entre o princípio da justiça e o princípio da segurança… e o não positivismo includente a
garantir o equilíbrio (como verdadeiro balance). «Resting on an incorrect balance between the principle of legal
certainty and the principle of justice, [exclusive non-positivism] (…) gives too little weight to the factual or
authoritative dimension of law. (…) [S]uper-inclusive nonpositivism fails to attribute to the principle of
justice qua expression of the ideal dimension of law a weight that suffices to outweigh the principle of legal
certainty in extreme cases. (…) [With the] thesis of inclusive non-positivism (…), both sides of the dual
nature of law are given there due weight…» [Alexy, «The Dual Nature of Law», cit., pp. 268-270 (Ratio Juris,
vol. 21 nº 3, cit., pp. 176-177)]
336 A formulação é de Nigel Simmonds, Law as a Moral Idea, Oxford University Press, 2007, pp. 37 e
ss. («Law as Instrument and as Aspiration»). Infra darei uma especial atenção à proposta de Simmonds: ver,
neste mesmo Tempo II, 2.4.1., pp. 114 e ss.
87
obrigasse a identificar a juridicidade com o contexto (se não correlato) de uma prática de
decisões contingentes (e com o regulativo coercitivamente eficaz que esta institucionaliza),
ficando a recusa ou a atribuição-integração de exigências de sentido (que possam impor
limites de validade às decisões deste regulativo) dependentes da relevância (respectivamente
negativa e positiva) de uma perspectiva moral (e da institucionalização que esta estiver em
condições de oferecer).
Recordemos que invocar a natureza dual do jurídico é, para Alexy, num plano simul-
taneamente analítico e normativo337, contrapor uma dimensão real ou factual a uma
dimensão ideal ou crítica — a primeira representada pelos elementos da outorga autoritária e
da eficácia social, a segunda a encontrar a sua expressão intencional num elemento dito de
correcção moral, sustentado numa pretensão de universalidade (first-order claim of correctness (…)
refers only to the ideal dimension (…) and is addressed to all (…), as far as universal morality is
concerned)338 —, mas é também reconstruir-compor dois argumentos decisivos — o
argumento a favor da positividade ou da dimensão real do direito, o argumento a favor da
dimensão ideal —… e, mais do que isso, defender-assumir a sequência que integra tais
argumentos — uma sequência determinada por uma exigência de reconciliação, que será
também de correcção (as a second-order correcteness) da normatividade positiva.
337 Como sabemos, a importância de distinguir entre «grupos» de argumentos analíticos e normativos
para reconstituir a controvérsia do positivismo jurídico é principalmente desenvolvida em Begriff und Geltung
des Rechts, Freiburg / München, Karl Alber Verlag, 1994, passim, cit. na última versão deste texto, aquela que
apareceu como The Argument from Injustice. A Reply to Legal Positivism (2001-2002), paperback edition, Oxford
University Press, New York, 2010, pp. 20 e ss («Critique of Positivistic Concepts of Law») [Não se trata, com
efeito, apenas de uma tradução (de resto da responsabilidade de Bonnie e de Stanley Paulson), trata-se
também de uma nova versão, com diversas alterações de pormenor propostas pelo próprio Alexy].
338 Alexy, «The Dual Nature of Law», pp. 266, 261 (e nota 17) [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, pp. 174, 170 (
e nota 1)]
339 A reconstituição que se segue mobiliza as formulações do meu «Law’s Cultural Project and the
Claim to Universality or the Equivocalities of a Familiar Debate» (cit., pp. 489-503), para cujo
desenvolvimento remeto.
340Alexy, The Argument from Injustice, cit., p. 22
341 Ibidem, pp. 25 e ss.
342 «The Dual Nature of Law», cit., p. 261 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 171].
88
Trata-se, com efeito, de pressupor que a correcção (de primeiro nível) do conteúdo jurídico (enquanto
exigência conceptual e normativamente necessária) deve (tem que) ser identificada com a
validade moral. Como se trata também de concluir que o argument for correctness (of content) só
faz plenamente sentido inscrito numa tríade com mais outros argumentos (the argument of
injustice and the argument of principles)343. Questions of justice (…) are moral questions344 [and] principles
are normative arguments on which the process or procedure of law application is and/or must be based in
order to satisfy the claim of correctness345.
β) A preocupação com a pretensão de correcção de segunda ordem traz-nos outra cadeia
de pressupostos, vinculados a um processo de institucionalização e a uma forma política
transparente (a de um constitucionalismo que se diz simultânea e irredutivelmente democrático e
discursivo). Invocar a reconciliação que esta forma garante não é, com efeito, senão
reproduzir a relação dialéctica irredutível entre as dimensões real e ideal (second-order correctness
refers both to the ideal and real dimensions346); e então e assim permitir que esta relação — ao
contrapor a tomada de decisão real (segundo o princípio maioritário) a uma argumentação
pública ideal (discursivamente identificada com a democracia deliberativa em sentido
rigoroso)347 — possa por sua vez expor-se-nos como um quadro único e definitivo para a
resolução dos problemas jurídicos. Ora um quadro que, não certamente por acaso, reconduz
a tensão real/ideal a uma dialéctica entre entre razões argumentativas autoritárias e não autoritárias.
A mesma dialéctica que se especifica contrapondo regras e princípios348, legislação
parlamentar e jurisdição constitucional349, sistemas jurídicos particulares e moralidade
universal350, last but not least, direitos positivos de índole jurídico-constitucional e direitos
humanos morais (constitutional rights are rights that have been recorded in a constitution with the
intention of transforming human rights into positive law (…); human rights qua moral rights (…) exist if
they are justifiable (…) on the basis of discourse theory351) . Sem esquecer que todas estas
manifestações plausíveis são redutíveis a uma inevitável tensão maior, reconstruída
(solucionada), enquanto tal, através da law of competing principles352 — como se ao fim e ao cabo
se tratasse de defender um effective balancing entre o princípio formal (jurídico!) da certeza ou
343 The Argument from Injustice, cit., pp. 13, 34, 35-81.
344 «The Dual Nature of Law», cit., p. 261 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 171].
345 The Argument from Injustice, cit., p. 127.
346 «The Dual Nature of Law», cit., p. 266 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.174].
347 Ibidem, p. 271 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.177-178].
348 Ibidem, p. 274 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.180].
349«Constitutional review claims to be closer than the parliament to the ideal dimension of law…»
segurança e o princípio substantivo (moral!) da justiça, ballancing por sua vez iluminado pela
fórmula de Radbruch (as the «postulate of an outermost border»353)!
γ) A articulação entre as duas cadeias de postulados leva-nos enfim a uma celebração
da racionalidade (-razoabilidade) prática enquanto discurso argumentative procedimental
(comprometido com as ideias de participação, liberdade e igualdade e , como tal, sustentado
pelo indispensável núcleo de normas gerais). Tratando-se, ao fim e ao cabo, de assumir a
ideia regulativa de uma moralidade universal (correcta e justificada) enquanto horizonte
prático (se não fim- goal a ser prosseguido)354, e com esta… a necessidade discursiva dos
direitos humanos (as moral, universal, fundamental and abstract rights, taking priority over all other
norms, existing only if they are justifiable on the basis of discourse theory)355, sem esquecer que se trata
assim também de abrir a possibilidade (oportunidade) de justificar a perspectiva jurídica
interna (the participants’ perspective) como aquela que, experimentando a «inadequação» da
separação positivística entre direito e moral (e assumindo uma concepção dos princípios
como intenções regulativas metodologicamente relevantes), compreende o sistema jurídico
como um sistema de procedimentos356.
353 Ibidem, pp. 267 e ss. [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 175]. Ver também «The Argument from
Injustice», pp.28 ff., 40 ff. Sem naturalmente esquecer «A Defense of Radbruch’s Formula», in D.
Dyzenhaus (ed.), Recrafting the Rule of Law: The Limits of Legal Order, Oxford / Portland Oregon 1999,
pp. 15 e ss.
354 The Argument from Injustice, pp. 80-81.
355 «The Dual Nature of Law», p. 271 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 178]..
356 The Argument from Injustice, cit., pp. 24-25. «The qualifying or soft connection that
emerges when the legal system is considered as a system of procedures (…) leads not to a necessary
connection between law and a particular morality to be labeled correct in terms of content, but
rather, to a necessary connection between law and the idea of correct morality as a justified
morality…» (Ibidem, p.80)
357 Massimo La Torre, «On Two distinct and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive” versus
359 Precisamente enquanto, versus Alexy, sustenta uma especificidade originariamente jurídica dos
direitos humanos…[« Die Menschenrechte (…) sind von Haus aus juristischer Natur…» (Habermas, «Zur
Legitimation durch Menschenrechte», Die postnationale Konstelation. Politische Essays, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, 1998, p. 183)]. Para uma discussão deste litígio Habermas/Alexy e da sua importância, ver infra , nota
383.
360Como se, ao associar a afirmação da pré-existência moral (moral-racional, e neste sentido também
universal) dos direitos do Homem à oportunidade-plausibilidade de um não positivismo (seja qual for a versão
em que este se nos dirige), nos víssemos simultaneamente constrangidos (não menos aproblematicamente) a
vincular a celebração da juridicidade intrínseca de tais direitos (e a autodisponibilidade prático-cultural que
nesta se experimenta) não só a uma confirmação da exclusividade das fontes sociais… mas também a uma
celebração indiscriminada da contingência regulativo-decisória do direito… e com estas a uma assimilação
«positivística» da teoria do discurso (consumada numa «solução» de positivismo democrático). Um equívoco que
vemos cultivado (e até exemplarmente agravado) na reconstituição de Peter Niesen e de Oliver Berl
[«Demokratisher Positivismus: Habermas / Maus», in Buckel / Christensen/ Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue
Theorien des Rechts, cit., pp. 3-28]: e decerto porque, para os Autores em causa, aludir às diferenças de
concepção que separam Habermas de Alexy, significa precisamente reconhecer que o momento
«voluntarístico» assumido por Habermas— reflectido numa compreensão jurídica dos direitos fundamentais
ou da praxis que os constitui (diese (…) Typen von Rechten fallen nicht vom Himmel (…), es sind Ansprüche, die als
Voraussetzungen einer soziale Praxis identifiziert werden ) — nos expõe à solução de um positivismo constitucional. «Es
handelt sich ausdrücklich nicht um moralische Menschenrechte, die jedem von Natur aus zustehen: damit
betont Habermas den Umstand, dass letzlich freigestellt ist, ob die Wahl der Mittel für die
Konfliktbearbeitung innerhalb einer Population zugunsten der Rechtsform ausfällt. Diese voluntaristische
Moment in der Aufnahme rechtlicher Beziehungen stützt die positivistische, nicht-natürrechtliche Position…» (Ibidem,
pp. 6-7, itálicos nossos).
361 Massimo La Torre, «On Two Distinct and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive”
assumed by Habermas and Alexy. Hence, we might conclude tht the difference between the two views is
simply a matter of stress or methodology, the outcomes being more or less the same…» (Ibidem, p. 206).
364 Ibidem, p. 201 e ss.
365 Ibidem, p. 203 e ss.
91
2. Etapa IV (percurso 2). A exigência de incluir num percurso reflexivo como aquele
que nos ocupa (metadogmaticamente comprometido com o problema do direito), uma
reconstituição atenta do debate do incorporacionismo — uma reconstituição que (sem
prejuízo de outros temas possíveis377) integre pelo menos os sinais ou estímulos temáticos a
incorporação», nos termos que Postema nos ajuda exemplarmente a reconhecer [Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Common Law World, cit., pp. 474-477 (10.2.2.), 483-545 («Conventions and the Foundations of
92
que aludi no desenvolvimento anterior [1.] — justifica-se decerto por si própria. Parochially
conceived (nascido, insista-se, da resposta a Dworkin exigida pelo positivismo crítico), tal
debate tem sabido impor-se com uma força avassaladora à atenção da filosofia e da teoria
do direito do nosso tempo (bastar-nos-ia invocar o exemplo de Alexy!)… com a
particularidade ainda de nos expor a uma sobreposição muito exigente de planos analíticos
e de problemas possíveis — mostrando-se enquanto tal incompatível com uma mera alusão
(exigindo neste sentido, sob pena de cedermos à caricatura, um tratamento minimamente
pormenorizado do seu núcleo duro). Sem prejuízo desta relevância (e da necessidade, também
aqui, de evitar equívocos relativamente comuns), importa no entanto lembrar que
começámos por assumir a inevitabilidade de uma incursão no referido debate invocando o
contraponto juridicidade /moralidade e o problema da discricionariedade do julgador e muito
especialmente a misinterpretation de que a pressuposição deste contraponto habitualmente
beneficia. Assim sendo, chegou o momento de perguntar se a referida incursão,
reconstituída nas suas vozes e tensões condutoras (com a atenção devida aos seus campos
interno e externo, este último indissociado de tentativas de classificação globalmente
pensadas) , nos autoriza por si só a cumprir um tal objectivo.
Parafraseando uma das epígrafes propostas por Raz («The Puzzles of the So-called
“Incorporation”»378), poderei dizer que o que esta incursão, nos termos acima esboçados,
está em condições de nos proporcionar (se for conseguida!), é afinal o acesso às peças de
um gigantesco puzzle (ou ensemble de puzzles), peças não só distribuídas por vários tabuleiros-
patamares… como também sujeitas a visées distintas (e neste sentido iluminadas com
conformações instáveis). Acesso que, como vimos, nos permite reconhecer no seu núcleo
duro (pela positiva e pela negativa, associadas a pretensões de necessidade ou a um
diagnóstico de contingência) as teses justificadas pelo campo positivista, na mesma medida em
que nos autoriza ainda a identificar nestas, com maior ou menor rigor, um espectro de
significados plausíveis, justificados pelo mesmo significante (validade jurídica, separação-
-separabilidade, fontes sociais, regra de reconhecimento, convencionalidade), se não a perceber que a teia
dos argumentos assim produzidos vai pressupondo e mobilizando um elenco de categorias
de inteligibilidade (normas, standards, princípios, legal reasoning, casos difíceis), cujos
significados (associados ou não a pretensões de intersemioticidade) exigiriam um esforço de
Law»)], debate que, passando a concentrar-nos na theory of conventions… e envolvendo como protagonista o
próprio Postema (mas também Coleman!), nos permitiria ainda encontrar outros interlocutores, tais como
Andrei Marmor, Kenneth Himma, Leslie Green e Margaret Gilbert. Um tema (mais um!) que o auditório real
estará em condições de enfrentar.
378 Título do capítulo II de «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp.190 e
ss.
93
379 Para o dizermos respectivamente com Hart e com Waldron (sublinhando-esclarecendo uma
distinção que vem de Austin… e que o diálogo com o utilitarismo tornou hoje habitual): Hart, Law, Liberty
and Morality, Stanford, Stanford University Press, 1963, pp. 17-24 («Positive and Critical Morality») [citação da
p. 20], Waldron, «Particular Values and Critical Morality», California Law Review, vol. 77 nº 3, pp. 561-589
[citação das pp. 561, 562, 563, 582, 587].
380 Porventura porque o que procuram são menos analogias reciprocamente determinantes do que
381La Torre, «On Two distinct and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive” versus
“Inclusive”», cit., p. 215.
382 Id., «Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation», Ratio Juris,vol.
15, nº 4, p. 400.
383 Explorei o litígio Habermas/Alexy a que aqui se alude — com Habermas a defender que os
universos da moral e do direito (concentrados exemplarmente nos pólos da autonomia moral e da autonomia do
cidadão, quando não se ocultam sob as máscaras dos «direitos» morais e dos direitos fundamentais), afirmam origens
prático-culturais equiparáveis (e beneficiam de uma presunção de igualdade-complementaridade), devendo assim
dirigir-se-nos sem qualquer hierarquia ou precedência… e com Alexy a corresponder exemplarmente à
compreensão do direito como institucionalização de uma moralidade crítica universal (justificada pelo
binómio real /ideal e pelo contraponto entre direitos positivos de índole jurídico-constitucional e direitos humanos
morais)... — em «O homo humanus do direito e o projecto inacabado da modernidade», in Canotilho/Vital
Moreira (coord.), Da virtude e fortuna da república ao republicanismo pós-nacional, Casal de Cambra, Caleidoscópio,
2011, pp. 91 e ss. [também no Boletim da Faculdade de Direito LXXXVI (2010), pp. 505 e ss.] e (a propósito das
95
diferentes concepções dos princípios) em «Na “coroa de fumo” da teoria dos princípios. Poderá um
tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», cit., passim.
384 Sem excluir no entanto uma (muito dworkiniana) alusão à best theory: «We have to reconstruct the
said principles within the theory which best justifies them. We have to reproduce the arguments supporting
them, trace other relevant principles and build a more or less coherent scheme » (La Torre, «On Two distinct
and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive” versus “Inclusive”», cit., p. 213).
385 Ibidem. «Since (…) [principles] are general standards and thus in order to be operative need to be
stated precisely and to be balanced, citizens and lawyers have to enter into a process of moral reasoning, if
they want to give such principles a more determinate content…» (Ibidem)
386 Id., «Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation», cit., p. 400.
387 Ibidem, pp. 394 e ss. (II.4).
388 Ver supra, nota 30.
96
conexão), como se trata também de, por outro lado, no plano da theory of adjudication,
«receber» do positivismo excludente (ou pelo menos de Raz) uma representação explícita da
relação legal reasoning/morality, se não uma acentuação lograda dos limites da primeira —
representação e acentuação estas às quais o jusnaturalismo includente poderá oferecer uma
concepção precisa de moralidade (indissociável da positivação-vigência que os seus princí-
pios orientam)389. Resposta que nos autoriza a concluir o puzzle? Certamente. Mas apenas
na medida em que possamos aceitar uma representação da juridicidade que encontre a sua
dimensão real no «environment» de um constitucionalismo discursivo e a sua dimensão ideal
na moralidade crítica (não relativista) que o alimenta… e no continuum normas / princípios
que assim (aculturalmente) se consagra…
389 «An “inclusive” natural lawyer would be able to fruitfully combine the most promising and
plausible insights of both “inclusive” and “exclusive”positivism. From the “inclusive” positivist he would
accept the insight that moral principles can play a role in the rule of recognition and in the definition of what
a concrete positive law requires. From the “exclusive” positivist he will receive the view that legal reasoning
necessarily refers to moral reasoning, its autonomy being limited…» (Ibidem, p. 400).
390 Coleman, «The Architecture of Jurisprudence – I», cit., p. 66.
391 « This is the first of three connected essays that will form a short book on jurisprudence the aim
of which is to provide a framework within which several of the most pressing issues in jurisprudence can be
addressed and progress on them made. (…) In this essay, I set out to clear the decks of two of the most
important yet misleading nuggets of conventional wisdom. In The Architecture of Jurisprudence - Part II, I
lay out the architecture of jurisprudence, and in Part III, I characterize the problem of ‘law’s place’ and show
how this problem is not unique to jurisprudence, but arises in a variety of areas of philosophy from the
philosophy of mind to action theory…» (Coleman, «The Architecture of Jurisprudence»-draft, cit. supra, nota
130, pp. 3-4 e 1-2 das duas «fontes» on line aí citadas). Veja-se também a antecipação mais pormenorizada das
partes II e III no final do texto definitivo do primeiro ensaio: «The Architecture of Jurisprudence – I », cit.,
pp. 76-80 (VII. «A New Begining»).
97
enhanced392). Para o problema que nos ocupa, a relevância imediata desta tentativa (a
relevância que nos estimula a explorá-la, sem esperar pelos outros dois volets do prometido
tríptico!) não está no entanto apenas nem principalmente na denúncia de tais preocupações
taxinómicas e dos riscos que estas envolvem — denúncia em que justamente convergem os
oponentes Raz e Finnis393! —, está antes numa reconstrução crítica (muitas vezes
autofágica) dos argumentos produzidos e nesta enquanto nos autoriza a perceber que as
propostas do positivismo includente não devem ser tratadas como se competissem com o
degrau do positivismo excludente e com o campo não positivista, ou como se constituissem
alternativas logradas para as soluções que estes oferecem (on my reading, inclusive legal
positivism is not an alternative or competitor to either natural law or to exclusive legal positivism[, i]t has a
different logical object, [i]t answers a different set of questions [, i]t purports to play a different philosophical
role 394, inclusive and exclusive legal positivism are not in fact competitors395, [c]ontrary to the prevailing
wisdom, inclusive and exclusive legal positivism are not alternative jurisprudential views—either about legal
content or the nature of law more generally396). Pode mesmo dizer-se que se trata de admitir que a
integração indispensável — capaz de vencer equívocos tão frequentes como aqueles que
vêem no positivismo excludente uma expressão-especificação, mais ou menos indiscriminada,
da cisão juridicidade /moralidade (the Razian version of exclusive legal positivism (…) [presuposes that]
at the most fundamental levels law and morality are necessarily connected 397) — passa precisamente
pelo exercício de mobilizar as peças reunidas para as distribuir por dois puzzles distintos e
os respectivos tabuleiros-patamares, com perspectivas também diferenciadas. O que
significa pelo menos dever introduzir novas e insuspeitadas peças num dos tabuleiros…
A solução constrói-se distinguindo duas perguntas — «o que é que determina o
conteúdo jurídico?» (what determines legal content?) e «o que é que determina os determinantes
do conteúdo jurídico?» (What determines the determinants of legal content? (…) What are the grounds
of the determinants of legal content?) —, mas sobretudo admitindo que estas perguntas ocupam
planos discursivamente inconfundíveis, com a primeira a corresponder a um plano
semântico (a first-order, object-level view) relativo à «metafísica do conteúdo jurídico» e a
segunda a interpelar este mesmo «conteúdo» num plano já meta-semântico, se não «meta-
392 «The goal of jurisprudence is to identify the problems and questions of jurisprudence and to
make progress in responding to and answering them. There is little reason to suppose that labeling any
particular kind of answer will contribute much to our success at either…» (Ibidem, p. 75)
393 Para além do ensaio de Raz sobre Alexy, no qual este perigo dos –ismos e das suas seduções
redutoras (como que em bloco) é justamente denunciado («The Argument from Justice, or How Not to Reply
to Legal Positivism», cit., passim), ver também Finnis, «Natural Law: the Classic Tradition», cit., p. 11-14.
394 Coleman, «The Architecture of Jurisprudence – I », cit., p. 56, nota 64.
395 Ibidem, p. 66.
396 Ibidem, p. 69.
397 Ver supra, citações identificadas nas notas 272 e 287.
98
plano meta-semântico! Ver todo o cap. VI, ironicamente intitulado «It is about the Metaphysics – Maybe»
(Ibidem, pp. 61- 75).
99
apenas de conferir uma força renovada ao núcleo duro da sua proposta405 — justificando
enfim porque é que a tese semântica das fontes sociais se mostra plenamente compatível com a
tese meta-semântica da incorporação dos princípios morais (sem prejuízo de a primeira nos
aparecer frequentemente iluminada por uma pretensão de necessidade e de a segunda se nos
impor dominantemente associada a uma pretensão de possibilidade ou de contingência) —, trata-
se também de poder mostrar que as combinações são múltiplas… e que perspectivas
nuclearmente convergentes no plano semântico (ao fim e ao cabo todas as que frequentam o
positivistic camp!) podem divergir significativamente no plano meta-semântico…
Em relação ao ensemble das propostas positivistas que considerámos (na sua conexão
com este tabuleiro meta-semântico ou meta-metafísico), poder-se-á concluir que só a perspectiva
de Coleman está em condições de sustentar um autêntico positivismo includente (capaz de
assumir uma pretensão de contingência406… mas sobretudo de rejeitar que a efectiva incorporação
dos princípios possa estar associada a quisquer tipos de pretensões fundamentais àcerca da natureza
do direito)… e que só a de Shapiro está por sua vez em condições de levar a sério um puro
conceptualismo (justificado pelas categorias de inteligibilidade social planning e moral aim,
defendidas num plano puramente categorial, não normativo). Na perspectiva da nova «grelha»,
Hart e Raz assumirão já em contrapartida posições meta-semânticas híbridas, correspondendo a
do primeiro a uma sobreposição de inclusivismo (numa versão necessária407) e conceptualismo (este
iluminado pela categoria rule of recognition), resultando a do segundo de um compromisso
efectivo entre conceptualismo e normativismo — com o conceptualismo a impor-se-nos através da
compreensão da natureza do direito enquanto autoridade… e com o normativismo a
corresponder já à exploração da moralidade ou da natureza moral desta pretensão (as a claim to
superior service) ou dos argumentos que a sustentam, na sua especificidade crítico-regulativa408
(Raz holds that the determinants of legal content derive from claims about the essential nature of law, but at
least some of those claims are, in his account, defended on normative grounds409).
405 Aquele núcleo que tem por assim dizer resistido aos sucessivos exercícios de reformulação-
superação (se não falsificação) que carcterizam o percurso hoje único de Coleman.
406 «If there is a plausible formulation of the core of inclusive legal positivism it is: (…) “Only social
facts determine which facts contribute to the law having the content that it does”; or “Necessarily, only social
facts can determine which facts contribute to the law having the content that it does”…» (Ibidem, p. 65).
Podemos dizer que a primeira versão corresponde à de Coleman (mas também às de Waluchow ou Kramer) e
a segunda à de Hart…
407 Ver nota anterior.
408 «[Raz e Shapiro] not only identify different features of law as essential to it, but they defend
their claims in very different ways. In Raz’s overall argument, the key idea is that of the service
conception of authority, but it is well known that Raz’s argument for that conception is explicitly normative.
(…) So we have a positivistic first-order metaphysical claim supported by a conceptual claim (about the
nature of law) and a normative defense of another claim (about the nature of authority). Not so for Shapiro.
(…) In his case, we have the same ‘positivistic’ claim about legal content derived from conceptual claims
about the nature of law and about the nature of plans. There is no normative argument in sight. No
normative or moral considerations are doing any heavy lifting…» (Ibidem, p. 74)
409 A esta afirmação segue-se de resto uma conclusão perturbante, onde uma vez mais (e sempre por
razões diferentes), vemos Raz a aproximar-se de Finnis! « And that means that in an obvious sense Raz seems
100
A relevância da nova arquitectura não se fica porém pelo traçado destes mapas e
pelas correcções que estes introduzem, enquanto inscrevem o problema da incorporação
dos princípios num círculo de relevância meta-semântico. Promete-nos ainda novos mapas.
Sem prejuízo dos desenvolvimentos que a exploração da nova arquitectura venha a exigir,
posso já acrescentar que dois destes mapas nos interessam especialmente.
