Sunteți pe pagina 1din 211

JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

O DIREITO COMO MUNDO PRÁTICO AUTÓNOMO:


“EQUÍVOCOS” E POSSIBILIDADES

Relatório
com a perspectiva, o tema, os conteúdos
programáticos e as opções pedagógicas
de um seminário de segundo ciclo em
Filosofia do direito

Coimbra
2013
2
3

NOTA INTRODUTÓRIA

Na sua concentração temática e no desenvolvimento que antecipa, o presente


relatório parte de uma solução institucional explícita e das condições que lhe correspondem.
Significa isto que o propósito que o orienta não é o de reflectir globalmente (como que em
aberto) sobre o Bildungsweg que a nossa hora de «abalo»-Erschütterung exige do jurista… e
sobre o papel constitutivo indispensável que nessa formação deverá desempenhar uma
interpelação metadogmática ou transdogmática radical (capaz de reconhecer no direito um
autêntico «problema de sentido»)1. Como não é seguramente também o de, directamente (se
não in fieri), discutir o lugar ou os lugares que, no percurso em causa (ou no plano que o
especifica), deverão corresponder a tais oportunidades de interpelação2. Como não é ainda
enfim o de avaliar aquela urgência e estas oportunidades confrontando-as recto itinere com as
lições preciosas de uma herança única (aberta na Faculdade de Direito de Coimbra pela
reabilitação de 1936 e prosseguida até hoje quase sem interrupção3). Porque é antes, e em
contrapartida, o propósito de enfrentar uma disciplina já situada e a solução que a consagra.
Mais do que reconhecer as condições que singularizam esta disciplina — que a inscrevem,

1 Trata-se evidentemente de invocar as formulações de Jaspers (Einführung in die Philosophie, cit. na


trad. portuguesa Iniciação filosófica, 6ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, pp. 19 e ss., 25-27), tendo presente que
esta identificação das interrogações da filosofia com um polarizador problema de sentido (capaz de responder à
incitação do «abalo») reconhece retrospectivamente outras duas etapas, nas quais tais interrogações aparecem
sucessiva e nuclearmente identificadas com o problema (metafísico) do Ser e com o problema (gnoseológico-
-epistemológico) da verdade — se não com as respostas dadas aos estímulos do espanto e da dúvida. Para uma
projecção desta fascinante arrumação reflexiva na actual situação problemática da filosofia do direito, veja-se
expressamente Castanheira Neves, A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos
para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 140 e ss. (V.).
2 O que diz respeito não apenas ao equilíbrio a estabelecer com as abordagens dogmáticas, mas

também e muito especialmente ao contraponto com outras reflexões metadogmáticas possíveis, confiadas à
teoria do direito e à metodologia jurídica (se não à política e à ética do direito). Para uma consideração deste
contraponto, vejam-se as sínteses exemplares (de Viehweg, Kaufmann, Pattaro, Posner e von der Pfordten)
que citei no Relatório com a perspectiva e os conteúdos, o programa e os métodos de ensino da(s) disciplinas de Teoria do
direito e (ou) Pensamento jurídico contemporâneo, polic., Coimbra 2008, p. 9, nota 11, às quais acrescentaria
agora os ensaios de Eric Hilgendorf e de Dreier incluídos em Brugger, Neumann, Kirste (Hrsg.),
Rechtsphilosophie im 21. Jahrhundert, Frankfurt, Suhrkamp, 2008, respectivamente «Zur Lage der juristischen
Grundlagenforschung in Deutschland heute» (pp. 111 e ss.) e «Rechtsphilosophische Standpunktprobleme»
(pp. 317 e ss.).
3 Refiro-me evidentemente à «renovação do estudo filosófico do direito» (com a reabilitação da

disciplina correspondente) decidida pela Faculdade de Direito de Coimbra em 1936, «renovação» que supera
o positivismo sociológico aproblemático dominante nas primeiras décadas do século XX e que, como se sabe, está
associada a um nome maior, o de Luís Cabral de Moncada. O percurso que assim se (re)inicia e que multiplica
os «lugares»-«patamares» da reflexão possível — oferecendo sucessiva ou simultaneamente (e quase sem
interrupção!) cursos de Filosofia do direito e do Estado, História do pensamento jurídico, Metodologia jurídica, Teoria do
direito e do Estado, Teoria do direito, Filosofia do direito, Filosofia do direito e metodologia jurídica e Pensamento jurídico
contemporâneo, mas também conferindo uma identidade única aos cursos de Introdução ao direito), não só nos
aparece como um percurso único na trajectória das Faculdades de Direito portuguesas, como também não
pode ser separado do contributo luminoso de Castanheira Neves.
4

como uma das duas «unidades curriculares obrigatórias», no «curso de especialização» de


um «mestrado de investigação» (não integrado) em Ciências Jurídico-Filosóficas4 —, trata-se, com
efeito, de desenhar, implicitamente embora, um certo auditório-modelo (entenda-se, de levar a
sério o desafio que, com a ajuda de Iser, nos atreveríamos a associar às exigências de um
impliziter Leser!)… e de, na perspectiva deste auditório implícito — à luz das expectativas de
conversação que este impõe (expectativas por sua vez inseparáveis da consagração de um
«regime lectivo» de seminário5) — , construir e defender um conteúdo programático plausível.
O que se reflectirá decerto de imediato no alcance que deve ser atribuído à escolha
do tema. Não se trata, com efeito, de, em nome de uma visão de conjunto relativamente
equidistante e sistematicamente concebida (ou do patamar reflexivo que a assegura),
vincular a nossa disciplina a um elenco problemático genérico e ao núcleo duro que o
estabiliza — admitindo que este venha a ser retomado, eventualmente sem limite (ou sem
que este limite deva ser tematizado), pelas previsíveis edições futuras6. Trata-se antes de
preferir uma certa (muito mais próxima) view of the cathedral, optando assim por um tema
condutor possível (entre outros temas também possíveis)…

Invocando de imediato a associação desta escolha apenas a uma edição ou a um ciclo


relativamente curto de edições? Podemos admiti-lo. Mas também, e muito especialmente,
garantindo que a abordagem de um indispensável núcleo reflexivo comum (partilhado com
outras possíveis edições e outras escolhas temáticas) se faça sempre na perspectiva de cada um
dos temas e do problema que o delimita — se não exigindo expressamente que tal núcleo
partilhado seja integrado no (e reconstruído pelo) progressus que há-de corresponder ao
tratamento de tal problema (como um momento deste tratamento, tão aberto como os
outros à possibilidade de uma interpelação).

O que, não menos decisivamente, deverá também conformar a estrutura da


exposição do programa — pelo menos sempre que esta pretenda aproximar-se do caminhar

4 Nos termos do Regulamento Académico e Pedagógico do 2.º Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de

Direito de Coimbra (aprovado pela Assembleia da Faculdade em 2010 e alterado pela mesma em 2011), art. os 5.º
a) e 7.º e). A anualidade associada às unidades obrigatórias do «mestrado científico» entrou em vigor no ano
lectivo de 2011/2012.
5 «Regime lectivo» de seminário que, como veremos, não deverá porventura deixar de se articular

com um modelo de aulas teórico-práticas. Sendo certo que a exigência de seguir estes dois regimes (em
conjugação ou em alternativa) se combina no presente «mestrado científico» com a prescrição de um número-
-limite de vagas disponíveis (vinte e cinco). Cfr o mesmo Regulamento Académico e Pedagógico, art.os 8.º e 19.º
6 Vinculação que, sem prejuízo de uma dinâmica e de uma abertura sempre irrenunciáveis, me

pareceria já indispensável se a disciplina em causa correspondesse a uma formação de primeiro ciclo ou se o seu
«regime lectivo» envolvesse predominantemente aulas de exposição sistemática (ditas teóricas).
5

ou da conversação que antecipa7! O que agora significa inscrever no seu progressus a ficção (que
se espera produtiva) de uma trama argumentativa relativamente descontínua, com as suas
perguntas e parêntesis (as suas texturas imitativas em permanente mutação!), mas também
com a sugestão frequente de caminhos alternativos (e outras tantas propostas de trabalho).
Como se à condução do seminário e das suas etapas se reservasse apenas o privilégio de uma
primeira leitura dos contextos e materiais reunidos… e tal primeira leitura (se não reescrita)
devesse cumprir-se menos oferecendo um texto acabado do que um guião ou itinerário
(aberto a novos recomeços).
Não será isto porém correr o risco de reconduzir a reflexão (que se diz) filosófico-
-jurídica a um discurso fragmentado, dominado (quando não pulverizado, na sua unidade)
pelas intencionalidades específicas e pelas «situações institucionais» dos problemas-
-territórios que vai explorando, assim mesmo condenado a agregar (ou na melhor das
hipóteses, a sobrepor) preocupações avulsas — e tudo isto como se a uma tal instância de
reflexão última, na sua incapacidade de recuperar o absoluto dogmático8 e a distância interrogante
que (na «claridade matinal da Europa»9) a emanciparam, mais não coubesse do que um
esforço acrescido de inteligibilidade, dirigido aos códigos e cânones imanentes às práticas
interrogadas (entenda-se, uma radicalização lograda das perguntas que as ditas arenas
problemáticas só por si já introduzem)? Importa reconhecê-lo. Reconhecendo também que
só evitaremos o risco desta pulverização e do continuum sem limites a que esta se abre —
ainda os riscos de uma reflexão «filosófica» puramente temática10? — se impusermos ao elenco

7 O que acontece sistematicamente no Tempo II da Primeira Parte.


8Na expressão de Castanheira Neves, A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia, cit., pp. 41-42 (IIIa) 1)). Ver também ibidem, pp. 9-17.
9 A formulação é de Georges Steiner (sendo certo que o autor de The Idea of Europe não se refere aqui

apenas ao «pensamento grego», como acontece no texto, mas também à «moral judaica»): The Idea of Europe,
cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa, Lisboa, Gradiva, 32006, p. 53.
10 Esta pergunta impõe-se, uma vez que a pulverização aqui considerada se distingue

significativamente daquela outra reflexão «temática» a que o discurso filosófico-jurídico universitário


recorrentemente nos habituou. Se aquela outra filosofia temática (aquela de que Castanheira Neves nos fala,
distinguindo-a da filosofia stricto sensu, na «Apresentação de Filosofia do Direito e do Estado de Cabral de
Moncada», Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Coimbra, Coimbra
Editora, vol. 3º, 2008, pp. 539-544) parte de um elenco relativamente circunscrito de temas-objecto, que
correspondem aos grandes territórios da filosofia (dita) geral e à projecção concretizadora destes no universo
jurídico — autorizando-nos a distinguir (e a escolher) temas-problemas de gnoseologia-epistemologia,
ontologia, axiologia, deontologia, culturologia ou mesmo ética jurídicas (assim acontece, em termos
inexcediveis, sem prejuízo de núcleos decisivos onde reconhecemos filosofias tout court, com a Rechtsphilosophie
de Radbruch, a Filosofia do Direito e do Estado de Cabral de Moncada e a Filosofia do Direito de Miguel Reale) —,
a primeira «filosofia» (?) temática (ligada à referida pulverização) expõe-nos a uma virtual ausência de limites,
assegurando que todo e qualquer problema juridicamente relevante (ao qual possa estar associado uma
pretensão de juridicidade) venha a merecer a intensificação da atenção que lhe confere uma tinta filosófica.
Para uma catalogação muito persuasiva destes últimos problemas e da reflexão (na fronteira entre o plano
dogmático e metadogmático) que no nosso contexto contemporâneo os assume, veja-se o diagnóstico
proposto por Fernando Araújo em «Pontos de interrogação na Filosofia do Direito», Revista de Direito e de
Estudos Sociais, ano XLVIII (XXI da 2ª Série), nºs 1-2, 2007, pp. 188-240 («As penumbras da prática») [agora
6

dos temas possíveis um vínculo de relevância fundamental (que assim mesmo drasticamente
os circunscreva). Aquele que os torne indissociáveis do problema do direito e deste
enquanto problema de sentido11? Podemos dizê-lo. Antecipando desde já que o problema a ter
em conta neste juízo de relevância é decerto aquele que, independentemente das respostas que
lhe vierem a ser dadas, se nos impõe quando discutimos a possibilidade e a urgência de,
num tempo de pós-paradigma ou de ausência de paradigma como é o nosso — ferido
precisamente pela diferença e pela pluralidade, mas nem por isso menos dominado pela
presença positiva e negativa do paradigma perdido (e que é evidentemente aquele que o
normativismo moderno-iluminista consagrou!) —, interpelarmos criticamente o direito (um
certo direito) como um projecto culturalmente autodisponível ou como uma «forma de vida»
civilizacionalmente situada, entenda-se, como uma praxis de criação-realização de sentidos
comunitários específicos, com soluções de integração intencional e teleologicamente
inconfundíveis (unidas por uma determinada compreensão do problema da vida em comum),
cuja continuidade (na diversidade das suas precipitações históricas e das tarefas-funções que
estas lhe imputam) terá que ser identificada e assim mesmo submetida (nas suas pretensões
de validade-vigência) a um permanente exercício de fundamentação12.

também in Figueiredo Dias, Gomes Canotilho, Faria Costa (ed.), Ars iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof.
Doutor António Castanheira Neves, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 100-141].
11Problema de sentido (a comprometer-nos na nossa própria originariedade humana), com o alcance

(jasperiano) que nos permite contrapô-lo tanto ao problema do Ser quanto ao problema gnoseológico: ver
supra, nota 1.
12 Um problema ou núcleo de problemas em cuja formulação se reconhecem de imediato as

possibilidades da compreensão do jurídico que Castanheira Neves diz jurisprudencialista: sendo certo que, para
a determinação de relevância que nos importa, se trata afinal menos de explorar o jurisprudencialismo como
uma concepção do direito ou um modelo de pensamento jurídico entre outros possíveis (cuja identidade
importasse de algum modo determinar na trama discursiva, cada vez mais complexa, do pensamento jurídico
contemporâneo) do que de apostar na oportunidade reflexiva única de uma recuperação fundadora — uma
recuperação que, levando a sério as exigências da nossa circunstância, possa, sem rede (sem a garantia
dogmaticamente pré-determinada de uma resposta positiva), experimentar (na sua luminosa «simplicidade») o
originarium constitutivo da «pergunta pelo direito», que o é também, indissociavelmente, o do «mundo prático»
que esta pergunta inventa. Sem esquecer que na tematização deste originarium convergem hoje, segundo
Castanheira Neves, três grandes interrogações, todas elas a exigirem um esforço consciente de tematização:
aquela que interpela este originarium na radicalidade do seu problema prático e nas condições de emergência que lhe
correspondem, submetendo-se exemplarmente ao desafio das alternativas (a interrogação dirigida ao «por-
quê»); aquela que explora o «transcender situado» do jurídico reconstituindo a diversidade histórico-contextual
das suas funções (a interrogação dirigida ao «para-quê»); aquela enfim que, enfrentando este mesmo «transcender
situado» no seu sentido último, nos expõe ao problema decisivo da sua ordem de validade e do fundamento que
a sustenta (a interrogação dirigida ao « quê»). Ver muito especialmente Castanheira Neves, A crise actual da
filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, cit., pp. 146-147, «Uma reflexão filosófica sobre o direito —
―o deserto está a crescer... ou a recuperação da filosofia do direito?», Digesta, vol. 3º, cit., pp. 93-94 e «Pensar
o direito num tempo de perplexidade», in João Lopes Alves et al., Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em
comemoração do 70º aniversário. Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 4-5 (1.2. «Uma
Ursituation e os problemas implicados»), mas também (para um desenvolvimento do problema do «por-quê»),
«Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as condições da emergência do
direito como direito», in Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, vol. II, Coimbra,
2002, pp. 837 e ss., agora também nos Digesta, vol. 3º, cit., pp. 9 e ss., e «O direito interrogado pelo tempo
presente na perspectiva do futuro», in Avelãs Nunes / Miranda Coutinho (ed.), O direito e o futuro. O futuro do
direito, Coimbra, Almedina, 2008, pp.56-65 (3. a)).
7

Acentuação que nos ajuda de imediato a perceber que o espectro dos temas
condutores capazes de (positiva ou negativamente) participarem nesta interpelação crítica
(ou de explorarem elementos que lhe são indispensáveis) — sem prejuízo da diversidade
com que se nos ofereçam e das conclusões negativas a que eventualmente conduzam —
está longe de deixar imune a perspectiva interrogante, já que antes e em contrapartida a
liberta da pretensão de neutralidade que ameaçava esvaziá-la para a submeter a uma
especificação-experimentação decisiva. Como se ao fim e ao cabo se tratasse de reconhecer
a circularidade (reciprocamente constitutiva) das duas tematizações em causa — a da
problema originário do direito (e do seu mundo prático) e a da reflexividade filosófica que
o interroga —, não decerto para remeter a última (e o seu patamar transdogmático) para
um indiscriminado horizonte global, antes para abrir a oportunidade de a (de os)
responsabilizar por um ponto de vista interno, se não mesmo, como veremos, por uma
certa perspectiva de participante. Mais uma vez, como uma oportunidade tout court, cujas
possibilidades e compromissos devem, permanentemente, ser submetidos ao fogo da nossa
circunstância. Uma oportunidade que não nos garante assim decerto infalivelmente a
felicitous performance de uma filosofia do direito stricto sensu — capaz de assegurar uma
«perspectiva de inteligibilidade», que sendo «nova e unitária»13, se mostre à altura da
Erschüterung do nosso tempo! —, mas que nos garante decerto a superação lograda das
velhas e das novas (se não novíssimas) filosofias temáticas… muito especialmente destas últimas
— e com elas também a superação do risco de fazer corresponder ao continuum infinito dos
problemas da vida em comum (continuum agravado quer pelo esvaziamento quer pela
heterogeneidade da(s) perspectiva(s) filosóficas) uma concepção do jurídico como um
acervo de recursos de institucionalização intencionalmente neutros (se não como um mero
regulativo sem limites)…
Acentuação que nos leva enfim directamente à escolha do tema (primus inter pares
numa sequência plausível de outros temas), bem como à forma da exposição que se propõe
sustentá-lo (e que antecipa um conteúdo programático possível).
O tema? Muito claramente, o do papel que a defesa e a rejeição (pluralmente ditas e
experimentadas) de uma pretensão de autonomia desempenham na recompreensão do direito
e do pensamento jurídico de que hoje precisamos, se não explicitamente, como veremos, o
do sentido que (perante as misinterpretations que ferem tal pretensão) deverá hoje assumir
uma tese de separação da juridicidade e do seu mundo prático. Sendo este o tema escolhido, é
porventura redundante acrescentar que a intenção de congruência — e de uma congruência

13 Castanheira Neves, «Apresentação de Filosofia do Direito e do Estado de Cabral de Moncada», cit., p.


539.
8

que se possa dizer indiscutível e inequívoca — com o vínculo (ou com o juízo) de relevância
que atrás esboçámos pesou (pesa) significativemente nesta escolha. Trazer para o primeiro
plano a conclusion-claim de autonomia associável ao mundo prático do direito e, mais do que
isso, insistir nos equívocos que a desfiguram (reconhecendo nestes o desafio temático
principal), significa, com efeito desde logo estar em condições de partir de uma experiência
de pluralidade tão expressiva quanto concentrada — podermos testemunhar o quase diferendo
que dilacera o discurso jurídico contemporâneo14… sem correr o risco de nos perdermos
nos seus labirintos15. Significa também, no pólo oposto, dever explorar as interrogações
últimas dirigidas ao problema do direito (à plausibilidade-pontualidade do seu homo humanus,
se não à oportunidade-urgência de uma reabilitação-reconversão do seu sentido
originário16), mobilizando como prius (não menos exemplarmente concentrado) uma
estrutura argumentativa transparente (alla maniera di Toulmin), entenda-se, um eixo reflexivo-
limite desenhado por um argumento e pelo seu contra-argumento…

De tal modo que ao primeiro caiba sustentar a conclusion-claim da autonomia (ou da


separação-Isolierung) e ao segundo rejeitá-la? Podemos dizê-lo. Mas de tal modo também que
este primeiro momento se cumpra como que em bloco. Antes que as inference licences
mobilizadas ponham a nu a complexidade (as diferenciações internas) destas pretensões:
especificando os seus alvos (direito ou pensamento jurídico ou ambos), permitindo que, na
relação com o que se dirá a realidade social juridicamente relevante, se distingam as intenções
de separação assumidas (enquanto isolamento, autodiferenciação e autonomia tout court) e as
contrapostas exigências de funcionalização pragmática ou de continuum prático, numa palavra,
submetendo cada um dos pólos (sem prejuízo de estes poderem continuar a expor-se-nos
com a clareza agonística de argumentos e contra-argumentos) a um efeito implacável de divisão-

14 Com um sentido que tenho privilegiado desde «Brauchen wir noch eine kritische Rechtstheorie?
Ein Konversationsstück mit Posner und Fish» (2004), in Bernd Schünemann / Marie-Theres Tinnefeld /
Roland Wittmann (Hrsg.), Gerechtigkeitswissenschaft - Kolloquium aus Anlass des 70. Geburtstages von Lothar Philipps,
Berlin 2005, pp. 23 e ss., depois também em Constelação de discursos ou sobreposição de comunidades interpretativas? A
caixa negra do pensamento jurídico contemporâneo, Porto, Edição do Instituto da Conferência, 2007, passim, «A
representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz : o “testemunho” crítico de um “diferendo”?», Revista
Lusófona de Humanidades e Tecnologias nº 12, ano 2007 /2008, pp. 90-109 e «Jurisdição, diferendo e “área
aberta”. A caminho de uma “teoria” do direito como moldura?», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge
de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, volume IV, 2010, pp.443-477, bem como no Relatório com a
perspectiva e os conteúdos, o programa e os métodos de ensino da(s) disciplinas de Teoria do direito e (ou) Pensamento
jurídico contemporâneo, cit., passim — sentido que (num reconfortante lugar paralelo) vejo também
expressamente convocado (ainda que sem as implicações estruturais que pretendo atribuir- lhe… por Sonja
Buckel, Ralph Christensen e Andreas Fischer-Lescano em «Einleitung: Neue Theoriepraxis des Rechts», in
Buckel/ Christensen /Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue Theorien des Rechts, Stuttgart, Lucius & Lucius, 2006, pp.
VII e ss.
15 Com a possibilidade ainda de poder confiar ao (dito) primeiro leitor dos materiais do seminário a

tarefa de reagir ao auditório real… e de assim mesmo, em função das necessidades e do interesse deste,
amplificar o referido testemunho, na sua extensão ou na sua sensibilidade às diferenças.
16Ver supra, nota 12.
9

-multiplicação. Sem esquecer por fim que o esclarecimento possível (ou pelo menos o
caminho que o abre) virá com o patamar dos warrants, sendo precisamente em função do
desempenho desta tarefa de justificação-fundamentação (e estritamente para a cumprir) que
as perguntas radicais sobre o direito e o seu originarium constitutivo (concentradas no problema
da autodisponibilidade ou autotranscendentalidade prático-cultural, se não nos eixos do «por-
-quê» e do «quê»17) — e expostas à aventura das respostas que rejeitam a sua possibilidade-
-pontualidade — nos vão aparecer por fim transversalmente mobilizadas e selectivamente
exploradas…

No que diz respeito à forma do presente relatório, acrescentarei apenas que esta
procurará cumprir os propósitos que se esperam da dissecção habitual (justificação da
perspectiva e do conteúdo programático /programa tout court / métodos de ensino), atribuindo no
entanto à Primeira Parte — ao modo como esta articula a escolha do tema (e a antecipação
do seu desenvolvimento) com a preocupação de desvelar o seu auditório implícito (e de ir
assim cultivando um discurso em que este ou as suas reacções possam emergir) — uma
força geradora inquívoca [Primeira Parte: A justificação do tema e e de um
desenvolvimento em etapas]. O que lhe confere não apenas uma extensão mas também
um peso incomparavelmente maiores. Peso tanto mais evidente quanto é certo que, se nela
se tratará assim de antecipar todas as opções indispensáveis ao programa [Primeira Parte,
Tempo I] — programa cuja estrutura-itinerário a segunda parte se limitará a apresentar sob o
modus de um sumário parcialmente desenvolvido (combinando os conteúdos temáticos
principais com outros possíveis) [Segunda Parte: Um itinerário possível] —, não se
tratará menos de, ao explorar detidamente uma secção precisa desse programa (referida ao
debate do positivismo crítico) [Primeira Parte, tempo II], fazer (pontualmente) emergir o
diálogo do primeiro leitor com os outros hipotéticos leitores e de assim mesmo ir reflectindo
sobre o que se espera da relação pedagógica — o que desonera significativamente a última
secção do relatório, consentindo-lhe a possibilidade de se cumprir numa sequência breve de
anotações conclusivas [Notas conclusivas sobre os métodos «pedagógicos»:
encontros e desencontros do auditório implícito e dos auditórios reais].

17 Ver supra, nota 12.


10

NOTA SOBRE AS INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS


De acordo com a índole do seminário proposto, optei por não autonomizar uma lista final
de referências — mas também por não abrir o catálogo infinito que os temas convocados
permitiriam —, concentrando todas as indicações bibliográficas indispensáveis nas notas da
Primeira Parte. Com a vantagem de estas indicações poderem assim aparecer devidamente
contextualizadas, vinculadas a elementos temáticos precisos e respeitando as opções de
exposição e de tratamento do percurso a desenvolver. Sempre que os elementos temáticos
são apenas aflorados (como acontece no Tempo I desta Primeira Parte), optei por me
remeter para os estudos que noutros contextos expressamente lhes dediquei (nos quais se
poderão encontrar sempre indicações bibliográficas mais pormenorizadas).
11

PRIMEIRA PARTE

A justificação do tema e de um
desenvolvimento em etapas

A justificação que se segue integra dois tempos, com extensões, dinâmicas e recursos
muito diversos. Do primeiro, na sua contenção quase aforística, espera-se que cumpra uma
antecipação-esboço de todo o percurso da disciplina e das (seis) etapas que o compõem, na
sua relação imediata com o núcleo temático escolhido [Tempo I]. Do segundo, concentrado
detidamente em duas destas etapas (a quarta e a quinta) —na tensão pergunta-resposta que as
articula —, exige-se em contrapartida a transparência de um exemplo: um exemplo que, sem
se substituir ao percurso reflexivo correspondente, possa no entanto antecipar as
possibilidades que nele se abrem e assim mesmo ilustrar o que (com Gadamer) poderemos
dizer uma (certa) forma de «conversação responsável» — aquela forma que, sustentando
expressamente esta secção de perguntas-respostas, deverá (como já vimos) sustentar
igualmente o progressus da disciplina como um todo e assegurar a sua abertura [Tempo II].
Duas palavras me bastam para justificar esta escolha. Se em relação às três primeiras e à
última destas etapas estou em condições de convocar (e mesmo de me remeter para)
estudos disponibilizados noutros contextos (que podem assim apoiar as conclusões e
argumentos que aqui e a agora serão apenas esboçados a traço grosso18), o mesmo não
acontece em relação às duas restantes, cujo equilíbrio pergunta-resposta é precisamente
desencadeado pelo debate do incorporacionismo e pelas divisões complexas que este alimenta,
tanto no campo positivista como no campo não positivista — muito especialmente em relação
à quarta destas etapas, na qual um tal debate terá que ser directamente reconstituído. Na
impossibilidade dessa convocação-remissão, será este pois o «lugar» de tentar essa
abordagem e de simultaneamente assegurar a exemplificação (por amostragem) da forma e
da dinâmica que pretendo associar a todo o programa (mas que será decerto muito mais

18 E ainda proporcionar indicações bibliográficas menos rudimentares.


12

explícita e intensa nalgumas das etapas): se não para propor um esquema reflexivo que se
substitua à reflexão enquanto tal (um mapa que se sobreponha ao caminho e nos poupe ao
esforço de caminhar!)… pelo menos para projectar no primeiro a antecipação plausível da
dinâmica do segundo… e estabelecer entre ambos a mais curta das distâncias possíveis…

Tempo I

1. A exposição do tema. O ponto de partida é a ficção de um testemunho e do


exercício de repetição que este «interpreta» (dès qu’un signe surgit, il commence par se répéter19). Que
exercício de repetição? Já o sabemos. Aquele que convoca uma pretensão de autonomia (ou os
enunciados que a tematizam)… e aquela pretensão (ou estes enunciados) na sua associação
persistente às práticas e discursos que se dizem (ou se querem) jurídicos. Ou mais
exactamente, aquele que convoca esta pretensão e o seu(s) significante(s) —independentemente
dos significados que venham a ser-lhes atribuídos, independentemente ainda do tipo de
enunciado (constatativo ou prescritivo) em que estes se manifestem ^(e do regime de frase
que mobilizem)… ou ainda do contexto ou estrutura performativa (se não do género de
discurso) que os integra… — levando-a (levando-os) a sério como um elemento constitutivo
de tais práticas e do jogo de identificação-demarcação (positivo e negativo) de que estas
precisam — e de que estas precisam também enquanto e na medida em que estabelecem
continuidades e rupturas com as práticas e os discursos do passado. Insistir na ficção deste
(re)começo — e na inteligibilidade exterior, puramente semiótica, que testemunha as
sobreposições-cruzamentos das pretensões de juridicidade e das pretensões de autonomia20 —
significa, com efeito, evitar uma determinação imediata do sentido e das possibilidades do
tema da autonomia do direito enquanto problema. Não decerto para renunciar a este
problema. Antes para que a compreensão da autonomia em causa, precisamente enquanto
pretensão (se não conclusion-claim de um argumento possível), comece por se nos impor na
abertura da sua iterabilidade, frequentando contextos de significação e de realização muito
distintos, justificando um jogo ininterrupto de substituições. Ao ponto de podermos dizer que
o seu problema, antes de o poder ser verdadeiramente, entenda-se, antes de poder ser

19 Derrida, «Ellipse», L’écriture et la différence, Paris, Éditions du Seuil, 1967, p. 432.


20 «The sense of the expression the “law” is constructed internally, and separately, within the
discourse system of each group: what is common is the signifier, the expression, not the signified, its
meaning. Each semiotic group operates with its own system of semantic values, its own system of
meanings…» (Bernard S. Jackson, Making Sense in Jurisprudence, Liverpool, Deborah Charles Publications,
1996, p. 346).
13

convocado na sua auto-subsistência como «o problema fulcral que hoje se põe à reflexão
jurídica» — possibilidade que exige já um ponto de chegada, suficientemente claro para
nos permitir apostar n’o «significado» (e não apenas n’um dos significados plausíveis) de tal
autonomia (assim mesmo levada a sério no «todo da realidade histórico-cultural e humano-
social dos nossos dias»)21 —, comece por se reconduzir, não certamente por acaso, ao
problema do diferendo (ou quase diferendo) que tais contextos (de significação-realização)
determinam.
Um quase diferendo que nos importa explorar como uma possível experiência de
pluralidade? Já o sabemos. Como sabemos também que esta será uma experiência
selectivamente construída, mas nem por isso menos exemplar, dos sinais de fragmentação
(de perda de unidade) que fazem da «conjuntura» de crise («cultural e civilizacional») em que
vivemos um indiscutível (tão perigoso quanto estimulante) tempo de «teoria do direito»22 (Not
fördert Rechtstheorie!23). Como sabemos ainda que a exposição do tema só fica completa
quando especificamos esta experiência, entenda-se, quando a concentramos na denúncia e
esclarecimento de duas misinterpretations principais, recorrentemente associadas ao exercício de
repetição que nos ocupa.
Que interpretações equivocadas?
(A) Por um lado, aquela que resulta de se confundir a pretensão de autonomia jurídica
(seja qual for a máscara que esta afivela e a prática ou discurso a que se dirige) com a
prescrição de «isolamento» cognitivo de um direito-forma e de um pensamento jurídico
formalista. Como se não fizesse sentido falar das pretensões de autonomia (e da sua
dimensão positiva) mas apenas da concepção formalista da autonomia. Ou como se a dita
pluralidade (nesta sua vertente positiva) fosse afinal uma falsa pluralidade. Quando muito a
pluralidade (relativamente reduzida) que corresponde ao espectro das concepções
normativistas. O que significa decerto reduzir as possibilidades de uma atitude jurídica
interna (e a experiência do direito como uma dimensão autónoma da prática e um domínio
específico do conhecimento) ao correspondente programa de auto-subsistência de um
21 Castanheira Neves, «O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade», in
J. A. Pinto Ribeiro (coord.), O homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira, Porto, 1999, p. 87.
Ver também «O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito», Digesta, vol. 3º,
cit., pp. 43 e ss.
22Tenho insistido nesta acentuação da pluralidade que converte a nossa circunstância num tempo de

teoria do direito (apto a testemunhá-la). Ver especialmente Relatório com a perspectiva e os conteúdos, o programa e os
métodos de ensino da(s) disciplinas de Teoria do direito e (ou) Pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp.8 e ss,
50-61, mas também «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de teoria do direito
reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria», in João Lopes Alves et al., Liber
Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra,
Almedina, 2009, pp. 261-314.
23Bernd Rüthers, Rechtstheorie. Begriff, Geltung und Anwendung des Rechts, 2ª edição (reformulada),

München, Verlag C.H. Beck, 2005, pp.3 e ss., 10 e ss., 20-23 («Konjunkturen und Krisen der Rechtstheorie»).
14

cosmos normativo abstracto (livre da dinâmica da realidade ou reduzindo esta a um


correlato dos critérios pressupostos ou da organização que estes impõem).
(B) Por outro lado, aquela que, ao mobilizar como recursos privilegiados um
tratamento específico da relação juridicidade / moralidade e as possibilidades de defesa ou de
rejeição de uma tese de separação (referida ao problema da identificação do conteúdo do direito
vigente), acaba por consagrar a assimilação aproblemática de um debate parochially conceived
(nascido da resposta a Dworkin exigida pela Hart´s agenda)… — assimilação esta que não só
nos obriga a discutir o problema do «lugar do direito» assumindo uma alternativa inescapável
(continuum com «outras práticas» e «formas de organização social»/ continuum com a
moralidade)24 como também nos condena a admitir (agora sem alternativas) que a pergunta
dirigida à relevância de um momento de validade no direito (independentemente da resposta
positiva ou negativa que lhe venha a ser dada) implica abandonar uma perspectiva jurídica
para assumir as possibilidades crítico-reflexivas de uma perspectiva moral. Com todas as
consequências que daqui resultam para o tratamento logrado do problema da autonomia…

2. Sequência. Uma vez admitida esta especificação do desafio temático principal,


compreende-se que a referência às misinterpretations A e B passe a dominar a dinâmica do
nosso programa e o equilíbrio das etapas que o compõem (assim mesmo levadas a sério
como tentativas para superar as referidas «interpretações» e os equívocos com que estas nos
ferem). Trata-se, na verdade, de desenhar dois grandes arcos reflexivos e de ensaiar uma
conclusão.
O primeiro destes arcos propõe-se responder aos perigos da interpretação A, partindo
de uma alusão ao problema da pluralidade juridicamente relevante e ao testemunho crítico
que este exige, mas também e muito especialmente acentuando — como uma das
convergências significativas a ter em conta nesta fragmentação (e nas suas vertigens
discursivas) — uma representação (relativamente) unívoca da perspectiva interna e dos
atributos que a identificam (etapa I). Antes de reagir a esta univocidade: desde logo para
confrontar três grandes concepções-experiências da autonomia do direito, na
incomensurabilidade (se não heterogeneidade) exemplar das suas pretensões (etapa II),
depois para lhes contrapor outros dois caminhos (cada um deles a abrir-se num território
com muitas possibilidades), nos quais é a rejeição plena da (ou a indiferença assumida
perante) a pretensão de autonomia que, sem prejuízo da heterogeneidade inconciliável das
respostas, claramente se nos impõe (etapa III).

24 Para, como veremos, o dizermos com o próprio Jules Coleman. Ver infra, nota 130.
15

Com o segundo arco, o discurso começa por se concentrar na discussão em torno da


juridicidade / moralidade dos princípios aberta pelo Postscript de Hart: primeiro (como que) na
imanência do debate positivismo/ não positivismo e das suas vozes maiores, depois procurando
combinar as peças do puzzle que tal debate nos proporciona — e combiná-las em tabuleiros
distintos, num processo que se vai sucessivamente distanciando da arena em causa e das
suas categorias de inteligibilidade (etapa IV)25. Antes de responder àquele debate e a estas
tentativas, procurando reconduzir a superação da misinterpretation B a um elenco de
exigências ou de expectativas de reflexão e de chegar assim a uma compreensão do jurídico
como projecto-projectar autónomo (sustentado numa experiência única do problema-
controvérsia e numa especificação não menos inconfundível da racionalidade prático-
-prudencial), precisamente aquela que deverá ser tida em conta quando hoje se interpela
(mais ou menos radicalmente) a plausibilidade-pontualidade do homo humanus inventado
pelo mundo prático do direito (etapa V)26.
Faltando por fim a etapa conclusiva, a qual se propõe conjugar a experiência dos
dois arcos precedentes e das suas tentativas de superação para convocar detidamente o
modelo de pensamento jurídico que Castanheira Neves designa por jurisprudencialismo. É
certo que esta concepção, identificada entre outras concepções possíveis na etapa II, esteve
sempre presente (como interlocutor principal) ao longo de todo o nosso percurso (e de um
modo especialíssimo na etapa V!). Trata-se porém agora de propor uma consideração
explícita das suas possibilidades, concentradas no tratamento de um problema que
Castanheira Neves há muito fez seu (no qual reconhece o problema «fulcral» da reflexão
jurídica contemporânea)… e que é evidentemente o da autonomia do direito. Não já tanto
para atender à exigência de recuperação do mundo existencialmente humano do direito,
associada aos desafios da autoranscendentalidade prático-cultural (essa atenção cumpriu-se
fundamentalmente na etapa V!), antes para insistir no processo de institucionalização e na
dialéctica entre estabilização dogmática e realização judicativa que este processo assume (e
que sustenta a perspectiva interna do mundo prático do direito) — ou mais rigorosamente,
na inter-relação constitutiva que vincula as oportunidades de construção-reconstrução dos
sentidos comunitários (e da validade fundantemente crítica que os contextualiza) à
exigência de projectar estas numa determinação normativa plausível (que possa dar conteúdo
à validade intencionada).

25 No desenvolvimento do capítulo II desta Primeira Parte — o qual, como já sabemos, se propõe

ensaiar uma concentração, como que em plano fechado, nas etapas IV e V —, o percurso da etapa IV
corresponde às seccções 1. e 2. (ver infra, pp. 44-132).
26 No desenvolvimento identificado na nota anterior, o percurso da etapa V corresponde por sua vez

à secção 3. (infra, pp. 132-190).


16

3. Etapa I. Com esta primeira etapa pretende-se um diagnóstico aberto que,


dirigindo-se à nossa circunstância, possa desenvolver-se sob o modus (relativamente
assistemático) de uma conversation piece — permitindo que acentuações distintas (de
problemas e de factores específicos) venham a ser determinadas pela contingência do
auditório real. A interacção indispensável com o auditório implícito deverá não obstante garantir
três eixos temáticos imprescindíveis (sustentados embora com a brevidade de
prolegómenos)… bem como os juízos de relevância que estes eixos permitem construir…
(a) Refiro-me desde logo à expectativa de que os elementos (problemas, condições,
factores, categorias de inteligibilidade) mobilizáveis, sem prejuízo da sua heterogeneidade
(e dos fluxos contrários, se não contraditórios que alimentam), possam ser organizados na
perspectiva de dois contextos ou duas conjunturas de crise (ditas crise do direito e crise da
filosofia do direito) ou dos cruzamentos em que estes (estas) se encontram (e sobrepõem) —
eventualmente também convocados (e distribuídos) em função do contributo que possam
ter para alimentar um certo Alternativendebatte ou a primeira instância, como que pré-
reflexiva, deste (preocupada com as «razões-Gründe», tão imediatas quanto plurais, que hoje
justificam a procura de «alternativas para o direito»)27.
(b) Refiro-me depois à expectativa de que o confronto das práticas e dos discursos
do direito com os «sinais» de pluralidade e de fragmentação que os atingem (se não com a
celebração-prescrição assumida destes) possa ser reflexivamente testemunhado, distribuindo-
se tais «sinais» por quatro grandes núcleos de relevância: o primeiro a acentuar o «quase»
diferendo determinado pela pragmática da academic house, o segundo a reconhecer a
«realidade» juridicamente relevante dos «grupos semióticos» e das «comunidades
interpretativas», o terceiro a descobrir o papel das hetero-referências, o quarto a mobilizar os
desafios e lições do diálogo intercivilizacional28.

27Como as formulações claramente manifestam, trata-se, nesta abordagem inicial, de conjugar (se

não sobrepor, sem prejuízo das suas diferentes perspectivas) os diagnósticos (da «actual situação
problemático-cultural») de Castanheira Neves e de Kurt Seelmann: do primeiro (em relação à crise do direito)
ver expressamente «O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito», Digesta,
vol. 3º, cit., pp. 43-47 e «Uma reflexão filosófica sobre o direito — o deserto está a crescer... ou a recuperação
da filosofia do direito?», ibidem, pp. 74-80 (1.), e ainda (já no que diz respeito às crises da filosofia em geral e
da filosofia do direito em particular) A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, cit., pp.
9-16, 16 e ss., 22 e ss. (2.); do segundo ver Rechtsphilosophie, 3. überarbeitete und erweiterte Auflage, München,
Beck, 2004, pp. 5 e ss. («Die Alternativendebatte oder: Recht ist nicht selbstverständlich»), 14-21 («Heute
eröterete Gründe für die Suche nach Alternativen») 92 e ss («Die Problematik der Alternativen und die
Leistungen des Rechts»). Ver infra, nota 31.
28 Veja-se o tratamento deste tema da pluralidade juridicamente relevante que propus em

«Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», in Nuno Santos
Coelho, Antônio Sá da Silva (ed.), Teoria do Direito. Direito interrogado hoje – o Jurisprudencialismo: uma resposta
possivel? Estudos em homenagem ao Senhor Doutor Antonio Castanheira Neves, Salvador: JusPodivm/Faculdade Baiana
de Direito, 2012, pp. 109 e ss., especialmente 117-127 (1.), e a síntese que ensaiei em «Law’s Cultural Project
17

.
(c) Refiro-me enfim, last but not least, à exigência de, na (dita) pragmática da academic
house, se reconhecer uma tendência esmagadora para identificar as pretensões de autonomia
e, muitas vezes também (ainda que nem sempre coincidentemente!) as ambições de
construir um perspectiva interna — numa palavra, a procura de traços identificadores ou de
compromissos prático-normativos intrínsecos (se não imanentes) às práticas e discursos
que se dizem jurídicos (quer se trate de defender-prolongar-reinventar uma tal procura ou
de a denunciar-rejeitar) — com a herança ou com os rastos-cicatrizes (em qualquer dos
casos com recursos analíticos explícitos) do paradigma em erosão-Detruktion29. Que
recursos? Em primeiro lugar, aquele que nos expõe a um cognitivismo jurídico acrítico30:
como se o problema a ter em conta nessa procura fosse sempre o do conceito de direito (ou
o deste numa relação de depuração construtiva com a pergunta «o que é o direito?»31).

and the Claim to Universality or the Equivocalities of a Familiar Debate» (incluindo a referência expressa aos
horizonttes civilizacionais), International Journal for the Semiotics of Law, Vol. 25, n. 4, Novembro 2012, pp. 489
e ss. 492-494 [1 «Signs (and Stages) of the Contemporary Juridical Pluralism»].
29 Identificado com a naturhistorische Anschauungsweise des Rechts e com a operatória (Handwerkzeug) que

o sustenta e que se diz Método Jurídico... mas também (evidentemente) com outros formalisms (e rule
conceptualisms) anglo-saxónicos... e então e assim, se quisermos, com um grande eixo iluminado pelas sínteses
fecundas da Theorie der juristischen Technik de Jhering e do system of classification de Langdell.
30 Importa não confundir o cognitivismo de aqui se fala com qualquer tomada de posição na querela

(meta-ética) cognitivismo/ não cognitivismo relativa à possibilidade/impossibilidade de tratar os enunciados


práticos como verdadeiros ou falsos e à determinação dos states of mind implicados. O cognitivismo jurídico
refere-se aqui inequivocamente à assunção aproblemática de uma estrutura sujeito-objecto e ao tratamento do
direito como datum. É assim praticamente sinónimo de objectivismo (como se na referida estrutura
sujeito/objecto se tratasse apenas de privilegiar ora a atenção à perspectiva-sujeito, ora a atenção à pressuposição
do datum). Neste sentido ver Castanheira Neves, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999,
Coimbra, polic., 1999, (versão em fascículos) pp. 59 e ss., (versão em A4) pp. 32 e ss. e a explicitação esquemática
que proponho nos Sumários desenvolvidos de Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, Coimbra, polic., 2009,
pp. 10-12. «Em todo o objectivismo jurídico o direito vai pressuposto como objecto. Como uma entidade
objectivamente subsistente ou um “ente” (seja social, seja normativo- -cultural) – e que, já por isso ou
enquanto desse modo se postula como um “em si” pressuposto, admite a interrogação (e a discussão) sobre o
seu ser ou o seu modo-de-ser – a interrogação “o que é o direito?” – e exige uma determinação conceitual,
uma denotação significante que se enuncie no seu conceito em resposta àquela interrogação…» [Castanheira
Neves, Teoria do Direito, cit., (versão em fascículos) p. 59, (versão em A4) p. 32].
31 O próprio Seelmann, não obstante a sua preocupação com o Alternativendebatte, continua a

sacrificar a sua reflexão (aproblematicamente) a esta pergunta (e ao correlativo Rechtsbegriff), reduzindo


significativamente a radicalidade que poderia estar associada a tal debate — o que o leva nomeadamente a
preocupar-se sobretudo com as «alternativas» procuradas no próprio direito (Alternativen im Recht), a começar
por aquelas que, em confronto com a decisão judicativa associada à realização jurisdicional do direito
correspondem às possibilidades da negociação, da mediação e da arbitragem, os três pilares da chamada alternative
dispute resolution (ADR). Ver Rechtsphilosophie, cit., pp. 22-27 («Alternative Konfliktlösungsmodelle»). Um
problema completamente diferente (ao qual voltaremos) é, como se sabe, aquele que Castanheira Neves nos
ensina a descobrir quando reconstitui as condições de emergência da juridicidade e nos confronta com as
«alternativas ao direito» que resultam da abstracção da chamada condição ética. Trata-se, com efeito, de contrapor
a ordem de validade do direito à ordem de necessidade do poder e à ordem de possibilidade da ciência (tecno-ciência) mas
também à ordem de finalidade da política… reconhecendo nestas outras tantas respostas (culturalmente)
possíveis. Para além dos importantes desenvolvimentos propostos nas lições nº s 7 («O por-quê do direito») e
8 («As alternativas ao direito») de O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., primeira
versão, Coimbra-Lisboa, 1982-1983, e muito especialmente em «Coordenadas de uma reflexão sobre o
problema universal do direito — ou as condições da emergência do direito como direito», cit. nos Digesta, vol.
3º, cit., pp. 99 e ss., passim [este último conjugado com as últimas páginas de A crise actual da filosofia do direito,
18

Depois aquele que, pressupondo como aquisição irrenunciável a recondução dos elementos
substantivos e das intenções materiais para um plano de (imediata) contingência histórico-
-social (ética, política, filosófica), quando não de explícita contingência decisória
(admitindo, no limite, apenas uma justificação estratégica), nos impede de situar a referida
procura de identidade neste plano. Finalmente aquele que, como consequência inevitável
do anterior, condena a mesma procura à determinação analítico-discursiva de formas ou de
procedimentos, confirmando a prevalência de um tratamento da autonomia como auto-
-subsistência racional (sustentada numa exigência de universalidade). Quer se trate de
defender-prolongar-reinventar uma tal procura e os argumentos de Kant (Weinrib, Habermas)
ou os argumentos de Langdell (Schauer, Alexander, Sherwin) que a iluminam, de a denunciar-
-rejeitar (Posner, Kennedy, Unger, Albert) ou de simplesmente a restemunhar, com uma
frustrada pretensão de equidistância (Fish)32? Importa acentuá-lo. O que significa
reconhecer uma afinidade perturbante entre pensamentos radicalmente distintos33. Como
se se tratasse assim de encontrar a deixa para as duas próximas etapas.

4. Etapa II. Trata-se, como já dissemos, de explorar sistematicamente três


concepções hoje possíveis da autonomia do direito e (ou) do pensamento jurídico — e de
resistir à homogeneização acrítica que (numa radicalização da experiência da pluralidade)
as desfigura, insistindo na exemplaridade das diferenças que estão em causa (e das
implicações metodológicas que as projectam). Como se admitíssemos interpelar o common
ground que Posner uniformiza como juridista ou juridicista34 para distinguir nele três
perspectivas (hoje) incomensuráveis.

cit., pp.140-147 (V)], cfr. ainda «O princípio da legalidade criminal», Digesta, vol 1º, Coimbra, Coimbra
Editora, 1995, pp. 413-419, «O direito como alternativa humana. Notas de reflexão sobre o problema actual
do direito», ibidem, pp. 287-310, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 1993,
pp. 231-234, «Pessoa, direito e responsabilidade», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 6, 1996, pp. 38-40 e
«O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito», cit., pp. 53 e ss (IV) [ambos
também nos Digesta, vol.3º, cit., respectivamente nas pp. 154-155 e 62 e ss.]. Sem esquecer as sínteses mais
recentes propostas em «Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a
recuperação da filosofia do direito?», ibidem, pp.94-96, «O problema da universalidade do direito ou o direito
hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», ibidem, pp.118-121, «O direito interrogado
pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp.59-63, «Pensar o direito num tempo de perplexidade»,
cit., pp.11-15.
32 Procurei mostrar em que termos esta pretensão resulta frustrada sobretudo em Constelação de

discursos ou sobreposição de comunidades interpretativas?, cit., passsim.


33 O diferendo em torno da expressão formalismo, pela exploração global do pensamento jurídico

contemporâneo que estimula (e pelos problemas que envolve) estaria perfeitamente em condições de, só por
si, oferecer ao nosso curso de filosofia do direito um outro grande tema condutor (ver infra, no sumário, pp. 196-
-197).
34 A expressão legalism, com o sentido amplíssimo que Posner lhe atribui — identificando a aposta

(explícita ou implícita) na autonomia (prático-)normativa do direito e na autonomia discursivo-cultural do


pensamento jurídico —, deverá (sob pena de agravar os equívocos desta uniformização) ser adequadamente
traduzida por juridismo ou juridicismo. «[F]or legalists, the law is an autonomous domain of knowledge and
19

4.1. Assim sendo, o primeiro passo cumpre-se submetendo a uma demarcação


rigorosa a pretensão formalista de autonomia que, na referida experiência de pluralidade, é
explícita ou implicitamente mobilizada como máscara comum. Para que a intenção de auto-
-subsistência racional — e a condição de universalidade que a ilumina — recuperem a
inteligibilidade específica e a força discursiva que as tornam únicas e que são evidentemente
aquelas que as vinculam à herança do normativismo moderno.
Significa isto, desde logo, reconhecer em que termos é que a progressiva
especificação de uma tal autonomia se mostra inseparável do processo de determinação da
norma-ratio e dos degraus-estações (feitos de aquisições irrenunciáveis, mas também de
superações e de rupturas) que no-la revelam (que no-la vão revelando) na sua «veritas
constitutivamente imanente»35. Que no-la revelam como prius radicalmente instituinte da
juridicidade, capaz de responder ao desafio da criação ex nihilo imposto pela narrativa do
estado de natureza (e pela inventio contratualista da societas)? Bem o sabemos. Mas também
como um critério racionalmente auto-suficiente — critério por sua vez tão irredutível ao
imperativo-comando que o prescreve (e aos conteúdos contingentes, e como tal fungíveis,
que os seus actos de vontade introduzem), quanto capaz de encontrar em si mesmo a validade
fundamentante de que precisa (e de que precisa para se afirmar-constituir e reconhecer
como jurídico)36.

Veritas que é assim a de um puro dever-ser, com uma estrutura hipotético-condicional


auto-subsistente e com um modo-de-«existência» (racional e contra-factual) inteiramente
cumprido em abstracto, que só o dualismo metódico adquirido pela modernidade, em ruptura

technique (…). [L]egalism hypothesizes that judicial decisions are determined by “the law” (…). [L]egalism
treats law as an autonomous discipline, a “limited domain”…» (Posner, How Judges Think, Cambridge
Massachussets, Harvard University Press, 2008, pp. 8, 41, 42). Explorei detidamente esta questão em «Post-
-scriptum. A “área aberta” e a predestinação pragmática. A análise económica do direito como “teoria
compreensiva” entre outras teorias compreensivas: o desafio e as reformulações de How Judges Think», in
Alexandre Morais da Rosa / Aroso Linhares, Diálogos com a Law & Economics, Rio de Janeiro, Lumen Juris,
2009, pp. 239-275. Ver também o meu «Jurisdição, diferendo e “área aberta”. A caminho de uma “teoria” do
direito como moldura?», cit., passim.
35«A objectividade, não sustentada por fundamentos “transcendentes” (…) mas por um fundamento

“imanente”, ou por uma veritas constitutivamente imanente em que a racionalidade normativo-jurídica se


manifestaria como que em si mesma ou numa sua autoconstituição – será assim sempre que a normatividade
jurídica pensa a sua validade a sustentar-se numa unidade e consistência/coerência sistemáticas, ou em termos
de ela se afirmar autoconstituída pela racional sistematicidade da própria normatividade...» [Castanheira
Neves, Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., p.79 (versão em A4), p. 43]
36A sistematização das componentes da norma-ratio aflorada no texto do presente relatório é aquela

que, socorrendo-me da reconstituição proposta por Castanheira Neves [Castanheira Neves, Teoria do Direito
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão policopiada) pp.77-88 (versão em A4), pp. 42-49],
proponho nos Sumários desenvolvidos de Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 30-36 (2.1.2.3.).
20

explícita com o monismo pré-moderno37, vai tornar pensável — se não por si mesmo,
certamente em conjugação fecunda com a hipertrofia da episteme exigida pela Ideia de ciência,
ou ainda (e muito especialmente), através da superação irreversível de uma experiência do
jurídico enquanto jurisprudentia38 que o discurso de um direito encore à faire (ideal-
regulativamente pensado) exige e promete (logo que se possa tornar real)39.
Veritas que é também, não menos relevantemente, a que resulta da textualidade
enquanto tal (de uma compreensão não apenas constitutiva40, mas também global41, do texto):
não tanto porque as formulações mobilizadas manifestem as (se nos imponham como sinais
inequívocos das) exigências da universalidade racional (generalidade, abstracção, formalidade), mas
porque tais formulações e as significações que exprimem constituem elas próprias esta
universalidade, que não existe antes do texto e das significações nele imanentes (e que só por si
garantem o salto da volonté de tous para a volonté génerale, se não vereinigende gesetzliche Wille) — a
universalidade de um direito que (com Rousseau e Kant) poderemso dizer que só o é
enquanto tal na auto-obediência igualitária garantida pela generalidade… e na separação normas /
factos permitida pela abstracção… e na abstenção de interferir na matéria dos arbítrios assegurada
pela formalidade.
Veritas que é ainda a que resulta da relação (horizontal ou vertical, por coerência ou
por consistência, significativo-categorial ou sintáctico-arquitectónica, estática ou dinâmica) de
cada norma com a unidade (unidimensional) de todas as outras normas e com a categoria

37 No sentido que Ellscheid nos ensina a reconhecer: «Als “Methodendualismus” bezeichnet man in
erster Annäherung die Ansicht, vom Sein könnte nicht auf ein Sollen geschlossen werden; als
Methodenmonismus dagegen die Auffassung, das Sein umschliesse die Ebene der Werte und des Sollens…»
[Günter Ellscheid, «Das Naturrechtsproblem. Eine systematische Orientierung», in Kaufmann/Hassemer
(Hrsg.), Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, 6. Neubearbeitete und erweiterte Auflage,
Heidelberg, C. F. Müller Juristischer Verlag, 1994, p. 232). Importando esclarecer por um lado que a solução
dualista é aquela que defende um dever-ser integralmente autónomo, insusceptível de ser desimplicado ou
inferido de uma realidade-ser... e por outro lado que o «ser» a que as normas (através das características
enunciadas no tipo-hipótese) se dirigem não é já o de uma realidade essencial ou substancial — é muito
claramente o da realidade dos factos empíricos e discretos (que só se organizam e articulam na medida da sua
relevância jurídica, uma relevância que corresponde ao «preenchimento» em concreto de tais características
hipoteticamente antecipadas). De tal modo que ao monismo do cognitivismo jusnaturalista (que descobre nos
valores-bens uma normatividade e uma realidade inseparáveis) se oponha agora o dualismo do cognitivismo
normativista (enquanto contraponto-confronto do direito racionalmente auto-subsistente e da facticidade desarticulada
ou que se ficciona como desarticulada, decerto para encontrar em abstrato a pura relevância jurídica e para
submeter a realidade à «organização» que esta determina) — um dualismo metódico que culminará na
«dualização» do «direito-norma perante a realidade da sua aplicação» e na assunção da «irrelevância desta
realidade (i.e., dos problemas práticos que ela suscita) para a compreensão e (...) reconstituição da
normatividade jurídica…» (Castanheira Neves, «Matéria de facto — Matéria de direito», Digesta, vol. 3º, p.
323).
38 Ver infra, nesta Primeira Parte, Tempo II, 3.1.2. (a), pp. 137 e ss.
39 Ver infra, nesta Primeira Parte, Tempo II, 3.1.2. (b)’, pp. 141 e ss.
40 «[O] texto (…) [é] compreendido em termos não apenas expressivos, mas constitutivos: (...) a

significação jurídica é constituída exclusivamente pelo texto e só no texto, no seu conteúdo significativo, deve
ser procurada... » (Castanheira Neves, «O sentido actual da metodologia juridica», Boletim da Faculdade de
Direito, volume comemorativo do 75º tomo, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 140).
41 Com o alcance que Savigny exemplarmente consagrou ao levar a sério o binómio intra-textual /

extra-textual (exigindo que o primeiro inclua não apenas as significações literais mas também as significações
lógico-sistemáticas e históricas do texto). Para uma consideração esquemática deste binómio, vejam-se os
meus Sumários desenvolvidos de Introdução ao Direito, Coimbra, polic., 2008-2009, pp. 147-150 (2.1.).
21

sistema que assim se revela (com a «validade» da norma-ratio a «afirmar-se autoconstituída


pela racional sistematicidade da própria normatividade»42).
Veritas para cuja determinação formal-estrutural e analítico-categorial imanente
contribui por fim um pensamento jurídico puramente teorético, intencionalmente separado do
seu direito-objecto — cujos materiais conhece e trabalha racionalmente como direito objectivo
dado (constituído por proposições normativas e princípios gerais) e direito-dogma (integrado por
institutos e conceitos), quando não os descreve apenas como normas de direito (Rechtssätze)
arquitectonicamente escalonadas numa dinâmica de produção-validade —, pensamento este
que, ao alimentar-se de uma convergência (se não indissociabilidade) exemplar entre
cientificidade e juridicidade — precisamente enquanto pressupõe (e defende) a juridicidade da
intenção analítica que o distingue —, se mostra assim mesmo, perante outros possíveis
discursos teoréticos não jurídicos, em condições ele próprio, qua tale ([als] Erkenntnis des
Rechtlichen aus rein Rechtlichen43), de reivindicar uma autêntica pretensão de autonomia, se não
mesmo uma perspectiva interna … para enfim se dizer dogmatische Rechtswissenschaft (juristische
Fachwissenschaft), conceptual jurisprudence e reine Rechtslehre ou, num plano já metadogmático (nem
por isso menos assumidamente formalista), Allgemeine Rechtslehre, positivistische Rechtsphilosophie,
allgemeine Prinzipienlehre, teoria generale del diritto (di tendenza semiotica normativista)44.

O que implica ainda (como esta caracterização primeira não deixa de exigir!) ter em
atenção as diferenças que, em relação à pretensão de autonomia que nos ocupa, separam os
diversos ciclos de afirmação do normativismo (e outros rules formalisms), bem como as
intenções que distinguem as suas vozes maiores. Exploração na qual o papel do auditório real
poderá de novo emergir, determinando o peso das linhas e dos factores a considerar?
Importa dizê-lo. O que não significa que não se nos imponham aqui alguns limites. Aqueles
desde logo que nos estimulam a acompanhar a génese da pretensão de auto-racionalidade,
confrontando assim o normativismo onto-antropológico do direito natural racional de
seiscentos com os «argumentos» de Rousseau e de Kant (e com o ciclo do direito formalmente
racional que estes iluminam) — eventualmente acentuando a inesgotável posteridade destes
últimos… e ilustrando-a com algumas propostas exemplares (não certamente por acaso

42 Ver supra, nota 35.


43 Para o dizermos com Roland Dubischar, Einführung in die Rechtstheorie, Darmstadt,
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, pp. 24 e ss. («Das Programm der dogmatische-positivistischen
Rechtstheorie: Erkenntnis des Rechtlichen aus rein Rechtlichen»).
44 Para uma exploração de alguns aspectos deste espectro de compreensões do pensamento jurídico,

remeto-me para os já cits. Sumários desenvolvidos de Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 37-48
(2.2.) e muito especialmente para «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de teoria do direito
reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria», in João Lopes Alves et al., Liber
Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra,
Almedina, 2009, pp. 261-314.
22

preocupadas com a Recht/Moral-Abgrenzung)45. Mas sobretudo aqueles que nos pedem um


contraponto rigoroso entre o normativismo dogmático (horizontal, por coerência) do
Método Jurídico século XIX e o normativismo lógico-epistemológico (vertical, por
consistência) da reine Rechtslehre46: um contraponto que, reconhecendo duas versões distintas
do overlapping possível entre normativismo e legalismo (bem como duas compreensões da
categoria da inteligibilidade aplicação), distinga exemplarmente as pretensões de auto-subsistência
formal associadas pelo primeiro destes normativismos quer ao direito quer ao pensamento
jurídico e a pretensão de pureza formal-racional que o segundo atribui exclusivamente à ciência
do direito e às suas Rechtssätze.

Sem esquecer que para aquele se trata de levar a sério uma intenção mediata de
racionalização teorética da prática (projectada num paradigma da aplicação) e para este de
respeitar uma dinâmica de aplicação-produção que culmina no conhecimento da «moldura» da
norma individual (e de assim mesmo superar um juridicismo autêntico, abrindo as portas ao
que, sempre com Posner, poderemos dizer um discurso da área aberta)47.

Tudo isto como degraus indispensáveis para um último patamar, no qual as


heranças destas diversos veios do normativismo — quase sempre combinadas com
elementos espúrios (assimilados do cognitivismo empírico ou do funcionalismo pragmático,
mas também da teoria da argumentação) — possam ser reconhecidas nalgumas vozes
exemplares do nosso tempo e na autonomia-isolamento (quase sempre limitada, se não
relativa) que estas reivindicam para as práticas e discursos jurídicos. O que significa decerto
(poder) enfrentar alguns desafios de fronteira da scuola analitica italiana, do institucionalismo, da
semiótica estrutural e do new textualism48, bem como descobrir as preocupações do new rule-
formalism49, se não a tradição (pluralmente recriada) dos chamados princípios como ratio50.

45 Propostas que poderão ir do novo conceitualismo de Weinrib ao procedimentalismo de Habermas,

passando por Rawls e por Höffe. Infra daremos atenção à «variante» (não formalista) desta Abgrenzung sucitada
pelo positivismo crítico de Hart: infra, Tempo II, 1., pp. 44 e ss.
46 As formulações são de Castanheira Neves, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de

1998/1999, cit., (versão policopiada) pp.79 -83, 94-110 (versão em A4), pp. 51-60].
47 Para uma exploração esquemática deste confronto vejam-se os meus Sumários desenvolvidos de

Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 40-43, 45-46, 51-53.


48 Já assim no Relatório com a perspectiva e os conteúdos, o programa e os métodos de ensino da(s) disciplinas de

Teoria do direito e (ou) Pensamento jurídico contemporâneo (cit., pp. 121-122), onde invoquei a possibilidade
de se explorarem os exemplares «percursos de fronteira» frequentados (respectivamente) por Pattaro,
MacCormick, Jackson e Vermeule.
49 Nomeadamente o de Frederick Schauer: ver «Formalism», Yale Law Journal, 1988, pp. 509-548 e

«Positivism as Pariah», in Robert George (ed.), The Authonomy of Law, Oxford, Clarendon, 1996, pp. 31-55.
Para uma reconstrução do neo-formalist mode of practical reasoning (discutindo Schauer e Alexander), cfr. Gerald
Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World (vol. 11 de Pattaro, ed., A Treatise of
Legal Philosophy and General Jurisprudence), Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2011, pp. 388-399 («Formalism
23

3.2. Cumprida esta tarefa de demarcação, segue-se uma confirmação dos seus limites.
O que, como já sabemos, significa abrir espaço para outras duas compreensões da
autonomia e distingui-las claramente uma da outra, concentrando-as nas vozes exemplares
de Luhmann e de Castanheira Neves. Importando acrescentar que este é um passo que, em
função do equilíbrio global do nosso programa, há-de cumprir-se respeitando uma
assimetria expositiva de base: muito simplesmente porque… se este é o momento
oportuno para considerar, com o desenvolvimento merecido, a autonomia como
autodiferenciação sistémica (a cujo universo se não voltará), não é menos o momento para
expor apenas no seu núcleo de inteligibilidade (suficiente para esclarecer o contraponto
inconfundível com as anteriores) a concepção jurisprudencialista — cuja aposta, com o
desenvolvimento e a reexposição indispensáveis, será retomada recorrentemente nas etapas
V e VI.