A começar por aquele que distingue e relaciona conteúdo jurídico e semântica do discurso
jurídico: o primeiro (legal content) a ser determinado por modos institucionalemente
consagrados de constituição-manifestação-positivação da juridicidade, o segundo (legal
semantics, semantics of legal discourse), a construir uma autêntica teoria do sentido (meaning), capaz
de nos dizer como é que, ao fim e ao cabo, compreendemos os enunciados com a forma «p
é, na jurisdição J, a resposta do direito» (‘it is the law in jurisdiction J that p’)410.
committed to the view that the determinants of legal content are ultimately fixed by normative facts! (…)
And what is the proper conclusion to draw from this? Is it that Raz is not really a positivist? (…)Are we to
say that at the end of the day Raz is not a positivist, and that to be a positivist is to start with the sources
thesis and work backwards to its foundation without once ever invoking moral or normative considerations?
Thus, Hart would only pass part of this test and the same at best would hold for me. Shapiro would be a
positivist, but who else? Why care?» (Ibidem, pp.74-75). Seja como for, esta última pergunta salva a situação,
remetendo-nos para os perigos da fúria taxinómica (e dos tipos ideais que a cristalizam). Não sem alguns
desgastes, porém. Até que ponto, com efeito, é que conclusões deste género não pervertem a separação
semântico /meta-semântico e a arrumação definitiva que esta pretende introduzir? Se Raz usa as considerações
normativas no plano estritamente meta-semântico, terá sentido duvidar do seu positivismo excludente? Se
podemos duvidar … e exigir que esta opção semântica se reflicta no plano meta-semântico (e é esta a
argumentação de Coleman na passagem de que extraí o fragmento citado!)… então é porque a distinção
destes dois níveis (e dos tabuleiros correspondentes) é ela própria francamente discutível… — fazendo cair
por terra os argumentos que sustentam o incorporacionismo como uma abordagem meta-semântica… Contra-
argumentação que ficará ainda facilitada (questionando toda a nova architecture) se nos dermos conta de que,
na sua desilusão com os rótulos, Coleman vai ao ponto de admitir que there is no place in theory construction where
we can draw a line to distinguish a positivistic jurisprudence from a natural law or normativist one (Ibidem, p. 75). À luz da
redistribuição dos tabuleiros, que sentido pode ter uma afirmação como esta? Se levarmos a sério os novos
mapas, não haverá sempre pelo menos uma convergência decisiva dos positivists no plano semântico, uma
convergência que, sem prejuízo de devermos estabelcer gradações, nos autorizará sempre a opor positivismo
e não positivismo (agora sem introduzir o incorporacionismo na contenda)? Como vemos, há muitas
questões a pôr (e outros tantos desafios a considerar pelo nosso auditório implícito)… mesmo quando o
percurso auto-reflexivo é tão rico e estimulante como o de Coleman…
410 Ibidem, pp. 76-77 («Legal Content and Legal Semantics»).
101
(law does not merely report the existence of a moral duty or an important moral reason to act (…), it should
be understood as imposing such a duty)411 …
414 Tal como de resto já acontece, importa dizê-lo, com a classificação proposta por Alexy!
103
2.3. Uma deixa para outros caminhos, disse. Que outros caminhos? Se o resultado
da tentativa anterior for semelhante àquele que antecipámos, há, com efeito, um percurso
de superação maior que, pelos argumentos que tem vindo persistentemente a mobilizar e a
reconstruir — quer se trate de explorar a compreensão do direito como integridade, quer se
trate de contrapor à tese da discricionariedade uma tese de única resposta correcta —, se nos oferece
em condições privilegiadas de simultaneamente reconhecer e rejeitar os pressupostos a que
aludimos, cujas possibilidades de resposta ao problema que nos ocupa terão assim que ser
desde já explicitamente mobilizadas e discutidas: refiro-me evidentemente àquele que o
interpretativism de Dworkin nos permite prosseguir. Mais do que simplesmente atender,
enfim já sem intermediários, à proposta que provocou a auto-reflexão do positivist camp —
uma proposta que o debate do incorporacionismo, nos seus diferentes degraus (como
pudemos entrever) tem persistido em identificar (quando não em recriar) como o seu
grande interlocutor-oponente — , trata-se, com efeito, de mobilizar uma resposta ao problema
da validade-vigência dos princípios juridicamente relevantes e ao problema da realização do
direito em concreto que (não certamente por acaso) se cumpre enfrentando a relação
juridicidade/moralidade, se quisermos, exigindo aquela reflexão auto-diferenciadora que uma
remissão pura e dura para uma prática contingente (ainda que de consagração de factos
normativos) não pode (nem quer) assegurar.
104
É na reexposição (se não supplement415) de Justice for Hedgehogs (no novum que esta
introduz enquanto consagração-releitura dos percursos anteriores) que tal auto-reflexão,
com as componentes que acabámos de identificar, deve principalmente ser procurada.
Podemos, em duas palavras, dizer que se trata de, com «o ouriço» (rejeitando o ponto de
vista da «raposa»), renovar (recuperar) uma aposta prático-existencial na unidade do valor e na
força da integração (ou intercompreensão) que a sua projecção in action determina (the truth
about living well and being good and what is wonderful is not only coherent but mutually supporting416).
Reinventar esta unidade significa, com efeito, levar a sério o contraponto ciência
/interpretação (e este como uma reformulação lograda do binómio explicação / compreensão):
reconhecendo uma «dualidade» de experiências reflexivas — sustentada em dois grandes
territórios da intellectual activity e nos discursos de razões (se não nas pretensões de verdade)
que lhes correspondem (interpretation [stands] (…) as a full partner beside science in an embracing
dualism of understanding417)418 —, mas também confirmando que a tematização da «verdade»
associada à unidade do «valor» (ilustrada decisivamente pelo problema dos argumentos que
sustentam a «dependência recíproca» dos «valores éticos» e dos «valores morais») exige um
discurso centrado no segundo território, ou mais rigorosamente, práticas interpretativas de
um particular genre, precisamente aquele que Dworkin identifica como conceptual interpretation
— a interpretação na qual se procura o «sentido» de um certo conceito prático-comunitário
(«verdade», «justiça», «razoabilidade», «responsabilidade», «legitimidade», «liberdade,
igualdade, democracia, direito»419), «conceito» este que, na sua relevância moral e (ou)
política, se nos exporá sempre como verdadeira criação-recriação (persistentemente
retomada) da comunidade em causa e das diversas práticas que internamente a constroem e
especificam (a concept (…) that has been created and recreated not by single authors but by the
community whose concepts it is, a community that includes the interpreter as a creator as well420).
Em que sentido é que uma tal reexposição, iluminada pela perspectiva da unidade
da fundamentação racionalmente plausível (there are right answers to moral questions) — e por
esta muito especialmente projectada numa articulação-especificação (constitutivamente
Dworkin qualifica expressamente o contributo do último capítulo de Justice for Hedgehogs: «This chapter is
meant to supplement [those] (…) books, not substitute for them…» (Justice for Hedgehogs, Cambridge Mass./
London, the Belknap Press of Harvard University Press, 2011, p. 485, n1).
416 Ibidem, p. 1.
417 Ibidem, pp. 123-124.
418 Para exprimir a possibilidade defendida por Dworkin de opor ao discurso científico um global
discurso interpretativo (repartido embora por géneros e tipos diferenciados), Lawrence B. Solum fala de uma
unity-of-interpretation thesis: Solum, «The Unity of Interpretation», The Boston University Law Review, Vol. 90, pp.
558 e ss. («What Is Interpretation?»).
419 Justice for Hedgehogs, cit., p. 157.
420 Ibidem, p. 136.
105
(b) Aquele ainda que, ao explorar as invocadas afinidades de purpose, nos mostra
que as práticas normativo-juridicamente relevantes partilham com outras práticas interpre-
tativas — com a maior parte das práticas de interpretação artística e literária e com a maior
421 Ver especialmente o «Epilogue: Dignity Indivisible», Ibidem, pp. 417 e ss. «Ethics and morality are
independent of physis and its partners. Value is in that way freestanding…» (Ibidem, p. 418).
422 Ibidem, pp. 130-132, 144 e ss.
423 Ibidem, p. 124.
106
parte das práticas conversacionais— um mesmo género de discurso, que precisamente se diz
interpretação colaborativa (collaborative interpretation)424.
reconduz esta ao plano decisivo dos arguments of principle (statutory interpretation aims to make
the governance of the pertinent community fairer, wiser, and more just429).
2.3.2. O papel que estes arguments of principle (com a sua best justification)
desempenham na especificação do «lugar do direito» (e do «propósito» que o distingue no
acervo das outras práticas de interpretação colaborativa) ganha um sentido inconfundível
quando o problema passa directamente a ser o do contraponto juridicidade / moralidade e o
deste à luz do integrated scheme of value defendido em Justice for Hedgehogs430. Trata-se, com
efeito, de preservar a rejeição do convencionalismo positivista e (ou) das teorias semânticas
que o alimentam — com todos os argumentos que sustentam uma tal rejeição (a começar
decerto por aquele que Dworkin, desde Law’s Empire a Justice in Robes, tem vindo
persistentemente a associar a um certo semantic sting)—, mas agora para exigir que esta
rejeição passe a situar-se num outro plano e como parte integrante de um outro processo
de superação-substituição — ora um processo que não só nos permite recusar outras
reinvenções do positivistic camp (livres de pretensões meta-semânticas, como são afinal as do
positivismo includente)431, como também nos permite denunciar o fatal flaw que fere um
432
número muito significativo de posições não positivistas ! Que outro plano? Aquele em
que o problema das relações direito /moral se desvincula da imagem ou da configuração dita
«tradicional» ou «ortodoxa» (the classical view) — daquela «imagem» que o considera-resolve
(positiva ou negativamente) invocando dois sistemas ou duas colecções de normas433 (a two-systems
picture (…), an old picture that counts law and morality as two separate systems and then seeks or denies
(…) interconnections between them434) —, para antes e em contrapartida levar a sério uma
compreensão integrada, iluminada pelas possibilidades reflexivas de um sistema único (a
one-system picture435(…), a conception of law that takes it to be not a rival system of rules that might
conflict with morality but as itself a branch of morality436).
Para a compreensão das práticas interpretativas juridicamente relevantes, a
oportunidade é paralela àquela que explorámos supra [2.3.1.]: trata-se por um lado de
reconhecer em tais práticas uma dimensão da moralidade política, entenda-se, de encontrar
para estas e para o seu purpose (se não já para o seu doctrinal concept) uma «justificação»
integrável na «rede» unitária do political value (finding a justification of those practices in a larger
integated network of political value), trata-se por outro lado de determinar (com uma clareza
inexcedível) a especificidade que nesse todo as distingue das restantes — o que aqui e agora
significa estar em condições de construir uma teoria do direito que se nos dirija com a mesma
identidade e autonomia com que se nos dirigem outras teorias dos valores políticos (we
construct a theory of law in the same way that we construct a theory of other political values— of equality,
liberty, and democracy)437. A resposta para este desafio, encontra-a Dworkin explorando um
fluxo integrado e a correspondente estrutura em árvore: aquela que, sem prejuízo da
identidade dos discursos em causa, nos autoriza a passar dos juízos éticos (making a claim
about what people should do to live well (…) or should aim to be and achieve in their own lives) aos
juízos da moralidade pessoal (making a claim about how people must treat other people)438… e destes
últimos ao território da moralidade política, antes de iluminar o jurídico como um ramo
específico desta última (we can easily place the doctrinal concept of law in that tree structure: law is a
branch, a subdivision, of political morality439, law is a branch of political morality, which is itself a branch
of a more general personal morality, which is in turn a branch of a yet more general theory of what is to live
well440). Se o problema da integração (reciprocamente sustentada) da ética e da moralidade
pessoal441 (se não dos correspondentes sistemas de princípios442) se enfrenta (e resolve) recriando
a unificação kantiana — libertando-a do seu misterioso metaphysical environment (taking place in
the dark of the noumenal world) para a levar a sério como um autêntico «princípio» (a person can
achieve the dignity and self-respect that are indispensable to a successful life only if shows respect for
humanity itself in all its forms)443… e poder assim interrogar as suas implicações e os seus
435 Ibidem.
436 Ibidem, p. 5.
437 Ibidem, p. 405.
438 Ibidem, p. 25.
439 Ibidem, p. 405.
440 Ibidem, p. 5.
441 Ibidem, p. 255.
442 Ibidem, p.263.
443 Ibidem, p.19. «If you do, or if I can otherwise persuade you of their truth, I can appeal to Kant to
say that you must accept that what makes these principles true for you is your humanity: the fact that you have
a life to lead and death to face. That is something you share with all other humans beings. That ground of
personal morality springs from ethics. And out of that personal morality springs the political morality…»
109
limites (what are the implications of Kant´s principle for how you must treat other people?444)… —, as
questões da especificação-passagem desta moralidade pessoal para o plano da moralidade política
(enquanto processo de institucionalização-estabilização de uma ordem social) e da
autonomização, no seio desta, da juridicidade, essas satisfazem-se não menos
aproblematicamente com uma invocação das regras secundárias de Hart e com o tratamento
indiscriminado destas — como se tais regras nos interessassem apenas em bloco, na sua
relação constitituva com o princípio da separação de poderes e com este na versão checks
and balances antecipada por Montesquieu445. O resultado, conduzido sem surpresa a partir da
perspectiva-prius dos direitos e do património de autodeterminação individual que estes
constituem (com os deveres a aparecerem-nos apenas como meros correlatos destes),
impõe-se-nos no entanto com uma transparência sem precedentes. Trata-se, na verdade, de
distinguir duas «classes inconfundíveis de direitos e de deveres políticos» (direitos e deveres
da moralidade política) e os territórios correspondentes:
(a) os direitos e deveres que, por estarem associados ao plano de determinação das
policies e dos programas de fins colectivos que estas traduzem (por poderem ser
integralmente determinados a partir dos arguments of policy), se nos impõem como direitos e
deveres estritamente políticos, ou mais rigorosamente, direitos e deveres legislativos, que, para se
tornarem vigentes e eficazes, dependem da intervenção prévia do statutory law e das escolhas
que esta faça, ou que normativamente prescreva, com maior ou menor colaboração de
outras experiência constitutivas (lawmaking powers) — direitos e deveres assim cuja
consagração/não consagração (dependendo dos «caprichos da democracia») será criticamente
reflectida no quadro de uma filosofia política geral;
(b) os direitos e deveres que, por aparecerem vinculados às exigências dos princípios
(e à integridade da sua community ou aos argumentos que a constituem), se nos impõem como
direitos e deveres genuinamente jurídicos (legal rights), ou mais rigorosamente, direitos e deveres
que os seus titulares podem tornar eficazes recorrendo directamente às instâncias judiciais
(without further legislative intervention) — cuja consagração/não consagração será criticamente
reflectida no quadro de uma teoria do direito e desta precisamente enquanto procura uma
[«Keynote Address: Justice for Hedgehogs», Boston University Law Review, vol. 90, disponível em
http://www.bu.edu/law/central/jd/organizations/journals/bulr/documents/DWORKIN_K.pdf (extraído
em Janeiro 2012), p. 476].
444 Justice for Hedgehogs, cit., p. 260.
445 Ibidem, p. 405.
110
resposta normativa para uma questão política («sob que condições» se adquirem «direitos e
deveres da moralidade política» que se possam dizer «especificamente jurídicos»?)446.
A formulação desta última pergunta, associada à distribuição dos direitos por estes
dois territórios, é assumida por Dworkin como uma chave decisiva para, superando aquilo
que diz um «erro histórico» (a historical mistake447), concentrar as tentativas do positivismo e
do não positivismo interpretativista (interpretativism) no problema das condições de aquisição dos
direitos jurídicos… — o que aqui e agora significa esclarecer as duas posições nuclarmente
enquanto respostas à referida pergunta e então e assim tratá-las (levá-las a sério) como
teorias político-normativas rivais (the substance of the old confrontation between positivism and
interpretativism [remains](…) but (…) in a poltical rather conceptual form448). Com a primeira
resposta a querer reduzir tais condições de aquisição à contingência das fontes sociais (a
«factos históricos» àcerca da «legislação» ou das «convenções sociais»)… e com a segunda a
fazer intervir arguments of principle (principles of political morality) e a melhor interpretação prático-
contextual (moralmente comprometida449) que estes garantem (we must treat the special structuring
principles that separate law from the rest of political morality as themselves political principles that need a
moral reading450).
446 Ibidem, p. 406. Trata-se de uma teoria do direito que, ao expor-se-nos como ramo da filosofia
política, poderá afinal ser proveitosamente «desenvolvida» nos departamentos de filosofia e de política, bem
como nas «faculdades de direito» (p.410).
447Ibidem, p. 407
448 Ibidem, p. 409
449 Ibidem, p. 415
450 Ibidem, p. 413
111
perspectiva externa e pelas possibilidades que a consagram, mesmo por aquelas que invocam um
moderate point of view (sensível ao aspecto interno da normatividade)451…
É já como elementos de diferenciação interna que por sua vez nos importam:
(d) desde logo o reconhecimento de que a procura de uma identidade normativa
(que distinga o direito no seio das práticas em causa) passa pela experiência de uma
comunidade de princípios e pela institucionalização diferenciada que esta proporciona.
(e) depois também o reconhecimento de que esta institucionalização diferenciadora
do juridico, precisamente porque leva a sério uma circunstância em que o carácter
programaticamente e contingentemente político da legislação se tornou indiscutível, só
encontrará a sua condição de possibilidade responsabilizando nuclearmente a jurisdição — e
esta enquanto intenção e discurso de realização autónomos.
Poder-se-á dizer que as convergências plausíveis ficam por aqui. Muito
simplesmente porque as respostas ensaiadas por Dworkin especificam possibilidades de
desenvolvimento que estão longe de se nos impor sem alternativa. Sublinhando a traço
grosso as componentes a tematizar pelo presente seminário, eu concluiria considerando
sucessivamente os dois fluxos em causa (respectivamente de integração e especificação):
α) acentuando em relação ao primeiro fluxo que uma coisa é exigir que o percurso a
cumprir passa decerto pela resistência dos mundos e pensamentos práticos envolvidos à
hipertrofia colonizadora da episteme-technê — se não já pela reinvenção dos compromissos de
participante que hão-de traduzir esta resistência —, outra já entender que o desenvolvimento
permitido de uma tal resistência e de um tal desafio de reinvenção dos compromissos
internos se cumpre necessária e satisfatoriamente invocando uma alternativa global de
interpretação e a racionalização construtiva que esta oferece (e que negligencia
manifestamente a relevância do caso-problema452);
β) acentuando em relação ao segundo fluxo que uma coisa é procurar a
especificidade institucional do mundo prático do direito dando atenção à inter-relação com
outros mundos práticos (se não à compreensão global da praxis e do pensamento prático),
451Com o alcance exemplarmente autonomizado por Hart e que nos permite distinguir este ponto de
vista externo moderado (referring to the internal aspect of rules seen from their internal point of view) do ponto de vista
externo que reduz empírico-explicativamente a normatividade (extreme external point of view), mas também
daquele que, na linha do bad man de Holmes, se constrói assumindo o ponto de vista de um participante
anómalo, não comprometido (alienated external point of view): ver The Concept of Law, cit., pp. 89 e ss., mas também
e ainda as reflexões de Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 286 e
ss.
452 Nas três etapas-stages analiticamente expostas em «Interpretation in general», o caso só aparece (et
pour cause!) na última: «We interpret (…), third, when we try to identify the best realization of that package of
purposes on some particular occasion…» (Justice for Hedgehogs, cit., p.131).
113
outra admitir que tal procura cessa — porque encontramos a única resposta plausível! —
quando, no seio da moralidade política e pressupondo um único sistema (mas também
rejeitando diversas frentes internas e externas de cepticismo… e levando a sério uma
concepção universal, não contingente, da moralidade453) identificamos uma perspectiva de
direitos individuais e os princípios (e arguments of principle) que os «descrevem» e consagram…
Se uma identificação institucional com este alcance parece traduzir uma experiência
da juridicidade (ou da especificação genuinamente jurídica da moralidade política) fiel ao legado
demo-liberal (ainda que porventura a um legado aculturalmente purificado nas suas
pretensões, se não reforçado na universalidade das suas aquisições) — nem por isso menos
capaz de, graças à estrutura em árvore, se articular com uma neomaterialização correctora
cumprida no plano global da moralidade política e dos pensamentos que a tematizam (mas
também projectada nas políticas públicas da legislação) —, a exemplificação proposta,
fazendo pairar sobre o contraponto direitos jurídicos/ direitos legislativos um argumento de
contingência (legislative rights, even when aknowledged, are of no immediate force, legal rights, once
aknowledged, are immediately enforceable454), está longe de se nos impor com a inequivocidade
esperada: se se compreende que um dos núcleos de consagração de direitos genuninamente
jurídicos seja encontrado por Dworkin no universo do direito privado (associado a uma
especificação negocial do princípio da participação e à correlativa especificação comutativa
do princípio da responsabilidade), compreende-se menos que a exploração dos outros direitos,
daqueles que têm como correlato deveres da societas (tanto mais que se trata de invocar como
perspectiva-prius a distinção entre direitos directamente accionáveis e direitos que exigem uma
intervenção legislativa) não reproduza o equilíbrio dogmaticamente consagrado entre direitos,
liberdades e garantias por um lado e direitos a prestações sociais por outro lado (ou o núcleo duro
em que tal contraponto, assimilando o legado das várias gerações de direitos, se nos impõe
hoje menos controvertido). Se é certo que a faculdade de exigir à societas a institucionalização
lograda de um princípio de separação de poderes nos aparece claramente entendida como
um direito genuinamente jurídico (como serão jurídicos os direitos e deveres «descritos» pelos
princípios da obediência à lei, da vinculação aos precedentes, do acesso à justiça, da
independência dos tribunais ou do contraditório e aqueles que traduzem a preservação da
universalidade constitutiva do princípio da igualdade), é já como um direito legislativo (num
horizonte de moralidade política ainda não especificamente jurídico) que em contrapartida se
nos oferecem algumas especificações concretizadoras do direito à liberdade de expressão (ou
pelo menos a faculdade de exigir que os community’s lawmaking powers garantam um discurso
político sem censura)… — o que aproxima claramente este direito daqueles em que estão em
2.4. Seja como for, ficam por explorar compreensões integradas da relação
juridicidade/ moralidade-eticidade que escapam a esta imagem de sistema único (e que assim
mesmo abrem outras possibilidades de tematização). Aludirei a duas, exemplarmente
distintas: a primeira a assumir o jurídico como uma ideia moral — a responder ao desafio de
o compreender simultanea e incindivelmente como uma instituição social (the mundane view
of law) e como uma aspiração prático-cultural (the aspirational view of law)456 [2.4.1.] —, a
segunda a partir de uma compreensão da prática iluminada pela ética filosófica e pela
argumentação que a sustenta… e a descobrir o lugar do direito num discurso de
constrangimentos ou de limites (arguments considered as correct in the practice of law (…) show
limits which do not exist in ethics)457 [2.4.2.].
vol.1, nº1, 2010, pp.1-23, «Reply: The Nature and Virtue of Law», Jurisprudence, vol.1, nº2, 2010, pp. 277-293
[este número publica de resto os textos de um symposium sobre a obra de Simmonds (com abordagens críticas
de Finnis, Gardner e Endicott e esta resposta de Simmonds): «A Symposium on Nigel Simmonds's Law as a
115
Moral Idea», ibidem, pp. 241-293] e ainda «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», German
Law Journal, vol. 12 nº 2, 2011, pp. 601-624, disponível em http://www.germanlawjournal.com
/index.php?pageID=11&artID=1336 (extraído em Dezembro de 2012). Para além destes textos, importa
lembrar que um dos recursos mobilizáveis pelos mestrandos é decerto a reconstituição do intenso debate
Kramer/Simmonds (permitindo-nos perceber a posição clara deste também perante as exigências do
positivismo includente): ver neste sentido a reconstituição bibliográfica proposta por Mátyás Bódig, «Comment
on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the Contemporary Legal Theoretical Discourse», German
Law Journal, vol. 12 nº 2, 2011, p. 626, nota 4.
459 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., pp. 21 e ss. («The Fragmentation of Inquiry: Hart»), 25 e ss.
expressed the point, the law is always “in quest of itself.”(…)The eight requirements are not principles of
efficacy, but (when taken together) represent a moral ideal for legal systems…» («The Nature of Law: Three
Problems with One Solution», cit., pp. 613, 616)
462 Para uma acentuação atenta do peso deste «legado» (e das transformções introduzidas por
Simmonds), ver Mátyás Bódig, «Comment on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the Contem-
porary Legal Theoretical Discourse», , cit., pp. 625 e ss., 630 e ss. , 634-638 («Fuller’s Legacy»), 643 e ss., 656 e
ss. «Part of the reason for me to think that [Simmond’s] is a particularly promising account of law is that he is
a neo‐Fullerian (…). I will put particular emphasis on pointing out why I think Fuller’s legacy can be a guide
for anti‐positivist legal theory (…). It may turn out to be an advantage at the end of the day, that (…) [the
Fullerian initiative] was not an attempt to clarify how the constitutive principles of one’s moral and political
outlook are reflected in law. Instead, it was an attempt to reveal the morality that is internal to law. If we can
renew the Fullerian initiative in some way, we have a chance to undermine the common misconception that
the only effective guarantee of the integrity of law and legal thought is the positivist separation of law and
morality. (…) Although what Simmonds provides is undoubtedly a neo‐Fullerian account, it fundamentally
changes the philosophical character of the Fullerian initiative… » (Ibidem, pp. 625, 638, 656).
463 Ver exemplarmente Raz, «The Nature of the Theory of Law», in Coleman (ed.), Hart’s Postscript,
464Como o próprio Simmonds não deixa de reconhecer: ibidem, p. 23, nota 31.
465 Ibidem, pp. 23, 25.
466 Dworkin, Justice in Robes, cit., p.2
467 A defesa indispensável desta identidade (sem prejuízo da preferência por outras formulações) será
de resto muito justamente assumida pela proposta de Simmonds (como já o era de resto por Fuller)!
468 Dworkin, Justice in Robes, cit., pp. 9 e ss.
117
tal «conceito» se nos imponha como uma instância reflexiva inconfundível (distinta daquelas
que os conceitos sociológico, taxinómico e aspiracional asseguram469), trata-se também de, ao
responsabilizar esta instância pela tematização das condições de verdade das proposições jurídicas,
«subestimar» conexões possíveis com as outras instâncias (instâncias cujos contributos serão,
segundo ele, em geral imprecisos ou redundantes… e que só circunstancialmente, nos limites
de agendas de investigação muito específicas, poderão mostrar-se plausíveis ou relevantes)470! É
de resto esta centralização reflexiva que o leva a encontar no conceito doutrinal um limite-
-boundary (unilateralmente pensado) para as determinações oferecidas pelos restantes (muito
especialmente para aquelas que o conceito sociológico procura471), na mesma medida em que,
como já vimos, o autoriza a admitir que o debate positivismo/não positivismo — sem prejuízo
das suas intenções imediatamente políticas — possa pensar-se (esclarecer-se) nuclearmente
como uma dicussão dos modos possíveis de constituição-manifestação dos direitos
genuinamente jurídicos… e então (e assim) jogar-se por inteiro no tabuleiro do doctrinal
concept472(the inquiry focuses upon the question of whether moral criteria are amongst the truth conditions of
doctrinal propositions of law473).
469 Recordemos apenas, em duas palavras que, se a procura do conceito sociológico é aquela que deverá
cumprir-se quando perguntamos se uma determinada institucionalização da vida em comum (por ex., a ordem
de uma «sociedade tribal primitiva») pode ou não ser identificada com um «sistema jurídico» (a particular type of
institutional social structure), a procura de um conceito taxinómico será já aquela que se nos impõe quando, perante
um acervo de regras ou de padrões mobilizados (ou mobilizáveis) por certas decisões, quisermos estabelecer
uma fronteira precisa entre os que são ou não são jurídicos, ou mais rigorosamente, entre os que são ou não
parte integrante da ordem jurídica vigente ([to identify] legal standards as opposed to moral or customary or some other
kind of standards) [Justice in Robes, cit., pp. 3-4]. A procura do conceito aspiracional (mais formal ou mais
materialmente compreendido), essa só fará sentido quando o objectivo for o de celebrar o «ideal da
juridicidade» (aqui aproblematicamente vinculado ao ideal da rule of law) — sendo certo que, na perspectiva de
Dworkin, a resposta a uma tal procura e aos seus «valores» terá hoje inevitavelmente que passar por uma
exigência de political integrity e pela especificação da igualdade que esta assimila (the principle that a state should try
to govern so far as possible through a coherent set of political principles whose benefit it extends to all citizens) [ibidem, p. 13].
Pelo significado que a reinvenção do pensamento de Fuller assume na proposta de Simmonds, importa
lembrar que The Morality of Law se preocupa precisamente em distinguir uma morality of duty e uma morality of
aspiration, mostrando o significado que este binómio deve ter na compreensão-experiência do jurídico
(podemos mesmo dizer que a inner morality of law reconstruída por Fuller «compreende tanto uma moralidade
de dever quanto uma moralidade de aspiração») : Fuller, The Morality of Law (1964), London: Yale University
Press, revised edition, 1969, pp. 5-9, 13 e ss., 41-44 («The Aspiration toward Perfection in Legality»)
470 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., p.27
471 «The doctrinal concept of law figures among the boundaries of the sociological concept in this
way: nothing is a legal sytem in the sociological sense unless it makes sense to ask what rights and duties the
system recognizes… » (Dworkin, Justice in Robes, cit., p.4)
472 Com a consequência de devermos tratar a resposta de Hart, malgré elle, como se situasse também
neste plano (Ibidem, pp. 8 e ss., 26, 145). Para uma exploração esclarecedora do debate Hart /Dworkin a partir
da «grelha» de Justice in Robes (também atenta às posições de Fuller), cfr.David Dyzenhaus, «The Grudge
Informer Case Revisited»,
https://law.nyu.edu/ecm_dlv4/groups/public/@nyu_law_website_journals__law_review /documents /
web_copytext/ecm_pro_059774.pdf (extraído em Agosto de 2012), pp. 21-28, mas também Michael S.
Green, «Dworkin v. The Philosophers: A Review Essay on Justice in Robes », University of Illinois Law Review,
vol. 2007, nº 5, pp. 1477 e ss. «One can understand Hart's theory as concerning the concept of law in both
the sociological and taxonomic sense. Hart's idea of a rule of recognition was intended to identify those
societies in which law, rather than a more informal system of norms, exists. Furthermore, Hart's theory might
be understood as concerning the taxonomic concept, in the sense that only those norms identified by the rule
of recognition should be considered laws. But Dworkin accepts that Hart's conception of a rule of
recognition provides an account of the doctrinal concept of law and so is a theory of law in the proper sense.
118
Hart's theory provides truth conditions for propositions of law. It simply gives the wrong truth conditions…»
(Ibidem, p. 1483, nota 31)
473 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., p. 26
474 Law as a Moral Idea, cit., pp. 37 e ss. («Law as Instrument and as Aspiration»).
475 Ibidem, p.38.
476 Ibidem, pp. 33-34. Ver já infra no texto a referência à perspectiva do participante em Dworkin.
477 Ibidem, pp. 31-32.
478 «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., pp. 603-607 («Three Problems»).
119
rejeitando!) a pressuposição do positivismo crítico na sua resposta ao desafio dos casos difíceis
(the assumption that law somehow goes beyond the authoritative materials of the law is a kind of illusion
that arises if we ignore the “open texture” of rules, (…)[the disagreement this indetermination provokes] is
(…) not about what the law is but a moral or political argument about how a gap in the law should be
filled479), possa em pleno invocar a idealidade do jurídico e o excesso normativo deste
relativamente às statutory e common law rules ([s]ince the judicial decision must be justified by reference
to the law, and since (…) the derivability of a rule from the rule of recognition does not guarantee that the
rule is law, we cannot treat the judge’s duty as fundamentally a duty to follow the rule of recognition (…),
[but as] a duty (…) of «fidelity to the idea of law»480). Desta compreensão resulta enfim a
exigência de libertar os problemas da determinação do conteúdo do direito (e os problemas da
adjudication em particular) de uma perspectiva (apenas) de constrangimentos-limites — limites
impostos pela regra de reconhecimento ou pelas práticas que estabilizam um seu sucedâneo
possível (the rule of recognition as an outer bounding limit upon the juridical domain481)—, para antes e
em contrapartida (numa superação lograda da distinção entre casos fáceis e casos difíceis482) se
reconhecer que a resposta a tais problemas há-de encontrar a sua intenção fundadoramente
regulativa (a sua luz orientadora) na ideia de direito ([t]he practices of law are practices oriented towards
an idea of law483) — e assim também na reflexão (filosófica) sobre a «natureza» do jurídico 484
que (recuperando a sua unidade e o seu continuum luminoso com a praxis, com o contributo
indispensável da jurisprudência doutrinal485) deve ter como tarefa nuclear «aprofundar»
prático-normativamente esta ideia486 (o que significa menos descrever o que essas práticas
479 Ibidem, p. 607. «[P]enumbral cases cannot be resolved by exclusive reference to the law, but only
by reliance upon considerations (of morality or policy, for example) that lie beyond the legal rules…» (Ibidem,
p. 609).
480 Ibidem, p.621.
481 Ibidem, p.611.
482 «The distinction between the core case (where the rule can be straightforwardly applied) and the
penumbral case (where it cannot) is a continuous distinction. That is to say, there is no clear boundary between
the core and the penumbra. For that reason, the judge cannot adopt a discontinuous strategy of adjudication
that requires core cases to be decided one way (by reference to the rules) and penumbral cases to be decided
differently (by reference to justice). The judge must adopt a strategy of adjudication that addresses all cases in
the same way…» (Ibidem, p. 622). Invocando, no mesmo sentido, o papel da idea of Law na resolução dos
penumbral cases, ver Law as a Moral Idea, cit., pp. 165 e ss. 191 e ss.
483 «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., p. 614.
484 «[T]he philosophical problem of law’s nature does not spring, as Hart seems to think, from a
need for the careful description of resemblances and differences between different social phenomena, but
from the reflexivity of legal thought. That is to say, legal thought is always guided and informed by reflection
upon the idea of law, and it is the task of jurisprudence to investigate that idea…» (Ibidem, p. 613)
485 Law as a Moral Idea, cit., pp. 189-190 («the practices of legal scholarship»)
486 «To arrive at a better analysis, we need to reject Hart’s account of the rule of recognition and to
grasp the extent to which legal thought is reflexive: the task of determining the content of law is ultimately
guided, not by a basic rule of recognition (such a rule may play a part, but is not fundamental), but by
reflection upon the nature of law itself. Philosophical inquiry into law’s nature should be understood as an
attempt to deepen our understanding of the guiding idea…» («The Nature of Law: Three Problems with One
Solution»,cit., p. 623)
120
têm em comum do que orientá-las, tornando claras exigências de sentido que, embora
«imanentes», a surface appearance dessas práticas dificilmente «disponibilizará»487).
Invocar esta circularidade é no entanto para Simmonds também questionar as
separações-distribuições da investigation agenda de Dworkin e a perspectiva que as torna
possíveis. Por um lado decerto para, em nome de uma compreensão moral (dita) global (moral
understanding as a whole), acentuar as possibilidades críticas da reflexividade que o discurso
jurídico deve considerar (ou que alguns degraus deste discurso estarão em condições de
assumir): o que aqui e agora significa rejeitar que a pura imanência interpretativa de uma
perspectiva de participante e que a hipótese «política» que a ilumina, na sua identidade paralela à
da hipótese «estética» (trying to present the practice in its best light), possam impor-se-nos como
horizontes totalizantes, impedindo as (muito produtivas) interpretações negativas — aquelas
que desafiam a consistência-fit das práticas interpretadas, denunciando dimensões-recursos
a superar ou as relações de poder que as sustentam (negative interpretations of this kind clearly do
not present the practice in question in its best light, but they should not be disallowed for that reason)488.
Por outro lado decerto para, evitando a auto-subsistência centralizadora do conceito doutrinal e
a pressuposição que a protege, levar a sério um continuum de reflexividade no qual as
perguntas que, segundo Dworkin, só fazem circunstancialmente sentido (sob o
enquadramento limitado dos conceitos sociológico, taxinómico e aspiracional), possam impor-se-
nos, sem soluções de continuidade (numa interpenetração decisiva com a mobilização
doutrinal da vigente comunidade dos princípios), como recursos indispensáveis para a
exploração-clarificação da ideia de direito489. O que nos restitui ao desafio da «antinomia
aparente» (between an understanding of law as a substantive moral aspiration and as a moral neutral
instrument490)… mas agora para encontrar uma resposta…
2.4.1.2. Que resposta? É aqui que a herança de Fuller (herança também do seu
confronto com Hart e dos argumentos neste reciprocamente esgrimidos) se nos impõe em
toda a sua transparência. Para Simmonds só será possível, com efeito, vencer a antinomia
em causa se, preservando como tarefa a representação do conceito de direito, conferirmos a
este conceito a estrutura de um arquétipo abstracto (criado pelo continuum práticas/discursos491).
487 Torna-se indispensável explorar aqui o desenvolvimento proposto em «Reflexivity and the Idea
of Law», cit., passim.
488 Law as a Moral Idea, cit., p. 34
489 Ver muito especialmente a conclusão da p. 67 («the analysis of each concept has consequences
that is constituted by our understandings and expectations. (…) If the most coherent solution to this problem
121
Não se trata no entanto apenas de defender uma estrutura «em arquétipo», mas de
assumir uma compreensão do jurídico preferencialmente «aspiracional»: o que significa
vencer a referida «contradição» (garantir a reconciliação plausível das suas componentes),
enquanto se exige que aquela «estrutura» e seu o conceito nos atinja(m) como um «ideal
intrinsecamente moral»(the archetype is an intrinsically moral ideal494)495.
is provided by a abstract archetype, no problematic metaphysical commitments are involved: our practices
themselves create the archetype in so far as they are structured by ideas that are best understood as pointing to
the archetype… » (Ibidem, pp. 55 e 58)
492 Ibidem, p. 53. «The essential hallmark of an archetypal concept is the fact that instantiations of the
endorsment of a value is (…) a matter of judgement (…) invoking other elements in our shared moral
understanding (…), not an ungrounde exercise of will)496.
que Fuller explora na narrativa do reformador Rex [Fuller, The Morality of Law, cit., pp.33 e ss. («The Morality
that Makes Law Possible»)]. Bastando-nos por agora lembrar que a dita moralidade interna do direito (na sua
indiferença explícita em relação a substantive aims) [Ibidem, pp. 152 e ss.] corresponde às seguintes exigências-
requirements: 1) generalidade («there must be rules…»), 2) publicidade («…which are published…»), 3) não
retroactividade («.which are prospective…»), 4) clareza («…which are intelligible…»), 5) consistência
(«…which are free from contradiction…»), 6) possibilidade de cumprimento («…which do not command the
impossible, which are possible to comply with…»), 7) estabilidade temporal razoável («which should not be
changed too frequently…»), 8) congruência entre as regras pressupostas e as acções oficiais que as mobilizam,
executam ou realizam («there must be congruence between the declared rules and the official action…»).
499 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., pp. 64 e ss («Eight Desiderata»).
123
taken collectively, can be regarded as a guiding ideal for legal thought: the ideal that we usually label «the rule
of law»500.
500 Id., «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., p. 616. « Much of Fuller’s
book is taken up with showing how legal practices represent, as he puts it, a purposive activity, and how the
overall coherence of the activity is revealed by grasping the way in which it serves the idea of compliance with
the eight desiderata. (…) Hart’s critique of Fuller appeared to suggest that the moral value of compliance with
the eight requirements is wholly contingent upon the law’s content, and that the eight requirements are more
akin to precepts of efficiency than to moral standards. This criticism has been widely endorsed as correct. In
fact, the criticism is not correct. The eight requirements are not principles of efficacy, but (when taken
together) represent a moral ideal for legal systems…» (Ibidem)
501« Nevertheless, it must be conceded that Fuller never really succeeded in giving a clear explanation
of the moral status of his eight requirements. It is here that I feel my own work clarifies matters and
contributes positively to the debate…» (Ibidem, p. 617)
502 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., pp. 99-104 («Liberty and the Rule of Law»), 104 e ss., 109-
111 («Final remark»), 136 e ss., 136-143(«A better conception of law»), 158 e ss., 176, 189 e ss, 197. Ver
também a eloquente síntese proposta em «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., pp.
615-621.
503 Law as a Moral Idea, cit., p. 109.
504 « The notion of legality (…) is logically tied to one of the most important aspects of liberty:
independence from the power of others. (…) Freedom in this sense is not a matter of the number or diversity
or value of options open to an individual. » (Ibidem, 111, 141).«[A] slave may conceivably, in certain
circumstances, enjoy more options than a free man: consider a slave whose master gives him very few tasks to
perform, by contrast with a free man who has many onerous duties as part of his work, or his family life, or
his role as a citizen. (…) In the case of the free man (…) the options that he has, and the duties he bears, are
never fully dependent upon the will of someone else. This is so, at least, to the extent that the free man lives
under the rule of law. …» («The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., pp. 617-618).
505 Ibidem, p. 623.
506 Law as a Moral Idea, cit., p. 143.
124
the extent that we are governed by institutions approximating to full compliance with Fuller’s eight precepts,
we enjoy a degree of freedom as independence that can be enjoyed in no other way507).
Admitir este ponto de chegada significa, com efeito, sintetizar um projecto de
«conjugação» dos valores da juridicidade e da justiça que, mobilizando embora a herança de
Fuller, não menos eloquentemente se abre para além dela: mais do que propor uma
reconstrução (refinement) dos desiderata508 atenta à relação que o sistema de principles e rules
deve manter com a comunidade a que se dirige509, tal «conjugação» implica, na verdade,
uma atenção privilegida à circularidade das práticas e dos pensamentos e ao modo como
estas especificam (reinventam) integrantemente uma exigência de fidelidade ao direito (our
experience of the problems internal to the realization of the ideal will lead to an enriched grasp of what the
ideal really amounts to, and how it should be understood510). Atenção que, sem escapar ao desafio
do pluralismo e à problematização argumentativa que este exige, «exibe» um «cepticismo»
logrado perante «o cepticismo das raposas»511? Importará reconhecê-lo. Sem esquecer que
se trata assim também de reafirmar um continuum metodológico hostil ao contraponto casos
fáceis/casos difíceis e de confirmar a plausibilidade-claim de um tratamento judicativamente
integrado, iluminado pela moralidade do direito, se não, mais especificamente, pela exigência
de respeitar o valor da liberdade como independência (there is, therefore, no sense of “law” in which (…)
legality is reduced to a simple matter of derivability from a rule of recognition (…), judicial invocation of the
law (…) must be construed as ultimately appealing to the ideal of the rule of law512).
507 «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., p. 618.
508 Law as a Moral Idea, cit., pp.158 e ss. («Refining the Archetype»).
509 «For reasons of both followability and intelligibility, therefore, the law will need to have a certain
fit with existing forms of life, habits of conduct, settled expectations and shared moral sentiments. (…) The
refinements proposed (…) [include] a requirement that compliance with the body of rules should be
reasonably compatible with a viable way of life; and, since the intelligibility of a rule is a matter of degree, the
archetype of full intelligibility should require some consonance between the system of rules and the settled
moral understandings of the population governed by their rules…» (Ibidem, pp. 163, 189-190).
510 Ibidem, p. 145.
511 Já assim claramente convocando Isaiah Berlin… antes de Justice for Hedgehogs: ibidem, pp. 176-180
parece-me possível dizer-se que a tentativa de Law as a Moral Idea pode agora quando muito
servir-nos como uma especificação lograda do que então dissemos uma dinâmica de integração
(ou de diferenciação unitária perante as arenas exteriores) [supra, 2.3.3.]. Se o reconhecimento
desta dinâmica, numa superação decisiva dos equívocos do incorporacionismo, nos permitiu
confirmar que o caminho exigível passa por uma recompreensão das práticas e dos
discursos do direito na sua unidade intencional [a)] e na sua circularidade constitutiva [b)]
— e por esta unidade e circularidade (também) enquanto rejeitam a hipertrofia da episteme-
-technê e experimentam uma racionalidade alternativa [c)] —, importa dizer que o caminho
ensaiado por Simmonds confirma este reconhecimento, acrescentando uma especificação
significativa (tanto mais significativa quanto transgressora de um certo parochial canon) : não
se trata com efeito apenas de reforçar a referida unidade e o carácter constitutivo da
circularidade que a traduz — submetendo-as por um lado a uma experiência de continuum,
abrindo-as por outro a uma radicalização crítico-reflexiva (em termos que já
suficientemente acentuámos)513 —, trata-se muito especialmente de defender que a
reconstituição desta relação entre ideal e realization (entre understanding e action, entre values e
practices) — rompendo muito justamente com uma tradição de redução epistemológica do
problema da normatividade514 — exige como perspectiva-horizonte um certo regresso a
Aristóteles e a filosofia prática (se não a reinvenção da phronêsis) que este regresso (na sua
tradução gadameriana) estará em condições de estimular515 (we discover the limitations of an
explicitly formulated principle, and deepen our understanding of the moral value that it imperfectly
expresses, through the experience of trying to apply it in the multifarious circumstances of the real world 516) .
Uma especificação significativa? Importa reconhecê-lo517. Sem prejuízo de devermos
simultaneamente concluir que os resultados obtidos por esta identificação da perspectiva,
tanto no plano global da recompreensão da praxis, quanto no plano específico da
distinctive philosophical tradition that has not really made an impact on Anglo‐Saxon legal theory, and that is
pretty alien to Dworkin. Simmonds sympathises with a kind of Aristotelian practical philosophical perspective
that revolves around the practical wisdom inherent in our practices and morally significant experiences. (…)
For Simmonds, Gadamer is the guide to the way the Aristotelian perspective can be used in a contemporary
philosophical context…» (Bódig, «Comment on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the
Contemporary Legal Theoretical Discourse», cit., pp.655-656)
126
2.4.2. O longo parêntesis que abrimos para enfrentar o puzzle gerado pelos debates
do positivismo — e esclarecer o equívoco das muitas e variadas moralidades que nele são
mobilizadas — cumpre-se com a alusão a um último caminho e à proposta que permite
pensá-lo — uma proposta que, sendo tão manifestamente exterior ao evocado parochial
ground como as de Alexy e de La Torre, não deixa como estas de significativa e
constitutivamente se lhe dirigir (em termos embora exemplarmente diferentes). Refiro-me à
compreensão assumida por Sousa e Brito e ao modo como esta defende que o
reconhecimento, levado a sério enquanto facto constitutivo e enquanto critério de validade (com a
positividade que o traduz), se auto-suspende parcialmente no quadro institucional do Estado-
de-direito — com a consagração de uma «esfera de racionalidade» na qual as «normas da
razão ética» estejam em condições de «contradizer as normas positivas» e de prevalecer
«sobre elas por superioridade lógico-normativa e hierárquica» —, implicando uma tal
suspensão institucional a auto-suspensão, não menos impressiva (por razões claras de
518 «For Simmonds, however, Dworkin is not really detached from the “modern” approach…»
«coerência»), da sources thesis (pelo menos) naquelas posições que apostam num positivismo
includente (anche il positivismo giuridico, nella misura in cui si basa sul riconoscimento, deve sospendere se
stesso nello Stato di diritto)522.
(conferência plenária das I Jornadas da ATFD, Lisboa, Janeiro de 2009), mimeo, cit. na trad. italiana proposta
como lezione none em False e vere alternative nella teoria della giustizia. Lezioni napoletane di filosofia del diritto, 2011,
Napoli, Editoriale Scientifica, pp. 159-160. Ver também «A Constituição do Direito e o Positivismo Jurídico»,
Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 Anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, Almedina,
2007, pp. 717-718 e «O que é o direito para o jurista?», Estudos em Homenagem a Miguel Galvão
Teles, I, Coimbra, Almedina, 2012, p. 40.
523 Brito, «Hermeneutik und Recht», Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte. Romanistische
Abteilung, CIV, 1987, pp. 596 e ss., 617-619 (ver trad. port. no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra LXII,
1986, pp. e trad. italiana em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit., pp. 163 e ss., 195-198). Em
relação ao silogismo prático ver ainda «Legal Interpretation and Practical Inference», International Journal for
semiotics of the Law, vol.VII nº1, 1994, pp. 101, 104 e ss. e «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça»,
in Figueiredo Dias, Gomes Canotilho, Faria Costa (ed.), Ars iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor
António Castanheira Neves, I, cit., pp.314-320 (ou na versão italiana, False e vere alternative nella teoria della giustizia,
cit., pp. 72-79).
524 «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 289, False e vere alternative nella teoria
/utilidade (na paradigmática separação atribuída ao Dworkin de Taking Rights Seriously), e com
este também a distinção tripartida entre éticas «dos direitos do homem», do «dever» e da
«felicidade» — sem prejuízo de as categorias envolvidas em tais exercícios de separação nos
servirem (e continuarem a servir-nos) para «caracterizar diversas correntes do pensamento
ético»525—, nos expõe(m) a «falsas alternativas» (a «pseudo-alternativas») quando se trata de
reflectir sobre a «fundamentação filosófica da teoria da justiça»526: decerto porque «a prova do
utilitarismo de Bentham» se reconduz afinal ao «imperativo categórico de Kant»527, não
podendo este «imperativo», por sua vez, «desenvolver-se discursivamente em termos
diferentes dos propostos por Aristóteles»528. Conclusão tanto mais relevante quanto é certo
que se trata assim também de abrir as portas para um repensar da relação entre «razões
éticas» e «razões jurídicas»… e para considerar, «partindo de baixo» («da progressiva
harmonização de máximas do agir» e «da resolução de conflitos entre princípios éticos»),
verdadeiras «alternativas do desenvolvimento do direito» — «alternativas» da teoria da justiça
«em vista do direito» que assim se nos oferecem inextricavelmente como «sistemas éticos»
(«sistemas alternativos de dedução ética a partir do direito»), entenda-se, como os «sistemas da
justiça» possível nas diferentes circunstâncias de cada ordem jurídica»529 (starting from the different
legal systems of the rule of law states, alternative ethical systems can be construed from the law530).
Em que termos é que esta reconstrução das «alternativas de desenvolvimento da
teoria da justiça em função do direito»531 nos estimula a repensar a relação
juridicidade/moralidade? O núcleo da resposta, esse encontramo-lo na identificação da
referida moral: moral que se nos expõe, por uma vez, livre das significações polarizadas que
vimos conformar o debate positivismo /não positivismo (moral substantiva/procedimental, moral
convencional/crítica, moral particular/universal)532… para exemplarmente se ver reconduzida ao
plano da ética filosófica e do seu discurso de razões, na sua inteligibilidade prático-prudencial,
Eu diria que não fica nada…» (Ibidem, respectivamente pp. 309 e 62).
528Ibidem, respectivamente pp. 334 e 101. Tratando-se aqui de invocar o modelo do «silogismo
prático», mas também de ter presentes as relações de «imersão da ética no direito» e de «desenvolvimento da
ética a partir do direito» que, segundo Brito, Aristóteles inexcedivelmente pensou (ver, neste sentido, ibidem,
respectivamente pp. 330 e 95-96).
529 Ibidem, respectivamente pp. 334 e 101.
530 Brito (com a colaboração de A. Serpe), «20th Century Legal Philosophy in Portugal», in Pattaro
/Roversi (ed.), Legal Philosophy in the Twentieth Century: The Civil Law World, vol. 12 ( do Treatise of Legal
Philosophy and General Jurisprudence, Springer, 2013 (a publicar), secção 2.3.1.10. («Analytical Philosophy of Law:
Brito»).
531 Ver todo o cap. IV de «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça» (cit., pp. 320-334),
convertido na lezione quinta («Le alternative di sviluppo della teoria della giustizia in funzione del diritto») de
False e vere alternative nella teoria della giustizia (cit., pp. 81-101).
532 Significações que nem os argumentos de Dworkin nem os de Simmonds se mostram ao fim e ao
mas também na universalidade racional do seu auditório (la parola «morale» vuol dire qui «etico»,
e non sto parlando di morale sociale ma di etica filosofica533).
«Quando falo aqui de ética e de argumentos éticos uso as palavras num sentido
amplíssimo, fazendo coincidir o domínio da ética com o do raciocínio prático, ou da praxis,
de Aristóteles, que abrange a justificação das acções em vista de todos os fins possíveis»534.
Como se se tratasse afinal de convocar o «horizonte de todos os fins possíveis de todos os
homens» e com este uma «comunidade de razões filosóficas», entenda-se, uma «comunidade
ideal» em que todos se motivassem por «razões éticas universais»535.
533 «O que é o positivismo jurídico», cit. em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit., p.154.
534 «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 325, False e vere alternative nella teoria
della giustizia, cit., p. 89.
535 Ibidem, respectivamente pp. 329-330 e 94-95. Ver também «O que é o positivismo jurídico», cit.
em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit., pp. 154-158 e «Public Reason Between Ethics and Law»,
cit., pp. 469-470 («Legal Reason and Ethics»)
536«O que é o positivismo jurídico», cit. em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit.., p. 154.