3.2.1. Em relação à tradução autopoiética51 importará esclarecer os pressupostos


que radicalmente a distinguem da representação formalista. O de uma consideração do
jurídico inserido na realidade social — com operações sempre vinculadas a um «ponto de
partida» ou situação histórico-cultural (man (…) muβ (…) an die starke Geschichtsabhängigkeit
aller autopoietischen Systeme denken52) —… e o de uma representação desta realidade na sua
inteligibilidade macroscópica, determinada pelos dados informativos que os discursos
científicos estejam em cada momento em condições de nos proporcionar. Se esta segunda
acentuação nos remete para um terreno comum — partilhado pelos outros funcionalismos
(ditos materiais ou pragmático-instrumentais) —, não é no entanto com o objectivo de abstrair

Again: the Rule of Rules»). Ver ainda, reconstituindo um contraponto entre os argumentos de Shauer e os de
Kennedy (e relativizando as diferenças que os separam), Brian Z. Tamanaha, Beyond the Formalist-Realist Divide.
The Role of Politics in Judging, Princeton/ Oxford, Princeton University Press, 2010, pp. 162-167 («Kennedy and
Schauer on Formalism»).
50 Reconstituição que tentei em «Na “coroa de fumo” da teoria dos princípios: poderá um

tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», in Alves Correia, Jónatas Machado, João
Loureiro (ed.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, vol. III, Direitos e
interconstitucionalidade: entre dignidade e cosmopolitismo, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 395 e ss., 399-406
(2.1.).
51 Cfr. o estudo monográfico decisivo de Castanheira Neves, «O funcionalismo jurídico –

característica fundamental e consideração crítica no contexto actual do sentido da juridicidade», Digesta, vol.
3º, cit., pp. 199-318.
52Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1993, cit. na ed. de bolso de

1995, p. 585. O tratamento proposto no presente relatório privilegiará a organização temática e as


formulações desta obra (a última grande reflexão sobre o sistema jurídico que Luhmann nos propôs); nesse
tratamento socorro-me de resto abundantemente da reflexão que (com outros desenvolvimentos e
referências) propus em «A “abertura ao futuro” como dimensão do problema do direito. Um correlato do
pretensão de autonomia?», in Avelãs Nunes/ Miranda Coutinho (org.), O direito e o futuro. O futuro do direito,
Almedina, Coimbra, 2008, pp. 391 e ss., especialmente 397-412 (2.), 421-429.
24

das diferenças que os separam, é antes para acentuar a índole destas diferenças (e as
implicações que estas determinam). O que significa reconhecer que, para o funcionalismo
sistémico, a separação decisiva — aquela que o autoriza a defender uma experiência do
direito como sistema auto-diferenciado situado na sociedade em confronto explícito com
uma instrumentalização deste (dos seus recursos e instituições) a possíveis interpretaçãoes da
necessidade social (e aos fins transjurídicos que estas seleccionam) —, se cumpre (ou pretende
cumprir-se) afinal exclusivamente em função da opção por uma (específica) sociologia
sistémica e pela perspectiva que esta garante — em função, se quisermos, de um theoretical
turn ([als] Wende zur Theorie selbst-referentieller Systeme53), o qual não terá enquanto tal que ser
tematizado (e muito menos se justificar), decerto porque mobiliza razões intrínsecas às
comunicações do Wissenschaftsystem e não puras razões ético-filosóficas ou filosófico-
políticas (como aquelas que geraram a grande concepção formalista da autonomia), muito
menos representações de maximização estratégica ou de realização ideológica, se não de
reprodução material (como aquelas que presidiram à institucionalização do Estado social e que
justificam a fuga para a frente dos profetas da instrumentalização).
Trata-se, com efeito, de reconhecer que só estaremos em condições de
experimentar a circularidade das «comunicações» juridicamente relevantes e a «conexão» de
operações sociais que efectivamente lhe corresponde (die als soziale Operationen
Kommunikationen sein müβen54) se, ao testemunhar uma dinâmica de variação gradual,
pudermos simultaneamente iluminar um processo de autodinamização no tempo55 ([als]
Temporalisierung der Komplexität56) e a «diferenciação funcional» que este reconstrói (funktionale
Differenzierung als evolutionäres Produkt57). Acentuação que se nos revela indispensável para
descobrir um certo direito positivo e (ou) a etapa da evolução do sistema jurídico que o
consagra … ou que continua a consagrá-lo na sua exclusividade (als Resultat dieser Evolution gibt

53 Luhmann, «Die Einheit des Rechtssystems», Rechtstheorie 14 (1983), p. 133. Nos termos

exemplarmente sintetizados por este ensaio, trata-se, como sabemos, de assumir como desafio a concepção de
um sistema que se quer auto-referencial, isto é, capaz de produzir (herstellen) a sua própria unidade («de produzir
como unidade aquilo que mobiliza-utiliza como unidade»): de tal modo que esta não resulte da convocação de
um princípio (Prinzip, Idee, Gesetz) mas da circularidade e recursividade imanente aos elementos que integram o
sistema [Ibidem, pp.129-131]. Sendo certo que por estes elementos (últimos) se entendem sempre
«comunicações» (die Gesllschaftsystem besteht aus sinnhaften Kommunikationen (…), nur aus Kommunikationen und aus
allen Kommunikationen) [Ibidem, p. 137]. Sem esquecer evidentemente que se trata também de justificar a
transposição (teoretico-sociologicamente relevante) das exigências de um sistema que se diz autopoiético («capaz
de constituir-produzir os elementos que o compõem através dos elementos de que se compõe») —... e de tal
modo que «a unidade (que para o sistema é indecomponível) de cada um dos elementos só possa ser
constituída através do sistema»... mas de tal modo também que as «fronteiras» que o sistema impõe sejam
rigorosa e implacavelmente «as suas» [Ibidem, pp. 131-134 (II)].
54 Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 41.
55 Ibidem, pp. 286-293 (V).
56 Ibidem, p. 290.
57 Ibidem, pp. 585-586..
25

es für das Rechtssystem nur noch positives Recht58). Uma etapa que (reflectida fielmente nas
aquisições-progressos de uma «teoria das fontes»… e nas vinculações cognitivas59 que esta
impõe) deixou de reduzir o direito positivo ao direito legislativamente imposto — para
mobilizar também os modos constitutivos (jurisdicionais e dogmáticos) de um autêntico
Juristenrecht60. Uma etapa ainda que segundo Luhmann, continua a proporcionar-nos uma
reprodução autopoieticamente lograda do sistema jurídico (e a distinguir este, na sua unidade,
de todas as outras ordens sociais)61. Sendo certo que a experiência a que esta etapa nos
expõe nos permite reconhecer que o direito positivo a ter em conta é — como será sempre
(enquanto o sistema jurídico garantir a sua diferenciação) — aquele e apenas aquele que a
clausura operativa — enquanto combina funcionalmente expectativas cognitivas e normativas62
— produz ou produzir (nur das Recht selbst kann sagen, was Recht ist63)64. Aquele direito que é
posto como válido e vigente pelo sistema jurídico… e pelo sistema jurídico enquanto mobiliza
58 Ibidem, p. 281.
59«Auch zwischen Gesetz und richterlicher Entscheidung besteht, was Normativität angeht, ein strikt
symmetrisches Verhältnis. (…) Nur kognitiv, nicht normativ ist der Richter vom Gesetz abhängig…» («Die
Einheit des Rechtssystems», cit., pp. 140, 142). Importa ter presente que todas as assimetrias (nomeadamente
aquelas que se cristalizam numa «teoria das fontes») irrompem na institucionalização da dinâmica sistémica
apenas através de uma aprendizagem cognitivamente mediatizada (que não põe em causa a Ausdifferenzierung).
Compreende-se assim que as leis valham «como normas» apenas «porque está previsto que sejam mobilizadas-
aplicadas (angewandt) nas decisões» (na mesma medida em que «as decisões exprimem um juízo normativo
relativo a uma situação» apenas porque tal possibilidade está «prevista nas leis»)… e que «entre a regra-Regel e a
decisão de aplicação-Anwendungsentscheidung» haja, «no que diz respeito à qualidade normativa, uma relação
circular». Decerto porque «a autopoiesis opera para além de toda e qualquer dedução e de toda e qualquer
causalidade» e não há «nenhuma recondução das normas a princípios últimos ou a instâncias últimas, nos
quais ou nas quais o normativo e o cognitivo (Normativität und Kognitivität), o valor e o ser (Geltung und Sein) se
fundam». O que é ainda concluir que «a normatividade é sempre e em toda a parte igual, enquanto
preservação de expectativas não falsificáveis...». Estas formulações exemplares impõem-se-nos em «Die
Einheit des Rechtssystems», cit., pp.140-141.
60 «Als Ergebnis dieser Errungschaften kann das Gesamtrecht als selbstgemacht, als positives Recht

dargestellt werden, und die Rechtsquellenlehre wird (…) im 19. und 20. Jahrhundert so reformuliert, daß
nicht nur die Gestezgebung, sondern auch die Rechtsprechung, auch das Gewohnheitsrecht, soweit Gerichte
es aufgreifen, und schließlich sogar die Rechtsdogmatik selbst als Rechtsquelle auftreten können…»
(Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, cit., pp. 289-290).
61 Ibidem, pp. 279 e ss.
62 Tenhamos presente a síntese proposta em «Die Einheit des Rechtssystems», cit., pp.138-143 (V).

Recordemos que a expectativa «beneficia de uma qualidade normativa (Sollqualität) sempre que, ao
compreendê-la, se determina também que ela não terá que ser alterada quando se experimenta a sua
frustração, violação ou não realização (im Enttäuschungsfalle)». Para as expectativas cognitivas (que exprimem
uma Wissensqualität) as exigências são precisamente as opostas (a falsificação é aqui determinante). Ora o
sistema de direito «precisa» desta distinção» para «combinar a clausura da autoprodução recursiva com a abertura
da sua relação com o meio». Enquanto constrói um sistema normativamente fechado e cognitivamente aberto? Bem o
sabemos. Normativamente fechado porque «livre de fins» ou de um «fim» materialmente traduzível… e de tal
modo que só o sistema possa conferir «qualidade normativo-jurídica» aos seus elementos; cognitivamente aberto
porque submetido à exigência de («em relação a cada um dos elementos do sistema e em relação à sua
reprodução permanente») ter que determinar se certos «pressupostos» («factuais») se cumprem ou não. O que
nos permite concluir que, se a «qualidade normativa serve a autopoiesis do sistema, a sua autopreservação
(Selbstkontinuierung) na diferença perante o meio-Umwelt», a «qualidade cognitiva serve a exigência de
coordenação-Abstimmung (sintonização, sincronização)» com o mesmo meio [p. 139].
63 Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 50.
64 É neste sentido que Luhmann reconhece que «a tese» da clausura normativa do direito «se dirige

desde logo contra a pretensão de que a moral possa valer imediatamente no sistema jurídico»: ibidem, p. 78,
itálicos nossos.
26

o símbolo ou os símbolos disponíveis desta validade-vigência65 (nur noch positives Recht (…),
[d]as heiβt: nur noch Recht, das vom Rechtssystem selbst durch Verfügung über das Symbol der
Rechtsgeltung in Geltung gesetzt ist66): símbolo ou símbolos que não poderão ser convocados
como unidades de sentido (ou compromissos práticos unitários)… mas como expressões de
uma diferença-Differenz… e de uma diferença que se manifesta ou se cumpre na (ou com) a
autopoiesis — na (ou com a) reprodução que a consuma. Die Rechtsgeltung beruht (…) nicht auf
Einheit, sondern auf Differenz. Sie ist nicht zu sehen, nicht zu «finden», sondern liegt in der laufenden
Reproduktion67.
Mais do que reconhecer no direito vigente uma totalidade (unitária) de «soluções
para problemas» (eine Gesamtheit von als konsistent praktizierten Problemlösungen68) , trata-se com
efeito de descobrir que a «realidade jurídica» (die juristische Wirklichkeit) se nos expõe
invariavelmente como o «correlato» (e nada mais do que o correlato) de um modo de
comunicação «auto-referencialmente construído» (das Korrelat einer selbstreferentiellen
Operationsweise)69 — modo este que, por sua vez, se pretende tão livre das pretensões
constitutivas de um compromisso de unidade (e da ideia, princípio ou objectivo-fim que o
pré-determina e que o conduz) quanto performativamente garantido pela diferenciação-
Unterscheidung codificação/ programação (ou por esta como uma forma de comunicação
interna).
Uma forma de comunicação interna que liberta a representação do tempo e a
experimentação presente do futuro (mas também o conceito de evolução) da possibilidade-
exigência de uma prognose empírico-explicativa (ou dos recursos que esta mobiliza)? Importa
reconhecê-lo. Reconhecendo simultaneamente que só estaremos em condições de explorar
esta «operação» social (e a especificidade das diferenças que esta consuma ou pode
consumar) se mergulharmos na pragmática dos paradoxos e na sequência de processos de
paradoxização / desparadoxização / socialização / reparadoxização que a constituem — o que, no

65Afirmação de validade-vigência que vemos dirigida ao sistema como um todo… e assim mesmo — num

confronto explícito com a Faktizität und Geltung de Habermas — afirmada na sua impoluta pureza jurídica
(livre das seduções da Diskursethik e assim mesmo capaz de superar um Kriterium, der nicht justiziabel ist ). Como
um Symbol axiologicamente vazio, que nada nos saberá dizer sobre a «qualidade material» (justiça, justeza,
eficácia, adequação social) de «uma lei, de uma sentença ou de um contrato»… e que não obstante confirma a
juridicidade destes e das comunicações que os integram! Um símbolo que não é seguramente uma Grundnorm...
ou uma qualquer outra condição hipotético-transcendental do direito... porque se descobre «como pura
forma…» — como o lado interior da forma (sendo o lado exterior o da não validade!). Decerto porque esta validade
(als ein Symbol ohne intrinsischen Wert) se limita a «simbolizar a aceitação da comunicação e com ela a autopoiesis
das comunicações do sistema jurídico» (na sua implacável reprodução-variação temporal). Assim em Das Recht
der Gesellschaft, cit., pp. 98-110 (VIII).
66 Ibidem, p. 280.
67 Ibidem, p. 281.
68 Ibidem, p. 277.
69 «Einheit», cit., p. 134.
27

limite, significa também participar na vertigem dos observadores observados e distinguir os


degraus-ordens pelos quais estes são distribuídos70.
Não decerto para explorar um qualquer paradoxo mas para reconhecer o paradoxo
por excelência. O paradoxo de um sistema jurídico que só poderá garantir a sua autonomia
se contiver (se incluir, se fizer sua) — ou se, pelo menos, não excluir — a negação desta
autonomia — e com esta também a negação das convenções que a protegem71. Um
paradoxo constitutivo… e desde logo porque, comprometendo o sistema (como um todo)
com a preservação de um círculo de auto-afirmação e de autonegação (die Grundlage des Rechts
ist nicht eine als Prinzip fungierende Idee, sondern eine Paradoxie72) — ou com a impossibilidade de o
interromper (sob pena de pôr em causa a sua autodiferenciação socialmente relevante) —,
condena cada uma das comunicações intrasistémicas (e muito especialmente as decisões que
as traduzem) a enfrentar uma «prova» de consistência — uma prova de consistência que se
cumpre à luz da «distinção igual / desigual»73 (enquanto exige que cada decisão se «localize» no
contexto de outras decisões para observar como é que o direito é observado por outros observadores74) …
mas então também uma (a) prova de consistência que se ilumina (ou que se vai consumando)
como um exercício permanente (um exercício permanentemente renovado) de
desparadoxização. Ora um exercício de desparadoxização que só pode cumprir-se assumindo-
assimilando a diferença-Differenz sistema / meio (System / Umwelt) ou mais claramente ainda,
exigindo que esta diferença seja (sucessivamente) recriada e especificada como uma
diferenciação intrasistemática ou uma sequência de diferenciações intrasistemáticas (ein System
rettet sich dann mit einem re-entry des Differenz vom System / Umwelt als Unterscheidung ins System75).
Que recriação e (ou) especificação? Uma recriação-especificação que se
responsabiliza pela preservação de uma lógica binominal rigorosa (e remete para um
observador de terceiro grau a possibilidade de mobilizar uma lógica com mais valências)76…
encontrando o seu primeiro passo77 na reafirmação (-produção) em toda a sua transparência
do código Recht / Unrecht78 (ius/ iniuria79, positivamente valorado pelo direito/ negativamente

70 Para uma reconstituição da pragmática dos paradoxos autonomizada por Luhmann (e uma
consideração das ordens de observadores nela implicados), cfr. o ensaio de Teubner, «Der Umgang mit
Rechtsparadoxien: Derrida, Luhmann, Wiethölter», cit.na trad. inglesa «Dealing with Paradoxes of Law:
Derrida, Luhmann, Wiethölter», in Oren Perez / Gunther Teubner (eds.), On Paradoxes and Inconsistencies in
Law, Hart, Oxford 2006, pp. 55-59 (III. Luhmann: Sociologizing Deconstruction»).
71 Luhmann, Das Recht der Gesellscahft, cit., p. 545.
72 Ibidem, p. 235.
73 Para uma especificação funcional da Gleich /Ungleich-Unterscheidung, cfr. ibidem, pp. 110-117 (IX),

218-238 (III – IV), 446-451 (II), 507-519 (III), 571 e ss.


74 Ibidem, p. 236.
75 Ibidem, p. 547.
76 Ibidem, p. 547 e ss.
77 «[A]ls der erste Schritt der Auflösung der Paradoxie…» (Ibidem, p. 176).
78 «Dank des binären Codes gibt es einen positiven Wert, wir nennen ihn Recht, und einen negativen

Wert, wir nennen ihn Unrecht. Der positive Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt mit den Normen des
Systems übereinstimmt. Der negative Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt gegen die Normen des
Systems verstößt. Das, was wir soeben „Sachverhalt“ genant haben, wird vom System selbst konstruiert…»
(Ibidem, p. 178).
28

valorado pelo direito, «justo»/ «injusto», lícito / ilícito, legal / ilegal). Na mesma medida no
entanto em que exige que cada uma das suas comunicações (inscrita na circularidade
simétrica de todas as outras comunicações juridicamente relevantes) supere os (ou contribua
para a superação lograda dos) problemas-desafios que essa codificação suscita. Problemas-
desafios que reproduzem (especificam) eles próprios a grande paradoxia da inclusão do excluído
(da unidade do diferente e do contrário)… e que assim se concentram em dois grandes
núcleos: aquele em que o problema é directamente o da tensão unidade-diferença — ou o da
pretensão de encontrar no esquema-perspectiva da diferença a condição de unidade (ou de
relevância unitária) de um certo campo social — … e aquele que, ao contrapor observador e
observado, nos expõe à impossibilidade de «aplicar» auto-referencialmente o próprio
esquema-perspectiva — como se se tratasse afinal de reconhecer a «condição» de um
esquema-perspectiva que se dirige a todas as comunicações do sistema… sem se poder
dirigir a si próprio (die Unterscheidung mit der man beobachtet, nicht selbst bezeichnet werden
kann (…), die Beobachtung dient als blinder Fleck, nämlich als (…) nicht-vernünftige (…) Bedingung ihrer
eigenen Möglichkeit80). De tal modo que enfrentar-superar a cadeia de problemas-desafios que
estes núcleos concentram (e superá-los na imanência de cada decisão) signifique afinal
reconhecer que cada uma delas assimila à sua medida (e em função da posição-Stellung que
ocupa no sistema) uma espécie de semântica suplementar81.
Que não é senão a da programação. E não de qualquer programação. Mas daquela que
corresponde a uma exigência de condicionalidade — à exigência de condicionalidade que, sob o
modo do esquema «se… então» (Wenn-Dann-Form), ilumina o sistema jurídico… e que assim,
enquanto «mecanismo» ou «técnica de construção», combina funcionalmente expectativas
cognitivas e normativas, abertura cognitiva e clausura normativa82(Recht ist Recht bzw. kein
Unrecht, wenn die in den Programmen des Rechtssystems angegebenen Bedingungen erfüllt sind83).
Experiência de complementaridade código / programa (codificação binominal /
condicionalidade ) que deverá encontrar a sua especificação culminante — a sua última
especificação possível e neste sentido também a superação microscópica do paradoxo da inclusão
do excluído (aquela em que se cumpre a diferenciação concreta do que é valorado positiva e
negativamente pelo direito) — nas (em cada uma das) decisões judiciais efectivamente
consumadas. Ora isto graças à «forma de diferenciação interna» (autopoieticamente construída e
assim livre de qualquer «conotação hierárquica ou orgânica») que convoca o sub-sistema

79 Para o dizermos com Jean Clam (mobilizando a correspondência que este nos propõe): cfr «Une

nouvelle sociologie du droit? Autour de Das Recht der Gesellschaft de Niklas Luhmann», Droit et societé nº 33,
1966, pp. 413, nota 32.
80 Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, cit., p.188.
81 «Aus der Codierung ergibt sich aber nur ein Ergänzungs bedarf, ein Bedarf für “Supplemente”

etwa im Sinne von Derrida, ein Bedarf für hinreichend deutliche Instruktionen…(Ibidem, p. 189).
82 Na mesma medida em que se especifica nos desafios dos binómios auto-orientação / orientação para o

ambiente (Selbstorientierung/ Umweltorientierung), redundância / variedade (Redundanz/ Varietät), auto-referência / hetero-


referência (Selbstreferenz / Fremdreferenz), indiferença / irritação-irritabilidade (Indifferenz / Irritation-Irritierbarkeit).
83 Ibidem, p. 168.
29

judicial para o centro do sistema84…Uma forma de diferenciação que, mobilizando a proibição da


denegação da justiça e reconhecendo nesta um operador decisivo (no qual todo o sistema
aparece afinal implicado), garante às decisões judiciais (em confronto com as decisões dos
legisladores e com as decisões da autonomia privada85) um muito maior «isolamento
cognitivo» (o isolamento que as impede de reconhecer nos «efeitos sociais» critérios
juridicamente relevantes)86.

Mais uma vez não teremos que ficar por aqui, já que as exigências do auditório
implícito determinarão como complemento indispensável a consideração da proposta de
Teubner, muito especialmente a tematização das diferenças que, em relação ao problema da
autonomia, atingem muito significativamente a compreensão do sistema quando a vemos
associar-se por um lado a uma concepção de pluralismo jurídico (e com este à possibilidade
de «autopoiesis parciais») e por outro lado a um (certo) consequencialismo «limitado e realista»
(capaz de enfrentar com soluções específicas de incorporação e de exteriorização o problema da
colisão interdiscursiva dos subsistemas) — opções estas tanto mais perturbadoras quanto é
certo que convergem na superação da condicionalidade em favor de um programa relacional,
instituidor de um autêntico direito reflexivo (capaz de «regular indirecta e abstractamente» os
«processos de auto-regulação e auto-reflexão dos diversos subsistemas sociais»)87.
Sem esquecer que, a partir daqui, o auditório real estará por sua vez em condições
de explorar os caminhos do kollisionstheoretischer Institutionalismus aberto por Wiethölter,
invocando como interlocutores-guias não apenas Teubner e Ladeur mas também Ralph
Christensen e Andreas Fisher-Lescano88.

4.2.2. Tendo em atenção a sequência programada, a exposição do problema da


autonomia na perspectiva jurisprudencialista impor-nos-á neste momento apenas uma cadeia
de acentuações breves, capazes de, num contraponto claro com as duas concepções
anteriores, identificar outros tantos desafios reflexivos principais, desafios que iremos ter

84 É a conhecida lição do capítulo 7 de Das Recht der Gesellschaft, cit., pp. 297-337.
85Aquelas que (inscritas em nicht-gerichtlichen Arbeitsbereiche) se responsabilizam directamente pelas
transformações associáveis ao processo evolutivo.
86 Ibidem, p. 322.
87Propus uma esquematização completa destas diferenças entre Luhmann e Teubner (com as

indicações bibliográficas indispensáveis) em «O sistema jurídico como um “fim em si mesmo” ou as


“muralhas de indiferença” da galáxia auto», sumário desenvolvido do II Programa de Doutoramento da
FDUC (Outubro e Novembro de 2001), depois integrado nos Sumários desenvolvidos de Teoria do direito [(B)].
Ver infra, neste relatório, pp. 198-199.
88 Ver exemplarmente Lescano/Teubner, «Prozedurale Rechtstheorie: Wiethölter», in Buckel /

Christensen/ Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue Theorien des Rechts, cit., pp. 79-96.
30

presentes em todas as etapas que se seguem (muito especialmente, insista-se, nas duas
últimas)89.
A primeira acentuação impõe-se-nos para abrir o caminho, reconhecendo os
termos em que a compreensão jurisprudencialista, ao estabelecer uma «correlatividade
íntima» entre os problemas da autonomia e do sentido90 e ao conferir uma inteligibilidade
material inconfundível a ambos, rompe com a exigência de reconduzir as dimensões
substantivas a um plano de pura contingência (e de separar destas a identidade auto-
subsistente do jurídico) — pressuposição de contingência que, como vimos, é uma
condição necessária de possibilidade da invenção formalista do direito (em qualquer uma das
suas expressões possíveis), bem como um recurso imprescindível da tradução autopoiética
(ou do processo de desontologização que esta postula).
Esta afirmação da «correlatividade» autonomia /sentido, ao rejeitar a possibilidade (e
ao denunciar o perigo) de reduzirmos a vocação integradora da intenção à validade (e a força
da sua perspectiva normativa) a uma mera contingência (objectivável num consenso a
posteriori), traz consigo uma segunda exigência fundamental: a de assumir a materialidade em
causa na sua relação constitutiva com uma experiência de historicidade91. O que significa
por um lado rejeitar as respostas nas quais a defesa da validade material apareça vinculada a
uma representação necessária (ahistórica) do contexto comunitário (se não a uma pretensão
aproblemática de universalidade) e por outro lado levar a sério dois desafios decisivos — o
da autodisponibilidade prático-cultural e o da vinculação civilizacional92 (vinculação a uma
«civilização» que, ao querer-se «greco-romana, judaico-cristã e europeia», se diz também,
não certamente por acaso, «civilização de direito»93).

89 Para o esclarecimento da breve síntese proposta no texto (e uma indicação menos sumária da

bibliografia indispensável) remeto-me para dois estudos (parcialmente coincidentes) já publicados:


«Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», cit, e «Validade
comunitária e contextos de realização. Anotações em espelho sobre a concepção jurisprudencialista do
sistema», Revista da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto, vol.1, nº 1, 2012, http://revistas.
ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/2966, passim.
90 Castanheira Neves, «O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do

direito», Digesta, cit., vol. 3º, pp. 47-8, «O problema da autonomia do direito no actual problema da
juridicidade», cit., pp. 90-91.
91 Ver supra, nota 12.
92 A convergência das pretensões de universalidade e de validade material só faria sentido hoje (só se

tornaria contextualmente plausível) se estivéssemos em condições de recuperar o jusnaturalismo pré-moderno


e o seu discurso de intellegere de uma ordem substantiva transcendente (na ahistoricidade do seu essencialismo
e no dualismo metódico do seu cognitivismo normativo)… ou se de alguma forma o regresso da comunidade
de que hoje se fala nos autorizasse a admitir um horizonte-ethos prático-institucionalmente indisponível
(estranho a uma experiência de historicidade ou a uma mediação cultural genuinamente constitutivas), no qual
universalmente nos inscrevêssemos (sem poder nem dever problematizar essa integração, no seu absoluto
dogmático).
93 Ver Castanheira Neves, «O problema da universalidade do direito – ou o direito hoje, na diferença

e no encontro humano-dialogante das culturas», Digesta, vol. 3º, pp. 102-105, 111 e ss.
31

Sem esquecer decerto que a experiência de historicidade constitutiva que assim se


cumpre envolve a mediação reflexiva privilegiada de uma experiência do mundo prático do
direito e que esta, no esforço de reabilitar para o seu problema e para a sua resposta um
sentido cultural-civilizacionalemnte originário, nos obriga por sua vez a abandonar um plano
de inteligibilidade global e a dar uma atenção privilegiada às práticas de estabilização e de
realização que autonomizam esse mundo e lhe conferem uma racionalidade dialéctica
inconfundível. O que significa decerto desde logo esclarecer que a compreensão adequada
do problema da autonomia do direito, para além da «auto-subsistência» associada à
componente sentido, exige constitutivamente uma prática de institucionalização normativa (de
fundamentos e de critérios) e a auto-afirmação correspondente (sob o modus privilegiado de um
sistema jurídico pluridimensional)94. Mas o que significa sobretudo acentuar que uma certa
dimensão de validade e uma certa dimensão metodológica deverão ser crítico-reflexivamente
assumidas como dois momentos ou duas faces inseparáveis da «emergência» do jurídico: de
tal modo que convocar o direito como criação cultural específica (na plenitude da sua
experiência diferenciadora, indissociável da «aquisição axiológica» da pessoa e da condição
ético-jurídica que a traduz95) passe inevitavelmente por uma recuperação fundadora da sua
racionalidade e do discurso que a leva sério. Uma racionalidade que convoca como
dimensões capitais os pólos da validade trans-subjectiva e da controvérsia concreta (do
compromisso axiológico assumido pela primeira e da novidade irredutível introduzida pela
segunda)… para logo lhes associar outras duas: a que estabiliza a primeira numa mediação
dogmática e a que responde à segunda com uma mediação judicativa ou judicativamente
praxística (iluminada por uma dialéctica prudencial)96.
.

A possibilidade de compreendermos o discurso problemático construído pelo direito


(e o mundo de inter-relação que culturalmente este reproduz) à luz destas quatro dimensões
— e de tal modo que as duas últimas (ditas dogmática e judicativa) possam expor-se-nos como
condições de institucionalização das duas primeiras (ditas axiológica e problemática) — confere
à experiência da autotranscendentalidade prático-cultural uma inteligibilidade institucional
inconfundível, que é também a de uma resposta possível (simultaneamente conclusa e aberta):
precisamente aquela que se cumpre na dialéctica sistema / problema… e nesta como horizonte
integrante de outras distribuições dialecticamente fecundas e da circularidade que estas

94 Ver muito especialmente «A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido», Digesta,

vol. 2º, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp. 155 e ss., 167-180, e Metodologia jurídica, cit., pp.78-81, 152-157,
188-196, 278-283 (ßß).
95 Ver supra, ensaios citados na nota 31.
96 Assim em «Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp.19-20 (IV.1.).
32

asseguram. A começar decerto pela experiência estratificada do sistema e pelo contraponto


fundamentos /critérios que ilumina a sua dinâmica e que confere aos diferentes estratos modos
de vinculação-vigência institucional e metodologicamente inconfundíveis…

Com mais três notas, brevíssimas, mas que se revelarão indispensáveis na orientação
do percurso que se segue: a primeira a submeter-nos ao desafio da recuperação da unidade
intencional direito/pensamento jurídico (a exigir que a auto-reflexão que se espera deste
pensamento, sem prejuízo dos degraus em que se situa, mobilize constitutivamente os
compromissos daquele direito)97; a segunda a mostrar-nos que tal reconstituição da
autonomia (do direito e/ou do pensamento jurídico) só poderá impor-se-nos como a
identificação de uma procura contextualmente situada, não isolada (sensível ao plano da
inteligibilidade cultural-comunitária associada ao mundo prático global e ao plano da
determinação societária justificado pelas exigências dos discursos político e económico), se
estivermos em condições de tematizar, como autêntico «corolário» do «sentido» daquela
autonomia (e do campo de possibilidades em que esta se traduz), um iniludível problema
de «limites» (e com estes a ameaça surpreendente de um indiferenciado panjuridismo)98; a
terceira enfim a concluir que a exigência de associar a tematização da autonomia do jurídico
a um plano de imanência microscópica (à compreensão de uma «prática titulada pessoal e
concretamente»99, traduzida numa realidade de controvérsias-casos e numa experiência
judicativo-decisória de realização) nos leva decerto a encontrar (a reconhecer) na «índole
autonomamente jurídica da função jurisdicional» um «contra-pólo» indispensável da «índole
política (comprometidamente política) da função legislativa»100, ou mais claramente, a
responsabilizar a primeira pela realização lograda de um certo sentido (e pela
intencionalidade material que lhe corresponde)101.

97Importa ter presente a defesa exemplar de uma perspectiva interna assumida por Castanheira
Neves no Relatório com a justificação do sentido pedagógico, o programa, os conteúdos e os métodos de um curso de Introdução
ao Estudo do Direito, Coimbra, 1976, pp. 13 e ss., 21-24, 33-43, 63-65.
98 Ver muito especialmente Castanheira Neves, «O direito interrogado pelo tempo presente na

perspectiva do futuro», cit., pp. 69-81 (III., 1.) e «Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp. 27-
28 (V.2. «Os limites do direito»).
99 Ver supra, nota 90.
100 Castanheira Neves, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra,

Coimbra Editora, 1983, p. 604.


101 O que é de certo modo também responsabilizá-la pelo exercício de um contrapoder: aquele

contrapoder que, reconhecendo o seu interlocutor imprescindível no «poder de programação politicamente


constituinte» e na lex que este impõe (se não na societas que este(s) reinventa(m)), se dirige a tal poder (e às
suas mediações ou às situações institucionais que estas geram) com uma voz autónoma — a única voz que está
em condições de «postular a validade do direito e de ser convocada exclusivamente à sua realização» (na
mesma medida em que leva a sério a dimensão metodológica desta validade). Para uma caracterização do
«juízo jurídico da jurisdição» e a problematização do sentido da função jurisdicional como «elemento
institucional da comunidade política» (e de uma comunidade política organizada num Estado que se quer
legislativo-jurisdicional), caracterização que insiste assim numa especificação da exigência de «representação
33

5. Etapa III. A exploração das concepções do direito que se mostram hoje em


condições de renunciar à exigência de autonomia (quer porque a rejeitem explicitamente
quer porque a entendam culturalmente superada) cumpre decerto um percurso paralelo ao
da etapa anterior. A assimetria do tratamento que me proponho reservar-lhes justifica-se no
entanto se tivermos presente que, se se trata aqui e agora de enfrentar um espectro muito
mais amplo de concepções do jurídico (com pressupostos e exigências inconciliáveis), não
se trata menos de reconhecer que tais concepções — acrescentando significativamente
pouco (muito pouco!) ao tratamento do nosso problema — convergem na representação-
denúncia das possibilidades da autonomia (e da identidade que as sustenta), possibilidades
estas que vemos assim tratadas em bloco e invariavelmente reconduzida(s) à sua máscara
formalista. Ter isto presente significa com efeito admitir que as expectativas do auditório
implícito se devam bastar com o esboço de duas grandes tendências — capazes de se nos
apresentar como distintas respostas ao problema da interdisciplinaridade102 —… e reservar
para o auditório real a exploração detida de um ou dois exemplos de cada uma delas.
O esboço de duas grandes tendências? Certamente. Aquele que, em torno da
hipertrofia da racionalidade finalística e da sua rejeição, contrapõe instrumentalismos
pragmático-funcionais (funcionalismos materiais103) e discursos humanistas. Os primeiros a
aparecerem-nos sob a máscara unificadora de uma aposta básica e indiscriminada numa
Zweckrationalität e num Zweckprogramm cientificamente informados…

Aposta em cujo grande arco podemos incluir assim (sem prejuízo das suas
diferenças) o pragmatismo interdisciplinar de Posner, o teleologismo tecnológico de Hans Albert e (na

comunitária» — dominada pelo contraponto político/política (e pelos desafios da institucionalização de um


poder que não sendo «apolítico» também não desempenha decerto «uma função de intenção e de natureza
políticas») —, cfr. o mesmo O instituto dos «Assentos»…, cit., pp. 418 e ss., 429-475, 596-611.
102 Com a primeira a consagrar o domínio informativo e metódico das ciências sociais empírico-

explicativas — se não a confimar-consumar uma das profecias de Holmes (the man of the future (…) for the
rational study of law (…) is the man of statistics and the master of economics) — e a segunda (por sua vez à luz do apelo,
não menos persuasivo, do juiz Learned Hand) a exigir que as práticas e discursos do direito passem a integrar
a «nobre república das Letras»… ou pelo menos a reconhecer que estas práticas e os pensamentos que as
pensam permanecem «inacabados» (feridos na sua integridade ou entregues a arbítrios incontroláveis) se não
forem «alimentados» pelas (ou se não encontrarem «apoio» e «exemplo»-edification nas) «fontes de
conhecimento externo» que «as humanidades» (incluindo a filosofia e a crítica literária) lhes proporcionam.
Para reconstituir este exemplar «tale of two speeches», eloquentemente narrado por Balkin e Levison, ver
«Law and Humanities: An Uneasy Relationship», Yale Journal of Law & the Humanities, vol. 18, pp. 155-160
(«Introduction: Is Law Part of the Humanities? A Tale of Two Speeches»).
103 De acordo com a identificação privilegiada por Castanheira Neves: para além da Teoria do Direito.

Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit.., passim, veja-se também a síntese proposta em «Entre o
‘legislador’, a ‘sociedade’ e o ‘juiz’ ou entre ‘sistema’, ‘função’ e ‘problema’ – os modelos actualmente
alternativos da realização jurisdicional do Direito», Digesta, vol. 3º, cit., pp. 161-198 e ainda «O funcionalismo
jurídico», cit., pp. 207-209 (Preliminares, 2.).
34

fronteira) o novo textualismo de Vermeule (enquanto justificação pragmática de um certo


formalismo interpretativo). Sem excluir evidentemente os Progressive Legal Realists e ainda
algumas representações (abertamente ideológicas) do juiz político (enquanto executor táctico
de uma vinculante estratégia constitucional ou critical performer de estratégias emancipatórias
alternativas)... — juiz político este nuclearmente orientado por uma previsão de efeitos sociais
(e pela pretensão de interdisciplinaridade que a alimenta), e então e assim (para o dizermos
com Martha Nussbaum) também e ainda informado por uma concepção «científica» ou
«pseudo-científica» da razão pública104.
Aposta dominada pela exigência de mobilizar o jurídico sem o obstáculo das
pretensões de autonomia? Importa acentuá-lo. O que se manifesta em termos
programaticamente acabados na concepção dos princípios-ponte de Hans Albert, enquanto
exemplar tentativa de subordinação dos enunciados normativos aos enunciados não normativos,
impondo no limite um teste de congruência — teste no qual as possibilidades de racionalização
correspondem directamente à Aufklärung cognitiva imposta às escolhas normativas (e às
formulações que as prescrevem) pela ciência ou pela prática cientifica, esta(s) tratada(s) como
se compussessem um autêntico Weltbild ou Weltauffassung, se não uma forma de vida autónoma
(produzindo um mundo humano feito de «problemass», «teorias tentativas» e
«experimentação crítica» ou «eliminação dos erros»)105. Sem esquecer que a tematização-
-denúncia mais explícita das pretensões de autonomia aasociáveis ao mundo prático do
direito — e destas vinculadas a uma pretensão de continuidade histórico-cultural (aquela que
defende uma «relação orgânica» com estádios ou etapas anteriores ou com uma tradição que
paulatinamente se vai construindo) — se deve exemplarmente a Posner. Tematização-
-denúncia que nos importa especialmente aqui e agora porque, como já sabemos, reconduz
tais pretensões às concepções juridicistas — às propostas que explicitamente faz
corresponder a um formalismo de regras e a um formalismo de regras, direitos e princípios106 . Não se

104 Nussbaum, Poetic Justice. The Literary Imagination and Public Life, Boston, Beacon Press Books, 1995,
Prefácio - xviii-xix.
105 Remeto-me para a abordagem da proposta de Hans Albert que desenvolvi em «Is Law’s Practical-

Cultural Project Condemned to Fail the Test of “Contextual Congruence”? A Dialogue With Hans Albert’s
Social Engineering», in M. Zirk-Sadowski, B. Wojciechowski, K. M. Cern (eds.), Legal and Communication
Strategies towards the Recognition of Minority Groups, Ashgate (Law, Language and Communication series by Anne
Wagner and Vijay K. Bhatia), 2013 (no prelo).
106 Um rule-formalism e um concept-formalism… se quisermos usar as fórmulas de Thomas Grey citadas

por Posner em How Judges Think, cit., p. 8, nota 16. O primeiro tipo é aquele que — ao identificar a frente
partilhada pelo normativismo legalista «continental» e pelo american legal formalism — invoca o direito como um
sistema autónomo de critérios-rules «pré-existentes», na mesma medida em que pressupõe uma realidade de
factos (empíricos) objectivamente determináveis e em que se que se dirige a este direito-objecto exigindo uma
determinação cognitiva em abstracto e um estrito paradigma de aplicação (baseado num discurso lógico-dedutivo)
[Ibidem, pp. 51 e ss., 103 e ss., 191-203, 371-372]. O segundo tipo de juridismo — correspondendo
genericamente àquele que (em The Problems of Jurisprudence) Posner caracteriza(va) como prudentialism (ou
epistemological traditionalism) — concentra-se por sua vez na exigência de compreender o direito como um
sistema (mais ou menos aberto) de critérios e princípios. Exigência também e ainda vinculada a uma
pretensão de autonomia (do direito e do pensamento jurídico)… mas que se distingue enquanto acentua a
perspectiva condutora de uma realidade de casos e a identidade metódica de um discurso prático-
35

trata com efeito assim apenas de reconhecer que todo e qualquer progresso efectivo nos
discursos do direito passa por uma renúncia explícita às exigências de autonomia (when law is
conceived of as an autonomous discipline, improvement is impossible)107. Trata-se de accentuar
directamente as afinidades que aproximam tal pretensão de autonomia da assunção de uma
dependência em relação ao passado, entenda-se, da vinculação (ou aspiração de vinculação) a uma
tradição ou ao diálogo-conversação que a prolonga108. O que para Posner significa poder
construir duas respostas claríssimas: a primeira para recomendar que substituamos toda e
qualquer reflexão possível sobre a «presença do passado» no presente (e no futuro) por uma
rigorosa contabilização de custos de transição109; a segunda para exigir que o direito deva ser
funcional-instrumentalmente concebido — como um puro «servidor da necessidade social»
(e das expectativas que lhe vão correspondendo)… — e assim também emancipado de uma
qualquer dependência constitutiva em relação ao passado110. Respostas que nos permitem
reconduzir uma experimentação presente (juridicamente relevante) do futuro a uma
contabilização de efeitos sociais empirico-explicativamente prognosticáveis… mas também
reconhecer que o futuro do direito (hoje pragmaticamente concebível), impondo uma ruptura
com o passado (ou com os discursos-argumentos que o mobilizam enquanto tal), impõe
também uma recusa criticamente assumida da pretensão de autonomia, ou mesmo mais do que
isso, um declínio irreversível de todos os discursos que a levem a sério. O que culmina numa
representação da interdisciplinaridade hetero-referencialmente exigida pelo direito: uma
representação que se propõe responder a um dos apelos-profecias de Holmes (the man of the
future (…) for the rational study of law (…) is the man of statistics and the master of economics111) não só
enquanto assume uma vertente exclusivamente empírico-explicativa mas também e muito
especialmente enquanto invoca o contributo decisivo (a oportunidade contextual preciosa)
de uma teoria do direito «sem direito». Uma teoria do direito que se distingue da filosofia jurídica (as
analysis of high-level law-related abstractions) e da doutrina — e desta associada a uma vertente de
reflexão metodológica (as legal reasoning, the core analytical component of adjudication and the practice of

prudencial… que se diz discurso analógico [How Judges Think, cit., pp.180-191]: um discurso analógico que, ao
reivindicar uma autonomia inconfundível (analogy (…) as (…) its own kind of thing), se pretende afinal tão
distinto da «aplicação» lógico-dedutiva dos critérios quanto da «realização-execução» baseada em programas finais
e orientada por uma previsão de efeitos (the celebration (…) of «legal reasoning by analogy» (…) [as] a methodology
unrelated to economic, policy , or pragmatic analysis (…), [thinks] that it can save case law from contamination by policy and
politics (…), and to support an alternative conception of legalism — legalism not as deductive reasoning but as set of techniques
for deciding cases without recourse to policy)[Ibidem, pp. 180, 184, 185, 372].
107 Ibidem, p. 376.
108 «Path dependence in law resembles another important concept, that of law’s autonomy (…) [;] to

the extent that a practice or field, whether it be music, mathematics, or law, is autonomous, developing in
accordance with its internal laws, its “program”, its “DNA”, its current state will bear an organic relation to
its previous states…» (Frontiers of Legal Theory, Cambridge Massachussets, 2001, p.159).
109 «We can thus expect to observe path dependence when transition costs are high relative to the

benefits of change …» (Ibidem, p. 156).


110« Many legal thinkers have aspired to make law an autonomous discipline in this sense [;] it is a

questionable aspiration and my own view is law is better regarded as a servant of social need, a conception
that severs the law from any inherent dependence on its past …» (Ibidem, p. 159).
111 A propósito do confronto entre as posições de Holmes e de Hand, ver supra, nota 102.
36

law)112— enquanto garante uma abordagem implacavelmente exterior: uma abordagem não só
interdisciplinarmente prosseguida como também «livre» de qualquer perspectiva ou arena
disciplinar… que se possa(m) (ou deva(m)) dizer jurídica(s) (legal theory is concerned with the
practical problems of law, but it approaches them from the outside, using the tools of other disciplines113)114.
Uma interdisciplinaridade que se nos expõe pragmaticamente iluminada pelo núcleo-
horizonte de um certo discurso económico — identificado com o marginalismo pós-
coasiano115 —, mas nem por isso menos capaz de agregar contributos preciosos da teoria das
ciências, da semiótica, da psicossociologia, da normative theory of rational choice, da teoria das
probabilidades (e outras quantitative scholarships)... enfim do narrativismo genealógico (as an
effective method of sceptical analysis)116!

Os segundos discursos (ditos humanistic approaches ou humanistic interdisciplinary projects)


a combaterem simultaneamente os formalismos e os funcionalismos materiais, invocando como
núcleo das possibilidades de resistência uma reinvenção da filosofia prática e uma
mobilização prático-existencial da racionalidade narrativa, mas também uma reabilitação da
phronêsis explorada como percepção-aisthesis (se não já uma concepção-experiência da
communitas ou da dialéctica societas/communitas).

Ora ao ponto destas possibilidades de resistência se poderem reconhecer a si


próprias não só como «produtos»-outgrowths imediatos (e fecundos) do linguistic literary turn (e
do movimento direito e literatura), mas também como participantes noutros caminhos ou
linhas complementares (linhas por vezes deliberadamente pensadas como alternativas) —
precisamente aquelas que se nos impõem quando invocamos as narrative critical jurisprudences

112Mas então também da Jurisprudence anglo-saxónica (ou pelo menos da sua british translation), que

POSNER, com alguma ambiguidade de resto, associa sempre à legal (se não à moral) philosophy: veja-se agora
Law and Legal Theory in the UK and USA, Oxford, Oxford University Press, 1996, pp. 69-70.
113 Frontiers of Legal Theory, cit., p. 2.
114Para compreender o alcance desta interdisciplinaridade e do pragmatic turn que a alimenta é

imprescindível considerar toda a «Introduction» das Frontiers of Legal Theory, cit., 1-27 «The particular areas I
examine in this book (...) may seem little related to each other, but we shall see that they overlap and
interpenetrate, enabling us to glimpse the possibility of legal theory as an unified field of social science...»
(Ibidem, pp. 14-15). Para um confronto com a proposta de Fish (enquanto rejeição liminar desta
interdisciplinaridade), veja-se o meu «Brauchen wir noch eine kritische Rechtstheorie? Ein
Konversationsstück mit Posner und Fish», in Bernd Schünemann / Marie-Therese Tinnefeld /Roland
Wittmann (Hrsg.), Gerechtigkeitswissenschaft - Kolloquium aus Anlass des 70. Geburtstages von Lothar Philipps, Berlin,
Berliner Wissenschafts-Verlag 2005, pp. 23-45.
115 «What Holmes lacked was a social theory to take the place of the kind of internal legal theory

that he denigrated in the German theorists. We now have that theory; it is called economics…» (Ibidem, p.
207).
116 The Problems of Jurisprudence, Cambridge Massachussets, Harvard University Press, 1990, pp. 239-

244 («Holmes, Nietzsche and Pragmatism»), The Problematics of Moral and Legal Theory, Cambridge Mass.,
Harvard University Press, 1999, pp. 17 e ss. («Realism versus Relativism»), 53 e ss. («Moral casuistry»),
Frontiers of Legal Theory, cit., pp. 145 e ss. («Law’s Dependence on the Past»)
37

ou os movimentos law as musical and dramatic performance, law and film, law and culture, law and
image, law and emotions. O que implica desenhar um território comum frequentado por vozes muito
distintas: aquelas que se nos impõem quando damos atenção às exigências do narrativismo
«comunitarista» de Boyd White e da desconstrução transcendental de Balkin ou quando ouvimos os
apelos da justiça como diké justificados por Costas Douzinas; mas também aquelas que nos
interpelam quando identificamos o poetic judging (e o literary judicious spectator) de Martha
Nussbaum, a jurisprudence of comedy (e a comic view of Law) de John Denvir e o legal counter-
storytelling (alimentado por uma específica voice-of-colour thesis) de Richard Delgado; ainda
aquelas que reconhecemos quando ouvimos Martin Jay defender uma «tensão icónica criativa
entre alteridade e comensurabilidade... ou quando enfrentamos a inter-acção produtiva entre
regimes narrativos jurídicos e cinematográficos reconstituída por David A. Black; sem que deste
espectro amplíssimo se excluam evidentemente as propostas de Richard Weisberg, de Naomi
Mezey e de Robin West, a primeira a expor-nos ao exemplum (moralmente edificante) de uma
«reconstrução» de narrativas processuais, a segunda a defender um específico intertwinement
entre direito como cultura e cultura como direito, a terceira enfim a explorar o contraste entre os
«excessos do economic man» e as «possibilidades da literary woman»117 .
.
Tendências que, não obstante a oposição radical que desenham, convergem numa
compreensão do direito vinculada ao que, em contraponto com os (ditos) discursos
juridistas ou juridicistas, Posner diz um discurso de área aberta118? Parece-me indispensável
acentuá-lo.

117 Para uma identificação de alguns destes interlocutores e uma discussão dos seus contributos, ver
os meus «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura (law
as literature, literature as law) à analogia com uma poiesis-technê de realização (law as musical and dramatic
performance)», Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXX (2004), pp. 84-135, «Recht als dramatische und
musikalische Aufführung: eine fruchtbare Analogie?», in Schweighofer/ Liebwald / Drachsler, Geist (Hrsg.),
E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht. Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik, Tagungsband des 9.
Internationalen Rechtsinformatik Symposions Iris Wien 2006, Stuttgart/ München/…, Richard Boorberg
Verlag, 2006, pp. 468-475, «Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?», in
André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti Neto (org.), Direito & Literatura:
Discurso, Imaginário e Normatividade, Porto Alegre, Núria Fabris Editora, 2010, pp. 269-306, também no Boletim
da Faculdade de Direito, vol. LXXXV (2009), Coimbra, pp. 111-149 e muito especialmente «Law in/as
Literature as a- «Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Unavoidable Resistance to
Legal Scientific Pragmatism or The Fertile Promise of a Communitas Without Law?», in M. Paola Mittica
(ed.), Law and Literature. A Discussion on Purposes and Method. Proceedings of the Special WS on Law and Literature held
at 24th IVR World Conference in Beijing [pp. VII +145], publicado on line em Setembro de 2010, pp. 22-42,
disponível em http://www.lawandliterature.org/index.php?channel=PAPERS-ESSAYS, agora também em
B. Wojciechowski, P. Juchacz, K. M. Cern (eds.), Legal Rules, Moral Norms and Democratic Principles, Peter Lang,
Frankfurt am Main, 2013, pp. 257-282.
118 «Legalism’s inability in many cases to decide the outcome (…) and the related difficulty, often

impossibility, of verifying the correctness of the outcome, whether by its consequences or its logic (…), create
an open area in which judges have decisional discretion—a blank slate on which to inscribe their decisions—
rather than being compelled to a particular decision by “the law”. How [the judges] (…) fill in the open area is
the fundamental question that this book addresses, though lurking in the background and occasionally
coming to the fore is the question how they should fill it in…» (Posner, How Judges Think, Cambridge Mass.,
Harvard University Press, 2008, p. 9).
38

Se é verdade que as (muitas e variadas) vozes destes discursos humanistas se empenham


eloquentemente, em nome do direito ou pelo menos a propósito do direito, em tentativas de
reinvenção da praxis e do discurso prático que possam resistir à hipertrofia da
Zweckrationalität, não é menos verdade que as respostas que constroem só conseguem impor-
se como alternativas plausíveis (com mais ou menos êxito) quando renunciam a este direito
— ou o diluem num continuum prático em que o seu projecto perde sentido e autonomia.
Como se tais tentativas nos condenassem enfim ao apelo de uma resposta ética, ou talvez
melhor, ao desafio de uma certa institucionalização política — o daquela institucionalização
política que, embora contingente, se possa dizer em condições de ouvir atentamente este
apelo.

Trata-se, na verdade, tanto para os discursos pragmático-funcionais como para os


discursos humanistas, de partir de uma aproblemática tese de indeterminação (de justificar a
indeterminação como um parâmetro decisivo da empresa interpretativa que se dirige aos
materiais jurídicos) e de a especificar numa sequência-cadeia de posições exemplares: (a) a
reprodução do binómio casos fáceis /casos difíceis (os primeiros a corresponderem à situação
metódica excepcional de uma moldura que permite só uma decisão possível); (b) a rejeição
da categoria de inteligibilidade sistema jurídico (cujas possibilidades são reduzidas às da
compreensão formalista); (c) a admissão complementar de um continuum entre materiais
jurídicos, que corresponde também a uma confusão deliberada entre principles e rules, principles e
policies; (d) a impossibilidade de justificar um problema metodológico autónomo.
Especificações que convergem por sua vez no reconhecimento de que os materiais
jurídicos delimitam um enquadramento-moldura de possibilidades equivalentes,
virtualmente inscritas na referida área aberta ou lousa vazia (blank slate) 119. O que significa que
a escolha entre estas alternativas há-de cumprir-se discricionariamente (levando a sério um
paradigma de decisão). Como se se tratasse de especificar diferentes efeitos previsíveis, mas
também de avaliar estes efeitos invocando um horizonte de intenções, expectativas e
possibilidades de determinação que são explicitamente não jurídicas — com arenas
propulsoras que poderão ir da ideologia partisan à crítica literária, da economia à música, das
ciências empírico-explicativas à estética, da ética à moralidade política.

119 Para um desenvolvimento do que (sem confundir os contributos de Kelsen e Posner, nos seus

horizontes de sentido inconciliáveis) entendo poder dizer um modelo de «moldura» ou «área aberta», veja-se a
reconstituição que proponho em «Jurisdição, diferendo e área aberta. A caminho de uma teoria do direito
como moldura?», cit., passim.
39

6. Etapas IV e V. Trata-se, como sabemos, de enfrentar o equívoco B e a sua


perturbante dissecção direito/moral ou o modo como esta afecta a autonomia do mundo
prático do direito. O que, como já vimos — e voltaremos a ver desenvolvidamente dentro
em breve (infra, Tempo II), num deliberado efeito de close up! — significa ter que atender,
com algum rigor analítico (e os pormenores exigíveis), ao confronto de argumentos que,
em torno da diferenciação interna do positivismo crítico herdeiro de Hart (um positivismo não
normativista, ele próprio comprometido com a representação metódica de uma área aberta) e da
reacção reorganizadora dos não positivismos (esta última compreendida como uma refracção da
dinâmica de diferenciação em causa), discute o problema da juridicidade / moralidade dos
princípios e a integração-objectivação destes no corpus iuris. Com um primeiro passo que, ao
ocupar-se deste debate enquanto tal, nos obrigue a ouvir atentamente (entre muitos outros)
os argumentos associados às teses da separabilidade de Waluchow, Coleman e Kramer e às
teses de separação de Raz e Shapiro (mas também às refracções procuradas por Postema na
New Natural Law theory de Finnis e Robert George e às tentativas de sistematização, com a
consequente identificação do campo não positivista, assumidas por Alexy e Massimo La Torre)
—…e a reunir pacientemente as peças do puzzle que os argumentos introduzidos vão
recortando (etapa IV, percurso 1). Com um segundo passo preocupado com uma articulação
plausível destas peças e com a discussão crítica de uma sequência aberta de tentativas de
composição — tentativas esta que, embora construídas a partir do contexto explícito do
debate do incorporacionismo, procuram (com menor ou maior) êxito distanciar-se deste e do
seu environment… e que nos levam de novo a La Torre e a Coleman (este numa
singularíssima auto-reflexão), mas também a Dworkin (muito especialmente a Justice for
Hedgehogs)… e ainda à herança de Fuller reinventada por Simmonds, bem como à
reconstrução da ética filosófica assumida por José de Sousa e Brito (etapa IV, percurso 2). Com
um terceiro passo enfim que, mantendo um diálogo permanente com os argumentos
reunidos nos dois percursos da etapa IV, nos exponha à necessidade de uma nova etapa
(etapa V)… e com esta a uma exploração do problema da autonomia do direito e do
pensamento jurídico que invoque explicitamente as possibilidades da tematização
jurisprudencialista — os desafios da reabilitação da filosofia prática e da virtude intelectual da
phronêsis projectados numa interpretação do mundo prático-comunitário e dos seus
compromissos, a exigência de reconstituir a especificidade do jurídico cultivando uma
abordagem metadogmática interna, a assunção plena da identidade cultural-civilazional do
direito enquanto forma ou modo de vida, last but not least, a experiência do problema-controvérsia.
40

7. Etapa VI. A etapa conclusiva expõe-se-nos sob o estímulo de duas perguntas-


-limite. A primeira pergunta a dirigir-se explicitamente à etapa V e à sua representação do
jurídico como forma de vida, para explorar uma tensão perturbadora entre continuidade e
contextualidade: estará a identidade do jurídico enquanto projecto-projectar — tão
explicitamente dominada pela perspectiva-estrutura do problema-controvérsia (ou por uma
experiência de justeza prática ou de justo concreto) quanto pela delimitação da responsabilidade
comunitária associada a uma dialéctica suum / commune — em condições de preservar a sua
continuidade (em ambientes culturais e institucionais distintos) sem nos condenar a uma
inteligibilidade formal ouprocedimental? A segunda a mobilizar a pluralidade das concepções
do direito experimentadas na resposta à misinterpretation (A) e a pluralidade das
compreensões da comunidade (ou do regresso à comunidade) invocadas na resposta à
misinterpretation (B)120 para interpelar a concepção jurisprudencialista e a plausibilidade-
pontualidade da ordem de validade com que esta compromete o direito: será o tempo de
pluralidade e de diferença em que vivemos compossível com uma proclamação (contextual,
mas nem por isso menos incondicional) de um direito autónomo121? Perguntas distintas
decerto, mas nem por isso menos sobreponíveis no seu núcleo e a admitirem como tal um
esforço de resposta comum. Esforço que passa por uma reconstituição crítico-reflexiva do
mundo humano do direito, ou mais rigorosamente pela tentativa de mostrar como este — ao
desenvolver modos de vinculação-vigência plurais e ao oferecer experiências diferenciadas
de constituição-manifestação, mas então também ao assumir uma tensão constitutiva
determinante entre um momento de validade (reconhecível na dialéctica valores/princípios) e um
momento material (constituído pelos factores da realidade histórico-social) — se nos impõe
em condições de enfrentar, com uma voz inconfundível — e com possibilidades de
institucionalização únicas (associadas a uma ordem-ordinans axiologicamente substantiva, se
não a um teleologismo de valores e fins)… —, alguns dos desafios maiores do discurso
prático do nosso tempo (desafios que o horizonte global deste discurso se limita a
considerar ou a manifestar-exprimir aporeticamente). Que desafios? Muito especialmente
aqueles que associamos aos binómios unidade intencional /pluralidade, pressuposição dogmática /
auto-reflexão crítica. Que possibilidades de institucionalização? Nuclearmente aquelas que
partem de uma experimentação dos princípios normativos como direito vigente (princípios como jus).
Assumir os princípios assim significa com efeito levar a sério uma dialéctica valores
/princípios cumprida na perspectiva do projecto prático-cultural do direito: como se se
120 Ver infra, cap. II, 3.1.2. , (b)’’, pp. 144 e ss.
121«À condição institucional cumpre proclamar o direito autónomo e realizá-lo incondicionalmente
como tal…» (Castanheira Neves, «O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do
direito», cit., , p.71).
41

tratasse de exigir uma emergência (histórica) dos segundos enquanto fundamentos de uma
condição específica de comparabilidade-tercialidade e de assim mesmo frequentar um
insuperável território de fronteira.

Aquele que nos expõe a uma conexão-tensão entre experiências de comunidade distintas
(e outros tantos contextos, ditos geral e especificamente jurídico) — se quisermos a uma
conexão entre dois diferentes modos de reivindicar-construir um sentido comunitário122. Mas
também e muito especialmente aquele que nos confronta com um processo permanente de
constituição-objectivação-realização: aquele que experimenta as objectivações normativas
(normativamente materiais) dos princípios enquanto as submete às exigências simultâneas de
uma dimensão axiológica (histórico-problematicamente aberta) — dimensão que postulam
(cuja experiência os constitui) e que no entanto não esgotam (porque esta os excede sempre
nas suas possibilidades normativas) — e de uma dimensão (vocação) dogmática
desoneradora («estabilizadora») — dimensão que os absorve como seu primeiro estrato e a
cujo desenvolvimento-sistema garantem por sua vez o dinamismo constitutivo de um
normans123.

Assumir os princípios assim significa também e ainda levar a sério a dialéctica


sistema/problema, reconhecendo que a dinâmica em causa, sem prejuízo da procura de
unidade que a ilumina, se cumpre por um lado graças a uma pluralidade de modos de
vinculação-vigência, distribuídos por estratos distintos — aqueles que as práticas de
estabilização dogmática constroem —, por outro lado graças à novidade irredutível a que
(através da conversão das controvérsias práticas em casos juridicamente relevantes) as
práticas de realização judicativa permanentemente nos abrem124.
Há-de ser precisamente a consideração pormenorizada de um dos estratos do
sistema (o estrato da realidade jurídica125) — porque nos autoriza enfim a explorar um

122 Para uma compreensão da relação entre estes dois contextos e uma oportunidade única de

experimentar o «absoluto histórico» dos princípios normativo-jurídicos (e o sentido da


autotranscendentalidade prático-cultural que se leva a sério no mundo do direito), importa ter presente a
analítica da intencionalidade normativa (em três níveis ou degraus) que Castanheira Neves tem desenvolvido
ao invocar uma certa consciência jurídica geral. Analítica que não iremos considerar, para cujas estações principais
no entanto imediatamente nos remetemos. São estas: «A revolução e o direito. A situação de crise e o sentido
do direito no actual processo revolucionário», Digesta, vol. 1º, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp. 207-222
(11.), «Justiça e direito», ibidem, 273 e ss., «A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido
(diálogo com Kelsen)», Digesta, vol. 2º,cit., pp. 174-179, «Fontes do direito», ibidem, pp.58-67 («O momento de
validade»), Metodologia Jurídica, cit., pp. 278 e ss., «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do
futuro», cit., pp. 63-65.
123Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, cit., pp. 155 e ss.
124 Cfr. o tratamento dos princípios como jus que desenvolvi em «Na “coroa de fumo” da teoria dos

princípios: poderá um tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», cit., pp. 412-421 (3.).
125 Cfr o tratamento da realidade jurídica que propus em «Jurisprudencialismo: uma resposta possível

num tempo de pluralidade e de diferença?», cit., pp. 168-171 (3.3.2.).


42

território privilegiado de explosão (e de enquadramento prático-normativo) da pluralidade,


mas também (et pour cause) porque (num paralelo irresistível com algumas das possibilidades
que, na etapa IV, vimos associadas ao tratamento incorporacionista da rule of recognition) nos
estimula a considerar esta realidade plural na sua relação constitutiva com os princípios
normativos — que abre a última das perguntas dirigida ao nosso auditório implícito. Aquela
que quer saber se — e até que ponto é que — a fragmentação (no limite do diferendo) que
afecta hoje tal realidade (multiplicando as situações institucionais e as comunidades
interpretativas) não ameaça afinal a própria manifestação constitutiva dos princípios —
aquela que se descobre in action na teia destas comunidades restritas e no jogo que, em cada
contexto histórico, as inter-relaciona —… ameaçando também, através dela, a pretensão
de unidade do sistema e no limite, a inteligibilidade autonomamente reconhecível do
mundo humano do direito ou do projecto que o ilumina126. Pergunta que ficará sem
resposta? Certamente que não. Porque há pelo menos um caminho que o primeiro leitor (sem
prejuízo de outras respostas do auditório real) deverá abrir. Aquele que nos leva a discutir as
possibilidades institucionalizadoras de um certo direito de juristas e estas sob o fogo da
circunstância presente. Para que a exigência de uma articulação lograda entre validade
comunitária e contextos de realização, entre unidade intencional e pluralidade discursiva (se não
mesmo entre clausura dogmática e problematização crítica) — dimensões todas elas
indispensáveis à tematização dos problemas da autonomia do direito e do pensamento
jurídico (e à identidade cultural-civilizacional que neles se cumpre) — encontre enfim a
oportunidade de uma determinação reflexiva e a consciência estabilizadora que a torna
possível127.

8. Sequência. Cumprida a exposição global das temáticas do curso, segue-se o


tratamento pormenorizado das etapas IV e V. O que, como já sabemos, significa ficcionar
um efeito de zoom e impor a concentração correspondente: não apenas para defender a
relevância dos conteudos temáticos em causa, também para antecipar-exemplificar a forma
do seu tratamento (e as possibilidades que esta há-de estar em condições de abrir).

126 Se chegarmos à conclusão de que a multiplicação das situações institucionais (e dos códigos que
estas mobilizam) suscita processos de realização-determinação incompatíveis com um sentido material (ou
com a partilha deste), o compromisso prático pressuposto e o próprio horizonte de validade comunitária
estarão certamente ameaçados. Uma ameaça que já não será certamente aquela que reconduz tal validade à
solução contingente de um puro consenso a posteriori, porque é já aquela outra que, reconhecendo a
impossibilidade deste consenso (ou de uma sua repetição lograda), apenas preserva a possibilidade-limite de
evocar uma tal validade ou o princípio que a especifica (e que na situação em apreço a representa) como se de
um puro nomen (mais ou menos apelativo) se tratasse.
127 Ibidem, pp. 171-174 (3.3.3.)
43

Tempo II

Etapas IV e V: o guião de um desenvolvimento possível. A distribuição esquematizada na


conclusão da etapa III propôs-se rejeitar uma misinterpretation frequente — aquela que
reconduz as pretensões de autonomia do direito e do pensamento jurídico à sua
inteligibilidade formalista (ou às versões fortes e fracas que esta autoriza) —, na mesma medida
em que nos abriu a possibilidade de reconhecer que o discurso jurídico contemporâneo,
não obstante a aparência daquela redução, enfrenta tais pretensões (quer se trate de as
dissociar ou de as unir, de as pensar positiva ou negativamente ou de conferir à sua
reconstituição um sentido mais ou menos explicitamente metadogmático) cultivando um
espectro sem precedentes de perspectivas, de intenções e de sentidos. É exactamente para
discutir essa pluralidade e para responder aos seus desafios — no limite decerto também
para submeter o binómio discursos juridicistas/ discursos da área aberta, nos termos em que o
sustentámos (enquanto estabilização-concentração possível da defesa e rejeição das pretensões
de autonomia) a uma interrogação radical — que proponho uma sequência de duas novas
etapas. Uma sequência que rompe com as etapas anteriores? Uma sequência pelo menos
capaz de suspender a organização binominal que orientou a resposta ao equívoco A), e isto
enquanto nos incita a explorar as possibilidades do contraponto positivismo / não positivismo e
admite assim uma recuperação possível destas. Seja como for, uma sequência de duas
etapas que, não obstante tal suspensão (e o aparente desvio excursivo que a justifica), nos
deverá proporcionar uma oportunidade reflexiva privilegiada para problematizar aquela
pluralidade (e abrir a possibilidade de uma resposta)… mas também e ainda (e
principalmente, como também já sabemos!) para esclarecer um outro núcleo de interpretações
equivocadas, não menos recorrente — precisamente aquele que se nos impõe com a
sobreposição do contraponto juridicidade / moralidade e com as pretensões de totalidade que
o justificam (misinterpretation B).
O que se segue é uma tentativa de mostrar mais de perto o que poderá ser esta
sequência (e de assim mesmo justificar a relevância da sua exploração). Uma tentativa,
recorde-se, que nos obriga antes de mais a mergulhar no debate sobre a incorporação dos
princípios aberto pela teoria do direito anglo-saxónica (muito especialmente pelas reacções
de Hart e do positivist camp… às críticas de Dworkin!)… e então e assim a enfrentar a
44

conventional wisdom que «taxinomicamente» o perpetua128 (e que o fecha) numa tensão


aparentemente inevitável entre Rechtspositivismus e Rechtsmoralismus129 —, só que a enfrentar
também a complexa sobreposição de planos e de problemas a que esta clausura (com a sua
apetência de assimilação de outros debates, inscritos noutros contextos culturais e
institucionais) efectivamente nos condena (etapa IV, percurso 1) [1.]. Para depois dialogar
com algumas tentativas de esclarecimento e de superação do debate em causa e dos seus
quizzes (se não quibbles!), tentativas que nos aparecem todas elas (ainda que em graus
distintos) prisioneiras do horizonte reflexivo (e das categorias de inteligibilidade) que se
propõem desconstruir (etapa IV, percurso 2) [2.]. Diálogo que (concertado com os
argumentos reunidos pelo próprio debate) nos permitirá abrir a resposta prometida,
impondo-nos uma nova inflexão do percurso e determinando uma nova etapa (etapa V),
etapa na qual, como também já sabemos, se trata explicitamente de apostar numa
compreensão da autonomia do direito e do pensamento jurídico inspirada pelas
possibilidades do jurisprudencialismo — compreensão da autonomia esta que (apenas para
manter a tinta do debate anterior!) se pode dizer que corresponde a uma tese (!) não
positivista de separação juridicidade/ moralidade (capaz de distinguir os mundos práticos do
direito e da moral, na mesma medida em que distingue os correspondes problemas e a
perspectiva geradora que estes, só por si, determinam) [3.].