537 «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 325, False e vere alternative nella teoria
«normas remissivas do direito para a ética» (remissões explícitas) e o do «uso nas normas jurídicas de conceitos
éticos fundamentais» (remissões implícitas). Ver ibidem, pp. 328-329 e 92-94.
539 Esta última está associada ao segundo processo de inclusão a que aludimos na nota anterior, uma
vez que se trata de reconhecer que as referidas «remissões implícitas» — no quadro institucional dos Estados
de direito e na perspectiva dos princípios da democracia (sendo a democracia levada a sério como a requirement
of ethics in the law) — se articulam «logicamente com corpos inteiros de disposições legais» e se projectam em
«sistemas dogmáticos» , os quais, por sua vez —ao pretenderem ter «fundamento racional» e ao «medirem os
seus desenvolvimentos interpretativos pelos critérios da ética» (aspiring to a rational or ethical foundation and (…)
[being] developed or criticised through ethical reasoning) —, desencadeiam um processo de autêntica «dedução da ética
a partir do direito». Para além das pp. indicadas na nota anterior ver também «20th Century Legal Philosophy
in Portugal», cit., secção 2.3.1.10. («Analytical Philosophy of Law: Brito»).
130
tematizar a passagem dos argumentos puramente éticos para os argumentos especificamente jurídicos
concentrando-nos num discurso de limites ou de restrições. Reconhecendo que «há
argumentos éticos que se admitiriam numa discussão ética mas que não são permitidos em
direito»?540 Certamente541. Só que então também concluindo que a «diversidade» das razões
públicas juridicamente relevantes (determinadas principalmente pelos referidos limites)542
não se nos oferece de maneira nenhuma «contrária à unidade da razão», porque é antes et
pour cause justificada pela «razão filosófica» e pelas exigências do seu horizonte racional («A
razão filosófica é una, é o horizonte da justificação racional em face de todas as razões, mas
a ela se chega por diversos caminhos possíveis e, entre eles, a partir da crítica racional das
várias razões públicas»543).
2.4.2.2. Abertas as portas para explorar este último caminho, volto a perguntar se
o «lugar» específico do direito será adequadamente compreendido quando o reconstituímos
como um «discurso ético limitado» (law as rationally limited ethical reason or a just limitation of
justice544). É certo que uma reconstuição prosseguida nestes termos nos proporciona
recursos analíticos privilegiados para, na contingência das diferentes ordens jurídicas,
explorar a dinâmica do Estado-de-direito e a relação desta com a ideia de democracia ou com o
princípio democrático — autonomizando fluxos de argumentação e de contra-argumentação,
de incorporação e de re-incorporação que de outro modo passariam despercebidos nos
540«Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 325, False e vere alternative nella teoria
conclusões em cada ordem jurídica. Essas regras variam com a diversidade das fontes de direito e
eventualmente com a diversidade de processos institucionais de obter decisões em cada ordem jurídica…»
(«O que é o direito para o jurista? », cit., p. 56).
543 Ibidem.
544 «20th Century Legal Philosophy in Portugal», cit., secção 2.3.1.10. («Analytical Philosophy of
Law: Brito»).
131
545 Mais próxima da «actualidade hermenêutica de Aristóteles» justificada por Simmonds do que da
tentativa de articulação assumida por Sousa e Brito (sem prejuízo de se reconhecer o que a tradição analítica
nos oferece quando se apropria de Aristóteles). Isto decerto para fazermos referência apenas aos nossos
interlocutores mais imediatos..
546 Com o alcance que tenho insistentemente defendido (ao qual voltaremos em breve): ver
Neves, «Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia
do direito?», Digesta, vol. 3º, cit., p. 90.
548 Para o dizermos voltando a Jaspers: Iniciação filosófica, cit., p. 26.
133
constitutiva das práticas, dos discursos e dos mundos práticos… — estes últimos a garantirem a
mediação referencial, se não o contexto-ordinans (reflexivamente autonomizável), que
sustenta a indissociabilidade dos dois primeiros — nos concentra num tipo de racionalidade
globalmente inconfundível (distinto de outros tipos possíveis de racionalidade), na mesma
medida em que nos fornece a chave para situar esta ratio e os seus argumentos perante essas
outras razões e as suas possibilidades (e reconhecer assim equilíbrios e modos de vinculação
também eles histórico-culturalmente situados).
Um tipo de racionalidade em confronto-equilíbrio com outros tipos de racionalidade,
disse. Impondo-se-me acrescentar que é para compreender tanto esta pluralidade de razões
quanto a pluralidade de soluções de equilíbrio que as articulam (as que lhe foram
correspondendo historicamente e as que hoje a disputam)… que o regresso a Aristóteles se
torna aqui indispensável. Não decerto para encontrar na secularização da praxis uma
experiência necessária da communitas (que de alguma forma importasse hoje reproduzir
como solução)549, menos ainda para mobilizar o arquétipo do silogismo dialéctico (ou do seu
enquadramento retórico) como esquema metódico atemporal (que se pudesse defender
como uma solução discursiva inexcedível), antes para (num tratamento paralelo ao de
Welsch550), reconhecer na proposta de sistematização das virtudes intelectuais, tal como a
vemos exposta no livro VI da Ética a Nicómano, um recurso fundador exemplar,
responsável —na sua assunção de uma pluralidade articulada de razões (als grundsätzliche
Pluralität in Sachen Vernunft551) — por um dos núcleos matriciais do Texto do Ocidente .
3.1.1. Significa isto começar por propor ao seminário uma leitura específica (se não
explicitamente situada) do livro VI552, preocupada em acentuar as distinções consagradas por
549 Para uma consideração desta «ordo ontológico-metafísica», com «uma teleologia inferível de uma
essencial causa finalis» (a qual teria «na polis a sua directa mediação prática»), ver Castanheira Neves, «A imagem
do homem no universo prático», Digesta, vol. 1º, cit., pp. 319-323 (1.), Apontamentos complementares de teoria do
direito – sumários e textos, Coimbra, polic., 1998 (versão em fascículos) pp. 79-81, (versão em A4) 43-45, «O
problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das
culturas», cit., pp. 111-112.
550 Ainda que com intenções claramente distintas, já que Welsch encontra neste livro VI mais do que
uma consagração paradigmatica de tipos de racionalidade plurais, uma consagração (avant la lettre) de um certo
(lyotardiano) teorema da heterogeneidade: Welsch, Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta Humaniora,
31991, pp. 277-284 («Aristoteles oder die Selbständlichkeit von Vielfalt»). Para um desenvolvimento, ver o
meu Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, Coimbra, Coimbra Editora,
2001, pp. 216-217 (notas 1 a 4), 265 e ss., 496-498.
551 Welsch, Unsere postmoderne Moderne, cit., p. 277.
552 O texto a propor aos mestrandos será o da trad. portuguesa de António Caeiro (Ética a Nicómaco,
Lisboa, Quetzal editores, 2004, pp.133-151) — não obstante a tradução de phronêsis por «sensatez»… —,
completado pelas traduções de Gadamer (apenas do livro VI) [Nikomachische Ethik VI (Sechstes Buch),
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1998] e de Jean Voilquin (Éthique de Nicomaque, Paris, Garnier
Flammarion, 1965, pp. 153-171).
134
553 Nesta leitura muito particular (com as escolhas que impõe e a contenção que exige), os
interlocutores-guias indispensáveis do nosso auditório implícito (aqueles cujas lições reflicto explicitamente no
texto) são: Enrico Berti, La ragioni di Aristotele (1989), cit. na trad. portuguesa As razões de Aristóteles, 2ª ed., São
Paulo, edições Loyola, 2002, 115 e ss., 143-156 («A phrónesis e o silogismo prático») [e também, muito
espcialmente Id., «Gadamer and the Reception of Aristotle’s Intellectual Virtues», Revista Portuguesa de Filosofia,
Julho-Dezembro 2000, vol.56, 345-360], Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, Paris 1963, cit. na
tradução castelhana La prudencia en Aristóteles, Barcelona, Crítica, 1999, pp.43 e ss. (toda a segunda parte) e
Joseph Dunne, Back to thr Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of Technique, Notre Dame (Indiana),
University of Notre Dame Press, 1997, cit. na reimpressão de 2001, pp. 237 e ss. («Theory, Technê, and
Phronesis: Distinctions and Relations»), 275 e ss. («The Circle between Knowledge and Virtuous Character:
Phronesis as a Form of Experience»). O nosso auditório modelo poderá contar ainda com o apoio precioso
do recente estudo de Nuno Santos Coelho, Sensatez como modelo e desafio do pensamento jurídico de Aristóteles,
Barbacena, Editora Fupac, 2012, pp. 89-118 («A excelência da razão prática entre as virtudes do pensar. O
livro VI da Ética a Nicômaco»).
554 Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 1 [VI, 1, 1138b 20 e ss].
555 Ibidem, livro VI, cap. 1 [VI, 1, 1139a 1-2], livro II, cap. 1 [II,1, 1103a 14 e ss.], livro II, cap. 6 [II,6,
1106a 1-25].
135
(a) Pré-determinação que se cumpre desde logo levando a sério o contraponto coisas
que não mudam /coisas que mudam, entenda-se, a irredutibilidade e a compossibilidade das duas
partes que integram a «alma capaz de razão», a saber, a parte em que a verdade-adequatio a
pronunciar se refere a objectos necessários — em que «consideramos teoreticamente todos
aqueles entes com princípios que não podem ser de outra maneira» (envolvendo os discursos
teoréticos stricto sensu da sophia, da episteme e do nous) — e a parte em que a verdade-adequatio a
dizer se refere a objectos contingentes — em que «consideramos aqueles entes com princípios
que podem ser de outra maneira» (envolvendo os discursos práticos lato sensu da phronêsis e da
poiesis-technê)557.
(b) Pré-determinação que se cumpre depois garantindo a harmonia das três virtudes
que asseguram a verdade teorética propriamente dita (episteme, nous, sophia) — decerto, porque
sem prejuízo das diferenças que as autonomizam enquanto disposições ou «ordens» de
conhecimento558 , se trata de reconhecer que a sophia, permitindo aceder aos objectos–coisas
que, por natureza, são os «mais preciosos e os mais importantes», não só se nos impõe como a
mais «perfeita» e «rigorosa» das três «ordens» como também concentra-sintetiza o seu
equilíbrio intrínseco (expondo-nos simultaneamente como nous e como episteme, se não como
«forma extrema» desta559).
(c) Pré-determinação que se cumpre finalmente garantindo que o terreno partilhado
das coisas e princípios que podem ser de outra maneira (disposições práticas lato sensu) seja
dividido-distribuído pelas possibilidades racionais inconfundíveis da phronêsis (relativa à
actividade-energeia das acções e decisões, constitutiva da praxis no seu sentido estrito) e da
poiesis-technê (relativa ao movimento-kinésis das produções-criações e a mobilizar a technê e as
556 Ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 9-22], livro VI, cap. 12 [VI, 12, 1141a 1-10].
557 Ibidem, livro VI, cap. 1 [VI, 1, 1139 a 5-15], livro VI, cap. 3 [VI, 3, 1139b 14-15].
558 Com a primeira a assegurar explicação-demonstração indutiva e dedutiva dos fenómenos físicos (na
sua necessidade intrínseca) — ibidem, livro VI, cap. 3 [VI, 3, 1139b 17-35] —, a segunda a exprimir um poder
de «compreensão intuitiva» dos primeiros princípios ou axiomas (a começar pelo «princípio racional» do
discurso teorético) — ibidem, livro VI, cap. 6 [VI, 6, 1140b 31- 1141a 8] — …e a terceira a conhecer «o que
deriva destes princípios» mas também a conhecê-los ou a contemplá-los enquanto tal, desocultando-os (num
plano de determinação inequivocamente metafísico) — ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 9-22].
559 Ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 15-20].
136
suas operatórias como uma dimensão indissociável)560. O que significa ainda e muito
especialmente assegurar que o tratamento da contingência que se consuma em acções e
decisões (contingência prática stricto sensu), tratamento garantido pela argumentação dialéctica
enquanto lógica do provável e do verosímil e pelo enquadramento retórico desta (por discursos que
hoje diríamos sujeito/sujeito), seja por um lado alimentado pela tópica (capaz de estabelecer um
continuum de fundamentação entre topoi contingentes e princípios necessários, constitutivos da
ordem do Ser) e por outro lado prosseguido por esquemas metódicos que, embora autónomos (a
indução e o epiquerema dialécticos/ o exemplo, a amplificação e o entimema retóricos )
encontram o seu modelo inexcedível de perfeição (se não o seu arquétipo) nos esquemas
metódicos das razões teoréticas (indução universal, silogismo necessário ou apodíctico,
determinação axiomática). Sem esquecer por fim que a primazia do teorético, na sua harmonia
com a pluralidade das disposições racionais em geral e com a autonomia da praxis em
particular, encontra a sua condição de possibilidade no modo como a ordem de
conhecimento da sophia mobiliza a relação telos/êthos: trata-se com efeito de lhe conferir a
produtividade de uma energeia autónoma e de assim mesmo a cumprir, por um lado como
bios (convertendo a «devoção à teoria» num way of life, se não numa interrelação inesperada
entre o Bem absoluto e os bens alcançáveis pelas acções humanas), por outro lado como
mimesis (reconhecendo que uma ética da excelência, com todas as projecções indispensáveis
nas coisas que mudam, se constrói conformando o carácter à ordem eterna, conjugando o
Humano com o esplendor de uma «natureza mais divina que o Humano» )561.
3.1.2. Não fica por aqui a nossa específica intentio lectoris. Uma vez reconstituída
esta estrutura de disposições racionais, trata-se, com efeito, de a mobilizar como quadro selectivo
para um exercício narrativo não menos situado (não menos preocupado com o que,
invocando Foucault, diríamos uma certa interpelação do presente)562, exercício este que, fazendo
560Ibidem, livro VI, cap. 5 [VI, 5, 1140a 24 -1140b 1-30], livro VI, cap. 8 [VI, 8 1141b 23 e ss.]
(phronêsis); livro VI, cap. 4 [ VI. 4, 1140a 1-23] (poiesis-technê). Como se se tratasse de reconhecer um
movimento que no qual o fim é imanente (o de uma acção-decisão concreta, relativa ao que, na ordem das
coisas humanas, se pode afinal dizer bom e mau, justo e injusto), distinguindo-o de um movimento que
produz um objecto exterior (e que mobiliza enquanto tal uma operatória racionalizada).
561 Ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 30 e ss], livro VI, cap. 13 [Vi, 13, 1144b 1- 1145a 10], livro X,
cap. 7 [X, 7 1177b 1-5]. Para uma reconstituição exemplar, ver Dunne, Back to thr Rough Ground, cit., pp. 237 e
ss., 239-244 («The Primacy of Theory and the Questionable Status of Practice»). Sem esquecer a fascinante
tradução de Gadamer, acentuando o papel condutor da phronêsis — e reflectindo tal acentuação no
indispensável Nachwort [Nikomachische Ethik VI (Sechstes Buch), cit., pp. 61-67(«Die Begründung der praktischen
Philosophie»)] —, mas sem esquecer também a reconstituição crítica de Berti, na qual tal acentuação é por
assim dizer denunciada e corrigida [«Gadamer and the Reception of Aristotle’s Intellectual Virtues», cit.,
passim].
562Uma narrativa de resto explicitamente apoiada naquele outro exercício de «arqueologia cultural»
que Castanheira Neves (também invocando Foucault) sintetiza em «O problema da universalidade do direito
ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., pp. 111-116 (III). Sem
esquecer outras quatro peças indispensáveis a este exercício: os Sumários de História do Pensamento Jurídico,
Coimbra, polic., 1975-76, passim, «A imagem do homem no universo prático», cit., passim, «Método
137
Jurídico», Digesta, vol. 2º, cit., pp. 289-301 (2.), e (a propósito das três grandes fases de compreensão da lei ou
da legislação) O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp. 489-611.
563 «A imagem do homem no universo prático», cit., p. 323.
564 Ver muito especialmente O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp.
492-506 (a)). Algumas especificações fundamentais deste cognitivismo normativo monista (se não normativismo
ontológico) — acentuando as distinções-correlações justo natural / lei natural, metafísica do ser /metafísica do logos
(mostrando por um lado que há uma relação decisiva, mediada pelo nous, entre justo humana e concretamente
natural e a metafísica do ser, e por outro lado que a auto-subsistência racional da lei natural, normativística avant la
lettre, corresponde precisamente a uma fundamentação constitutiva na metafísica do logos) — serão
explicitamente tratadas por Castanheira Neves na nova versão das Lições de teoria do direito (em preparação).
138
correspondessem a três momentos inconfundíveis da aventura civilizacional da resposta direito (de um direito
que se descobre sucessivamente como sentido e como especulação filosófica, como prática jurisprudencial e
como domínio cultural universitariamente reconstituído e comunicado) — numa conjugação-construção que o
discurso medieval (ao assegurar a terceira das autonomias e ao assimilar-reinventar as outras duas) pôde
traduzir na relação sapientia / scientia / prudentia. Cfr. neste sentido o Sumário desenvolvido proposto por
Castanheira Neves na primeira sessão do II Programa de Doutoramento (Faculdade de Direito de Coimbra,
ano lectivo de 2001/2002), O actual problema da autonomia do direito, I) Introdução, 1.a), b) e c) — sistematização
que vemos retomada e desenvolvida em «O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na
diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., pp. 111-116 (III).
566 Identifiquem-se pelo menos outros dois (a explorar eventualmente pelo nosso auditório modelo):
a distribuição estabilizada pelo ciclo medieval e pela trindade sapentia / prudentia / scientia a que acbámos de
nos referir — enquanto articulação transversal, concentrada no terreno da juridicidade… e a introduzir uma
scientia que, não sendo prudentia (porque se situa num plano abstracto), não é também episteme (já que
determinada pela prioridade dialéctica da quaestio e pela textualidade dos objectos que interpreta); o problema
global (comum aos diversos ciclos ou pelo menos aos dois últimos) da articulação plausível entre o monismo
teorético do jusnaturalismo e a concepção do direito como jurisprudentia ( a questão de saber em que termos a
prevalência do teorético-metafísico consagrada pelo grande arco pré-moderno, exemplarmente justificada pela
distribuição das virtudes intelectuais, se mostra compossível com uma compreensão do jurídico
dominantemente jurisprudencial). Algumas pistas esquemáticas para esta exploração propomo-las em Sumários
desenvolvidos de Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 13-20 (1.1. e 1.2.).
139
567 Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 8 (VI, 8 / 1141b 23 - 1142a 11)
568É uma epígrafe escolhida por Peter Stein em «The Roman Jurists’ Conception of Law», o primeiro
ensaio que integra o vol. 7 (organizado por Padovani e Stein) de A Treatise of Legal Philosophy and General
Jurisprudence, Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2007, pp. 1 e ss. (especialmente 4-5), não sendo
certamente por acaso que a exploração da «filosofia do direito dos juristas» (iniciada com este vol. 7) [The Jurists’
Philosophy of Law from Rome to the Seventeenth Century] tem o seu ponto de partida no mundo destes first
professional secular legal specialists (as guardians of principles and rules of privarte law)… enquanto que a exploração
paralela do percurso da «filosofia do direito dos filósofos», sem excluir algumas heranças anteriores, nos faz
recuar até à manhã grega [vol. 6, A History of the Philosophy of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics,
Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2007].
140
institucionalizada569). Uma intensificação diferenciadora que, se por um lado tem a ver com
a possibilidade de converter a procura da humanitas num processo (permanente) de correcção-
especificação da ordem material pressuposta (capaz de tratar esta como jus, o justo
compreensível nas manifestações concretas do ser570), se cumpre por outro lado como uma
experiência de realização: como aquela experiência que só o juízo-julgamento, enquanto
tratamento argumentativo-prudencial das controvérsias-casos sustentado num cálculo de tipos e
numa hipostasiação institucional terminologicamente objectivada571 — mas também num exercício
determinante de relativização-comparação de sujeitos iguais e responsáveis — está (estará) em
condições de garantir (il sorgere e il consolidarsi di un mondo a parte, il cosmo delle istituzioni
ipostatizzate, dei rapporti «calculabili»572)
(b)’ A primeira destas frentes admite decerto (pelo menos!) duas aproximações
complementares. Como se um esquisso prévio nos autorizasse a identificar o novo
equilíbrio das racionalidades, centrado na hipertrofia da episteme (e da episteme-technê), antes
de explorar de que modo ou modos possíveis esse equilíbrio se precipita na resposta ao
problema da vida em comum (com a participação indispensável do direito).
Identificar um novo equilíbrio significa com efeito acompanhar a construção da Ideia
(moderna) de ciência, não apenas como um discurso de métodos (delimitador de inferências e
inference-licences permitidas e respectivos códigos de relevância e de comprovação), mas
próprios casos ou tipos de casos, no seu contexto de validade (indissociáveis dos nomes que os identificam), se
não as próprias relações entre os sujeitos. Ver neste sentido (considerando o modo como as relações
intersubjectivas se hipostaziam) o indispensável Luigi Lombardi, Saggio sul diritto giurisprudenziale, Milano,
Giuffré, 1967, pp. 29-33 («Calcolo dei tipi»).
572 Ibidem, p. 29.
141
Para o dizer com Dunne, Back to the Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of Technique, cit., p.
574
575 Tratei do núcleo destas relações (a partir do ponto de chegada do racionalismo crítico) em Regras de
experiência e liberdade «objectiva» do juízo de prova. Convenções e limites de um possível modelo teorético, Coimbra, 1986, pp.
268 e ss («A resposta de um convencionalismo crítico: a “technê” legislativa») e «Is Law’s Practical-Cultural
Project Condemned To Fail The Test Of “Contextual Congruence”? A Dialogue With Hans Albert’s Social
Engineering», cit., passim.
576 «[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate
themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal, tradition-
independent norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and is the
project of modern liberal, individualist society…» (MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?, London,
Duckworth, 1988, p. 335)
577 Para evidentemente o dizer com Habermas: Theorie des kommunikativen Handens, Frankfurt am
Main, Suhrkamp, volume II, 1981, pp. 179 e ss., 209 e ss., 225-227, 270 e ss., 413 e ss, 571-583. Para uma
reconstituição deste núcleo — e muito especialmente da relação interior Lebenswelt (Kultur, Gesellschaft, Person)
/ Welte (Wissenschaft, Moralität, Kunst) e do confronto exterior Lebenswelt / System (com outras indicações
bibliográficas imprescindíveis) —, remeto-me para o estudo que desenvolvi em Habermas e a universalidade do
143
Para perceber que assim é, basta-nos ter presente que as abstracções condutoras
autonomizadas pela narrativa do homem desvinculado, conjugando por um lado ratio e voluntas e
por outro lado interesses emancipados e fins equivalentes, instalam um pluralismo ineliminável e
outras tantas tensões: quer porque determinam linhas de desenvolvimento ético-
-antropologicamente irredutíveis — consagradas (na sua diferenciação paradigmática) pelos
«argumentos» de Kant e de Bentham578 (nem por isso menos cruzadas e sobrepostas pelas
complexas heranças que vão assimilar estes argumentos!) —, quer porque (como factores
entre outros factores… e com cruzamentos e sobreposições não menos diferenciadas) abrem
as portas a institucionalizações político-sociais oponentes — dominadas respectivamente pela
garantia da compossibilidade dos arbítrios e pela efectividade da expansão-generalização dos benefícios. Sem
esquecer que tanto aquelas representações antropológicas quanto estes enquadramentos
institucionais — de novo concertados com um elenco diferenciado de factores (factores que,
como sabemos, estão longe de se reduzir aos dos degraus anteriores) — acabam por intervir
decisivamente na construção-experimentação de duas concepções opostas da juridicidade-
-legalidade. Aquelas que as máscaras do formalismo ateleológico e do teleologismo tecnológico (do
normativismo e do funcionalismo material) hoje polarizam? Podemos retrospectivamente admiti-
-lo. Sem que uma tal concentração nos permita ignorar que atrás destas máscaras se abriga
um património de tensões constitutivas muito mais diferenciadas, referidas quer ao direito
quer ao pensamento jurídico (tensões que os argumentos paralelos de Ihering e de Holmes,
na sua interpelação do normativismo e do formalismo dominantes, abriram
irreversivelmente no último quartel do século XIX, cujos sulcos-rastos se continuam hoje a
reconhecer e a reinventar)579…
É certo que todas estas diferenças se diriam (explícita ou implicitamente)
reconduzíveis ao eixo relacional episteme /technê, ou mais claramente, a um espectro de
soluções de equilíbrio que poderão ir da defesa da prevalência (e relativo isolamento) da
primeira (na sua inteligibilidade analítico-categorial), a uma alternativa de technê-episteme,
(consumada como tecnologia social). Alguns elementos introduzidos pelo projecto da
modernidade resistem no entanto a esta grelha: refiro-me especialmente àqueles que, abertos
pela linha da ratio-voluntas (inscrevendo-se explicitamente na herança de Kant), enfrentam
directamente as ameaças da hipertrofia final-racional, reconduzindo a exigência de universalização
direito. A «reconstrução» de um modelo «estrutural», separata dos Estudos em homenagem ao Professor Doutor Eduardo
Correia (número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidadede Coimbra), Coimbra 1989, pp. 39- 97
(«A “condição” cultural: a “descentralização” das perspectivas de compreensão do mundo»).
578MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?, cit., p. 353 («[T]he Enlightnment invoked the
da relação juridicidade/cientificidade ou mesmo por concepções distintas (dentro de uma mesma concepção
tradicional da episteme) do que deva ser a ciência do direito. Para uma abordagem esquemática destas
possibilidades, ver o meu «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre…», cit., pp. 307-313 (4.).
144
a um novo tipo de racionalidade, que se dirá discursivo-procedimental580. Para não falar já de uma
reinvenção do teorético, como autêntico teorético-filosófico que, ao dizer-se dialéctica ou ao obrigar
esta a esquecer a sua «proveniência»-Herkunft e a romper assim o vínculo constitutivo com os
discurso da contingência, se dirige directamente à História para a dizer racional e se pré-
determinar como método ou discurso do método: com uma posteridade não menos visível que,
numa das suas linhas de acentuação, nos permitirá encontrar uma concepção crítica («não
tradicional») de ciência (e depois a teoria do direito dialéctico-materialista que a leva a sério)581.
Impondo-se-me acrescentar que qualquer uma destas possibilidades de resistência excede o
que nucleramente se poderá dizer um autêntico discurso de societas... aproximando-se, ainda
que do lado de fora, da fronteira em que reconhecemos já uma autêntica dialéctica societas
/communitas (e assim também uma renovação do cursus autónomo da praxis)…
580 Ver por todos Anna Pintore, Il diritto senza veritá, Torino, 1996, cit. na tradução inglesa Law without
Truth, Liverpool, Deborah Charles Publications, 2000, pp. 171 e ss., 209 -236 («Procedural Truth»).
581 Ver o meu «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre…», cit., pp. 310-311, notas 216-217.
582 Rehabilitierung der praktischen Philosophie, 2 vols, Freiburg, Rombach Verlag, 1972-1974.
583 « Der Name ‚die Technik‘ ist hier so wesentlich verstanden, daß er sich in seiner Bedeutung deckt
mit dem Titel ‚die vollendete Metaphysik‘…» (Heidegger, Vorträge und Aufsätze, 5. Auflage, Pfullingen,
Neske, 1985, p. 76).
584 Trata-se de invocar o diagnóstico de Bubner: Dialektik als Topik. Bausteine zu einer lebensweltlichen
Hegel na recuperação-renovação das temáticas aristotélicas: ver por todos Berti, Aristotele nel novecento, cit. na
tradução portuguesa Aristóteles no século XX, Edições Loyola, São Paulo, 1997, pp. 216 e ss.(«A teoria da
“inferência prática”: Anscombe e von Wright»)
145
que impõem como correlato uma experiência alternativa da praxis ou da relação teoria
/praxis). Também e ainda do teorético especulativo… que vemos luminosamente alimentado
pela virtude intelectual da sophia e pela institucionalização pré-moderna da conexão telos /
êthos (mas também a sobreviver penosamente em sucessivos neojusnaturalismos). Sendo
evidentemente esta última frente de afirmação da pretensão de autonomia a novidade
decisiva a ter em conta, mas também o desafio por excelência! Aquele que, ao combinar a
autonomia da praxis com a renúncia à inteligibilidade de um horizonte indisponível, vai
fazer depender a força integradora e a identidade vinculante de um horizonte normativo —
a possibilidade de levarmos a sério os referentes valorativos e os compromissos práticos
(mas também as pretensões-juízos de validade) que o distinguem — das possibilidades
reflexivas (no limite da sua intensificação interna, também crítico-reflexivas) de um
pensamento de «imanência constitutiva»…
-subsistentemente práticos («de imanência constitutiva»): as formulações citadas no texto são de Castanheira
Neves, O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., primeira versão, Coimbra-Lisboa,
1982-1983, I. Prolegómenos, 2ª lição, 2.a), pp. 22-27.
587J. W. Singer, «Critical Normativity», Law and Critique, volume 20 nº 1, 2009, p. 38.
588 Singer, «Critical Normativity», cit., p. 34.
146
O que nos leva directamente para o problema da vida em comum. Problema que
também aqui se expõe mobilizando elementos com proveniências outras e determinando
respostas exemplarmente distintas, as quais, por sua vez, se reflectem na especificação
metodicamente estabilizadora das disposições racionais (compondo novas alternativas de
equilíbrio). É certo que a oportunidade de retomar o curso de autonomização da praxis se
institucionaliza assumindo (explicita ou implicitamente) o compromisso (se não à
responsabilidade ou a virtude) de um regresso da (ou um regresso à) comunidade. Não se trata
porém de um regresso qua tale mas, como bem sabemos, de uma renovação, com um
sentido que priva a comunidade em causa da sua unidade, universalidade e ahistoricidade
substantivas… para antes e em contrapartida lhe impor positivamente um factor de
pluralismo ou de pluralidade e assim mesmo a pensar ao lado da sociedade (e a estabelecer uma
dialéctica indispensável com esta). Como se ao fim e ao cabo a resposta ao problema da
identidade colectiva passasse a cumprir-se mobilizando dois projectos culturais
inconfundíveis — duas faces típicas de um certo teleological turn (ou da compreensão que
este hoje nos exige) — e o contraponto irredutível (se não a dialéctica) que estes
estabelecem590…
589 Ver Castanheira Neves, Apontamentos complementares de teoria do direito – sumários e textos, cit., (versão
em fascículos) pp. 79-81, (versão em A4) 43-45.
590 Ver textos citados supra, nota 546.
147
Já disse porém que este é um núcleo expositivo que (alimentado por opções
antropológico-existenciais heterogéneas e distintas compreensões da política) admite
desenvolvimentos muito distintos, gerando verdadeiras alternativas (cada uma delas com
diversos caminhos). Tenho procurado recorrentemente distinguir estas alternativas —
distribuindo-as esquematicamente por três grandes eixos. Sem voltar detidamente a esta
distribuição e às vozes que as justificam593, permitir-me-ei agora apenas mostrar em que
termos tais alternativas podem ser nuclearmente compreendidas quando partimos
fundamentalmente (se não exclusivamente) da perspectiva das disposições racionais. O que não
é senão entender que estão em causa três núcleos por excelência de reinvenção da phronêsis
(todos de resto com relevantes projecções na teoria do direito e na reflexão metodológica
que esta enquadra).
1) Começo por aquele —explorado pelos caminhos (dissociados ou reunidos) da
nova hermenêutica e das (não menos) novas tópica e retórica — que nos aparece vinculado ao
sentido mais estrito (e mais genuíno) da reabilitação da philosophia practica: precisamente
aquele que, explícita ou implicitamentre, faz corresponder a auto-subsistência efectiva desta
filosofia (emancipada do primado integrador da sophia e da colonização da episteme-technê ou
da technê-episteme) a uma preocupação com a autonomia constitutiva da phronêsis e com a
racionalidade sujeito / sujeito que a distingue (Am Ende ist die aristotelische Tugend der
591 Martha Nussbaum, «Virtue Ethics: A Misleading Category?», The Journal of Ethics, vol. 3, 1999,
pp.179-188 («The Anti-Utilitarians; Expanding Reason’s Domain»). As formulações citadas no texto
encontram-se nas pp.182-183. Para uma crítica à relativa fragilidade desta construção na proposta de Martha
Nussbaum (em confronto nomeadamente com uma autêntica distinção entre valores e fins), remeto-me para o
meu «Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?», 4.2.1., in Trindade, Gubert e
Copetti (org.), Direito & Literatura, cit., pp.290-291 (no Boletim da Faculadade de Direito, cit., pp.142-144).
592 «Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e que
convoca a prática para o desempenho irrenunciável de “tarefas” (...) em que se projecta essa sua vinculação
ou compromisso, os fins desvinculados pelo “mecanicismo” moderno da teleologia ontológica, são agora tão-
só opções decididas pela subjectividade que programa os seus objectivos (...), decerto sempre condicionados
por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles – comunga-se nos
valores, diverge-se nos fins e nos interesses...» [Castanheira Neves, Teoria do direito (versão em fascículos), pp.
154-155, (versão em A4), pp.85-86]. Fernando José Bronze propõe a formulação teleonomologia para designar
este teleologismo de fins e valores (distinguindo-o assim do puro teleologismo) [Lições de Introdução ao Direito, 2ª ed.,
Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp.820-821].
593 Para um desenvolvimento destas três grandes compreensões da communitas e das suas projecções
no pensamento jurídico (com as indicações bibliográficas indispensáveis), remeto o auditório implícito para o
meu «Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», cit., pp. 133-
148.
148
Vernünftigkeit, die Phronêsis, die hermeneutische Grundtugend selbst594). Preocupação que importa
concentrar numa intenção capital: a de sustentar uma relação com as disposições
existenciais (com o existir situado) da Lebenswelt. E desde logo para perceber que, tanto no
horizonte da reconstextualização hermenêutica quanto no da problematização tópico-
argumentativa, se trata numa palavra de exigir que a relação com o mundo prático humano,
dominada pelo immer schon da circularidade auto-reflexiva, e muito especialmente pela
referência compreensivo-significante (relacionalmente contínua) a um quid «unitário»595,
possa estar em condições de levar a sério a relação geral/ particular, «velho»/«novo», passado
/presente596.
O que por um lado significa poder enquadrar, num plano material — já não apenas
para a limitar mas também para lhe proporcionar um fundamento-warrant plausível! — a
possibilidade (exigida pela vertente tópico-retórica) de, na atenção privilegiada ao momento da
realização, se recorrer a uma racionalidade procedimental ou a elementos desta. Não sendo
preciso acrescentar que um tal enquadramento (com um papel maior ou menor) se torna
indispensável, se não para eliminar, pelo menos para reduzir o risco (ao qual a hipertrofia
tópica do problema é particularmente vulnerável) de reconduzir a validade pressuposta a uma
mera contingência (objectivável num consenso a posteriori ).
O que por outro lado significa também exigir que no ground do praktikon dianoètikon
se separem inequivocamente as águas: para garantir que a reinvenção da phronêsis assim
levada a cabo — preocupada com a unidade de um movimento-kinésis e com a conversação
aberta que, no plano universal da linguagem comum (als Gesprächsgemeinschaft), efectivamente
lhe corresponde (no seu círculo de finitude e transfinitude, auctoritas e razão, tradição e
discurso prático-racional) — se contenha no território da praxis stricto sensu, evitando assim
594 Gadamer, «Probleme der praktischen Vernunft», in Derbolva u. alli (Hrsg.), Sinn und
Geschichtlichkeit — Werk und Wirkungen Theodor Litts, Stuttgart 1980, p. 155]. Para além do desenvolvimento
indispensável de Wahrheit und Methode [Verdad y Metodo, cit., pp. 331-458 (nºs 9, 10 e 11)], ver ainda «Die
Begründung der praktischen Philosophie», o posfácio à tradução (proposta por Gadamer em 1998) do Livro
VI da Ética a Nicómaco (Aristoteles, Nikomachische Ethik VI, hrsg. und übers. von Hans-Georg Gadamer, cit.,
pp. 61-67).
595 Quid «unitário» que (na linha das intenções «fenomenológicas» de Hegel retomadas-reescritas por
a ameaça de um continuum com a poiesis (poiesis que, por sua vez, poderá-deverá esperar um
desenvolvimento paralelo igualmente autónomo).
2) Depois, aquele núcleo de determinação que, gerado por um especialíssimo êthos
crítico («desconstrutivista» lato sensu), defende, em contrapartida (em nome de uma
pluralidade que perdeu a relação estabilizadora com a tradição) um insuperável continuum
entre praxis e poiesis (assim mesmo legitimado pela «abertura indefinida de todos os
contextos»)597. Refiro-me a uma filosofia prática sui generis («reflexão sobre os
fundamentos» que se reconhece a si própria fora e dentro da filosofia, se não mesmo
assombrada pelo duplo da anti-filosofia), na qual importa reconhecer a sobreposição selectiva
dos contributos de Foucault, de Lyotard e de Derrida598, tal como os vemos assumidos pela
segunda geração dos Critical Legal Scholars e pelas Postmodern Jurisprudences599. Sendo esta uma
reflexão que se leva a sério como prática discursiva-acontecimento (événement), pode dizer-
se que a exigência de renunciar às pretensões de totalidade de um horizonte teorético (e à
distribuição sujeito/objecto, se não à «lógica binária» que a assume) se cumpre agora
invocando as expectativas de organização de uma trama de saberes locais microscopicamente
597 O que nos afasta da conversação responsável de Gadamer… para nos aproximar de uma outra
assimilação de Heidegger (eloquentemente defendida por Derrida). Não se trata com efeito apenas de
reconhecer a inevitabilidade do contexto mas de assumir (celebrar), repito, a inevitabilidade da «abertura
indefinida de todos os contextos» [Derrida, «Afterword: Toward an Ethic of Discussion», in Gerald Graf (ed.),
Limited Inc, pp. 136-137]. Ora o que é que significa assumir esta abertura? Significa antes de mais onerar a
decisão responsável não tanto com uma indeterminação sem limites quanto com uma prova-épreuve de
indecidibilidade (enquanto «oscilação» entre possibilidades de «realização do sentido» pragmaticamente
determinadas), reconhecendo simultaneamente que todos os contextos se movem numa fronteira ténue de
estabilidade /instabilidade. E então e assim experimentar uma circulação-substituição de significantes e
significados que não só nos entrega à dinâmica espacial da «repetição» e do «intervalo» (e da «distância»
agonisticamente sustentada)… mas também e muito especialmente à dinâmica da temporalização ou da
historicidade constitutiva (a um jogo de diferenças permanentemente diferidas, que se diz différance). Sendo
precisamente esta a experiência (se não interpretação da interpretação) que só a Desconstrução como filosofia vai tornar
possível.
598Mais rigorosamente, da analítica do poder (e da reescrita aqueológica e genealógica de l’Âge de
l’homme, se não também já da ética-estética da existência) de Foucault, da guerra dos géneros de discurso e (ou) do
teorema da heterogeneidade (mas também da comunidade estética-«promessa») de Lyotard, last but not the least, da
interpretação pragramatológica e da conexão justiça / desconstrução (mas também da economia da violência) de
Derrida. Para uma consideração crítica destes três protagonistas (e também uma identificação dos seus textos
maiores), remeto-me para Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, cit., pp. 17
e ss. (o contributo de Foucault) , 221 e ss. (a concepção da linguagem e a estética do sublime de Lyotard); e
«Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de Force de loi» (2004), in in
Figueiredo Dias, Gomes Canotilho, Faria Costa (ed.), Ars iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António
Castanheira Neves, I, cit., pp., pp. 551-667 (a proposta de Derrida) [ver também «O dito do direito e o dizer da
justiça. Diálogos com Levinas e Derrida» (2006), in Themis - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa, VIII, nº 14, 2007, pp. 5 e ss. e «Dekonstruktion als philosophische (gegenphilosophische) Reflexion
über das Recht. Betrachtungen zu Derrida» (Maio 2005), Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie (ARSP), Band
93 / 2007, Heft 1, pp. 39 e ss.
599 Mas nem por isso menos parcialmente desenhados por outros movimentos ou pelas
convergências mais ou menos explícitas que alguns (e apenas alguns!) dos seus cultores assumem. Referimo-
nos às Feminist Jurisprudences, à Critical Race Theory, à Postcolonial Theory, aos Cultural Studies of Law… sem excluir
evidentemente importantes núcleos do direito e literatura, do direito e psicanálise, do direito e imagem, do direito e
emoções… e até (marginalmente embora) do funcionalismo autopoiético.
150
602 Como se se tratasse afinal de responder ao apelo de Walter Fisher, quando vê na «racionalidade
narrativa» um tentativa de recapturar (hoje) a concepção aristotélica da phronêsis: «The Narrative Paradigm: an
Elaboration», Communication Monographs, vol. 52, 1985, p. 350.
603 O que nos leva para a compreensão da communitas mais próxima das reinvenções da filosofia
prática assumidamente jusnaturalistas (como é ao fim e ao cabo a de Finnis): sugere-se ao auditório implícito que
comece por explorar a importante reconstituição de Postema: Legal Philosophy in the Twentieth Century: the
Common Law World, cit., pp. 551-562 («A Natural-Law-Theory of Practical Reasonableness»)
604 Para uma consideração de alguns aspectos deste contraponto (concentrado nas vozes exemplares
de MacIntyre por um lado e de Charles Taylor e Michael Walzer por outro lado), veja-se o nosso «Humanitas,
singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O “pormenor” do direito na “ideia” da
Europa das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista», Dereito. Revista xurídica da Universidade de
Santiago de Compostela, volume 15, número 1, 2006, pp. 17 e ss., 34-53 (3.4. e 3.5).
605 Para uma síntese deste contraponto (concentrada nas vozes de Boyd White e Martha Nussbaum),
veja-se o nosso «Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?» cit., ponto 3.2.
[Trindade, Gubert e Copetti (org.), cit., pp. 285-287, Boletim da Faculdade de Direito, cit., pp. 135-138].
152
606 A formulação é de Castanheira Neves (uma teoria do direito externa puramente assimiladora), tendo
sido especialmente mobilizada na comunicação de abertura de um Seminário de teoria de direito do Programa de
Doutoramento e Mestrado em Direito da Universidade Federal do Paraná (Curitiba, 26-29 Setembro de
2007), seminário no qual tive o gosto e a honra de participar. A sistematização proposta distinguia de resto
diversas teorias do direito externas (assimiladoras, analíticas, redutoras, construtivistas), reservando-se a qualificação
assimiladora para a proposta exemplar da Nova Hermenêutica e para o seu «optimismo» [para uma alusão a esta
última atitude de resposta («a resposta está dada!»), ver «O problema da universalidade do direito ou o direito
hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., p.118].
607 Remeto-me para os dois estudos cits. supra, nota 89.
153
Sendo exemplos de discursos de fronteira (marcados por essa rejeição menos clara)
tanto a filosofia sapiencial comunitarista, quanto um procedimentalismo argumentativo auto-
-subsistente, aquela porque se aproxima do território das filosofias práticas assumidamente
jusnaturalistas, este porque, ao «esquecer» a sua inserção constitutiva na Lebenswelt, revela
afinidades indiscutíveis com puros discursos da societas ou com a autodiferenciação que estes
programam.
Por outras palavras, como se a escolha em causa — concluindo, por exemplo, que
precisamos hoje sobretudo da concepção do mundo e do homem que o projecto do
comunitarismo sapiencial nos oferece... ou daquela que a hermenêutica como filosofia está em
condições de justificar ... ou ainda daquela que só a ética desconstrutivista pode abrir…—
dependesse de um diagnóstico da nossa circunstância que na sua maior ou menor
sensibilidade a exigências contrapostas de estabilidade ou de abertura, de determinação
dogmática ou de problematização crítica (descritiva ou prescritivamente sublinhadas) se
pudesse dizer cumprido inteiramente sem o direito… ou antes de pensar o direito.
154
Percurso este, acrescente-se, que está longe de se nos impor como uma
possibilidade vaga. Que antes e em contrapartida persistentemente nos fere, num tempo de
pós-paradigma em que a proliferação de hetero-referências aparentemente inovadoras
(iluminadas pelas arenas sedutoras dos chamados law and…) tem agravado em vertigem o
sentimento de orfandade cultivado pelo pensamento jurídico. Persistência aproblemática esta
que, no que diz respeito ao problema da autonomia que constitui o nosso núcleo temático
principal, vem acompanhada de duas acentuações importantes (dificilmente tematizáveis
embora). Refiro-me por um lado ao pathos da escolha (se não da procura da melhor
interpretação608) e aos discursos de razões que (correspondendo a uma sobreposição plausível de
intenções ético-existenticiais, antropológico-culturais e filosófico-políticas) explícita ou
implicitamente lhe vão associados (gerando ou reforçando um apreciável sentimento de
incerteza ou pelo menos de indecidibilidade): como se houvesse que optar por uma
interpretação global da praxis (e pela perspectiva entre outras perspectivas que esta
assegura) para desde logo nos podermos dirigir às práticas juridicamente relevantes — e
decerto porque o o sentido e as fronteiras desta relevância se nos impõem decisivamente
conformados pela escolha em causa. O que nos conduz a uma segunda acentuação, ela
própria (num paradoxo aparente) a defender uma compreensão global do direito… ou a
compreensão global deste que, não nos permitindo mobilizar uma antecipação de
experiências ou de condições (ou mesmo de categorias de inteligibilidade) objectivamente
específicas — porventura porque estas se tornaram irreconhecíveis na nossa circunstância
(ou porque o padrão de humanidade que tal circunstância exige deve ser procurado para
além daquele que tais experiências, condições ou categorias fechariam)! —, torna inevitável
uma escolha exterior. Refiro-me decerto àquela, já bem nossa conhecida, que vê no jurídico
hoje um acervo de recursos de institucionalização intencionalmente neutros, disponíveis para
garantir prescritivo-autoritariamente distintas interpretações da prática ou da identidade
comunitária (com a atribuição-integração de exigências de sentido a depender por inteiro de
intenções transjurídicas) — concepção esta que, como tenho também recorrentemente
procurado mostrar, gera um surpreendente common ground, no qual os discursos humanistas
associados às diversas frentes da «nossa» Rehabilitierung (mobilizando embora interpretações
da prática e das necessidades sociais e das dinâmicas da identidade colectiva resolutamente
608 Assim acontece com Dworkin (mesmo que se trate de inscrever tal procura num horizonte de
unidade de valor): vejam-se, em relação à interpretação colaborativa, os esclarecimentos propostos em
«Interpretation in general», Justice for Hedgehogs, cit., pp. 132-133.
155
3.3.1. Trata-se desde logo de reconhecer que a circularidade correlato/ contexto que
uma vez mais acabámos de invocar — pela inteligibilidade prático-normativa que confere a
um tal contexto ou pela intenção constitutiva com que o responsabiliza e ilumina o seu
excesso, mas também pelas exigências de sentido que faz corresponder às suas práticas (ou
de que faz depender a possibilidade de se falar duma autêntica realização, sempre
contextualmente situada e sempre a superar esta situação) — está longe de poder ser captada
pela perspectiva-sujeito (moderadamente externa) que, com maior ou menor sensibilidade às
possibilidades de mudança (e ao papel de uma reflexão crítica), corresponde `a(s) teoria(s)
da regra de reconhecimento (as conventional secondary rule): se a atenção a uma tal circularidade (na
sua inteligibilidade prático-comunitária) permanece estranha ao tratamento globalmente
empírico-descritivo que se espera desta abordagem externa — a qual há-de estar em
condições de convocar-objectivar as práticas coordenadas e a sua repetição (mas também os
parâmetros-frameworks de planificação e negociação a ter em conta) sempre e sem excepção
como autênticos factos sociais (conferindo à rule of recognition um carácter explícita e
assumidamente convencional) —, não permanece menos estranha com efeito à
consideração (e portanto também objectivação) auto-subsistente (exemplarmente exigida
por esta mesma abordagem externa) de um autêntico rule-following behaviour, entenda-se, a
uma reconstituição destas práticas tendo em conta a sua dimensão normativa, se não
explicitamente os referentes ou parâmetros que tais práticas (distinguindo-os dos outro
factores condicionantes ou dos outros recursos de planificação-previsão) assumem como
componentes internas — ainda que com esta consideração auto-subsistente (explicitamente
preocupada com o inside das practiced social rules) se trate eventualmente já de reconhecer
uma relação lograda (contingente embora) entre factos sociais e factos normativos (com os
últimos a poderem oferecer-se-nos como determinantes do «conteúdo» ou da «identidade»
do direito, com os primeiros no entanto a imporem-se-nos sempre e sem excepção como
determinantes desses determinantes)610.
gem interna (e esta por sua vez como um grande horizonte de unidade, intencionalmente
partilhado pelas práticas de realização e pelos discursos dogmáticos). Esperando que, neste
explícito «transcender situado»611 de uma prática (sem prejuízo dos diversos degraus que se
lhe oferecem e da maior ou menor distância e radicalidade que os identifica), a reflexão
metadogmática recrie uma perspectiva de participante? Podemos admitir que sim. Desde
que tal perspectiva, assim recriada, se mostre capaz de exceder um plano de pura
imanência interpretativa alla maniera di Fish (as doing what comes naturally). Não se trata, com
efeito, apenas de assumir um compromisso prático com o mundo existencialmente
humano do direito (com um alcance que procuraremos esclarecer a seguir), trata-se
também de intensificar criticamente a atenção reflexiva que esse compromisso hoje exige e de
correr os riscos que esta intensificação determina (por um lado decerto em confronto com
os desafios do pluralismo, por outro em confronto com o horizonte prático global e a
experiência de continuum que este favorece). O que nos aproximará porventura menos da
agenda de Dworkin do que da tentativa de Simmonds (nos termos exemplares que acima
evocámos)612. Para não obstante logo exceder as preocupações que esta manifesta. Mais do
que abrir a reconstrução a contra-argumentos microscópicos produzidos por interpretações
negativas (garantindo a estas uma inteligibilidade auto-subsistente, capaz de resistir às
pretensões de fit e integrity alimentadas pela unidade das práticas em jogo), trata-se, com
efeito, de exigir que em tal intensificação reflexiva (muito especialmente na interrogação
filosófica em que esta deverá culminar) se tematize a própria unidade de sentido das
práticas em causa e assim também a possibilidade da perspectiva interna e dos compromissos
que a distinguem O que, numa palavra, significa interpelar a inteligibilidade-continuidade e
a plausibilidade-pontualidade de uma certa criação cultural e do projecto de demarcação
humano/ inumano que lhe corresponde.
613 Podemos reconhecer aqui um argumento de doing what comes naturally, embora exposto sem a
radicalidade da leitura de Fish, a qual iria decerto ao ponto de dispensar (como redundante, se não perigoso)
este plano de interrogação A.
614 No sentido que Castanheira Neves exemplarmente trata na Metodologia jurídica, cit., pp. 206 e ss.,
231-234.
159
específico do direito — discussão por sua vez indissociável da consideração dos méritos
procedimentais ou materiais tanto do fundamento ou do critério em causa quanto da
decisão-juízo que os assimila (e que assim deverá abrir pontes imprescindíveis com o
patamar da realização e com as reflexões metodológica e dogmática que se lhe dirigem).
Last but not least, de um problema de sentido ou de exigências de sentido [E] : aquele que nos
permite compreender essa juridicidade como intenção (ideia ou arquétipo) e «celebrar» a aspiração
ou a pretensão de perfeição correspondente — e eventualmente especificar esta num elenco de
desiderata (as kinds of legal excellence) —, mas também (e significativamente) avaliar (se não
contabilizar) os graus de êxito e de fracasso atingidos pelas práticas que assumem
constitutivamente essa intenção.
Que a reflexão atribuída à filosofia do direito deve mobilizar o cruzamento fecundo
das perguntas que estes problemas autonomizam [A-E] para poder impor-se efectivamente
como o «transcender situado» das práticas que se pretendem jurídicas (e do mundo que estas
simultaneamente mobilizam e constroem): eis a conclusion-claim que me parece indispensável
sustentar. Tal cruzamento só permitirá no entanto uma dinâmica integrada, se pudermos
reconhecer nas perguntas em causa preocupações distintas (se evitarmos o risco de as
confundir ou de as diluir umas nas outras) e se simultaneamente as compreendermos como
dimensões-faces imprescindíveis do problema da autonomia do Direito que hoje importará
considerar: o que, sem paradoxo, significa defender que o último dos problemas que
autonomizámos [E] há-de estar constitutivamente presente, explícita ou implicitamente,
em cada um dos outros [A-D]. Mais do que garantir um horizonte conformador
homogéneo — que pudesse favorecer um continuum (detersivo da especificidade das várias
preocupações que a pretensão de autonomia hoje suscita) —, trata-se, na realidade, de
responsabilizar as perguntas abertas por este último núcleo como um tertium comparationis
plausível, em confronto com o qual as semelhanças e diferenças das interrogações
formuladas nos outros quatro núcleos ganham a transparência e o rigor indispensáveis.