1. Etapa IV (percurso 1). Disse atrás que a presente inflexão de sentido — e o


exercício de concentração que esta exige — deverá cumprir-se, se não subalternizando a
preocupação condutora com o problema da autonomia (preocupação que, pelo contrário,
justifica no limite uma tal inflexão!), pelo menos suspendendo um tratamento directo da
pretensão correspondente (e concedendo uma oportunidade reflexiva a outras tensões e às
distribuições que analiticamente estas legitimem). Convirá no entanto desde já acrescentar
que é sem soluções de continuidade apreciáveis que tal suspensão emerge do esquema de
organização que fomos construindo… e muito especialmente da exigência (em que tal
esquema se precipita) de, separando cuidadosamente as águas, concentrar num território

128 «Contemporary jurisprudence has been dominated by an unhelpful interest in


taxonomy. A conventional wisdom has grown up around these projects (…).Two marks of a mature field of
inquiry are that its central problems are well-formulated and that its conventional wisdom is sound. Even in
the most mature fields, however, the conventional wisdom can sometimes be misleading and the central
problems poorly cast. Unfortunately, this is the state of affairs in analytic jurisprudence. Progress can be made
only if much of the conventional wisdom is displaced and its central questions are reframed » [Coleman, «The
Architecture of Jurisprudence – I », The Yale Law Journal, 121, nº 2, 2011, disponível em http://www.yalelaw
journal.org/images/pdfs/1009.pdf (extraído em Agosto 2012), início do Abstract e p. 5].
129 Neste sentido, ver Peter Koller, «Der Begriff des Rechts und seine Konzeptionen», in Brugger,

Neumann, Kirste (Hg.), Rechtsphilosophie im 21. Jahrhundert, cit., pp.157-158.


45

comum — iluminado (demarcado) precisamente pela rejeição (explícita ou implícita) da


referida pretensão de autonomia — todas aquelas possíveis concepções do direito e do
discurso jurídico que, sem prejuízo das suas diferenças (e das intenções e recursos hetero-
-referenciais que mobilizam), culminem num paradigma de decisão — entenda-se (não será
preciso recordá-lo!), numa compreensão do modus operandi do juiz justificada pela
impossibilidade de encontrar uma resposta jurídica para os casos difíceis.
É assim decerto porque a presente etapa há-de ocupar-se com um debate situado
(nascido do confronto Hart /Dworkin), debate este que, ao reinventar o confronto
positivismo /não positivismo — e ao mobilizar como recursos privilegiados a relação juridicidade
/ moralidade e as possibilidades de defesa ou de rejeição de uma tese de separação conceitual
(entenda-se, como veremos, de uma tese que sustente que a identificação do direito vigente
se cumpre sem recorrer a moral elements ou moral concepts) —, se nos impõe antes de mais
como uma discussão do problema dos princípios :
(a) uma discussão do problema da juridicidade / moralidade dos princípios…
(b)… que o seja também , indissociavelmente, do seu modus de vinculação-vigência
e do correspondente processo de integração-objectivação no corpus iuris (dito de
incorporação).
Importando ainda acrescentar em relação a tal incorporação…
(c)… que, em primeiro lugar, esta poderá discutir-se referindo-se quer a um papel
dos princípios como autêntico direito vigente (como normas jurídicas, dir-se-á não menos
aproblematicamente!) quer a um desempenho destes apenas enquanto critérios de validade
(de possíveis normas), como tal inscritos na regra de reconhecimento …
(d)… e que, em segundo lugar, o processo de integração-objectivação em causa
encontra o seu plano de manifestação exemplar nas práticas sociais da realização
jurisdicional — e na discussão da relação destas com o comportamento-behaviour dos
correspondentes officials —, remetendo-nos assim, inevitavelmente, para o problema da
criação (limitada) do direito exigida pelos casos difíceis (esta aproblematicamente concebida como
discretion).
Como se ao fim e ao cabo se tratasse de, ao perguntar pelo «lugar do direito» (law’s
place), postular (como já anunciei atrás) uma alternativa inescapável — autorizando como
únicas respostas possíveis por um lado a defesa de um continuum com «outras práticas» e
«formas de organização social», por outro lado a exigência de um continuum com a moralidade
(that is, whether law is best understood by seeing it as continuous with other social practices and forms of
46

social organization or whether instead it is better understood by seeing it as continuous with morality 130) —,
sem deixar de simultaneamente se reconhecer que uma tal inescapabilidade (enquanto
impossibiliadade de uma resposta autónoma baseada na experiência do direito vigente)
corresponde afinal, recto itinire, à necessidade de enfrentar os casos difíceis — coincidindo
assim (et pour cause) com a mobilização inevitável dos interstitial powers da jurisdição…
O que nos basta para perceber que o problema a ter conta (na implacável
articulação, se não sobreposição de todos estes planos) nos expõe inequivocamente à
herança de Hart… e neste sentido à exigência de reconhecer um positivist camp que,
rejeitando a redução dos cognitivismos empíricos, não menos inequivocamente recusa a
«redução lógico-formal» dos puros normativismos e outros formalismos (e, por maioria de razão, a
pretensão de autonomia associada ao paradigma da aplicação do normativismo dogmático)131. Um
positivist camp ele próprio comprometido com a representação metódica de uma área aberta?
Importa acentuá-lo. Sem esquecer as tensões que internamente o dividem (nomeadamente
quanto à articulação entre o plano da determinação teorética e o da realização metodológica
ou do jurisprudential method132). Mas sem esquecer também que o problema a enfrentar
nesta especialíssima tematização dos princípios nos reconduz, ainda sem soluções de
continuidade, a uma teoria da regra de reconhecimento (aos desafios que esta abre e às categorias
de inteligibilidade que a fecham, mas também às possibilidades de encontrar configurações
alternativas133)… e com esta tematização também inevitavelmente à discussão das
possibilidades de reacção-resposta (mais ou menos surpreendentemente) justificadas pelo
Postscript de The Concept of Law134.
Não se trata com efeito apenas de ter presente que Hart concebe a referida second
order rule (enquanto identifica a característica ou características gerais das primary rules) como

130 Esta pergunta pelo law’s place é um temas (prometidos) da trilogia que Coleman inaugurou com o
percurso auto-reflexivo (profundamente autocrítico, como ainda veremos) de «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., pp. 2-80. Embora as formulações mobilizadas acima nos apareçam todas na versão
publicada deste primeiro volet [ver pp. 79-80 («D. Law’s Place»)], a articulação-composição destas reproduzida
em itálico no nosso texto, essa encontrámo-la (para já) apenas num draft do início do referido estudo
disponibilizado para circulação privada na First Conference on Philosophy and Law (Neutrality and Theory of Law)
ocorrida em Girona em Maio de 2010 (o qual, pela expressividade da composição em causa e pela relevância
desta para o nosso tema, não resistimos a citar e a parafrasear). Este draft está hoje de resto disponível em
http://www.te.gob.mx/ccje/Archivos/jules_coleman.pdf (extraído em Janeiro 2013) [cit. do texto na p. 3 ] e
http://www.law.yale.edu/documents/pdf/Intellectual_Life/Coleman_ArchitectureJurisprudence1.pdf (ex-
traído em Março de 2013) [citação reproduzida no texto na p.2].
131 Para uma acentuação exemplar do modo como a perspectiva exterior moderada de Hart (The Concept

of Law, second edition with Posrtscript, Oxford, Clarendon Press, 1994, pp. 88 e ss.) se mostra apta a assumir
a normatividade rejeitando tanto o reducionismo empírico de Austin, Bentham, Holmes ou Ross quanto o
normativismo crítico-transcendental de Kelsen, ver Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the
Common Law World, cit., pp. 279-291. Ver também infra, nota 451.
132 Ibidem, pp. 336-340 («Positivism and Jurisprudential Method»).
133 O que, como veremos, acontece tanto com Raz como com Coleman.
134 Hart, The Concept of Law, cit., pp. 238 e ss.
47

uma form of judicial customary rule… — entenda-se, como uma regra que se constitui e
manifesta enquanto se cumpre em práticas sociais reiteradas (de «aceitação» e de
«realização»), sendo estas práticas precisamente aquelas que traduzem operações de
«identificação» e de «aplicação» do Direito efectivamente cumpridas pelos tribunais (a form of
judicial customary rule existing only if it is accepted and practised in the law-identifying and law-applying
operations of the courts135). Trata-se também de tematizar o modo como, em nome de um
auto-denominado soft positivism136, o citado Postscript admite relacionar esta rule of recognition
com os principles. O que significa levar a sério a convencionalidade plena desta regra maior … e
então admitir que, para além dos critérios de identificação do jurídico (da validade jurídica)
determinados por um modus institucional autoritário, imputado ao exercício de uma voluntas-
potestas — critérios que o próprio Hart, invocando Dworkin, designa por pedigree criteria
(concerned only with the manner in which laws are adopted or created by legal institutions and not with their
content137) —, estejam à disposição das práticas de reconhecimento assim paulatina e
contingentemente construídas (e portanto também à disposição da regra que as
institucionaliza, na sua variabilidade histórico-social138) «critérios» (e «testes») de identidade-
-validade exclusivamente baseados na «conformidade» com exigências materiais (ditos,
também com Dworkin, interpretative test criteria), critérios que assim se identificam com (ou
que nos remetem para ) «princípios de justiça e valores morais substantivos», na mesma
medida em que se impõem às prescrições legislativas e às soluções da jurisprudência judicial
(ou a estas através dos argumentos situados que as convocam) como autênticos limites ou
filtros139 jurídico-constitucionais (in some systems of law, as in United States, the ultimate criteria of
legal validity might explicitly incorporate, besides pedigree, principles of justice or substantive moral values,
and these may form the content of legal constitutional restraints140)141.

135 Ibidem, p. 256.


136 Ibidem, pp. 247-248, 250-254 («Soft Positivism»).«[S]o my doctrine is what has been called “soft
positivism” and not as in Dworkin’s version of it “plain-fact positivism”…» (Ibidem, p. 250) .
137 Ibidem, p. 247.
138 Podendo evidentemente ser mobilizados ou não: «[I]t can be the case, though it need not be the

case»! (para o dizermos com Kramer, em Where Law and Morality Meet, Oxford University Press, 2004, p. 2).
139 A expressão é usada por Postema para identificar a posição que denomina por modest inclusivism:

«for example, principles of fairness, justice or fundamental decency might be part of law when they function
(in the practice of legal argument) as filters for the rest of the substantive norms of law…» (Legal Philosophy in
the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p. 465)
140 Hart, The Concept of Law, cit., p. 247. Ver também a referência às substantive limitations («que se

encontram consagradas nas federal constitutions dos Estados Unidos e da Austrália») no nº 4 do cap. IV, que,
como se sabe, aparecia já assim na 1ª ed. de 1961 [Ibidem, pp.71 e ss. («The Sovereign Behind the
Legislature»)]
141 «The rule of recognition may incorporate as criteria of legal validity conformity with (…) specific

(…) moral principles or substantive values. (…) [As] I have said, in addition to such pedigree matters the rule
of recognition may supply tests relating not to the factual content of laws but to their conformity with
substantive moral values or principles.(…) [This] interpretivist test (…) [corresponds to ] a complex “soft-
positivist” form of (…) a criterion (provided by a rule of recognition) (…) identifying principles by their
48

É esta discussão da relação entre a regra de reconhecimento e os princípios — iluminada


pela alternativa continuum com «outras práticas» / continuum com a moralidade (pela preocupação
de querer saber se podemos tratar como direito vigente de um «determinado sistema
jurídico princípios que se recomendam a si próprios com base exclusivamente nos seus
méritos morais»142)— que vai suscitar divisões no positivist camp… mas também justificar
outras tantas respostas e divisões no campo oponente — respostas que explícita ou
implicitamente se mostram (todas elas) incapazes de questionar a referida alternativa.
Que divisões? Para o problema que nos ocupa, sobretudo aquelas que, convocando
(concertando, quando não sobrepondo) as grelhas (interiores) de Waluchow, de Coleman e
de Kramer, mas também as (exteriores) de Postema, de Alexy e de Massimo La Torre, nos
permitem falar de positivismos excludentes, includentes tout court e includentes-incorporacionistas —
e depois (sempre como uma projecção-refracção, como que de segunda ordem, das três
primeiras) em não positivismos (eventualmente também, latissimo sensu, em jusnaturalismos)
excludentes, includentes e super-includentes. Também aquelas que, com Waldron e Campbell (mas
também Postema), dirigindo-se exclusivamente ao primeiro campo, nos autorizam a
contrapor um positivismo puramente descritivo ou conceptual e um positivismo normativo ou ético (ou
mais claramente, um positivismo que se sustenta apenas como teoria e um positivismo que
se defende também como uma tese normativa, como uma posição a dever ser «política, social e
moralmente encorajada»). Ainda aquelas que, mobilizando as sugestões de Postema, nos
autorizam a descobrir o campo não positivista opondo concepções transcendentes e imanentes143.
Porque é que cuidar, selectivamente embora, destas distinções e do mapa que estas
ajudam a traçar, se nos impõe neste momento como uma tarefa indispensável?
Continuando a socorrer-me das expressões escolhidas por Coleman, eu diria que o que
importa para o nosso percurso reflexivo não é tanto a oportunidade de reconstituir o
debate em torno do «lugar do direito» e o tecido analítico que o multiplica (na sua trama de
argumentos e contra-argumentos, alguns deles reversíveis) quanto a possibilidade de
reconhecer o papel que a citada alternativa, levada a sério na sua inescapabilidade (continuum

content not by their pedigree. (…) Dworkin would certainly reject my treatment of his interpretive test for
legal principles as merely the specific form taken in some legal systems by a conventional rule of recognition
whose existence and authority depend on its acceptance by the courts…» (Ibidem, pp. 250, 258, 265, 267) .
142 Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p. 459.
143 Todas estas distinções, com excepção da última, serão exploradas expressamente infra: ver 1.2.2.

(pp. 67 e ss.) e 1.3.2.-1.3.3. (pp. 84 e ss.). No que diz respeito a esta última (que estará implícita nos diálogos
com Fuller e Simmonds) [ver desde já infra, pp. 57, 121 e ss., 163 e ss.], recordo que tem a ver com o
contraponto entre não positivismos ocupados com a reconstituição de exigências imanentes às práticas
comunitárias e não positivismos assumidamente jusnaturalistas: neste sentido, ver Postema, Legal Philosophy in the
Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 154-156 («Immanent Reason»), 549 e ss. («Natural-Law
Theory’s Ambitions»).
49

com outras práticas sociais / continuum com a moralidade), desempenha nesse debate. Posso
acrescentar que se trata de reconhecer…
(a) por um lado, que tal alternativa nos interpela sempre a partir do segundo termo —
com a inteligibilidade dinâmica que tanto a rejeição quanto a defesa da relação com a
moralidade (e as diferentes gradações destas) por assim dizer instalam…—,
(b) por outro lado, que a consciência desta dinâmica (associada à ausência-rejeição,
implícita embora, de um terceiro caminho ou das condições que nos permitam pensá-lo) nos
proporciona uma perspectiva indispensável para identificar estes campos oponentes — para
descobrir, sem equívocos, que afinidades os preservam e que divisões internas se mostram
com estas compossíveis.
Significa isto, com efeito, confiar à tese da separação entre direito e moral — ainda que à
tese da separação apenas quando referida ao problema da identificação do conteúdo do direito144
(especificação esta que veremos da maior importância!) — uma exemplar tarefa delimitadora:
não só nem principalmente porque a sua defesa (ao aglutinar-absorver os contributos da
tese das fontes sociais e da tese da discricionariedade) nos apareça em condições privilegiadas de
garantir à tensão agonística com o exterior um núcleo de identidade facilmente reconhecível
(responsável pela preservação do positivist camp), também e muito especialmente porque a
possibilidade de fazer corresponder a esta defesa acentuações-«interpretações»
relativamente diferenciadas justifica outras tantas gradações internas — cada uma delas por
sua vez como um desafio a ter em conta na determinação dos limites com o exterior… mas
também (et pour cause!) na analítica de comparação-avaliação das concepções oponentes
(identificáveis como candidatos negativos).
É neste sentido que poderemos começar por dizer que todos os discursos
acantonados neste «situado» campo positivista convergem enquanto rejeitam a relação
juridicidade / moralidade como componente necessária dos critérios de validade enunciados
pela regra de reconhecimento — cuja relevância (descritivamente fixada) admitisse como tal
projectar-se no concept of Law —, divergindo no entanto já quando esta última projecção
conceitual e a discussão correspondente têm exclusivamente a ver com a mera possibilidade
desta relação e então e assim com uma consagração contingente (os positivistas includentes
defendem que são conceptualmente possíveis moral criteria of legality, os positivistas excludentes
rejeitam esta possibilidade). Sendo precisamente esta divergência — ou pelo menos as
distintas conclusions-claims que a vão tornar possível — que algumas reacções críticas
144 «According to my theory, the existence and content of the law can be identified by reference to

the social sources of the law (e.g. legislation, judicial decisions, social customs) without reference to morality
except where the law thus identified has itself incorporated moral criteria for the identification of the law…»
(Hart, The Concept of Law, cit., p. 269).
50

exteriores (a começar pelas de Dworkin e de Alexy!), como que construídas em bloco, não
têm contribuído para esclarecer. Que conclusions-claims? Aquelas que Waluchow
exemplarmente distingue (as a matter of conceptual necessity, the legal validity of a norm can never be a
function of its consistency with moral principles or values /it is conceptually possible, but in no way
necessary, that the legal validity of a norm is in some way a function of its consistency with moral principles
or value), atribuindo a consagração auto-subsistente da primeira ao que diz uma strong
separation thesis (legality and morality are necessarily separate from one another), reservando para a
defesa da segunda (também na medida em que relativiza logradamente a primeira e se torna
compossível como uma reformulação desta) a designação (mais comum) de separability thesis
(legality and morality are only separable, not necessarily separate)145. Com esta acentuação , o eixo da
distribuição clarifica-se, concentando-se nas possibilidades da inclusão e (ou) da incorporação e
na dinâmica que estas impõem, precisamente enquanto são assumidas e exploradas pela tese
da separabilidade [1.1] e liminarmente rejeitadas pela tese da separação [1.2.]146. O que não
dispensa uma alusão final à refracção desta dinâmica no campo não positivista [1.3.].

1.1. Nas possibilidades da inclusão tout court e (ou) da incorporação… enquanto são
assumidas e exploradas pela tese da separabilidade147? Importará reconhecê-lo, começando por
dizer que a consideração das possibilidades em causa — no seu equilíbrio de exclusão (mera
inclusão) ou de convergência (inclusão e incorporação) — não só nos permite autonomizar as
duas representações do papel dos princípios morais a que o Postface de Hart alude — e que no
âmbito deste já pudemos identificar (moral principles as criteria for validating legal norms /moral
principles as legal norms) —, mas também nos autoriza a «situá-las»… distinguindo assim dois
degraus contíguos de consagração da tese da separabilidade:

145 Waluchow, «Legal Positivism, Inclusive versus Exclusive», in E. Craig (ed.), Routledge Encyclopedia
of Philosophy, London, Routledge, disponível em http://www.rep.routledge.com.libaccess.lib.mcmaster.ca
/article/T064 (extraído em Julho de 2012). «[P]ositivismo jurídico exclusivo: por razões de necessidade conceptual a
determinação do que é Direito nunca poderá ser uma função de considerações morais; (…) positivismo
jurídico inclusivo: é conceptualmente possível, mas não necessário, que a determinação do que é Direito possa ser
uma função de considerações morais…» (Margarida Lamy Pimenta, «“Positivismo jurídico inclusivo”:
afinament ou afastamento do positivismo jurídico?», in Bárbara Cruz et al., Teoria da argumentação e neo-
-constitucionalismo. Um conjunto de perspectivas, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 276-277, aqui convocando
explicitamente Waluchow),
146 Formulações que priviligiaremos a partir de agora, precisamente com o alcance que Waluchow

lhes atribui, sem prejuízo no entanto da atenção que daremos infra às críticas (também, et pour cause,
autocríticas!) de Coleman: infra, 2.2., pp. 96-103.
147 Trata-se de combinar as formulações de Waluchow (separação /separabilidade) com uma distinção

que diz respeito às possibilidades da segunda: aquela que Kramer sustenta entre inclusive legal positivism e
incorporationism, o primeiro (positivismo includente tout court) a identificar a proposta de Waluchow (mera
inclusão), o segundo (incorporacionismo) a referir-se às propostas de Coleman e do próprio Kramer (inclusão
e incorporação). Ver muito especialmente Kramer, Where Law and Morality Meet, Oxford University Press,
2004, pp. 2-9 («Inclusivism, Incorporationism and Exclusivism»). Será este o significado-regra que
atribuiremos a tais formulações no texto do presente relatório.
51

α) uma separabilidade que se pensa apenas como inclusão enquanto se admite —


como traço (feature) contingente de uma possível ordem jurídica — que uma das condições
de validade-vigência, inscrita enquanto tal na regra de reconhecimento (e assim mesmo
identificada e «aplicada» pela prática das autoridades-officials), corresponda directa e
exclusivamente a uma pretensão de conformidade com princípios morais (moral values and principles
count among the possible grounds that a legal system might accept for determining the existence and content
of valid laws (…), a legal system’s rule(s) of recognition [can] contain explicitly moral tests or criteria for
the legal validity of (…) legislation148);
β) uma separabilidade que se pensa não apenas como inclusão (no sentido que
acabámos de considerar) mas também como incorporação, enquanto se admite — ainda
como traço (feature) contingente possível de «um sistema jurídico particular» (traço também
ele revelado-corroborado nas e pelas práticas de realização institucionalizadas e como tal
traduzido na rule of recognition correlativa) — que certos princípios morais ganhem eles
próprios juridicidade (possam auto-subsistentemente ser convocados e vincular-nos como
autênticas normas jurídicas) apenas por razões relativas ao seu próprio «mérito» (worthiness),
entenda-se, à sua «correcção» (correctness) ou «justeza» (soundness) enquanto exigências
morais… — e de tal modo que este «mérito» seja o único «teste» de que depende a sua
vinculação jurídica autoritária (a legal system can be structured by a Rule of Recognition which
effectively establishes that correctness as a moral precept is sufficient to render a norm binding as a law149).
Nenhum destes degraus nos aparece por sua vez tout d’une pièce. Várias são as vozes
neles envolvidas e distintas as acentuações (se não a intensidade) que privilegiam, sempre
em nome de uma tese de convencionalidade e das versões que esta autoriza.

1.1.1. É assim que a primeira das consagrações da separabilidade (positivismo


includente propriamente dito) [α)] encontra como correlatos permitidos práticas de
reconhecimento com extensões distintas, admitindo tanto uma institucionalização de
condições de validade-vigência dirigida apenas a algumas normas, quanto uma institucionalização
destas relativa à experiência do sistema como um todo (principles of justice or substantive moral values
[forming] (…) the content of legal constitional restraints (…) as ultimate criteria of legal validity150) . É
assim também que a defesa de uma tese de separabilidade apenas como inclusão pode variar
entre versões mais modestas — identificadas com a condição necessária de uma objectivação
autoritário-prescritiva (na constituição ou na lei ordinária) da referida pretensão de

148 Waluchow, Inclusive Legal Positivism, Oxford, Clarendon Press, 1994, p. 82.
149 Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., p.25
150 Hart, The Concept of Law, cit., p. 247.
52

conformidade (versões ditas de incorporation as enactment) — e versões menos modestas, nas


quais se incluem a lição principal do corpo de The Concept of Law (retomada no Postscript sob
a divisa de um soft positivism), mas também os importantes desenvolvimentos de Waluchow
— versões que privilegiam decerto a citada objectivação como se esta correspondesse à
prática habitual (tanto mais que o problema a ter em conta é nuclearmente o da
interpretação da Constituição), não deixando no entanto de a tratar apenas como uma
possibilidade151.

1.1.2. Sem soluções de continuidade abruptas (tanto mais que concertam a inclusão
estrita com uma autêntica incorporação), as gradações preferidas pela segunda concepção
da separabilidade [β)] — aquela que se abre com a alusão de Hart aos principles e que se
cumpre com as propostas decisivas de Coleman e de Kramer152 —, essas substituem as
acentuações relevantes, consumando no espectro em causa (ou na relevância dos seus
termos) uma espécie de inversão dinâmica. É que não se trata já de situar relacionalmente
inclusivismos mais modestos e menos modestos, mas de partir do acento tónico contrário para
relacionar gradativamente inclusivismos-incorporacionismos mais robustos e menos robustos.
Ora esta inversão é tanto mais exemplar quanto é certo que o argumento que a
determina mobiliza como warrant uma reacção-resposta (exemplarmente clara!) às
perplexidades do degrau anterior: trata-se, com efeito, de esclarecer que um
incorporacionismo autêntico ( e o processo de inclusão que lhe vai associado ou que define
o seu degrau precedente) não exige nunca, como condição de vigência, que o critério moral
contingentemente incorporado no corpus juris — manifestado pelas práticas
institucionalizadas de identificação ou de aplicação (officials’ law-ascertaining behaviour) desta ou
daquela regra de reconhecimento — seja por assim assim dizer formal e autoritariamente
objectivado numa prescrição legal ou numa decisão judicial (none of my arguments in support of
Inclusive Legal Positivism has implied that any moral criterion in this or that Rule of Recognition must be
expressed in some explicity form such as a statutue or a constitutional provision or a judicial opinion153)154 .

151 Neste sentido, cfr. Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p.
465, nota 5.
152 Sem prejuízo de o incorporacionismo robusto de Coleman, seriously taken, levar como que a uma

superação da tese da separabilidade ou pelo menos a uma subordinação desta à tese dos factos sociais: ver desde já
Coleman, «Beyond Inclusive Legal Positivism», Ratio Juris, vol.22, nº 3, pp. 359 e ss. Ao longo do nosso
percurso, tornar-se-á de resto indispensável, como veremos, distinguir «dois» Coleman: o primeiro como
interlocutor decisivo do debate, o segundo (aberto por «Beyond Inclusive Legal Positivism» e confirmado em
pleno pelo primeiro volet da «Architecture of Jursiprudence») a impor-se-nos para além deste debate ou a
esboçar uma tentativa para superar as suas «confusões». Reservaremos para o segundo um tratamento
autónomo [infra, 2.2., pp. 96 e ss.], sem prejuízo de anteciparmos algumas das suas formulaçãoes mais
rigorosas (sempre que tal se revele indispensável para perceber melhor o primeiro).
153 Kramer, Where Law and Morality Meet, p. 25
53

O que não constitui evidentemente um pormenos: uma vez esclarecido este pressuposto, as
divisões-gradações deixam de se construir em função da solução de fronteira da inclusion by
enactement (uma solução vulnerável decerto, porque facilmente assimilável pelas propostas
menos radicais do positivismo excludente155), passam antes a tematizar directamente a Rule of
Recognition — o que significa decerto permitir que a dinâmica condutora passe a
responsabilizar directa e autonomamente as propostas includentes. Como se, por um lado, no
plano interno, se tratasse de discutir o problema dos limites de conteúdo desta regra (ou das
práticas que lhe estão associadas) — e neste sentido também os modos mais extremos ou mais
moderados de incorporacionismo [1.1.2.1.]; como se, por outro lado, no plano externo, se tratasse
tanto de (numa frente explícita com os não positivismos, a começar pelo de Dworkin)
confirmar a importância da referida regra e do seu filtro convencional (upholding the Rule of
Recognition) ou da tese que os sustenta (to pursue (…) a wide-ranging defense of the Rule of
156
Recognition thesis) , quanto de — numa nova interpelação do positivismo excludente, esta
certamente livre da vulnerabilidade da primeira (porque decisivamente afastada das suas
fronteiras e das soluções de compromisso que estas autorizam) —, enfrentar recto itinere o
problema da tese dos factos sociais e das concepções que esta autoriza [1.1.2.2.].

1.1.2.1. A primeira tematização — decerto a mais produtiva para o problema que


nos ocupa (a cujas especificações analíticas temos assim que dedicar maior atenção!) —
leva-nos directamente a um dos dissídios que relevantemente opõem Coleman e Kramer157.
Com Coleman a defender que o conteúdo semântico da regra de reconhecimento (as a social convention
capable of imposing contentful criteria of validity158) se abre, sem limites pré-determináveis (e sem
eliminar desacordos fecundos), a todas as possibilidades que as «práticas» internas (as
«práticas que seguem a regra») — na medida em que reflictam-forgem um entendimento

154 «If the relevant officials treat a clause specifying certain conditions of substantive morality as

conditions of legality as part of the norm they apply in assessing conduct, then it is plausible that such a
clause is part of the relevant rule of recognition. If so, then moral principles are law of the relevant
jurisdiction; and their status as such depends on their content only…» (Coleman, «Beyond Inclusive Legal
Positivism», cit., pp. 367-368).
155 Como a de Shapiro: ver infra, 1.2.4., pp. 78 e ss.
156 Kramer, In Defense of Legal Positivism. Law Without Trimmings, Oxford, Oxford University Press,

1999, pp. 135-151 («Upholding the Rule of Recognition»).


157 Melhor dizendo, ao dissídio que o segundo constrói, enquanto dicorda da «amplitude radical» que

as formulações do primeiro atribuem às possibilidades do incorporacionismo: ver Kramer, Where Law and
Morality Meet, cit., pp. 26.
158 Coleman, «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», in Coleman

(ed.), Hart’s Postscript. Essays on the Postscript to The Concept of Law, Oxford, Oxford University Press, 2005, p.
130. Esta formulação compõe-se deliberadamente para combater um dos argumentos decisivos de Dworkin
contra a regra de reconhecimento, o qual sustenta, como é sabido, que há uma incompatibilidade insuperável
nestas duas componentes: identidade enquanto convenção (factualmente) social e capacidade de impor critérios de
validade com conteúdo.
54

nuclearmente partilhado e tratem a regra como um parâmetro de interacção autónomo —


forem constitutivamente reconhecendo(reflect[ing] a shared grasp of the rule they are applying159)160. E
com Kramer a fazer depender a juridicidade da mesma regra secundária (e a existência
enquanto ordem de direito da institucionalização que esta identifica) do respeito por limites
pré-determináveis — limites estes que, manifestando-se não menos exemplarmente em
concreto ou no plano-perspectiva dos efeitos concretos (at the level that matters most, the level of
concrete outcomes, the «bottom line»161), têm invariavelmente a ver com condições mínimas de
unidade ou uniformidade, entenda-se, de regularidade, de estabilidade, de consistência ou de coesão, se
não explicitamente com a pretensão racional de evitar-superar algumas das possíveis
controvérsias «morais» (a legal system must pass a certain thresold of regularity in its workings if it is
to exist as a legal system at all162).
Mais do que as teses que assim globalmente se contrapõem — com Coleman a
assumir a compatibilidade da regra de reconhecimento com uma hipótese extrema de incorporação
(entenda-se, com a possibilidade-limite, académica embora, de um direito vigente apenas
constituído por «princípios morais incorporados») e Kramer, reconhecendo embora a
correcção racional desta hipótese, a justificar pragmaticamente um incorporacionaismo
moderado (a defender a «possibilidade credível de sistemas jurídicos» nos quais o «direito
vigente» adequado ao tratamento dos «casos difíceis» seja constituído por «princípios
morais incorporados»)163 —, importam-nos no entanto os recursos analíticos que estas
teses (muito especialmente a primeira) mobilizam!

159 Coleman, The Practice of Principle. In Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory, Oxford, Oxford
University Press, 2001, p. 80.
160 Tendo em atenção esta abertura ou esta flexibilidade (de uma tese de convencionalidade levada

até às últimas consequências, acompanhada de um incorporacionismo também extremo), não nos espantará assim
que, sem deixar de permanecer fiel a uma tese de factos sociais, Coleman tenha vindo, ao longo do seu percurso
reflexivo (um dos mais estimulantemente autocríticos que conheço!), a relativizar (no que diz respeito ao core
claim do positivismo includente) a referência não apenas à tese da separabilidade (ponto a que já aludi!) mas
também à regra de reconhecimento (superando assim uma compreensão estrita desta última ou a rigorosa «matriz»
hartiana que, na identificação das suas componentes, começou por sustentar): admitindo falar (apenas) de
critérios de juridicidade /não juridicidade… e no limite («para além» mesmo desta referência!) exclusivamente da
indispensabilidade de uma actividade social de cooperação que, correspondendo à sua noção de social fact(s), se
mostre capaz de fixar estes critérios, entenda-se, capaz de «determinar os determinantes do conteúdo
juridico». É esta a lição imprescindível do recente (e perturbante) «Beyond Inclusive Legal Positivism» [ver
muito especialmente o nº 7 («Beyond Criteria of Legality»), cit., pp. 380-383], à qual (pese embora a
contenção analítica exigida a este relatório) não deixaremos de dar a atenção merecida. «[An] essential feature
of law (…) is that it involves some central, organizing, coordinating activities(…) [which] are are not
normative facts, (…)[which] are social facts (…), [and which] determine the determinants of legal content…»
(Ibidem, pp. 383, 384, nota 28).
161 Kramer, In Defense of Legal Positivism, cit., p. 143.
162 «Above that threshold, the system will be functional or efficient in a greater or lesser extent.

Below that threshold, however, it will be nonexistent —that is, nonexistent as a legal system — rather than
merely inefficient…» (Where Law and Morality Meet, cit., p. 28)
163 Ibidem, p. 6.
55

Se tivermos presente que a conclusion-claim defendida por Coleman se especifica no


entendimento de que a auto-subsistência prático-normativa da regra de reconhecimento (ou dos
critérios que nela se integram) é compossível com todos os fenómenos de desacordo
«moral» que digam respeito à sua extensão — precisamente aqueles que explodem nos
chamados casos difíceis (a rule cannot be defined by its extension (…) [and] judges may agree about what
the rule is but disagree with one another over what the rule requires, especially in controversial cases164) —,
perceberemos também que este discurso de compossibilidade invoca uma certa concepção da
referida regra (partilhável ao fim e ao cabo por todas as autênticas regras sociais), na mesma
medida em que mobiliza como materiais uma sequência analiticamente implacável de
distinções.
Que concepção da regra de reconhecimento (e da resposta aos problemas de incerteza
normativa que esta está em condições de orientar)? Aquela concepção que, acentuando a
sua índole convencional — mas também o seu carácter abstracto-proposicional (the rule of
recognition is a rule, and thus an abstract, propostional entity165) —, nos obriga a tematizar a relação
com os seus comportamentos e as suas práticas (que não são entidades proposionais)166… e então e
assim a tratá-la como uma estrutura ou como um parâmetro de interacção (framework of
interaction, coordination, planning, and negociating167)!

Estrutura-parâmetro esta que será irredutível aos fenómenos de convergência


empírica que a sustentaram no passado (the convergent behaviour fixes the rule, but does not determine
its content168), por um lado porque se identifica com (ou porque é alimentada por) um núcleo de
intenções normativas partilhadas e (ou) pelo state of affairs correlativo— um state of affairs que, ao
ser constituído por atitudes dos participantes e interacções entre estas169, se mostra assim
capaz de submeter o convergent behaviour e o seu padrão a um ponto de vista interno e a este como
a uma verdadeira atitude crítico-reflexiva170 (a rule of recognition exists when the relevant officials

164 Coleman, «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», cit., p.130.
165 The Practice of Principle, cit., p. 77
166 Para um esclarecimento do contraponto rule of recognition/ regularized behavior / rule-governed behavior

(ao qual não podemos aludir senão grosseiramente), é indispensável ter presente o desenvolvimento
proposto em The Practice of Principle, cit., pp. 77-83 (1.). As importantes implicaçãoes metodológicas desta
concepção constituem por sua vez o núcleo fundamental da lecture eleven («Legal Content, Social Facts, and
Interpretive Practice»), ibidem, pp. 151-174.
167 Ibidem, p.80, nota 12, p.157.
168 Ibidem, p. 83. «The mistake is to suppose that the semantic content of the rule of recognition is

determined by the range of convergent behavior…» (Ibidem, p. 80).


169 Ibidem, pp. 96-100, 157-158.
170 «The practice consists in a convergence of behavior and an internal point of view. (…) The

internal point of view is a necessary element of the practice of a rule of recognition, and is therefore itself an
existence condition of the rule. (…) There is no rule of recognition independent of convergent behavior
toward which participants take the internal point of view (…). The critical reflective attitude is the internal
point of view…» (Ibidem, pp. 83, 82).
56

apply certain standards for assessing the legality of conduct and adopt a critical reflective attitude (…) towards
their doing so171) —, por outro lado porque faz depender a especificação ou o preenchimento
logrado destas intenções de um processo temporalmente aberto de cooperação-negociação, do
qual não podem nem devem estar excluídas discordâncias e conflitos (the practice of applying
criteria of legality is best conceived as a shared cooperative activity (…), SCAs are familiar ways of
coordinating interaction among persons over a period of time, and admit of fundamental and penetrating
disagreement about how to continue the activity172)173.

Que distinções? Em primeiro lugar, aquela que contrapõe comportamentos meramente


convergentes e comportamentos orientados pela regra, aqueles a corresponderem a factos passados
conformes à regra (como tal empiricamente corroborados), estes a traduzirem práticas de
assunção-realização dessa mesma regra (identificada na sua autonomia) e a mobilizarem
constitutivamente o sentido normativo (intersubjectivamente partilhado e criticamente
reflectido) da sua projecção no futuro (a merely convergent behaviour (…) or regularized behavior
(…) which requires that officials’ past behaviour has accorded with the rule versus a rule-following
behaviour (…) or rule-governed behavior(…), [which] shares a grasp of how “to go on” or to “project” the
rule to cover futur behaviour174). Depois também aquela que contrapôe discordâncias (morais)
relativas à própria regra ou ao seu conteúdo nuclear (about what the rule or the convention is) e
discordâncias (morais) relativas à extensão dessa mesma regra ou àquilo que esta exige
enquanto esquema de solução para um problema concreto (about what falls under the rule (…)
or about what the convention requires in a particular case)175.

Com a conclusão inevitável de que só as primeiras discordâncias (porque não


permitem identificar a regra em causa e porque afectam assim a citada SCA e o núcleo de
intenções que esta partilha) são afinal incompatíveis com a defesa da rule of recognition (ou com
a convergência fáctica mínima que esta exige) como autêntica convenção social (officials can and do
disagree (…) about what [the rule] (…) requires of them (…) and this is perfectly compatible with the rule of
recognition regulating a conventional practice, and thus with the rule of recognition being a conventional

171 «Beyond Inclusive Legal Positivism», cit., p. 367.


172 The Practice of Principle, cit., p.80, nota 12, pp.157 e ss.
173 Concepção que, como se vê, pode perfeitamente manter-se (e manter-se em pleno) mesmo que

se admita superar uma noção estrita de regra de reconhecimento: o que como sabemos, acontece com o próprio
Coleman (ver supra, nota 160 e infra, 2.2.).
174 The Practice of Principle, cit., pp. 78, 80-81.
175 Prescindiremos do problema dos limites deste content (nas suas difíceis fronteiras com o problema

da extensão), prescindindo simultaneamente de reconstituir as variantes de formulação (nomeadamente


quanto ao uso da categoria content) alimentadas pelo percurso de Coleman: confronte-se neste sentido a
proposta de «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis» (cit., pp. 130-133, com
a importante nota 46) com a já citada lecture eleven de The Practice of Principle (cit., pp. 151 e ss. ) e ainda com
«Beyond Inclusive Legal Positivism» (cit, pp. 376-380, 384 e ss.) e «The Architecture of Jurisprudence - I»
[cit., pp. 44-71, 75 e ss. («Legal Content and Legal Semantics»)].
57

rule176), conclusão esta evidentemente acompanhada pela representação decisiva de que a


«moralidade não pode estabelecer (settle) o que é a convenção-regra, mas pode ajudar-nos a
determinar o que a convenção exige (requires) em cada caso particular» (many controversies
calling for or inviting controversial moral argument are understandable as disagreements (…) about what the
convention requires in a particular case)177 . The rule of recognition requires that officials converge on applying
relevant moral standards to assess legality, not that they agree on what applying those standards requires in
particular cases178.

Finalmente ainda aquela que distingue as condições de possibilidade-existência do


jurídico (nas suas repercussões categoriais) dos factores de (maior ou menor) eficácia da
sua regra de reconhecimento, inscrevendo nas primeiras a convencionalidade desta regra (the claim
that law is made possible by a rule of recognition that supervenes on a practice accepted from an internal
point of view is a conceptual claim) e acolhendo no diagnóstico dos segundos os fenómenos de
divergência ou de discordância na sua imediata (e inevitável!) inteligibilidade moral (a rule of
recognition’s efficiency varies with its controversiality (…), if controversy matters, it matters from the point of
view of law’s efficacy, not from the point of view of law’s possibility)179.

O que no limite significa enfim confirmar (agora contra as posições excludentes)


que a consagração da moralidade como condição da juridicidade (institucionalizada por uma
regra de reconhecimento), potenciando embora as referidas controvérsias de realização, não
é por isso menos compatível com uma tese de convencionalidade e então e assim com a
existência de uma autêntica (e plena) ordem de direito ou com a objectividade do concept que
lhe corresponde (a controversial rule of recognition, for example, one that embraces morality conditions of
legality (…) is compatible (…) with the Conventionality Thesis (…) and with positivism)180.

É desta conclusão (e dos compartimentos que esta protege e que as anteriores


distinções foram desenhando) que o incorporacionismo moderado de Kramer parcialmente
discorda — mobilizando argumentos que o aproximam (et pour cause!) das propostas do
positivismo excludente de Scott Shapiro (se não das de Raz)… e ao mesmo tempo
(veremos que sem qualquer paradoxo!) construindo soluções que não menos
exemplarmente o colocam na fronteira dos não positivismos imanentes (a começar pelo de
Fuller). Já sabemos que se trata de defender que há limites para a discordância manifestada

176 Ibidem, pp. 157-158.


177 «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», cit., p.131, nota 46.
178 «Beyond Inclusive Legal Positivism», cit., p. 376.
179 «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», cit., p. 133.
180 Ibidem, pp. 133-134, notas 47 e 48.
58

pelas práticas dos officials (mesmo quando esta diga respeito apenas a problemas de
extensão)… muito simplesmente porque a regularidade destas (enquanto práticas que
constroem-seguem a regra de reconhecimento) deve ser levada a sério não apenas como um
factor de eficácia (como Coleman expressamente exige), mas também como uma condição de
existência — o que para Kramer significa decerto insistir na «diferença qualitativa»
(categorialmente relevante) entre uma ordem marcada pela regularidade (by a significant measure
of regularity) e uma ordem caracterizada por uma ausência significativa desta (by very extensive
irregularity), concluindo que só na primeira (porque ultrapassa um determinado limiar de
coesão e de uniformidade) teremos condições para reconhecer um autêntico sistema
jurídico (a fairly substantial degree of regularity is essential not just for the efficiency of a legal regime, but
also for its very existence as such)181.
Conclusão que justifica um incorporacionismo (mais) moderado ou suave (a milder version of
the Incorporationist Rule of Recognition182) ? Importa acentuá-lo. Trata-se, numa palavra, de
completar a trama argumentativa, reconhecendo que a assunção em pleno de um
incorporacionismo robusto (as a throughoing version183) — baseado na «invocação e na aplicação
sistemáticas de princípios morais com fundamentos puramente substantivos» (on content-
dependent grounds (…) [, i.e.,] establishing that moral worthiness is the lone sufficient condition for the
status of norms as legal norms184) — nos faz correr o risco (tanto maior quanto mais complexa,
dinâmica e heterogénea for a sociedade em causa185!) de admitir uma institucionalização da
vida em comum (ou núcleos parciais desta) que identifique-confunda juízos-julgamentos
jurídicos e morais (every legal judgment is a moral judgment through and through186)… e que assim
abra portas a um casuísmo extremo (a respostas baseadas em atitudes morais, cuja justeza,
enquanto possível unique correctness, nunca poderá ser demonstrada187)…

181 Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., pp. 27-28.
182 Ibidem, p.31.
183 Ibidem Importa ter presente que o incorporacionismo robusto que Kramer privilegia como

interlocutor dos seus argumentos é menos rigorosamente o de Coleman do que uma radicalização
(construída) das possibilidades que este abre.
184 Ibidem, pp. 28, 29.
185 «Perhaps those problems can remain within manageable limits in a very small and static and

highly homogeneous social unit, where moral attitudes are widely shared…» (Ibidem, p.30).
186 Ibidem, p.28.
187 «What has been presupposed by those arguments is not the indeterminacy of moral-truth values,

but the frequent indemonstrability and attendant controversiality thereof. That is, although each moral
problem tackeld by Incorporationist officials may lend itself to a uniquely correct solution, the unique
correctness frequently cannot be demonstrated in a way that will elicit widespread agreement. Regardless of
the existence of objectively right answers, controversy will abound irrepressibly…» (Ibidem, pp.31-32).
59

Importando acrescentar que um tal casuísmo (manifestando-se com maior ou menor


intensidade e atingindo domínios da prática mais ou menos extensos188) se mostra, enquanto
tal, decerto incompatível por um lado com uma exigência de unidade criteriológica (such a Rule
of Recognition instructs officials to handle every case by applying the moral norms that produce the optimal
result in the circunstances), por outro lado com uma exigência de formalização (officials in a robustly
Incorporationist regime focus exclusively on the appropriate substantive resolutions of cases, rather than on
formal or procedure earmarks) … — e então e assim, numa palavra, incapaz de garantir às suas
práticas (na gradação adequada) as condições indispensáveis da juridicidade (their ostensible law-
ascertaining activities will very likely partake of too little regularity to be properly classifiable as law-
-ascertaining)189.

1.1.2.2. Se a discussão interior dos degraus do inclusivismo-incorporacionismo nos trouxe


um esclarecimento indispensável para entender o problema da separabilidade, situando-o (tão
irreversível quanto aproblematicamente)190 no contexto do diagnóstico de pluralidade-
-heterogeneidade exigido pelas sociedades contemporâneas — o que, como vimos,
significa associar a diversidade das atitudes e dos juízos morais aos casos difíceis ou às
controvérsias sobre a extensão das convenções sociais que estes impõem —, a possibilidade de
sobrepor ou de fazer convergir os argumentos até agora esgrimidos, para os assimilar como
elementos decisivos de frentes de argumentação voltadas para o exterior, confirma
decisivamente a extensão deste pressuposto ou o papel, não menos aproblemático, que este
desempenha em todo a discussão positiva ou negativa do continuum com a moralidade —
como se se tratasse afinal de reformular-reinventar (reconceptualizing) o problema da relação
juridicidade / moralidade, concentrando-o na questão de saber como «acomodar, do modo
mais persuasivo possível, a natureza e o alcance (scope) do desacordo juridicamente
relevante» (the possibility of disagreement about (…) the criteria of legality or the grounds of law), ou
porventura em termos analiticamente mais exigentes (que representarão já uma deslocação-
reconversão da anterior concentração191), como se se tratasse de discutir se (e até que ponto

188 O que significa que tal casuísmo pode também até certo ponto (mas só até certo ponto!) ser
atenuado por uma prática lograda de precedentes-exempla: cfr. neste sentido as alusões ao modicum (degree) of
(systematic) consistency que os officials tenderão a garantir (nas suas respostas) enquanto typical moral agents (Ibidem,
pp. 28-29). «Although a system (…) will leave some room for officials to pursue a certain degree of
consistency among their decisions, there are ample reasons for thinking that the consistency in practice will
be meager…» (Ibidem, p.29)
189 Ibidem, pp. 28-29.
190 Sem prejuízo do seu maior ou menor peso identificador (mínimo, como sabemos, na última etapa

de Coleman!)…
191 É certo que estas formulações sucessivas do problema (ou do núcleo de problemas) nos fazem já,

ex abrupto, participar do singular percurso autocrítico de Coleman. Sem prejuízo da atenção que estas ou
outras diferenciações justificam, creio no entanto que as exigências da presente etapa serão mais
adequadamente enfrentadas se admitirmos uma sobreposição-simplificação dos argumentos que
60

é que) a compreensão-experiência da juridicidade envolve uma tematização de limites e se


estes podem e devem estar convencionalmente fixados (in a way the question is whether the
distinction between the legal and the non-legal is a matter of criteria at all)192.
Sobrepor-simplificar os argumentos incorporacionistas — concentrando-os numa
espécie de núcleo duro ou de core claim dirigido em simultâneo aos oponentes exteriores (tanto
aos Dworkinian interpretivists e outros natural law theorists quanto aos exclusive legal positivists193)
— permite-nos, com efeito, neste momento, pôr o acento tónico numa convergência de
pretensões (que direi respectivamente de convencionalidade e de incorporação propriamente
dita), insistindo em simultâneo no sentido de (mera) possibilidade (ou de contingência) que
corresponde tanto a cada uma delas (autonomamente consideradas) quanto à convergência
que as associa — um sentido de (mera) possibilidade-contingência que as torna indissociáveis de
um diagnóstico do presente, se não mesmo da experiência das ordens ou dos sistemas
jurídicos que hoje conhecemos ou aos quais associamos essa característica de juridicidade
(como se as proposições que traduzem estas pretensões e a sua convergência fossem
acompanhadas apenas de uma referência contingente a um happens to be ou could be «no
nosso mundo» e não de uma exigência de verdade que as conceba como necessárias, muito
menos como categorialmente necessárias, «em todo e qualquer mundo»194). Que
convergência possível entre pretensões também possíveis? Muito claramente aquela que, nos
termos acima reconhecidos, autoriza o incorporacionismo a defender uma tese de
convencionalidade — capaz de iluminar uma social coordinating activity e os critérios de juridicidade
/não juridicidade que esta crítico-reflexivamente constrói e (ou) a regra de reconhecimento que
esta forja — , insistindo simultaneamente na plena compossibilidade de uma tal Master
Rule ou dos seus «sucedâneos»195 (sempre levados a sério como social facts) com a
consagração, pelas suas práticas (e pelas claúsulas que as traduzem), de autênticos critérios
substantivos — compossibilidade neste sentido tanto com a incorporação no direito vigente
de princípios morais quanto com as controvérsias indissociáveis dos seus contextos de

autonomizam o incorporacionismo e se admitirmos voltar esta para o exterior (numa frente que, como se
esclarece no texto, terá dois interlocutores opostos)…
192 Coleman, «Beyond Inclusive Legal Positivism», cit., pp. 360-361.
193 Estas formulações são também as preferidas por Coleman em «Beyond Inclusive Legal
Positivism», cit., pp. 385 e ss.
194 «The Architecture of Jurisprudence - I», cit., pp. 62-63, 66-67.
195 Esta última formulação (acentuando a importância das CSAs no sentido que já esclarecemos)

corresponde à evolução do discurso de Coleman a que nos temos referido: em «Beyond Inclusive Legal
Positivism», o nosso Autor renuncia efectivamente ao recurso da «rule of recognition» como afinal também à
tese da separabilidade enquanto elementos necessários para formular a central claim do incorporacionismo. Se
o faz é no entanto para expressamente reforçar a inteligibilidade social do jurídico: ver «Beyond Inclusive Legal
Positivism», cit., pp. 383 e ss. Voltaremos a este problema infra, 2.2., p. 101.
61

realização196. Como se se tratasse de reivindicar a possibilidade de o «conteúdo moral dos


princípios» ser por si próprio condição da vigência jurídica destes… sem ter que ceder a uma
reinvenção normativa da regra de reconhecimento (como aquela que na sua etapa inicial
Dworkin chegou a defender197)… e muito especialmente, sem ter que abandonar a tese dos
factos sociais (antes e em contrapartida reconhecendo uma oportunidade privilegiada de
reforçar e de esclarecer esta tese)…

Em termos manifestamente mais rigorosos (retrospectivamente iluminados pelas


aquisições de «The Architecture of Jurisprudence»), podemos dizer que se trata de sustentar
que, nas ordens jurídicas hoje (enquanto tal) vigentes, «só factos sociais» (entenda-se, só práticas
sociais coordenadas, crítico-reflexivamente constitutivas de uma possível regra de reconhecimento198)
estão em condições de «determinar que factos» — se apenas «factos sociais» tout court,
directamente reconduzíveis a comportamentos dos operadores-officials (facts about what legal
officials and others say, do, believe and intend), ou se também «factos ditos normativos, avaliativos ou
morais», a corresponderem a uma vigência auto-subsistente dos princípios e ao mérito
material dos juízos morais que estes orientam (facts about what is good, right, valuable, just, and
fair) — contribuem para que o direito vigente tenha o conteúdo (content) que efectivamente
tem»199.

Acentuar quer esta convergência quer este sentido de possibilidade é, com efeito, muito
relevante, uma vez que nos permite descobrir os interlocutores exteriores, sem prejuízo das
diferenças que os separam, a partir de um inequívoco common ground e enquanto o
frequentam…— quer dizer, enquanto rejeitam a convergência em causa, mas também
enquanto reivindicam (no todo ou em parte) experiências de necessidade!

196 « [W]hat matters is (…) the content of the rule of recognition (…) [:] moral principles can be

legally binding in a jurisdiction if there is a clause in the rule of recognition to that effect [;]such a clause
might make institutional features or substantive features of moral principles decisive (…); the status (…) of
moral principles (…) as law (…) depends on their content insofar as the rule of recognition makes the
content of such norms a condition of their legality » (Ibidem, pp. 367-368).
197 Ibidem, p. 375 e nota 18.
198 Continuemos ou não a identificá-la por este nomen. Ver desde já «The Architecture of Juris-

prudence - I», cit., pp. 61 e ss.


199 A atenção a esta dimensão de possibilidade-contingência leva Coleman (em «The Architecture of

Jurisprudence - I», cit., p. 65) a distinguir duas proposições («Only social facts determine which facts contribute
to the law having the content that it does» e «Necessarily, only social facts contribute to the law having the
content that it does…»)… e a defender a associação privilegiada do positivismo includente à segunda destas
proposições [«[W]ith the exception of Hart, I know of no inclusive legal positivist who holds that it is
necessary truth that the determinants of legal content are fixed by social facts. (…) All to my knowledge —
and certainly me in particular — introduce inclusive legal positivism as a way of characterizing positivism,
not as a necessary truth about law. Again, Hart may be the exception…» (Ibidem, pp. 66-67)] — ora isto num
confronto exemplar com a proposta de «Beyond Inclusive Legal Positivism», em cuja análise pressupõe
aproblematicamente a primeira ou uma formulação equivalente como core claim of Inclusive Legal Positivism [ILP!]
(«Necessarily social facts determine the determinants of legal content») [«Beyond Inclusive Legal Positivism»,
cit., pp. 384 e ss. ].
62

Sem prejuízo das diferenças que os separam, entenda-se, sem esquecer que o citado
common ground é defendido por cada um dos interlocutores invocando razões contrárias. O que
significa que a frente (dita) interpretativista (se não jusnaturalista!) há-de estar em condições
de sustentar que «necessariamente factos morais e sociais são determinantes do conteúdo
jurídico»… ou que pelo menos é possível que apenas factos morais contribuam para esse
conteúdo… e que a frente do positivismo excludente há-de por sua vez reivindicar que
«necessariamente apenas factos sociais são determinantes» desse mesmo conteúdo»… ou que
pelo menos é esta a possibilidade-alternativa reconhecível-experimentável nos presentes
sistemas jurídicos200.

A mobilização pelo incorporacionismo da tese dos factos sociais e a centralidade que


este lhe atribui (the core of legal positivism is the social facts thesis201) exigem no entanto um
esclarecimento complementar, que privilegie agora apenas o seu confronto decisivo com o
campo do positivismo excludente. Não se trata apenas de distinguir duas versões oponentes da
referida tese — ponto este que as anteriores considerações já acentuaram suficientemente e
para o qual as propostas de Coleman e de Raz oferecem formulações lapidares…

Com o primeiro a defender que os determinantes do «conteúdo» ou da «identidade»


do direito, determinados embora eles próprios exclusivamente por factos sociais (e pelos means ou
grounds que estes oferecem), possam ser também factos normativos, factos que assim traduzam a
incorporação de princípios morais (dependent reasons [i.e.,] (…) moral facts (…), [can] be among the
determinants of legal content202). Com o segundo a invocar uma certa compreensão do conceito
de direito (na sua relação necessária com uma pretensão de autoridade legítima) — se não do
papel deste direito enquanto «voz autoritária» de uma «comunidade capaz de acção
independente» (as partly constitutive of a political community)203 — para recusar que aqueles
mesmos factos morais (sem prejuízo da sua relevância204) possam impor tais princípios como
«parte do direito vigente» e de um «qualquer direito vigente» (if «incorporation» means legislating
or otherwise making a standard into a law of the relevant legal system by a rule which refers to it and gives it

200 Para uma reconstituição de todo este espectro de proposições ver «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., pp. 61 e ss.
201 «Beyond Inclusive Legal Positivism», cit., p. 383-384.
202 Ibidem, p. 372.
203 Raz, «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation. On the Theory of Law and Practical

Reason, Oxford. Oxford University Press, 2009, pp. 91 e ss., 99-102 («Law as the authororitative voice of a
political community»).
204 Veremos em breve qual!
63

some legal effect (…), [constitutional or statutory] (…) references (…) to morality or moral rights (…) do
not make those standards part of the law205)…

Trata-se também de identificar um argumento-desafio do positivismo excludente e de


perceber em que termos o incorporacionismo se mostra em condições de o enfrentar. Que
argumento-desafio? Aquele que, ao distinguir entre standards ou regras vinculantes das práticas
institucionalizadas (maxime da jurisdição) e standards ou regras juridicamente vigentes (partes
integrantes do corpus juris, da law of a community), sustenta a maior extensão do primeiro
conjunto, defendendo assim uma analogia perturbante que aproxima os princípios morais
jurisdicionalmente mobilizados das regras estatutários (vigentes nas empresas, nos clubes, nas
universidades) e de possíveis regras lógicas, máximas de experiência ou hipóteses de
regularidade científica, bem como das normas vigentes em «sistemas jurídicos estrangeiros»,
sempre que estas (as últimas sobretudo através de normas de conflitos) sejam por sua vez
também jurisdicionalmente convocadas: procurando mostrar precisamente que todos estes
padrões podem ser jurisdicionalmente vinculantes e precipitar-se em decisões autoritárias …
sem por isso mesmo constituirem (deverem ser incorporados como) direito vigente (part of
the law of the land206)207. Já no que diz respeito à reacção do incorporacionismo, posso dizer que
nos importa menos a confirmação em bloco que Coleman ensaia na sua resposta a Raz208,
do que aquela que Kramer constrói, distanciando-se decerto de Raz e de Shapiro… mas
também do incorporacionismo radical que atribui a Coleman. É que tal resposta constrói-se (a
favor da versão suave do incorporacionismo) como uma oportunidade privilegiada para tematizar

205 Raz, «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., p. 193.
206 «U.K. and U.S. statutes give legal effect to company regulations, to university statutes, and to
many other standards without making them part of the law of the United Kingdom or the United States.
Conflict-of-law doctrines give effect to foreign law without making it part of the law of the land. Such
references make the application of the standards referred to legally required, and rights and duties according
to law include thereafter rights and duties determined by those standards. But they do not make those
standards part of the law. They no more become part of the law of the land than do legally binding contracts,
which are also binding according to law and change people’s rights and duties without being themselves part
of the law of the land…» (Ibidem, pp. 193-194).
207 Leslie Green especifica este argumento de Raz acrescentando dois warrants importantes (ambos

de inspiração hartiana): os standards, embora indiscutivelmente vinculantes, não constituiriam autêntico direito
vigente, por um lado, porque não estariam sujeitos às regras secundárias de transformação vigentes na referida
ordem jurídica, por outro lado, porque não estariam sujeitos ao poder criativo dos orgãos judiciais (a uma
autêntica insterstitial discritionarity). «A conflict-of-laws rule may direct a Canadian judge to apply Mexican law
in a Canadian case. The conflicts rule is obviously part of the Canadian legal system. But the rule of Mexican law
is not, for although Canadian officials can decide whether or not to apply it, they can neither change it nor
repeal it, and best explanation for its existence and content makes no reference to Canadian society or its
political system. In like manner, moral standards, logic, mathematics, principles of statistical inference, or
English grammar, though all properly applied in cases, are not themselves the law, for legal organs have
applicative but not creative power over them…» (Green, «Legal Positivism», http://plato.stanford.
edu/entries/legal-positivism/, sec. 3). Cfr. também o comentário de Postema, Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Common Law World, cit., pp. 471-472.
208 Coleman, The Practice of Principle, cit., pp. 106-108.
64

a relação factos normativos /direito vigente (entenda-se, para discutir as fronteiras de relevância
que circunscrevem os primeiros ou o seu contributo para o conteúdo do segundo).
Bastando-nos aqui lembrar que, em coerência com a opção justificada por esta versão suave
— mas também dando uma atenção especialíssima ao lugar paralelo da experiência
consuetudinária, enquanto experiência indiscutivelmente constitutiva de um autêntico
direito vigente, nem por isso menos associada a uma emergência prático-social imanente,
livre enquanto tal da sujeição a transformações autoritariamente abruptas e deliberadas (few
if any legal theories deny that customary norms have the status of full-fledged laws when they are as such
invoked by judges209) —, a relação se concentra no problema da resolução dos casos difíceis e na
exigência de partir da perspectiva destes (levada a sério com um mínimo de regularidade-
-unidade210) para identificar as «propriedades» dos princípios incorporados (contrasting the
properties of grammatical rules or diction rules, clubs’ rules or foreign laws with the properties of moral
principles)211. Trata-se, com efeito, de reconhecer que os standards em causa estarão
disponíveis para ser incorporados como autêntico direito vigente (e não apenas como
critérios tornados juridicamente vinculantes) se conjugarem (se responderem
afirmativamente, em simultâneo, a) duas exigências (cada uma delas necessária, mas, por si
só, insuficiente): terão por lado que corresponder a uma índole normativo-realizadora, que,
numa lógica de fundamentação, os torne referências normativas directas da resolução dos
casos difíceis (decision-justifying standards) — o que os distingue, desde logo, das citadas regras
gramaticais ou de dicção (the facts that judges rely on the free-floating rules of grammar and diction does
not mean that those rules are legal norms212) —, terão por outro lado que aparecer ao official que
os incorpora livres de uma origem institucional autoritária (mais ou menos centralizada) e
da possibilidade de transformação contingentemente heterónoma que procedimentalmente,
em termos mais prescritivos ou mais consensuais, lhe esteja por assim dizer associada (free-
floating standards) — o que os distingue agora tanto dos estatutos das associações ou dos
clubes quanto dos critérios autoritário-prescritivos que integram ordenamentos
espacialmente concorrentes (in their substance, such rules and foreign laws do indeed lie entirely within
the deliberate control of people other than the officials of the legal regime L213) . Conjugação decerto
discutível e que (na actual experiência de pluralismo de ordenamentos jurídicos) deixa

209 Kramer, When Law And Morality Meet, cit., p. 39.


210 Ver por exemplo a distinção (de que não podemos cuidar aqui) entre hard cases where there are
uniquely correct ways of ranking the applicable moral principles e hard cases where there are no uniquely correct ranking, sendo
o referido ranking da responsabilidade da rule of recognition. Só em relação ao primeiro tipo de casos difíceis se
pode, com efeito, falar de uma autêntica incorporação dos princípios morais como direito vigente. Ver ibidem,
pp. 42-43.
211 Ibidem, pp. 35-43.
212 Ibidem, p. 41.
213 Ibidem, p.39.
65

decerto muitos problemas por resolver — tornando-se vulnerável a novas reacções


críticas214 —… mas que nos importa muito especialmente pelo estatuto que confere aos
princípios (sempre assumidos como normas), na sua relação (metodicamente) constitutiva com
os casos difíceis…

Um estatuto que aproxima os princípios jurisdicionalmente incorporados do costume


vigente (pela conjugação das características da inteligibilidade prático-normativa e da imanência
comunitária)? Já o sabemos. Mas que nem por isso menos os distingue (gradativemente) deste
costume, ao atribuir-lhes não só uma maior distância em relação às possibilidades da
intervenção autoritária, como também (et pour cause!) uma maior auto-subsistência em relação
à própria experiência comunitária — como se ao horizonte desta experiência (relativizando-a
assim inevitavelmente), tais princípios acrescentassem uma irredutível experiência de
convicção pessoal (individual convictions, no matter how pervaisively they may be harbored, are not the
products of formal enactments or authoritative decrees215) . O que é já visível nos princípios (ditos) da
moralidade positiva (positive morality consists in a mixture of customary beliefs /practices and withspread
convictions)… mas ainda mais visível nos chamados princípios da moralidade crítica (by definition,
they are principles that possess their morally binding force independently of their having been upheld by
anyone)216. Outras tantas distinções exemplares… e a exigirem uma resposta… como ainda
veremos!

1.2. A discussão do continuum com a moralidade não pode porém ficar por aqui,
ignorando o que (sempre com Waluchow) poderemos dizer uma tese de separação no plano
da «identificação» do conteúdo . É certo que o percurso anterior, ao tematizar o eixo da
inclusão — ao considerar o sentido das «estratégias» discursivas dos positivistas includentes (e
sobretudo dos incorporacionistas!), tanto na sua gradação/diferenciação internas [1.1.1.]
quanto na sua projecção exterior [1.1.2.] —, nos basta porventura para perceber o
overlapping consensus que as vozes do positivismo excludente constróem, não só enquanto
sustentam a projecção categorial da necessidade da separação mas também e muito
especialmente enquanto rejeitam a possibilidade de tratar exigências morais, na auto-
subsistência das razões que estas oferecem, como autênticos princípios jurídicos (moral
principles cannot enter into the law (…), [cannot] become elements of the law / necessarily, moral

214 Ver Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 472 e ss.
215 Kramer, When Law And Morality Meet, cit., p. 41.
216 Ibidem, pp.41-42.
66

principles are extra-legal, never to be counted among the propositions of law217). Para perceber o
significado desta tese de separação (libertando-a de equívocos fáceis) importa no entanto
frequentar um pouco mais este território. No fundamental (sem prejuízo de outros temas
possíveis), eu diria que importará esclarecer em que termos (e até que ponto) é que a
rejeição da incorporação, alimentada por uma tese de fontes sociais no seu sentido mais forte
(as a strong social thesis or sources thesis218), nos pemite continuar a considerar o binómio
continuum com as instituições sociais / continuum com a moralidade. Rejeitar a incorporação não
significa aqui, com efeito, ter que optar pelo primeiro termo da alternativa e romper com o
segundo (como à primeira vista se poderia pensar!), significa antes (sem qualquer paradoxo)
estar em condições de pretender-exigir, com um sentido embora de possibilidade-contingência
— tal como acontece de resto com o incorporacionismo (ainda que por razões e com
resultados distintos) —, uma autêntica solução de equilíbrio (uma solução que convoque em
simultâneo os dois pólos e que apazigue as suas tensões). Também aqui o caminho está longe
de ser único ou traçado num único plano.

1.2.1. Há desde logo um plano metadiscursivo, aproblematicamente recebido e


partilhado por todos os positivismos excludentes (menos interessante decerto porque menos
idiossincrático!), no qual se admite que as tensões em causa se apaziguam (e esclarecem)
quando arrumamos as suas dinâmicas em compartimentos estanques, com pretensões e
domínios de incidência distintos. Tornar a tese da separação juridicidade /moralidade
compossível com o reconhecimento do papel da moralidade no universo do direito (sem
renunciar à força da separação em causa e à teoria das fontes que a justifica) significa aqui,
217 Estas duas caracterizações da tese do positivismo excludente que agora nos importa são propostas

respectivamente por Kramer e Postema (When Law And Morality Meet, cit., p. 5, Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Common Law World, cit., pp. 358-359).
218 Para um confronto das teses forte e fraca da teoria das fontes (enquanto proposta de trabalho para

o seminário!), veja-se evidentemente Raz, The Authority of Law, second ed., Oxford/New York, Oxford
University Press, 2009, pp. 45 e ss. («Sources of Law») [«The difference between the weak and the strong
social thesis is that the strong one insists, whereas the weak one does not, that the existence and content of
every law is fully determined by social sources (…). I shall rename the strong social thesis “the sources thesis”
(…). A law has a source if its contents and existence can be determined without using moral arguments (but
allowing for arguments about people’s moral views and intentions, whicha are necessary for interpretation,
for example). The sources of a law are those facts by virtue of which it is valid and which identify its
content…» (Ibidem, pp. 46, 47-48)]. Vejam-se também os argumentos com que Waluchow (reconstituindo
criticamente o authority argument) se distancia desta strong thesis, aproximando-se do que Raz diz uma weak thesis
(concentrada exclusivamente nas condições da institucionalidade e da eficácia, estas compatíveis com uma
identificação da validade-vigência do direito baseada em argumentos morais): Waluchow, Inclusive Legal
Positivism, cit., pp. 82 e ss., 123-141. A propósito da tese das fontes, acrescente-se que Raz sistematiza o
debate que nos ocupa (o confronto positivismo excludente/positivismo includente/interpretativismo não positivista),
recriando um contraponto claríssimo entre três teses (the sources thesis: all law is source-based/ the incorporation thesis
: all law is either source-based or entailed by source-based law/ the coherence thesis: the law consists of source-based law together
with the morally soundest justification of source-based law): neste sentido ver «Authority, Law and Morality», Ethics in
the Public Domain, Oxford, Clarendon Press, 1994, pp. 210 e ss., 221-226 («The Coherence Thesis»), 226-230
(«The Incorporation Thesis»), 230-235 («The Sources Thesis»).
67

muito simplesmente, mobilizar o contraponto conceito de direito /ideia de direito e a


distribuição que este assegura — mobilizar, implicitamente embora, a tradição da
Rechtsideelehre ou da Rechtsphilosophie im engere Sinn (esta já como uma reflexão apenas ética ou
ético-filosófica)… —, descobrindo no binómio continuum com as instituições sociais / continuum
com a moralidade uma reformulação (concentração) plausível daquele contraponto… e então
e assim defendendo a necessidade de associar a moralidade — já sobretudo como
moralidade política ou social… e quase sempre sob as máscaras dos pensamentos que a
reconstroem (e que se dizem filosofia ou da política do direito)… — às possibilidades da
referida ideia (according to (…) the strong separation thesis, legality and morality are necessarily separate
from one another; moral argument can never be used to determine what the law is, but only what it ought
to be219).

1.2.2. Significativamente mais interessante — tanto mais que é responsável por


acentuar outra das distinções que abalam o positivist camp220 — é a compossibilidade entre a
tese da separação e a relação com a moralidade que Tom Campbell, Jeremy Waldron e Gerald
Postema, entre outros, reconstituem (e que os dois primeiros, sem a «permissão» do visado,
também atribuem a Raz221). Trata-se, com efeito — contra as opções de uma descriptive or
conceptual thesis (tal como a vemos exemplarmente defendida pelo methodological positivism de
Hart222… e reinventada pela pragmatic conceptual analysis de Coleman223) —, de invocar a
possibilidade de uma normative thesis about law… e esta como pretensão identificadora de
uma concepção do direito e do(s) discurso(s) jurídico(s) que se diz positivismo ético(-pres-

219A formulação deve-se (et pour cause!) ao inclusivista Waluchow: «Legal Positivism, Inclusive versus
Exclusive», cit., início da seccão 3. («Inclusive and Exclusive Positivism»).
220 Distinção a que apenas aludimos supra.
221 Tom Campbell, Prescriptive Legal Positivism: Law Rights and Democracy, London, Cavendish

Publishing, 2004, p. 248; Jeremy Waldron, «Normative (or Ethical) Positivism», in Coleman (ed.), Hart’s
Postscript, cit., pp.412, 431-433 (VIII) [ver especialmente as notas 7 e 66].
222 Basta recordar a primeira secção do Postscript («The Nature of Legal Theory»), The Concept of Law,

cit., pp. 239-244 [«My account is descriptive in that it is morally neutral and has no justificatory aims…»
(Ibidem, p.240)]. Vejam-se no entanto as discussões de Waldron (relativizando esta pureza com uma
reinterpretação da proposta de Hart) [«Normative (or Ethical) Positivism», cit., pp. 428-431 (VII)] e de
Postema (mostrando a compossibilidade da exigência descritiva do autor de The Concept of Law com a intenção
«prático-crítica» do seu positivismo, no seu compromisso político-moral com a individual freedom) [Legal
Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 336-340]. Sem esquecer o importante estudo
de Stephen Perry (outro conhecido normative positivist), intitulado precisamente «Hart’s Methodological
Positivism», in Coleman (ed.), Hart’s Postscript, cit., pp. 311 e ss (estudo que se propõe mostrar-nos que a
teoria do direito de Hart «não é moralmente neutra», embora o seu «compromisso com o positivismo
metodológico» o impeça de ir mais longe na compreensão da normatividade associada à juridicidade).
223Veja-se a discussão de «Negative and Positive Positivism» proposta por Waldron em «Normative

(or Ethical) Positivism», cit., pp. 413 e ss. Sem esquecer a esclarecedora discussão da normative jurisprudence em
geral (e de Stephen Perry em particular) proposta por Coleman em «Normativity and Naturalism», The Practice
of Principle, cit., 175-208. «If Perry’s arguments fail to capture the actual arguments that underwrite Hart’s
commitments to these salient features of law — its commitment to rules, the internal point of view, and the
guidance function — they cannot support a claim for a more general normative jurisprudence …» (Ibidem, p.
207).
68

critivo)224 ou normativo225, se não democrático (e que, mais apropriadamente, poderíamos dizer


regulativo ou programático)226.
Como as designações propostas tornam claro, o plano metadiscursivo que aqui se
explora é menos o das características da juridicidade do que o das virtudes ou méritos ético-
-políticos da abordagem positivista e (ou) das teses que a sustentam : méritos que não podem
determinar-se considerando apenas a maior ou menor plausibilidade analítica destas teses
(embora não deixem de se reflectir naquela e de condicionar o conteúdo destas227) … e que
por isso mesmo são experimentados ou corroborados dando atenção a efeitos normativo-
-sistémicos… — efeitos nos quais se incluem os da «previsibilidade», da «determinabilidade»,
do «contrôle do poder», da «utilidade pragmática da autoridade», da «coordenação social», da
«estabilização das expectativas», da «superioridade da legislção», se não, recto itinere, o da
preservação-consolidação da rule of law e o do aprofundamento da democracia228.
Tratar a relação juridicidade /moralidade à luz desta abordagem normativa ou prescritiva
significa, com efeito, defender que a tese da separação (no seu sentido mais forte, vinculada à
teoria das fontes do positivismo excludente) deve ser mantida. Mantida… invocando-se que tipo
de razões? Não decerto já razões categoriais — muito menos razões categoriais auto-
-subsistentes (razões de pure analysis, que a intenção de neutralidade metódica de um puro

224É a proposta de Tom Campbell: para além da obra citada (na qual a designação oscila entre ethical
e prescriptive legal positivism), ver também The Legal Theory of Ethical Positivism, Aldershot, Dartmouth, 1996,
passim (esta fiel ao primeiro rótulo). «Although I now tend to use the term “prescriptive legal positivism”
(and sometimes, to distinguish it from the authoritarian Hobbesian tradition, “democratic positivism”),
instead of “ethical positivism”, this is a loss insofar as the label “ethical positivism” helps to bring out an
important aspect of the theory, namely the thesis that a legal system conforming to the ideals of prescriptive
legal positivism cannot operate without ethical practices governing the behaviour of those who administer
and those who are subject to the system…» (Prescriptive Legal Positivism, cit., p. 11).
225 Reconhecendo embora a possibilidade de confusão com a noção de positivismo normativo (por

contraponto com um positivismo empírico), é esta a designação preferida por Waldron: «Unfortunately (…), that
term has also been used in recent years to describe a different thesis—namely, the version of legal positivism
that identifies law with norms (as opposed to brute facts about power, commands, and sanctions). On this
account, the theories of H. L. A. Hart and Hans Kelsen qualify as versions of normative positivism even if
they are not in themselves normative positions. (…) The term “ethical” seems [however] unsatisfactory to me
(…) In this paper I shall mostly use the label “normative positivism”, despite the possibility of confusion…»
[«Normative (or Ethical) Positivism», cit., pp. 411-412].
226 Postema confere ao contraponto normative / conceptual um sentido significativamnte mais amplo,

compossível com divisões tanto no território positivista —no qual este nasceu (precisamente como um
contraponto entre normative positivism e methodologically analytic positivism) quanto no território não positivista
[«The methodological distinction cuts across the entire jurisprudential spectrum, since one can imagine
strictly conceptual arguments for a conception of law along natural-law lines as well as a normative argument
for a strictly positivist conception of law…» (Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law
World, cit., p. 338)]. Ver também ibidem, pp. 565-575 (a propósito da normative jurisprudence de Waldron).
227 Ver muito especialmente Waldron, «Normative (or Ethical) Positivism», cit., pp. 419-422 (IV). A

referida interdependência (defendida versus Coleman) refere-se precisamente à impossibilidade de distinguirmos


duas etapas estanques, a primeira a corresponder a um puro conceptual account of law (uncontaminated by normative
considerations), a segunda a traduzir a opção de um normative theorist.
228 Ibidem, pp. 432-433. Ver também Campbell, Prescriptive Legal Positivism, cit., pp. 269 e ss.

(«Democratic Aspects of Ethical Positivism») e Postema, ob. cit., pp. 566 e ss. (caracterizando o pensamento
de Waldron).
69

cognitivismo pudesse por inteiro justificar). Antes razões morais ou de moralidade política229
(alimentadas por expectativas sociais e corroboradas por outros tantos efeitos). Aquelas que
(para o dizermos com Waldron) nos revelam tal tese como nuclearmente boa (a good thing), se
não «indispensável» (something to be valued and encouraged)230…

O que para Waldron significa frequentar um espaço lógico intermédio (a little bit of in-
-between)… e então e assim (uma vez mais sem paradoxo!) admitir que se possa partir da
condição-diagnóstico de um positivismo negativo e da sua ordem de possibilidade-contingência
— um diagnóstico que Coleman assume (constrói de toutes pièces) como uma condição de
inteligibilidade da opção includente… —… para, em alternativa, prescrever regulativo-
pragmaticamente (as a matter of normative pragmatics) um positivismo excludente autêntico (normative
positivism assumes negative positivism and prescribes exclusive positivism)! Como se se tratasse afinal
de reconhecer que não é categorialmente impossível admitir que alguns «juízos jurídicos»
dependam da «verdade» (do mérito material) de determinados juízos morais (aqui teríamos o
core claim do positivismo negativo), sustentando de imediato (com um rigor implacável) que
os únicos moral judgments ou affirmative values de que podem depender os juízos jurídicos são
no entanto afinal… aqueles (e apenas aqueles) que as teses excludentes — e muito
especialmente a tese da separação — estão em condições de garantir, de desencadear ou de
favorecer (normative positivism might therefore be read as a position that condemns the inclusive possibility
that negative positivism leaves space for)231. Não sendo outra de resto a opção justificada por Tom
Campbell (the nature of ethical positivism is prescriptive hard positivism232)233 quando defende que,
contra as abordagens analíticas tradicionais ([the] old style analytical theory), importará tratar a
concepção positivista sempre como uma inequívoca «teoria ética e normativa»: o que significa
reconhecer a «preferência», que tal teoria «exprime», por um certo «tipo de sistema
jurídico»… mas então também defender que este será invariavelmente um sistema de regras
gerais — regras que, por sua vez, hão-de poder ser univocamente «identificadas» e
«aplicadas», sem que nessa «identificação» e «aplicação» se recorra (ou se torne indispensável
recorrer), constitutivamente, a juízos morais controvertidos (a system where (…) there is a set of fairly
specific general rules that can be identified and applied without recourse to contentious moral or other

229 Incluindo-se nesta também uma certa role morality (a call for ethical conduct on the part of participants in
their various roles), distinta da personal morality: «I call this theory “ethical positivism” partly because the
positivism in question is justified by a political morality and not by pure conceptual analysis, but also because
the theory requires ethical practitioners, particularly ethical judges and lawyers, to make it work…»
(Campbell, Prescriptive Legal Positivism: Law Rights and Democracy, cit., p. 114).
230 Waldron, «Normative (or Ethical) Positivism», cit., p. 411.
231 Ibidem, pp. 413-414 (II).
232 Campbell, Prescriptive Legal Positivism, cit., p. 28.
233 «Ethical positivism presupposes soft positivism, holding that a legal system, with conceptual

propriety, may or may not incorporate morality within its rule of recognition, but this claim is ancillary to its
main contention that a legal system ought not to include moral criteria in the authoritative list of sources of
law. This is a prescriptive, not an analytical nor descriptive, form of hard or exclusive positivism…» (Ibidem, p.
26).
70

speculative matters, a system that is possible for citizens to understand and follow (…) and judges to apply
without recourse to controversial first-order moral judgments234).

1.2.3. Um plano de novo globalmente partilhado, mas muito mais específico do que
o primeiro (decerto porque reconhecemos nele a Hart’s agenda e a sua concepção da tese da
discricionariedade, com a rejeição inequívoca do formalismo normativista), é aquele em que a
compossibilidade do continuum com a moralidade e da tese da separação — esta última
directamente concentrada na rejeição (sem concessões) da possibilidade da inclusão-
-incorporação (moral considerations are never among the existence or validity conditions of law235) — nos
aparece justificada pela perspectiva da realização em concreto, se não mesmo pelo
problema da resposta aos casos difíceis. A exploração mais eloquente desta compossibilidade,
acompanhada pelo entendimento de que não há uma racionalidade jurídica que se possa dizer
autónoma236 — pelo menos enquanto discurso «conforme ao direito» (conforme às fontes
sociais) dirigido à resolução de casos237— , é certamente aquela que devemos a Raz.

234 Ibidem, p. 114.


235 A formulação é de Michael Giudice, «Joseph Raz’s Legal Philosophy», http://ivr-
enc.info/index.php?title=Joseph_Raz's_Legal_Philosophy (extraído em Agosto de 2012), s/pag., IV, «The
Sources Thesis».
236 «Legal reasoning is not autonomous. (…) There is no serious theorist I know of who maintains

that legal reasoning is autonomous… » [Raz, «Postema on Law’s Autonomy», Between Authority and
Interpretation, cit., pp. 376, 379]. Importa no entanto acrescentar que esta rejeição da tese forte da autonomia do
legal reasoning não impede Raz de reconhecer um domínio limitado de emergência de razões de coerência
dogmática (ditas artificial reasons), as quais intervirão sempre que não seja possível encontrar razões morais
(«naturais») para decidir entre duas alternativas; para um desenvolvimento desta especificação, ver sobretudo
«On the Authonomy of Legal Reasoning», Ethics in the Public Domain, cit., pp. 326 e ss., 335-340 (V). «Legal
doctrines are justified only if they are morally justified, and they should be followed only if it is morally right
to follow them (…). When morality runs out, however (…), legal doctrine takes on a life of its own. There it
is quite properly independent of (…) moral considerations. Within these bounds legal reasoning is
autonomous. How extensive this autonomy is depends on the extent to which morality runs out and leaves
the courts faced with incommensurate options…» (Ibidem, p. 340).
237 Nesta afirmação vai pressuposta uma distinção entre dois níveis ou dois aspectos do discurso

jurídico e (ou) entre os juízos conclusivos a que conduzem: (a) o primeiro (reasoning about law, reasoning to law)
ocupado em estabelecer o conteúdo do direito vigente, se não em abstracto (o que dificilmente poderá
acontecer com os precedents), pelo menos sem a preocupação condutora de responder a um caso-problema
(reasoning about what the law is, reasoning to the conclusion that the content of law is such and such, reasoning whose sole
premises are that the law is such and such and whose (…) conclusions merely state the content of existing law ); (b) o segundo
(reasoning according to law) preocupado em determinar respostas para problemas juridicamente relevantes e
muito especialmente para controvérsias concretas, nesta última acentuação sobretudo enquanto judicial
reasoning (reasoning about how legal disputes should be settled according to law, reasoning to conclusions which entail that,
according to law, if a matter were before a court, the court should decide thus and so[,] (…) or that since it is before the court this
how it should be decided ) [«Postema on Law’s Autonomy», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 376-379
(«The Autonomy of Legal Reasoning»); ver também «On the Autonomy of Legal Reasoning», Ethics in Publiuc
domain, pp. 310 e ss ]. Esta distinção é da maior relevância, já que, segundo Raz, só o primeiro aspecto da legal
reasoning, através precisamente da sources thesis e da identificação do direito que esta defende, se pode dizer
autónomo, quer dizer, obtido sem recurso à moral reasoning (sendo certo que a autonomia em que participa diz
menos respeito ao legal reasoning enquanto tal do que ao próprio direito) [«Understood in that sense (…) the
thesis is an aspect of the thesis of the autonomy of law…» («Postema on Law’s Autonomy»,cit., p.377)].
Correspondendo o reasoning according to law a um processo discursivo não autónomo, porque nuclearmente
interpretativo (o que para Raz significa reconhecer um recurso permante a considerações morais!), nada nos impede
no entanto de acentuar que ele integra, como etapa indispensável do seu iter, um momento de mobilização
71

O horizonte reflexivamente pressuposto, com repercussões que (como veremos já


a seguir) não se ficam pelo problema da adjudication, traduz a representação assumida de que
importa rejeitar a tese — comummente atribuída às concepções positivistas, mas também
(et pour cause!) frequentemente associada às pretensão de autonomia do jurídico — de que o
direito e a moral constituam duas espécies do mesmo género (clearly, law and morality are not
two species of the same genus238). Rejeitar esta tese significa, com efeito, aqui e agora, admitir
que todas as razões jurídicas autoritárias (na medida em que sejam sustentadas por uma
pretensão de validade-legitimidade) possam conceber-se também como razões morais (in
the sense that they have the normative force of valid reasons only if they are morally binding239) — o que
abre a porta para (sem prejuízo do reforço da sources thesis) se reconhecer experimentar o
discurso jurídico como um «caso especial», se não «instância» do discurso moral (legal
reasoning is an instance of moral reasoning)240. A esta representação acresce de resto
imediatamente uma outra, baseada numa reprodução aproblemática do binómio justice
/equity — com as considerações da segunda a corresponderem a correcções interpretativas das
authoritative general rules que alimentam a primeira (correcções determinadas pelas specific
circumstances of a case litigated before (…) courts241)242 —, a qual acentua explicitamente o «papel
dos tribunais no desenvolvimento do direito» (just as with equity, different jurisdictions have
different traditions regarding the ways the courts contribute to the development of law [, b]ut that they have
such a role is pretty universal243).

Acentuação que, não deixando de considerar o conflito (typical of all interpretations)


imposto pelos pólos da autoridade-continuidade e da correcção inovadora (the conflict between

cognitiva das fontes (correspondente ao reasoning about law, entenda-se, a um establishing what has been done by the
authorities). Acentuar isto é, com efeito, darmo-nos conta de que as fronteiras da determinação autónoma do
direito vigente são ultrapassadas… sempre que o intérprete-julgador experimenta um problema de
indeterminação deste direito ou sempre que se confronta com a possibilidade institucional de o transformar.
Segundo Raz, tais problemas e as opções correspondentes não podem ser resolvidos com source-based norms…
mas apenas com o recurso a standards e princípios extra-jurídicos, devendo enquanto tal dizer-se a matter of
morality! Para uma reconstituição criticamente atenta desta proposta (acentuando justamente a sua
impossibilidade de desenvolver uma autêntica reflexão metodológica, bem como a «insatisfação» que resulta
da sua desconsideração dos princípios jurídicos e do seu intra-systemic role), veja-se Postema, Legal Philosophy in
the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 377-388. Sem esquecer o texto do mesmo Postema que
sucitou a esclarecedora resposta de Raz: «Law’s Autonomy and Public Practical Reason», in Robert George
(ed.), The Autonomy of Law, cit., pp. 79 e ss.
238 «Postema on Law’s Autonomy», Between Authority and Interpretation, cit., p. 378.
239 Ibidem.
240 «On The Autonomy of Legal Reasoning», Ethics in Public Domain, cit., p. 340. Sem prejuízo da

especificação a que aludimos supra, nota 236.


241 «Why Interpret?», Between Authority and Interpretation, cit., p. 236.
242 Correcções interpretativas, importa dizê-lo, para as distinguir de outras manifestações

institucionalmente autorizadas da equity que se desenvolveriam fora de um autêntico interpretive framework


(segundo Raz, será este o caso das decisões do júri, as a not made public process of reasoning): ibidem, pp. 236 e nota
10.
243 Ibidem, p. 237.
72

the conservative and the innovatory factors in legal interpretation)244, não deixa também de, muito
especialmente, atender aos diversos equilíbrios entre rotina(s) e inovação (continuidade e
mudança, identificação e transformação do direito vigente245) proporcionados pelos
diferentes enquadramentos institucionais — com o exemplo-limite da liberdade trans-
formadora (as a power to alter) a ser atribuído aos «tribunais superiores» dos common-law legal
systems (e à sua, em princípio ilimitada, possibilidade de optar entre following, distinguishing or
overruling established law, mesmo quando este último direito se nos imponha autoritariamente
com um sentido preciso e determinado)246.

Pressuposto este horizonte de inteligibilidade, a possibilidade de articular uma


estrita sources thesis com o reconhecimento efectivo do papel da moralidade cumpre-se, por
um lado, reconhecendo a permanente sujeição dos juízes a razões morais (even judges are
humans (…), in being human, they are subject to morality247)… e às perspectivas ou argumentos
que estas sustentam (e esgrimem! ) — enquanto razões não institucionalizadas, a poderem
actuar exclusivamente como first-order reasons248 (which have (…) no jurisdiction to bind them (…),
no doctrine of jurisdiction setting out its conditions of application249) —, por outro lado distinguindo
na mobilização dos moral standards diversos caminhos possíveis. Que caminhos? As
distinções a estabelecer mobilizam dois filtros selectivos distintos: em primeiro lugar, a
relação com as fontes, depois, o carácter vinculante /não vinculante. Sobrepondo os dois (sem
os confundir, antes lhes atribuíndo papéis complementares!), poderemos dizer que…
(a) a primeira possibilidade é a de uma «moralidade modificada» (especificada ou
determinada) — mas também prático-societariamente «unificada» e «institucionalizada»
(«autoritariamente» assimilada) — pela juridicidade (law modifies rather than excludes the way

244 Ibidem, pp. 237-238.


245 «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp.115-120 («Legal Continuities:
the Problem of interpretation»).
246«In common-law countries, courts can distinguish common-law rules, apply doctrines of equity,

and use other devices to ensure that the law as applied to the case is not unjust. Therefore, in such countries,
all judicial decisions rely on at least one additional premise — ie that there is nothing in the situation that
would justify modifying the law, or its application to the case, by this court on this occasion…» [«Postema on
Law’s Autonomy», Between Authority and Interpretation, cit., p. 377].
247 «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 183-190 («Even Judges are

Humans»).
248Importa ter presente que as second-order reasons (que o direito especificamente mobiliza) se nos
impõem como reasons to act for a reason (positive second order reasons) ou reasons to refrain from acting for a reason
(exclusionary reasons); a autoridade indissociável da experiência do direito caracteriza-se por sua vez como ability
to change reasons, o que significa que a sua forma de normatividade se baseia em decisões que enquanto reasons
for action se mostram capazes de substituir (replace, preempt) «algumas das razões» que com ela se conexionam
(the preemption thesis). É este, como se sabe, um dos principais recursos analíticos propostos por The Authority of
Law, cit., pp. 3 e ss. («Legitimate Authority») [ver especialmente pp.16-19 («Normative Power») ], 53 e ss.
(«Legal Reasons, Sources and Gaps»), 78 e ss. («The Institutional Nature of Law»), 210 e ss.(«The Rule of Law
and its Virtue»).
249 «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 183-4.
73

moral considerations apply to people and, in doing so, advances (…) moral concerns rather than undermine
them250), com os standards morais a tornarem-se no todo ou em parte vinculantes… não
enquanto tais (pelo conteúdo que auto-subsistentemente os distinga), mas porque, por
referência a fontes sociais autoritárias (e às rules que estas constituem), podem ser efectivamente
identificados como jurídicos (made (…) into a law of the relevant legal system 251)… e de tal modo
que aquele conteúdo passe a depender integralmente dos non-evaluative matters of fact que
correspondem a estas fontes (law modifies morality by making the realization of ideals possible252,
moral standards may be binding as law, though only in virtue of beeing identified by their social source253);
(b) a segunda possibilidade é, em contrapartida, a de standards que, embora
vinculantes (tornados vinculantes) pelas práticas juridicamente institucionalizadas — e por
força do carácter social destas, se não de um fenómeno explícito ou implícito de reenvio
(determinado por prescrições legislativas ou precedentes judiciais) — , preservam no
entanto o seu carácter originário, sem serem incorporados no direito vigente254 (standards merely
enforceable according to law (…), [i.e.,] binding according to law but not themselves part of the law255);
(c) a terceira possibilidade é, enfim, a de standards morais que, não sendo
incorporados no corpus juris, também não se oferecem como vinculantes, sendo mobilizados
pela discretion dos julgadores (moral standards may be nonbinding, and enter into legal argument as
discretionary standards256), por um lado para superar os limites, as insuficiências (de extensão e
intensão) das legal rules, por outro lado (ainda que muitas vezes sem soluções de
continuidade), para orientar a tomada de decisão destes julgadores (enquanto law makers)
relativamente a posíveis transformações do direito vigente (reasoning according to law to a
practical conclusion will be shaped both by the law’s authoritative directives and often, by moral
considerations that are not among the law’s valid norms257).

1.2.4. A mediação privilegiada da proposta de Raz conduz-nos ao último plano,


aquele em que reencontramos a exigência (levada a sério pelo positivismo excludente) de
conciliar a tese das fontes sociais (it is possible to identify law without recourse to moral argument258, the

250 Ibidem, p.192.


251 Ibidem, p.193.
252 Ibidem.
253 Para o dizermos com Coleman (este a dirigir-se em geral aos exclusive legal positivists): The Practice of

Principle, cit., p.107.


254 Ver supra, nota 237.
255 Raz, «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., p. 195.
256 Ainda na formulação de Coleman (reconstituindo os argumentos de Raz): The Practice of Principle,

cit., p. 107.
257 Para o dizermos com Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit.,

p. 462.
258 «Introduction», Between Authority and Interpretation, cit., p. 4, nota 2.
74

identification of law never requires the use of moral arguments or judgements about its merit 259) com a
afirmação (trivial embora260) de que há relações necessárias entre juridicidade e moralidade (there
can be no doubt that there are necessary connections between law and morality261, there are conceptually
necessary connections between law and morality which no legal positivist has any reason to deny 262), só que
agora muito significativamente tematizada como dimensão integrante da própria
compreensão do jurídico: não só nem principalmente como um elemento relacional que
possamos descobrir numa determinação possível do conceito de direito — determinação esta
que, mesmo quando preserva (como deve) o carácter não reflexivo deste conceito263, só pode
aspirar a um tratamento contingente ou paroquial, «culturalmente» condicionado, da
264
experiência da juridicidade (the concept of law is itself a product of a specific culture )! —, antes
como uma pretensão de inteligibilidade que importa reconhecer indissociável da própria
«natureza» do jurídico (a claim about the nature of all law, and of all legal systems, and about the nature
of adjudication, legislation, and legal reasoning, wherever they may be, and wherever they might be265) — e
que como tal se torna acessível ao esforço de uma teoria do direito «universal», capaz de por
isso mesmo se dizer allgemeine (general theory of law)266. Bastar-nos-ão aqui duas alusões, a
convocar duas concepções maiores: a de Raz decerto (numa sequência directa com as
considerações anteriores… e com este sentido da natureza do direito267), mas também a de
Shapiro.

Convocar a concepção de Raz é, com efeito, completar o esboço que desenhámos


a propósito da decisão judicial e do seu (não autónomo) reasoning according to law. Numa
palavra, perceber que só responderemos em pleno à pergunta «porque é que os juízes estão
sujeitos à moralidade?» se por um lado a associarmos à conclusão de que estão sujeitos «sem
nenhuma especial incorporação desta moralidade» — antes porque no plano institucional

259 «The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism», in George Pavlakos
(ed), Law, Rights and Discourse: The Legal Philosophy of Robert Alexy (Hart Publishing, 2007), pp. 17 e ss., cit. na
versão on line disponibilizada em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=999873 (extraído em
Junho 2012), p. 5.
260 Porque partilhada com distintas comprensões da juridicidade (a começar pelas jusnaturalistas),

não lhe podendo desse modo ser atribuído um carácter demarcador: «About Morality and the Nature of Law»,
Between Authority and Interpretation, cit., p. 168.
261 Ibidem.
262 «The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism», cit., p.4.
263 «[T]ne concept of law is not reflexive, ie, it applies to social practices in societies ,where the

concept itself is either used nor known…» («On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.
99).
264 Ibidem, p.95
265 Ibidem, p.99
266 Ibidem, pp. 31, 41 e ss, 91-96.
267 Este contraponto conceito/natureza é detidamente explorado em três comunicações recentes [«Can

There be a Theory of Law?», «Two Views of the Nature of the Theory of Law…», «On the Nature of Law»],
com as quais (não certamente por acaso) se inicia Between Authority and Interpretation, cit., pp. 17-125.
75

se abrem diversas instâncias de não exclusão (só assim devendo ser entendidas as aparentes
oportunidades de incorporação!)268 —… e se em simultâneo reconhecermos, por outro lado,
sem qualquer paradoxo, que tais juízes «não estariam sujeitos ao direito se não estivessem
sujeitos à moralidade»269. A natureza do direito que assim universalmente nos interpela é
decerto a de uma estrutura de autoridade: estrutura que é responsável por um «sistema de
normas, standards e doutrinas» e que se nos oferece simultanea e circularmentemente
constituída por este270 — na mesma medida em que impõe um conteúdo auto-
subsistentemente identificável, um conteúdo que para ser identificado não precisa de
recorrer à argumentação moral (sources thesis), nem sequer a uma representação dos
problemas e das razões que as suas específicas razões de segunda ordem substituíram (the
271
preemption thesis) ; estrutura que se distingue no entanto (et pour cause)272 por uma pretensão
de legitimidade e por esta indissociada da representação de uma tarefa moral (law, by its nature,
is an institution with a moral task to perform273).
É de uma tal conjugação (levada a sério como uma articulação irredutível) que
resulta a atribuição ao jurídico de uma capacity to claim, bem como a identidade da pretensão
correlativa (the law claims for itself moral force), na qual o núcleo autoridade aparece associado
a uma exigência moral de legitimidade (as a claim to legitimate authority, que se diz tanto to moral
authority quanto to moral legitimacy), justificando esta, por sua vez, a pretensão de «tratar os
deveres jurídicos» (legal obligations) como «autênticos deveres (morais)» (real moral obligations),
deveres que assim emergem (arising out) do próprio direito (no system is a system of law unless it
includes a claim of legitimacy, of moral authority)274.
A chave para compreender a especificidade desta abordagem (evitando
reconstituições equivocadas) está de resto no uso rigoroso do termo claim (Raz uses the word
‘claim’ advisedly, intending to invoke at least part of its literal meaning275).

268 «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp. 195-198 («So-called incorpora-

tion as modulated exclusion »).


269Ibidem, p. 189.
270 «On the Nature of Law» , Between Authority and Interpretation, cit.,p. 106-107
271 Ibidem, pp. 114-115
272 Para Coleman esta segunda dimensão sacrifica a possibilidade de associarmos a sources thesis e a

preemption thesis a uma autêntica tese de separação ou mesmo de separabilidade: «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., pp.44 e ss. («The truth about positivism and the separability thesis»). «[T]he
conventional understanding is that exclusive legal positivism is the natural and correct way of giving
expression to the separability thesis. This is a natural mistake but a deep one. The Razian version of exclusive
legal positivism is not a way of giving expression to the separability thesis for it derives from rejecting the
separability thesis…» (Ibidem, p.52, itálicos nossos).
273 Raz, «About Morality and the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p. 177.
274 «Hart on Moral Rights and Legal Duties», apud Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century:

the Common Law World, cit., p. 353.


275 Ver a exemplar análise de Gardner, «How Law Claims, What Law Claims», http://papers.ssrn.

com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1299017 (extraído em Agosto de 2012), p. 2.


76

α) A acentuação de que o traço caracterizador «necessário», capaz de distinguir as


legal reasons e de iluminar a sua preemptive task (capaz de excluir o apelo das first-order reasons for
action)276, é precisamente uma pretensão ou reivindicação (law necessarily claims to be a legitimate
authority277) — e nada mais do que uma pretensão, ainda que profundamente levada a sério!
— permite-nos desde logo perceber que à mobilização ou que à exploração reflexiva do
conteúdo desta claim (muito especialmente àquela reflexão que a filosofia do direito, enquanto
tematização da moralidade das razões jurídicas, garante) seja confiado o papel indispensável
de uma perspectiva crítica (we do not fully understand what law is unless we understand that it has a
certain task, and it is to be judged inter alia by how well it performs it278, the moral doctrine of legitimate
authority is crucial to our understanding and assessments of law (…), it sets the standards by which the law
is to be judge279 ), papel que só se tornará claro se simultaneamente reconhecermos que as
intenções da tarefa moral do direito resultam muitas vezes frustradas pelo seu desempenho
efectivo (law can fail morally, it may not justify the moral claims it is making280, any legal system can fail
to live up to the ideal281) …

Importando acrescentar que, numa preservação exemplar da coerência da sources


thesis, Raz entende que tal moral failure, mesmo nas suas expressões extremas, não retira às
decisões e rules correspondentes a sua identidade jurídica e neste sentido também, na
perspectiva agora dos destinatários, o seu carácter moralmente vinculante… — a menos que
uma outra prescrição source-based ( hierarquicamente superior) assim o exija (determinando
por exemplo que «leis intoleravelmente injustas são inválidas») … ou a menos que estejamos
perante uma oportunidade de overruling institucionalmente consagrada (neste sentido
também sustentada por uma fonte social inequívoca). O que nos permite perceber em que
termos esta claim to moral authority se distingue da claim to moral correctness de Alexy282.

276 Raz, The Authority of Law, cit., pp. 16 e ss. («Normative Power»).
277 A formulação, reconstituindo o pensamento de Raz, deve-se a Coleman, «The Architecture of
Jurisprudence - I», cit., p.51.
278 «About Morality and the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p. 178.
279 «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.112
280 Ibidem.
281 Ibidem, p. 103.
282 Ver exemplarmente «The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism, cit,

passim. «There is (…) nothing in [Alexy’s] (…) argument (…) to show that the concept of law includes moral
elements. It only shows that the law includes such elements, ie that the law can include a norm that grossly
unjust laws are invalid, if, for example, the legislature passes a statute to that effect. On that assumption,
consistent with everything in the argument, the concept of law needs include nothing but that the law is
whatever the legislature legislates. (…). Law claims to have legitimate authority, in the sense that legal
institutions both act as if they have such authority, and articulate the view that they have it. This is, of course,
a moral claim but it is not a claim to moral correctness. It is in the very nature of authoritative rules that they
are binding even if not correct. So authorities (police, courts, administrative agencies) can be aware both that
the rules they apply are morally wrong, and that they are morally binding on them and on their subjects. Of
course, if they have power (whether legally sanctioned power or not) to change them or to refrain from
applying them they may have to do so. But that is not always the case, and when it is such actions are not
77

β) A mesma consideração da pretensão de autoridade moral na sua inteligilidade crítico-


regulativa283 — não certamente por acaso alimentada pelo contraponto determining what the
law is /determining what the law ought to be284 —confere uma coerência indiscutível à
representação da dinâmica do sistema jurídico, com o alcance que já pudemos experimentar
na perspectiva dos casos difíceis. Refiro-me evidentemente à tensão (fecunda) entre estabilidade
e mudança (on the one hand, legal reasoning aims to establish the content of authoritative standards, on the
other hand, it aims to supplement them, and often to modify them, in the light of moral considerations 285),
mas refiro-me também agora à relação de circularidade constitutiva que (no plano da
compreensão da natureza do direito) articula (reconcilia) inextricavelmente duas acentuações
teoreticamente contrárias, a saber, a radicalização incondicional da tese das fontes e a
compreensão moral do problema da vinculação (the sources thesis follows from law’s essential claim
of moral legitimacy286, it is only because at the most fundamental levels law and morality are necessarily
connected that, at the level of determining the identity and content of law, they necessarily must be kept
apart287).
γ) Impõe-se-nos ainda um último ponto. Para considerar agora o sentido com que
Raz, tal como Alexy (mas para traduzir exigências completamente diversas), confere ao
jurídico uma «natureza» dual. A conexão com a dinâmica acima evocada e as suas tensões é
uma vez mais indiscutível: trata-se de mostrar a compossibilidade essencial entre duas
perspectivas, a primeira a acentuar o carácter instrumental do direito, a segunda a iluminar o
seu valor intrínseco ou possíveis dimensões deste (the instrumental and the non-instrumental views
of law288)289, sendo certo que, se aquela290 se preocupa em traduzir o exercício
institucionalmente racionalizador da autoridade (the role of authority is to enable people better to

always authorised by law, hence it is not true that the law makes a claim to moral correctness…» (Ibidem, pp.
14, 12).
283 «Claiming moral authority is not the same as having moral authority. A claim, for Raz, has to be

capable of being true or false…» (Gardner, «How Law Claims, What Law Claims», cit., p.2).
284 Acentuando justamente este ponto e conferindo um sentido possível à tese da separação (ao

contrário do que acontece com Coleman) — o que é afinal situar o problema do debate positivismo
incorporacionista/ positivismo excludente no seu plano mais rigoroso —, veja-se Kramer, In Defense of Legal
Positivism, cit., pp.197-198.
285Raz, «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.116
286 A formulação é de Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., p.

350. Segundo Postema as duas acentuações oponentes correspondem a processos contrários (nem por isso
menos eloquentemente articulados) de «fortalecimento» e de «enfraquecimento» do positivismo de Hart.
287 A formulação, particularmente feliz (embora menos preocupada em reconstituir a coerência do

discurso de Raz!), deve-se a Coleman: « The Architecture of Jurisprudence - I», cit., p. 53.
288 «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp.99-106
289 Raz conclui precisamente que uma abordagem do direito que considere apenas o aspecto

instrumental ficará irremediavelmente incompleta: ibidem, p.106.


290 Isto sem prejuízo de se reconhecer o carácter mais contingentemente funcional que lhe foi

conferido pela modernidade, com a sua ênfase na experiência regulativa da legislação (law as a means of social
regulation by deliberate design with the purpose of securing certain desired goals): ibidem, pp.99-100.
78

conform to reason, that is to make it more likely that they will, given good will, conduct themselves as reason
requires291) , a esta cabe-lhe, em contrapartida, mostrar esta autoridade e os seus standards
como elementos integrantes de uma determinada comunidade política, uma «comunidade
capaz de uma acção independente» (in the context of a political community standards are the
standards of the community because they stand in certain relations to the political organs of the
community292) — se não com ela plenamente identificados, pelo menos a reconhecerem na
aspiração de identificação algo de intrinsecamente valioso (law as an object for identification, as
playing an important role in people’s sense of who they are293).

O importante contributo de Shapiro inscreve-se na continuidade deste


reconhecimento da relação juridicidade /moralidade simultaneamente como «separação» —
no plano da identificação do conteúdo do direito — e como conexão necessária — no plano
fundamental da pretensão deste direito a um específico legal point of view294. Se convoco
Shapiro, identificando a possibilidade de explorar a sua concepção como um dos sinais
relevantes a ter em conta no nosso guião — o que significa afinal distingui-lo de um elenco
de outros ilustres frequentadores do positivist camp —, é por duas razões principais (de resto
indissociáveis). A primeira diz respeito ao modo como, denunciando o «erro» do positivismo
includente, se propõe solucionar a tensão entre sources thesis e moral point of view: trata-se, muito
simplesmente, de explorar a categoria de inteligibilidade (social) planning (as the activity of
formulating, adopting, affecting, applying, enforcing, and repudiating plans (…), which can regulate the
affairs of anyone, or everyone, in a particular community) e de assim conferir um fôlego
insuspeitado a uma recompreensão teleologicamente linear da legal activity enquanto exercise
of legal power (legal rules of a particular system are just the general plans, or plan-like norms, (…)
legislatures (…) adopt plans for the community, and courts apply these plans to those whom they
apply)295…

291 «On the Nature of Law», Between Authority and Interpretation, cit., p.112.
292 Ibidem, pp.102-103.
293 Ibidem, p.106.
294 Shapiro, Legality, Oxford Mass., Belknap Press of Harvard University Press 2011, pp. 186-188

(«The Legal Point of View» ). «The legal point of view asserts that the norms of the legal system are legitimate
and binding and hence that moral questions are to be answered on the basis of those norms. (.…). The legal
point of view always purports to represent the moral point of view even when it fails to do so…» (Ibidem, 186,
187)
295 Shapiro, «Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», Ratio Juris, vol.22 nº 3, p. 329.

«If legal activity is planning activity, then it is intuitive to think that ordinary laws are plans. Moreover, the
fundamental laws of a legal system, i.e., its constitution, are best understood as plans as well. They are plans
for planning. They regulate the process of law creation and application…» (Ibidem, p. 333). Para um
desenvolvimento, ver Legality, cit., pp. 118 e ss. («How to do Things with Plans»), 195 e ss. («The Planning
Thesis», «The Path of Law»).
79

A relevância do contributo a ter em conta está de resto menos na reconstituição da


«estrutura» e da «lógica» da planificação-regulação — que concilia uma simplificação
persuasiva da «agenda» da social enginneering296 com a especificidade de um moderate
antiformalism297 e com uma inevitável «teoria» dos casos difíceis298 (baseada no contraponto amoral
legal reasoning/ judicial decision making, este último também como uma resposta a Dworkin!299)
— do que no modo como tal reconstituição (que o próprio Shapiro diz comprometida com
uma functional ou mesmo functionalist conception of law300) aparece dominada pela exigência de o
direito «guiar» (motivacionalmente e epistemicamente) as condutas301 e pela necessidade de
corresponder à chamada tese da diferença prática (legal rules must in principle be capable of securing
conformity by making a difference to an agent’s practical reasoning302) . É no tratamento desta exigência
que encontramos a chave da preservação-reinvenção do positivismo excludente303: se o
direito tem como objectivo «guiar as condutas» in the manner of plans…

296 O contributo mais original está porventura no modo como logradamente capta a dimensão
temporal , projectando-a tanto na relação entre os planos (e planos de planos) e na estrutura complexa que estes
geram (nested structure) quanto na incompletude (partiallity) e indeterminação (indeterminacy) destes — o que
corresponde a uma compreensão especialmente atenta do que diz a incremental feature of legal regulation. Ver a
síntese proposta em « Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», cit., pp. 329-333 e o
contributo indispensável de Legality,cit., pp.120-122, 277-279, 345-352.
297 Ibidem, pp. 276-277. « I think that the planning theory is at least Hartian in spirit, if not in

letter…» [Shapiro, «What Is The Rule Of Recognition (And Does It Exist)?»,


298 Legality, cit., pp. 234 e ss., 242-248, 259 e ss.
299 «Whereas legal reasoning is necessarily amoral, judicial decision making need not be. Indeed,

when the pedigreed norms run out (…), the social planning that the law provides runs out as well. The fact
that judges routinely rely on moral considerations in such instances simply indicate that they are engaged in
further social planning…» (Ibidem, p. 276). «The legal requirement that judges look to morality to resolve (…)
[hard] cases is a mandate to engage in further social planning. The pedigree-less norms that they eventually
apply, then, must be understood as the creation of a new plan/law, not the finding of an old plan/law. For if
the old plan/law could only be found through moral reasoning, there would be absolutely no point in having
such plan/law…» («Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», cit., p. 334, também assim em
Legality,cit., pp. 276-277).
300 Shapiro, «On Hart’s Way Out», in Coleman, Hart’s Postscript, cit., pp. 186-191.
301 «Someone is motivationally guided by a legal rule when his or her conformity is motivated by the

fact that the rule regulates the conduct in question.(…)A person is epistemically guided by a legal rule when he
learns of his legal obligations from the rule provided by authority and conforms to the rule » (Ibidem, p.173,
itálicos meus).
302 Shapiro, «Law, Morality, and the Guidance of Conduct», Legal Theory, vol.6, p. 129, apud Cindy

L. Phillips, «Rescuing Inclusive Legal Positivism from the Charge of Inconsistency» (2011), Philosophy Theses.
Paper 81, http://digitalarchive.gsu.edu/philosophy_theses/81 (extraído em Agosto de 2012), p. 24 (excerto
também reproduzido em Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., p. 61).
303 Como o próprio Coleman esclarecedoramente acentua (ao reconstuir o argumento de Shapiro)

[“Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis»,, cit., pp.142 e ss.], a incorporationist
rule of recognition, sempre que faz referência a princípios morais auto-subsistentes, identifica como direito uma
regra cujo conteúdo é (apenas) «age moralmente» (quando muito, «guia a tua conduta por regras morais»). Se
admitirmos que a rule of recognition, por si só, já nos impele a «agir moralmente» (one is, after all, already moved to
act morally by the rule of recognition), poderemos perceber que a segunda regra (the rule «act morally»), não
acrescentando nada de significativamente prático à regra que a identifica, não preencha a condição da diferença
que Shapiro entende indispensável para podermos falar de regras de direito (legal rules must in principle be capable of
making a practical difference). Ora se a regra identificada não é uma regra de direito, também o não será a regra de
reconhecimento que a identifica (thus, the classic incorporationist “rule of recognition” cannot, in the end, be a rule of
recognition at all) [Ibidem, p. 143]. Igualmente esclarecedora é a síntese do mesmo argumento, agora
reconstituída por outros dos visados (precisamente Kramer!): «Because moral principles incorporated into the
law will never lead to conclusions other than those dictated by the Rule of Recognition under which the
80

[a]… há por um lado que garantir a chamada logic of planning (LOP), a saber que a
identificação desse direito (da sua «existência» ou do seu «conteúdo») não possa ser
determinada por uma «deliberação que tematize os méritos correspondentes»304 (moral rules
validated by an inclusive rule of recognition cannot be action guiding in the manner in which legal rules are
supposed to be action guiding305) ou que, ao consultar princípios morais, mobilize as first-order reasons
que as source-based rules se propuseram substituir306 (after all, the point of having plans is to obviate
the need for deliberation on the merits307, deliberation on the merits would violate the logic of planning because
it would unsettle precisely what the plan aims to settle308, the judge will not be treating the rule as a
peremptory reason for action, given that her compliance is conditional on her judgment about the moral
appropriateness of following the rule309)…
[b]… mas há também por outro lado que perceber que a planificação oferecida pelo
direito não é uma qualquer (the aim of the law is not planning for planning sake310), distinguindo-se
precisamente pelo carácter moral do seu objectivo (Moral Aim Thesis311) — é que não se trata
apenas de «compensar as deficiências de formas alternativas (não jurídicas) de planeamento»
(de resolver os problemas sociais que estas formas não resolvem» e de assim oferecer
recursos que permitam às comunidades superar a «complexidade, litigiosidade e
arbitrariedade da vida em comum» ), trata-se também de desenvolver bem este objectivo de
compensação, «adoptando e aplicando planos moralmente sensíveis» e de um «modo moralmente
legítimo»312 (law is first and foremost a social planning mechanism whose aim is to rectify the moral
deficiences of the circumstances of legality313) .
Importando no entanto acrescentar que o teleologismo em causa está longe de
invocar «valores» ou mesmo «fins» materialmente «específicos» (there are no substantive goals or
values that laws are supposed to achieve or realize)314. Nos mesmos termos em que a moralidade
envolvida nos aparece exemplarmente submetida a uma perspectiva de efeitos (mobilizando
num plano constitutivo os custos e os benefícios da planificação e os riscos de uma
planificação ineficiente315), também o problema do direito e da sua consideração as a valuable

principles have been incorporated, they do not satisfy the Practical Difference Thesis. They are therefore only
ersatz legal norms in Shapiro’s view…» (Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., p.61).
304 Shapiro, «Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», cit., pp. 333-334.
305 A fórmula, reconstituindo os argumentos de Shapiro, deve-se a Cindy L. Phillips, «Rescuing

Inclusive Legal Positivism from the Charge of Inconsistency», cit., p. 4.


306 A formulação deve-se ao oponente Waluchow: «Legal Positivism, Inclusive versus Exclusive»,

cit., secção 5. («The practical difference thesis»).


307 Shapiro, «Was Inclusive Legal Positivism Founded on a Mistake?», cit., p 333.
308 Ibidem, p. 334
309 Shapiro, «Law, Morality, and the Guidance of Conduct», Legal Theory, vol.6, p. 163, apud Cindy

L. Phillips, «Rescuing Inclusive Legal Positivism from the Charge of Inconsistency», cit, pp. 21-22.
310Shapiro, Legality, cit, p.171.
311 Ibidem, pp.170 e ss. («The Circumstances of Legality»), 213 e ss.
312 Ibidem, p. 171.
313 Ibidem, p. 172.
314 Ibidem,p.173.
315 Para um desenvolvimento, ver ibidem, pp. 138-143, 170 e ss.
81

institution316 nos interpela sem superar a sua identidade instrumental, antes confirmando a
inteligibilidade das leis (as social plans) como outros tantos «meios universais» (explícitos all-
-purpose tools para atingir fins que de outro modo as comunidades em causa não estariam em
condições de prosseguir): muito simplesmente porque o «problema fundamental» do jurídico
não é, segundo Shapiro, o de resolver, em termos teleologicamente inconfundíveis, «um
certo e particular dilema moral», mas antes e em contrapartida o de saber «como resolver os
dilemas ou perplexidades morais em geral»; tratando-se assim de concluir que uma
comunidade precisa do direito «sempre que os seus problemas morais» —«sejam estes quais
forem»! — se nos apresentem em termos tais (are so numerous and serious, and their solutions are so
complex, contentious and arbitrary) que se possa reconhecer a inferioridade efectiva das formas não
jurídicas de institucionalização (that non legal forms of ordering behavior are inferior ways of guiding,
coordinating and monitoring conduct)317.

A segunda razão para mobilizar Shapiro tem a ver directamente com o puzzle que
nos ocupa e com o modo como a recriação do positivismo excludente assumida pelo defensor
da Planning Theory se tem vindo a reflectir fecundamente no campo oponente. Não se trata
com efeito apenas de impor uma contra-reacção do positivismo includente, trata-se de
alimentar internamente esta contra-reacção, permitindo que o argumento da diferença prática
confirme as divisões conhecidas, quando não suscita uma nova divisão-distribuição…

A confirmação a que me refiro tem a ver com as gradações do incorporacionismo. Com


a opção robusta de Coleman a aceitar o argumento de Shapiro, mas a desviar o seu alvo318,
mostrando a insustentabilidade da tese da diferença prática (PDT) enquanto pretensão
categorial (it is just not part of our concept of law that capacity for practical difference is a condition of
legality, I do not see the PDT as asserting a conceptual truth about law )… e sobretudo reconhecendo
que a diferença a ter em conta não pode esgotar-se, como Shapiro aproblematicamente
postula, numa relevância instrumental — o que lhe permite (continuar a) assumir os princípios
morais incorporados como autênticas normas… e sobretudo a iluminar o seu papel na justificação
das decisões (the legality of a norm need not to be connected directly to the interests, goals, and projects of
agents whose deliberations about what to do are guided by norms generally and by law in particular (…) [,]
instead legal rules can be understood in terms of the role they play in justifying decisions, not in causing or
guiding action)319. Com a opção suave de Kramer a concordar com esta rejeição no plano

316Ibidem,
p.172
317Ibidem,
p. 173 («Law as a Universal Means»).
318 Coleman, «Incorporationism, Conventionality, and the Practical Difference Thesis», cit., pp. 142-

-147.
319Ibidem,
pp. 146-147 e nota 59. Segundo Coleman, se tais princípios não introduzem uma diferença
no plano da instrumental guidance (enabling individuals to pursue their interests (…), goals and projects), introduzem-na
82

categorial320, mas a defender que, no plano empírico, o excesso de normas privadas de relevância
instrumental deva ser considerado como um sinal indiscutível da ausência daquelas qualidades
formais de regularidade, estabilidade e consistência que, na sua perspectiva, são como já
vimos indispensáveis à existência (e não apenas à eficácia) de um «regime jurídico» (where
most of the norms applied by a large-scale scheme of governance do not form such reasons, the scheme will lack
the regularity and coordination that are indispensable for the existence of a legal regime) — o que por sua
vez lhe permite defender que os princípios morais, mostrando-se embora incapazes de
proporcionar independent reasons no plano instrumental, continuem a valer e vincular como
normas autênticas (non-source-based legal norms)… precisamente nos «casos difíceis» (num
«domínio» que entende significativamente excepcional) , sempre que «os source-based legal
standards não proporcionem a orientação determinada» (the determinate guidance) que tipicamente
se espera destes (that thesis reserves a place for non-source-based norms, but the place is correctly
characterized as the domain of exceptionality rather than the domain of tipicality)321.
A nova divisão-distribuição, encontramo-la sobretudo nas preocupações de
Waluchow e na reconstituição do campo includente que estas lhe sugerem. Se Shapiro
sustenta que a exigência da conformidade com os princípios morais (a justificar o recurso a non
pedigreed norms) impede uma guidance autêntica (tanto no plano motivacional quanto
epistemológico) — isto quer se trate de conceber a conformity to morality como uma condição
necessária ou como uma condição suficiente da validade jurídica —, podemos dizer que o inclusivist
camp converge na rejeição global deste argumento… mostrando-se não obstante sensível à
distinção introduzida… e mais uma vez por razões pragmático-estratégicas (implicadas na
resistência ao diagnóstico de Dworkin!). O que para Waluchow significa reconhecer uma
convergência das suas posições com as de Kramer (enquanto sustentam uma «necessity»
thesis)… e um afastamento de ambos em relação à «sufficiency» version of inclusive positivism que
seria defendida por Coleman322!

1.3. Não menos exemplar (ainda que certamente por outras razões) se nos
apresenta a projecção do debate do incorporaccionismo (e da dinâmica que este explora) no
campo não positivista, justificando assim uma nova estação (brevíssima embora) do nosso
percurso. O contraste é inevitável: se a discussão interna, justificada pelo campo positivista,
vive (como acabámos de experimentar!) de um tecido de diferenciações analiticamente
muito complexo — impondo uma reformulação permanente das categorias de
inteligibilidade nucleares (separação-separabilidade, fontes sociais, diferença prática,

sempre por certo no plano da justificação. «The difference law makes can be understood justificatorily as well
as instrumentally…» (Ibidem, p. 147).
320 Kramer, Where Law and Morality Meet, cit., pp. 59-64 («What Happens in Hard Cases»).
321 Ibidem, p. 64.
322 Waluchow, «Legal Positivism, Inclusive versus Exclusive», cit., sec 5 («The practical difference

thesis»).
83

obrigatoriedade, casos difíceis, normas, racionalidade jurídica) e da ordem de relevância


(necessária ou contingente) com que estas se nos impõem… e, neste sentido, também
justificando uma contínua diferenciação dos interlocutores e das suas posições ao longo do
tempo (estas invariavelente rotuladas como teses!)… —, a projecção externa, exactamente
porque se alimenta das refracções desta dinâmica (e porque prolonga o seu desenho, sem
nunca questionar os limites de relevância deste)… — porque nos aparece assim, sem
considerar alternativas de distribuição distintas, a explorar um campo residual (capaz de
congregar todos os que não militam no campo positivista!)… —, exige em contrapartida uma
grande concentração temática e uma simplificação drástica do espectro das respostas
possíveis, com a correspondente sobreposição dos interlocutores envolvidos.
Uma grande concentração temática? Certamente. Aquela que, prescindindo de
autonomizar o problema das fontes e o problema do fundamento e (ou) de distinguir as suas
perguntas e as possibilidades de tratamento que estas permitem (na sua relação constitutiva
com o conceito de direito ou com as características «essenciais» da juridicidade) —
prescindindo ainda de dar a atenção merecida ao problema da realização do direito em
concreto (e às diversas concepções de legal reasoning, responsáveis por outras tantas
concepções metodológicas) —, se contenta em reconhecer tais problemas diluídos nos
desafios da incorporação dos princípios, quando não sobrepostos nas diversas respostas ao
problema da lex iniusta (ou nas diferentes gradações destas respostas, inevitavelmente
determinadas pelo contraponto juridicidade /moralidade). Para mostrar que assim é —
ilustrando simultaneamente o efeito de sobreposição dos interlocutores — , bastam-nos
três exemplos, cada um deles como um exercício possível de tematização-arrumação.

1.3.1. O primeiro destes exemplos (cuja identidade podemos facilmente reconhecer


socorrendo-nos da reconstrução de Postema323) considera a possibilidade de se encontrar
no «debate» Raz /Coleman uma espécie de lugar paralelo, que nos ajude a entender a linha de
reabilitação do jusnaturalismo (a New Natural Law theory) protagonizada (no mesmo parochial
context) por Finnis e por Robert George: não se trata apenas de explorar um núcleo
problemático partilhado pelos dois «lugares» e de, sem prejuízo da diversidade polarizada
das respostas, reconhecer a centralidade deste — refiro-me, já com as palavras de Finnis, à
questão de saber qual é a possibilidade e qual é o sentido que pode ter a identificação-
mobilização por um tribunal (na perspectiva de um caso decidendo) de um standard moral
ainda não objectivado por fontes sociais (the judicial or juristic process of identifying a moral standard

Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 467-470 («Natural-
323

Law Perspectives on Incorporation»).


84

as one which anyone adjudicating a given case has the duty to apply even though it has not yet been posited
by the social facts of costum, enactment or prior adjudication324) —, trata-se também de projectar a
experiência de uma diferenciação em degraus, tal como a vimos contruída por aquele
primeiro debate, numa especificação relevante das possibilidades da segunda linha e do seu
«novo» jusnaturalismo: com Robert George a aproximar-se da ordem de possibilidade de Coleman
— de uma mobilização de non-pedigreed moral principles dependente das authoritative
determinationes da jurisdição e das práticas que estas efectiva e contingentemente
institucionalizem325… — e com Finnis, defendendo embora a mobilização autónoma de
self-evident incommensurable moral general principles326 (e a independência dos seus standards
relativamente às convenções da prática327), a justificar uma compreensão da discretion do
julgador (e das suas moral options) que, em nome da rejeição da one right answer thesis, afirma
perturbantes afinidades com Raz e outros positivistas excludentes (na sua vertente
assumidamente normativa ou regulativa)328…

1.3.2. O segundo exemplo refere-se a uma proposta de classificação bem


conhecida, desenvolvida por Alexy com o objectivo de «situar» a sua própria dual nature
thesis329. Há aparentemente uma promessa de expansão do círculo de interlocutores (e de
tradições) a ter em conta, justificada pelas vozes de Kelsen e Radbruch, mas o
desenvolvimento, esse cumpre-se já por inteiro nos quadros da Hart’s agenda, menos de

324 Finnis, «The Natural Law: the Classical Tradition», in Coleman/ Shapiro (ed.), The Oxford

Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law, Oxford, Oxford University Press, 2002, p.10.
325George, «Natural Law and Positive Law», in George (ed.), The Authonomy of Law, cit., pp. 321 e ss.

Cfr. ainda os comentários convergentes de Postema e La Torre, respectivamente em Legal Philosophy in the
Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 468-469 e em «On Two distinct and Opposing Versions of
Natural Law: “Exclusive” versus “Inclusive”», Ratio Juris, vol. 19 nº 2, 2006, pp. 201-202.
326 Todos eles enquanto especificações mais ou menos próximas do master principle do integral human

fulfilment: ver Finnis, «The Natural Law: the Classical Tradition», cit., pp. 26-30 (10. «Reasons»). Ver também
as secções muito esclarecedoras que, neste texto, Finnis dedica aos diálogos demarcadores com os
positivismos excludente e includente (pp. 7-15). Recordemos de resto que a afirmação desta auto-evidência
(per se nota), numa revisão drástica do ontologismo associável ao discurso tomista (mas sem prejuízo de
continuar assim a reivindicar a sua herança), assimila componentes deontológicas assumidamente modernas
(indissociáveis do contributo de Descartes e de Kant): ver neste sentido Maria Magdalen Owen, «The
Thomistic Conception of Natural Law: Does It Commit the Naturalistic Fallacy?»,
http://digitalcommons.liberty.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1244&context=honors (extraído em Julho
2011), pp. 22-25 («Self-evident»).
327Bem como a diferença irredutível de intenções e de papéis que separa legislação e jurisdição

(diferença esta iluminada pela autonomia do legal reasoning e pela reabilitação da phronêsis… ainda que
discordadndo frontalmente da one right answer thesis de Dworkin). Ver muito especialmente «Adjudication», nº
14 de «The Natural Law: the Classical Tradition», cit., pp. 34-37.
328 Postema vai ao ponto de falar de um «Natural-Law Positivism»: Legal Philosophy in the Twentieth

Century: the Common Law World, cit., pp. 558-562.


329 Alexy, «The Dual Nature of Law», IVR 24th World Congress’s Papers (Plenary Sessions), Beijing 15-20

September 2009 («Global Harmony and Rule of Law»), agora também na Ratio Juris, vol. 23 nº 2, 2010, pp.
167–82. Ver também «On the Concept and the Nature of Law», Ratio Juris, vol. 21 nº 3, 2008, pp. 281–299.
Para além evidentemente de The Argument from Injustice (ver infra, nota 337).
85

resto para considerar o cruzamento desta agenda com a tese do unrichtiges Recht (visível
nalguns rounds do confronto Hart/Fuller), do que para ceder aos limites do debate
incorporacionista. Uma cedência que, por um lado, se manifesta na mobilização aproblemática
dos binómios perspectiva do participante/ perspectiva do observador, necessidade / possibilidade(-
convencionalidade), inclusão / exclusão (da moralidade), inclusão/exclusão (de normas moralmente
defeituosas) — e que assim alimenta a tentativa de submeter o campo não positivista a uma
distribuição plausível (equivalente logrado do confronto Raz/Coleman ou das sombras que
este projecta) —, uma cedência que por outro lado não deixa de impor um preço — passando
este precisamente pela concentração drástica no problema do direito injusto (se não na
pergunta dirigida aos «defeitos morais» da legislação e aos seus graus)… mas também (et pour
cause!) por uma simplificação significativa das teses oponentes (que é também, não menos
exemplarmente, a de um tratamento indiferenciado das suas vozes)330. É deste
compromisso que resulta o desenho final, no qual Alexy mobiliza os degraus excludente e
includente do «positivismo» — simplificadas nas teses (respectivamente) da exclusão necessária
e da inclusão convencional da moralidade —, para lhes opor três versões (que diz) excludente,
super-includente e includente de «não-positivismo»: (a) a primeira destas três (atribuída à dupla
Beyleveld/Brownsword), a excluir a possibilidade de considerar jurídica toda e qualquer
norma ferida de um defeito moral331; (b) a segunda (inscrevendo Finnis numa galeria
habitada por S. Tomás e Kant), a submeter a apreciação dos defeitos morais das prescrições
legislativas a uma perspectiva de resultados e à possibilidade-exigência de, na conexão
juridicidade /moralidade, se distinguirem relações de classificação e de qualificação (classifying
and qualifying connections) — de tal modo que os defeitos morais relativos a estas segundas
(ditas relações de qualificação) não excluam a juridicidade (a validade jurídica) da prescrição
autoritária correspondente332; (c) a terceira enfim (aquela com que Alexy se identifica, por
«adequadamente» representar a dual nature of law), a «seguir a fórmula de Radbruch»,

330 Como o próprio Raz muito justamente denuncia: « Perhaps Alexy is simply addressing himself to

a German audience, and refuting, or attempting to refute, legal theories of a kind identified in Germany as
‘legal positivism’. Perhaps, though his references to Hart show that he does not intend it that way…» (Raz,
«The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism», cit., p. 1)
331 «The Dual Nature of Law», cit., pp. 268-269 (Ratio Juris, vol. 21 nº 3, cit., p.176), «On the

Concept and the Nature of Law», cit., p. 287. Ver também Alexy, «Effects of Defects—Action or Argument?
Thoughts about Deryck Beyleveld and Roger Brownsword’s Law as a Moral Judgment» (2006), Ratio Juris,
vol. 19 nº 2, pp.169-179, e numa reconstituição alternativa Peter Koller, «Der Begriff des Rechts und seine
Konzeptionen», cit., pp. 163-165 («Starker Rechtsmoralismus. Beyleveld und Brownsword»).
332 «The Dual Nature of Law», cit., pp. 269 (Ratio Juris, vol. 21 nº 3, cit., p.177), «On the Concept and

the Nature of Law», cit., p. 288-290.