Sendo este apenas um dos lados da moeda. Porque o outro é seguramente o de garantir
que a intenção explorada no núcleo E, através dos vínculos que estabelece com os outros
núcleos (e através destes também com os patamares metodológico e dogmático), corresponda
por inteiro ao desafio da autotranscendentalidade, trazendo-nos uma compreensão da validade
jurídica indissociável das suas práticas de estabilização-realização e do novum irredutível que
estas introduzem: uma validade que, como projecto de plenitude com um carácter
inequivocamente interno, se assuma explicitamente criada e permanentemente recriada por
160
práticas comunitariamente específicas ([ploughing] over the same ground in ever deeper furrows615)…
evitando o risco de a reflexão correspondente (ao isolar o seu problema num
compartimento estanque) ceder às seduções de uma assimilação exterior (que só no
momento posterior da projecção concretizadora viesse a considerar as referidas práticas). O
risco de ceder às seduções de uma pré-determinação antropológica que pudessemos dizer
inteiramente decidida no plano global da filosofia prática? Já o sabemos. Mas também o de
ceder a uma certa estrutura em árvore (com o tronco matricial a identificar os juízos éticos)616.
Risco que, no plano mais geral, é afinal o de confundir a discussão da validade jurídica com a
mobilização (incorporação) de argumentos e razões morais.
Será a atenção a estes riscos suficiente para justificar as formulações projecto e
projectar (se não mesmo projecto de plenitude) que há pouco privilegiei? Nada nos impede com
efeito de identificar a dimensão intencional da juridicidade recorrendo a outras formulações,
quer se trate de preservar a mais comum (a ideia de direito), quer se trate de assumir uma
alternativa (invocando os desiderata ou tipos de excelência que identificam positivamente a
experiência do direito). A vantagem comparativa da formulação projecto-projectar está em se
distanciar deliberadamente das linhas de desenvolvimento que as duas últimas mais
«naturalmente» evocam, respectivamente aquela que associa a ideia de direito à epistemologia
moderna em geral — e ao regulativen Gebrauch der Ideen der reinen Vernunft em particular617 —
e aquela que vincula os desiderata a uma recuperação da ética de excelência pré-moderna e
muito especialmente à herança-desafio da experiência grega das virtudes (as the morality of the
challenge to perfection (…) or of the aspiration toward perfection [if not] the morality of the Good Life, of
615 Ernest J. Weinrib, «Legal Formalism: On the Immanent Rationality of Law», The Yale Law Journal,
vol.97, nº 6, 1988, p. 974. «Law’s justification (…) cannot properly be truncated. It must be allowed to expand
completely into the pace that it naturally fills…» (Ibidem, p. 971, itálico meu). Ver também Fish, Professional
Correctness. Literary Studies and Political Change (Oxford Clarendon Lectures, 1993), Harvard, 1999, p. 22.
616Se tivermos em atenção o parochial ground do debate incorporacionista, podemos dizer que estes riscos
debilitam significativamente alguns dos mais reconhecidos argumentos não positivistas. É neste sentido que o
regresso a Fuller ou a assunção do seu legado (em contraponto precisamente com o legado de Hart) poderá
aparecer aqui como uma alternativa prometedora [«However, there is a stubborn problem with all these
attempts to make the anti‐positivist position more resilient (and it happens to be closely related to the
difficulty involved in relying on “underpinning reasons” in explaining the normative force of law). All these
accounts end up being distanced from an important aspect of Fuller’s effort: Fuller sought to establish a
connection between law and morality by remaining within the realm of ordinary legal experiences. Fuller tried to
reveal the internal morality of law by reflecting on uncontroversial features of governance by rules in general,
and the alternative strategies gave up this aspiration. By contrast, Dworkin requires us to impose upon law
political values that are formulated by moral and political reflection—in the process of developing one’s own
moral and political theory. It is even more obvious in the case of Finnis whose key claim is that the legal
theorist cannot find the proper point of view to grasp the conceptual characteristics of law without figuring
out the principles of practical reasonableness. His methodology requires us to leave the field of jurisprudential
reflection right after…» (Bódig, «Comment on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the
Contemporary Legal Theoretical Discourse», cit., pp.637)].
617 Ver infra, nota 621.
161
excellence, of the fullest realization of human powers618) .Ora os modelos inexcedíveis destes duas
concepções (na sua relação imediata com o discurso da filosofia do Direito)…
encontramo-los decerto na doutrina do direito justo de Stammler e na reconstrução da
moralidade interna do direito proposta por Fuller.
Na primeira, bem o sabemos, porque (e enquanto) se distancia da «solução» da
Allgemeine Rechtslehre (e muito especialmente aa doutrina dos princípios de Bjerling619) para
assumir a herança de uma reflexão crítico-transcendental e reconhecer nos princípios do direito
justo «desdobramentos» ou «irrradiações»-«emanações» (se não «desimplicações» ou
«derivações directas») da ideia de direito (Die Grundsätze […] sind Ausstrahlungen der Idee von dem
richtigen Recht und wollen dieser eine tätige Verwerdung und Herrschaft möglich machen620).
276.
621 Kant, Kritik der reinen Vernunft, na edição de Wilhelm Weischedel disponível na Suhrkamp
taschenbuch wissenschaft, vol. IV, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1974, p. 567. Trata-se evidentemente de
invocar o «Anhang zur transzendentale Dialektik» na sua primeira parte («Von dem regulativen Gebrauch der
Ideen der reinen Vernunft»)
622 Stammler, ob.cit., p. 276.
623 Usamos aqui formulações propostas por Castanheira Neves, Curso de Introdução ao estudo do direito,
624 Stammler, ob.cit., pp.276-278. Trata-se muito claramente de acentuar que, sendo tais princípios
«derivados» («desimplicados») «directamente» da «ideia de direito», o papel-tarefa que lhes cabe há-de ser
precisamente o de «directivas» ou «directrizes do nosso pensamento» (Richtlinien des Gedankens) destinadas a
um «tratamento unitário» destes materiais (für die Bearbeitung dieses Stoffes) [Ibidem, p. 276].
625 Para falar do direito enquanto tal na perspectiva de Stammler temos, com efeito, que mobilizar a
força autoritário-prescritiva do gesetzes Recht (direito posto e imposto) [Ibidem, pp. 21 e ss. («Der Begriff der
richtigkeit eines Rechtes»]. Na realidade, só poderemos falar de um «direito justo» atribuindo a «qualidade» da
justiça-justeza (Richtigkeit) a um direito posto e ao seu conteúdo querido (Willensinhalt). Se o «direito justo» é
um «modo» (uma «espécie») de «direito postivo» (legislativamente prescrito, produzido por uma voluntas),
então o direito imposto (gesetzte) «divide-se, na perspectiva das características do seu conteúdo, em duas
classes»: «ou é justo ou não é justo; e o direito justo é um direito positivo, cujo conteúdo querido (criado pela
vontade) possui a qualidade-característica (Eigenschaft) da justiça ou justeza». De tal modo que possamos
concluir que «o direito justo e o direito prescrito se comportam um em relação ao outro como espécie e
género» (Danach verhält sich richtiges und gesetzes Recht zu einander, wie einzelaart zur Gattung) [Ibidem, p.22]. É certo
que Stammler nos diz [Ibidem, pp. 213 e ss. («Bedeutung des Grundsätze»)] que «os princípios têm um
significado constitutivo» (sind von konstitutiver Bedeutung) relativamente às «regras do comportamento da
comunidade» (bei der Regeln des Verhaltens der Gemeinschaft); este significado diz respeito porém apenas ao
«fornecer da qualidade da jutiça ou justeza» (auf das Beschaffen der Eigenschaft der Richtigkeit) e não à «proposição
materialmente determinada» (dagegen nicht auf material bestimmte Sätze selbst). Como «em si mesmos não
produzem nada» (von sich aus bringen sie nichts hervor), «os princípios têm que esperar pelo alimento-Zuführung do
material histricamente realizado». Só quando «o material é fornecido e está pronto e à mão no seu
crescimento natural», é que os princípios são chamados a dirigi-lo (richten) e a determiná-lo (bestimmen)
[Ibidem, pp. 214-215].
626 Decerto porque as intenções pré-jurídicas a ter em conta nessa linha de desenvolvimento hão-de
poder dirigir-se-nos… (a)… tanto como formas puras (capazes de proporcionar a qualidade do normativamente
justo aos materiais prescritos ou historicamente determinados), (b)… quanto como exigências materiais
imputáveis a programas políticos ou a uma compreensão politicamente comprometida do homem e da prática
(se não já a uma political morality); (c) tanto como compromissos substantivos ético-comunitários (marcados
pela particularidade dessas comunidades e dos seus ethos narrativos),(d) quanto como exigências (se não
pragamata) de uma moralidade universal «descontextualizada» (procedimentalmente concebida)…
627 Defendo mais desenvolvidamente esta distinção em «Na “coroa de fumo” da teoria dos
princípios: poderá um tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», cit., pp. 395 e ss., 406-
412 (2.2.).
163
descobrir uma moralidade imanente às práticas jurídicas (as a certain inner logic of its own628) e às
instituições (se não às ordens sociais) que, na sua «luta» incessante contra a irracionalidade
(a centuries-old struggle to reduce the role of the irrational in human affairs629), tais práticas vão
paulatinamente construindo.
workable arrangements a designação de Eunomics (uma «ciência» do âmbito da «sociologia moral», a envolver
evaluative judgments àcerca de meios e fins, bem como uma reconstituição dos fins colectivos desejáveis). Para
uma exploração eloquente das possibilidades (e promessas!) desta Eunomics veja-se o ensaio «Means and
Ends», incluído por Kenneth Winston na publicação póstuma The Principles of Social Order: Selected Essays of Lon
L. Fuller (1981), cit. na ed. revista de 2001, Oxford, Hart, 2001, pp. 61 e ss. Veja-se ainda a síntese proposta
por Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 146-153 (4.2.) e a detida
reconstituição crítica de Kristen Ann Rundle, “Forms liberate”: Reclaiming the Legal Philosophy of Lon L. Fuller,
University of Toronto, 2009, cit. na versão disponibilizada em https://tspace.library.utoronto.
ca/bitstream/1807/ 19224/6/Rundle_Kristen_A_200911_SJD_thesis.pdf (acedida em Setembro de 2012),
pp. 13-24 («Eunomics») [este texto, ao qual voltaremos, foi entretanto publicado pela Hart, 2012].
Sem esquecer duas importantes propostas de desenvolvimento dessa herança que (num esforço
paralelo ao de Simmonds) foram ensaiadas pelo próprio Kenneth Winston [«Introduction to the Revised
Edition», The Principles of Social Order , cit., pp. ] e por Henrik Palmer Olsen e Stuart Toddington [em
Architectures of Justice: Legal Theory and the Idea of Institutional Design, Ashgate, 2007, passim]. «Law (…) consists
not only of rules and decisions, but also of a framework of institutions providing a structure that forms the
conditions of its workable existence and acceptance. This book is about these conditions (…). The
architecture of justice therefore, refers to the art and technique of a form of institutional design. And in the
same way that architecture aspires aesthetically and ethically to achieve more than the purely functional
demands of the mechanics of building engineering, using the ideas of law and justice to design a system of
social order should aspire, as Lon L. Fuller reminded us, to achieving ‘Good order and workable social
arrangements’. This is a project to which Fuller gave the name, Eunomics, and this book will be a theoretical
study of what might constitute the Eunomic principles of institutional design…» (Olsen /Toddington,
Architectures of Justice, cit., p. 1).
631Fuller, The Morality of Law, cit., pp. 145-151 («Law as a Purposeful Enterprise…»).
632 Fuller, The Morality of Law, cit., pp. 106 (ver ainda 46, 96, 146)
164
assim mesmo iluminada pela «utopia»-cume de uma juridicidade plena633 («utopia» que sendo
«inatingível» não pode nem deve nunca ser compreendida como um «alvo»!634) — se
concebe e se experimenta como uma autêntica moralidade de aspiração, sustentada na
«qualidade afirmativa e criativa das suas exigências» (porventura, mais rigorosamente, como
uma moralidade dominantemente de aspiração, conjugada-concertada, numa geometria
relativamente complexa, com uma moralidade de dever e com as proibições que esta
determina)635.
A «condicionalidade», se não «contingência», do «conteúdo» continua porém a
impor-se-nos, exigindo que uma tal moralidade interna, nos seus oito desiderata (the eight kinds
of legal excellence636) — sem prejuízo da teleologia global que assegura637—, se nos dirija livre de
fins substantivamente determinados, ou mais exactamente, contrapondo-se a uma moralidade
externa explicitamente material (na qual encontramos por exemplo os «princípios» substantivos
da justeza-fairness, da adequação às circunstâncias, da eficiência).638 O que, também sem
prejuízo de devermos tematizar as interacções destas moralidades interna e externa639 (e de
acentuarmos outros tantos intellectual channels indispensáveis à reflexão metadogmática640,
reconhecendo desde logo que um «respeito pela moralidade interna limita» os substantive aims
que podem ser prosseguidos pelas normas legais641 ) — nos mesmos termos de resto em que
em que não podemos deixar de considerar as tensões (e o balancing) entre os desiderata da
moralidade interna642 (antinomies may arise within the internal morality of law643) —, nos conduz à
conclusion-claim inevitável de reconhecer que a excelência jurídica, na sua inequívoca dinâmica
positiva, cumpre um sentido explicitamente procedimental (concerned, not with the substantive aims of
633 «At the height of the ascent we are tempted to imagine a utopia of legality…» (Ibidem, p.41). A
utopia em causa é aquela em que os oito desiderata a que aludimos supra (nota 498) nos aparecem todos
cumpridos.
634 «…as a useful target for guiding the impulse toward legality…» (Ibidem). «Fuller (.…) makes clear
that the eight principles are to be understood as standards to which lawmaking should rather than must
achieve. Thus, his intention is not to portray the existence of legal order as achieved only in a utopia where
each of the eight principles is realized to complete perfection because such a utopian conception is not, in his
view, “a useful target for guiding the impulse toward legality”. Instead, the eight principles are intended to
represent distinct standards against which excellence in legality may be tested…» (Kristen Ann Rundle, “Forms
liberate”: Reclaiming the Legal Philosophy of Lon L. Fuller, cit., p.73, nota 32).
635 Ibidem, pp. 41-44 («The Aspiration toward Perfection in Legality»), 91-94 («Legality as a Practical
Art»).
636 Ibidem, p.41.
637 Uma teleologia contida no propósito da governance of rules, cuja reconstituição pode assim evitar o
pathos da relação ideia/ideal, ou pelo menos os excessos do idealismo: ibidem, pp. 145-147, 189-190 [«[T]he
purpose I have attributed to the institution of law is a modest and sober one (…) and scarcely lends itself to
Hegelian excesses» (Ibidem, p.146).
638 Ibidem, pp. 44-47, 155 e ss.
639Ibidem, pp. 46 e ss., 152-186 («The substantive aims of Law»).
640 Ibidem, p. 155.
641 Ibidem, pp. 4, 154 e ss.
642 Ibidem, pp. 44 e ss. («Legality and the Economic Calculation»), 104 -106. «All [the “desiderata”]
(…) are means toward a single end, and under varying circumstances the optimum marshalling of these
means may change. Thus an inadvertent departure from one desideratum may require a compensating
departure from another…» (Ibidem, p. 104).
643Ibidem, p. 45.
165
legal rules, but with the ways in which a system of rules for governing human conduct must be constructed and
administered if it is to be efficacious and at the same time remain what it purports to be644). Conclusão que
Fuller defende posicionando-se em relação à tradição do jusnaturalismo645 e sustentando um
sentido amplo de racionalidade procedimental646 (What I have called the internal morality of law is
in this sense a procedural version of natural law647) .
include, for example, a substantive accord between official action and enacted law…» (Ibidem, p.97). Trata-se,
de resto, de explicitamente atender ao último dos desiderata (o da congruência que deve existir entre as regras
declaradas e as acções oficiais que as mobilizam, executam ou realizam).
647 Ibidem, p. 96.
648 Fuller, «Means and Ends», cit., p. 62.
649 «Perhaps in time legal philosophers will cease to be preoccupied with building “conceptual
models” to represent legal phenomena, will give up their endless debates with definitions, and will turn
instead to an anlaysis of the social processes that constitute the reality of law… » (The Morality of Law, cit., p.
242).
166
É na realidade já com este carácter que, numa etapa inicial do seu percurso reflexivo
(estabelecendo precisamente um diálogo com Stammler e Del Vecchio), Castanheira Neves
defende que «o regulativo651 da justiça só poderá ser um princípio da razão prático-axiológica
e não da razão teorético-transcendental»652, carácter prático-axiológico que (na sua unidade entre
intenção e ideia653) esclarece logo a seguir, ao exigir que ao princípio correspondente (dito
«princípio da justiça») se associem duas dimensões irredutíveis: aquela que o identifica no seu
«impulso ideal», se não «espiritual» (como «incondicionado» e «fundamento» ), e aquela que o
refere à «realidade social» e às «condições» desta (levando a sério a sua própria
«historicidade»)654. Se esta acentuação nos autoriza a compreender este princípio simultanea
e irredutivelmente como o «transcender de uma certa realidade» e como o «transcender para
uma certa realidade»655, não nos autoriza menos com efeito a convocar a ideia de direito («no
seu sentido forte, aquele que a pensa como a própria expressão do Espírito na sua
autonomia») na sua relação decisiva com o «direito historicamente realizado» («só no direito
positivo a ideia de direito realiza o direito, só pela ideia de direito o direito positivo se realiza
como direito»)656 — e então e assim a associar esta ideia (como autopressuposto prático, com
um «sentido de inteligibilidade regulativo-constitutivo»657) a um certo princípio normativo,
vendo no segundo a expressão normativa daquela («um princípio tal que, só porque ele
fundamenta e regulativamente constitui uma certa ordem, esta se pode qualificar de jurídica
(…), princípio (…) que não é outro senão a própria ideia de direito ou o direito enquanto
princípio axiológico e prático-normativo»658)659.
650Castanheira Neves, Metodologia jurídica, cit., pp. 203-204. Veja-se a exploração desta concepção dos
princípios que propus em «Na “coroa de fumo” da teoria dos princípios…», cit, pp. 412-421 (3.)
651 O significante «regulativo» não aparece aqui como sinónimo de «mero regulativo» (e opondo-se
intenção e a intenção assume a ideia, podendo dizer-se que a este nível, ao nível intencional, ideia e intenção
se acabam por confundir…» [«A revolução e o direito» (1974), Digesta, vol. 1º, cit., p. 172].
654 Curso de Introdução ao estudo do direito, cit., pp.105 e ss. (II).
655 Ibidem, p.107.
656 «O papel do jurista no nosso tempo» (1967), Digesta, vol. 1º, cit., p. 39.
657 «A revolução e o direito» (1974), ibidem, p. 174.
658 Curso de Introdução ao estudo do direito, cit., pp. 27-28.
659 Ver O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp. 177 e ss. (e nota 293)
e «A revolução e o direito», cit., pp. 169 e ss. (7.). Ver também a detida interpretação deste princípio normativo
proposta por Fernando José Bronze nas Lições de Introdução ao Direito, cit., pp. 460 e ss. (13ª lição).
167
Podíamos argumentar que o significante projecto tem pelo menos a vantagem de ser
simultaneamente compossível com um tratamento regulativo-constitutivo da ideia de direito660 —
aquele que a assume como a autopressuposição de uma praxis-tarefa ou da sua
inteligibilidade fundamentante — e com a intenção de plenitude da moralidade de aspiração
(starting at the top of human achievement661) — aquela que incorpora no mundo prático do
direito, ao lado da valoração que resulta da violação de um dever, uma segunda valoração
negativa, determinada pela experiência de uma frustração (parcial ou total) de uma intenção-
-exigência ou do achievement que lhe corresponde (for shortcoming, not for wrongdoing662). E não
teríamos que ficar por aqui. É que o significante em causa traz também um outro benefício
não negligenciável, que é o de uma directa relação de parentesco com a mise en mots do
pensar em círculo, se não do saltar para o interior do círculo (na sua inteligibilidade hermenêutico-
-existencial) — mise en mots de cuja herança uma tematização da autodisponibilidade enquanto
autotranscendentalidade poderá hoje dificilmente prescindir. Trata-se evidentemente de
convocar Heidegger e a «perspectiva»-visée (Sicht) do compreender-Verstehen como modo
fundamental (Grundart) do Ser do «estar-aí»-Dasein663([D]as Verstehen macht in seinem
Entwurfcharakter existenzial das aus, was wir die sicht des Daseins nennen664), se não, mais
claramente, de atender à estrutura existencial deste compreender enquanto poder-ser e ser-
possível, o qual, na sua abertura, se cumpre como pro-jectar lançado no (saído para o) mundo (Sein
lichtet sich dem Menschen im ekstatischen Entwurf [und] überdies (…) ist der Entwurf wesenhaft ein
geworfener665).
660 Compossibilidade tanto mais evidente quanto é certo que o referido significante aparece
frequentemente associado ao mundo dos nomes mobilizados por este tratamento, sempre que, no horizonte de
uma referência comunitária, se pretenda evocar uma dinâmica prospectiva (se não a abertura permanente de uma
institucionalização-ordinans). Assim explicitamente em Castanheira Neves: trata-se de defender que a «intenção
ético-comunitária das pessoas, intenção que elas assumem numa ideia totalizante [,](…) não é [outra coisa]
que a Ideia de Direito», reconhecendo-se simultaneamente que a necessidade de uma «referência à história»
(«a partir de uma situação histórico-social») e de um transcender dessa mesma história («construída em
“projecto” e futuro…») se alimenta ao fim e ao cabo do «“projecto” e conteúdo axiológicos por que a
comunidade histórica se vai constituindo…» («O papel do jurista no nosso tempo», cit., p. 39)
661 Fuller, The Morality of Law, cit., p. 5.
662 Ibidem.
663 Heidegger, Sein und Zeit, 18ª edição (reimpressão da 15ª), Max Niemeyer Verlag Tübingen, 2001,
ist nicht der Mensch, sondern das Sein selbst, das den Menschen in die Ek-sistenz des Da-seins als sein
Wesen schickt…» (Ibidem).
168
alternativa, uma tentativa de encontrar atributos empíricos que delimitem quer os fenómenos jurídicos quer as
pretensões de juridicidade (e a inter-semioticidade que estas tecem) podem decerto fornecer contributos
informativos preciosos, serão no entanto sempre radicalmente incompatíveis com a tematização do jurídico
como ordem-ordinans de possibilidade!
670 Ibidem, p. 144.
169
no todo iluminado pelo projecto ou no terreno percorrido pelo projectar (Weil das Verstehen an
ihm selbst die existenziale Struktur hat, die wir den Entwurf nennen. (…) Das Verstehen ist, als
Entwerfen, die Seinsart des Daseins, in der es seine Möglichkeiten als Möglichkeiten ist671). Como se a
recompreensão do mundo prático do direito à luz do existencial «possibilidade» (vendo no
direito o projectar de um mundo possível, em permanente movimento) nos permitisse enfim
conjugar (na sua unidade de sentido) algumas das linhas de compreensão que mais
insistentemente nos têm ocupado.
Por mais sedutor que este estímulo reflexivo nos possa parecer, importa no entanto
manter aceso o fogo da contra-argumentação… e disponibilizá-lo ao seminário. Por um lado
decerto para evitar que a assimilação da mise-en-mots de Sein und Zeit (como recurso
expressivo irresistível) se converta numa transposição abusiva de categorias — tentação a
que, como sabemos, um certo heideggerianismo de superficie, se não pseudo-
heideggerianismo, persistentemente sossobra, num exercício paradoxal de ocultação dos
problemas, se não de imunização das respostas correspondentes (fechadas numa
reprodução acrítica de fórmulas). Por outro lado ainda para retomar uma das nossas
preocupações principais, perguntando se não estaremos assim a correr o risco de,
celebrando como que em bloco (e com a opacidade inevitável) a estrutura existencial da
prática e do pensamento prático enquanto poder-ser, cedermos à facilidade de (apenas)
iluminar o jurídico a partir deste Sicht, com a consequência (paradoxal) de tornar esta
perspectiva insensível à (exploração da) especificidade do mundo prático em causa, cuja
ordem-ordinans nos ajuda afinal a compreender.
Estes riscos só os evitaremos, se, ao reconhecermos no jurídico a projecção-projectar
de um mundo possível — identificável na sua continuidade, não obstante o fluxo imparável
das práticas que o constituem e realizam —, simultaneamente procurarmos tematizar tal
identidade-continuidade. E esta a partir de um segundo execrcício narrativo (aquele que
precisamente nos confronta com o direito como criação civilizacional)…
-procura dessa identidade em outros tantos contextos práticos) —, na mesma medida ainda
em que, na unidade de sentido gerada pela reciprocidade constitutiva da dimensão intencional e
da dimensão da realização (com soluções de integração intencional e teleologicamente
inconfundíveis), se descobre distinto de outras respostas igualmente possíveis — respostas ao
problema da prática em geral e ao problema da vida em comum em particular, respostas
alimentadas pelo mesmo horizonte civilizacional ou sustentadas por outros horizontes.
Sendo esta uma temática que, na sua concentração produtiva — percorrendo o
caminho aberto pela reinvenção jurisprudencialista (na sua lição de recuperação reflexiva
do originarium da juridicidade) —, tenho privilegiado, permito-me agora apenas esquema-
tizar alguns dos seus traços. Como outras tantas interpelações, dirigidas ao seminário modelo.
672 Já mobilizei este contraponto em «Direito, violência e tradução: poderá o direito, enquanto forma de
vida civilizacionalmente situada, oferecer-nos as condições de tercialidade exigidas pelo problema do diálogo
intercultural?», comunicação apresentada nas IV Jornadas da ATFD (Universidade Nova de Lisboa, Fevereiro
2012), a publicar em breve.
673 No sentido que Castanheira Neves nos ensina a reconhecer: ver «Coordenadas de uma reflexão
sobre o problema universal do direito», cit nos Digesta, vol. 3º, cit., pp. 13-16.
171
seguir quais!) que nos permitem tratar tal problema como uma experiência inconfundível
de afirmação e de assimilação das diferenças.
(β) Um horizonte de resposta, por outro lado, que, ao manter-se fiel a uma exigência de
inseparabilidade — à interpenetração de intenções e significações que a sustenta e à procura
de equilíbrios internos que esta holisticamente determina —, reage ao mesmo problema global
assumindo (experimentando, recriando, ainda que raramente tematizando) um continuum
prático (imune àquela pretensão de autonomia).
674Para Raz, trata-se de invocar os exemplos das theocratic autonomous Jewish communities e das Islamic
theocracies (e outros sistemas político-religiosos), mostrando que o continuum normativo que nelas se manifesta
nos impede seguramente de falar da assimilação de um concept of law (autonomizado do concep of religion e do
concept of ethics), embora nos imponha que continuemos a identificar nas suas práticas um autêntico legal system:
«Yet beyond doubt theocratic Jewish communities did have a legal system, even though they lacked the
concept of law (…). [It] would be absurd to think that Iran (…) does not have a legal system…» (Raz, «Can
There be a Theory of Law?», Between Authority and Interpretation. On the Theory of Law and Practical Reason,
Oxford. Oxford University Press, 2009, p. 40).