86

defendendo que «os defeitos morais só retiram a validade jurídica» às prescrições em causa
quando o «limiar da injustiça extrema» for «ultrapassado»333.
Importando acrescentar que esta classificação nos interessa por si mesma, pelas
tensões que pressupõe e pelas sobreposições a que recorre — com um resultado que, por uma
via inteiramente diferente daquela a que aludimos no exemplo anterior, não deixa de
confirmar as surpreendentes afinidades do positivista Raz e do jusnaturalista Finnis (agora
relativamente ao problema do direito injusto)! —, mas que nos interessa mais ainda pela
conformação que acaba por impor à proposta do próprio Alexy (não apenas no plano dos
recursos de formulação mas nas soluções sustentadas). Ao ceder (ao não conseguir resistir)
ao enquadramento do «incorporacionismo» — afastando-se assim paradoxalmente da herança
de Radbruch!334 —, Alexy permite com efeito que não só a oposição tradicional segurança
/justiça (principle of legal certainty/ principle of justice)335, mas também algumas das preocupações
condutoras do discurso prático do nosso tempo — muito especialmente aquelas que
encontram nas tensões real / ideal, dogmático / crítico, particular/universal os seus contextos de
organização privilegiados — venham, com prejuízo das suas significações e dos palcos
heterogéneos em que estas emergem, a ser assimiladas (e depois drasticamente convertidas)
pelo contraponto juridicidade/ moralidade. Como se a possibilidade de pensar o direito como
intenção ou como «aspiração» (as the embodiment of an elevated aspiration336) ou de o proble-
matizar a partir da sua dimensão (dita) ideal implicasse paradoxalmente abandonar uma
perspectiva jurídica para assumir as possibilidades crítico-reflexivas de uma perspectiva
moral. Ou mais rigorosamente, como se a pergunta dirigida à relevância de um momento de
validade (independentemente da resposta positiva ou negativa que lhe vier a ser dada) nos

333 «The Dual Nature of Law», cit., pp. 269-270 (Ratio Juris, vol. 21 nº 3, cit., pp. 176-177), «On the

Concept and the Nature of Law», cit., p. 287-288.


334 O qual não precisa de recorrer ao significante moralidade nem para identificar a validade (Geltung)

juridicamente relevante (e o seu übergesetzliches Recht) nem para reconhecer os «conteúdos» específicos do
«valor da justiça»: «Aber Rechtssicherheit ist nicht der einzige und nicht der entscheidende Wert, den das
Recht zu verwirklichen hat. Neben die Rechtssicherheit treten vielmehr zwei andere Werte: Zweckmäßigkeit
und Gerechtigkeit…» (Radbruch, «Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht», in Radbruch,
Gesammtausgabe, Band 3, Rechtsphilosophie III, Heidelberg, C.F. Muller, 1990, p. 88)
335 Acriticamente preservada na sua inteligibilidade normativística… e assim mesmo mobilizada para

iluminar as três versões de não positivismo: com as propostas excludente e super-includente a corresponderem a
equilíbrios «incorrectos» entre o princípio da justiça e o princípio da segurança… e o não positivismo includente a
garantir o equilíbrio (como verdadeiro balance). «Resting on an incorrect balance between the principle of legal
certainty and the principle of justice, [exclusive non-positivism] (…) gives too little weight to the factual or
authoritative dimension of law. (…) [S]uper-inclusive nonpositivism fails to attribute to the principle of
justice qua expression of the ideal dimension of law a weight that suffices to outweigh the principle of legal
certainty in extreme cases. (…) [With the] thesis of inclusive non-positivism (…), both sides of the dual
nature of law are given there due weight…» [Alexy, «The Dual Nature of Law», cit., pp. 268-270 (Ratio Juris,
vol. 21 nº 3, cit., pp. 176-177)]
336 A formulação é de Nigel Simmonds, Law as a Moral Idea, Oxford University Press, 2007, pp. 37 e

ss. («Law as Instrument and as Aspiration»). Infra darei uma especial atenção à proposta de Simmonds: ver,
neste mesmo Tempo II, 2.4.1., pp. 114 e ss.
87

obrigasse a identificar a juridicidade com o contexto (se não correlato) de uma prática de
decisões contingentes (e com o regulativo coercitivamente eficaz que esta institucionaliza),
ficando a recusa ou a atribuição-integração de exigências de sentido (que possam impor
limites de validade às decisões deste regulativo) dependentes da relevância (respectivamente
negativa e positiva) de uma perspectiva moral (e da institucionalização que esta estiver em
condições de oferecer).
Recordemos que invocar a natureza dual do jurídico é, para Alexy, num plano simul-
taneamente analítico e normativo337, contrapor uma dimensão real ou factual a uma
dimensão ideal ou crítica — a primeira representada pelos elementos da outorga autoritária e
da eficácia social, a segunda a encontrar a sua expressão intencional num elemento dito de
correcção moral, sustentado numa pretensão de universalidade (first-order claim of correctness (…)
refers only to the ideal dimension (…) and is addressed to all (…), as far as universal morality is
concerned)338 —, mas é também reconstruir-compor dois argumentos decisivos — o
argumento a favor da positividade ou da dimensão real do direito, o argumento a favor da
dimensão ideal —… e, mais do que isso, defender-assumir a sequência que integra tais
argumentos — uma sequência determinada por uma exigência de reconciliação, que será
também de correcção (as a second-order correcteness) da normatividade positiva.

Importa com efeito acentuar339 que o desenvolvimento a ter em conta se cumpre


assumindo dois eixos reflexivos (cada um deles como uma cadeia relevante de pressupostos).
α) O primeiro é aquele que se distingue respondendo ao apelo da first-order claim of
correctness, por um lado para confirmar «que os problemas de statutory injustice podem ser
melhor resolvidos com a ajuda de uma tese de conexão (connection thesis) entre direito e
moralidade»340, por outro lado para defender que uma «definição jurídica do conceito de
Direito» (jurídica no sentido de ser construída na perspectiva interna do participante341)
incorpora necessariamente «elementos morais» (questions of justice (…) are moral questions)342.

337 Como sabemos, a importância de distinguir entre «grupos» de argumentos analíticos e normativos

para reconstituir a controvérsia do positivismo jurídico é principalmente desenvolvida em Begriff und Geltung
des Rechts, Freiburg / München, Karl Alber Verlag, 1994, passim, cit. na última versão deste texto, aquela que
apareceu como The Argument from Injustice. A Reply to Legal Positivism (2001-2002), paperback edition, Oxford
University Press, New York, 2010, pp. 20 e ss («Critique of Positivistic Concepts of Law») [Não se trata, com
efeito, apenas de uma tradução (de resto da responsabilidade de Bonnie e de Stanley Paulson), trata-se
também de uma nova versão, com diversas alterações de pormenor propostas pelo próprio Alexy].
338 Alexy, «The Dual Nature of Law», pp. 266, 261 (e nota 17) [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, pp. 174, 170 (

e nota 1)]
339 A reconstituição que se segue mobiliza as formulações do meu «Law’s Cultural Project and the

Claim to Universality or the Equivocalities of a Familiar Debate» (cit., pp. 489-503), para cujo
desenvolvimento remeto.
340Alexy, The Argument from Injustice, cit., p. 22
341 Ibidem, pp. 25 e ss.
342 «The Dual Nature of Law», cit., p. 261 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 171].
88

Trata-se, com efeito, de pressupor que a correcção (de primeiro nível) do conteúdo jurídico (enquanto
exigência conceptual e normativamente necessária) deve (tem que) ser identificada com a
validade moral. Como se trata também de concluir que o argument for correctness (of content) só
faz plenamente sentido inscrito numa tríade com mais outros argumentos (the argument of
injustice and the argument of principles)343. Questions of justice (…) are moral questions344 [and] principles
are normative arguments on which the process or procedure of law application is and/or must be based in
order to satisfy the claim of correctness345.
β) A preocupação com a pretensão de correcção de segunda ordem traz-nos outra cadeia
de pressupostos, vinculados a um processo de institucionalização e a uma forma política
transparente (a de um constitucionalismo que se diz simultânea e irredutivelmente democrático e
discursivo). Invocar a reconciliação que esta forma garante não é, com efeito, senão
reproduzir a relação dialéctica irredutível entre as dimensões real e ideal (second-order correctness
refers both to the ideal and real dimensions346); e então e assim permitir que esta relação — ao
contrapor a tomada de decisão real (segundo o princípio maioritário) a uma argumentação
pública ideal (discursivamente identificada com a democracia deliberativa em sentido
rigoroso)347 — possa por sua vez expor-se-nos como um quadro único e definitivo para a
resolução dos problemas jurídicos. Ora um quadro que, não certamente por acaso, reconduz
a tensão real/ideal a uma dialéctica entre entre razões argumentativas autoritárias e não autoritárias.
A mesma dialéctica que se especifica contrapondo regras e princípios348, legislação
parlamentar e jurisdição constitucional349, sistemas jurídicos particulares e moralidade
universal350, last but not least, direitos positivos de índole jurídico-constitucional e direitos
humanos morais (constitutional rights are rights that have been recorded in a constitution with the
intention of transforming human rights into positive law (…); human rights qua moral rights (…) exist if
they are justifiable (…) on the basis of discourse theory351) . Sem esquecer que todas estas
manifestações plausíveis são redutíveis a uma inevitável tensão maior, reconstruída
(solucionada), enquanto tal, através da law of competing principles352 — como se ao fim e ao cabo
se tratasse de defender um effective balancing entre o princípio formal (jurídico!) da certeza ou

343 The Argument from Injustice, cit., pp. 13, 34, 35-81.
344 «The Dual Nature of Law», cit., p. 261 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 171].
345 The Argument from Injustice, cit., p. 127.
346 «The Dual Nature of Law», cit., p. 266 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.174].
347 Ibidem, p. 271 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.177-178].
348 Ibidem, p. 274 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.180].
349«Constitutional review claims to be closer than the parliament to the ideal dimension of law…»

[Ibidem, p. 272 (Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 178)]


350 Ibidem, p. 261, nota 17 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.170, nota 1].
351 Ibidem, p.271 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 178].
352 Ibidem, p.269, nota 63 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p.180, sem nota (incluído no texto)].
89

segurança e o princípio substantivo (moral!) da justiça, ballancing por sua vez iluminado pela
fórmula de Radbruch (as the «postulate of an outermost border»353)!
γ) A articulação entre as duas cadeias de postulados leva-nos enfim a uma celebração
da racionalidade (-razoabilidade) prática enquanto discurso argumentative procedimental
(comprometido com as ideias de participação, liberdade e igualdade e , como tal, sustentado
pelo indispensável núcleo de normas gerais). Tratando-se, ao fim e ao cabo, de assumir a
ideia regulativa de uma moralidade universal (correcta e justificada) enquanto horizonte
prático (se não fim- goal a ser prosseguido)354, e com esta… a necessidade discursiva dos
direitos humanos (as moral, universal, fundamental and abstract rights, taking priority over all other
norms, existing only if they are justifiable on the basis of discourse theory)355, sem esquecer que se trata
assim também de abrir a possibilidade (oportunidade) de justificar a perspectiva jurídica
interna (the participants’ perspective) como aquela que, experimentando a «inadequação» da
separação positivística entre direito e moral (e assumindo uma concepção dos princípios
como intenções regulativas metodologicamente relevantes), compreende o sistema jurídico
como um sistema de procedimentos356.

1.3.3. O terceiro exemplo, o do mapping proposto por La Torre357, aparece na


continuidade dos anteriores: enquanto se assume, tal qual estes, como um «exercício de
analogia» — procurando, no campo positivista (entenda-se, na «distinção entre positivismo
“excludente” e “includente”»), a inspiração directa para distribuir os interlocutores do campo
não positivista … — mas também enquanto vê nesta distribuição (e na explicitação das suas
escolhas ou dos critérios que orientam o seu desenho) uma oportunidade privilegiada para
se situar, discutindo-distinguindo os méritos das propostas envolvidas ([so] that such a
classification could shed some light on our discussion and, more generally, on the merits o«f natural law, or
non-positivitic approaches358) . Mais do que o exercício de overlapping enquanto tal — tanto mais
evidente neste exemplo quanto é certo que o mapping em causa (distinguindo-se neste plano
do modelo de Alexy!) assume, sem complexos, uma recuperação por inteiro do binómio
positivismo /jusnaturalismo (tratando todas as vozes do non positivistic camp como natural law

353 Ibidem, pp. 267 e ss. [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 175]. Ver também «The Argument from
Injustice», pp.28 ff., 40 ff. Sem naturalmente esquecer «A Defense of Radbruch’s Formula», in D.
Dyzenhaus (ed.), Recrafting the Rule of Law: The Limits of Legal Order, Oxford / Portland Oregon 1999,
pp. 15 e ss.
354 The Argument from Injustice, pp. 80-81.
355 «The Dual Nature of Law», p. 271 [Ratio Juris, vol. 21 nº 3, p. 178]..
356 The Argument from Injustice, cit., pp. 24-25. «The qualifying or soft connection that

emerges when the legal system is considered as a system of procedures (…) leads not to a necessary
connection between law and a particular morality to be labeled correct in terms of content, but
rather, to a necessary connection between law and the idea of correct morality as a justified
morality…» (Ibidem, p.80)
357 Massimo La Torre, «On Two distinct and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive” versus

“Inclusive”», cit., pp. 197-216.


358 Ibidem, p. 197.
90

approaches)… —, importam-nos porém os pormenores do desenho e (ou) o critério que os


justifica. Que pormenores? Aqueles que se tornam visíveis quando descobrimos os mesmos
Beyleveld/Brownsword e Finnis (que Alexy distribuía por territórios diferentes)
univocamente tratados como jusnaturalistas excludentes… e muito especialmente quando nos
damos conta que a proposta defendida por La Torre se inscreve num território de
jusnaturalismo includente… cujos exemplos por excelência identifica com as grandes teorias do
discurso — a de Alexy, mas também a de Habermas (Habermas que, como sabemos, é, à luz
do mesmo contraponto juridicidade/moralidade359, frequentemente identificado com o campo
positivista360!).
O critério que justifica todos os pormenores deste traçado é efectivamente sempre o
mesmo, não certamente por acaso determinado por uma atenção condutora aos motivos da
positivação e da autoridade-poder (no limite também aos da publicidade e intersubjectividade dos
processos de deliberação). Na verdade, os jusnaturalismos de Finnis361 e de
Beyleveld/Brownsword362 (o destes últimos de resto com mais hesitações363!) são
qualificados de excludentes porque, ao defenderem uma concepção substantiva da validade
jurídica — fundamentada em basic goods364 ou derivada de um princípio moral absoluto365

359 Precisamente enquanto, versus Alexy, sustenta uma especificidade originariamente jurídica dos

direitos humanos…[« Die Menschenrechte (…) sind von Haus aus juristischer Natur…» (Habermas, «Zur
Legitimation durch Menschenrechte», Die postnationale Konstelation. Politische Essays, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, 1998, p. 183)]. Para uma discussão deste litígio Habermas/Alexy e da sua importância, ver infra , nota
383.
360Como se, ao associar a afirmação da pré-existência moral (moral-racional, e neste sentido também

universal) dos direitos do Homem à oportunidade-plausibilidade de um não positivismo (seja qual for a versão
em que este se nos dirige), nos víssemos simultaneamente constrangidos (não menos aproblematicamente) a
vincular a celebração da juridicidade intrínseca de tais direitos (e a autodisponibilidade prático-cultural que
nesta se experimenta) não só a uma confirmação da exclusividade das fontes sociais… mas também a uma
celebração indiscriminada da contingência regulativo-decisória do direito… e com estas a uma assimilação
«positivística» da teoria do discurso (consumada numa «solução» de positivismo democrático). Um equívoco que
vemos cultivado (e até exemplarmente agravado) na reconstituição de Peter Niesen e de Oliver Berl
[«Demokratisher Positivismus: Habermas / Maus», in Buckel / Christensen/ Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue
Theorien des Rechts, cit., pp. 3-28]: e decerto porque, para os Autores em causa, aludir às diferenças de
concepção que separam Habermas de Alexy, significa precisamente reconhecer que o momento
«voluntarístico» assumido por Habermas— reflectido numa compreensão jurídica dos direitos fundamentais
ou da praxis que os constitui (diese (…) Typen von Rechten fallen nicht vom Himmel (…), es sind Ansprüche, die als
Voraussetzungen einer soziale Praxis identifiziert werden ) — nos expõe à solução de um positivismo constitucional. «Es
handelt sich ausdrücklich nicht um moralische Menschenrechte, die jedem von Natur aus zustehen: damit
betont Habermas den Umstand, dass letzlich freigestellt ist, ob die Wahl der Mittel für die
Konfliktbearbeitung innerhalb einer Population zugunsten der Rechtsform ausfällt. Diese voluntaristische
Moment in der Aufnahme rechtlicher Beziehungen stützt die positivistische, nicht-natürrechtliche Position…» (Ibidem,
pp. 6-7, itálicos nossos).
361 Massimo La Torre, «On Two Distinct and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive”

versus “Inclusive”», cit., pp. 199-202 (1.).


362 Ibidem, pp.202-206.
363 «Beyleveld and Brownsword take a perspective which is not so very distant from the one

assumed by Habermas and Alexy. Hence, we might conclude tht the difference between the two views is
simply a matter of stress or methodology, the outcomes being more or less the same…» (Ibidem, p. 206).
364 Ibidem, p. 201 e ss.
365 Ibidem, p. 203 e ss.
91

(referida no limite à especificidade-particularidade de uma doutrina moral comprensiva366, no


sentido de Rawls)… e projectada numa construção «monológica» da racionalidade do
sujeito-julgador (iluminada pela referência às virtudes práticas do spoudaios-prudente, mesmo
quando alimentada por uma aparente dialéctica367) —, excluem significativamente a
possibilidade de tratar a positivação da prescrição-enactment (enquanto processo deliberativo
inscrito num debate público) como uma «condição de justificação ou de validade» das
normas (apenas lhe conferindo, quando muito, o status de uma «condição de aplicação» ou
de «eficácia», num «mundo imperfeito e contingente» como é o nosso) 368. Perante os riscos
de uma monarchical or anarchical institutionalization369, se não da celebração de um limited
government370 (incapazes de dar a relevância exigida ao constitutional moment, «no seu carácter
definicional e normativo»371), a alternativa passa assim a ser inevitavelmente confiada a um
jusnaturalismo includente (republicano-democraticamente concebido)372, no qual os «primeiros
princípios morais têm uma essência procedimental» (so that for them to become substantive there is
the need to refer to a concrete practice of (…) public deliberation)373 e no qual também as «instituições
públicas adquirem uma dimensão ontológica e normativa independente»374 — permitindo
que uma autêntica «racionalidade comunicativa» (precipitada nas exigências prático-sociais
da «representação» e da «participação») confira à prescrição autoritário-prescritiva (como tal
democraticamente produzida), um sentido normativo não menos autenticamente
«constitutivo»375 (Alexy’s and Habermas’ discourse theory allows for such a solution in so far as law´s
strong normativity, its own material principles, become evident and take substantive shape only in the
process of public deliberation, that is, in the procvess of positive law production376).

2. Etapa IV (percurso 2). A exigência de incluir num percurso reflexivo como aquele
que nos ocupa (metadogmaticamente comprometido com o problema do direito), uma
reconstituição atenta do debate do incorporacionismo — uma reconstituição que (sem
prejuízo de outros temas possíveis377) integre pelo menos os sinais ou estímulos temáticos a

366 Ibidem, p. 206.


367 Ibidem, pp.200-201, 203 e ss.
368 Ibidem, p. 199.
369 Ibidem, p.212.
370 Ibidem, p. 202.
371 Ibidem, p. 211.
372 Ibidem, pp. 207-215.
373 Ibidem, p. 208
374 Ibidem, p. 209.
375 Ibidem, p. 208-210.
376 Ibidem, p. 211.
377O mais relevante dos quais seria precisamente o da «compatibilidade entre convencionalismo e

incorporação», nos termos que Postema nos ajuda exemplarmente a reconhecer [Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Common Law World, cit., pp. 474-477 (10.2.2.), 483-545 («Conventions and the Foundations of
92

que aludi no desenvolvimento anterior [1.] — justifica-se decerto por si própria. Parochially
conceived (nascido, insista-se, da resposta a Dworkin exigida pelo positivismo crítico), tal
debate tem sabido impor-se com uma força avassaladora à atenção da filosofia e da teoria
do direito do nosso tempo (bastar-nos-ia invocar o exemplo de Alexy!)… com a
particularidade ainda de nos expor a uma sobreposição muito exigente de planos analíticos
e de problemas possíveis — mostrando-se enquanto tal incompatível com uma mera alusão
(exigindo neste sentido, sob pena de cedermos à caricatura, um tratamento minimamente
pormenorizado do seu núcleo duro). Sem prejuízo desta relevância (e da necessidade, também
aqui, de evitar equívocos relativamente comuns), importa no entanto lembrar que
começámos por assumir a inevitabilidade de uma incursão no referido debate invocando o
contraponto juridicidade /moralidade e o problema da discricionariedade do julgador e muito
especialmente a misinterpretation de que a pressuposição deste contraponto habitualmente
beneficia. Assim sendo, chegou o momento de perguntar se a referida incursão,
reconstituída nas suas vozes e tensões condutoras (com a atenção devida aos seus campos
interno e externo, este último indissociado de tentativas de classificação globalmente
pensadas) , nos autoriza por si só a cumprir um tal objectivo.
Parafraseando uma das epígrafes propostas por Raz («The Puzzles of the So-called
“Incorporation”»378), poderei dizer que o que esta incursão, nos termos acima esboçados,
está em condições de nos proporcionar (se for conseguida!), é afinal o acesso às peças de
um gigantesco puzzle (ou ensemble de puzzles), peças não só distribuídas por vários tabuleiros-
patamares… como também sujeitas a visées distintas (e neste sentido iluminadas com
conformações instáveis). Acesso que, como vimos, nos permite reconhecer no seu núcleo
duro (pela positiva e pela negativa, associadas a pretensões de necessidade ou a um
diagnóstico de contingência) as teses justificadas pelo campo positivista, na mesma medida em
que nos autoriza ainda a identificar nestas, com maior ou menor rigor, um espectro de
significados plausíveis, justificados pelo mesmo significante (validade jurídica, separação-
-separabilidade, fontes sociais, regra de reconhecimento, convencionalidade), se não a perceber que a teia
dos argumentos assim produzidos vai pressupondo e mobilizando um elenco de categorias
de inteligibilidade (normas, standards, princípios, legal reasoning, casos difíceis), cujos
significados (associados ou não a pretensões de intersemioticidade) exigiriam um esforço de

Law»)], debate que, passando a concentrar-nos na theory of conventions… e envolvendo como protagonista o
próprio Postema (mas também Coleman!), nos permitiria ainda encontrar outros interlocutores, tais como
Andrei Marmor, Kenneth Himma, Leslie Green e Margaret Gilbert. Um tema (mais um!) que o auditório real
estará em condições de enfrentar.
378 Título do capítulo II de «Incorporation by Law», Between Authority and Interpretation, cit., pp.190 e

ss.
93

determinação equiparável (com a fixação-distribuição do correspondente espectro de


possibilidades, dentro e fora do referido campo). A dificuldade principal, presente em todas
estas exigências de determinação, está no entanto na referência permanente à moralidade,
cujos limites de relevância, mesmo quando se trata de claramente a dizer moralidade política
ou de (mais ou menos implicitamente) pressupor a tensão entre «moralidade positiva» e
«moralidade crítica» («positive morality» [as] the morality actually accepted and shared by a given social
group/ «critical morality» [referring to] the general moral principles used in the criticism of actual social
institutions including positive morality), se quisermos, entre «moralidade convencional particular»
e «moralidade criticamente universal» (the moral culture of a particular community [as a] (…) body
of ensemble of] distinctive mores, norms, and standards / a critical [reflective] (…) general account of what
a society must be like if it is to accommodate the sort of beings we are)379 — ou mesmo (como vimos
nas propostas de classificação do campo não positivista) quando se trata de aludir
expressamente ao contraponto entre moralidade procedimental (republicano-democraticamente
institucionalizada) e filosofias morais (substantivamente) compreensivas —, estão por assim
dizer longe de ser tematizados, tanto na sua relação com a juridicidade como com as outras
dimensões da prática. Enfrentar esta dificuldade é pois indispensável, tanto mais que as
tentativas de classificação acima exemplificadas, na sua pretensão de arrumação
unificadora, se mostram enquanto tais (enquanto distribuem os interlocutores envolvidos)
insensíveis a esta problematização ou ao rigor que ela exige380.
É este o desafio do presente percurso (Etapa IV- percurso 2). Podemos dizer, com
efeito, que, em confronto com o que uma possível reconstituição do debate do incorpora-
cionismo terá exigido (Etapa IV- percurso 1), se trata agora de acolher um tempo aberto (mais
um dos exigíveis tempos abertos), no qual os diversos participantes no seminário possam ser
estimulados a terminar o puzzle ou a conferir às peças disponíveis a unidade de
configuração e de localização que logradamente as inter-relacione. O que envolve
seguramente diversas procuras paralelas, sendo certo que cada uma delas, invocando um

379 Para o dizermos respectivamente com Hart e com Waldron (sublinhando-esclarecendo uma

distinção que vem de Austin… e que o diálogo com o utilitarismo tornou hoje habitual): Hart, Law, Liberty
and Morality, Stanford, Stanford University Press, 1963, pp. 17-24 («Positive and Critical Morality») [citação da
p. 20], Waldron, «Particular Values and Critical Morality», California Law Review, vol. 77 nº 3, pp. 561-589
[citação das pp. 561, 562, 563, 582, 587].
380 Porventura porque o que procuram são menos analogias reciprocamente determinantes do que

equivalências em espelho (capazes de reflectir as gradações do campo positivista) — com a agravante de


contribuirem para a instabilidade das categorias nuclearmente tematizadas, a começar decerto pelas de exclusão
/inclusão/ incorporação… categorias que, como já vimos, passam a ser flexivelmente mobilizadas (com alvos de
exclusão e inclusão que podem ir dos princípios morais às condições necessárias ou suficientes da juridicidade
ou validade jurídica)!
94

tratamento possível do binómio moralidade/ juridicidade, deverá cumprir-se «ouvindo» um


interlocutor principal (e a tematização que este oferece).
O que se segue é uma mera exemplificação, construída a partir do contexto
explícito do debate do incorporacionismo… e identificando respostas que, ao explorarem
possibilidades de assimilação-tratamento, se vão mostrando sucessivamente mais
distanciadas deste contexto (e do environment que o torna possível).

2.1. A primeira resposta que me parece possível convocar deve-se a La Torre e


expõe-se-nos numa linha de continuidade com o mapping por ele proposto e com a solução
de jusnaturalismo includente com que nele se situa. Trata-se muito claramente de defender que
esta solução, pelas exigências que associa à experiência de determinação-realização dos
princípios, se mostra afinal em condições de superar a sua posição inicial (como uma
concepção entre outras concepções possíveis, se não como uma reacção reflexiva imediata,
do outro lado do espelho, aos desafios do positivismo includente)… para assim mesmo poder
ser mobilizada como o degrau cuja perspectiva, superando o discurso «monológico» do
jusnaturalismo excludente, nos autoriza a completar harmoniosamente o puzzle, reconciliando
(«paradoxalmente»!) os núcleos capitais (ou o que este degrau revela como sendo os
núcleos capitais) dos positivismos includente e excludente (we might thus conclude that paradoxically
it is only through natural law (…) in its «inclusive» version (…) that we can perhaps succeed in reconciling
«exclusive» and «inclusive» positivism381). A resposta constrói-se, com efeito, assumindo uma
concepção dos princípios que, sendo inequivocamente procedimental — e assumindo uma
representação da positividade-vigência indissociável de um constitucionalismo discursivo (capaz
assim mesmo de nos comprometer com o projecto de institucionalização de uma democracy
of principles and rules382) —, é, ao fim e ao cabo, muito mais devedora da proposta de Alexy
do que da de Habermas (os dois rostos, como sabemos, explicitamente mobilizados por La
Torre!)383 , quer porque se trata de «levar a sério» tais princípios na sua moralidade intrínseca,

381La Torre, «On Two distinct and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive” versus
“Inclusive”», cit., p. 215.
382 Id., «Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation», Ratio Juris,vol.

15, nº 4, p. 400.
383 Explorei o litígio Habermas/Alexy a que aqui se alude — com Habermas a defender que os

universos da moral e do direito (concentrados exemplarmente nos pólos da autonomia moral e da autonomia do
cidadão, quando não se ocultam sob as máscaras dos «direitos» morais e dos direitos fundamentais), afirmam origens
prático-culturais equiparáveis (e beneficiam de uma presunção de igualdade-complementaridade), devendo assim
dirigir-se-nos sem qualquer hierarquia ou precedência… e com Alexy a corresponder exemplarmente à
compreensão do direito como institucionalização de uma moralidade crítica universal (justificada pelo
binómio real /ideal e pelo contraponto entre direitos positivos de índole jurídico-constitucional e direitos humanos
morais)... — em «O homo humanus do direito e o projecto inacabado da modernidade», in Canotilho/Vital
Moreira (coord.), Da virtude e fortuna da república ao republicanismo pós-nacional, Casal de Cambra, Caleidoscópio,
2011, pp. 91 e ss. [também no Boletim da Faculdade de Direito LXXXVI (2010), pp. 505 e ss.] e (a propósito das
95

enquanto razões não autoritárias universais — indissociáveis do argumento a favor da dimen-


são ideal do conteúdo jurídico e neste sentido, como vimos, de uma exigência de correcção
(dita de primeiro nível), na qual a validade moral se nos impõe na sua necessidade conceptual e
normativa —, quer porque, sem soluções de continuidade, se trata ainda de mostrar que a
realização-especificação em concreto das suas intenções (vinculada, sem surpresa, a um
método de balancing384) nos expõe implacavelmente às insuficiências da racionalidade jurídica
— esta identificada com um discurso de regras e de razões autoritárias (legal reasoning, in the sense
of assessment of a valid legal rule, will not suffice here) — e à necessidade de uma racionalidade
moral… — e desta enquanto argumentação (to give content to principles (…) we need to combine them,
to weigh one against the other, as an exercise in moral argumentation)385. É certo que esta dupla
acentuação, na sua concentração reflexiva, inscreve à partida alguma pluralidade
(circularmente constitutiva) no tratamento unitário dos princípios…

Refiro-me fundamentalmente à possibilidade de falarmos de princípios para identificar


não só, por um lado, (a) as exigências de uma moralidade universal «descontextualizada»,
crítico-procedimentalmente concebida (as a non relativistic meta-ethics386) e (b) os argumentos
normativos baseados nos pragmata desta moralidade (como tal conduzidos por uma
conclusion-claim of correctness)… — como acontece de resto seguramente com Alexy! — … mas
também, por outro lado, para enfrentar (c) os compromissos emergentes de práticas
socialmente institucionalizadas, desde que (ou a partir do momento em que) submetam o
seu conteúdo aos limites impostos por aqueles argumentos e exigências e em que superem
assim o seu particularismo e o seu carácter substantivamente convencional (desde que, numa
palavra, resistam aos testes sobrepostos da «discursividade» e da «universalização»387).

A relevância de uma tal acentuação está no entanto na reconciliação que antecipa e


na compreensão drasticamente selectiva do contributo do positivistic camp que assim defende
(privando-o do seu cognitivismo de base388 e estimulando-o a assimilar-assumir um
participant’s viewpoint). É que se trata, por um lado, de «receber» do positivismo includente a
conexão princípios morais/ regra de reconhecimento (superando embora a contingência desta

diferentes concepções dos princípios) em «Na “coroa de fumo” da teoria dos princípios. Poderá um
tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», cit., passim.
384 Sem excluir no entanto uma (muito dworkiniana) alusão à best theory: «We have to reconstruct the

said principles within the theory which best justifies them. We have to reproduce the arguments supporting
them, trace other relevant principles and build a more or less coherent scheme » (La Torre, «On Two distinct
and Opposing Versions of Natural Law: “Exclusive” versus “Inclusive”», cit., p. 213).
385 Ibidem. «Since (…) [principles] are general standards and thus in order to be operative need to be

stated precisely and to be balanced, citizens and lawyers have to enter into a process of moral reasoning, if
they want to give such principles a more determinate content…» (Ibidem)
386 Id., «Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation», cit., p. 400.
387 Ibidem, pp. 394 e ss. (II.4).
388 Ver supra, nota 30.
96

conexão), como se trata também de, por outro lado, no plano da theory of adjudication,
«receber» do positivismo excludente (ou pelo menos de Raz) uma representação explícita da
relação legal reasoning/morality, se não uma acentuação lograda dos limites da primeira —
representação e acentuação estas às quais o jusnaturalismo includente poderá oferecer uma
concepção precisa de moralidade (indissociável da positivação-vigência que os seus princí-
pios orientam)389. Resposta que nos autoriza a concluir o puzzle? Certamente. Mas apenas
na medida em que possamos aceitar uma representação da juridicidade que encontre a sua
dimensão real no «environment» de um constitucionalismo discursivo e a sua dimensão ideal
na moralidade crítica (não relativista) que o alimenta… e no continuum normas / princípios
que assim (aculturalmente) se consagra…

2.2. Significativamente menos definitiva (por isso mesmo mais estimulante) é


decerto a resposta ensaiada por um dos protagonistas do debate da incorporação, enquanto e
na medida em que, autopenitenciando-se, procura distanciar-se deste debate e dos seus
quizzes-quibbles (I include myself among the confused and the misguided (…) [and also] among those
responsible for much of the confusion that has passed as insight390)… e assim mesmo integrar
harmoniosamente os seus contributos (ou pelo menos garantir-lhes novas possibilidades de
distribuição). Refiro-me evidentemente a Coleman e à sua prometedora tentativa (apenas
iniciada!391) de garantir à Jurisprudence uma nova architecture, livre da tirania dos rótulos e da
sedução dos -ismos (e da conventional wisdom que os cultiva), porque justamente sustentada
num discurso (que quer ser) de problemas e de respostas (merely taxonomical concerns (…) do not
point us in the direction of the right questions, let alone the right answers (…), [w]e need an architecture
within which the right questions are asked and the prospects for progress on their resolution are

389 «An “inclusive” natural lawyer would be able to fruitfully combine the most promising and

plausible insights of both “inclusive” and “exclusive”positivism. From the “inclusive” positivist he would
accept the insight that moral principles can play a role in the rule of recognition and in the definition of what
a concrete positive law requires. From the “exclusive” positivist he will receive the view that legal reasoning
necessarily refers to moral reasoning, its autonomy being limited…» (Ibidem, p. 400).
390 Coleman, «The Architecture of Jurisprudence – I», cit., p. 66.
391 « This is the first of three connected essays that will form a short book on jurisprudence the aim

of which is to provide a framework within which several of the most pressing issues in jurisprudence can be
addressed and progress on them made. (…) In this essay, I set out to clear the decks of two of the most
important yet misleading nuggets of conventional wisdom. In The Architecture of Jurisprudence - Part II, I
lay out the architecture of jurisprudence, and in Part III, I characterize the problem of ‘law’s place’ and show
how this problem is not unique to jurisprudence, but arises in a variety of areas of philosophy from the
philosophy of mind to action theory…» (Coleman, «The Architecture of Jurisprudence»-draft, cit. supra, nota
130, pp. 3-4 e 1-2 das duas «fontes» on line aí citadas). Veja-se também a antecipação mais pormenorizada das
partes II e III no final do texto definitivo do primeiro ensaio: «The Architecture of Jurisprudence – I », cit.,
pp. 76-80 (VII. «A New Begining»).
97

enhanced392). Para o problema que nos ocupa, a relevância imediata desta tentativa (a
relevância que nos estimula a explorá-la, sem esperar pelos outros dois volets do prometido
tríptico!) não está no entanto apenas nem principalmente na denúncia de tais preocupações
taxinómicas e dos riscos que estas envolvem — denúncia em que justamente convergem os
oponentes Raz e Finnis393! —, está antes numa reconstrução crítica (muitas vezes
autofágica) dos argumentos produzidos e nesta enquanto nos autoriza a perceber que as
propostas do positivismo includente não devem ser tratadas como se competissem com o
degrau do positivismo excludente e com o campo não positivista, ou como se constituissem
alternativas logradas para as soluções que estes oferecem (on my reading, inclusive legal
positivism is not an alternative or competitor to either natural law or to exclusive legal positivism[, i]t has a
different logical object, [i]t answers a different set of questions [, i]t purports to play a different philosophical
role 394, inclusive and exclusive legal positivism are not in fact competitors395, [c]ontrary to the prevailing
wisdom, inclusive and exclusive legal positivism are not alternative jurisprudential views—either about legal
content or the nature of law more generally396). Pode mesmo dizer-se que se trata de admitir que a
integração indispensável — capaz de vencer equívocos tão frequentes como aqueles que
vêem no positivismo excludente uma expressão-especificação, mais ou menos indiscriminada,
da cisão juridicidade /moralidade (the Razian version of exclusive legal positivism (…) [presuposes that]
at the most fundamental levels law and morality are necessarily connected 397) — passa precisamente
pelo exercício de mobilizar as peças reunidas para as distribuir por dois puzzles distintos e
os respectivos tabuleiros-patamares, com perspectivas também diferenciadas. O que
significa pelo menos dever introduzir novas e insuspeitadas peças num dos tabuleiros…
A solução constrói-se distinguindo duas perguntas — «o que é que determina o
conteúdo jurídico?» (what determines legal content?) e «o que é que determina os determinantes
do conteúdo jurídico?» (What determines the determinants of legal content? (…) What are the grounds
of the determinants of legal content?) —, mas sobretudo admitindo que estas perguntas ocupam
planos discursivamente inconfundíveis, com a primeira a corresponder a um plano
semântico (a first-order, object-level view) relativo à «metafísica do conteúdo jurídico» e a
segunda a interpelar este mesmo «conteúdo» num plano já meta-semântico, se não «meta-

392 «The goal of jurisprudence is to identify the problems and questions of jurisprudence and to

make progress in responding to and answering them. There is little reason to suppose that labeling any
particular kind of answer will contribute much to our success at either…» (Ibidem, p. 75)
393 Para além do ensaio de Raz sobre Alexy, no qual este perigo dos –ismos e das suas seduções

redutoras (como que em bloco) é justamente denunciado («The Argument from Justice, or How Not to Reply
to Legal Positivism», cit., passim), ver também Finnis, «Natural Law: the Classic Tradition», cit., p. 11-14.
394 Coleman, «The Architecture of Jurisprudence – I », cit., p. 56, nota 64.
395 Ibidem, p. 66.
396 Ibidem, p. 69.
397 Ver supra, citações identificadas nas notas 272 e 287.
98

metafísico» (a second order view)398. Se aceitarmos esta repartição de territórios, poderemos


facilmente concluir:
(a) que o positivismo excludente disputa (como uma das concepções possíveis) o
primeiro patamar, respondendo à pergunta nele formulada com a tese das fontes sociais (only
social facts determine the content of law)… e concorrendo-competindo assim apenas com os não
positivismos (ditos jusnaturalismos) — aqueles que (em termos mais fortes ou mais débeis)
defendem que tais determinantes são (exclusivamente ou não) factos normativos (only normative,
evaluative or moral facts contribute to the content of law / both normative and social facts contribute to legal
content)399 —…
(b)… e que o positivismo includente, ao defender que os determinantes dos determinantes
são apenas factos sociais — mesmo quando o conteúdo do direito for determinado por factos
morais (o que, como sabemos, é uma possibilidade efectiva a ter em conta!)400 —, situa as
suas pretensões em contrapartida no patamar meta-semântico… concorrendo assim já não
com o positivismo excludente e com os não positivismos… mas com outros dois interlocutores
possíveis, que Coleman identifica mobilizando as «máscaras» do normativismo e do conceptua-
lismo401(inclusive legal positivism, normativism, and conceptualism are all competing accounts at the
metalevel: putative accounts of how it is that these facts (…) and not others (…) contribute to legal
content402).
Sendo preciso acrescentar que o normativismo neste plano meta-semântico (em
versões também mais fortes ou mais fracas) corresponde a todas as posições em que os
determinantes dos determinantes são (ou podem ser) factos normativos (normative facts determine the
determinants of legal content)… e que o conceptualismo qualifica em contrapartida todas aquelas
outras em que os ditos determinantes-fundamentos se confundem com proposições
presumivelmente verdadeiras «àcerca da natureza essencial» da juridicidade (the determinants of
legal content derive from truths about the essential nature of law)403.
A separação destes patamares e a compossibilidade dos dois mapas que estes
engendram (com as gradações internas que as pretensões de necessidade ou de mera
contingência invariavelmente acrescentam aos interlocutores que já considerámos404) abrem
possibilidades de classificação surpreendentes: para Coleman não se trata, com efeito,

398 Ibidem, pp. 68-72 («Semantics and Meta-Semantics»)


399 Ibidem, pp. 62-64 («Meet the New Boss, Same as the Old Boss!»).
400 Ibidem, pp. 64-65 («There is Something Happening Here!»)
401 Ibidem, pp. 68 e ss.
402 Ibidem, p. 71.
403 Ibidem, pp. 70-71.
404 Garantindo um espectro de seis posições possíveis no plano semântico e de cinco posições no

plano meta-semântico! Ver todo o cap. VI, ironicamente intitulado «It is about the Metaphysics – Maybe»
(Ibidem, pp. 61- 75).
99

apenas de conferir uma força renovada ao núcleo duro da sua proposta405 — justificando
enfim porque é que a tese semântica das fontes sociais se mostra plenamente compatível com a
tese meta-semântica da incorporação dos princípios morais (sem prejuízo de a primeira nos
aparecer frequentemente iluminada por uma pretensão de necessidade e de a segunda se nos
impor dominantemente associada a uma pretensão de possibilidade ou de contingência) —, trata-
se também de poder mostrar que as combinações são múltiplas… e que perspectivas
nuclearmente convergentes no plano semântico (ao fim e ao cabo todas as que frequentam o
positivistic camp!) podem divergir significativamente no plano meta-semântico…

Em relação ao ensemble das propostas positivistas que considerámos (na sua conexão
com este tabuleiro meta-semântico ou meta-metafísico), poder-se-á concluir que só a perspectiva
de Coleman está em condições de sustentar um autêntico positivismo includente (capaz de
assumir uma pretensão de contingência406… mas sobretudo de rejeitar que a efectiva incorporação
dos princípios possa estar associada a quisquer tipos de pretensões fundamentais àcerca da natureza
do direito)… e que só a de Shapiro está por sua vez em condições de levar a sério um puro
conceptualismo (justificado pelas categorias de inteligibilidade social planning e moral aim,
defendidas num plano puramente categorial, não normativo). Na perspectiva da nova «grelha»,
Hart e Raz assumirão já em contrapartida posições meta-semânticas híbridas, correspondendo a
do primeiro a uma sobreposição de inclusivismo (numa versão necessária407) e conceptualismo (este
iluminado pela categoria rule of recognition), resultando a do segundo de um compromisso
efectivo entre conceptualismo e normativismo — com o conceptualismo a impor-se-nos através da
compreensão da natureza do direito enquanto autoridade… e com o normativismo a
corresponder já à exploração da moralidade ou da natureza moral desta pretensão (as a claim to
superior service) ou dos argumentos que a sustentam, na sua especificidade crítico-regulativa408
(Raz holds that the determinants of legal content derive from claims about the essential nature of law, but at
least some of those claims are, in his account, defended on normative grounds409).

405 Aquele núcleo que tem por assim dizer resistido aos sucessivos exercícios de reformulação-
superação (se não falsificação) que carcterizam o percurso hoje único de Coleman.
406 «If there is a plausible formulation of the core of inclusive legal positivism it is: (…) “Only social

facts determine which facts contribute to the law having the content that it does”; or “Necessarily, only social
facts can determine which facts contribute to the law having the content that it does”…» (Ibidem, p. 65).
Podemos dizer que a primeira versão corresponde à de Coleman (mas também às de Waluchow ou Kramer) e
a segunda à de Hart…
407 Ver nota anterior.
408 «[Raz e Shapiro] not only identify different features of law as essential to it, but they defend

their claims in very different ways. In Raz’s overall argument, the key idea is that of the service
conception of authority, but it is well known that Raz’s argument for that conception is explicitly normative.
(…) So we have a positivistic first-order metaphysical claim supported by a conceptual claim (about the
nature of law) and a normative defense of another claim (about the nature of authority). Not so for Shapiro.
(…) In his case, we have the same ‘positivistic’ claim about legal content derived from conceptual claims
about the nature of law and about the nature of plans. There is no normative argument in sight. No
normative or moral considerations are doing any heavy lifting…» (Ibidem, p. 74)
409 A esta afirmação segue-se de resto uma conclusão perturbante, onde uma vez mais (e sempre por

razões diferentes), vemos Raz a aproximar-se de Finnis! « And that means that in an obvious sense Raz seems
100

A relevância da nova arquitectura não se fica porém pelo traçado destes mapas e
pelas correcções que estes introduzem, enquanto inscrevem o problema da incorporação
dos princípios num círculo de relevância meta-semântico. Promete-nos ainda novos mapas.
Sem prejuízo dos desenvolvimentos que a exploração da nova arquitectura venha a exigir,
posso já acrescentar que dois destes mapas nos interessam especialmente.
A começar por aquele que distingue e relaciona conteúdo jurídico e semântica do discurso
jurídico: o primeiro (legal content) a ser determinado por modos institucionalemente
consagrados de constituição-manifestação-positivação da juridicidade, o segundo (legal
semantics, semantics of legal discourse), a construir uma autêntica teoria do sentido (meaning), capaz
de nos dizer como é que, ao fim e ao cabo, compreendemos os enunciados com a forma «p
é, na jurisdição J, a resposta do direito» (‘it is the law in jurisdiction J that p’)410.

Em relação ao espectro de possibilidades que esta teoria estará em condições de


acolher, Coleman admite que uma das modalidades de compreensão possíveis (precisamente
aquela que é assumida por ele próprio, Coleman… e por Raz), consista em (versus Holmes e
Kelsen, protagonistas das outras alternativas) tratar as exigências dos enunciados jurídicos
(vigentes num determinado sistema) como autênticas imposições de deveres morais (ou de
razões morais para agir). O que nos conduz à alternativa de uma semântica moral… mas então
também à exigência (muito especialmente visível no exemplo de Raz!) de conciliar a
«“magra” metafísica do direito», justificada pela teoria das fontes, com uma «“rica” semântica
moral do discurso jurídico», iluminada pela natureza normativa da autoridade e pela
possibilidade de, através desta, conferir às razões mobilizadas um impacto moral acrescido

committed to the view that the determinants of legal content are ultimately fixed by normative facts! (…)
And what is the proper conclusion to draw from this? Is it that Raz is not really a positivist? (…)Are we to
say that at the end of the day Raz is not a positivist, and that to be a positivist is to start with the sources
thesis and work backwards to its foundation without once ever invoking moral or normative considerations?
Thus, Hart would only pass part of this test and the same at best would hold for me. Shapiro would be a
positivist, but who else? Why care?» (Ibidem, pp.74-75). Seja como for, esta última pergunta salva a situação,
remetendo-nos para os perigos da fúria taxinómica (e dos tipos ideais que a cristalizam). Não sem alguns
desgastes, porém. Até que ponto, com efeito, é que conclusões deste género não pervertem a separação
semântico /meta-semântico e a arrumação definitiva que esta pretende introduzir? Se Raz usa as considerações
normativas no plano estritamente meta-semântico, terá sentido duvidar do seu positivismo excludente? Se
podemos duvidar … e exigir que esta opção semântica se reflicta no plano meta-semântico (e é esta a
argumentação de Coleman na passagem de que extraí o fragmento citado!)… então é porque a distinção
destes dois níveis (e dos tabuleiros correspondentes) é ela própria francamente discutível… — fazendo cair
por terra os argumentos que sustentam o incorporacionismo como uma abordagem meta-semântica… Contra-
argumentação que ficará ainda facilitada (questionando toda a nova architecture) se nos dermos conta de que,
na sua desilusão com os rótulos, Coleman vai ao ponto de admitir que there is no place in theory construction where
we can draw a line to distinguish a positivistic jurisprudence from a natural law or normativist one (Ibidem, p. 75). À luz da
redistribuição dos tabuleiros, que sentido pode ter uma afirmação como esta? Se levarmos a sério os novos
mapas, não haverá sempre pelo menos uma convergência decisiva dos positivists no plano semântico, uma
convergência que, sem prejuízo de devermos estabelcer gradações, nos autorizará sempre a opor positivismo
e não positivismo (agora sem introduzir o incorporacionismo na contenda)? Como vemos, há muitas
questões a pôr (e outros tantos desafios a considerar pelo nosso auditório implícito)… mesmo quando o
percurso auto-reflexivo é tão rico e estimulante como o de Coleman…
410 Ibidem, pp. 76-77 («Legal Content and Legal Semantics»).
101

(law does not merely report the existence of a moral duty or an important moral reason to act (…), it should
be understood as imposing such a duty)411 …

Quanto ao último mapa, já o conhecemos! É exactamente aquele que, reforçando


os argumentos contra uma pretensão de autonomia associável quer ao direito quer ao
pensamento jurídico412, distribui os interlocutores de acordo com a concepção do law’s place
— com uma primeira (esmagadora!) frente a alimentar a concepção de que a normatividade
do jurídico deve ser prioritariamente compreendida na perspectiva da societas ou na
continuidade decisiva com as outras dimensões da vida social (ainda que porventura sem
reduzir o seu discurso ao de uma pura racionalidade instrumental), com uma segunda
frente a assumir em contrapartida que o referido lugar há-de privilegiadamente encontrar-se
cultivando… a continuidade com a moralidade.

O mais surpreendente neste mapa está de resto na distribuição dos interlocutores


exemplares: com Hart, Shapiro… e Coleman himself (pondo o acento tónico respectivamente
nas social rules, nos plans e na law’s conventionality) a justificarem o primeiro destes lugares
(emphazising the sociality of law, the ways in which law is continuous with other aspects of our social life)… e
Raz, uma vez mais distanciando-se destes e a aproximando-se dos natural lawyers, enquanto
privilegia a segunda alternativa (for them, to understand or to grasp law is to appreciate the ways in
which law makes a moral difference (…), for them, the most fundamental feature of law is its continuity with
morality and moral life more generally)413.

Sejam quais forem os méritos destas tentativas, estamos no entanto já em


condições de perceber que a sua possível resposta se cumpre pressupondo (não menos
aproblematicamente) experiências da moralidade e da relação moralidade /juridicidade
inteiramente distintas daquelas que o exemplo de La Torre, seguindo de perto Alexy, nos
permitiu descobrir. Se La Torre (mobilizando a discutível grelha taxinómica pressuposta
por Alexy) completa o puzzle impondo uma solução abrupta, heteronomamente construída

411 Ibidem, p. 76.


412 Veja-se por exemplo a discussão da relação entre pensamento jurídico e filosofia: «But the
tradition in legal philosophy has been to isolate jurisprudence—to treat its problems as only marginally
connected to the core concerns of philosophy more generally. This has been bad for jurisprudence because it
has isolated those who work in the field from both lawyers and legal theorists of all stripes on the one hand
and from philosophers more generally on the other. It has been even worse for jurisprudence because it has
robbed the subject of the tools of philosophy more generally and the talents of philosophers in other areas of
philosophy. Progress has stalled for all the wrong reasons: not because the problems are too hard or too
deep, but because too much effort has been devoted to the wrong issues. One deepens and confirms the
importance of jurisprudence not by displaying its ‘uniqueness’ but by showing the ways in which its problems
are the problems of philosophy more generally…» (Ibidem, p.76).
413 Ibidem, pp. 79-80 («Law’s Place»).
102

— partindo de uma representação unitária da moralidade (como moralidade crítica, justificada


pelo princípio do discurso) para descobrir o contraponto direito/moral desenhado pelo debate
do incorporacionismo… e muito especialmente para impor este significado (preciso) a todos
os significantes reunidos (o que, com o preço de uma drástica simplificação do próprio
debate414, lhe permite consagrar assim também uma imagem unívoca da juridicidade!) —,
Coleman, multiplicando os puzzles e os tabuleiros que lhe dão sentido, garante ao
tratamento da moralidade a diversidade que o próprio debate lhe atribui, não propriamente
porque a tematize (ou porque intensifique a atenção reflexiva que esta poderá merecer),
mas porque, em nome de uma tese de convencionalidade, levada às suas últimas
consequências, se limita por assim dizer a prolongá-la! O que significa afinal admitir que a
conformação relevante da referida moralidade seja (possa ser) aquela que o relevo positivo
ou negativo dos chamados factos normativos ou avaliativos (na imanência das práticas que
manifestam as pretensões correspondentes) lhe for atribuindo: com um espectro de
possibilidades que, como vimos, poderá passar da referência a cânones colectivamente
estabilizados para o universo das convicções individuais, na mesma medida em que poderá
oscilar entre uma mobilização de convenções substantivas comunitariamente particulares,
(vinculadas a uma certa moralidade positiva) e o recurso a exigências de reconstrução
sustentadas numa pretensão de universalidade (que, como tal, se mostrem indissociáveis de
uma moralidade crítica). Sendo certo que o cruzamento de todas estas razões para agir se torna
indispensável para levar a sério uma certa concepção dos casos difíceis (que vimos iluminada
pela tematização, positiva ou negativa, das chamadas discordâncias morais e dos seus
limites de relevância), na mesma medida também em que se impõe como recurso decisivo
se quisermos discutir a obrigatoriedade e a força normativa das regras (um dos topoi que a
herança de Hart torna inseparável do debate da incorporação) …
O que nos conduz a uma conclusão inevitável: a resposta que podemos construir
ouvindo Coleman, sem prejuízo da unidade na pluralidade que garante (e da abertura
permanente que assim nos promete), condena-nos à dialéctica interior do próprio debate e
aos pressupostos que esta assimila. É como se a denúncia pertinente das simplificações
introduzidas pelos rótulos, justificando uma distribuição plausível (muitas vezes
fascinantemente eloquente!) das peças do puzzle, nos obrigasse menos a um discurso de
problemas (como expressamente promete) do que a uma fuga para a frente, consumada
numa multiplicação, mais ou menos hábil, de taxinomias (com os seus inevitáveis –ismos).
O que, conjugado com a sveltezza auto-reflexiva demonstrada (e prometida), não seria

414 Tal como de resto já acontece, importa dizê-lo, com a classificação proposta por Alexy!
103

especialmente significativo, se não nos condenasse paradoxalmente a um esquecimento do


problema principal, ou mais rigorosamente, a uma não problematização do environment,
herdado do «middle way» de Hart, que protege a sua formulação… e que vincula o seu
tratamento temático a uma organização serial implacável: como se discutir o problema dos
princípios implicasse inevitavelemente tematizar a relação juridicidade /moralidade e a regra
de reconhecimento que identifica a primeira (ou um sucedâneo desta)… mas também convocar
uma certa experiência da discricionariedade (iluminada por uma «teoria» dos casos difíceis)… e
então e assim sempre rejeitar a possibilidade de associar ao direito e ao pensamento jurídico
uma pretensão de autonomia (pretensão que, nos limites de inteligibilidade deste environment, só
poderá continuar a ser defendida por uma concepção formalista)!
Ter consciência das exigências que esta organização serial impõe (mesmo nos seus
limites de auto-diferenciação) significa no entanto introduzir uma deixa decisiva para
reconhecer outros caminhos… e para perguntar se, e até que ponto é que, estes estão em
condições de a superar.

2.3. Uma deixa para outros caminhos, disse. Que outros caminhos? Se o resultado
da tentativa anterior for semelhante àquele que antecipámos, há, com efeito, um percurso
de superação maior que, pelos argumentos que tem vindo persistentemente a mobilizar e a
reconstruir — quer se trate de explorar a compreensão do direito como integridade, quer se
trate de contrapor à tese da discricionariedade uma tese de única resposta correcta —, se nos oferece
em condições privilegiadas de simultaneamente reconhecer e rejeitar os pressupostos a que
aludimos, cujas possibilidades de resposta ao problema que nos ocupa terão assim que ser
desde já explicitamente mobilizadas e discutidas: refiro-me evidentemente àquele que o
interpretativism de Dworkin nos permite prosseguir. Mais do que simplesmente atender,
enfim já sem intermediários, à proposta que provocou a auto-reflexão do positivist camp —
uma proposta que o debate do incorporacionismo, nos seus diferentes degraus (como
pudemos entrever) tem persistido em identificar (quando não em recriar) como o seu
grande interlocutor-oponente — , trata-se, com efeito, de mobilizar uma resposta ao problema
da validade-vigência dos princípios juridicamente relevantes e ao problema da realização do
direito em concreto que (não certamente por acaso) se cumpre enfrentando a relação
juridicidade/moralidade, se quisermos, exigindo aquela reflexão auto-diferenciadora que uma
remissão pura e dura para uma prática contingente (ainda que de consagração de factos
normativos) não pode (nem quer) assegurar.
104

É na reexposição (se não supplement415) de Justice for Hedgehogs (no novum que esta
introduz enquanto consagração-releitura dos percursos anteriores) que tal auto-reflexão,
com as componentes que acabámos de identificar, deve principalmente ser procurada.
Podemos, em duas palavras, dizer que se trata de, com «o ouriço» (rejeitando o ponto de
vista da «raposa»), renovar (recuperar) uma aposta prático-existencial na unidade do valor e na
força da integração (ou intercompreensão) que a sua projecção in action determina (the truth
about living well and being good and what is wonderful is not only coherent but mutually supporting416).
Reinventar esta unidade significa, com efeito, levar a sério o contraponto ciência
/interpretação (e este como uma reformulação lograda do binómio explicação / compreensão):
reconhecendo uma «dualidade» de experiências reflexivas — sustentada em dois grandes
territórios da intellectual activity e nos discursos de razões (se não nas pretensões de verdade)
que lhes correspondem (interpretation [stands] (…) as a full partner beside science in an embracing
dualism of understanding417)418 —, mas também confirmando que a tematização da «verdade»
associada à unidade do «valor» (ilustrada decisivamente pelo problema dos argumentos que
sustentam a «dependência recíproca» dos «valores éticos» e dos «valores morais») exige um
discurso centrado no segundo território, ou mais rigorosamente, práticas interpretativas de
um particular genre, precisamente aquele que Dworkin identifica como conceptual interpretation
— a interpretação na qual se procura o «sentido» de um certo conceito prático-comunitário
(«verdade», «justiça», «razoabilidade», «responsabilidade», «legitimidade», «liberdade,
igualdade, democracia, direito»419), «conceito» este que, na sua relevância moral e (ou)
política, se nos exporá sempre como verdadeira criação-recriação (persistentemente
retomada) da comunidade em causa e das diversas práticas que internamente a constroem e
especificam (a concept (…) that has been created and recreated not by single authors but by the
community whose concepts it is, a community that includes the interpreter as a creator as well420).
Em que sentido é que uma tal reexposição, iluminada pela perspectiva da unidade
da fundamentação racionalmente plausível (there are right answers to moral questions) — e por
esta muito especialmente projectada numa articulação-especificação (constitutivamente

415 É assim que, invocando as exposições-desenvolvimentos de Law’s Empire e de Justice in Robes,

Dworkin qualifica expressamente o contributo do último capítulo de Justice for Hedgehogs: «This chapter is
meant to supplement [those] (…) books, not substitute for them…» (Justice for Hedgehogs, Cambridge Mass./
London, the Belknap Press of Harvard University Press, 2011, p. 485, n1).
416 Ibidem, p. 1.
417 Ibidem, pp. 123-124.
418 Para exprimir a possibilidade defendida por Dworkin de opor ao discurso científico um global

discurso interpretativo (repartido embora por géneros e tipos diferenciados), Lawrence B. Solum fala de uma
unity-of-interpretation thesis: Solum, «The Unity of Interpretation», The Boston University Law Review, Vol. 90, pp.
558 e ss. («What Is Interpretation?»).
419 Justice for Hedgehogs, cit., p. 157.
420 Ibidem, p. 136.
105

integradora) da ética, da moralidade pessoal e da moralidade política (e das correspondentes


práticas interpretativas), se não por uma postcolonial interpretation of truth (capaz de levar a
sério a «independência do valor» e de assim libertar a ética e as moralidades em causa, com a
inclusão do direito, de todas as pretensões colonizadoras cultivadas pelos discursos
teoréticos)421 —, nos aparece em condições de reconhecer e de superar a organização serial
da Hart’s agenda ou esta enqunto alimenta os pressupostos do incorporationist debate (positiva
ou negativemente levados a sério)?

2.3.1. Se nos concentrarmos na superação da discretion thesis (e na correspondente


teoria dos casos difíceis), o contributo de Justice for Hedghogs aparece-nos como uma
confirmação directa da proposta de Law’s Empire (se não já de «How Law is Like
Literature»). Podemos dizer que se trata de reforçar o sentido da perspectiva interna assumida
pelo legal reasoning… e que tal reforço se cumpre inscrevendo tal perspectiva em dois
horizontes de integração.
(a) Aquele, como que de baixo para cima, que integra a experiência do law as
interpretation no território da interpretation in general, mostrando-no-la participante da exigência
de verdade que distingue globalmente este território — o que significa identificá-la com um
«fenómeno social» orientado por «tradições», cujas convergências e divergências mobilizam
invariavelmente communities of interpreters422…

Um fenómeno assim mesmo constituído por práticas que, inscritas em diferentes


géneros (to construct an interpretation (…) you would need (…) to take up a particular genre of
interpretation423), prosseguem, no interior de cada um deles, um certo «objectivo» ou
«propósito» (intention or purpose (…) as the value that a certain genre of interpretation does ou ought to
provide) — sendo certo que seguir tais tradições e assumir tais «comunidades» (reconhecendo
precisamente diversos «níveis de convergência ou de divergência») significa inevitavelmente
interpretar outras práticas de interpretação… e neste sentido submeter as práticas interpretadas e
interpretandas ao círculo luminoso de uma reinvenção permanente …

(b) Aquele ainda que, ao explorar as invocadas afinidades de purpose, nos mostra
que as práticas normativo-juridicamente relevantes partilham com outras práticas interpre-
tativas — com a maior parte das práticas de interpretação artística e literária e com a maior

421 Ver especialmente o «Epilogue: Dignity Indivisible», Ibidem, pp. 417 e ss. «Ethics and morality are

independent of physis and its partners. Value is in that way freestanding…» (Ibidem, p. 418).
422 Ibidem, pp. 130-132, 144 e ss.
423 Ibidem, p. 124.
106

parte das práticas conversacionais— um mesmo género de discurso, que precisamente se diz
interpretação colaborativa (collaborative interpretation)424.

Reconhecer esta afinidade permite-nos na realidade vincular as práticas em causa à


continuidade dinâmica de um projecto — um projecto com um «autor» ou um «criador» que
é também «leitor»… e com colaboradores-«continuadores» que, desempenhando embora
«papéis subordinados», não deixam de se nos impor também eles como «criadores» —, na
mesma medida em que garante a unidade intencional de cada projecto e do contexto-horizonte
que este internamente proporciona425 (Law is also collaborative: a judge takes himself to aim at the same
goal — justice— as the statesmen who made the laws he interprets426).

A inscrição nestas duas instâncias de integração (interpretação em geral, interpretação


colaborativa) oferece-nos um padrão indispensável para explorar o «lugar» específico do
direito. Este determina-se em primeiro lugar distribuindo as occasions of interpretation ditas
colaborativas: distinguindo um eixo em que o «propósito»-value prosseguido pelo género
em causa se especifica numa vontade real psicologicamente determinável, correspondente à
chamada intentio auctoris — e que é evidentemente o da interpretação conversacional
(compossível com uma psychological state theory of interpretation)427 — de um outro eixo em que
a especificação do referido propósito se cumpre convocando a auto-subsistência do texto
(reconhecendo a superação prático-cultural ou mesmo a impossibilidade de uma prática
interpretativa baseada na intentio auctoris) — o que acontece com as interpretações artística e
literária… e com a interpretação jurídica (it is now widely thought preposterous (…) that the correct
interpretation of a statute depends on the mental states of the legislators who enacted it428). Se esta
abstração do psychological state confere uma força especial à procura colectiva da melhor
interpretação (ou mais rigorosamente, à procura de uma interpretação que possa aparecer
como o melhor exemplo possível do seu género), a especificação do «lugar» do direito torna-
-se clara quando nessa procura a hipótese estética associável aos outros dois tipos de
práticas nos aparece enfim substituída por uma hipótese política e pela integrity thesis que

424Expressão que vemos convocada para identificar um género de interpretação já em «Interpretation,


Morality and Truth» (2002)[pp. 11-15 («Collaborative, Explanatory and Conceptual Interpretation»)], texto
apresentado no Colloquium in Law, Philosophy and Political theory, New York University e que constitui
expressamente o esboço do presente capítulo de Justice for Hedgehogs. Até há bem pouco tempo, este texto
esteve disponível em http://www1.law.nyu.edu/clppt/program2002/readings/dworkin/dworkin.rtf.
425 Justice for Hedgehogs, cit., pp. 135-138.
426 Ibidem, p.136.
427 Ibidem, pp.128-30 («Psychological States»)
428 Ibidem, p. 129.
107

reconduz esta ao plano decisivo dos arguments of principle (statutory interpretation aims to make
the governance of the pertinent community fairer, wiser, and more just429).

2.3.2. O papel que estes arguments of principle (com a sua best justification)
desempenham na especificação do «lugar do direito» (e do «propósito» que o distingue no
acervo das outras práticas de interpretação colaborativa) ganha um sentido inconfundível
quando o problema passa directamente a ser o do contraponto juridicidade / moralidade e o
deste à luz do integrated scheme of value defendido em Justice for Hedgehogs430. Trata-se, com
efeito, de preservar a rejeição do convencionalismo positivista e (ou) das teorias semânticas
que o alimentam — com todos os argumentos que sustentam uma tal rejeição (a começar
decerto por aquele que Dworkin, desde Law’s Empire a Justice in Robes, tem vindo
persistentemente a associar a um certo semantic sting)—, mas agora para exigir que esta
rejeição passe a situar-se num outro plano e como parte integrante de um outro processo
de superação-substituição — ora um processo que não só nos permite recusar outras
reinvenções do positivistic camp (livres de pretensões meta-semânticas, como são afinal as do
positivismo includente)431, como também nos permite denunciar o fatal flaw que fere um
432
número muito significativo de posições não positivistas ! Que outro plano? Aquele em
que o problema das relações direito /moral se desvincula da imagem ou da configuração dita
«tradicional» ou «ortodoxa» (the classical view) — daquela «imagem» que o considera-resolve
(positiva ou negativamente) invocando dois sistemas ou duas colecções de normas433 (a two-systems
picture (…), an old picture that counts law and morality as two separate systems and then seeks or denies
(…) interconnections between them434) —, para antes e em contrapartida levar a sério uma
compreensão integrada, iluminada pelas possibilidades reflexivas de um sistema único (a

429 Ibidem, p.133.


430 Ibidem, p. 400.
431 Que assim se nos mostra mais claramente ainda como um falso positivismo, confirmando (se não

ampliando) os argumentos já expostos (a propósito do soft conventionalism e da distinção strict /soft


conventionalisms) em Law’s Empire (The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge
Massachussets,/London, 1986, pp. 124-130), argumentos estes muito especialmente desenvolvidos em Justice
in Robes. Recordemos que tal desenvolvimento se nos expõe num diálogo irresistível com o «pickwickian
positivism» de Coleman (em contraponto com o «ptolomaic positivism» de Raz) precisamente em «Thirty
Years On», cap. 7 de Justice in Robes, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge,
Massachusetts, London, England, 2006, pp. 187 e ss. «Inclusive positivism (…) is not positivism at all, but
only an attempt to keep the name “positivism”. (…) Coleman’s version of legal positivism is best described as
anti-positivist…» (Ibidem, pp. 188, 198). Se Dworkin vê neste soft conventionalism uma «forma embrionária, não
desenvolvida» da sua própria concepção do direito como integridade, J.J. Moreso defende em espelho uma
posição contrária (a de que o «direito como “integridade” é uma variante do positivismo inclusivo»): ver,
neste sentido (referindo-se a Moreso e discordando de ambos os diagnósticos), Margarida Lamy Pimenta,
«“Positivismo jurídico inclusivo”: afinament ou afastamento do positivismo jurídico?», cit., pp. 275-276.
432 A começar pela dele próprio, Dworkin: Justice for Hedgehogs, cit., pp. 400-402. «Forgive a paragraph

of autobiography…» (Ibidem, p. 402)


433 Ibidem, p. 400.
434 Ibidem, p. 405.
108

one-system picture435(…), a conception of law that takes it to be not a rival system of rules that might
conflict with morality but as itself a branch of morality436).
Para a compreensão das práticas interpretativas juridicamente relevantes, a
oportunidade é paralela àquela que explorámos supra [2.3.1.]: trata-se por um lado de
reconhecer em tais práticas uma dimensão da moralidade política, entenda-se, de encontrar
para estas e para o seu purpose (se não já para o seu doctrinal concept) uma «justificação»
integrável na «rede» unitária do political value (finding a justification of those practices in a larger
integated network of political value), trata-se por outro lado de determinar (com uma clareza
inexcedível) a especificidade que nesse todo as distingue das restantes — o que aqui e agora
significa estar em condições de construir uma teoria do direito que se nos dirija com a mesma
identidade e autonomia com que se nos dirigem outras teorias dos valores políticos (we
construct a theory of law in the same way that we construct a theory of other political values— of equality,
liberty, and democracy)437. A resposta para este desafio, encontra-a Dworkin explorando um
fluxo integrado e a correspondente estrutura em árvore: aquela que, sem prejuízo da
identidade dos discursos em causa, nos autoriza a passar dos juízos éticos (making a claim
about what people should do to live well (…) or should aim to be and achieve in their own lives) aos
juízos da moralidade pessoal (making a claim about how people must treat other people)438… e destes
últimos ao território da moralidade política, antes de iluminar o jurídico como um ramo
específico desta última (we can easily place the doctrinal concept of law in that tree structure: law is a
branch, a subdivision, of political morality439, law is a branch of political morality, which is itself a branch
of a more general personal morality, which is in turn a branch of a yet more general theory of what is to live
well440). Se o problema da integração (reciprocamente sustentada) da ética e da moralidade
pessoal441 (se não dos correspondentes sistemas de princípios442) se enfrenta (e resolve) recriando
a unificação kantiana — libertando-a do seu misterioso metaphysical environment (taking place in
the dark of the noumenal world) para a levar a sério como um autêntico «princípio» (a person can
achieve the dignity and self-respect that are indispensable to a successful life only if shows respect for
humanity itself in all its forms)443… e poder assim interrogar as suas implicações e os seus

435 Ibidem.
436 Ibidem, p. 5.
437 Ibidem, p. 405.
438 Ibidem, p. 25.
439 Ibidem, p. 405.
440 Ibidem, p. 5.
441 Ibidem, p. 255.
442 Ibidem, p.263.
443 Ibidem, p.19. «If you do, or if I can otherwise persuade you of their truth, I can appeal to Kant to

say that you must accept that what makes these principles true for you is your humanity: the fact that you have
a life to lead and death to face. That is something you share with all other humans beings. That ground of
personal morality springs from ethics. And out of that personal morality springs the political morality…»
109

limites (what are the implications of Kant´s principle for how you must treat other people?444)… —, as
questões da especificação-passagem desta moralidade pessoal para o plano da moralidade política
(enquanto processo de institucionalização-estabilização de uma ordem social) e da
autonomização, no seio desta, da juridicidade, essas satisfazem-se não menos
aproblematicamente com uma invocação das regras secundárias de Hart e com o tratamento
indiscriminado destas — como se tais regras nos interessassem apenas em bloco, na sua
relação constitituva com o princípio da separação de poderes e com este na versão checks
and balances antecipada por Montesquieu445. O resultado, conduzido sem surpresa a partir da
perspectiva-prius dos direitos e do património de autodeterminação individual que estes
constituem (com os deveres a aparecerem-nos apenas como meros correlatos destes),
impõe-se-nos no entanto com uma transparência sem precedentes. Trata-se, na verdade, de
distinguir duas «classes inconfundíveis de direitos e de deveres políticos» (direitos e deveres
da moralidade política) e os territórios correspondentes:
(a) os direitos e deveres que, por estarem associados ao plano de determinação das
policies e dos programas de fins colectivos que estas traduzem (por poderem ser
integralmente determinados a partir dos arguments of policy), se nos impõem como direitos e
deveres estritamente políticos, ou mais rigorosamente, direitos e deveres legislativos, que, para se
tornarem vigentes e eficazes, dependem da intervenção prévia do statutory law e das escolhas
que esta faça, ou que normativamente prescreva, com maior ou menor colaboração de
outras experiência constitutivas (lawmaking powers) — direitos e deveres assim cuja
consagração/não consagração (dependendo dos «caprichos da democracia») será criticamente
reflectida no quadro de uma filosofia política geral;
(b) os direitos e deveres que, por aparecerem vinculados às exigências dos princípios
(e à integridade da sua community ou aos argumentos que a constituem), se nos impõem como
direitos e deveres genuinamente jurídicos (legal rights), ou mais rigorosamente, direitos e deveres
que os seus titulares podem tornar eficazes recorrendo directamente às instâncias judiciais
(without further legislative intervention) — cuja consagração/não consagração será criticamente
reflectida no quadro de uma teoria do direito e desta precisamente enquanto procura uma

[«Keynote Address: Justice for Hedgehogs», Boston University Law Review, vol. 90, disponível em
http://www.bu.edu/law/central/jd/organizations/journals/bulr/documents/DWORKIN_K.pdf (extraído
em Janeiro 2012), p. 476].
444 Justice for Hedgehogs, cit., p. 260.
445 Ibidem, p. 405.
110

resposta normativa para uma questão política («sob que condições» se adquirem «direitos e
deveres da moralidade política» que se possam dizer «especificamente jurídicos»?)446.
A formulação desta última pergunta, associada à distribuição dos direitos por estes
dois territórios, é assumida por Dworkin como uma chave decisiva para, superando aquilo
que diz um «erro histórico» (a historical mistake447), concentrar as tentativas do positivismo e
do não positivismo interpretativista (interpretativism) no problema das condições de aquisição dos
direitos jurídicos… — o que aqui e agora significa esclarecer as duas posições nuclarmente
enquanto respostas à referida pergunta e então e assim tratá-las (levá-las a sério) como
teorias político-normativas rivais (the substance of the old confrontation between positivism and
interpretativism [remains](…) but (…) in a poltical rather conceptual form448). Com a primeira
resposta a querer reduzir tais condições de aquisição à contingência das fontes sociais (a
«factos históricos» àcerca da «legislação» ou das «convenções sociais»)… e com a segunda a
fazer intervir arguments of principle (principles of political morality) e a melhor interpretação prático-
contextual (moralmente comprometida449) que estes garantem (we must treat the special structuring
principles that separate law from the rest of political morality as themselves political principles that need a
moral reading450).

2.3.3. Uma vez esboçada esta procura (e reconhecidos os seus elementos


indispensáveis), permito-me de novo assumir a máscara de «primeiro leitor» (do nosso
seminário, com o seu auditório implícito) para, sem prejuízo de outras conclusões
possíveis, reformular a pergunta principal (e estimular assim a passagem para a etapa
seguinte). Estará esta proposta integrada de distinção (de distinção na indivisibilidade) — ao dar
atenção aos traços de identidade que nos permitem autonomizar o «lugar do direito» no seio
da moralidade política — em condições de nos ajudar a concluir o puzzle aberto pelo debate
do incorporacionismo e a concluí-lo, superando-o (e superando também a reflexive agenda
que o perpetua)? Parece-me indiscutível que está. O que não significa porém que a
reconstituição (mais ou menos explícita) do referido lugar — bem como do papel que neste
lugar as pretensões de autonomia associáveis tanto ao Direito quanto ao discurso jurídico
desempenham — seja aquela que a nossa circunstância exige ou aquela que me parece

446 Ibidem, p. 406. Trata-se de uma teoria do direito que, ao expor-se-nos como ramo da filosofia
política, poderá afinal ser proveitosamente «desenvolvida» nos departamentos de filosofia e de política, bem
como nas «faculdades de direito» (p.410).
447Ibidem, p. 407
448 Ibidem, p. 409
449 Ibidem, p. 415
450 Ibidem, p. 413
111

urgente discutir (independendentemente assim da resposta, positiva e negativa, que tal


exercício de tematização venha a consagrar).
Há elementos assumidos pela reorganização de Dworkin (potenciados pela
conjugação presente, se bem que quase todos provenientes de reflexões anteriores) que
correspondem logradamente a tais desafios de tematização (na mesma medida em que
abrem caminhos de resposta plausíveis). Que elementos são estes? Eu destacaria cinco e
em dois fluxos distintos: os três primeiros [a, b, c] a corresponderem sem surpresa a uma
dinâmica de integração (ou de diferenciação unitária perante as arenas exteriores), os dois
últimos [d, e] a explorarem possibilidades de especificação ou de diferenciação internas.
Correspondem àquela dinâmica integradora:
(a) desde logo a possibilidade (globalmente levada a sério) de uma recuperação em
pleno da unidade intencional entre direito e pensamento jurídico ou entre direito e discursos
genuinamente jurídicos;
(b) depois também a exigência de encontrar o correlato desta unidade na
reciprocidade constitutiva (se não já circularidade) das práticas que constróem este direito e
estes pensamentos — e de tal modo que tal unidade não exclua (antes se mostre
compossível com) uma pluralidade de planos de relevância (prático-normativamente
determináveis) e (com) um espectro de degraus reflexivos (dogmática e
metadogmáticamente explorados),
(c) finalmente a pretensão de fazer corresponder esta unidade na pluralidade à
possibilidade condutora de uma perspectiva interna (internal point of view) — perspectiva esta
que, sendo prosseguida ou cultivada em diversos territórios (e aparecendo a enfrentar
problemas e contextos de significação distintos), nem por isso menos mobilize práticas e
razões (se não tipos de racionalidade e esquemas metódicos) univocamente separados
daqueles (entenda-se, inconfundíveis com aqueles) que o eixo reflexivo ciência e as suas práticas
justificam…

Exigência que, não retirando «legitimidade» prático-cultural aos discursos que


reconduzem o mundo prático do direito à condição de objecto possível de uma perspectiva-sujeito
teoreticamente determinada, não obstante liberta desta inteligibilidade constitutiva (quer se
trate de a reconduzir ao núcleo de uma episteme pura, quer se trate de a inscrever nas
pretensões de uma episteme-technê ou technê-episteme) os discursos que se dizem genuinamente
jurídicos e que, enquanto tal, responsabilizam a dogmática, a teoria e a filosofia do direito. Com o
resultado decisivo de estes discursos, ao assumirem (distintamente embora) um
compromisso prático com a juridicidade, deixarem de poder estar protegidos por uma
112

perspectiva externa e pelas possibilidades que a consagram, mesmo por aquelas que invocam um
moderate point of view (sensível ao aspecto interno da normatividade)451…

É já como elementos de diferenciação interna que por sua vez nos importam:
(d) desde logo o reconhecimento de que a procura de uma identidade normativa
(que distinga o direito no seio das práticas em causa) passa pela experiência de uma
comunidade de princípios e pela institucionalização diferenciada que esta proporciona.
(e) depois também o reconhecimento de que esta institucionalização diferenciadora
do juridico, precisamente porque leva a sério uma circunstância em que o carácter
programaticamente e contingentemente político da legislação se tornou indiscutível, só
encontrará a sua condição de possibilidade responsabilizando nuclearmente a jurisdição — e
esta enquanto intenção e discurso de realização autónomos.
Poder-se-á dizer que as convergências plausíveis ficam por aqui. Muito
simplesmente porque as respostas ensaiadas por Dworkin especificam possibilidades de
desenvolvimento que estão longe de se nos impor sem alternativa. Sublinhando a traço
grosso as componentes a tematizar pelo presente seminário, eu concluiria considerando
sucessivamente os dois fluxos em causa (respectivamente de integração e especificação):
α) acentuando em relação ao primeiro fluxo que uma coisa é exigir que o percurso a
cumprir passa decerto pela resistência dos mundos e pensamentos práticos envolvidos à
hipertrofia colonizadora da episteme-technê — se não já pela reinvenção dos compromissos de
participante que hão-de traduzir esta resistência —, outra já entender que o desenvolvimento
permitido de uma tal resistência e de um tal desafio de reinvenção dos compromissos
internos se cumpre necessária e satisfatoriamente invocando uma alternativa global de
interpretação e a racionalização construtiva que esta oferece (e que negligencia
manifestamente a relevância do caso-problema452);
β) acentuando em relação ao segundo fluxo que uma coisa é procurar a
especificidade institucional do mundo prático do direito dando atenção à inter-relação com
outros mundos práticos (se não à compreensão global da praxis e do pensamento prático),

451Com o alcance exemplarmente autonomizado por Hart e que nos permite distinguir este ponto de

vista externo moderado (referring to the internal aspect of rules seen from their internal point of view) do ponto de vista
externo que reduz empírico-explicativamente a normatividade (extreme external point of view), mas também
daquele que, na linha do bad man de Holmes, se constrói assumindo o ponto de vista de um participante
anómalo, não comprometido (alienated external point of view): ver The Concept of Law, cit., pp. 89 e ss., mas também
e ainda as reflexões de Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 286 e
ss.
452 Nas três etapas-stages analiticamente expostas em «Interpretation in general», o caso só aparece (et

pour cause!) na última: «We interpret (…), third, when we try to identify the best realization of that package of
purposes on some particular occasion…» (Justice for Hedgehogs, cit., p.131).
113

outra admitir que tal procura cessa — porque encontramos a única resposta plausível! —
quando, no seio da moralidade política e pressupondo um único sistema (mas também
rejeitando diversas frentes internas e externas de cepticismo… e levando a sério uma
concepção universal, não contingente, da moralidade453) identificamos uma perspectiva de
direitos individuais e os princípios (e arguments of principle) que os «descrevem» e consagram…

Se uma identificação institucional com este alcance parece traduzir uma experiência
da juridicidade (ou da especificação genuinamente jurídica da moralidade política) fiel ao legado
demo-liberal (ainda que porventura a um legado aculturalmente purificado nas suas
pretensões, se não reforçado na universalidade das suas aquisições) — nem por isso menos
capaz de, graças à estrutura em árvore, se articular com uma neomaterialização correctora
cumprida no plano global da moralidade política e dos pensamentos que a tematizam (mas
também projectada nas políticas públicas da legislação) —, a exemplificação proposta,
fazendo pairar sobre o contraponto direitos jurídicos/ direitos legislativos um argumento de
contingência (legislative rights, even when aknowledged, are of no immediate force, legal rights, once
aknowledged, are immediately enforceable454), está longe de se nos impor com a inequivocidade
esperada: se se compreende que um dos núcleos de consagração de direitos genuninamente
jurídicos seja encontrado por Dworkin no universo do direito privado (associado a uma
especificação negocial do princípio da participação e à correlativa especificação comutativa
do princípio da responsabilidade), compreende-se menos que a exploração dos outros direitos,
daqueles que têm como correlato deveres da societas (tanto mais que se trata de invocar como
perspectiva-prius a distinção entre direitos directamente accionáveis e direitos que exigem uma
intervenção legislativa) não reproduza o equilíbrio dogmaticamente consagrado entre direitos,
liberdades e garantias por um lado e direitos a prestações sociais por outro lado (ou o núcleo duro
em que tal contraponto, assimilando o legado das várias gerações de direitos, se nos impõe
hoje menos controvertido). Se é certo que a faculdade de exigir à societas a institucionalização
lograda de um princípio de separação de poderes nos aparece claramente entendida como
um direito genuinamente jurídico (como serão jurídicos os direitos e deveres «descritos» pelos
princípios da obediência à lei, da vinculação aos precedentes, do acesso à justiça, da
independência dos tribunais ou do contraditório e aqueles que traduzem a preservação da
universalidade constitutiva do princípio da igualdade), é já como um direito legislativo (num
horizonte de moralidade política ainda não especificamente jurídico) que em contrapartida se
nos oferecem algumas especificações concretizadoras do direito à liberdade de expressão (ou
pelo menos a faculdade de exigir que os community’s lawmaking powers garantam um discurso
político sem censura)… — o que aproxima claramente este direito daqueles em que estão em

453 Ibidem, pp. 23 e ss. («Truth in Morals»), pp. 400-401


454 Ibidem, p.406.
114

causa reivindicações imediatas a prestações (relativas a políticas públicas legislativamente


prescritas)! Em relação a estes últimos, podemos de resto acrescentar que a possibilidade de
estabelecer fronteiras de relevância entre o plano global da moralidade política e o plano
especificamente jurídico passa sempre pela distinção entre o direito (legislativo) à prestação
enquanto tal (assegurado pela policy prescrita e antecipado pelas suas escolhas) e o direito
jurídico a um tratamento igual (que a execução do respectivo programa de fins deverá
assegurar, mas à qual a própria escolha do círculo dos cidadãos sacrificados e beneficiários,
tematizável no plano dos recursos-meios ou da antecipação de alternativas, não poderá
decerto escapar!). Com uma conclusão inevitável: a de reconhecer que as distinções em causa
perdem importância (ou vêem pelo menos o significado da sua contingência diminuido) —
corrigindo-se e compensando-se como que numa teia de vasos comunicantes — se levarmos
a sério as exigências de um integrated account of law (e se superarmos a two-systems picture). O que,
numa palavra — e também garantindo um plano de inteligibilidade universal (liberto de um
exercício de argumentação historicamente condicionado) —, nos autoriza a exigir que os
juristas e muito especialmente os juízes levem a sério a sua responsabilidade, assumindo-se
como autênticos working political philosophers of a democratic state455…

2.4. Seja como for, ficam por explorar compreensões integradas da relação
juridicidade/ moralidade-eticidade que escapam a esta imagem de sistema único (e que assim
mesmo abrem outras possibilidades de tematização). Aludirei a duas, exemplarmente
distintas: a primeira a assumir o jurídico como uma ideia moral — a responder ao desafio de
o compreender simultanea e incindivelmente como uma instituição social (the mundane view
of law) e como uma aspiração prático-cultural (the aspirational view of law)456 [2.4.1.] —, a
segunda a partir de uma compreensão da prática iluminada pela ética filosófica e pela
argumentação que a sustenta… e a descobrir o lugar do direito num discurso de
constrangimentos ou de limites (arguments considered as correct in the practice of law (…) show
limits which do not exist in ethics)457 [2.4.2.].

2.4.1. O primeiro caminho mobiliza explicitamente a proposta de Nigel


Simmonds458, sendo certo que esta não nos importa apenas por si própria ou pelas

455 Ibidem, p. 414.


456 Nigel Simmonds, Law as a Moral Idea, Oxford, Oxford University Press, 2007, pp. 37 e ss.
(«Dualism and aAchetype»)
457 José de Sousa e Brito, «Public Reason Between Ethics and Law», International Journal for the

Semiotics of Law , 2012, vol. 25, nº 4, p. 469.


458 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit. Cfr. também «Reflexivity and the Idea of Law», Jurisprudence,

vol.1, nº1, 2010, pp.1-23, «Reply: The Nature and Virtue of Law», Jurisprudence, vol.1, nº2, 2010, pp. 277-293
[este número publica de resto os textos de um symposium sobre a obra de Simmonds (com abordagens críticas
de Finnis, Gardner e Endicott e esta resposta de Simmonds): «A Symposium on Nigel Simmonds's Law as a
115

possibilidades que abre — enquanto tentativa de superar as frentes de «investigação»-


reflexão traçadas por Hart e por Dworkin e a «fragmentação» que, na reconstituição-
-tratamento dos problemas do direito, estas (mais ou menos) polarizadamente consagram459,
se quisermos enquanto exigência de restituir à reflexão filosófica sobre a «natureza do
Direito» a sua força integradora, prático-normativamente compreendida (the task of
determining the content of law is ultimately guided (…) by reflection upon the nature of law itself (…)
[, p]hilosophical inquiry into law’s nature should be understood as an attempt to deepen our understanding
of the guiding idea460) [2.4.1.1.]… —, mas também e muito especialmente pela herança que
mobiliza e reinventa… e que é muito explicitamente a de Fuller (fortunately, our work is already
done for us (…) [, f]or we can proceed by adopting Fuller’s account of the eight “precepts” or “desiderata”
of what he called the “inner morality of law”461)462 [2.4.1.2.].

2.4.1.1. Que exercícios de «fragmentação» de perspectiva (sucessivamente atribuídos a


Hart e a Dworkin) identifica Simmonds? Duas palavras nos bastam para os reconhecer.
Trata-se desde logo de enfrentar a cisão quid juris / quid Jus (judicial questions / legal
philosophical questions about the nature of law463) que sustenta o positivismo crítico de Hart…

Moral Idea», ibidem, pp. 241-293] e ainda «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», German
Law Journal, vol. 12 nº 2, 2011, pp. 601-624, disponível em http://www.germanlawjournal.com
/index.php?pageID=11&artID=1336 (extraído em Dezembro de 2012). Para além destes textos, importa
lembrar que um dos recursos mobilizáveis pelos mestrandos é decerto a reconstituição do intenso debate
Kramer/Simmonds (permitindo-nos perceber a posição clara deste também perante as exigências do
positivismo includente): ver neste sentido a reconstituição bibliográfica proposta por Mátyás Bódig, «Comment
on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the Contemporary Legal Theoretical Discourse», German
Law Journal, vol. 12 nº 2, 2011, p. 626, nota 4.
459 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., pp. 21 e ss. («The Fragmentation of Inquiry: Hart»), 25 e ss.

(«The Fragmentation of Inquiry: Dworkin»).


460 «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., p. 623.
461 Law as a Moral Idea, cit., p. 65. «Legal thought is guided by the idea of law. As Lon Fuller

expressed the point, the law is always “in quest of itself.”(…)The eight requirements are not principles of
efficacy, but (when taken together) represent a moral ideal for legal systems…» («The Nature of Law: Three
Problems with One Solution», cit., pp. 613, 616)
462 Para uma acentuação atenta do peso deste «legado» (e das transformções introduzidas por

Simmonds), ver Mátyás Bódig, «Comment on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the Contem-
porary Legal Theoretical Discourse», , cit., pp. 625 e ss., 630 e ss. , 634-638 («Fuller’s Legacy»), 643 e ss., 656 e
ss. «Part of the reason for me to think that [Simmond’s] is a particularly promising account of law is that he is
a neo‐Fullerian (…). I will put particular emphasis on pointing out why I think Fuller’s legacy can be a guide
for anti‐positivist legal theory (…). It may turn out to be an advantage at the end of the day, that (…) [the
Fullerian initiative] was not an attempt to clarify how the constitutive principles of one’s moral and political
outlook are reflected in law. Instead, it was an attempt to reveal the morality that is internal to law. If we can
renew the Fullerian initiative in some way, we have a chance to undermine the common misconception that
the only effective guarantee of the integrity of law and legal thought is the positivist separation of law and
morality. (…) Although what Simmonds provides is undoubtedly a neo‐Fullerian account, it fundamentally
changes the philosophical character of the Fullerian initiative… » (Ibidem, pp. 625, 638, 656).
463 Ver exemplarmente Raz, «The Nature of the Theory of Law», in Coleman (ed.), Hart’s Postscript,

cit., pp. 1-37, especialmente 32 e ss.


116

Ou mais rigorosamente, de considerar esta cisão concentrando-a (simplificando-a)


na exigência condutora (exemplarmente confirmada por Raz464) de encerrar em
compartimentos intencional e reflexivamente estanques…
(a) por um lado as questões substantivas «àcerca do conteúdo do direito» (practical
questions that arise in the course of operating and sustaining (…) law as social institution465) — questões
que ocupam juízes e juristas no interior (na contingência) de cada ordem jurídica e que se
resolvem identificando e aplicando o direito válido à luz da regra de reconhecimento (mas também
convocando juízos morais e sociais para vencer a indeterminação dos penumbral cases) —…
(b)… e por outro lado as questões teoréticas (menos puramente descritivas do que
explicativas) àcerca da «“natureza” do direito» (enquanto estrutura ou instituição socialmente
específica) e dos traços que distinguem globalmente (universalmente) a sua normatividade:
questões livres daquela contingência (disengaged from the practice of doctrinal argument) e que o
general philosophical inquire (as a general theory of law) deverá assumir levando a sério uma
perspectiva externa moderada (e possíveis detached normative judgments) — sendo certo precisamente
que é esta perspectiva que assegura o «novo começo» justificado pela hipótese explicativa da
«interacção»-união entre regras primárias e secundárias e pela autonomização de um discurso
de validade único (dominado pela «aceitação» da regra de reconhecimento).

Trata-se depois de questionar a separação de perspectivas sistematizada por


Dworkin em Justice in Robes e a distribuição que esta impõe (distribuição que poderemos
dizer confirmada, se não reforçada, pelo tratamento integrado de Justice for Hedgehogs)…

De questionar tal distribuição… não decerto para rejeitar a oportunidade de (versus


Hart) beneficiar a general theory of law com uma identidade simultaneamente reflexivo-crítica
(philosophical) e prático-normativa ([exploring] the concept of «the law» of some place or entity being to a
particular effect (…), [claiming] about what the law requires or prohibits or creates (…), [asking] what
rights and duties the system recognises466)467, antes para recusar o modo como Dworkin assegura
esta identidade. Refiro-me evidentemente à construção do conceito doutrinal e à defesa deste
como um eixo nuclear, mas sobretudo ao modo como a experiência da inteligibilidade
interpretativa deste eixo e da sua perspectiva interna — construída em diversos degraus-stages
(semantic, jurisprudential, doctrinal stricto sensu, adjudicative468) mas sustentada pelo horizonte
normativamente integrador da community of principles — se desenvolve assumindo uma
separação radical de perspectivas: para Dworkin não se trata, com efeito, apenas de exigir que um

464Como o próprio Simmonds não deixa de reconhecer: ibidem, p. 23, nota 31.
465 Ibidem, pp. 23, 25.
466 Dworkin, Justice in Robes, cit., p.2
467 A defesa indispensável desta identidade (sem prejuízo da preferência por outras formulações) será

de resto muito justamente assumida pela proposta de Simmonds (como já o era de resto por Fuller)!
468 Dworkin, Justice in Robes, cit., pp. 9 e ss.
117

tal «conceito» se nos imponha como uma instância reflexiva inconfundível (distinta daquelas
que os conceitos sociológico, taxinómico e aspiracional asseguram469), trata-se também de, ao
responsabilizar esta instância pela tematização das condições de verdade das proposições jurídicas,
«subestimar» conexões possíveis com as outras instâncias (instâncias cujos contributos serão,
segundo ele, em geral imprecisos ou redundantes… e que só circunstancialmente, nos limites
de agendas de investigação muito específicas, poderão mostrar-se plausíveis ou relevantes)470! É
de resto esta centralização reflexiva que o leva a encontar no conceito doutrinal um limite-
-boundary (unilateralmente pensado) para as determinações oferecidas pelos restantes (muito
especialmente para aquelas que o conceito sociológico procura471), na mesma medida em que,
como já vimos, o autoriza a admitir que o debate positivismo/não positivismo — sem prejuízo
das suas intenções imediatamente políticas — possa pensar-se (esclarecer-se) nuclearmente
como uma dicussão dos modos possíveis de constituição-manifestação dos direitos
genuinamente jurídicos… e então (e assim) jogar-se por inteiro no tabuleiro do doctrinal
concept472(the inquiry focuses upon the question of whether moral criteria are amongst the truth conditions of
doctrinal propositions of law473).

469 Recordemos apenas, em duas palavras que, se a procura do conceito sociológico é aquela que deverá

cumprir-se quando perguntamos se uma determinada institucionalização da vida em comum (por ex., a ordem
de uma «sociedade tribal primitiva») pode ou não ser identificada com um «sistema jurídico» (a particular type of
institutional social structure), a procura de um conceito taxinómico será já aquela que se nos impõe quando, perante
um acervo de regras ou de padrões mobilizados (ou mobilizáveis) por certas decisões, quisermos estabelecer
uma fronteira precisa entre os que são ou não são jurídicos, ou mais rigorosamente, entre os que são ou não
parte integrante da ordem jurídica vigente ([to identify] legal standards as opposed to moral or customary or some other
kind of standards) [Justice in Robes, cit., pp. 3-4]. A procura do conceito aspiracional (mais formal ou mais
materialmente compreendido), essa só fará sentido quando o objectivo for o de celebrar o «ideal da
juridicidade» (aqui aproblematicamente vinculado ao ideal da rule of law) — sendo certo que, na perspectiva de
Dworkin, a resposta a uma tal procura e aos seus «valores» terá hoje inevitavelmente que passar por uma
exigência de political integrity e pela especificação da igualdade que esta assimila (the principle that a state should try
to govern so far as possible through a coherent set of political principles whose benefit it extends to all citizens) [ibidem, p. 13].
Pelo significado que a reinvenção do pensamento de Fuller assume na proposta de Simmonds, importa
lembrar que The Morality of Law se preocupa precisamente em distinguir uma morality of duty e uma morality of
aspiration, mostrando o significado que este binómio deve ter na compreensão-experiência do jurídico
(podemos mesmo dizer que a inner morality of law reconstruída por Fuller «compreende tanto uma moralidade
de dever quanto uma moralidade de aspiração») : Fuller, The Morality of Law (1964), London: Yale University
Press, revised edition, 1969, pp. 5-9, 13 e ss., 41-44 («The Aspiration toward Perfection in Legality»)
470 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., p.27
471 «The doctrinal concept of law figures among the boundaries of the sociological concept in this

way: nothing is a legal sytem in the sociological sense unless it makes sense to ask what rights and duties the
system recognizes… » (Dworkin, Justice in Robes, cit., p.4)
472 Com a consequência de devermos tratar a resposta de Hart, malgré elle, como se situasse também

neste plano (Ibidem, pp. 8 e ss., 26, 145). Para uma exploração esclarecedora do debate Hart /Dworkin a partir
da «grelha» de Justice in Robes (também atenta às posições de Fuller), cfr.David Dyzenhaus, «The Grudge
Informer Case Revisited»,
https://law.nyu.edu/ecm_dlv4/groups/public/@nyu_law_website_journals__law_review /documents /
web_copytext/ecm_pro_059774.pdf (extraído em Agosto de 2012), pp. 21-28, mas também Michael S.
Green, «Dworkin v. The Philosophers: A Review Essay on Justice in Robes », University of Illinois Law Review,
vol. 2007, nº 5, pp. 1477 e ss. «One can understand Hart's theory as concerning the concept of law in both
the sociological and taxonomic sense. Hart's idea of a rule of recognition was intended to identify those
societies in which law, rather than a more informal system of norms, exists. Furthermore, Hart's theory might
be understood as concerning the taxonomic concept, in the sense that only those norms identified by the rule
of recognition should be considered laws. But Dworkin accepts that Hart's conception of a rule of
recognition provides an account of the doctrinal concept of law and so is a theory of law in the proper sense.
118

Qualquer uma destas etapas de demarcação se reflecte constitutivamente na


proposta de Simmonds e se torna indispensável para identificar as suas exigências. O
desafio condutor é precisamente o de partir de uma «contradição ou antinomia
fundamental» entre compreensões que responsabilizam o direito como uma realização-
-embodiment de valores, aspirações ou virtudes (iluminadas por uma pretensão de justiça, se
não por uma significação moralmente intrínseca) e experiências deste que o mobilizam
como um instrumento flexível e como um acervo de «usos contingentes» («moralmente
neutros»)474. A «reconciliação» plausível — concedendo que o direito pode ser usado como
instrumento (e até como «instrumento do mal») sem «incompatibilidade» efectiva com o
seu status de ideia intrinsecamente moral»475 — passa por uma acentuação da circularidade
constitutiva entre pensamento e prática (o primeiro associado a um moral understanding e
intensificado como reflexão crítica476), mas também pelo reconhecimento de que «as
instituições que informam a nossa compreensão do conceito de direito» (instituições como
as da «punição», da «decisão judicativa»-adjudication, da inter-relação, se não do equilíbrio
direitos/deveres) nos expõem tanto a permanentes mudanças de significação quanto a uma
experiência de continuidade (a certain continuity which survives changes in the meaning that is attached
to the practice by its participants) — e então e assim ao que diríamos uma historicidade
constitutiva complexa, cujos contributos plurais as diversas práticas irão assumindo explicita
ou implicitamente como uma herança ineliminável (these various layers of semiotic complexity come
to be preserved in the practice that we inherit, making the familiar features of the practice suggestive of quite
different meanings or rationales)477.
Invocar esta circularidade (ainda que sob inspiração explícita das formulações de
Nietzsche) significa com efeito, desde logo, estar em condições de (versus Hart e Raz) exigir
uma contaminação constitutiva dos problemas (ditos) do «conteúdo» e da «natureza» do
direito… e então e assim também de autonomizar entre estes últimos — para além das
questões da constituição-criação (the problem [concerning] the basis of fundamental law‐making
authority) e da vinculação-vigência (the problem of law’s justificatory force) — um terceiro e
decisivo problema (the problem of the ideality of law)478, o qual, sem se confundir com (antes

Hart's theory provides truth conditions for propositions of law. It simply gives the wrong truth conditions…»
(Ibidem, p. 1483, nota 31)
473 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., p. 26
474 Law as a Moral Idea, cit., pp. 37 e ss. («Law as Instrument and as Aspiration»).
475 Ibidem, p.38.
476 Ibidem, pp. 33-34. Ver já infra no texto a referência à perspectiva do participante em Dworkin.
477 Ibidem, pp. 31-32.
478 «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., pp. 603-607 («Three Problems»).
119

rejeitando!) a pressuposição do positivismo crítico na sua resposta ao desafio dos casos difíceis
(the assumption that law somehow goes beyond the authoritative materials of the law is a kind of illusion
that arises if we ignore the “open texture” of rules, (…)[the disagreement this indetermination provokes] is
(…) not about what the law is but a moral or political argument about how a gap in the law should be
filled479), possa em pleno invocar a idealidade do jurídico e o excesso normativo deste
relativamente às statutory e common law rules ([s]ince the judicial decision must be justified by reference
to the law, and since (…) the derivability of a rule from the rule of recognition does not guarantee that the
rule is law, we cannot treat the judge’s duty as fundamentally a duty to follow the rule of recognition (…),
[but as] a duty (…) of «fidelity to the idea of law»480). Desta compreensão resulta enfim a
exigência de libertar os problemas da determinação do conteúdo do direito (e os problemas da
adjudication em particular) de uma perspectiva (apenas) de constrangimentos-limites — limites
impostos pela regra de reconhecimento ou pelas práticas que estabilizam um seu sucedâneo
possível (the rule of recognition as an outer bounding limit upon the juridical domain481)—, para antes e
em contrapartida (numa superação lograda da distinção entre casos fáceis e casos difíceis482) se
reconhecer que a resposta a tais problemas há-de encontrar a sua intenção fundadoramente
regulativa (a sua luz orientadora) na ideia de direito ([t]he practices of law are practices oriented towards
an idea of law483) — e assim também na reflexão (filosófica) sobre a «natureza» do jurídico 484
que (recuperando a sua unidade e o seu continuum luminoso com a praxis, com o contributo
indispensável da jurisprudência doutrinal485) deve ter como tarefa nuclear «aprofundar»
prático-normativamente esta ideia486 (o que significa menos descrever o que essas práticas

479 Ibidem, p. 607. «[P]enumbral cases cannot be resolved by exclusive reference to the law, but only
by reliance upon considerations (of morality or policy, for example) that lie beyond the legal rules…» (Ibidem,
p. 609).
480 Ibidem, p.621.
481 Ibidem, p.611.
482 «The distinction between the core case (where the rule can be straightforwardly applied) and the

penumbral case (where it cannot) is a continuous distinction. That is to say, there is no clear boundary between
the core and the penumbra. For that reason, the judge cannot adopt a discontinuous strategy of adjudication
that requires core cases to be decided one way (by reference to the rules) and penumbral cases to be decided
differently (by reference to justice). The judge must adopt a strategy of adjudication that addresses all cases in
the same way…» (Ibidem, p. 622). Invocando, no mesmo sentido, o papel da idea of Law na resolução dos
penumbral cases, ver Law as a Moral Idea, cit., pp. 165 e ss. 191 e ss.
483 «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., p. 614.
484 «[T]he philosophical problem of law’s nature does not spring, as Hart seems to think, from a

need for the careful description of resemblances and differences between different social phenomena, but
from the reflexivity of legal thought. That is to say, legal thought is always guided and informed by reflection
upon the idea of law, and it is the task of jurisprudence to investigate that idea…» (Ibidem, p. 613)
485 Law as a Moral Idea, cit., pp. 189-190 («the practices of legal scholarship»)
486 «To arrive at a better analysis, we need to reject Hart’s account of the rule of recognition and to

grasp the extent to which legal thought is reflexive: the task of determining the content of law is ultimately
guided, not by a basic rule of recognition (such a rule may play a part, but is not fundamental), but by
reflection upon the nature of law itself. Philosophical inquiry into law’s nature should be understood as an
attempt to deepen our understanding of the guiding idea…» («The Nature of Law: Three Problems with One
Solution»,cit., p. 623)
120

têm em comum do que orientá-las, tornando claras exigências de sentido que, embora
«imanentes», a surface appearance dessas práticas dificilmente «disponibilizará»487).
Invocar esta circularidade é no entanto para Simmonds também questionar as
separações-distribuições da investigation agenda de Dworkin e a perspectiva que as torna
possíveis. Por um lado decerto para, em nome de uma compreensão moral (dita) global (moral
understanding as a whole), acentuar as possibilidades críticas da reflexividade que o discurso
jurídico deve considerar (ou que alguns degraus deste discurso estarão em condições de
assumir): o que aqui e agora significa rejeitar que a pura imanência interpretativa de uma
perspectiva de participante e que a hipótese «política» que a ilumina, na sua identidade paralela à
da hipótese «estética» (trying to present the practice in its best light), possam impor-se-nos como
horizontes totalizantes, impedindo as (muito produtivas) interpretações negativas — aquelas
que desafiam a consistência-fit das práticas interpretadas, denunciando dimensões-recursos
a superar ou as relações de poder que as sustentam (negative interpretations of this kind clearly do
not present the practice in question in its best light, but they should not be disallowed for that reason)488.
Por outro lado decerto para, evitando a auto-subsistência centralizadora do conceito doutrinal e
a pressuposição que a protege, levar a sério um continuum de reflexividade no qual as
perguntas que, segundo Dworkin, só fazem circunstancialmente sentido (sob o
enquadramento limitado dos conceitos sociológico, taxinómico e aspiracional), possam impor-se-
nos, sem soluções de continuidade (numa interpenetração decisiva com a mobilização
doutrinal da vigente comunidade dos princípios), como recursos indispensáveis para a
exploração-clarificação da ideia de direito489. O que nos restitui ao desafio da «antinomia
aparente» (between an understanding of law as a substantive moral aspiration and as a moral neutral
instrument490)… mas agora para encontrar uma resposta…

2.4.1.2. Que resposta? É aqui que a herança de Fuller (herança também do seu
confronto com Hart e dos argumentos neste reciprocamente esgrimidos) se nos impõe em
toda a sua transparência. Para Simmonds só será possível, com efeito, vencer a antinomia
em causa se, preservando como tarefa a representação do conceito de direito, conferirmos a
este conceito a estrutura de um arquétipo abstracto (criado pelo continuum práticas/discursos491).

487 Torna-se indispensável explorar aqui o desenvolvimento proposto em «Reflexivity and the Idea
of Law», cit., passim.
488 Law as a Moral Idea, cit., p. 34
489 Ver muito especialmente a conclusão da p. 67 («the analysis of each concept has consequences

for the analysis of its neighbours…»).


490 Ibidem, p. 110.
491 «For law is not a phenomenon with a a nature wholly independent of our beliefs about it, but one

that is constituted by our understandings and expectations. (…) If the most coherent solution to this problem
121

Conferir a este conceito a inteligibilidade de um «arquétipo intelectual» significa, com


efeito, desde logo, distingui-lo dos conceitos baseados na representação-delimitação de uma
classe (archetyp concepts versus class concepts): se os últimos exigem respostas de tudo ou de nada —
tratar o conceito de direito como um class concept significa esperar que este nos disponibilize
um acervo fechado de características (que tenham de estar preenchidas em bloco para se
poder distinguir uma ordem, sistema ou decisão juridicamente relevantes)! —, os arquétipos
expõem-nos antes e em contrapartida a uma experiência de aproximação em degraus,
internamente diferenciadora das ordens, sistemas ou decisões que vão ocupando esses degraus
(something can constitute an instance of law (…) by its approximation to the archetype (…) while
nevertheless falling short of full compliance with the requirements of that concept492). Assim sendo, poder-
se-á dizer que o conceito-arquétipo que identifica a juridicidade está em condições de se nos
oferecer simultanea e incindivelmente como um «critério» de demarcação (das «instâncias»
sociais que contam como «jurídicas») e como um «ideal orientador» («por referência ao qual
tais instâncias e as suas respostas possam ser moralmente julgadas»)493.

Não se trata no entanto apenas de defender uma estrutura «em arquétipo», mas de
assumir uma compreensão do jurídico preferencialmente «aspiracional»: o que significa
vencer a referida «contradição» (garantir a reconciliação plausível das suas componentes),
enquanto se exige que aquela «estrutura» e seu o conceito nos atinja(m) como um «ideal
intrinsecamente moral»(the archetype is an intrinsically moral ideal494)495.

Como se no fundo admitíssemos a possibilidade (a contingência situada) da


«instrumentalização» ([w]ithin a legal system, individual laws may be enacted and enforced for wicked,
unjust or self-serving reasons (…) and judges or officials may follow and apply the law for similar reasons),
sem nunca abandonar (antes assumindo em pleno a sua «compatibilidade» com) uma
compreensão da identidade do jurídico indissociável de uma axiologia fundadora e da sua
permanente realização — livre, enquanto tal, da mera contingência decisória (the institution of
law as such can be rendered intelligible only when we discern its relationship to certain moral values [, ] the

is provided by a abstract archetype, no problematic metaphysical commitments are involved: our practices
themselves create the archetype in so far as they are structured by ideas that are best understood as pointing to
the archetype… » (Ibidem, pp. 55 e 58)
492 Ibidem, p. 53. «The essential hallmark of an archetypal concept is the fact that instantiations of the

concept count as such by resemblance or approximation to the archetype, such resemblance or


approximation being a property that can be exhibited to varying degrees…» (Ibidem, p. 54).
493 Ibidem, p. 52.
494 Ibidem, p. 54.
495 Ibidem, pp. 53 e ss., 64 e ss., 110-111,
122

endorsment of a value is (…) a matter of judgement (…) invoking other elements in our shared moral
understanding (…), not an ungrounde exercise of will)496.

É precisamente na especificação das minimum conditions exigidas por este «ideal» (e


por este reflexivamente explorado enquanto «moralidade intrínseca da juridicidade») — num
plano de tematização em que o mundane law e a aspirational rule of law (o general concept of law e
o ideal or value that we call «the rule of law»)497 se nos apresentam constitutivamente
indissociáveis (law as a moral idea, rule of law as a moral intrinsic idea) — que Simmonds
mobiliza os oito preceitos ou desiderata de The Morality of Law498.
Antes de mais para mostrar em que termos os requirements esboçados por Fuller
podem ser reconduzidos à estrutura reflexiva de um «arquétipo» (e libertar-se assim de
algumas misinterpretations perigosas, herdadas das críticas devastadoras do methodological
positivism)…

Mobilizar os oito desiderata para enfrentar reflexivamente as ordens sociais vigentes


significa, com efeito, sustentar duas pressuposições decisivas, negativamente formuladas: a
primeira para defender que não conta como ordem de direito uma institucionalização que
frustre inteiramente a realização de um (de pelo menos um) destes preceitos; a segunda para
reconhecer que nenhuma ordem de direito vigente está (estará) em condições de se nos
oferecer atingindo «o estado de plena concordância-compliance com todos eles». Da
conjugação destas duas afirmações resulta, com efeito, desde logo, a possibilidade-exigência
de um processo de diferenciação em degraus ([l]egal systems count as such by how closely they
approximate to the situation of total compliance with all eight). Resulta também, no entanto, a
plausibilidade de um tratamento unitário: como se os desiderata em causa integrassem um
colectivo e este devesse ser levado a sério como uma aspiração moral499. Fuller’s theory becomes
interesting when he proceeds to demonstrate that the eight desiderata (identified as minimum conditions), when

496 Ibidem, p. 63 e nota 39.


497Neste contexto são indispensáveis os diálogos que Simmonds desenvolve com Raz: ver Ibidem,
pp.44 e ss., 47-51 («Raz and the Rule of Law»), 99-104 («Liberty and the Rule of Law»), 189 e ss. («Fidelity to
Law»).
498Voltaremos infra a estes desiderata enquanto implicações positivas dos eight ways to fail to make law

que Fuller explora na narrativa do reformador Rex [Fuller, The Morality of Law, cit., pp.33 e ss. («The Morality
that Makes Law Possible»)]. Bastando-nos por agora lembrar que a dita moralidade interna do direito (na sua
indiferença explícita em relação a substantive aims) [Ibidem, pp. 152 e ss.] corresponde às seguintes exigências-
requirements: 1) generalidade («there must be rules…»), 2) publicidade («…which are published…»), 3) não
retroactividade («.which are prospective…»), 4) clareza («…which are intelligible…»), 5) consistência
(«…which are free from contradiction…»), 6) possibilidade de cumprimento («…which do not command the
impossible, which are possible to comply with…»), 7) estabilidade temporal razoável («which should not be
changed too frequently…»), 8) congruência entre as regras pressupostas e as acções oficiais que as mobilizam,
executam ou realizam («there must be congruence between the declared rules and the official action…»).
499 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., pp. 64 e ss («Eight Desiderata»).
123

taken collectively, can be regarded as a guiding ideal for legal thought: the ideal that we usually label «the rule
of law»500.

Depois também para reconstruir os referidos desiderata, conferindo-lhe uma


fundamentação integradora, filosoficamente plausível501. É esta reconstrução que leva
Simmonds a concentrar-se na exigência da liberdade502([f]or I claim that the rule of law is an
intrinsically moral idea in that the rule of law serves to protect liberty503): não decerto para defender
uma liberdade enquanto mera disponibilidade de opções, medida pela extensão e qualidade destas
opções (freedom concerning the range of options available to us without interference), mas para
autonomizar desta uma liberdade enquanto independência, explicitamente afirmada como
autodeterminação perante o poder e a vontade dos outros (freedom as independence from the power
(…) and will (…) of another)504. Trata-se, na verdade, muito clara e simplesmente, de sustentar
que o «valor moral do direito» se identifica com o modo como a institucionalização que o
distingue assegura a segunda destas liberdades (e o património de direitos que lhe corresponde)
— ou mais rigorosamente, com o modo como tal institucionalização garante um grau de
realização da referida independência (ou das suas condições), que não é susceptível de ser
garantido por nenhuma outra instituição social (the minimum conditions identified by Fuller (…)
point towards the ideal of freedom as independence505, (…) [l]aw represents the only set of conditions within
which people can enjoy, within the context of a human society, a degree of freedom as independence506, [t]o

500 Id., «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., p. 616. « Much of Fuller’s

book is taken up with showing how legal practices represent, as he puts it, a purposive activity, and how the
overall coherence of the activity is revealed by grasping the way in which it serves the idea of compliance with
the eight desiderata. (…) Hart’s critique of Fuller appeared to suggest that the moral value of compliance with
the eight requirements is wholly contingent upon the law’s content, and that the eight requirements are more
akin to precepts of efficiency than to moral standards. This criticism has been widely endorsed as correct. In
fact, the criticism is not correct. The eight requirements are not principles of efficacy, but (when taken
together) represent a moral ideal for legal systems…» (Ibidem)
501« Nevertheless, it must be conceded that Fuller never really succeeded in giving a clear explanation

of the moral status of his eight requirements. It is here that I feel my own work clarifies matters and
contributes positively to the debate…» (Ibidem, p. 617)
502 Simmonds, Law as a Moral Idea, cit., pp. 99-104 («Liberty and the Rule of Law»), 104 e ss., 109-

111 («Final remark»), 136 e ss., 136-143(«A better conception of law»), 158 e ss., 176, 189 e ss, 197. Ver
também a eloquente síntese proposta em «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., pp.
615-621.
503 Law as a Moral Idea, cit., p. 109.
504 « The notion of legality (…) is logically tied to one of the most important aspects of liberty:

independence from the power of others. (…) Freedom in this sense is not a matter of the number or diversity
or value of options open to an individual. » (Ibidem, 111, 141).«[A] slave may conceivably, in certain
circumstances, enjoy more options than a free man: consider a slave whose master gives him very few tasks to
perform, by contrast with a free man who has many onerous duties as part of his work, or his family life, or
his role as a citizen. (…) In the case of the free man (…) the options that he has, and the duties he bears, are
never fully dependent upon the will of someone else. This is so, at least, to the extent that the free man lives
under the rule of law. …» («The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., pp. 617-618).
505 Ibidem, p. 623.
506 Law as a Moral Idea, cit., p. 143.
124

the extent that we are governed by institutions approximating to full compliance with Fuller’s eight precepts,
we enjoy a degree of freedom as independence that can be enjoyed in no other way507).
Admitir este ponto de chegada significa, com efeito, sintetizar um projecto de
«conjugação» dos valores da juridicidade e da justiça que, mobilizando embora a herança de
Fuller, não menos eloquentemente se abre para além dela: mais do que propor uma
reconstrução (refinement) dos desiderata508 atenta à relação que o sistema de principles e rules
deve manter com a comunidade a que se dirige509, tal «conjugação» implica, na verdade,
uma atenção privilegida à circularidade das práticas e dos pensamentos e ao modo como
estas especificam (reinventam) integrantemente uma exigência de fidelidade ao direito (our
experience of the problems internal to the realization of the ideal will lead to an enriched grasp of what the
ideal really amounts to, and how it should be understood510). Atenção que, sem escapar ao desafio
do pluralismo e à problematização argumentativa que este exige, «exibe» um «cepticismo»
logrado perante «o cepticismo das raposas»511? Importará reconhecê-lo. Sem esquecer que
se trata assim também de reafirmar um continuum metodológico hostil ao contraponto casos
fáceis/casos difíceis e de confirmar a plausibilidade-claim de um tratamento judicativamente
integrado, iluminado pela moralidade do direito, se não, mais especificamente, pela exigência
de respeitar o valor da liberdade como independência (there is, therefore, no sense of “law” in which (…)
legality is reduced to a simple matter of derivability from a rule of recognition (…), judicial invocation of the
law (…) must be construed as ultimately appealing to the ideal of the rule of law512).

2.4.1.3. Se os desenvolvimentos assumidos nos bastam para compreender a


proposta de Simmonds e o modo como esta eloquentemente se apropria da herança de
Fuller (tornando-no-la luminosamente presente), cumpre-me retomar a máscara condutora
e perguntar uma vez mais se a experiência do «lugar» do direito assim esboçada nos oferece
todas as oportunidades de tematização que a nossa circunstância exige. Voltando ao
patamar construído pela resposta de Dworkin e às observações que este nos mereceu,

507 «The Nature of Law: Three Problems with One Solution», cit., p. 618.
508 Law as a Moral Idea, cit., pp.158 e ss. («Refining the Archetype»).
509 «For reasons of both followability and intelligibility, therefore, the law will need to have a certain

fit with existing forms of life, habits of conduct, settled expectations and shared moral sentiments. (…) The
refinements proposed (…) [include] a requirement that compliance with the body of rules should be
reasonably compatible with a viable way of life; and, since the intelligibility of a rule is a matter of degree, the
archetype of full intelligibility should require some consonance between the system of rules and the settled
moral understandings of the population governed by their rules…» (Ibidem, pp. 163, 189-190).
510 Ibidem, p. 145.
511 Já assim claramente convocando Isaiah Berlin… antes de Justice for Hedgehogs: ibidem, pp. 176-180

(«Pluralism and Moral Knowledge»).


512 Ibidem, p.191.
125

parece-me possível dizer-se que a tentativa de Law as a Moral Idea pode agora quando muito
servir-nos como uma especificação lograda do que então dissemos uma dinâmica de integração
(ou de diferenciação unitária perante as arenas exteriores) [supra, 2.3.3.]. Se o reconhecimento
desta dinâmica, numa superação decisiva dos equívocos do incorporacionismo, nos permitiu
confirmar que o caminho exigível passa por uma recompreensão das práticas e dos
discursos do direito na sua unidade intencional [a)] e na sua circularidade constitutiva [b)]
— e por esta unidade e circularidade (também) enquanto rejeitam a hipertrofia da episteme-
-technê e experimentam uma racionalidade alternativa [c)] —, importa dizer que o caminho
ensaiado por Simmonds confirma este reconhecimento, acrescentando uma especificação
significativa (tanto mais significativa quanto transgressora de um certo parochial canon) : não
se trata com efeito apenas de reforçar a referida unidade e o carácter constitutivo da
circularidade que a traduz — submetendo-as por um lado a uma experiência de continuum,
abrindo-as por outro a uma radicalização crítico-reflexiva (em termos que já
suficientemente acentuámos)513 —, trata-se muito especialmente de defender que a
reconstituição desta relação entre ideal e realization (entre understanding e action, entre values e
practices) — rompendo muito justamente com uma tradição de redução epistemológica do
problema da normatividade514 — exige como perspectiva-horizonte um certo regresso a
Aristóteles e a filosofia prática (se não a reinvenção da phronêsis) que este regresso (na sua
tradução gadameriana) estará em condições de estimular515 (we discover the limitations of an
explicitly formulated principle, and deepen our understanding of the moral value that it imperfectly
expresses, through the experience of trying to apply it in the multifarious circumstances of the real world 516) .
Uma especificação significativa? Importa reconhecê-lo517. Sem prejuízo de devermos
simultaneamente concluir que os resultados obtidos por esta identificação da perspectiva,
tanto no plano global da recompreensão da praxis, quanto no plano específico da

513 Ver supra, 2.4.1.1. (com a alusão às interpretações negativas).


514 Ibidem, pp. 113-119.«The philosophical problem of normativity is often framed as a question
concerning the relationship between normativity and the outlook of modern science: how can norms and the
“ought” find a place in the world as described by science? It is not entirely clear that this is the most
appropriate question to ask. (…) If a detached attitude is attainable at all, it is (…) only intermittently (…).
Understanding and action are always entangled one with another, for our knowledge of the world is always
mediated by concepts and categories that are themselves thev product of human history (…) and sustained by
social practice…» (Ibidem, pp. 115, 117).
515 Ibidem, pp. 145-150 («The Depth of the Ideal»). «Fuller’s views (…) make best sense when locared

within the context of some wellworn Aristotelian themes…» (Ibidem,p.145)


516 Ibidem, p. 146.
517 «The analysis of the relevant philosophical developments leads Simmonds to relying on a

distinctive philosophical tradition that has not really made an impact on Anglo‐Saxon legal theory, and that is
pretty alien to Dworkin. Simmonds sympathises with a kind of Aristotelian practical philosophical perspective
that revolves around the practical wisdom inherent in our practices and morally significant experiences. (…)
For Simmonds, Gadamer is the guide to the way the Aristotelian perspective can be used in a contemporary
philosophical context…» (Bódig, «Comment on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the
Contemporary Legal Theoretical Discourse», cit., pp.655-656)
126

identidade do jurídico, ficam manifestamente àquem das promessas. Em relação a esta


identidade, poder-se-á mesmo dizer que as acentuações assumidas (sustentando embora
uma compreensão da moralidade que se quer imanente às práticas jurídicas) se inscrevem
timidamente nas alternativas de resposta que atribuímos ao interpretivism de Dworkin (sem
conseguirem excedê-las nem problematizá-las)[ver supra, 2.3.3., α) e ß)]518. Significa isto que
nem a acentuação da historicidade constitutiva no plano da perspectiva interrogante
(associando a semantic depth da idea of law à experiência de continuidade que historicamente a
prossegue519), nem as possibilidades abertas no plano metodológico pela superação da
discretion thesis (com a defesa lograda da impossibilidade de uma discontinous strategy of
adjudication520), se mostram ao fim e ao cabo capazes de vencer duas pressuposições
aproblemáticas, a primeira a identificar o jurídico com uma praxis interpretativa, a segunda
a permitir que a sua intenção axiológica (sem prejuízo de um apelo indeterminado para um
valor de justiça) se nos exponha (universal e aculturalmente) concentrada no pólo dos direitos
([i]n the absence of a clearly applicable legal rule, the closest that the judge can come to respecting the value
of independence from the will of another is to be guided by his understanding of the value of justice (…),
[t]he judges must, so to speak, read the law as a body of texts concerning justice521).

2.4.2. O longo parêntesis que abrimos para enfrentar o puzzle gerado pelos debates
do positivismo — e esclarecer o equívoco das muitas e variadas moralidades que nele são
mobilizadas — cumpre-se com a alusão a um último caminho e à proposta que permite
pensá-lo — uma proposta que, sendo tão manifestamente exterior ao evocado parochial
ground como as de Alexy e de La Torre, não deixa como estas de significativa e
constitutivamente se lhe dirigir (em termos embora exemplarmente diferentes). Refiro-me à
compreensão assumida por Sousa e Brito e ao modo como esta defende que o
reconhecimento, levado a sério enquanto facto constitutivo e enquanto critério de validade (com a
positividade que o traduz), se auto-suspende parcialmente no quadro institucional do Estado-
de-direito — com a consagração de uma «esfera de racionalidade» na qual as «normas da
razão ética» estejam em condições de «contradizer as normas positivas» e de prevalecer
«sobre elas por superioridade lógico-normativa e hierárquica» —, implicando uma tal
suspensão institucional a auto-suspensão, não menos impressiva (por razões claras de

518 «For Simmonds, however, Dworkin is not really detached from the “modern” approach…»

(Ibidem, p. 655, nota 128)


519 Ibidem, p. 189. «[L]aw is always an ideal to be constructed, rather than a finite body of

materials…» (Ibidem, p. 191).


520 Ibidem, p.197.
521 Ibidem.
127

«coerência»), da sources thesis (pelo menos) naquelas posições que apostam num positivismo
includente (anche il positivismo giuridico, nella misura in cui si basa sul riconoscimento, deve sospendere se
stesso nello Stato di diritto)522.

2.4.2. 1. A exploração desta proposta é de resto tanto mais oportuna na sequência


de caminhos que fomos sugerindo quanto é certo que a relação juridicidade/ moralidade nela
experimentada se cumpre levando a sério uma representação das «razões éticas»
indissociável da compreensão aristotélica da praxis (que vimos explicitamente introduzida
por Simmonds) ou da reinvenção que, segundo Brito, esta hoje exige. Que reinvenção?
Uma reinvenção por um lado que possa mobilizar uma «filosofia hermenêutica» encore à faire,
entenda-se, uma perspectiva interrogante capaz de conjugar o horizonte prático-existencial
da nova hermenêutica (als Philosophie) com os métodos da filosofia analítica, se não de harmonizar
os caminhos dos «filósofos hermenêuticos de orientação dialéctica» e de «orientação
analítica» («hermeneutical philosophy» as a common designation for both tendencies) — e de assim
mesmo encontrar condições que reconciliem reflexivamente os (muitas vezes tidos como
incomunicáveis) regressos a Aristóteles (e ao «silogismo prático»!) protagonizados
respectivamente por Gadamer (e Bubner) e por Von Wright (e Anscombe)523 … —, uma
reinvenção por outro lado que possa integrar-se no projecto de uma nova teoria da justiça… ou
pelo menos na tentativa de esclarecer o «começo» que esta teoria deverá levar a sério
(enquanto «ponto de encontro da ética, da filosofia política e da filosofia do direito» 524) —
tentativa que há-de também mobilizar a teoria da phronêsis aristotélica (e a especificidade da
sua verdade prática), mas agora para a submeter aos desafios produtivos de novos encontros,
tanto com a moralidade de Kant (revisitada-convertida por Rawls) quanto com o utilitarismo
de Bentham (e Mill). Trata-se, numa palavra, de defender que o contraponto direitos / dever

522 Brito, «O que é o positivismo jurídico. Como se autodefine e como se auto-suspende»

(conferência plenária das I Jornadas da ATFD, Lisboa, Janeiro de 2009), mimeo, cit. na trad. italiana proposta
como lezione none em False e vere alternative nella teoria della giustizia. Lezioni napoletane di filosofia del diritto, 2011,
Napoli, Editoriale Scientifica, pp. 159-160. Ver também «A Constituição do Direito e o Positivismo Jurídico»,
Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 Anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, Almedina,
2007, pp. 717-718 e «O que é o direito para o jurista?», Estudos em Homenagem a Miguel Galvão
Teles, I, Coimbra, Almedina, 2012, p. 40.
523 Brito, «Hermeneutik und Recht», Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte. Romanistische

Abteilung, CIV, 1987, pp. 596 e ss., 617-619 (ver trad. port. no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra LXII,
1986, pp. e trad. italiana em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit., pp. 163 e ss., 195-198). Em
relação ao silogismo prático ver ainda «Legal Interpretation and Practical Inference», International Journal for
semiotics of the Law, vol.VII nº1, 1994, pp. 101, 104 e ss. e «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça»,
in Figueiredo Dias, Gomes Canotilho, Faria Costa (ed.), Ars iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor
António Castanheira Neves, I, cit., pp.314-320 (ou na versão italiana, False e vere alternative nella teoria della giustizia,
cit., pp. 72-79).
524 «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 289, False e vere alternative nella teoria

della giustizia, cit., p. 17.


128

/utilidade (na paradigmática separação atribuída ao Dworkin de Taking Rights Seriously), e com
este também a distinção tripartida entre éticas «dos direitos do homem», do «dever» e da
«felicidade» — sem prejuízo de as categorias envolvidas em tais exercícios de separação nos
servirem (e continuarem a servir-nos) para «caracterizar diversas correntes do pensamento
ético»525—, nos expõe(m) a «falsas alternativas» (a «pseudo-alternativas») quando se trata de
reflectir sobre a «fundamentação filosófica da teoria da justiça»526: decerto porque «a prova do
utilitarismo de Bentham» se reconduz afinal ao «imperativo categórico de Kant»527, não
podendo este «imperativo», por sua vez, «desenvolver-se discursivamente em termos
diferentes dos propostos por Aristóteles»528. Conclusão tanto mais relevante quanto é certo
que se trata assim também de abrir as portas para um repensar da relação entre «razões
éticas» e «razões jurídicas»… e para considerar, «partindo de baixo» («da progressiva
harmonização de máximas do agir» e «da resolução de conflitos entre princípios éticos»),
verdadeiras «alternativas do desenvolvimento do direito» — «alternativas» da teoria da justiça
«em vista do direito» que assim se nos oferecem inextricavelmente como «sistemas éticos»
(«sistemas alternativos de dedução ética a partir do direito»), entenda-se, como os «sistemas da
justiça» possível nas diferentes circunstâncias de cada ordem jurídica»529 (starting from the different
legal systems of the rule of law states, alternative ethical systems can be construed from the law530).
Em que termos é que esta reconstrução das «alternativas de desenvolvimento da
teoria da justiça em função do direito»531 nos estimula a repensar a relação
juridicidade/moralidade? O núcleo da resposta, esse encontramo-lo na identificação da
referida moral: moral que se nos expõe, por uma vez, livre das significações polarizadas que
vimos conformar o debate positivismo /não positivismo (moral substantiva/procedimental, moral
convencional/crítica, moral particular/universal)532… para exemplarmente se ver reconduzida ao
plano da ética filosófica e do seu discurso de razões, na sua inteligibilidade prático-prudencial,

525Ibidem, respectivamente pp. 290 e 18.


526Ibidem, respectivamente pp. 334 e 101.
527Ibidem «Que fica (.…) da autonomia do utilitarismo frente à filosofia moral kantiana e vice-versa?

Eu diria que não fica nada…» (Ibidem, respectivamente pp. 309 e 62).
528Ibidem, respectivamente pp. 334 e 101. Tratando-se aqui de invocar o modelo do «silogismo

prático», mas também de ter presentes as relações de «imersão da ética no direito» e de «desenvolvimento da
ética a partir do direito» que, segundo Brito, Aristóteles inexcedivelmente pensou (ver, neste sentido, ibidem,
respectivamente pp. 330 e 95-96).
529 Ibidem, respectivamente pp. 334 e 101.
530 Brito (com a colaboração de A. Serpe), «20th Century Legal Philosophy in Portugal», in Pattaro

/Roversi (ed.), Legal Philosophy in the Twentieth Century: The Civil Law World, vol. 12 ( do Treatise of Legal
Philosophy and General Jurisprudence, Springer, 2013 (a publicar), secção 2.3.1.10. («Analytical Philosophy of Law:
Brito»).
531 Ver todo o cap. IV de «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça» (cit., pp. 320-334),

convertido na lezione quinta («Le alternative di sviluppo della teoria della giustizia in funzione del diritto») de
False e vere alternative nella teoria della giustizia (cit., pp. 81-101).
532 Significações que nem os argumentos de Dworkin nem os de Simmonds se mostram ao fim e ao

cabo interessados em questionar (e que por isso mesmo não superam).


129

mas também na universalidade racional do seu auditório (la parola «morale» vuol dire qui «etico»,
e non sto parlando di morale sociale ma di etica filosofica533).

«Quando falo aqui de ética e de argumentos éticos uso as palavras num sentido
amplíssimo, fazendo coincidir o domínio da ética com o do raciocínio prático, ou da praxis,
de Aristóteles, que abrange a justificação das acções em vista de todos os fins possíveis»534.
Como se se tratasse afinal de convocar o «horizonte de todos os fins possíveis de todos os
homens» e com este uma «comunidade de razões filosóficas», entenda-se, uma «comunidade
ideal» em que todos se motivassem por «razões éticas universais»535.