172
675 Trata-se de invocar as pretensões cosmopolitas associadas às teorias da justiça (cosmopolitism about
justice), em contraponto com aquelas que se reconhecem como parte integrante de um discurso sobre a
cultura e a construção das identidades (cosmopolitism about culture and the self): esta distinção deve-se a Samuel
Scheffler, «Conceptions of Cosmopolitism» (1999), Utilitas 1, pp.255-276, doi:10.1017/S0953820800002508
(acedido em Dezembro de 2011).
676A incapacidade de assumir em pleno a exigência de continuidade do jurídico, permitindo que a
sem paradoxo, a estabelecer-se entre os dois veios oponentes da teoria da justiça: decerto
porque universalismos liberais e particularismos comunitaristas, ocupando-identificando embora
campos contrários — e assumindo uma posição relativamente diferenciada em relação à
herança formalista678 —, não obstanto acordam no tratamento do jurídico como um mero
regulador social679 ou como uma mera instância de institucionalização, entenda-se, como um
acervo de recursos de institucionalização intencionalmente neutros, capazes de corresponder,
como que instrumentalmente, a outros tantos modelos societários ou comunitários de
identidade colectiva (político, económico ou eticamente construídos). Não sendo certamente
por acaso que o tratamento garantido por estas teorias da justiça — e pelos pensamentos que
as assimilam (mesmo quando, já para além das referidas teorias, se propõem inventar um
tertium genus680) nos condena sem remissão a uma alternativa inescapável: aquela que, não
estando em condições de pôr (nem de reconhecer)um problema de demarcação-Abgrenzung
— que pudesse dizer-se determinado por uma perspectiva intrinsecamente jurídica (capaz
de conferir à Law’s claim um sentido intencional unitariamente autónomo) —, se vê
constrangida a optar entre a prescrição de uma moralidade criticamente universal e a
consagração de uma moralidade positiva convencionalmente particular (se não de uma
eticidade substantiva vigente)681. Como se as pretensões que constituem (que dinamizam
internamente) este eixo pudessem ao fim e ao cabo mostrar-se ambas compossíveis (por
razões diversas embora) com a irrelevância (se não indesejabilidade, pelo menos
impossibilidade) de um problema de demarcação da juridicidade. Observação que nos leva a
uma conclusão inevitável. Para acentuar que, se importa hoje abrir a oportunidade reflexiva
de interpelar o direito como projecto-projectar de sentidos comunitários, é, com efeito,
desde logo para perceber que aquilo que está em causa não é o reconhecimento trivial da
678Herança que não é rejeitada em bloco … e que assim permanece presente, seguramente no campo
universalista, mas também (relativizada embora como tradição) nalgumas vozes do campo oponente…
679 Um regulador cujas pretensões de identidade, afirmadas em contextos distintos (e mais ou menos
inter-semioticamente tratadas), são por assim dizer reconduzíveis ao contexto-correlato de uma prática de
decisões contingentes e ao regulativo coercitivamente eficaz que esta prática institucionaliza.
680 Não me refiro apenas aos territórios híbridos do liberalismo comunitarista ou do comunitarismo
liberal — com interlocutores que podem ir de Nussbaum (e Sen?) a Walzer e Taylor —, refiro-me também e
muito especialmente à pretensão de encontrar um «terceiro modelo de democracia», diferente quer da
concepção liberal do Estado enquanto «guardião de uma societas económica» (als Marktwirtschaft), quer da
concepção republicana do Estado enquanto «comunidade ético-material»: o terceiro modelo (dito de
democarcia deliberativa) que vemos exemplarmente exigido pelo republicanismo discursivo-procedimental de
Habermas [«Drei normative Modelle der Demokratie», Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen
Theorie, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1996, cit. na edição de bolso de 1999, pp. 277-292]— num horizonte
reflexivo em que o problema da autonomia do direito, como problema indissociável do «projecto da
modernidade», se reconduz precisamente à institucionalização coercitiva de uma forma político-social. Para
Habermas o problema nunca é, com efeito, o da autonomia do direito mas o da politisch autonome Rechtsetzung:
ver «Zur Legitimation durch Menschenrechte», Die postnationale Konstelation. Politische Essays, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1998, p. 134. Para uma reconstituição mais detida, remeto-me para o já cit. «O homo
humanus do direito e o projecto inacabado da modernidade», passim.
681 Combinem-se (et pour cause!) as formulações de Hart e Waldron com as de Habermas!
174
682 Para o dizermos recorrendo aos tipos ideais propostos por Robert Booth Fowler, «Community.
Reflections on Definition», in Amitai Etzioni (ed.), New Communitarian Thinking. Persons, Virtues, Institutions, and
Communities, Virginia, University Press of Virginia, 1995, pp. 88 e ss.
683 Como se sabe a palavra Lebensform é usada nas Philosophische Untersuchungen com uma extraordinária
parcimónia (encontramo-la nos §§ 19, 23 e 241 da I parte e nas pp. 277 e 363 da II parte), parcimónia que
contrasta com as polémicas suscitadas pela leitura-recepção da obra de Wittgenstein, nas quais se debate
precisamente a inteligibilidade mais antropológico-cultural ou mais científico-natural (mais próxima de uma
certa naturalis historia) que a categoria em causa exige. Para uma reconstituição atenta deste problema (inclusive
da polémica que opõe N. Garver e R. Haller) — defendendo de resto uma exemplar solução gradualista (capaz
de ver na categoria em causa eine primäre, speziesspezifische und eine sekundäre, anthropologisch-soziokulturelle Bedeutung)
—, ver Rafael Ferber «„Lebensform“ oder „Lebensformen“. Zwei Addenda zur Kontroverse zwischen N.
Garver und R. Haller», in Klaus Puhl (ed.) 1992, Wittgensteins Philosophie der Mathematik: Akten des 15.
Internationalen Wittgenstein-Symposiums, Teil 2, Schriftenreihe der Wittgenstein-Gesellschaft, Band 20/2, pp. 270-
276. Sem esquecer o desenvolvimento proposto por Marion Colas-Blaise (com uma exploração sistemática
das cinco passagens das Philosophische Untersuchungen, confrontadas com o universo da semiótica greimasiana),
«Forme de vie et formes de vie : vers une sémiotique des cultures», in Nouveaux actes sémiotiques, nº 115, Les
formes de vie à l'épreuve d'une sémiotique des cultures, 2012, disponível em http://revues.unilim.fr/nas/
document.php?id=4158 (extraído em Janeiro de 2013).
684Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen (1937-1949), Frankfurt am Main, Surkamp, ed. de bolso,
la question, un peu byzantine comme toute question d’ordre terminologique, qui nous est posée : faut-il y voir
des « formes » ou des « styles » de vie ? Ou, pourquoi pas, des « genres », ou par exemple des « modes » de vie
? — La discussion est ouverte. Mais quelle qu’en soit l’issue, l’essentiel restera pour nous cette confirmation :
d’une façon ou d’une autre, il y a place, en sémiotique, pour la vie ! L’obstination de quelques marginaux de notre
espèce est sans doute pour quelque chose dans le regain d’intérêt pour cette notion qui, en deçà du textuel et
au-delà des disputes terminologiques, reconduit vers l’existentiel. Ce qui revient à dire qu’à nos yeux, c’est la
logique du projet sémiotique dans son ensemble qui commandait ce retour…» (Landowski, «Régimes de sens
et styles de vie», in Nouveaux actes sémiotiques, nº 115, Les formes de vie à l'épreuve d'une sémiotique des cultures, 2012,
cit., p. 2, itálicos nossos).
691 Ver muito especialmente Boyd White, Heracles’Bow. Essays on the Rhetoric and Poetics of the Law,
Madison 1985, pp. 215-237 («Plato’s Gorgias and the Modern Lawyer. A Dialogue on the Ethics of
Argument»).
692 Castanheira Neves, O actual problema metodológico da interpretação juridica, I, cit., pp. 230-251 («A
subtítulo desta monografia, não certamente por acso é: Bausteine zu einer lebenswltlichen theorie der Rationalität).
176
694 «Phronêsis è la ragion che si convalida nel pratico, che media l’universalità dell’orientamento a
uno scopo dell’agire con la varietà dei casi nelle situazioni mutevoli…» [Bubner, Handlung, Sprache und Vernunft
: Grundbegriffe praktischer Philosophie (Frankfurt am Main, 1976), cit. na nova edição (com apêndice) de 1982 e na
trad. italiana Azione, linguaggio e ragione: I concetti fondamentalli della filosofia pratica, Il Mulino, Bologna, 1985, p.
240].
695 Heidegger, Über den Humanismus, cit., p. 19.
696 A que «mediação racional» me refiro? Decerto àquela que, atribuindo a titularidade do jurídico ao
populo romano, encontra (delimita) o seu campo problemático ao exigir que uma certa prática da
intersubjectividade-reciprocidade, envolvendo «homens humanos» virtuosos (iguais e responsáveis) e as respectivas
máscaras de sui juris — na mesma medida em que alimenta uma condição (referencial-objectiva e judicativo-
subjectiva) de tercialidade —, se autonomize (se separe!) das outras práticas da civitas e dos discursos (éticos,
filosóficos, religiosos, narrativos) que as constroem…
697 O que significa situá-la (inscrevê-la) no plano do respondere social e então e assim perceber em que
termos é que a conjugação (sobreposição) do status civitatis e do munus do pater familias circunscreve a máscara
deste sui iuris a um círculo exemplarmente restrito (na mesma medida em que inventa e estabiliza uma nova
excelência aristocrática).
698Exigência-tarefa esta com um sentido que, considerado na perspectiva da nossa circunstância
presente, diríamos amplíssimo — porque abrange os três iuris praecepta (e as suas complexas posteridades), ou
porque conjuga in nuce as diversas formas do justo jurídico (permitindo que estas lhe sejam retrospectivamente
177
atribuídas)…—, mas que nem por isso se nos expõe (e nos atinge) com um sentido menos específico e menos
originário — obrigando-nos a situar em planos distintos, assim mesmo inteiramente compossíveis, as duas
conhecidas formulações atribuídas a Ulpianus [«Justitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique
tribuendi /…tribuens», « Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique
tribuere»]. Para uma exploração destes planos, preocupada sobretudo em mostrar que a formula «ius suum
cuique tribuendi», em confronto com a formuletta «suum cuique tribuere», impõe uma compreensão global do
mundo prático do direito, assim mesmo referida a todas as determinações-esclarecimentos das «posições» de
direitos e deveres dos sujeitos, ver Giuseppe Falcone, «Ius suum cuique tribuere», in Studi in onore di Remo
Martini, Siena, Giuffrè Editora, 2008, pp. 971 e ss., cit. na paginação disponível on line (no sítio da
Universidade de Palermo), http://www.unipa.it/~dipstdir/pub/annali/2007-2008/Falcone.pdf (acedido em
Janeiro de 2013), pp. 135 e ss. «Invero, dall’accostamento-giustapposizione rispetto all’ ‘alterum non laedere’
sembra doversi concludere che il precetto ‘suum cuique tribuere’ sia stato assunto da Ulpiano come riferentesi
esclusivamente all’attribuzione del diritto o comunque della situazione di vantaggio che spetta a ciascuno:84 il
ricorso all’espressione ‘ius suum’ avrebbe consentito al giurista di distinguere la concettualizzazione riguardante
la iustitia, quale volontà di attribuire qualsiasi posizione giuridica, ivi inclusa la sottoposizione a sanzioni, da
quella, avente minore estensione, espressa con l’ultimo dei tre praecepta iuris…» (Ibidem, p. 172)
699 A atenção conferida a este argumento de continuidade (vinculando a procura do homo humanus do
direito à dinâmica, se não à «racionalidade intrínseca», do ius suum cuique tribuere) é por sua vez suficiente para
expor o nosso auditório implícito a uma nova série de possibilidades temáticas, todas elas em condições de
discutir a persistente denúncia deste tribuere como «fórmula vazia» e os argumentos (distintos) que a
constroem [Para uma concentração exemplar destes argumentos (radicalizados na sua rejeição das pretensões
de autonomia do jurídico), veja-se Govaert C. J. J. Van der Bergh, «Jedem das Seine» (2005), disponível em
http://www.forhistiur.de/zitat/0503vandenbergh.htm (extraído em 2007) — o autor vai ao ponto de
questionar-desconstruir a thesis of isolation de Schulz: «In the heyday of legal positivism the isolation of law was
also projected back in history, as is inevitable. According to Schulz, it was the Romans - who else - who
succeeded for the first time in isolating law from all that is not law. (…) In retrospect, this seems an absurd
thesis What Schulz, on the authority of Jhering, presented as history was nothing else than nineteenth century
bourgeois ideology »]. Não se trata, com efeito, apenas de poder mostrar em que termos é que esta atribuição
de direitos e deveres, responsável pela construção de um cosmos específico e pelas máscaras que nele se
interrelacionam — máscaras cuja identidade é constituída pelo próprio exercício de interrelação (na sua
bilateralidade atributiva) —, se distingue da justiça particular distributiva consagrada (holisticamente) pela Ética a
Nicómaco (aquela que se quer relativa «às honras ou às riquezas» ou a «tudo o que possa ser distribuído em
partes pelos membros da comunidade-polis») [Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro V, cap. 2 (V, 2, 1130b 30 e
ss.) ]. Trata-se também de explorar a irredutibilidade deste tribuere à forma de delimitação das interacções mediatas
(as the structure in which parties are related as persons subject to common benefit or burden), forma esta que, num plano de
inteligibilidade já assumidamente jurídico (se quisermos mesmo imanentemente jurídico), Weinrib associa à
mesma igualdade por proporcionalidade geométrica (à função de dividir os benefícios ou os ónus segundo um
determinado critério) — precisamente enquanto opõe esta forma ou «estrutura justificatória» do direito
público (que exige o contributo da política e de um discurso de fins) à forma de interacção imediata associada à
justiça correctiva e à exigência exclusivamente jurídica da «igualdade quantitativa» (in corrective justice politics is
absent) [Weinrib, «Legal Formalism: On the Immanent Rationality of Law», cit., pp. 976 e ss. (IV. «The Forms
of Justice»)]. Discussão tanto mais relevante quanto é certo que nos abre as portas para (agora já claramente
para além da proposta de Weinrib, antes covocando Honneth, se não, através dele, Hegel… e Mead!)
podermos experimentar as diferenças que separam os «padrões de reconhecimento recíproco» do direito e da
solidariedade [Honneth, «Muster intersubjektiver Anerkennung: Liebe, Recht, Solidarität», Kampf um
Anerkennung (1994), erweiterte Ausgabe, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2003, pp. 148 e ss.]. Antes de
enfrentarmos o contexto institucional da neomaterialização imputada ao Estado social, para muito especialmente
nos concentrarmos no problema da responsabilidade de contribuição: responsabilidade de contribuição que (levada
a sério como dimensão do princípio normativo-jurídico da responsabilidade) deverá conjugar as «condições
da existência comunitária» com uma tradução macroscopicamente jurídica da solidariedade social e assim
mesmo se expor a questões de demarcação particularmente delicadas (suscitadas pelas interpelações decisivas
da ética e da política).
178
Que alargamento? Aquele que associa a máscara de homo humanus sui iuris a novas
manifestações da subjectividade colectiva (na sua identidade societária ou comunitária), ao
mesmo tempo que invoca as divisas da justiça geral, da justiça protectiva, da justiça distribuutiva700.
Mas sobretudo aquele que, vinculado a uma exigência de igualdade e a uma dinâmica de
progresso (com uma crescente sensibilidade às diferenças e um não menos crescente
tematização desta sensibilidade), culmina numa atribuição da máscara da pessoa jurídica a todos
os homens-sujeitos, na sua facticidade antropológica (the idea of law or of a legal system now
embodies the assumption that everyone in a society ruled by law is treated as sui juris, as having full legal
dignity701)
700 Vejam-se as reconstituições da tectónica da ordem jurídica (com a convocação destas «intenções
clássicas da justiça») propostas por Castanheira Neves e Fernando José Bronze, respectivamente no Curso de
Introdução ao Estudo do Direito (O sentido do direito, 140 pp.), nova versão, policop., Coimbra, s/ data, pp. 7-13
e nas Lições de Introdução ao Direito, cit., pp.31-58 (2ª lição). Sem esquecer o tratamento das «modalidades da
justiça» proposto por Castanheira Neves no já cit. Curso de Introdução ao estudo do direito, Lições proferidas no
ano lectivo de 1971-72, polic., pp. 122-125 (d)).
701 Waldron, «How Law Protects Dignity: the 2011 David Williams Lecture at the University of
Cambridge», disponível (como working paper nº 11-83) na Public Law & Legal Theory Research Paper Series da
New York University School Of Law, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1973341##
(extraído em Fevereiro de 2013), p. 17.
702 A fórmula é de Michael Rosen, «How Law Protects Dignity. Replies to Jeremy Waldron: Dignity,
704 Não nos esqueçamos que Waldron, sem invocar embora Cícero — não certamente por acaso, já
que o seu problema é o dos direitos do homem! —, sustenta a sua recompreensão do alargamento do círculo
da igualdade, propondo-se precisamente mostrar-nos que a dignidade enquanto status é uma ideia
genuinamente jurídica: «Even as the ground of rights, dignity need not be treated in the first instance as a
moral idea. After all it is not just the surface-level rules that are legal in character (as though anything deeper
must be “moral”). I am enough of a Dworkinian to believe that grounding doctrines can be legal too — legal
principles, for example, or legal policies. Law contains, envelops and constitutes these ideas; it doesn’t just
borrow them from morality…» [Waldron, «Dignity, Rank, and Rights:The 2009 Tanner Lectures at UC
Berkeley», disponível (como working paper nº 09-50) na Public Law & Legal Theory Research Paper Series da
New York University School Of Law, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1461220 (extraído em
Fevereiro de 2013), p.3 (agora também publicado, com comentários e respostas, pela Oxford University
Press, 2012).
705 Ver ainda Falcone, «Ius suum cuique tribuere», cit., pp. 158 e ss.
706Ou ainda quando, em formulações não menos pesuasivas (e não menos inspiradas pelo holismo
da kosmopolis estóica), tal experiência do jurídico, já sob o imperium dos principis, estimula Séneca, à luz de uma
universal lex naturae, a explorar o ius humanum comum a escravos e homens livres (e a societas iuris humani que,
enquanto vínculo, o fundamenta). Para uma primeira evocação da stoa nos pensamentos de Cícero e de
Séneca, ver Brad Inwood e Fred d. Miller Jr, «Law in Roman Philosophy», in Miller Jr (ed.), A History of the
Philosophy of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics (vol. 6 de Pattaro, ed., A Treatise of Legal Philosophy and
General Jurisprudence), Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2011), pp. 133 e ss., 140-153.
707 Sem prejuízo das tensões que, já no final deste ciclo, dividem as grandes concepções dominicana
e fransciscana, entenda-se, tomista e (neo-)agostiniana, do(s) ius/iura: ver por todos Janet Coleman, «Are
There any Individual Rights or Only duties? On the Limits of Obedience in the Avoidance of Sin according
to Late Medieval and Early Modern Scholars», in V.Mäkinen, P. Korkmann (eds.), Transformations in Medieval
and Early-Modern Rights Discourse, The New Synthese Historical Library, vol. 59, Springer, 2006, pp. 3-36.
708 Castanheira Neves, «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito», cit. no
3.3.3.4. Levada a sério nesta relação constitutiva com a invenção do homo humanus
sui iuris, a tarefa de ius suum cuique tribuere expande significativamente as suas possibilidades,
na mesma medida no entanto em que, sem paradoxo, as especifica. Mais do que admitir
que o respondere juridicamente relevante nos reconduz invariavelmente a uma experiência
(reflexivamente assimilada) de justeza prática ou de justo concreto (rechtliche und (…) juristische
Richtigkeit709), trata-se, com efeito, muito simplesmnte, de o concentrar numa prática de
identificação-comparação de sujeitos comparáveis. Concentração que nos autoriza a reconstruir
a controvérsia jurídica (enquanto núcleo do mundo prático do direito) partindo de uma
estrutura elementar…
Concentração que também exige que nos dirijamos aos elementos (bem
conhecidos) desta estrutura elementar, evocando um efeito de emergência e de progressão
simultâneas, ou pelo menos, acentuando a reciprocidade que os torna dependentes uns dos
outros (se não já a circularidade que, resistindo a uma integridade pré-determinada dos seus
709 «In Wahrheit hat das Recht seine Realität in etwas anderem als in Gesetzen oder sonistigen
Wörtern und Sätzen(…). In Wahrheit hat das Recht seine Realität im konkreten Fall, der entschieden werden
will. Und was dort, in jedem einzeln Fall, erkannt werden muß, ist letzlich Gerechtigkeit, freilich in der zivilen
Form juristischer Richtigkeit [Nicht: rechtliche Richtigkeit, denn juristische ist eben die rechtswissenschafliche
Richtigkeit]…» (Joachim Lege, «Was Juristen wirklich tun. Jurisprudential Realism», in Brugger, Neumann,
Kirste (Hg.), Rechtsphilosophie im 21. Jahrhundert, cit., p. 208 e nota 7).
710 Já assim nos meus Sumários desenvolvidos de Introdução ao Direito, cit., pp. 3 e ss. (1.1. «A controvérsia
De tal modo que partes, neste sentido amplíssimo, sejam tanto os sujeitos privados
quanto os membros da comunidade, tanto os indivíduos-cidadãos quanto os cidadãos-
beneficiários (inventados por distintos palcos da societas-Estado), mas também e muito
significativamente a própria communitas dos bens jurídicos a preservar e a societas político-
juridicamente institucionalizada (ou os orgãos que a representam)712…
Significa isto decerto admitir que a diferença em causa, evitando o abismo do diferendo
— se não impondo-se-nos como um verdadeiro litígio —, pressupõe como condição de
inteligibilidade aquele contexto-ordem (na sua maior ou menor complexidade) e a dogmática
que o estabiliza — contexto este que, sem prejuízo da pluralidade de respostas que admite
(sem esta não seria concebível a diferença que tudo desencadeia!), não obstante se pressupõe
711«Não haverá juridicidade (…) se não estivermos perante uma relação socialmente objectiva
(constituída pela mediação do mundo e numa sua comungada repartição)…» (Metodologia jurídica, cit., p. 232)
712 Um sentido amplíssimo que se estende a todos os sujeitos, de todas as linhas da tectónica da
der ist aus der Rechtsgemeinschaft aus geschlossen…» (Joachim Lege, «Was Juristen wirklich tun», cit., p. 207,
nota 2).
714 Para uma consideração da dimensão dogmática da normatividade jurídica, ver Castanheira Neves,
«A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen)», Digesta, vol. 2º, cit.,
pp. 140-145 («A coordenada dogmática»).
182
715Tercialidade, não seria preciso acrescentar, no sentido que Levinas nos estimula a explorar:
enquanto intervenção-interrupção de um terceiro que supera a assimetria ética de uma responsabilidade pela
responsabilidade e a ausência de reversibilidade que a distingue (consumada na plenitude de um «encontro»
interior com a «proximidade»-alteridade), para antes e em contrapartida submeter os rostos nus (incomparáveis)
às formas plásticas da representação-tematização. A tercialidade que perturba o continuum ético-prático de um
duelo de rostos e que assim mesmo nos obriga a frequentar os lugares que a assunção de uma
responsabilidade puramente ética deve evitar: aqueles lugares a que só poderemos aceder se levarmos a sério as
pretensão de comparação (ou de «medida», se não de «cálculo»), mas também de exposição sistemática e de
determinação sincrónica que o chamado temps du Dit alimenta. Os lugares da responsabilidade jurídica, mas
também os da responsabilidade política e filosófica. Com um dizer que corresponde à sucessão temporal do jogo
das significações enquanto «exposição ao Outro». Com um dito, que é também escrito… e que submete aquele
dizer a uma representação temporalmente reversível, justificada pela simultaneidade de uma identificação! Para
um esclareciemento de todas estas categorias e das suas possibilidades (clarificando o contraponto justiça da
alteridade /justiça da comparabilidade), remeto-me para o meu já citado «O dito do direito e o dizer da justiça.
Diálogos com Levinas e Derrida», cit., pp. 7 e ss., 19-40, 41 e ss.
716 «Não haverá juridicidade (…) se, embora num quadro de mediação social (p.ex., por mediação do
mundo cultural), não se suscitar a dialéctica , a exigir uma resolução, entre uma pretensão de autonomia e
uma exigência comunitária…» (Metodologia jurídica, cit., p. 232).
717 Michel Villey, «Suum jus cuique tribuens», in St. De Francisci, I, 1954, pp. 364 ss., apud Falcone,
bilateralidade atributiva do direito»). Cfr. os desenvolvimentos propostos por por Castanheira Neves e
Fernando José Bronze, respectivamente no Curso de Introdução ao Estudo do Direito (O sentido do direito, 140
pp.), cit., pp. 18 e ss. (e nota 18) e nas Lições de Introdução ao Direito, cit., pp. 62 e ss. (3ª lição).
719 «Das Neue das Alte ist, aber auf eine Weise, die nicht nur in der einseitigen Perspective eines dem
Zweifel ausgesetzten und nach Verteidigung suchenden Partners als Verbindung von These und Argument
gilt, sondern in der Perspective aller Teilnehmener diesen Vorzug aufweist…» (Bubner, Dialektik als Topik,
cit., p. 64).
720Joachim Lege, «Was Juristen wirklich tun», cit., p. 207.
184
exigência que, reconduzida ao núcleo duro da condição da sociabilidade (e neste à tensão entre
a pluralidade das necessidades subjectivas e a unicidade dos recursos mundanais), podemos
dizer necessária (comum a todos os horizontes civilizacionais e a todos os ciclos históricos) —,
porque é já e em contrapartida aquela em que a fruição-repartição de tais recursos se nos
expõe de imediato reconhecendo (apenas como problema culturalmente possível) uma certa
intersubjectividade (caracterizada como bilateralidade atributiva e iluminada por uma pretensão de
comparabilidade), e então e assim sempre levando a sério uma tarefa de suum cuique tribuere (e a
validade comunitária que a alimenta)…
É certo que Bubner não nos oferece os recursos que nos permitem explorar essa
especificidade! Dá-nos no entanto (e de modo suficientemente eloquente) a deixa… para
reconhecermos que estão aqui em jogo duas faces insepareáveis (indispensáveis à Lebensform
que nos ocupa), mas também para percebermos que o caminho possível se pode fazer
explorando a sua irredutibilidade (os vínculos e as tensões que nelas reciprocamente se
manifestam). A que faces me refiro?