O que daqui resulta é um contraponto da ética e do direito enquanto «espaços,


campos ou esferas de argumentação»536, ou mais rigorosamente, uma determinação do lugar
do direito concentrada nas «formas de argumentação que se consideram correctas na prática
jurídica» e que assim mesmo se esclarece por comparação com as formas argumentativas «que
se consideram correctas na discussão ética»537. Uma tal comparação evoca, na verdade, um
percurso paralelo ao da estrutura em árvore do «ouriço» e isto enquanto mobiliza (como
tertium) um horizonte reflexivo nuclearmente integrado — não decerto já referido à unidade
do valor, porque antes e em contrapartida iluminado pela integridade (-universalidade) das
formas discursivas da praxis e pelo arquétipo metódico do «silogismo prático»! —, o qual,
sem pôr em causa uma interferência multidireccional (garantida pelos já invocados processos
de «inclusão da ética no direito»538 e de «de dedução da ética a partir do direito»539), não
obstante nos autoriza a encontrar a diferenciação relevante num modelo de especificação-
institucionalização identificado principalmente pela negativa. Como se se tratasse afinal de

533 «O que é o positivismo jurídico», cit. em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit., p.154.
534 «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 325, False e vere alternative nella teoria
della giustizia, cit., p. 89.
535 Ibidem, respectivamente pp. 329-330 e 94-95. Ver também «O que é o positivismo jurídico», cit.

em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit., pp. 154-158 e «Public Reason Between Ethics and Law»,
cit., pp. 469-470 («Legal Reason and Ethics»)
536«O que é o positivismo jurídico», cit. em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit.., p. 154.
537 «Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 325, False e vere alternative nella teoria

della giustizia, cit., p. 89.


538 Processos que Sousa e Brito recorrentemente sistematiza, distinguindo duas possibilidades: o das

«normas remissivas do direito para a ética» (remissões explícitas) e o do «uso nas normas jurídicas de conceitos
éticos fundamentais» (remissões implícitas). Ver ibidem, pp. 328-329 e 92-94.
539 Esta última está associada ao segundo processo de inclusão a que aludimos na nota anterior, uma

vez que se trata de reconhecer que as referidas «remissões implícitas» — no quadro institucional dos Estados
de direito e na perspectiva dos princípios da democracia (sendo a democracia levada a sério como a requirement
of ethics in the law) — se articulam «logicamente com corpos inteiros de disposições legais» e se projectam em
«sistemas dogmáticos» , os quais, por sua vez —ao pretenderem ter «fundamento racional» e ao «medirem os
seus desenvolvimentos interpretativos pelos critérios da ética» (aspiring to a rational or ethical foundation and (…)
[being] developed or criticised through ethical reasoning) —, desencadeiam um processo de autêntica «dedução da ética
a partir do direito». Para além das pp. indicadas na nota anterior ver também «20th Century Legal Philosophy
in Portugal», cit., secção 2.3.1.10. («Analytical Philosophy of Law: Brito»).
130

tematizar a passagem dos argumentos puramente éticos para os argumentos especificamente jurídicos
concentrando-nos num discurso de limites ou de restrições. Reconhecendo que «há
argumentos éticos que se admitiriam numa discussão ética mas que não são permitidos em
direito»?540 Certamente541. Só que então também concluindo que a «diversidade» das razões
públicas juridicamente relevantes (determinadas principalmente pelos referidos limites)542
não se nos oferece de maneira nenhuma «contrária à unidade da razão», porque é antes et
pour cause justificada pela «razão filosófica» e pelas exigências do seu horizonte racional («A
razão filosófica é una, é o horizonte da justificação racional em face de todas as razões, mas
a ela se chega por diversos caminhos possíveis e, entre eles, a partir da crítica racional das
várias razões públicas»543).

2.4.2.2. Abertas as portas para explorar este último caminho, volto a perguntar se
o «lugar» específico do direito será adequadamente compreendido quando o reconstituímos
como um «discurso ético limitado» (law as rationally limited ethical reason or a just limitation of
justice544). É certo que uma reconstuição prosseguida nestes termos nos proporciona
recursos analíticos privilegiados para, na contingência das diferentes ordens jurídicas,
explorar a dinâmica do Estado-de-direito e a relação desta com a ideia de democracia ou com o
princípio democrático — autonomizando fluxos de argumentação e de contra-argumentação,
de incorporação e de re-incorporação que de outro modo passariam despercebidos nos

540«Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça», cit., p. 325, False e vere alternative nella teoria

della giustizia, cit., p. 89.


541 Que limites são estes, impostos pelo direito ao raciocínio prático? Por um lado, aqueles que

correspondem à «obrigação de referência» aos modos de constituição-manifestação (legislativa,


consuetudinária e jurisdicional) do direito vigente: referência que corresponde decerto à integração, nos
argumentos jurídicos, de «frases da linguagem das fontes» (uma integração capaz de distinguir a «autoridade» e
a «hierarquia» dos diferentes modos em causa), na mesma medida em que traduz uma exigência de correcção (os
argumentos jurídicos devem-se «justificar perante a totalidade das fontes»), sem esquecer por fim a
«prioridade hermenêutica» de que, nesses argumentos, tais «frases» beneficiam (instituindo uma autêntica
order of support). Por outro lado, aqueles que «derivam das regras processuais da deliberação e da decisão»
(impondo tempos e prazos, delimitando competências, circunscrevendo as participações legítimas,
prescrevendo fronteiras de relevância e de comprovação). Limitações que «o direito impõe ao raciocínio
prático» (e que permitem distinguir a prática jurídica da prática da ética»)… e que não obstante não são
«contrárias à ética», antes se fundando em «razões éticas incorporadas pelo direito» (o «princípio
democrático», os «valores jurídicos da paz, da segurança e da utilidade das decisões»), razões que por sua vez
se verão ainda «eticamente limitadas» (e «de novo incorporadas pelo direito através do direito de desobediência, do
direito de resistência e da teoria jurídica da revolução») [Ibidem,respectivamente pp. 325-327 e 89-92; ver também «O
que é o positivismo jurídico», cit. em False e vere alternative nella teoria della giustizia, cit., pp. 154-158 e «Public
Reason Between Ethics and Law», cit., pp. 469-470 («Legal Reason and Ethics»)
542 «A razão pública contém as regras que regulam a validade dos raciocínios que fundamentam

conclusões em cada ordem jurídica. Essas regras variam com a diversidade das fontes de direito e
eventualmente com a diversidade de processos institucionais de obter decisões em cada ordem jurídica…»
(«O que é o direito para o jurista? », cit., p. 56).
543 Ibidem.
544 «20th Century Legal Philosophy in Portugal», cit., secção 2.3.1.10. («Analytical Philosophy of

Law: Brito»).
131

seus movimentos (e conferindo às teias de razões assim institucionalizadas a transparência


reflexiva de teorias alternativas). O preço a pagar parece-me no entanto excessivo. Ao
atribuir a argumentos situados em patamares distintos a inteligibilidade de razões éticas (ao
preservar essa inteligibilidade, como que em continuum, mesmo quando contrapõe as razões
públicas vigentes, as razões críticas da política do direito e o horizonte filosófico da razão
universal), Sousa e Brito — não obstante o distinto significado que atribui à palavra ética
(ou porventura, e sem paradoxo, por causa deste significado e da sobreposição entre ética e
racionalidade prática que este exige!)— persiste em reproduzir uma distribuição das
componentes jurídica e ética muito próxima daquela que vimos sustentar o debate positivismo
/não positivismo e as divisões internas daquele (quando não os equívocos do seu puzzle).
Como se a primeira das componentes se reduzisse à consagração autoritário-prescritiva dos
enunciados que limitam a argumentação racional… e a convocação de tal ratio (mesmo que
para fundamentar directamente estas limitações) implicasse uma intervenção inevitável da
segunda componente (em qualquer uma das suas instâncias), devendo dizer-se já sempre
inequivocamente ética (como éticas virão a ser as razões que justificarão a consagração
prescritiva de possíveis limites dos limites)… ao ponto de parecer quase um «sem sentido»
persitirmos em falar de «argumentos jurídicos»!
Ora este ponto de chegada obriga-me a responder negativamente à pergunta que
formulei. Só a superação inequívoca de uma tal distribuição (e dos pressupostos que a
alimentam) nos permitirá, com efeito, hoje pôr adequadamente o problema da autonomia
do direito (com uma radicalidade reflexiva que nos autorize a responder-lhe positiva ou
negativamente). A que superação me refiro? Vê-lo-emos na etapa seguinte.

3. Etapa V. Com a presente etapa voltamos, como prometido, à compreensão


jurisprudencialista (explicitamente introduzida na etapa II), para — em função dos
esclarecimentos que a reconstituição do nosso puzzle (sucitado pelos desafios da relação
com a moralidade) nos permitiu introduzir (etapa IV, percursos 1 e 2) —, estarmos em
condições de acentuar o modo como tal compreensão nos estimula a repensar a relação
constitutiva entre direito e pretensão da autonomia. Como se se tratasse de transformar os
esclarecimentos introduzidos ao longo desta última etapa em exigências ou expectativas de
reflexão e de sistematizar estas, abrindo as respostas possíveis. Sendo certo que a exigência
(se não thesis) condutora, que dá sentido a todas as outras, é a de (podermos e devermos)
separar o mundo prático do direito, na sua inteligibilidade racional, como uma especificação
histórico-culturalmente inconfundível da virtude intelectual da phronêsis —
132

inconfundibilidade que se justifica invocando a sobreposição lograda da virtude da


humanitas e as implicações prático-normativas que lhe estão associadas (e que passam pela
institucionalização de uma condição de tercialidade).

3.1. A primeira espectativa-exigência é a de, sem equívocos, nos situarmos no


horizonte de reabilitação da filosofia prática. Em relação à assimilação deste horizonte e ao
regresso a Aristóteles que esta envolve, importa esclarecer que se trata de (sem concessões)
mobilizar uma herança aberta pela segunda metade do século XX545, capaz de concertar
(sobrepor) a «aquisição» moderna das subjectividades intencional e cultural com uma
experimentação prático-existencial da historicidade constitutiva — com a primeira a
responsabilizar-nos pela autoria-inventio dos nossos mundos de sentido e a segunda a
reconhecer (ou a estimular-nos a reconhecer) diferenciações imprescindíveis nas possibilidades
ou nas condições (mas também nas dinâmicas) dessa inventio — se não na maior ou menor
vulnerabilidade à contingência do respondere que a cumpre (com a possibilidade de
introduzir uma dialéctica societas /communitas)546. Não porque se trate assim de simplesmente
apostar numa concepção possível em detrimento de outras também possíveis: antes porque
a mobilização desta herança nos abre possibilidades únicas de explorar uma articulação
constitutiva inextricável entre mundo prático e racionalidade sujeito/ sujeito, entre a experiência
prático-existencial e histórico-cultural que sustenta a invenção do primeiro e a estrutura dialógico-
-conversacional (se não a intencionalidade dialéctica) que dinamiza a segunda — sem esquecer
que uma tal articulação e a procura que lhe corresponde se exprimem na procura (mais ou
menos assumida) de uma «intercompreensão na existência»547 (de uma exigência de
comunicação que não seja apenas de «entendimento para entendimento» ou de «espírito
para espírito», mas de «existência para existência»)548. Ora esta acentuação está longe de se
nos expor como trivial. Permite-nos desde logo perceber que a atenção à circularidade

545 Mais próxima da «actualidade hermenêutica de Aristóteles» justificada por Simmonds do que da

tentativa de articulação assumida por Sousa e Brito (sem prejuízo de se reconhecer o que a tradição analítica
nos oferece quando se apropria de Aristóteles). Isto decerto para fazermos referência apenas aos nossos
interlocutores mais imediatos..
546 Com o alcance que tenho insistentemente defendido (ao qual voltaremos em breve): ver

especialmente «A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz : o “testemunho” crítico de um


“diferendo”?», Revista Lusófona de Humanidades e Tecnologias nº 12, ano 2007 /2008, pp. 94-98, «Jurisdição,
diferendo e “área aberta”. A caminho de uma “teoria” do direito como moldura?», cit., pp. 446-459,
«Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», cit., pp. 127-152,
Relatório com a perspectiva e os conteúdos, o programa e os métodos de ensino da(s) disciplinas de Teoria do direito e (ou)
Pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 107-108, 118-120, «Validade comunitária e contextos de
realização. Anotações em espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema», cit., pp. 9 e ss.
547 A expressão (convocada embora explicitamente a propósito de Habermas) é de Castanheira

Neves, «Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia
do direito?», Digesta, vol. 3º, cit., p. 90.
548 Para o dizermos voltando a Jaspers: Iniciação filosófica, cit., p. 26.
133

constitutiva das práticas, dos discursos e dos mundos práticos… — estes últimos a garantirem a
mediação referencial, se não o contexto-ordinans (reflexivamente autonomizável), que
sustenta a indissociabilidade dos dois primeiros — nos concentra num tipo de racionalidade
globalmente inconfundível (distinto de outros tipos possíveis de racionalidade), na mesma
medida em que nos fornece a chave para situar esta ratio e os seus argumentos perante essas
outras razões e as suas possibilidades (e reconhecer assim equilíbrios e modos de vinculação
também eles histórico-culturalmente situados).
Um tipo de racionalidade em confronto-equilíbrio com outros tipos de racionalidade,
disse. Impondo-se-me acrescentar que é para compreender tanto esta pluralidade de razões
quanto a pluralidade de soluções de equilíbrio que as articulam (as que lhe foram
correspondendo historicamente e as que hoje a disputam)… que o regresso a Aristóteles se
torna aqui indispensável. Não decerto para encontrar na secularização da praxis uma
experiência necessária da communitas (que de alguma forma importasse hoje reproduzir
como solução)549, menos ainda para mobilizar o arquétipo do silogismo dialéctico (ou do seu
enquadramento retórico) como esquema metódico atemporal (que se pudesse defender
como uma solução discursiva inexcedível), antes para (num tratamento paralelo ao de
Welsch550), reconhecer na proposta de sistematização das virtudes intelectuais, tal como a
vemos exposta no livro VI da Ética a Nicómano, um recurso fundador exemplar,
responsável —na sua assunção de uma pluralidade articulada de razões (als grundsätzliche
Pluralität in Sachen Vernunft551) — por um dos núcleos matriciais do Texto do Ocidente .

3.1.1. Significa isto começar por propor ao seminário uma leitura específica (se não
explicitamente situada) do livro VI552, preocupada em acentuar as distinções consagradas por

549 Para uma consideração desta «ordo ontológico-metafísica», com «uma teleologia inferível de uma
essencial causa finalis» (a qual teria «na polis a sua directa mediação prática»), ver Castanheira Neves, «A imagem
do homem no universo prático», Digesta, vol. 1º, cit., pp. 319-323 (1.), Apontamentos complementares de teoria do
direito – sumários e textos, Coimbra, polic., 1998 (versão em fascículos) pp. 79-81, (versão em A4) 43-45, «O
problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das
culturas», cit., pp. 111-112.
550 Ainda que com intenções claramente distintas, já que Welsch encontra neste livro VI mais do que

uma consagração paradigmatica de tipos de racionalidade plurais, uma consagração (avant la lettre) de um certo
(lyotardiano) teorema da heterogeneidade: Welsch, Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta Humaniora,
31991, pp. 277-284 («Aristoteles oder die Selbständlichkeit von Vielfalt»). Para um desenvolvimento, ver o

meu Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, Coimbra, Coimbra Editora,
2001, pp. 216-217 (notas 1 a 4), 265 e ss., 496-498.
551 Welsch, Unsere postmoderne Moderne, cit., p. 277.
552 O texto a propor aos mestrandos será o da trad. portuguesa de António Caeiro (Ética a Nicómaco,

Lisboa, Quetzal editores, 2004, pp.133-151) — não obstante a tradução de phronêsis por «sensatez»… —,
completado pelas traduções de Gadamer (apenas do livro VI) [Nikomachische Ethik VI (Sechstes Buch),
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1998] e de Jean Voilquin (Éthique de Nicomaque, Paris, Garnier
Flammarion, 1965, pp. 153-171).
134

Aristóteles, mas também em reconhecer o edifício unitário em que estas se inscrevem — e


os equilíbrios globais que lhe dão sentido553.
Na pluralidade das cinco virtudes (sophia, episteme, nous /phronêsis, poiesis-technê), o factor
de unidade a ter imediatamente em conta será evidentemente a do ponto de partida (se não a
da tarefa-érgon que lhes está confiada)…

Em todas elas — enquanto «operações da alma envolvidas na descoberta da


verdade», ou se quisermos «disposições do pensamento teórico» no sentido mais amplo do
termo — descobrimos com efeito um «estado habitual» (héxis) no qual a «relação com as
coisas virtuosas» se cumpre habilitando o «pensamento a dizer a verdade» (aretai dianoétikai) —
…sendo esta (correspondencialmente) assumida como uma conformidade do pensamento
com a realidade554. Trata-se, como é sabido, de estabelecer um contraponto claro com as
chamadas virtudes morais ou de carácter que, sendo ainda «estados habituais», se dirigem no
entanto ao desejo (à parte «desejante da alma»), distinguindo excesso, defeito e meio e
identificando a excelência com a «qualidade do que é do meio» (com um «justo meio» levado
a sério como qualidade do objecto da virtude)555.

Este ponto de partida só ganha no entanto o seu sentido pleno quando


consideramos a unidade do horizonte-resposta, iluminado por uma interpretatio da
comunidade-polis, se não pela representação da teleologia material (universal e ahistoricamente
concebida e nesse sentido virtualmente necessária) que lhe corresponde: uma interpretatio
judicativamente integradora, que só a «contemplação»-speculum iluminada pela sophia —
enquanto filosofia primeira (na «perfeição suprema» ou na «excelência» do «conhecimento do

553 Nesta leitura muito particular (com as escolhas que impõe e a contenção que exige), os

interlocutores-guias indispensáveis do nosso auditório implícito (aqueles cujas lições reflicto explicitamente no
texto) são: Enrico Berti, La ragioni di Aristotele (1989), cit. na trad. portuguesa As razões de Aristóteles, 2ª ed., São
Paulo, edições Loyola, 2002, 115 e ss., 143-156 («A phrónesis e o silogismo prático») [e também, muito
espcialmente Id., «Gadamer and the Reception of Aristotle’s Intellectual Virtues», Revista Portuguesa de Filosofia,
Julho-Dezembro 2000, vol.56, 345-360], Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, Paris 1963, cit. na
tradução castelhana La prudencia en Aristóteles, Barcelona, Crítica, 1999, pp.43 e ss. (toda a segunda parte) e
Joseph Dunne, Back to thr Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of Technique, Notre Dame (Indiana),
University of Notre Dame Press, 1997, cit. na reimpressão de 2001, pp. 237 e ss. («Theory, Technê, and
Phronesis: Distinctions and Relations»), 275 e ss. («The Circle between Knowledge and Virtuous Character:
Phronesis as a Form of Experience»). O nosso auditório modelo poderá contar ainda com o apoio precioso
do recente estudo de Nuno Santos Coelho, Sensatez como modelo e desafio do pensamento jurídico de Aristóteles,
Barbacena, Editora Fupac, 2012, pp. 89-118 («A excelência da razão prática entre as virtudes do pensar. O
livro VI da Ética a Nicômaco»).
554 Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 1 [VI, 1, 1138b 20 e ss].
555 Ibidem, livro VI, cap. 1 [VI, 1, 1139a 1-2], livro II, cap. 1 [II,1, 1103a 14 e ss.], livro II, cap. 6 [II,6,

1106a 1-25].
135

geral» que proporciona e na autojustificação que a sustenta, enquanto cria a «felicidade»)556


— estará afinal em condições de abrir.
Prioridade da sophia que não elimina a pluralidade das razões, que antes e em
contrapartida lhe confere um último horizonte de sentido, se não o tertium comparationis que
pré-determina os seus equilíbrios (e que a estabiliza e perpetua como pluralidade)… na
mesma medida em que sustenta uma autonomização indiscutível da praxis…

(a) Pré-determinação que se cumpre desde logo levando a sério o contraponto coisas
que não mudam /coisas que mudam, entenda-se, a irredutibilidade e a compossibilidade das duas
partes que integram a «alma capaz de razão», a saber, a parte em que a verdade-adequatio a
pronunciar se refere a objectos necessários — em que «consideramos teoreticamente todos
aqueles entes com princípios que não podem ser de outra maneira» (envolvendo os discursos
teoréticos stricto sensu da sophia, da episteme e do nous) — e a parte em que a verdade-adequatio a
dizer se refere a objectos contingentes — em que «consideramos aqueles entes com princípios
que podem ser de outra maneira» (envolvendo os discursos práticos lato sensu da phronêsis e da
poiesis-technê)557.
(b) Pré-determinação que se cumpre depois garantindo a harmonia das três virtudes
que asseguram a verdade teorética propriamente dita (episteme, nous, sophia) — decerto, porque
sem prejuízo das diferenças que as autonomizam enquanto disposições ou «ordens» de
conhecimento558 , se trata de reconhecer que a sophia, permitindo aceder aos objectos–coisas
que, por natureza, são os «mais preciosos e os mais importantes», não só se nos impõe como a
mais «perfeita» e «rigorosa» das três «ordens» como também concentra-sintetiza o seu
equilíbrio intrínseco (expondo-nos simultaneamente como nous e como episteme, se não como
«forma extrema» desta559).
(c) Pré-determinação que se cumpre finalmente garantindo que o terreno partilhado
das coisas e princípios que podem ser de outra maneira (disposições práticas lato sensu) seja
dividido-distribuído pelas possibilidades racionais inconfundíveis da phronêsis (relativa à
actividade-energeia das acções e decisões, constitutiva da praxis no seu sentido estrito) e da
poiesis-technê (relativa ao movimento-kinésis das produções-criações e a mobilizar a technê e as

556 Ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 9-22], livro VI, cap. 12 [VI, 12, 1141a 1-10].
557 Ibidem, livro VI, cap. 1 [VI, 1, 1139 a 5-15], livro VI, cap. 3 [VI, 3, 1139b 14-15].
558 Com a primeira a assegurar explicação-demonstração indutiva e dedutiva dos fenómenos físicos (na

sua necessidade intrínseca) — ibidem, livro VI, cap. 3 [VI, 3, 1139b 17-35] —, a segunda a exprimir um poder
de «compreensão intuitiva» dos primeiros princípios ou axiomas (a começar pelo «princípio racional» do
discurso teorético) — ibidem, livro VI, cap. 6 [VI, 6, 1140b 31- 1141a 8] — …e a terceira a conhecer «o que
deriva destes princípios» mas também a conhecê-los ou a contemplá-los enquanto tal, desocultando-os (num
plano de determinação inequivocamente metafísico) — ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 9-22].
559 Ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 15-20].
136

suas operatórias como uma dimensão indissociável)560. O que significa ainda e muito
especialmente assegurar que o tratamento da contingência que se consuma em acções e
decisões (contingência prática stricto sensu), tratamento garantido pela argumentação dialéctica
enquanto lógica do provável e do verosímil e pelo enquadramento retórico desta (por discursos que
hoje diríamos sujeito/sujeito), seja por um lado alimentado pela tópica (capaz de estabelecer um
continuum de fundamentação entre topoi contingentes e princípios necessários, constitutivos da
ordem do Ser) e por outro lado prosseguido por esquemas metódicos que, embora autónomos (a
indução e o epiquerema dialécticos/ o exemplo, a amplificação e o entimema retóricos )
encontram o seu modelo inexcedível de perfeição (se não o seu arquétipo) nos esquemas
metódicos das razões teoréticas (indução universal, silogismo necessário ou apodíctico,
determinação axiomática). Sem esquecer por fim que a primazia do teorético, na sua harmonia
com a pluralidade das disposições racionais em geral e com a autonomia da praxis em
particular, encontra a sua condição de possibilidade no modo como a ordem de
conhecimento da sophia mobiliza a relação telos/êthos: trata-se com efeito de lhe conferir a
produtividade de uma energeia autónoma e de assim mesmo a cumprir, por um lado como
bios (convertendo a «devoção à teoria» num way of life, se não numa interrelação inesperada
entre o Bem absoluto e os bens alcançáveis pelas acções humanas), por outro lado como
mimesis (reconhecendo que uma ética da excelência, com todas as projecções indispensáveis
nas coisas que mudam, se constrói conformando o carácter à ordem eterna, conjugando o
Humano com o esplendor de uma «natureza mais divina que o Humano» )561.

3.1.2. Não fica por aqui a nossa específica intentio lectoris. Uma vez reconstituída
esta estrutura de disposições racionais, trata-se, com efeito, de a mobilizar como quadro selectivo
para um exercício narrativo não menos situado (não menos preocupado com o que,
invocando Foucault, diríamos uma certa interpelação do presente)562, exercício este que, fazendo

560Ibidem, livro VI, cap. 5 [VI, 5, 1140a 24 -1140b 1-30], livro VI, cap. 8 [VI, 8 1141b 23 e ss.]
(phronêsis); livro VI, cap. 4 [ VI. 4, 1140a 1-23] (poiesis-technê). Como se se tratasse de reconhecer um
movimento que no qual o fim é imanente (o de uma acção-decisão concreta, relativa ao que, na ordem das
coisas humanas, se pode afinal dizer bom e mau, justo e injusto), distinguindo-o de um movimento que
produz um objecto exterior (e que mobiliza enquanto tal uma operatória racionalizada).

561 Ibidem, livro VI, cap. 7 [VI, 7, 1141a 30 e ss], livro VI, cap. 13 [Vi, 13, 1144b 1- 1145a 10], livro X,
cap. 7 [X, 7 1177b 1-5]. Para uma reconstituição exemplar, ver Dunne, Back to thr Rough Ground, cit., pp. 237 e
ss., 239-244 («The Primacy of Theory and the Questionable Status of Practice»). Sem esquecer a fascinante
tradução de Gadamer, acentuando o papel condutor da phronêsis — e reflectindo tal acentuação no
indispensável Nachwort [Nikomachische Ethik VI (Sechstes Buch), cit., pp. 61-67(«Die Begründung der praktischen
Philosophie»)] —, mas sem esquecer também a reconstituição crítica de Berti, na qual tal acentuação é por
assim dizer denunciada e corrigida [«Gadamer and the Reception of Aristotle’s Intellectual Virtues», cit.,
passim].
562Uma narrativa de resto explicitamente apoiada naquele outro exercício de «arqueologia cultural»

que Castanheira Neves (também invocando Foucault) sintetiza em «O problema da universalidade do direito
ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., pp. 111-116 (III). Sem
esquecer outras quatro peças indispensáveis a este exercício: os Sumários de História do Pensamento Jurídico,
Coimbra, polic., 1975-76, passim, «A imagem do homem no universo prático», cit., passim, «Método
137

corresponder tal estrutura ao núcleo do tratamento da racionalidade exigido pela communitas


pré-moderna — e pelo homo institutionalis563 que assume a sua indisponibilidade —, possa
preocupar-se por um lado em compreender as especificações justificadas pelas diversas
experiências desta communitas [(a)] e por outro lado em reconhecer as transformações,
maiores ou menores, que os sucessivos ciclos da cultura europeia foram introduzindo nesta
pluralidade e nos seus equilíbrios… e muito especialmente na relação pluralidade/unidade que
alimenta a autonomia da phronêsis (e da praxis que esta racionaliza) [(b)].
(a) A tarefa de reconduzir as especificações do ciclo pré-moderno (nos seus diversos
tempos) à perspectiva condutora desta ordem de disposições racionais (e à simplificação que
esta legitima) permite-nos de imediato situar alguns elementos discursivos capitais — não
certamente por acaso directamente relacionados com o problema do direito e com os
degraus da sua emergência autónoma.
(a)’ Há desde logo a oportunidade de reconhecer o juridicamente relevante que se
inscreve no contexto-horizonte pressuposto por todas as disposições em causa e que,
como uma das dimensões constitutivas da sua inteligibilidade global (enquanto logos), se
dilui no todo, confundindo-se com a exigência imanente de harmonia (ou com uma sua
indiferenciada projeccção normativa, autêntico nomos da metafísica do logos): aquele
juridicamente relevante que, sem lograr uma verdadeira autonomia, se nos oferece no problema
(que virá a dizer-se) do direito natural, se não, mais rigorosamente, no do «direito como
sentido e como especulação filosófica» (assumido pela sophia-sapientia, depois juris naturalis
scientia)564. A oportunidade de reconhecer o juridicamente relevante assumido pelo iter (pré-
moderno) da filosofia da «justiça»? Certamente. Sem esquecer que se trata assim de poder
explorar distintas perspectivas de determinação da teoria-contemplatio e do seu monismo
metódico, com procedimentos de manifestação da unidade ser/dever-ser também eles
exemplarmente diferenciados… — diferenciações estas que, não certamente por acaso,
acompanham (e se inter-relacionam) com a aquisição-agregação de novos degraus de
relevância jurídica (e outras tantas pretensões de autonomia, primeiro prático-social, depois
dogmático-cultural).

Jurídico», Digesta, vol. 2º, cit., pp. 289-301 (2.), e (a propósito das três grandes fases de compreensão da lei ou
da legislação) O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp. 489-611.
563 «A imagem do homem no universo prático», cit., p. 323.
564 Ver muito especialmente O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp.

492-506 (a)). Algumas especificações fundamentais deste cognitivismo normativo monista (se não normativismo
ontológico) — acentuando as distinções-correlações justo natural / lei natural, metafísica do ser /metafísica do logos
(mostrando por um lado que há uma relação decisiva, mediada pelo nous, entre justo humana e concretamente
natural e a metafísica do ser, e por outro lado que a auto-subsistência racional da lei natural, normativística avant la
lettre, corresponde precisamente a uma fundamentação constitutiva na metafísica do logos) — serão
explicitamente tratadas por Castanheira Neves na nova versão das Lições de teoria do direito (em preparação).
138

A simplificação da pergunta (construída a partir do elenco das virtudes intelectuais)


concentra-nos, com efeito, em três eixos maiores e nas correspondentes experiências de
indisponibilidade (inscritas nos horizontes da polis grega, da civitas romana e da respublica
christiana medieval): (1) na experiência de indisponibilidade de um Ser cósmico que se lê como
ordem pressuposta, definitiva e perfeita —com a perspectiva da juridicidade a esgotar-se no nomos
de uma metafísica do logos; (2) na experiência de indisponibilidade de um cosmos de «instituições
hipostasiadas» que se lê na experiência ontológica do caso e na tipologia substancializada que a
torna possível — com a perspectiva da juridicidade a exigir uma metafísica do ser dirigida ao justo
concreto (e a exigir uma articulação sapientia/prudentia), mas sobretudo a acrescentar à dimensão
filosófia a decisiva experiência de autonomização da jurisprudentia enquanto prática; (3)enfim
na experiência de indisponibilidade de uma ordem da criação que se lê como manifestação de
um Deus pessoal, na mesma medida em que, reassumindo um plano de determinação
normativa (também) auto-subsistente em abstracto, recupera a pretensão de integração no
todo do Ser — com a perspectiva da juridicidade a acrescentar às duas anteriores uma pretensão
de autonomia dogmático-cultural (determinada pela reeescrita hermenêutico-dialéctica do
Corpus juris civilis) e a expor-se-nos assim, em toda a sua (harmónica) complexidade, sob a
máscara constitutiva da trindade sapientia /prudentia /scientia (com uma scientia que não é
redutível nem à episteme nem à prudentia)565.

(a)’’ A inevitabilidade do cruzamento com as sucessivas esferas de autonomia do


jurídico e as pretensões correspondentes abre-nos, só por si, uma sequência de temas
possíveis. A devermos privilegiar um destes566, impor-se-nos-á decerto aquele que nos

565 É como se as emergências destas três autonomias («filosófica», prático-jurisprudencial e cultural)

correspondessem a três momentos inconfundíveis da aventura civilizacional da resposta direito (de um direito
que se descobre sucessivamente como sentido e como especulação filosófica, como prática jurisprudencial e
como domínio cultural universitariamente reconstituído e comunicado) — numa conjugação-construção que o
discurso medieval (ao assegurar a terceira das autonomias e ao assimilar-reinventar as outras duas) pôde
traduzir na relação sapientia / scientia / prudentia. Cfr. neste sentido o Sumário desenvolvido proposto por
Castanheira Neves na primeira sessão do II Programa de Doutoramento (Faculdade de Direito de Coimbra,
ano lectivo de 2001/2002), O actual problema da autonomia do direito, I) Introdução, 1.a), b) e c) — sistematização
que vemos retomada e desenvolvida em «O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na
diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., pp. 111-116 (III).
566 Identifiquem-se pelo menos outros dois (a explorar eventualmente pelo nosso auditório modelo):

a distribuição estabilizada pelo ciclo medieval e pela trindade sapentia / prudentia / scientia a que acbámos de
nos referir — enquanto articulação transversal, concentrada no terreno da juridicidade… e a introduzir uma
scientia que, não sendo prudentia (porque se situa num plano abstracto), não é também episteme (já que
determinada pela prioridade dialéctica da quaestio e pela textualidade dos objectos que interpreta); o problema
global (comum aos diversos ciclos ou pelo menos aos dois últimos) da articulação plausível entre o monismo
teorético do jusnaturalismo e a concepção do direito como jurisprudentia ( a questão de saber em que termos a
prevalência do teorético-metafísico consagrada pelo grande arco pré-moderno, exemplarmente justificada pela
distribuição das virtudes intelectuais, se mostra compossível com uma compreensão do jurídico
dominantemente jurisprudencial). Algumas pistas esquemáticas para esta exploração propomo-las em Sumários
desenvolvidos de Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo, cit., pp. 13-20 (1.1. e 1.2.).
139

concentra no problema da emergência do mundo prático do direito (enquanto praxis de


resolução-assimilação de controvérsias) e no contexto-horizonte que o tornou possível.

Compreender hoje esta Isolierung sócio-comunitária do jurídico à luz da distribuição do


livro VI significa, com efeito, poder dar atenção a especificações decisivas, tanto no plano da
pretensão de unidade quanto no plano das distinções exigíveis e dos seus equilíbrios.
A pretensão de unidade é desde logo fortalecida pela interpenetração da sophia-
sapientia e da phronêsis-prudentia exigida pela nova compreensão da indisponibilidade (associada,
como já vimos, à inteligibilidade sócio-prudencial do justo concreto ), mas é também iluminada
pela invenção da virtude da humanitas e pelas possibilidades que esta, no seu cruzamento
fecundo com a disposição racional da prudentia, determina (enquanto aponta um caminho
possível de inter-relação entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais).
O cruzamento da prudentia e da humanitas, pela especificação prático-culturalmente
lograda que a segunda introduz na primeira, leva-nos no entanto sobretudo para o plano das
distinções relevantes e da pluralidade que estas harmonizam. Podemos dizer que se trata de
associar a praxis de responsa dos jurisconsultos romanos a um mundo de acções e decisões
inconfundível e de determinar assim uma experiência diferenciadora que o holismo prático-
-prudencial reflectido-consagrado por Aristóteles (na exemplar exposição do Livro VI) não
estará decerto em condições de reconhecer e de assimilar. Se o holismo em causa nos obriga a
tratar o problema da resolução de controvérsias relativas a acontecimentos passados (enfrentado pela
retórica judiciária) num continuum intencional e discursivo com outras projecções da phronêsis —
não só com aquelas que se podem dizer relativas à comunidade-polis (e que correspondem a
dimensões político-arquitectónicas e político-deliberativas), mas também com aquelas que se
concentram nas opções do sujeito «individual» (éticas tout court) ou que correspondem ao
governo dos recursos do lar (económicas avant la lettre)567 —, a diferenciação introduzida
pelas práticas dos juriconsultos romanos (na especialíssima rise of the jurists que a abriu568), essa
compromete-nos com uma intensificação diferenciadora que supera decisivamente as
possibilidades deste continuum e nos obriga a assumir a especificidade intencional e discursiva
de um autêntico mundo prático (entre outros mundos práticos possíveis, cuja autonomia, se
não «descentralização de perspectivas de compreensão do mundo», virá a ser sucessivamente

567 Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 8 (VI, 8 / 1141b 23 - 1142a 11)
568É uma epígrafe escolhida por Peter Stein em «The Roman Jurists’ Conception of Law», o primeiro
ensaio que integra o vol. 7 (organizado por Padovani e Stein) de A Treatise of Legal Philosophy and General
Jurisprudence, Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2007, pp. 1 e ss. (especialmente 4-5), não sendo
certamente por acaso que a exploração da «filosofia do direito dos juristas» (iniciada com este vol. 7) [The Jurists’
Philosophy of Law from Rome to the Seventeenth Century] tem o seu ponto de partida no mundo destes first
professional secular legal specialists (as guardians of principles and rules of privarte law)… enquanto que a exploração
paralela do percurso da «filosofia do direito dos filósofos», sem excluir algumas heranças anteriores, nos faz
recuar até à manhã grega [vol. 6, A History of the Philosophy of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics,
Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2007].
140

institucionalizada569). Uma intensificação diferenciadora que, se por um lado tem a ver com
a possibilidade de converter a procura da humanitas num processo (permanente) de correcção-
especificação da ordem material pressuposta (capaz de tratar esta como jus, o justo
compreensível nas manifestações concretas do ser570), se cumpre por outro lado como uma
experiência de realização: como aquela experiência que só o juízo-julgamento, enquanto
tratamento argumentativo-prudencial das controvérsias-casos sustentado num cálculo de tipos e
numa hipostasiação institucional terminologicamente objectivada571 — mas também num exercício
determinante de relativização-comparação de sujeitos iguais e responsáveis — está (estará) em
condições de garantir (il sorgere e il consolidarsi di un mondo a parte, il cosmo delle istituzioni
ipostatizzate, dei rapporti «calculabili»572)

(b) Concentrar na exploração das disposições racionais os ciclos que se seguem


(reduzindo conscientemente a complexidade dos fluxos e contrafluxos que os sustentam)
significa por sua vez iluminar uma dinâmica de interrupção-renovação (ou de rejeição-recuperação)
referida à autonomia da praxis ou ao seu cursus principal (aberto pela secularização
aristotélica): com o processo de interrupção-rejeição (se não anulação) a caracterizar a
viragem moderna e a consagração iluminista (mas também as concepções que hoje prolongam
aproblematicamente estas herançasd) [b)’]… e com a oportunidade de retomar o referido
cursus (ou de engrossar alguns dos seus fluxos subterrâneos) a impor-se como uma das
dimensões-possibilidades da nossa circunstância [b)’’].

(b)’ A primeira destas frentes admite decerto (pelo menos!) duas aproximações
complementares. Como se um esquisso prévio nos autorizasse a identificar o novo
equilíbrio das racionalidades, centrado na hipertrofia da episteme (e da episteme-technê), antes
de explorar de que modo ou modos possíveis esse equilíbrio se precipita na resposta ao
problema da vida em comum (com a participação indispensável do direito).
Identificar um novo equilíbrio significa com efeito acompanhar a construção da Ideia
(moderna) de ciência, não apenas como um discurso de métodos (delimitador de inferências e
inference-licences permitidas e respectivos códigos de relevância e de comprovação), mas

569 Permita-se-nos esta paráfrase-transposição habermassiana… ainda que referida a um momento


prático-cultural completamente distinto!
570 Ver supra, nota 564.
571 Ao ponto de nos permitir dizer que as entidades substancializadas e indisponíveis passam a ser os

próprios casos ou tipos de casos, no seu contexto de validade (indissociáveis dos nomes que os identificam), se
não as próprias relações entre os sujeitos. Ver neste sentido (considerando o modo como as relações
intersubjectivas se hipostaziam) o indispensável Luigi Lombardi, Saggio sul diritto giurisprudenziale, Milano,
Giuffré, 1967, pp. 29-33 («Calcolo dei tipi»).
572 Ibidem, p. 29.
141

também como um projecto interpretativo, implícita ou explicitamente imputado a uma


comunidade de investigadores (responsável por sucessivas formulações de uma contínua
Weltauffassung)…

Por um lado, decerto, para reconhecer que o território correspondente às theoretiké


dianoia (transformando-se de fond en comble573) passa a ser dominado por uma pretensão de
universalidade-unidade nomológico-explicativa: pretensão que, convertendo-se em padrão
de validade-racionalidade (em definição auto-subistente do próprio logos), não só autoriza a
episteme a apropriar-se do nous (indispensável à determinação de uma componente axiomática
auto-fundamentante) como também a obriga a sobrepor-se à pretensão de universalidade-
-unidade da filosofia primeira (na sua intenção ontológico-metafísica) — sobreposição que
começará por ser condicionamento e conformação de possibilidades (superadores de um
cognitivismo heteronomamente referido e de uma inteligibilidade normativamente edificante), antes
de se oferecer com o pathos de uma substituição (recriada em momentos diversos e com
implicações também distintas).
Por outro lado, ainda, para acentuar o processo de fragmentação que, ao desvincular a
technê da poiesis-aisthesis (ou ao deixar de autonomizar aquela apenas em função de uma
dinâmica de produção-criação ou do território que naturalmente lhe corresponde), a torna
disponível para novas e insuspeitadas assimilações: o que aqui e agora significa convertê-la
numa componente relacional decisiva da própria episteme, abrindo as portas para o que se
poderá dizer a «absorção da episteme» numa (ou por uma) «nova forma de technê» (the
absorption of episteme into a new, powerful and expanded form of technê574), mas sobretudo deslocando
o problema das tensões e dos equilíbrios relevantes (entre os diversos discursos de razões)
para um novo núcleo — como se tudo passasse enfim a decidir-se entre os pólos-máscaras
da episteme-technê… e da technê-episteme e como um problema de articulação entre conhecimento
nomológico e técnica, depois também entre racionalidades teorético-explicativa e instrumental-
-estratégica. Acentuação esta última da maior importância, já que, como é sabido, passa a privar
a praxis e a sua energeia (na contingência das suas acções e decisões), de uma relação interna
com modos específicos e autónomos de racionalidade — na mesma medida em que (num
percurso complexo, feito de agonias e ressurreições) confina estes discursos da contingência
(quase sempre na sua inteligiblidade retórica) às arenas da criação-aisthesis (ou pelo menos ao
eixo transversal dos canais expressivos). Sendo certo que uma tal privação não se limita a
libertar a prática enquanto voluntas (abrindo-a à inteligibilidade auto-subsistente da política e
às ordens de preferência das opções ideológicas), admite também submetê-la (com maior ou
menor intensidade, com pretensões assumidamente totalizantes ou critico-reflexivamente

Ao ponto de deixar evidentemente de ser identificável como um discurso de virtudes!


573

Para o dizer com Dunne, Back to the Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of Technique, cit., p.
574

174 (a propósito de Habermas).


142

parcelares) às possibilidades de uma racionalização heterónoma. Decerto a racionalização


orientada pelos métodos e inferências da episteme — primeiro pela procura das verdades
demonstráveis (na sua inteligibilidade dedutiva ou indutiva), depois também pela procura do erro
(iluminada pela discussão crítica e pela exigência de falsificação). Sem esquecer que tal
orientação só é constitutivamente plausível porque as dimensões da prática a racionalizar são
tratadas explicitamente como operatórias calculáveis — quer como processos de desimplicação
lógica, quer como correlatos possíveis de uma distribuição final-racional (nesta última
alternativa implicando já uma conversão da prática em técnica)575.

Quando este esquisso se transforma em resposta ao problema da vida em comum,


a inteligibilidade dos equilíbrios pressupostos perde significativamente em transparência.
Não significa isto que não se nos imponham correspondências exemplares, desde logo
porque a superação da contemplatio metafísica e a exigência de substitutir a unidade que esta
garantia (enquanto interpretação de uma ordem materialmente transcendente) se cumprem
agora exigindo uma passagem da comunidade à sociedade e iluminando esta última como um
artefacto (sustentado numa aquisição da subjectividade intencional e (ou) cultural): o que como
sabemos nos remete para um projecto político-social fiel à narrativa de uma criação ex nihilo e
ao homem desvinculado («independente de toda e qualquer tradição»576) que por ela se
responsabiliza — se não mesmo ao status naturalis e (ou) à original position (universalmente
representados) que a tornam possível. Significa antes que tais correspondências se
constroem mobilizando recursos prático-culturais e introduzindo opções e experiências de
realização que, na diversidade dos seus planos intencionais (ético-antropológicos,
filosófico-políticos, filosófico-jurídicos e económicos) — e dos palcos em que se
consumam (situados entre as pretensões de universalização racional do mundo-da-vida e as
urgências da reprodução sistémica577) —inevitavelmente perturbam a linearidade das
articulações e dos equilíbrios esboçados…

575 Tratei do núcleo destas relações (a partir do ponto de chegada do racionalismo crítico) em Regras de

experiência e liberdade «objectiva» do juízo de prova. Convenções e limites de um possível modelo teorético, Coimbra, 1986, pp.
268 e ss («A resposta de um convencionalismo crítico: a “technê” legislativa») e «Is Law’s Practical-Cultural
Project Condemned To Fail The Test Of “Contextual Congruence”? A Dialogue With Hans Albert’s Social
Engineering», cit., passim.
576 «[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate

themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal, tradition-
independent norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and is the
project of modern liberal, individualist society…» (MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?, London,
Duckworth, 1988, p. 335)
577 Para evidentemente o dizer com Habermas: Theorie des kommunikativen Handens, Frankfurt am

Main, Suhrkamp, volume II, 1981, pp. 179 e ss., 209 e ss., 225-227, 270 e ss., 413 e ss, 571-583. Para uma
reconstituição deste núcleo — e muito especialmente da relação interior Lebenswelt (Kultur, Gesellschaft, Person)
/ Welte (Wissenschaft, Moralität, Kunst) e do confronto exterior Lebenswelt / System (com outras indicações
bibliográficas imprescindíveis) —, remeto-me para o estudo que desenvolvi em Habermas e a universalidade do
143

Para perceber que assim é, basta-nos ter presente que as abstracções condutoras
autonomizadas pela narrativa do homem desvinculado, conjugando por um lado ratio e voluntas e
por outro lado interesses emancipados e fins equivalentes, instalam um pluralismo ineliminável e
outras tantas tensões: quer porque determinam linhas de desenvolvimento ético-
-antropologicamente irredutíveis — consagradas (na sua diferenciação paradigmática) pelos
«argumentos» de Kant e de Bentham578 (nem por isso menos cruzadas e sobrepostas pelas
complexas heranças que vão assimilar estes argumentos!) —, quer porque (como factores
entre outros factores… e com cruzamentos e sobreposições não menos diferenciadas) abrem
as portas a institucionalizações político-sociais oponentes — dominadas respectivamente pela
garantia da compossibilidade dos arbítrios e pela efectividade da expansão-generalização dos benefícios. Sem
esquecer que tanto aquelas representações antropológicas quanto estes enquadramentos
institucionais — de novo concertados com um elenco diferenciado de factores (factores que,
como sabemos, estão longe de se reduzir aos dos degraus anteriores) — acabam por intervir
decisivamente na construção-experimentação de duas concepções opostas da juridicidade-
-legalidade. Aquelas que as máscaras do formalismo ateleológico e do teleologismo tecnológico (do
normativismo e do funcionalismo material) hoje polarizam? Podemos retrospectivamente admiti-
-lo. Sem que uma tal concentração nos permita ignorar que atrás destas máscaras se abriga
um património de tensões constitutivas muito mais diferenciadas, referidas quer ao direito
quer ao pensamento jurídico (tensões que os argumentos paralelos de Ihering e de Holmes,
na sua interpelação do normativismo e do formalismo dominantes, abriram
irreversivelmente no último quartel do século XIX, cujos sulcos-rastos se continuam hoje a
reconhecer e a reinventar)579…
É certo que todas estas diferenças se diriam (explícita ou implicitamente)
reconduzíveis ao eixo relacional episteme /technê, ou mais claramente, a um espectro de
soluções de equilíbrio que poderão ir da defesa da prevalência (e relativo isolamento) da
primeira (na sua inteligibilidade analítico-categorial), a uma alternativa de technê-episteme,
(consumada como tecnologia social). Alguns elementos introduzidos pelo projecto da
modernidade resistem no entanto a esta grelha: refiro-me especialmente àqueles que, abertos
pela linha da ratio-voluntas (inscrevendo-se explicitamente na herança de Kant), enfrentam
directamente as ameaças da hipertrofia final-racional, reconduzindo a exigência de universalização

direito. A «reconstrução» de um modelo «estrutural», separata dos Estudos em homenagem ao Professor Doutor Eduardo
Correia (número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidadede Coimbra), Coimbra 1989, pp. 39- 97
(«A “condição” cultural: a “descentralização” das perspectivas de compreensão do mundo»).
578MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?, cit., p. 353 («[T]he Enlightnment invoked the

arguments of Kant or Bentham…»).


579 Tensões tanto mais significativas quanto iluminadas (também elas) por diversos entendimentos

da relação juridicidade/cientificidade ou mesmo por concepções distintas (dentro de uma mesma concepção
tradicional da episteme) do que deva ser a ciência do direito. Para uma abordagem esquemática destas
possibilidades, ver o meu «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre…», cit., pp. 307-313 (4.).
144

a um novo tipo de racionalidade, que se dirá discursivo-procedimental580. Para não falar já de uma
reinvenção do teorético, como autêntico teorético-filosófico que, ao dizer-se dialéctica ou ao obrigar
esta a esquecer a sua «proveniência»-Herkunft e a romper assim o vínculo constitutivo com os
discurso da contingência, se dirige directamente à História para a dizer racional e se pré-
determinar como método ou discurso do método: com uma posteridade não menos visível que,
numa das suas linhas de acentuação, nos permitirá encontrar uma concepção crítica («não
tradicional») de ciência (e depois a teoria do direito dialéctico-materialista que a leva a sério)581.
Impondo-se-me acrescentar que qualquer uma destas possibilidades de resistência excede o
que nucleramente se poderá dizer um autêntico discurso de societas... aproximando-se, ainda
que do lado de fora, da fronteira em que reconhecemos já uma autêntica dialéctica societas
/communitas (e assim também uma renovação do cursus autónomo da praxis)…

(b)’’ No que diz respeito à dinâmica de renovação-recuperação, importa repetir que se


trata de invocar uma «reabilitação» ou «renascimento» situados, cujo primeiro grande fôlego
(na sua heterogeneidade relativa) vemos simbolicamente consagrado pela colectânea de
Manfred Riedel (ou pelo que nesta corresponde a um explícito Zurück-zu-Aristoteles)582 .
Estabelecendo um paralelo imediato com o percurso de interrupção-rejeição a que
acabámos de aludir, a primeira aproximação a explorar é decerto aquela que interroga os
equilíbrios e relações das disposições racionais. Aproximação indispensável esta, já que nos
permite entender uma oportunidade de reinvenção do pensamento prático e da sua ratio
(invariavelmente recuperada como phronêsis) que por uma vez se nos expõe inteiramente
livre do primado do teorético. Já não apenas do teorético científico justificado pela hipertrofia da
episteme… e pela sua apropriação irreversível da technê (Sachkundheit) — hipertrofia aquela e
apropriação esta (diria Heidegger!) consumadas, se não convertidas em metafísica, pela
experiência da modernidade583. Também do teorético filosófico autonomizado pela dialéctica
hegeliana (por uma «lógica» que quer ser «consumação racional da dialéctica»584)585 e pelos
seus herdeiros materialistas (com uma holística do Ser social e uma promessa de emancipação

580 Ver por todos Anna Pintore, Il diritto senza veritá, Torino, 1996, cit. na tradução inglesa Law without
Truth, Liverpool, Deborah Charles Publications, 2000, pp. 171 e ss., 209 -236 («Procedural Truth»).
581 Ver o meu «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre…», cit., pp. 310-311, notas 216-217.
582 Rehabilitierung der praktischen Philosophie, 2 vols, Freiburg, Rombach Verlag, 1972-1974.
583 « Der Name ‚die Technik‘ ist hier so wesentlich verstanden, daß er sich in seiner Bedeutung deckt

mit dem Titel ‚die vollendete Metaphysik‘…» (Heidegger, Vorträge und Aufsätze, 5. Auflage, Pfullingen,
Neske, 1985, p. 76).
584 Trata-se de invocar o diagnóstico de Bubner: Dialektik als Topik. Bausteine zu einer lebensweltlichen

Theorie der Rationalität, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990, p. 9, 79 e ss., 88-96.


585 Sem prejuízo do reconhecimento pela filosofia analítica pós-wittgensteiniana da importância de

Hegel na recuperação-renovação das temáticas aristotélicas: ver por todos Berti, Aristotele nel novecento, cit. na
tradução portuguesa Aristóteles no século XX, Edições Loyola, São Paulo, 1997, pp. 216 e ss.(«A teoria da
“inferência prática”: Anscombe e von Wright»)
145

que impõem como correlato uma experiência alternativa da praxis ou da relação teoria
/praxis). Também e ainda do teorético especulativo… que vemos luminosamente alimentado
pela virtude intelectual da sophia e pela institucionalização pré-moderna da conexão telos /
êthos (mas também a sobreviver penosamente em sucessivos neojusnaturalismos). Sendo
evidentemente esta última frente de afirmação da pretensão de autonomia a novidade
decisiva a ter em conta, mas também o desafio por excelência! Aquele que, ao combinar a
autonomia da praxis com a renúncia à inteligibilidade de um horizonte indisponível, vai
fazer depender a força integradora e a identidade vinculante de um horizonte normativo —
a possibilidade de levarmos a sério os referentes valorativos e os compromissos práticos
(mas também as pretensões-juízos de validade) que o distinguem — das possibilidades
reflexivas (no limite da sua intensificação interna, também crítico-reflexivas) de um
pensamento de «imanência constitutiva»…

De um pensamento que, ao expor-se-nos como «filosofia prática», possa, numa


intenção «comprometidamente “ascritiva” ou normativa», corresponder a uma «reflexão»
sobre os «momentos fundamentantes, regulativos e constitutivos» da praxis, na mesma
medida em que, explícita ou implicitamente, reconhece que o núcleo dessa reflexão imanente
(na autocompreensão e na autodeterminação que esta mobiliza ou na autotranscendência que
intenciona) convoca como problema maior (explícita ou implicitamente assumido embora) o
da validade dessa prática — o de uma validade que, sem poder contar com uma pré-
determinação auto-subsistente das suas significações normativas, se mostre no entanto em
condições de superar a singularidade aleatória e a contingência586. Problema de validade que
será então também (e num continuum sem soluções) o da historicidade prático-cultural dos
fundamentos envolvidos… e o da subjectividade intencional e (ou) cultural que cria tais
fundamentos ou que por eles se responsabiliza (how can we be bound by moral standards we
ourselves create?587). O problema (diria Singer) que resulta da nossa condição de «criaturas com
quatro dimensões» (fourth dimensional creatures living in a three-dimensional world), capazes de
reconhecer os limites que os contextos práticos nos impõem e de simultanaeamente os
construir e conformar, escapando aos seus vínculos (we are limited by our contexts but we have
resources to escape and shape them)588? Podemos admiti-lo. Acrescentando apenas (com o auxílio
das conhecidas formulações de von Wright) que se trata afinal de reconhecer que o novo
equilíbrio das disposições racionais há-de estar em condições de superar o «causalismo

586Oportunidade que é assim a de construir um discurso ou um pensamento integral e auto-

-subsistentemente práticos («de imanência constitutiva»): as formulações citadas no texto são de Castanheira
Neves, O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., primeira versão, Coimbra-Lisboa,
1982-1983, I. Prolegómenos, 2ª lição, 2.a), pp. 22-27.
587J. W. Singer, «Critical Normativity», Law and Critique, volume 20 nº 1, 2009, p. 38.
588 Singer, «Critical Normativity», cit., p. 34.
146

explicativo» da «tradição galilaica» … sem poder no entanto restabelecer a «teleologia


virtualmente necessária» que sustenta a autêntica «tradição aristotélica»589.

O que nos leva directamente para o problema da vida em comum. Problema que
também aqui se expõe mobilizando elementos com proveniências outras e determinando
respostas exemplarmente distintas, as quais, por sua vez, se reflectem na especificação
metodicamente estabilizadora das disposições racionais (compondo novas alternativas de
equilíbrio). É certo que a oportunidade de retomar o curso de autonomização da praxis se
institucionaliza assumindo (explicita ou implicitamente) o compromisso (se não à
responsabilidade ou a virtude) de um regresso da (ou um regresso à) comunidade. Não se trata
porém de um regresso qua tale mas, como bem sabemos, de uma renovação, com um
sentido que priva a comunidade em causa da sua unidade, universalidade e ahistoricidade
substantivas… para antes e em contrapartida lhe impor positivamente um factor de
pluralismo ou de pluralidade e assim mesmo a pensar ao lado da sociedade (e a estabelecer uma
dialéctica indispensável com esta). Como se ao fim e ao cabo a resposta ao problema da
identidade colectiva passasse a cumprir-se mobilizando dois projectos culturais
inconfundíveis — duas faces típicas de um certo teleological turn (ou da compreensão que
este hoje nos exige) — e o contraponto irredutível (se não a dialéctica) que estes
estabelecem590…

Com os discursos da societas a enfrentarem uma pluralidade que é inequivocamente a


dos interesses, a das ordens de preferência, a dos fins (da vontade) ou a dos programas
ideológicos… levados a sério numa perspectiva de hierarquização (decisoriamente colectiva)
de necessidades subjectivas equivalentes — e a assumirem assim um teleologismo de puros fins —
… e com os discursos da communitas a exigirem que, para além desta pluralidade (como
condição exigível para a poder tratar ou limitar sem recorrer a meras decisões!), se considere
também, na sua autonomia, a pluralidade das situações singulares de escrita e de leitura, dos
percursos vitais, dos casos-acontecimentos, das perguntas circunstanciadas, das narrativas
(eventualmente também a particularidade dos mores e das tradições)… abrindo
simultaneamente a nossa experiência (e as nossas possibilidades de practical deliberation) à
consideração de um horizonte de integração justificado pela referência a responsabilidades e
compromissos práticos partilhados… — o que na realidade significa mais do que revelar a
importância de fins incomensuráveis, cada um deles prosseguido como um fim em si mesmo e a

589 Ver Castanheira Neves, Apontamentos complementares de teoria do direito – sumários e textos, cit., (versão
em fascículos) pp. 79-81, (versão em A4) 43-45.
590 Ver textos citados supra, nota 546.
147

exigir enquanto tal um acervo de especificações plausíveis (non-commensurable (...) qualitatively


distinct and separate (…) ultimate ends, [each one pursued] for its own sake591), porque significa já
assumir um dualismo de objectivos e de bens (subjective goals v. human goods) ou, em termos
claramente mais exigentes, defender um teleologismo de fins e de valores592.

Já disse porém que este é um núcleo expositivo que (alimentado por opções
antropológico-existenciais heterogéneas e distintas compreensões da política) admite
desenvolvimentos muito distintos, gerando verdadeiras alternativas (cada uma delas com
diversos caminhos). Tenho procurado recorrentemente distinguir estas alternativas —
distribuindo-as esquematicamente por três grandes eixos. Sem voltar detidamente a esta
distribuição e às vozes que as justificam593, permitir-me-ei agora apenas mostrar em que
termos tais alternativas podem ser nuclearmente compreendidas quando partimos
fundamentalmente (se não exclusivamente) da perspectiva das disposições racionais. O que não
é senão entender que estão em causa três núcleos por excelência de reinvenção da phronêsis
(todos de resto com relevantes projecções na teoria do direito e na reflexão metodológica
que esta enquadra).
1) Começo por aquele —explorado pelos caminhos (dissociados ou reunidos) da
nova hermenêutica e das (não menos) novas tópica e retórica — que nos aparece vinculado ao
sentido mais estrito (e mais genuíno) da reabilitação da philosophia practica: precisamente
aquele que, explícita ou implicitamentre, faz corresponder a auto-subsistência efectiva desta
filosofia (emancipada do primado integrador da sophia e da colonização da episteme-technê ou
da technê-episteme) a uma preocupação com a autonomia constitutiva da phronêsis e com a
racionalidade sujeito / sujeito que a distingue (Am Ende ist die aristotelische Tugend der

591 Martha Nussbaum, «Virtue Ethics: A Misleading Category?», The Journal of Ethics, vol. 3, 1999,
pp.179-188 («The Anti-Utilitarians; Expanding Reason’s Domain»). As formulações citadas no texto
encontram-se nas pp.182-183. Para uma crítica à relativa fragilidade desta construção na proposta de Martha
Nussbaum (em confronto nomeadamente com uma autêntica distinção entre valores e fins), remeto-me para o
meu «Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?», 4.2.1., in Trindade, Gubert e
Copetti (org.), Direito & Literatura, cit., pp.290-291 (no Boletim da Faculadade de Direito, cit., pp.142-144).
592 «Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e que

convoca a prática para o desempenho irrenunciável de “tarefas” (...) em que se projecta essa sua vinculação
ou compromisso, os fins desvinculados pelo “mecanicismo” moderno da teleologia ontológica, são agora tão-
só opções decididas pela subjectividade que programa os seus objectivos (...), decerto sempre condicionados
por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles – comunga-se nos
valores, diverge-se nos fins e nos interesses...» [Castanheira Neves, Teoria do direito (versão em fascículos), pp.
154-155, (versão em A4), pp.85-86]. Fernando José Bronze propõe a formulação teleonomologia para designar
este teleologismo de fins e valores (distinguindo-o assim do puro teleologismo) [Lições de Introdução ao Direito, 2ª ed.,
Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp.820-821].
593 Para um desenvolvimento destas três grandes compreensões da communitas e das suas projecções

no pensamento jurídico (com as indicações bibliográficas indispensáveis), remeto o auditório implícito para o
meu «Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», cit., pp. 133-
148.
148

Vernünftigkeit, die Phronêsis, die hermeneutische Grundtugend selbst594). Preocupação que importa
concentrar numa intenção capital: a de sustentar uma relação com as disposições
existenciais (com o existir situado) da Lebenswelt. E desde logo para perceber que, tanto no
horizonte da reconstextualização hermenêutica quanto no da problematização tópico-
argumentativa, se trata numa palavra de exigir que a relação com o mundo prático humano,
dominada pelo immer schon da circularidade auto-reflexiva, e muito especialmente pela
referência compreensivo-significante (relacionalmente contínua) a um quid «unitário»595,
possa estar em condições de levar a sério a relação geral/ particular, «velho»/«novo», passado
/presente596.
O que por um lado significa poder enquadrar, num plano material — já não apenas
para a limitar mas também para lhe proporcionar um fundamento-warrant plausível! — a
possibilidade (exigida pela vertente tópico-retórica) de, na atenção privilegiada ao momento da
realização, se recorrer a uma racionalidade procedimental ou a elementos desta. Não sendo
preciso acrescentar que um tal enquadramento (com um papel maior ou menor) se torna
indispensável, se não para eliminar, pelo menos para reduzir o risco (ao qual a hipertrofia
tópica do problema é particularmente vulnerável) de reconduzir a validade pressuposta a uma
mera contingência (objectivável num consenso a posteriori ).
O que por outro lado significa também exigir que no ground do praktikon dianoètikon
se separem inequivocamente as águas: para garantir que a reinvenção da phronêsis assim
levada a cabo — preocupada com a unidade de um movimento-kinésis e com a conversação
aberta que, no plano universal da linguagem comum (als Gesprächsgemeinschaft), efectivamente
lhe corresponde (no seu círculo de finitude e transfinitude, auctoritas e razão, tradição e
discurso prático-racional) — se contenha no território da praxis stricto sensu, evitando assim

594 Gadamer, «Probleme der praktischen Vernunft», in Derbolva u. alli (Hrsg.), Sinn und

Geschichtlichkeit — Werk und Wirkungen Theodor Litts, Stuttgart 1980, p. 155]. Para além do desenvolvimento
indispensável de Wahrheit und Methode [Verdad y Metodo, cit., pp. 331-458 (nºs 9, 10 e 11)], ver ainda «Die
Begründung der praktischen Philosophie», o posfácio à tradução (proposta por Gadamer em 1998) do Livro
VI da Ética a Nicómaco (Aristoteles, Nikomachische Ethik VI, hrsg. und übers. von Hans-Georg Gadamer, cit.,
pp. 61-67).
595 Quid «unitário» que (na linha das intenções «fenomenológicas» de Hegel retomadas-reescritas por

Heidegger e Gadamer) se diz inequivocamente «coisa»-Sache, «coisa reivindicada» ou «coisa em disputa»


(umstrittene Sache), mas também «coisa em si» relacionalmente construída (nem por isso menos distinta das
pretensões concorrentes que dialecticamente se lhe dirigem e das posições que estas defendem), se não já por
fim «relação à coisa» (ou «memória» necessária da coisa») sobre a qual incide um «interesse» tematicamente
condutor» (compatível com a possibilidade de, tanto nos «processos interdiscursivos reais quanto no
«desenvolvimento do percurso reflexivo», se «abandonar a rigidez da posição inicial»): ver neste sentido,
exemplarmente, o já citado Dialektik als Topik de Bubner [o final do cap. I, todo o fundamental capítulo II
(«Dialogvoraussetzungen»), parte do cap.V (a propósito do contraponto Platão /Hegel), o final do cap. IX, a
reexposição do cap. XII: ibidem, pp.13-16, 17-26, 50-57, 84-87, 106-112].
596 Ver muito especialmente o último parágrafo do cap. VI («Topik»): ibidem, p. 64.
149

a ameaça de um continuum com a poiesis (poiesis que, por sua vez, poderá-deverá esperar um
desenvolvimento paralelo igualmente autónomo).
2) Depois, aquele núcleo de determinação que, gerado por um especialíssimo êthos
crítico («desconstrutivista» lato sensu), defende, em contrapartida (em nome de uma
pluralidade que perdeu a relação estabilizadora com a tradição) um insuperável continuum
entre praxis e poiesis (assim mesmo legitimado pela «abertura indefinida de todos os
contextos»)597. Refiro-me a uma filosofia prática sui generis («reflexão sobre os
fundamentos» que se reconhece a si própria fora e dentro da filosofia, se não mesmo
assombrada pelo duplo da anti-filosofia), na qual importa reconhecer a sobreposição selectiva
dos contributos de Foucault, de Lyotard e de Derrida598, tal como os vemos assumidos pela
segunda geração dos Critical Legal Scholars e pelas Postmodern Jurisprudences599. Sendo esta uma
reflexão que se leva a sério como prática discursiva-acontecimento (événement), pode dizer-
se que a exigência de renunciar às pretensões de totalidade de um horizonte teorético (e à
distribuição sujeito/objecto, se não à «lógica binária» que a assume) se cumpre agora
invocando as expectativas de organização de uma trama de saberes locais microscopicamente

597 O que nos afasta da conversação responsável de Gadamer… para nos aproximar de uma outra

assimilação de Heidegger (eloquentemente defendida por Derrida). Não se trata com efeito apenas de
reconhecer a inevitabilidade do contexto mas de assumir (celebrar), repito, a inevitabilidade da «abertura
indefinida de todos os contextos» [Derrida, «Afterword: Toward an Ethic of Discussion», in Gerald Graf (ed.),
Limited Inc, pp. 136-137]. Ora o que é que significa assumir esta abertura? Significa antes de mais onerar a
decisão responsável não tanto com uma indeterminação sem limites quanto com uma prova-épreuve de
indecidibilidade (enquanto «oscilação» entre possibilidades de «realização do sentido» pragmaticamente
determinadas), reconhecendo simultaneamente que todos os contextos se movem numa fronteira ténue de
estabilidade /instabilidade. E então e assim experimentar uma circulação-substituição de significantes e
significados que não só nos entrega à dinâmica espacial da «repetição» e do «intervalo» (e da «distância»
agonisticamente sustentada)… mas também e muito especialmente à dinâmica da temporalização ou da
historicidade constitutiva (a um jogo de diferenças permanentemente diferidas, que se diz différance). Sendo
precisamente esta a experiência (se não interpretação da interpretação) que só a Desconstrução como filosofia vai tornar
possível.
598Mais rigorosamente, da analítica do poder (e da reescrita aqueológica e genealógica de l’Âge de

l’homme, se não também já da ética-estética da existência) de Foucault, da guerra dos géneros de discurso e (ou) do
teorema da heterogeneidade (mas também da comunidade estética-«promessa») de Lyotard, last but not the least, da
interpretação pragramatológica e da conexão justiça / desconstrução (mas também da economia da violência) de
Derrida. Para uma consideração crítica destes três protagonistas (e também uma identificação dos seus textos
maiores), remeto-me para Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, cit., pp. 17
e ss. (o contributo de Foucault) , 221 e ss. (a concepção da linguagem e a estética do sublime de Lyotard); e
«Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de Force de loi» (2004), in in
Figueiredo Dias, Gomes Canotilho, Faria Costa (ed.), Ars iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António
Castanheira Neves, I, cit., pp., pp. 551-667 (a proposta de Derrida) [ver também «O dito do direito e o dizer da
justiça. Diálogos com Levinas e Derrida» (2006), in Themis - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa, VIII, nº 14, 2007, pp. 5 e ss. e «Dekonstruktion als philosophische (gegenphilosophische) Reflexion
über das Recht. Betrachtungen zu Derrida» (Maio 2005), Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie (ARSP), Band
93 / 2007, Heft 1, pp. 39 e ss.
599 Mas nem por isso menos parcialmente desenhados por outros movimentos ou pelas

convergências mais ou menos explícitas que alguns (e apenas alguns!) dos seus cultores assumem. Referimo-
nos às Feminist Jurisprudences, à Critical Race Theory, à Postcolonial Theory, aos Cultural Studies of Law… sem excluir
evidentemente importantes núcleos do direito e literatura, do direito e psicanálise, do direito e imagem, do direito e
emoções… e até (marginalmente embora) do funcionalismo autopoiético.
150

determinados (Foucault)… e submetendo estes saberes às possibilidades organizatórias do


género narrativo (o mais forte e homogéneo de todos os géneros de discurso, o unico capaz de
testemunhar o diferendo sem o violentar) [Lyotard]… mas também exigindo que uma tal
organização narrativa possa invoque a pressuposição de uma justiça sem limites, levada a sério
como alteridade absoluta (Derrida). Como se cumpre afinal também assumindo um respeito
incondicional pela singularidade (enquanto irrepetibilidade e heterogeneidade)… e
reconhecendo neste respeito a única exigência universalmente sustentável.
O que por um lado — ao associar a atenção ao singular a uma concepção «positiva» e
«imanente» do poder (Foucault) — nos entrega à tarefa de descobrir em todas as nossa
relações (e nos seus diversos momentos) teias microscópicas, silenciosas, multidireccionais,
irrepetíveis de poderes e de resistências (tarefa que encontra numa certa moralidade política o seu
quadro reflexivo privilegiado).
O que por outro lado (ao acentuar-isolar de uma forma muito especial as últimas
palavras do capítulo nono do Livro VI600), e com esta uma recompreensão da phronêsis
(apenas) como «percepção» dos últimos particulares, nos estimula a prosseguir uma
reinvenção ético-estética da racionalidade prática. Reivenção tanto mais significativa quanto
é certo que se trata assim sobretudo de justificar a experiência microscópica de uma
comunidade-promessa (aquela que se faz e refaz enquanto assumimos o por-vir de uma
entrega permanente ao Outro)601.
3) Em último lugar por fim, aquele núcleo que, responsabilizando os discursos das
Humanidades por uma frente de interdisciplinaridade indispensável — e revelando, em
maior ou menor grau, a influência das éticas das virtudes e das teorias da justiça comunitaristas
(ou de alguns dos seus elementos) —, se encontra com o anterior [2))] quer porque cultiva
um continuum entre praxis e poiesis (sem deixar de favorecer uma analogia entre phronêsis e
percepção), quer porque defende que os «arquétipos» da prática e do pensamento prático
exigidos pela nossa circunstância devem ser procurados na (ou pelo menos compreendidos a
partir da) experiência da narrativa . Encontro que termina aqui, já que nem aquele continuum
(agora como interpenetração das linguagens da acção e da criação com as linguagens do
saber) nem esta inteligibilidade narrativa (assumida menos como um género de discurso do
que como um «recurso metaparadigmático» para toda a «comunicação humanamente
significativa e assim mesmo sustentada na sua relação constitutiva com a phronêsis602) se
impõem sem o horizonte estabilizador das tradições e das formas ou modos de vida, se não

600 Aristóteles, Ética a Nicómaco, VI, 9, 1142a 20.


601 Ver supra, textos cits na nota 598.
151

representações do bem comum (e de outras tantas oportunidades institucionalizadas de


criação de sentido).
O que por um lado (na vertente mais radicalmente crítica da hipertrofia da societas, se
não da modernidade iluminista) pode levar a uma reivenção da relação phronêsis-
prudentia/sophia-sapientia, esta última recuperada do seu contexto pré-moderno (agustiniano
e tomista), mas nem por isso menos recriada na sua compossibilidade com os desafios
contemporâneos da pluralidade e particularidade das tradições, e então e assim
consentindo menos um continuum de experiências contingentes do que impondo um novo (e
singular) holismo sapiencial (MacIntyre)603.
O que por outro lado (na vertente cultivada pelo que se convencionou dizer um
comunitarismo liberal ou um liberalismo comunitarista)604 envolve um encontro
prometedor com as tentativas filosófico-analíticas (pós-wittengsteinianas) de recuperação
da inferência prática, mas nem por isso menos uma defesa da racionalidade prática substantiva
(não procedimental)… e com esta, também uma rejeição da exclusividade da societas:
exclusividade que vemos aqui como que internamente superada — ainda que mobilizando
distintas interpretações-articulações das significações normativas imputáveis a uma
comunidade de memória e a uma comunidade de ideias605 — por uma exploração culturalmente
reflectida tanto da epistemologia moderna (se não já do overcoming epistemology) quanto do
liberalismo como tradição (Taylor, Walzer).