Por um lado àquela face que se nos impõe quando percebemos, como que pela
negativa, que os referidos particular e novo têm que ser protegidos de um tratamento-
assimilação que veja neles um mero impulso para um percurso epistemologicamente
possível ou pragmático-funcionalmente contextualizado… — e que como tal os confine a
uma etapa ou os dilua num momento (entre outras etapas ou momentos) do processo
reflexivo ou deliberativo721 …— ou já pela positiva, quando assumimos que um tal particular e
um tal novo têm que ser protegidos no seu núcleo problemático intersubjectivo e na sua
dinâmica de contraditório (se não já na bilateralidade atributiva direitos/deveres que os
especifica)… durante todo o percurso da realização — mantendo-se o núcleo que geram
como uma perspectiva-prius intocável, até que o juízo-julgamento do terceiro imparcial se
conclua, apaziguando a controvérsia722!
721 Considerei este ponto já em «Phronêsis und Tertialität: Die Behandlung des Neuen als Kern des
“geworfenen Entwurfs” des Rechts», in Lothar Philipps und Rainhard Bengez (Hrg.), Von der Spezifikation
zum Schluss: Rhetorisches, topisches und plausibles Schließen in Normen- und Regelsystemen, Nomos Verlag, 2013 (no
prelo), pp. 37 e ss., 42-44 (2.1). Para estabelecer desenvolvidamente o confronto com o tratamento
epistemológico assumido pelo teleologismo tecnológico de Hans Albert, ver também «Is Law’s Practical-Cultural
Project Condemned To Fail The Test Of “Contextual Congruence”? A Dialogue With Hans Albert’s Social
Engineering», cit., passim.
722 Para um desenvolvimento (centrado no problema da prova), remeto-me para o meu ensaio
«Evidence (or Proof?) as Law´s Gaping Wound: a Persistent False Aporia?», Boletim da Faculdade de Direito, vol.
LXXXVIII tomo 1 (2012), Coimbra, pp. 65-89. Sem esquecer que o contraponto singularidade irrepetível
/concretude judicativo-analógica nos abre a oportunidade de explorar a proposta metodonomológica de Fernando José
Bronze: começando precisamente por «Pj → Jd. A equação metodonomológica (as incógnitas que articula e o
modo como se resolve)» [Analogias, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 311 e ss., 372-391 (10.-13)] e
«Praxis, problema, nomos (um olhar oblíquo sobre a respectiva intersecção)» [Ibidem, pp.233 e ss., 244-253 (o
diálogo com Schapp), 257-263 (8)].
185
Por outro lado àquela face que identificamos quando reconhecemos que este
problema-controvérsia exige a interposição lograda de um terceiro (e a experiência de
tercialidade que o instutucionaliza), devendo enquanto tal superar a singularidade e
irrepetibilidade que o radicalizariam como um incomparável (e que reduziriam qualquer
referência contextual a um exercício ilegítimo de violência)… para antes e em contrapartida
723
se nos expor iluminado como um (caso) concreto judicativo-analogicamente comparável —
comparabilidade que exigirá a mediação (a autoridade-potestas) de um terceiro sujeito… mas que
exigirá ainda e muito especialmente que a decisão deste terceiro se nos apresente com a
plausibilidade racional de um juízo-julgamento (irredutível a uma mera decisão)… e então e
assim sustentada pela referência fundadora, racionalmente autónoma, a um tertium
comparationis vigente ou ao sistema pluridimensional de fundamentos e critérios que
assegura este tertium (um sistema que possa por sua vez corresponder à experiência de
estabilização-especificação, permanentemente aberta, de uma validade comunitária)724
(4) Trata-se por fim de fortalecer o círculo, reconhecendo que a estrutura básica da
controvérsia (ou a perspectiva que esta estrutura garante) antecipa-reflecte in nuce (nem por
isso menos claramente) a compreensão jurídica da pessoalidade725 ou a experiência
construtiva das suas fronteiras (fronteiras cuja tematização hoje se nos impõe como
absolutamente indispensável).
Há aqui duas notas a conjugar (também elas como explicitações de elementos já
anteriormente acentuados).
(a) A primeira nota diz respeito à posição dos sujeitos-partes, na sua relação com a
situação-acontecimento [supra, p. 181, δ)] e na sua relação com o contexto-ordem
dogmaticamente pressuposto [ibidem, β)]. Se vimos atrás que a exigência de assimilação-
tratamento da controvérsia se baseia na especificidade da diferença que os argumentos
confrontados constroem, dir-se-ia redundante acrescentar que a condição por excelência da
identidade das formas-máscaras (e destas enquanto aretefactos prático-culturais) repousa por
sua vez na possibilidade-legitimidade (que é também oportunidade instutucionalmente
consagrada) de cada um dos sujeitos envolvidos, referindo-se à mesma situação concreta e
723 Ver «O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e Derrida», cit., cit., pp.47-56 («A
procura da humanitas que responsabiliza o direito»).
724 Remeto-me para a reconstituição da compreensão jurisprudencialista do sistema que desenvolvi
em «Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», cit., pp. 156-174
(mas também em «Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em espelho sobre a concepção
jurisprudencialista do sistema», cit. passim).
725 Já assim (esquematicamente) em «Law’s Cultural Project and the Claim to Universality or the
Equivocalities of a Familiar Debate», cit., pp. 498-499 e em «Phronêsis und Tertialität: Die Behandlung des
Neuen als Kern des “geworfenen Entwurfs” des Rechts», cit., pp. 53-54.
186
726 Waldron, «How Law Protects Dignity: the 2011 David Williams Lecture at the University of
Cambridge», cit., p. 3.
727 «It is probably not a good idea to treat dignity as a moral conception in the first instance or
assume that a philosophical explication of dignity must begin as moral philosophy. Equally we should not
assume that a legal analysis of dignity is just a list of texts and precedents, in national and international law, in
which the word .dignity. appears. There is such a thing as legal philosophy, and it is a jurisprudence of dignity,
not a hornbook analysis that I will be pursuing in these lectures…» (Waldron, «Dignity, Rank, and Rights:The
2009 Tanner Lectures at UC Berkeley», cit., p. 3)
728 Sem prejuízo de se reconhecer que isto é assim em pleno no que diz respeito à Grundlegung zur
Metaphysic der Sitten (1785) e à Kritik der praktischen Vernunft (1788)… mas não em relação à Tugendlehre de Die
Metaphysik der Sitten (1797-1798): «I am using dignity as a status idea rather than a value idea (as it is used by
Kant, for example, in the Groundwork of the Metaphysics of Morals, where it refers to a certain kind of precious
187
and non-fungible value). Twelve years after the publication of the Groundwork, Kant wrote again about dignity
in “The Doctrine of Virtue” which is the second part of his late work, The Metaphysics of Morals, and there he
spoke of it much more as a matter of status: he talks of the respect which a person can “exact” as a human
being from every other man, and that respect is no longer simply the quivering awe excited in a person by his
own moral capacity (which is what you find in the Second Critique, for example) but a genuine making-room
for another on a basis of sure-footed equality and acting toward another as though he or she too were one of
the ultimate ends to be taken into account. The later discussion preserves the elementof infinite value but
presents it much more in the light of this status idea…» (Waldron, «How Law Protects Dignity: the 2011
David Williams Lecture at the University of Cambridge», cit., p.3)
729 «When you hear my definition, the sense in which law inherently promotes dignity begins to
become apparent. For it is easy to get the impression from the way I set this out of a person appearing in
their own behalf before a public tribunal (say) and demanding to be listened to,demanding indeed that their
view of things be taken account of before any public decision is made (for example, any public decision about
what is to be done with them). This is evidently a legal idea, and it is arguably noncontingently so—in the
sense that it is not a matter of the law-maker having just decided to promote dignity (…).Dignity seems to
hook up in obvious ways with juridical ideas about hearings and due process and status to sue…» (Ibidem,
pp. 4-5).
730 Sentido precisamente distinto daqueles (embora não decerto indiferente àqueles) que no
environment desta procura (situada) do direito devemos originaria e intrinsecamente atribuir a outras arenas
discursivas (morais, éticas, políticas, filosóficas, religiosas).
731 Como é sabido, com o contributo indispensável de Henry Hart e Albert Sacks: ver Waldron,
«Dignity, Rank, and Rights:The 2009 Tanner Lectures at UC Berkeley», cit, pp. 39 e ss. («Fuller and Internal
Connections Between Law and Dignity»), sem esquecer a síntese proposta em «How Law Protects Dignity:
the 2011 David Williams Lecture at the University of Cambridge», cit., pp. 6-10 («Fuller and the Dignity of
Self-Application»). A acentuação de Fuller corresponde à importante reflexão sobre the view of man implicit in
legal morality (The Morality of Law, cit., pp. 162-167).
732 Ibidem, p. 162.
733 «Self-application is an extraordinarily important feature of the way legal systems operate. They
work by using, rather than short-circuiting, the agency of ordinary human individuals. They count on people’s
capacities for practical understanding, for self-control, for self-monitoring and modulation of their own
behavior in relation to norms that they can grasp and understand…» (Waldron, «How Law Protects Dignity:
the 2011 David Williams Lecture at the University of Cambridge», cit., p. 7)
188
Cambridge», p. 5. Ver também (sempre em diálogo com Joel Feinberg) «Dignity, Rank, and Rights:The 2009
Tanner Lectures at UC Berkeley», cit., p. 38 («Right-bearer’s dignity»). Uma das possibilidades a explorar pelo
auditório modelo (a partir dos textos de Feinberg) — e no âmbito dos problemas sucitados pelo que dissemos o
segundo equívoco (Tempo I, 1.) — poderia ser de resto a possibilidade de se falar de direitos morais. Ver muito
especialmente «In defense of Moral Rights: their Bare Existence» (in Freedom and Fulfillment. Philosophical Essays,
Princeton, Princeton University Press, 1992, pp. 197-219), no qual Feinberg, convocando o binómio que bem
conhecemos (moralidade convencional/ moralidade crítica) distingue exemplarmente direitos morais convencionais,
autênticos direitos morais (assumidos pela «verdadeira moral») e direitos juridicos (Ibidem, p. 200)! Ver ainda Id., «The
Nature and Value of Rights», Journal of Value Inquiry, 4 (4), 1970, pp. 243-257 e «The Social Importance of
Moral Rights», Philosophical Perspectives, 6, 1992, pp. 175-198.
189
737 A fórmula é já de Derrida, no primeiro grande estudo que consagra a Levinas (a partir do qual
passa também ele próprio a assimilar o contraponto Dit / Dire): Derrida «Violence et métaphysique», L’écriture
et la différence, cit., p. 123.
738 Com o alcance que a proposta de Castanheira Neves nos ensina a reconhecer: ver muito
especialmente “O princípio da legalidade criminal”, Digesta , vol. 1º, cit., pp. 415-416. Trata-se muito
claramente de acentuar o ‘discretum normativo’ que (rompendo com um continuum, se não já com uma
hipertofia de responsabilidade) deverá corresponder à institucionalização da responsabilidade comunitária (ou
às implicações negativas do commune que esta justifica)… e então e assim de reconhecer que será
imprescindível impor um limite aos limites. “Limite dos limites que (…) haverá de ser assumido em dois planos
e se projectará em dois (…) princípios. No plano material ou quoad substantiam, há que reconhecer um princípio
do mínimo, pois só serão legítimos os impedimentos de realização que se reconheçam como indispensáveis
condições de realização de todos, i.é, que sejam condição necessária tanto da coexistência como da
convivência comunitárias para a realização pessoal de cada um. No plano formal ou quoad modum, não há
menos a reconhecer um princípio de formalização, ou seja, a exigência de uma institucionalização formal dos
limites materialmente intencionados em obediência ao princípio do mínimo, porquanto sem essa
institucionalização formal — com as características normativas que ela, enquanto tal, implica: a definição de
um esquema jurídico susceptível de pré-demarcar de um modo objectivamente controlável o seu concreto
cumprimento — abrir-se-ia a possibilidade de um continuum de impedimento que não só frustraria o princípio
do mínimo como tenderia igualmente à (…) hipertrofia da responsabilidade…” (Ibidem, p. 416).
190
191
SEGUNDA PARTE
Um itinerário possível
Sumário÷
“EQUÍVOCOS” E POSSIBILIDADES
Etapa I
A «sobreposição» de dois diagnósticos
e a antecipação de um primeiro equívoco homogeneizador
sumário será deliberadamente contido. Os desequilíbrios de (maior ou menor) desenvolvimento que mani-
festa são de resto também condicionados por essa exposição prévia, no sentido de que um maior desenvol-
vimento só se justifica se a epígrafe em causa não tiver sido suficientemente identificada supra. É o que
acontece precisamente com diversos elementos temáticos da etapa I.
192
(A)’’ Breve alusão à crise da filosofia do direito (Castanheira Neves): uma alusão brevíssima,
preocupada apenas em fornecer o diagnóstico global indispensável.
1. A consumação prometida pelo jusracionalismo moderno-iluminista.
2. A superação assumida pelos discursos do século XIX: de Hegel à nova filosofia do
direito positivo (Merkel, Bergbohm). A herança dos diferentes historicismos?
3. A substituição esboçada pelos objectivismos empíricos psicológico e sociológico (e
pelo pragmatismo finalista que os assimila).
4. Duas tentativas de recuperação (a neo-kantiana e a neo-jusnaturalista latissimo
sensu), separadas pelo «parêntesis» trágico do Führerstaat (e da teoria do direito nacional-
socialista). Duas experiências fracassadas?
5. Os múltiplos caminhos da filosofia analítica: brevíssima alusão remissiva à
herança de Hart.
6. A recuperação da reflexão dirigida ao problema do sentido do direito (e à
especificação da validade comunitária) que se cumpre internamente através da reflexão
metodológica (e nos limites desta): uma reflexão sobre o sentido que privilegia o problema
da racionalidade. Exploração brevíssima de três condições-desafios.
6.1. A reabilitação da filosofia prática
6.2. Uma recompreensão do problema da metodologia jurídica que veja na reflexão
que esta permite uma dimensão constitutiva do próprio sentido da juridicidade. A
superação do sentido moderno do discurso do(s) método(s), mas também do contraponto-cisão
entre um a priori de validade (ou um a priori cognitiva ou dogmaticamente determinado) e o
processo posterior de realização.
6.3. A assunção-revisão de um teleologismo de fins e valores (irredutível à imanência
pragmático-instrumental dos fins).
195
nas periferias (do legislador e da autonomia privada), mas também aquelas que condenam a
dogmática (se não todo o Juristenrecht) a assimilar teleologias alheias (acompanhando assim
um direito que, no seu ímpeto regulatório, se pulveriza em muitos direitos), ou ainda
aquelas que (independentemente dos movimentos académicos que as mobilizam) se
expõem nas práticas dos movimentos sociais e nas identidades narrativas que as sustentam
(o género, a raça, a orientação sexual, a militância religiosa, a construção de uma identidade
ambientalista).
4. Os sinais de pluralidade assumidos pelo diálogo intercivilizacional, confrontando
pelo menos dois grandes tipos de respostas ao problema da vida em comum: aquelas que
identificam o direito apostando na possibilidade de separação-Isolierung de um certo mundo
prático e aquelas que defendem um continuum holístico (imune àquela pretensão de
autonomia), vendo no direito a institucionalização coercitiva deste.
Etapa II
Três distintas compreensões da pretensão de autonomia
Uma atenção especial à categoria de inteligibilidade sistema. A unidade por coerência analí-
tico-categorial do normativismo horizontal e a unidade por consistência sintáctico-arqui-
tectónica do normativismo vertical.
1.3. A invenção da autonomia epistemológica do pensamento jurídico: da ciência
dogmática do século XIX à teoria pura de Kelsen, passando pelos desafios-feridas da allgemeine
Rechtslehre.
Proposta de excurso: os sinais de sobrevivência do juridismo formalista nas propostas de
Pattaro, B. S. Jackson, MacCormick e Vermeule (sob o fogo de exigências exteriores,
determinadas pelas heranças heterogéneas dos realismos escandinavo e norte-americano, da
semiótica greimasiana, do positivismo crítico herdado de Hart e do teleologismo
tecnológico), em contraponto com a reinvenção plena do formalismo justificada pelas
reflexões metodológicas de Schauer e Alexander (as a neo-formalist model of practical reasoning).
não obstante sustentada num «consequencialismo limitado e realista» (e neste como um contrôle
discursivo das consequências); β) a hipótese da exteriorização, segundo a qual as colisões são
tematizadas e decididas por outros sub-sistemas, competindo não obstante ao jurídico
«constituir discursivamente contra-instituições» (capazes de contrariar as «pretensões totalitárias
de universalidade» dos «discursos sociais» em causa).
As colisões, a fragmentação e as novas ilusões do constitucionalismo: o problema
da Globalverfassung (Fischer-Leskano). Um confronto com a «terapia filosófica» da Weltrepublik
ou desta enquanto resposta aos problemas da globalização (Höffe).
Etapa III
O insuspeitado common ground
dos funcionalismos materiais e dos discursos humanistas:
a luta contra o(s) formalismo(s) e a rejeição-incompreensão da
pretensão de autonomia do jurídico
Etapa IV
A problema da incorporação dos princípios morais como uma
(segunda) misinterpretation da pretensão de autonomia do jurídico
Percurso 1 - As peças do puzzle do incorporacionismo
Etapa V
A resposta ao segundo equívoco:
o direito como mundo prático autónomo
ou uma especialíssima tese de separação739
Para fazer corresponder a numeração introduzida neste sumário da etapa V àquela que foi usada
739
no Tempo II da Primeira Parte (para descrever esta mesma etapa), bastará acrescentar o 3. inicial (de tal
modo que 1. corresponda a 3.1., 2. a 3.2., e por aí fora).
204
Etapa VI
Duas perguntas-limite e um esfoço de resposta comum
740 Ver supra, nota 3. Acrescente-se apenas que à duração anual correspondem sessões semanais de
três horas distribuídas em dois periodos lectivos.
206
741 Para o dizer com Castanheira Neves no Relatório com a justificação do sentido pedagógico, o programa, os
745 Significaria isto, como se sabe, partir destes créditos (neste caso, 15 ECTs) para prever as horas de
trabalho total (TT) atribuídas ao (esperadas do) mestrando (que seriam aproximadamente de 420h!), antes de
neste tempo total distinguir (separar) os chamados tempo de contacto (TC) e tempo de trabalho autónomo (TA)… e
de estar assim em condições de programar o modo como o primeiro destes tempos (120h de contacto
previstas) se distribui pelos possíveis regimes lectivos [40h de aulas teórico-práticas (TP) e 80h de seminário
(S), 50h de TP e 70 de S, etc, etc] ! Mobilizar este exemplo de contabilização (com o recurso propositado às
siglas que habitualmente o formalizam!) — e com as possibilidades de contrôle quantitativo que, na sua
homogeneização detersiva, aparentemente disponibiliza — significa decerto acentuar um dos sinais-
-«sintomas» mais imediatos (e mais vulneráveis à crítica e à caricatura) da pequena e apagada Cacânia na qual
a nossa circunstância — ferida pelo pathos de uma pretensa mudança de paradigma (reduzida às fórmulas
vazias da «inovação e de excelência») bem como pela transposição precipitada do modelo de Bolonha (este
privado dos seus aspectos mais luminosos!) — parece querer fechar o ensino superior universitário. Como se,
em nome de uma fungibilidade e de um anonimato convencionalmente fabricados (assentes numa
distribuição funcional de competências e numa programação de objectivos) se tratasse afinal de «libertar»-
purificar este ensino, não politécnico (non-vocational higher education), da força de invenção individual e da
celebração da liberdade-diferença (mas também da originalidade e da autoria) que, associadas a uma
irresistível fuzziness, sustentam a sua identidade. Aquela força e aquela imprevisibilidade (ligadas à
impossibilidade de «sacrificar o futuro à dimensão do presente») que Rorty, com a ajuda de Dewey, invoca
quando nos fala das untheorizable unpredictable occasions of growth que (como erotic relationships, se não leaping back
and forth of sparks between teacher and student), devem dominar as práticas universitárias autênticas (e os processos
de auto-criação que estas estimulam): «The only point in having real live professors around instead of just
computer terminals, videotapes and mimeod lecture notes is that students need to have freedom enacted
before their eyes by actual human beings. That is why tenure and academic freedom are more than just trade
union demands. Teachers setting their own agendas — putting their individual, lovingly prepared specialties
on display in the curricular cafeteria, without regard to any larger end, much less any institutional plan — is
what non-vocational higher education is all about. Such enactments of freedom are the principal occasions of
the erotic relationships between teacher and student that Socrates and Allan Bloom celebrate and that Plato
unfortunately tried to capture in a theory of human nature and of the liberal arts curriculum. But love is
notoriously untheorizable. Such erotic relationships are occasions of growth, and their occurrence and their
development are as unpredictable as growth itself. Yet nothing important happens in non-vocational higher
education without them…» (Rorty, «Education as Socialization and as Individualization»,
http://www.greatbooksojai.com/the-agora-foundation_rorty_education_as_socialization_and_as_individualization.pdf
(extraído em Fevereiro de 2013)]. Para um enquadramento desta acentuação da liberdade e independência
académicas em Rorty (com um tratamento indispensável da herança de Dewey), veja-se Phillip E. Devine,
«The New Fuzziness: Richard Rorty on Education», http://digitalcommons.providence.edu/cgi
/viewcontent.cgi?article=1000&context =philosophy_fac e Radim Šíp, «Dewey’s and Rorty’s Thoughts on
Education», http://www.pragmatismtoday.eu/summer2010/Sip-Deweys_and_Rortys_Thoughts_on_Education.pdf.
208
2. Sem ceder à tentação de antecipações deste género, o que é que é possível dizer-
-se destes auditórios reais? Desde logo que a prescrição de um número limitado de «vagas»
(vinte e cinco mestrandos para cada «unidade» do «mestrado científico»), não nos
autorizando a pretender uma aproximação a um modelo de tutorship, garante decerto
condições suficientes de diálogo e de acompanhamento, sensíveis às especificidades da
formação académico-cultural e à (maior ou menor) vocação reflexiva de cada um dos
estudantes — condições que, ao longo de um ano consecutivo, resultarão não só das
contabilizáveis horas colectivas de contacto (!) mas também de sessões individualizadas de
atendimento (informalmente multiplicáveis), sessões estas absolutamente indispensáveis
para um desenvolvimento logrado dos trabalhos de investigação. Garantia que a
experiência acumulada nos últimos anos me permite de resto confirmar e fortalecer, uma
vez que o número de alunos inscritos na disciplina tem variado entre um número mínimo
de oito e um número máximo de catorze.
Um número particularmente adequado para uma efectiva conversação responsável? Eu
diria que sim. Sem poder no entanto ocultar que este auditório exemplarmente restrito está
longe de pressupor formações e objectivos homogéneos. Não se trata, com efeito, apenas
de ter presente que a disciplina funciona como unidade nuclear obrigatória do curso de
especialização em Jurídico-Filosóficas (ao lado da disciplina de Metodologia do Direito) e
simultaneamente como disciplina de opção para todas as outras especializações; trata-se
também de perceber que o equilíbrio efectivamente estabelecido em todos os anos em que
a disciplina funcionou tem sido sempre desfavorável aos mestrandos (ditos) da especialidade
(o número máximo atingido pelos alunos de Jurídico-filosóficas nas edições já realizadas foi de
cinco alunos); sem esquecer por fim que este grupo (muito restrito) de estudantes residentes
nos aparece (quase sempre) implacavelmente dividido por proveniências académicas,
formações na especialidade e recursos reflexivos muito distintos. Heterogeneidade que, em
todos estes planos, está longe de ser negativa — que tem sido, pelo contrário,
frequentemente responsável pela felicitous performance de um seminário vivo!
Heterogeneidade que exige no entanto sempre opções de equilíbrio relativamente delicadas,
não apenas quanto ao «estilo» da exposição sistemática, mas também quanto às
informações que esta deverá transmitir — desde logo no que diz respeito à exigência de
(ambos extraídos em Março de 2013). Acentuando a mesma importância da «pura afirmação idiossincrática» do
professor e a «magia» destas «expressões de pura liberdade» (com a citação do mesmo ensaio de Rorty), veja-
se Fernando Araújo, O ensino da economia política nas Faculdades de Direito e algumas reflexões sobre pedagogia
universitária, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 307-308.
209
746 O modelo absoluto não poderá por exemplo ser o do primeiro ciclo da Faculdade de Direito de
Coimbra, no qual os alunos beneficiam de diversas disciplinas com orientações principais associadas a esta
formação, tanto obrigatórias (Introdução ao Direito, Metodologia Jurídica) como facultativas(Introdução ao Pensamento
Jurídico Contemporâneo). A experiência das edições já realizadas mostra-nos, com efeito, que a maioria dos alu-
nos inscritos na especialização em Jurídico-filosóficas fez o primeiro ciclo noutras universidades.
747 Nos termos exemplificados supra, Primeira Parte, Tempo II, 2., pp. 93 e ss.
210
3.2. O regulamento em vigor prescreve um modelo único de avaliação (ao qual não
atribui de resto nenhuma das designações habituais748): correspondendo este à «elaboração
e apresentação de um ou mais trabalhos escritos, com discussão oral»749, as suas
possibilidades mostram-se assim suficientemente flexíveis para se adaptarem aos diferentes
ritmos dos seminários. Baseando-me na experiência das edições anteriores, proponho um
modelo que articule pelo menos as seguintes peças:
(a) a entrega de um pequeno trabalho escrito realizado por todos os mestrandos
(com um tema obrigatório, que poderá corresponder ao comentário da posição de um
autor ou ao tratamento de um problema);
(b) intervenções orais distribuídas pelas diversas sessões (de comentário aos textos
lidos em casa);
(c) entrega e defesa oral de um relatório-paper mais extenso (que possa ser assumido
como um verdadeiro trabalho de investigação), com um tema de preferência inscrito na
temática global do curso750 (sendo o texto previamente distribuído a todos os participantes
no seminário e depois discutido).
748 Desigações estas (avaliação contínua, repartida e por exame final) que reserva para o mestrado
forense: Regulamento Académico e Pedagógico do 2.º Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de Direito de Coimbra, cit.,
artº 23 nº 2, artº 24º.
749 Ibidem, artº 23º nº 1.
750 Sem prejuízo evidentemente de poder cruzar perspectivas dogmáticas e metadogmáticas (o que se
ÍNDICE
NOTA INTRODUTÓRIA 3
PRIMEIRA PARTE 11
A justificação do tema e de um desenvolvimento em
etapas Tempo I 12
Tempo II 43