3.2. Uma vez esboçadas as possibilidades de reabilitação da filosofia prática — sempre


como oportunidades explícitas de recuperar a virtude intelectual da phronêsis e de lhe fazer
corresponder outras tantas interpretaçãoes do mundo prático-comunitário e dos seus
compromissos —, a segunda espectativa-exigência cumpre-se pela negativa : recusando um
percurso que, na relação inevitável com este horizonte reflexivo (e com o mapa que distribui
as suas diferenciações relevantes), se propusesse encontrar (identificar) o mundo prático do

602 Como se se tratasse afinal de responder ao apelo de Walter Fisher, quando vê na «racionalidade

narrativa» um tentativa de recapturar (hoje) a concepção aristotélica da phronêsis: «The Narrative Paradigm: an
Elaboration», Communication Monographs, vol. 52, 1985, p. 350.
603 O que nos leva para a compreensão da communitas mais próxima das reinvenções da filosofia

prática assumidamente jusnaturalistas (como é ao fim e ao cabo a de Finnis): sugere-se ao auditório implícito que
comece por explorar a importante reconstituição de Postema: Legal Philosophy in the Twentieth Century: the
Common Law World, cit., pp. 551-562 («A Natural-Law-Theory of Practical Reasonableness»)
604 Para uma consideração de alguns aspectos deste contraponto (concentrado nas vozes exemplares

de MacIntyre por um lado e de Charles Taylor e Michael Walzer por outro lado), veja-se o nosso «Humanitas,
singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O “pormenor” do direito na “ideia” da
Europa das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista», Dereito. Revista xurídica da Universidade de
Santiago de Compostela, volume 15, número 1, 2006, pp. 17 e ss., 34-53 (3.4. e 3.5).
605 Para uma síntese deste contraponto (concentrada nas vozes de Boyd White e Martha Nussbaum),

veja-se o nosso «Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?» cit., ponto 3.2.
[Trindade, Gubert e Copetti (org.), cit., pp. 285-287, Boletim da Faculdade de Direito, cit., pp. 135-138].
152

direito invocando exclusivamente pressupostos, códigos e categorias (e até situações


institucionais) atribuíveis às representações globais da communitas — e que assim mesmo
condenasse a reflexão metadogmática ou transdogmática sobre o direito (autorizada ou
exigida pela nossa circunstância) a uma mera tradução assimiladora606. Refiro-me ao percurso
que convoca este patamar de representações da comunidade (e o seu contexto auto-
reflexivo) como se de um prius auto-suficiente se tratasse, não apenas para poder pôr todas
as perguntas pertinentes, mas também para seleccionar-escolher em definitivo uma
resposta plausível (ou um sentido de resposta plausível), só depois se considerando em
condições de (unilateralmente) se dirigir ao mundo prático do direito (ou àquilo que as suas
próprias representações entendem por esse mundo prático).
Para pôr todas as perguntas pertinentes, entenda-se, para explorar as tensões que a
pré-compreensão explicitamente assumida exige. Que pré-compreensão? Aquela, como dissemos,
que concerta a aquisição moderna da subjectividade intencional e (ou) cultural com uma
experimentação prático-existencial da historicidade constitutiva… e que o faz em nome de um
novo discurso da communitas (e da sua autodisponibilidade e autotranscendentalidade) —
rejeitando as soluções que se alimentam quer da autêntica necessidade ontológica, quer da
pura contingência decisória. Se é esta a pré-compreensão a ter em conta, as tensões a explorar
serão evidentemente aquelas que relacionam unidade intencional e pluralidade,
pressuposição dogmática e reinvenção crítica, disponibilidade e indisponibilidade,
estabilidade e transformação (também finitude e transfinitude, auctoritas e razão, tradição e
discurso prático-racional, racionalidade prático-prudencial e existir situado, logos e ethos,
universalidade(s) e particularismo(s), exigências substantivas e procedimentais)607. A alusão
a esta sequência basta-nos no entanto para perceber que a distribuição acima esboçada —
nos seus três grandes caminhos e no espectro de possibilidades que cada um deles abre —,
sem prejuízo de convergências possíveis (a estimular outros tantos consensos), nos impõe
tratamentos e processos de assimilação muito diferenciados. Ao ponto de podermos e
devermos falar de alternativas. Alternativas que resultam de equilíbrios distintos ente os pólos
que acabámos de identificar…

606 A formulação é de Castanheira Neves (uma teoria do direito externa puramente assimiladora), tendo
sido especialmente mobilizada na comunicação de abertura de um Seminário de teoria de direito do Programa de
Doutoramento e Mestrado em Direito da Universidade Federal do Paraná (Curitiba, 26-29 Setembro de
2007), seminário no qual tive o gosto e a honra de participar. A sistematização proposta distinguia de resto
diversas teorias do direito externas (assimiladoras, analíticas, redutoras, construtivistas), reservando-se a qualificação
assimiladora para a proposta exemplar da Nova Hermenêutica e para o seu «optimismo» [para uma alusão a esta
última atitude de resposta («a resposta está dada!»), ver «O problema da universalidade do direito ou o direito
hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., p.118].
607 Remeto-me para os dois estudos cits. supra, nota 89.
153

Confronte-se a estabilidade e unidade contextual procurada pela nova Hermeneûtica e


pelo narrativismo comunitarista (ainda que como experiências distintas da tradição), com a
instabilidade e indecidibilidade pragmáticas celebradas pela Desconstrução… ou ainda a
autonomização da phronêsis cultivada quer pela recontextualização hermenêutica quer pela
problematização tópico-retórica com o «continuum» praxis/poiesis favorecido por todos as
modalidades de narrativismo humanista…

Alternativas que resultam também de uma rejeição mais ou menos intensa (e


explícita!) dos discursos oponentes…

Sendo exemplos de discursos de fronteira (marcados por essa rejeição menos clara)
tanto a filosofia sapiencial comunitarista, quanto um procedimentalismo argumentativo auto-
-subsistente, aquela porque se aproxima do território das filosofias práticas assumidamente
jusnaturalistas, este porque, ao «esquecer» a sua inserção constitutiva na Lebenswelt, revela
afinidades indiscutíveis com puros discursos da societas ou com a autodiferenciação que estes
programam.

Voltando ao princípio: se a reflexão em causa defender este patamar de


inteligibilidade global como um prius decisivo, cujas soluções de equilíbrio devam ser
enquanto tal plenamente esclarecidas (nos seus equilíbrios e processos de assimilação) antes
de (e independentemente de) se considerar o mundo prático do direito, então a escolha (mais ou
menos homogénea) de uma destas representações torna-se logo à partida inevitável. Como se,
na relação com o referido mundo prático, todas as interpretações desta compreensão global
(interpretações que entre elas concorrem) devessem à partida ser tratadas como equivalentes
e só uma decisão nos permitisse avançar…

Por outras palavras, como se a escolha em causa — concluindo, por exemplo, que
precisamos hoje sobretudo da concepção do mundo e do homem que o projecto do
comunitarismo sapiencial nos oferece... ou daquela que a hermenêutica como filosofia está em
condições de justificar ... ou ainda daquela que só a ética desconstrutivista pode abrir…—
dependesse de um diagnóstico da nossa circunstância que na sua maior ou menor
sensibilidade a exigências contrapostas de estabilidade ou de abertura, de determinação
dogmática ou de problematização crítica (descritiva ou prescritivamente sublinhadas) se
pudesse dizer cumprido inteiramente sem o direito… ou antes de pensar o direito.
154

Percurso este, acrescente-se, que está longe de se nos impor como uma
possibilidade vaga. Que antes e em contrapartida persistentemente nos fere, num tempo de
pós-paradigma em que a proliferação de hetero-referências aparentemente inovadoras
(iluminadas pelas arenas sedutoras dos chamados law and…) tem agravado em vertigem o
sentimento de orfandade cultivado pelo pensamento jurídico. Persistência aproblemática esta
que, no que diz respeito ao problema da autonomia que constitui o nosso núcleo temático
principal, vem acompanhada de duas acentuações importantes (dificilmente tematizáveis
embora). Refiro-me por um lado ao pathos da escolha (se não da procura da melhor
interpretação608) e aos discursos de razões que (correspondendo a uma sobreposição plausível de
intenções ético-existenticiais, antropológico-culturais e filosófico-políticas) explícita ou
implicitamente lhe vão associados (gerando ou reforçando um apreciável sentimento de
incerteza ou pelo menos de indecidibilidade): como se houvesse que optar por uma
interpretação global da praxis (e pela perspectiva entre outras perspectivas que esta
assegura) para desde logo nos podermos dirigir às práticas juridicamente relevantes — e
decerto porque o o sentido e as fronteiras desta relevância se nos impõem decisivamente
conformados pela escolha em causa. O que nos conduz a uma segunda acentuação, ela
própria (num paradoxo aparente) a defender uma compreensão global do direito… ou a
compreensão global deste que, não nos permitindo mobilizar uma antecipação de
experiências ou de condições (ou mesmo de categorias de inteligibilidade) objectivamente
específicas — porventura porque estas se tornaram irreconhecíveis na nossa circunstância
(ou porque o padrão de humanidade que tal circunstância exige deve ser procurado para
além daquele que tais experiências, condições ou categorias fechariam)! —, torna inevitável
uma escolha exterior. Refiro-me decerto àquela, já bem nossa conhecida, que vê no jurídico
hoje um acervo de recursos de institucionalização intencionalmente neutros, disponíveis para
garantir prescritivo-autoritariamente distintas interpretações da prática ou da identidade
comunitária (com a atribuição-integração de exigências de sentido a depender por inteiro de
intenções transjurídicas) — concepção esta que, como tenho também recorrentemente
procurado mostrar, gera um surpreendente common ground, no qual os discursos humanistas
associados às diversas frentes da «nossa» Rehabilitierung (mobilizando embora interpretações
da prática e das necessidades sociais e das dinâmicas da identidade colectiva resolutamente

608 Assim acontece com Dworkin (mesmo que se trate de inscrever tal procura num horizonte de
unidade de valor): vejam-se, em relação à interpretação colaborativa, os esclarecimentos propostos em
«Interpretation in general», Justice for Hedgehogs, cit., pp. 132-133.
155

diferentes) se encontram com os funcionalismos pragmáticos que explicitamente


combatem609…

3.3. Assumida a pretensão de escapar a este plano de inteligibilidade global ou à


exclusividade dos seus problemas-perguntas — mas também (et pour cause!) à equivalência
das respostas que nele se multiplicam —, a terceira exigência a ter em conta é
evidentemente a de abrir uma (a) alternativa possível: a qual passa decerto pela espectativa
de (ainda hoje, principalmente hoje!) se poder interpelar o mundo prático-comunitário (e a
tensão entre unidade e pluralidade, clausura dogmática e abertura critica, estabilização
normativa e realização transformadora) na perspectiva do direito e dos compromissos que o
distinguem. Sendo certo que não se trata assim de esquecer as condições de representação-
determinação impostas pelo contexto global — e pelas reinvenções da praxis-phronêsis que
este abre —, como não se trata de propor especificações que neutralizem aqueles desafios
(e a auto-reflexão que os ilumina) — especificações que em nome de uma celebração
(apologética) da autonomia-Isolierung do jurídico pudessem ocultar-superar os problemas
correspondentes —, porque se trata antes e em contrapartida de, no horizonte desse
contexto e das suas tensões, explorar a possibilidade de uma abordagem (de uma teia de
perguntas e respostas) que, não dependendo de uma projecção unilateral daquele contexto
(e das escolhas, mais ou menos reflexivemente livres, que neste se determinem), possamos
levar a sério como uma abordagem interna — que se poderá dizer imanente às práticas e
discursos juridicamente relevantes, na medida em que se nos oferece, insista-se, simultanea
e inextricavelmente como produto-correlato e como contexto de sentido destas práticas,
nos seus diversos níveis.
Que abordagem? A melhor maneira de a identificar será porventura voltar atrás,
estabelecendo um contraponto claro (mais uma vez pela negativa) com algumas das linhas de
determinação explicitamente abordadas. Sem deixar assim mesmo de introduzir uma nova
sequência de temas possíveis.

3.3.1. Trata-se desde logo de reconhecer que a circularidade correlato/ contexto que
uma vez mais acabámos de invocar — pela inteligibilidade prático-normativa que confere a
um tal contexto ou pela intenção constitutiva com que o responsabiliza e ilumina o seu
excesso, mas também pelas exigências de sentido que faz corresponder às suas práticas (ou
de que faz depender a possibilidade de se falar duma autêntica realização, sempre

609 Ver supra, Tempo I, 5. (Etapa III), pp. 33 e ss.


156

contextualmente situada e sempre a superar esta situação) — está longe de poder ser captada
pela perspectiva-sujeito (moderadamente externa) que, com maior ou menor sensibilidade às
possibilidades de mudança (e ao papel de uma reflexão crítica), corresponde `a(s) teoria(s)
da regra de reconhecimento (as conventional secondary rule): se a atenção a uma tal circularidade (na
sua inteligibilidade prático-comunitária) permanece estranha ao tratamento globalmente
empírico-descritivo que se espera desta abordagem externa — a qual há-de estar em
condições de convocar-objectivar as práticas coordenadas e a sua repetição (mas também os
parâmetros-frameworks de planificação e negociação a ter em conta) sempre e sem excepção
como autênticos factos sociais (conferindo à rule of recognition um carácter explícita e
assumidamente convencional) —, não permanece menos estranha com efeito à
consideração (e portanto também objectivação) auto-subsistente (exemplarmente exigida
por esta mesma abordagem externa) de um autêntico rule-following behaviour, entenda-se, a
uma reconstituição destas práticas tendo em conta a sua dimensão normativa, se não
explicitamente os referentes ou parâmetros que tais práticas (distinguindo-os dos outro
factores condicionantes ou dos outros recursos de planificação-previsão) assumem como
componentes internas — ainda que com esta consideração auto-subsistente (explicitamente
preocupada com o inside das practiced social rules) se trate eventualmente já de reconhecer
uma relação lograda (contingente embora) entre factos sociais e factos normativos (com os
últimos a poderem oferecer-se-nos como determinantes do «conteúdo» ou da «identidade»
do direito, com os primeiros no entanto a imporem-se-nos sempre e sem excepção como
determinantes desses determinantes)610.

Estamos de resto agora em condições de compreender melhor esta


incompatibilidade. Uma exploração das práticas sociais e da sua contingência ou mutabilidade
que possamos dizer inteiramente dominada por uma tese de convencionalidade —como são
aquelas que aparecem associadas à rule of recognition (seja qual for o grau de diferenciação
analítica com que a vigência desta é repensada) — fecha-nos, insuperavelmente, nas
possibilidades dinâmicas unidimensionais (se não na linguagem única) dos discursos da
societas: acentuação acultural esta que (associada a uma indispensável pretensão de
universalidade) não deixamos de ver confirmada pelo positivismo ético-prescritivo a que aludimos
atrás…

Contraponto negativo que reforça decerto a exigência de reconstituir a


especificidade do jurídico não apenas identificando, mas também cultivando uma aborda-

610 Ver supra, Tempo II, 1. (especialmente 1.1.2.2., pp. 59 e ss.).


157

gem interna (e esta por sua vez como um grande horizonte de unidade, intencionalmente
partilhado pelas práticas de realização e pelos discursos dogmáticos). Esperando que, neste
explícito «transcender situado»611 de uma prática (sem prejuízo dos diversos degraus que se
lhe oferecem e da maior ou menor distância e radicalidade que os identifica), a reflexão
metadogmática recrie uma perspectiva de participante? Podemos admitir que sim. Desde
que tal perspectiva, assim recriada, se mostre capaz de exceder um plano de pura
imanência interpretativa alla maniera di Fish (as doing what comes naturally). Não se trata, com
efeito, apenas de assumir um compromisso prático com o mundo existencialmente
humano do direito (com um alcance que procuraremos esclarecer a seguir), trata-se
também de intensificar criticamente a atenção reflexiva que esse compromisso hoje exige e de
correr os riscos que esta intensificação determina (por um lado decerto em confronto com
os desafios do pluralismo, por outro em confronto com o horizonte prático global e a
experiência de continuum que este favorece). O que nos aproximará porventura menos da
agenda de Dworkin do que da tentativa de Simmonds (nos termos exemplares que acima
evocámos)612. Para não obstante logo exceder as preocupações que esta manifesta. Mais do
que abrir a reconstrução a contra-argumentos microscópicos produzidos por interpretações
negativas (garantindo a estas uma inteligibilidade auto-subsistente, capaz de resistir às
pretensões de fit e integrity alimentadas pela unidade das práticas em jogo), trata-se, com
efeito, de exigir que em tal intensificação reflexiva (muito especialmente na interrogação
filosófica em que esta deverá culminar) se tematize a própria unidade de sentido das
práticas em causa e assim também a possibilidade da perspectiva interna e dos compromissos
que a distinguem O que, numa palavra, significa interpelar a inteligibilidade-continuidade e
a plausibilidade-pontualidade de uma certa criação cultural e do projecto de demarcação
humano/ inumano que lhe corresponde.

3.3.2. Reforçada a exigência de assegurar um tratamento metadogmático ou


transdogmático do jurídico que, preocupado em tematizar a sua especificidade — e
independentemente do degrau de interrogação que frequente —, se alimente de uma
perspectiva interna, há que esclarecer as duas últimas acentuações (continuando a esboçar
um contraponto negativo e, neste, a priveligiar a teia de propostas com que fomos
dialogando). Refiro-me às acentuações em que o mundo prático do direito nos aparece
simultanea e inseparavelmente como uma criação cultural e como um projecto ou, mais
rigorosamente, como um projectar.

611 Ver supra, nota 12.


612 Ver supra, Tempo II, respectivamente 2.3. e 2.4.1., pp. 103 e ss., 114 e ss.
158

Um primeiro passo, dirigido especialmente à segunda destas acentuações, permite-


nos confirmar que a recriação, no plano metadogmático ou transdogmático, de uma
perspectiva interna — sem prejuízo dos degraus em que se desdobre e dos núcleos
temáticos que admita — estará hoje condenada ao fracasso (à incapacidade para enfrentar
os desafios contrários do pluralismo e da indiferenciação) se persistir em arrumar os seus
problemas em compartimentos fechados (só circunstancial ou mesmo excepcionalmente
comunicantes). Entendamo-nos, se defender uma reconstituição dos traços
caracterizadores da juridicidade (enquanto discurso e enquanto prática institucionalizada)
[A], que, na sua pretendida auto-subsistência e naturalidade613 — concentrada na
determinação de uma linguagem e de uma estrutura institucional, na sistematização de um
elenco específico de argumentos ou na exposição de um elenco de categorias de
inteligibilidade (acompanhada ou não de uma tentativa de depuração conceitual) —, possa
impor-se-nos como núcleo reflexivo principal e assim mesmo abstrair de uma sequência de
outros problemas possíveis (que só seriam excepcional ou marginalmente convocáveis).
Abstrair de que problemas? Desde logo de um problema de identidade (ou de
afirmação de identidade) [B]: aquele que concentra a discussão exigível nas próprias ordens
sociais e no confronto e distribuição(-demarcação) destas — uma distribuição que resulta
aqui inteiramente da juridicidade, plena ou difusa, ou da não juridicidade da resposta (ao
problema da vida em comum) que cada uma delas, enquanto unidade, está em condições
de institucionalizar. Depois também de um problema de limites [C]: preocupado com as
modalidades de «filtros» de relevância (jurídica, ético-substantiva, moral, política,
económica, etc) a que cada acontecimento histórico-real admita submeter-se e com as
fronteiras interrelacionais (se não com as condições de sobreposição) dessas relevâncias —
com a discussão do «critério delimitativo da juridicidade» a concentrar-se na questão de
saber se um determinado acontecimento é (e até que ponto é que é) um «problema
especificamente de direito»614. Depois também e ainda de um problema de validade-
-vigência [D]: aquele em que a tematização da juridicidade/não juridicidade deverá discutir,
porventura em abstracto (num contexto de significação relativamente auto-subsitente), mas
sobretudo em concreto (já na perspectiva do problema decidendo), a inclusão (-inclusividade)
de um princípio ou de um critério (legal, jurisprudencial ou doutrinal) num determinado
sistema jurídico, mas também a sua compossibilidade prático-normativa com o mundo

613 Podemos reconhecer aqui um argumento de doing what comes naturally, embora exposto sem a

radicalidade da leitura de Fish, a qual iria decerto ao ponto de dispensar (como redundante, se não perigoso)
este plano de interrogação A.
614 No sentido que Castanheira Neves exemplarmente trata na Metodologia jurídica, cit., pp. 206 e ss.,

231-234.
159

específico do direito — discussão por sua vez indissociável da consideração dos méritos
procedimentais ou materiais tanto do fundamento ou do critério em causa quanto da
decisão-juízo que os assimila (e que assim deverá abrir pontes imprescindíveis com o
patamar da realização e com as reflexões metodológica e dogmática que se lhe dirigem).
Last but not least, de um problema de sentido ou de exigências de sentido [E] : aquele que nos
permite compreender essa juridicidade como intenção (ideia ou arquétipo) e «celebrar» a aspiração
ou a pretensão de perfeição correspondente — e eventualmente especificar esta num elenco de
desiderata (as kinds of legal excellence) —, mas também (e significativamente) avaliar (se não
contabilizar) os graus de êxito e de fracasso atingidos pelas práticas que assumem
constitutivamente essa intenção.
Que a reflexão atribuída à filosofia do direito deve mobilizar o cruzamento fecundo
das perguntas que estes problemas autonomizam [A-E] para poder impor-se efectivamente
como o «transcender situado» das práticas que se pretendem jurídicas (e do mundo que estas
simultaneamente mobilizam e constroem): eis a conclusion-claim que me parece indispensável
sustentar. Tal cruzamento só permitirá no entanto uma dinâmica integrada, se pudermos
reconhecer nas perguntas em causa preocupações distintas (se evitarmos o risco de as
confundir ou de as diluir umas nas outras) e se simultaneamente as compreendermos como
dimensões-faces imprescindíveis do problema da autonomia do Direito que hoje importará
considerar: o que, sem paradoxo, significa defender que o último dos problemas que
autonomizámos [E] há-de estar constitutivamente presente, explícita ou implicitamente,
em cada um dos outros [A-D]. Mais do que garantir um horizonte conformador
homogéneo — que pudesse favorecer um continuum (detersivo da especificidade das várias
preocupações que a pretensão de autonomia hoje suscita) —, trata-se, na realidade, de
responsabilizar as perguntas abertas por este último núcleo como um tertium comparationis
plausível, em confronto com o qual as semelhanças e diferenças das interrogações
formuladas nos outros quatro núcleos ganham a transparência e o rigor indispensáveis.
Sendo este apenas um dos lados da moeda. Porque o outro é seguramente o de garantir
que a intenção explorada no núcleo E, através dos vínculos que estabelece com os outros
núcleos (e através destes também com os patamares metodológico e dogmático), corresponda
por inteiro ao desafio da autotranscendentalidade, trazendo-nos uma compreensão da validade
jurídica indissociável das suas práticas de estabilização-realização e do novum irredutível que
estas introduzem: uma validade que, como projecto de plenitude com um carácter
inequivocamente interno, se assuma explicitamente criada e permanentemente recriada por
160

práticas comunitariamente específicas ([ploughing] over the same ground in ever deeper furrows615)…
evitando o risco de a reflexão correspondente (ao isolar o seu problema num
compartimento estanque) ceder às seduções de uma assimilação exterior (que só no
momento posterior da projecção concretizadora viesse a considerar as referidas práticas). O
risco de ceder às seduções de uma pré-determinação antropológica que pudessemos dizer
inteiramente decidida no plano global da filosofia prática? Já o sabemos. Mas também o de
ceder a uma certa estrutura em árvore (com o tronco matricial a identificar os juízos éticos)616.
Risco que, no plano mais geral, é afinal o de confundir a discussão da validade jurídica com a
mobilização (incorporação) de argumentos e razões morais.
Será a atenção a estes riscos suficiente para justificar as formulações projecto e
projectar (se não mesmo projecto de plenitude) que há pouco privilegiei? Nada nos impede com
efeito de identificar a dimensão intencional da juridicidade recorrendo a outras formulações,
quer se trate de preservar a mais comum (a ideia de direito), quer se trate de assumir uma
alternativa (invocando os desiderata ou tipos de excelência que identificam positivamente a
experiência do direito). A vantagem comparativa da formulação projecto-projectar está em se
distanciar deliberadamente das linhas de desenvolvimento que as duas últimas mais
«naturalmente» evocam, respectivamente aquela que associa a ideia de direito à epistemologia
moderna em geral — e ao regulativen Gebrauch der Ideen der reinen Vernunft em particular617 —
e aquela que vincula os desiderata a uma recuperação da ética de excelência pré-moderna e
muito especialmente à herança-desafio da experiência grega das virtudes (as the morality of the
challenge to perfection (…) or of the aspiration toward perfection [if not] the morality of the Good Life, of

615 Ernest J. Weinrib, «Legal Formalism: On the Immanent Rationality of Law», The Yale Law Journal,
vol.97, nº 6, 1988, p. 974. «Law’s justification (…) cannot properly be truncated. It must be allowed to expand
completely into the pace that it naturally fills…» (Ibidem, p. 971, itálico meu). Ver também Fish, Professional
Correctness. Literary Studies and Political Change (Oxford Clarendon Lectures, 1993), Harvard, 1999, p. 22.
616Se tivermos em atenção o parochial ground do debate incorporacionista, podemos dizer que estes riscos

debilitam significativamente alguns dos mais reconhecidos argumentos não positivistas. É neste sentido que o
regresso a Fuller ou a assunção do seu legado (em contraponto precisamente com o legado de Hart) poderá
aparecer aqui como uma alternativa prometedora [«However, there is a stubborn problem with all these
attempts to make the anti‐positivist position more resilient (and it happens to be closely related to the
difficulty involved in relying on “underpinning reasons” in explaining the normative force of law). All these
accounts end up being distanced from an important aspect of Fuller’s effort: Fuller sought to establish a
connection between law and morality by remaining within the realm of ordinary legal experiences. Fuller tried to
reveal the internal morality of law by reflecting on uncontroversial features of governance by rules in general,
and the alternative strategies gave up this aspiration. By contrast, Dworkin requires us to impose upon law
political values that are formulated by moral and political reflection—in the process of developing one’s own
moral and political theory. It is even more obvious in the case of Finnis whose key claim is that the legal
theorist cannot find the proper point of view to grasp the conceptual characteristics of law without figuring
out the principles of practical reasonableness. His methodology requires us to leave the field of jurisprudential
reflection right after…» (Bódig, «Comment on Simmonds—Legal Positivism and the Limits of the
Contemporary Legal Theoretical Discourse», cit., pp.637)].
617 Ver infra, nota 621.
161

excellence, of the fullest realization of human powers618) .Ora os modelos inexcedíveis destes duas
concepções (na sua relação imediata com o discurso da filosofia do Direito)…
encontramo-los decerto na doutrina do direito justo de Stammler e na reconstrução da
moralidade interna do direito proposta por Fuller.
Na primeira, bem o sabemos, porque (e enquanto) se distancia da «solução» da
Allgemeine Rechtslehre (e muito especialmente aa doutrina dos princípios de Bjerling619) para
assumir a herança de uma reflexão crítico-transcendental e reconhecer nos princípios do direito
justo «desdobramentos» ou «irrradiações»-«emanações» (se não «desimplicações» ou
«derivações directas») da ideia de direito (Die Grundsätze […] sind Ausstrahlungen der Idee von dem
richtigen Recht und wollen dieser eine tätige Verwerdung und Herrschaft möglich machen620).

Esta articulação corresponde, com efeito, à possibilidade de atribuirmos dois


elementos em causa (princípios /ideia) aquele sentido intencional puramente «regulativo» («não
constitutivo») que distingue o «uso hipotético da razão-Vernunft» e a sua convocação de
«ideias transcendentais» (er ist nur regulativ, um dadurch, so weit als es möglich ist, Einheit in die
besonderen Erkenntnisse zu bringen621). Levar a sério esta herança kantiana significa com efeito
encontrar (finden) a ideia de direito na «consciência crítica» (kritische Besinnung) da «possibilidade
de uma compreensão unitária de todo o material empírico do direito» (empirisches
Rechtstoffes)622— entenda-se, reconstruir crítico-transcendentalmente a possibilidade de conceber
estes materiais (com conteúdos em si mesmos «condicionados» e «finitos») numa
perspectativa racionalmente unitária (submetendo-os à representação harmónica,
«incondicionada de conteúdos», de um «todo ilimitado» ou de uma «comunidade pura»)623
—, mas significa também (e muito significativamente) reconhecer que os princípos do direito
justo, na sua «validade incondicionada e universal», não contêm na sua «concepçao-

618 Fuller, The Morality of Law, cit., p. 5.


619Para Bierling a doutrina dos princípios encore à faire identifica-se com uma «representação
sistemática» dos «conceitos e princípios» comuns a todos os direitos positivos e aparece assim vinculada ao
problema do conceito de direito e à Allgemeine Rechtslehre enquanto tal. Significa isto não só remeter o problema da
Rechtsidee para a Rechtsphilosophie im engere Sinn, enquanto reflexão apenas ética ou ético-filosófica, mas também
e muito significativamente exigir que a «concordância com uma ideia» seja excluída (como elemento ou
dimensão plausível) do processo de determinação do direito wie es ist. Veja-se especialmente Bierling, Zur
Kritik der juristischen Grundbegriffe, reimpressão da edição de Gotha (1877-1883), Aalen, Scientia Verlag Aalen,
1965, I, pp. 153 e ss. (XI), pp. 163-167 (§§ 119-120). Veja-se ainda a reconstrução que (atendendendo
também às concepções dos princípios de Bergbohm e Merkel) propus em «Os desafios-feridas da Allgemeine
Rechtslehre…», cit., pp. 296-303 (3.1.).
620Stammler, Die Lehre von dem richtigen Rechte, Berlin, J. Guttentag Verlagsbuchhandlung, 1902, p.

276.
621 Kant, Kritik der reinen Vernunft, na edição de Wilhelm Weischedel disponível na Suhrkamp

taschenbuch wissenschaft, vol. IV, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1974, p. 567. Trata-se evidentemente de
invocar o «Anhang zur transzendentale Dialektik» na sua primeira parte («Von dem regulativen Gebrauch der
Ideen der reinen Vernunft»)
622 Stammler, ob.cit., p. 276.
623 Usamos aqui formulações propostas por Castanheira Neves, Curso de Introdução ao estudo do direito,

Lições proferidas no ano lectivo de 1971-72, polic., pp. 100-101.


162

pensamento» (Gedanken) e na sua «conformação» (Fassung) ainda nada do «específico


conteúdo de um possível direito vigente ou de um direito posto» (gesetzes Recht), como não
«contêm» (bergen) em si mesmos nada que constitua a especificidade — a identidade, a
propriedade (Eigentümlichkeit)— de um autêntico direito (de um direito historicamente
condicionado e determinado), entenda-se, «nada que possa pertencer ou competir ao
conteúdo concreto das normas históricas»624. Compreensão que, ao fazer convergir a
juridicidade com a vinculação autoritária e com a institucionalização correspondente625, abre
as portas para aquela distribuição intencional-regulativo (pré-jurídico) /autoritário-constitutivo (jurídico)
que reconhecemos em pleno no debate do incorporacionismo (como um pressuposto
aproblematicamente partilhado por argumentos positivistas e não positivistas)… mas que, num
plano mais geral (associando ao binómio moralidade /juridicidade o contraponto
particular/universal)626, me parece indispensável identificar com o que (mobilizando uma
sistematização proposta por Castanheira Neves) se poderá dizer uma concepção dos princípios
como intentio627.

Na segunda, por sua vez, porque (e enquanto) abandona o plano da reconstituição


transcendental (racionalizadora da contingência) para antes e em contrapartida nos permitir

624 Stammler, ob.cit., pp.276-278. Trata-se muito claramente de acentuar que, sendo tais princípios

«derivados» («desimplicados») «directamente» da «ideia de direito», o papel-tarefa que lhes cabe há-de ser
precisamente o de «directivas» ou «directrizes do nosso pensamento» (Richtlinien des Gedankens) destinadas a
um «tratamento unitário» destes materiais (für die Bearbeitung dieses Stoffes) [Ibidem, p. 276].
625 Para falar do direito enquanto tal na perspectiva de Stammler temos, com efeito, que mobilizar a

força autoritário-prescritiva do gesetzes Recht (direito posto e imposto) [Ibidem, pp. 21 e ss. («Der Begriff der
richtigkeit eines Rechtes»]. Na realidade, só poderemos falar de um «direito justo» atribuindo a «qualidade» da
justiça-justeza (Richtigkeit) a um direito posto e ao seu conteúdo querido (Willensinhalt). Se o «direito justo» é
um «modo» (uma «espécie») de «direito postivo» (legislativamente prescrito, produzido por uma voluntas),
então o direito imposto (gesetzte) «divide-se, na perspectiva das características do seu conteúdo, em duas
classes»: «ou é justo ou não é justo; e o direito justo é um direito positivo, cujo conteúdo querido (criado pela
vontade) possui a qualidade-característica (Eigenschaft) da justiça ou justeza». De tal modo que possamos
concluir que «o direito justo e o direito prescrito se comportam um em relação ao outro como espécie e
género» (Danach verhält sich richtiges und gesetzes Recht zu einander, wie einzelaart zur Gattung) [Ibidem, p.22]. É certo
que Stammler nos diz [Ibidem, pp. 213 e ss. («Bedeutung des Grundsätze»)] que «os princípios têm um
significado constitutivo» (sind von konstitutiver Bedeutung) relativamente às «regras do comportamento da
comunidade» (bei der Regeln des Verhaltens der Gemeinschaft); este significado diz respeito porém apenas ao
«fornecer da qualidade da jutiça ou justeza» (auf das Beschaffen der Eigenschaft der Richtigkeit) e não à «proposição
materialmente determinada» (dagegen nicht auf material bestimmte Sätze selbst). Como «em si mesmos não
produzem nada» (von sich aus bringen sie nichts hervor), «os princípios têm que esperar pelo alimento-Zuführung do
material histricamente realizado». Só quando «o material é fornecido e está pronto e à mão no seu
crescimento natural», é que os princípios são chamados a dirigi-lo (richten) e a determiná-lo (bestimmen)
[Ibidem, pp. 214-215].
626 Decerto porque as intenções pré-jurídicas a ter em conta nessa linha de desenvolvimento hão-de

poder dirigir-se-nos… (a)… tanto como formas puras (capazes de proporcionar a qualidade do normativamente
justo aos materiais prescritos ou historicamente determinados), (b)… quanto como exigências materiais
imputáveis a programas políticos ou a uma compreensão politicamente comprometida do homem e da prática
(se não já a uma political morality); (c) tanto como compromissos substantivos ético-comunitários (marcados
pela particularidade dessas comunidades e dos seus ethos narrativos),(d) quanto como exigências (se não
pragamata) de uma moralidade universal «descontextualizada» (procedimentalmente concebida)…
627 Defendo mais desenvolvidamente esta distinção em «Na “coroa de fumo” da teoria dos

princípios: poderá um tratamento dos princípios como normas servir-nos de guia?», cit., pp. 395 e ss., 406-
412 (2.2.).
163

descobrir uma moralidade imanente às práticas jurídicas (as a certain inner logic of its own628) e às
instituições (se não às ordens sociais) que, na sua «luta» incessante contra a irracionalidade
(a centuries-old struggle to reduce the role of the irrational in human affairs629), tais práticas vão
paulatinamente construindo.

Mais do que defender a relevância de uma dimensão implícita, alimentada por


expectativas de reciprocidade e práticas de inter-acção informais (se não já por informal social
rules) e assim mesmo atribuída a um costumary law latissimo sensu — dimensão que importará
considerar na sua interdependência conformadora com o direito formalmente prescrito e
decidido (e reconstituir à luz de uma interpretive social science que, enquanto saber da «boa
ordem social», se mostre capaz de conjugar intenções descritivas e prático-normativas630) —,
trata-se, com efeito, de iluminar o propósito (purpose631) associado à juridicidade — o de
«submeter a conduta humana ao governo das regras», entenda-se, à «orientação» (guidance) e
ao contrôle (control) de «regras gerais» (the only formula that might be called a definition of law offered in
these writings(…): law is the enterprise of subjecting human conduct to the governance of rules)632—, mas
sobretudo de reconhecer que tal propósito se especifica numa moralidade interna, a qual —
sustentada pela consciência dos degraus de fracasso e de êxito que vão sendo alcançados e

628 Fuller, The Morality of Law, cit., pp.150-151.


629 Ibidem, p. 9.
630 Fuller propôs para estes «exercícios» de interpretação («science, theory, or study») da good order and

workable arrangements a designação de Eunomics (uma «ciência» do âmbito da «sociologia moral», a envolver
evaluative judgments àcerca de meios e fins, bem como uma reconstituição dos fins colectivos desejáveis). Para
uma exploração eloquente das possibilidades (e promessas!) desta Eunomics veja-se o ensaio «Means and
Ends», incluído por Kenneth Winston na publicação póstuma The Principles of Social Order: Selected Essays of Lon
L. Fuller (1981), cit. na ed. revista de 2001, Oxford, Hart, 2001, pp. 61 e ss. Veja-se ainda a síntese proposta
por Postema, Legal Philosophy in the Twentieth Century: the Common Law World, cit., pp. 146-153 (4.2.) e a detida
reconstituição crítica de Kristen Ann Rundle, “Forms liberate”: Reclaiming the Legal Philosophy of Lon L. Fuller,
University of Toronto, 2009, cit. na versão disponibilizada em https://tspace.library.utoronto.
ca/bitstream/1807/ 19224/6/Rundle_Kristen_A_200911_SJD_thesis.pdf (acedida em Setembro de 2012),
pp. 13-24 («Eunomics») [este texto, ao qual voltaremos, foi entretanto publicado pela Hart, 2012].
Sem esquecer duas importantes propostas de desenvolvimento dessa herança que (num esforço
paralelo ao de Simmonds) foram ensaiadas pelo próprio Kenneth Winston [«Introduction to the Revised
Edition», The Principles of Social Order , cit., pp. ] e por Henrik Palmer Olsen e Stuart Toddington [em
Architectures of Justice: Legal Theory and the Idea of Institutional Design, Ashgate, 2007, passim]. «Law (…) consists
not only of rules and decisions, but also of a framework of institutions providing a structure that forms the
conditions of its workable existence and acceptance. This book is about these conditions (…). The
architecture of justice therefore, refers to the art and technique of a form of institutional design. And in the
same way that architecture aspires aesthetically and ethically to achieve more than the purely functional
demands of the mechanics of building engineering, using the ideas of law and justice to design a system of
social order should aspire, as Lon L. Fuller reminded us, to achieving ‘Good order and workable social
arrangements’. This is a project to which Fuller gave the name, Eunomics, and this book will be a theoretical
study of what might constitute the Eunomic principles of institutional design…» (Olsen /Toddington,
Architectures of Justice, cit., p. 1).
631Fuller, The Morality of Law, cit., pp. 145-151 («Law as a Purposeful Enterprise…»).
632 Fuller, The Morality of Law, cit., pp. 106 (ver ainda 46, 96, 146)
164

assim mesmo iluminada pela «utopia»-cume de uma juridicidade plena633 («utopia» que sendo
«inatingível» não pode nem deve nunca ser compreendida como um «alvo»!634) — se
concebe e se experimenta como uma autêntica moralidade de aspiração, sustentada na
«qualidade afirmativa e criativa das suas exigências» (porventura, mais rigorosamente, como
uma moralidade dominantemente de aspiração, conjugada-concertada, numa geometria
relativamente complexa, com uma moralidade de dever e com as proibições que esta
determina)635.
A «condicionalidade», se não «contingência», do «conteúdo» continua porém a
impor-se-nos, exigindo que uma tal moralidade interna, nos seus oito desiderata (the eight kinds
of legal excellence636) — sem prejuízo da teleologia global que assegura637—, se nos dirija livre de
fins substantivamente determinados, ou mais exactamente, contrapondo-se a uma moralidade
externa explicitamente material (na qual encontramos por exemplo os «princípios» substantivos
da justeza-fairness, da adequação às circunstâncias, da eficiência).638 O que, também sem
prejuízo de devermos tematizar as interacções destas moralidades interna e externa639 (e de
acentuarmos outros tantos intellectual channels indispensáveis à reflexão metadogmática640,
reconhecendo desde logo que um «respeito pela moralidade interna limita» os substantive aims
que podem ser prosseguidos pelas normas legais641 ) — nos mesmos termos de resto em que
em que não podemos deixar de considerar as tensões (e o balancing) entre os desiderata da
moralidade interna642 (antinomies may arise within the internal morality of law643) —, nos conduz à
conclusion-claim inevitável de reconhecer que a excelência jurídica, na sua inequívoca dinâmica
positiva, cumpre um sentido explicitamente procedimental (concerned, not with the substantive aims of

633 «At the height of the ascent we are tempted to imagine a utopia of legality…» (Ibidem, p.41). A

utopia em causa é aquela em que os oito desiderata a que aludimos supra (nota 498) nos aparecem todos
cumpridos.
634 «…as a useful target for guiding the impulse toward legality…» (Ibidem). «Fuller (.…) makes clear

that the eight principles are to be understood as standards to which lawmaking should rather than must
achieve. Thus, his intention is not to portray the existence of legal order as achieved only in a utopia where
each of the eight principles is realized to complete perfection because such a utopian conception is not, in his
view, “a useful target for guiding the impulse toward legality”. Instead, the eight principles are intended to
represent distinct standards against which excellence in legality may be tested…» (Kristen Ann Rundle, “Forms
liberate”: Reclaiming the Legal Philosophy of Lon L. Fuller, cit., p.73, nota 32).
635 Ibidem, pp. 41-44 («The Aspiration toward Perfection in Legality»), 91-94 («Legality as a Practical

Art»).
636 Ibidem, p.41.
637 Uma teleologia contida no propósito da governance of rules, cuja reconstituição pode assim evitar o

pathos da relação ideia/ideal, ou pelo menos os excessos do idealismo: ibidem, pp. 145-147, 189-190 [«[T]he
purpose I have attributed to the institution of law is a modest and sober one (…) and scarcely lends itself to
Hegelian excesses» (Ibidem, p.146).
638 Ibidem, pp. 44-47, 155 e ss.
639Ibidem, pp. 46 e ss., 152-186 («The substantive aims of Law»).
640 Ibidem, p. 155.
641 Ibidem, pp. 4, 154 e ss.
642 Ibidem, pp. 44 e ss. («Legality and the Economic Calculation»), 104 -106. «All [the “desiderata”]

(…) are means toward a single end, and under varying circumstances the optimum marshalling of these
means may change. Thus an inadvertent departure from one desideratum may require a compensating
departure from another…» (Ibidem, p. 104).
643Ibidem, p. 45.
165

legal rules, but with the ways in which a system of rules for governing human conduct must be constructed and
administered if it is to be efficacious and at the same time remain what it purports to be644). Conclusão que
Fuller defende posicionando-se em relação à tradição do jusnaturalismo645 e sustentando um
sentido amplo de racionalidade procedimental646 (What I have called the internal morality of law is
in this sense a procedural version of natural law647) .

A atenção a estas duas grandes propostas e à sua eloquente posteridade permite-nos


perceber, ainda que por razões diversas em relação a cada uma delas, que a vantagem de
invocar o projecto-projectar do direito é, ao fim e ao cabo, relativamente modesta. Se as
breves alusões ao universo reflexivo frequentado por Fuller — na sua reconstituição dos
compromissos formais indispensáveis a uma ordem boa ([as] the conditions under which particular
forms of social order may be said to approach perfection648), mas também na sua rejeição de um
jusnaturalismo substantivo (ontologicamente transcendente), e muito especialmente no turn to
practice (ou no turn to social processes) que a sua reply to positivism se vê estimulada a explicitar649
— nos bastam para afastar (distinguir) o seu exercícico eunómico (enquanto tratamento dos
tipos de excelência) da ilustre herança ontoteleológica que a referência a uma moralidade de aspiração
começou por reivindicar — autorizando-nos assim a mantê-lo como um recurso plausível
num tempo de historicidade constitutiva —, a atenção ao binómio regulativo/constitutivo
(indispensável para perceber o puro tratamento regulativo defendido por Stammler), essa
permite-nos por sua vez perceber que é possível manter a referência à ideia de direito e à sua
relação com o direito justo, desde que estejamos precisamente dispostos a (versus Stammler)
optar sem equívocos pela alternativa, entenda-se, desde que atribuamos à referida ideia e ao
princípio ou princípios que normativamente a explicitam um carácter assumidamente
constitutivo (se não regulativo-constitutivo, entenda-se, não meramente regulativo), próximo daquele
que Castanheira Neves nos ensina a reconhecer quando autonomiza os princípios como jus
e testemunha uma especialíssima consonância prática entre os princípios que se invocam

644 Ibidem, p. 97.


645 Ibidem, pp. 96-106 («Legal Morality and Natural Law»).
646 «[T]he word “procedural” should be assigned a special and expanded sense so that it would

include, for example, a substantive accord between official action and enacted law…» (Ibidem, p.97). Trata-se,
de resto, de explicitamente atender ao último dos desiderata (o da congruência que deve existir entre as regras
declaradas e as acções oficiais que as mobilizam, executam ou realizam).
647 Ibidem, p. 96.
648 Fuller, «Means and Ends», cit., p. 62.
649 «Perhaps in time legal philosophers will cease to be preoccupied with building “conceptual

models” to represent legal phenomena, will give up their endless debates with definitions, and will turn
instead to an anlaysis of the social processes that constitute the reality of law… » (The Morality of Law, cit., p.
242).
166

como compromissos comunitários e o «conteúdo normativo-concreto» da realização destes


compromissos650.

É na realidade já com este carácter que, numa etapa inicial do seu percurso reflexivo
(estabelecendo precisamente um diálogo com Stammler e Del Vecchio), Castanheira Neves
defende que «o regulativo651 da justiça só poderá ser um princípio da razão prático-axiológica
e não da razão teorético-transcendental»652, carácter prático-axiológico que (na sua unidade entre
intenção e ideia653) esclarece logo a seguir, ao exigir que ao princípio correspondente (dito
«princípio da justiça») se associem duas dimensões irredutíveis: aquela que o identifica no seu
«impulso ideal», se não «espiritual» (como «incondicionado» e «fundamento» ), e aquela que o
refere à «realidade social» e às «condições» desta (levando a sério a sua própria
«historicidade»)654. Se esta acentuação nos autoriza a compreender este princípio simultanea
e irredutivelmente como o «transcender de uma certa realidade» e como o «transcender para
uma certa realidade»655, não nos autoriza menos com efeito a convocar a ideia de direito («no
seu sentido forte, aquele que a pensa como a própria expressão do Espírito na sua
autonomia») na sua relação decisiva com o «direito historicamente realizado» («só no direito
positivo a ideia de direito realiza o direito, só pela ideia de direito o direito positivo se realiza
como direito»)656 — e então e assim a associar esta ideia (como autopressuposto prático, com
um «sentido de inteligibilidade regulativo-constitutivo»657) a um certo princípio normativo,
vendo no segundo a expressão normativa daquela («um princípio tal que, só porque ele
fundamenta e regulativamente constitui uma certa ordem, esta se pode qualificar de jurídica
(…), princípio (…) que não é outro senão a própria ideia de direito ou o direito enquanto
princípio axiológico e prático-normativo»658)659.

650Castanheira Neves, Metodologia jurídica, cit., pp. 203-204. Veja-se a exploração desta concepção dos

princípios que propus em «Na “coroa de fumo” da teoria dos princípios…», cit, pp. 412-421 (3.)
651 O significante «regulativo» não aparece aqui como sinónimo de «mero regulativo» (e opondo-se

enquanto tal ao significante «constitutivo»). Expõe-se-nos antes e e em contrapartida a acentuar a exigência


negativa (indispensável à distinção princípios/normas) de que não devemos tratar o princípio da justiça como
um «dado material absoluto» («que só por si e uma vez por todas tudo resolvesse») — entenda-se, como um
princípio que, na perspectiva de um certo cognitivismo normativo (jusnaturalista), se não normativismo
ontológico, pudesse «ser “premissa” ou fundamento acabado de todas as soluções concretamente exigíveis»:
Castanheira Neves, Curso de Introdução ao estudo do direito, Lições proferidas no ano lectivo de 1971-72, polic.,
pp. 103.
652 Ibidem, p. 104.
653 «[S]em que entre a ideia e a intenção haja fundamental distância, pois a ideia projecta-se na

intenção e a intenção assume a ideia, podendo dizer-se que a este nível, ao nível intencional, ideia e intenção
se acabam por confundir…» [«A revolução e o direito» (1974), Digesta, vol. 1º, cit., p. 172].
654 Curso de Introdução ao estudo do direito, cit., pp.105 e ss. (II).
655 Ibidem, p.107.
656 «O papel do jurista no nosso tempo» (1967), Digesta, vol. 1º, cit., p. 39.
657 «A revolução e o direito» (1974), ibidem, p. 174.
658 Curso de Introdução ao estudo do direito, cit., pp. 27-28.
659 Ver O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp. 177 e ss. (e nota 293)

e «A revolução e o direito», cit., pp. 169 e ss. (7.). Ver também a detida interpretação deste princípio normativo
proposta por Fernando José Bronze nas Lições de Introdução ao Direito, cit., pp. 460 e ss. (13ª lição).
167

Podíamos argumentar que o significante projecto tem pelo menos a vantagem de ser
simultaneamente compossível com um tratamento regulativo-constitutivo da ideia de direito660 —
aquele que a assume como a autopressuposição de uma praxis-tarefa ou da sua
inteligibilidade fundamentante — e com a intenção de plenitude da moralidade de aspiração
(starting at the top of human achievement661) — aquela que incorpora no mundo prático do
direito, ao lado da valoração que resulta da violação de um dever, uma segunda valoração
negativa, determinada pela experiência de uma frustração (parcial ou total) de uma intenção-
-exigência ou do achievement que lhe corresponde (for shortcoming, not for wrongdoing662). E não
teríamos que ficar por aqui. É que o significante em causa traz também um outro benefício
não negligenciável, que é o de uma directa relação de parentesco com a mise en mots do
pensar em círculo, se não do saltar para o interior do círculo (na sua inteligibilidade hermenêutico-
-existencial) — mise en mots de cuja herança uma tematização da autodisponibilidade enquanto
autotranscendentalidade poderá hoje dificilmente prescindir. Trata-se evidentemente de
convocar Heidegger e a «perspectiva»-visée (Sicht) do compreender-Verstehen como modo
fundamental (Grundart) do Ser do «estar-aí»-Dasein663([D]as Verstehen macht in seinem
Entwurfcharakter existenzial das aus, was wir die sicht des Daseins nennen664), se não, mais
claramente, de atender à estrutura existencial deste compreender enquanto poder-ser e ser-
possível, o qual, na sua abertura, se cumpre como pro-jectar lançado no (saído para o) mundo (Sein
lichtet sich dem Menschen im ekstatischen Entwurf [und] überdies (…) ist der Entwurf wesenhaft ein
geworfener665).

Reinventar possíveis significados do significante prōicere (fortalecendo a unidade que


os relaciona) para levar a sério este Zueinander do «ser lançado» (Geworfensein) e do «projecto-
projectar» (Entwurf) — e falar assim de um Dasein als geworfener Entwurf— é, para Heidegger,

660 Compossibilidade tanto mais evidente quanto é certo que o referido significante aparece

frequentemente associado ao mundo dos nomes mobilizados por este tratamento, sempre que, no horizonte de
uma referência comunitária, se pretenda evocar uma dinâmica prospectiva (se não a abertura permanente de uma
institucionalização-ordinans). Assim explicitamente em Castanheira Neves: trata-se de defender que a «intenção
ético-comunitária das pessoas, intenção que elas assumem numa ideia totalizante [,](…) não é [outra coisa]
que a Ideia de Direito», reconhecendo-se simultaneamente que a necessidade de uma «referência à história»
(«a partir de uma situação histórico-social») e de um transcender dessa mesma história («construída em
“projecto” e futuro…») se alimenta ao fim e ao cabo do «“projecto” e conteúdo axiológicos por que a
comunidade histórica se vai constituindo…» («O papel do jurista no nosso tempo», cit., p. 39)
661 Fuller, The Morality of Law, cit., p. 5.
662 Ibidem.
663 Heidegger, Sein und Zeit, 18ª edição (reimpressão da 15ª), Max Niemeyer Verlag Tübingen, 2001,

pp. 142-148 (§ 31 «Das Da-sein als Verstehen»).


664 Ibidem, p. 146.
665 Über den Humanismus, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1947, p. 25. «Das Werfende im Entwerfen

ist nicht der Mensch, sondern das Sein selbst, das den Menschen in die Ek-sistenz des Da-seins als sein
Wesen schickt…» (Ibidem).
168

como se sabe, estar em condições de compreender a relação indispensável entre a facticidade


do Da-sein müssen e a ex-istencialidade de um Da-sein können — sendo claro que a projecção não
interrogada (ungefragten Geworfenheit) associável ao tratamento auto-subsistente (opaco) daquela
facticidade (als gegebener Seinsbestand) nos fecha no domínio-objecto da determinação ôntica… e
que só a perspectiva-visée desta ex-istencilidade, porque supera o risco de ficar por uma
abordagem exterior, nos permite «ver» (ontologicamente) através (ou a partir) da abertura ao
mundo e da transparência que esta garante ou que esta é (Die Sicht, die sich primär und im ganzen auf
die Existenz bezieht, nennen wir die Durchsichtigkeit666), conseguindo assim «projectar» ou
«lançar para a frente a possibilidade enquanto possibilidade» (der Entwurf im Werfen die Möglichkeit als
Möglichkeit sich vorwirrt und als solche sein läßt667). O que é decerto afastar do significante
projecto-projectar o significado plano (pelo menos enquanto envolva uma pré-determinação
conformadora, ainda que apenas esboçada, de um comportamento que por sua vez a
pressupõe), para assim mesmo, rejeitando o apelo da ontoteleologia pré-moderna (e os riscos da
inautenticidade ôntica), reafirmar em pleno a ordem de possibilidade da historicidade constitutiva (Das
Entwerfen hat nichts zu tun mit einem Sichverhalten zu einem ausgedachten Plan, gemäß dem das Dasein
sein Sein einrichtet, sondern als Dasein hat es sich je schon entworfen und ist, solange es ist, entwerfend668).

Se levar a sério esta relação de parentesco (celebrando a prioridade ontológica do


possível sobre o actual) nos permite decerto rejeitar in limine uma qualquer re(con)dução das
interrogações metadogmáticas ou transdogmáticas a um problema de delimitação
cognitivo-categorial (justificado pela pergunta «o que é o direito?»)669, permite-nos
sobretudo compreender o sentido que, no círculo produtivo de construção-reprodução-
realização do mundo em causa (enquanto projectar humano), há-de ter um percurso de
autodeterminação: autodeterminação esta que não sendo arbitrária (não se podendo confundir
com a Gleichgültigkeit der Willkür670), se dirá «lançada para a frente» numa abertura a
possibilidades múltiplas e na exigência simultânea de uma escolha (de uma aposta!)
compreensivo-existencial — se não, mais rigorosamente numa sucessão permanente de
escolhas (regulativo-constitivamente) orientadas, reconhecíveis na sua continuidade, cujas
inflexões ou derivações por sua vez, sem prejuízo daquela orientação e desta continuidade
(e da identidade que esta última alimenta), se vão circular e constitutivamente reflectindo

666 Sein und Zeit, cit., p. 146


667 Ibidem, p. 145.
668 Ibidem.
669 Uma preocupação explícita ou implícita com a construção analítica de um conceito de direito ou, em

alternativa, uma tentativa de encontrar atributos empíricos que delimitem quer os fenómenos jurídicos quer as
pretensões de juridicidade (e a inter-semioticidade que estas tecem) podem decerto fornecer contributos
informativos preciosos, serão no entanto sempre radicalmente incompatíveis com a tematização do jurídico
como ordem-ordinans de possibilidade!
670 Ibidem, p. 144.
169

no todo iluminado pelo projecto ou no terreno percorrido pelo projectar (Weil das Verstehen an
ihm selbst die existenziale Struktur hat, die wir den Entwurf nennen. (…) Das Verstehen ist, als
Entwerfen, die Seinsart des Daseins, in der es seine Möglichkeiten als Möglichkeiten ist671). Como se a
recompreensão do mundo prático do direito à luz do existencial «possibilidade» (vendo no
direito o projectar de um mundo possível, em permanente movimento) nos permitisse enfim
conjugar (na sua unidade de sentido) algumas das linhas de compreensão que mais
insistentemente nos têm ocupado.
Por mais sedutor que este estímulo reflexivo nos possa parecer, importa no entanto
manter aceso o fogo da contra-argumentação… e disponibilizá-lo ao seminário. Por um lado
decerto para evitar que a assimilação da mise-en-mots de Sein und Zeit (como recurso
expressivo irresistível) se converta numa transposição abusiva de categorias — tentação a
que, como sabemos, um certo heideggerianismo de superficie, se não pseudo-
heideggerianismo, persistentemente sossobra, num exercício paradoxal de ocultação dos
problemas, se não de imunização das respostas correspondentes (fechadas numa
reprodução acrítica de fórmulas). Por outro lado ainda para retomar uma das nossas
preocupações principais, perguntando se não estaremos assim a correr o risco de,
celebrando como que em bloco (e com a opacidade inevitável) a estrutura existencial da
prática e do pensamento prático enquanto poder-ser, cedermos à facilidade de (apenas)
iluminar o jurídico a partir deste Sicht, com a consequência (paradoxal) de tornar esta
perspectiva insensível à (exploração da) especificidade do mundo prático em causa, cuja
ordem-ordinans nos ajuda afinal a compreender.
Estes riscos só os evitaremos, se, ao reconhecermos no jurídico a projecção-projectar
de um mundo possível — identificável na sua continuidade, não obstante o fluxo imparável
das práticas que o constituem e realizam —, simultaneamente procurarmos tematizar tal
identidade-continuidade. E esta a partir de um segundo execrcício narrativo (aquele que
precisamente nos confronta com o direito como criação civilizacional)…

3.3.3. Chegamos assim ao patamar culminante em que o projecto-projectar do


mundo prático do direito assume a possibilidade da sua autonomia tornando-a indissociável
da rejeição (ou pelo menos da problematização) de uma pretensão de universalidade, na
mesma medida em que leva a sério uma identidade concentrada num certa forma de vida
prático-comunitária — com um horizonte cultural-civilizacional preciso (iluminado pela
Ideia da Europa) e com rostos suficientemente diferenciados (que renovam o projectar-

671 Ibidem, p. 145.


170

-procura dessa identidade em outros tantos contextos práticos) —, na mesma medida ainda
em que, na unidade de sentido gerada pela reciprocidade constitutiva da dimensão intencional e
da dimensão da realização (com soluções de integração intencional e teleologicamente
inconfundíveis), se descobre distinto de outras respostas igualmente possíveis — respostas ao
problema da prática em geral e ao problema da vida em comum em particular, respostas
alimentadas pelo mesmo horizonte civilizacional ou sustentadas por outros horizontes.
Sendo esta uma temática que, na sua concentração produtiva — percorrendo o
caminho aberto pela reinvenção jurisprudencialista (na sua lição de recuperação reflexiva
do originarium da juridicidade) —, tenho privilegiado, permito-me agora apenas esquema-
tizar alguns dos seus traços. Como outras tantas interpelações, dirigidas ao seminário modelo.

3.3.3.1. Comecemos pelo último ponto: repostas ao problema da prática em geral e ao


problema da vida em comum em particular… alimentadas por distintos horizontes civilizacionais.
Para esclarecer esta acentuação (dando uma atenção especial à sua capacidade para
«organizar»-distribuir todos os outros elementos de identificação invocados), permito-me
retomar672 um contraponto elementar, contraponto este que, com o preço da simplificação a
que nos expõe — na sua redução a duas vozes exemplares —, nos permite esboçar como
que no limite (se não in nuce) o problema da pretensão de autonomia ou da sua relação com
um projectar de possibilidades.
Que contraponto? Aquele que se desenha partindo do problema (necessário) da vida
em comum (se quisermos já, do problema da partilha do mundo673)… e distinguindo duas
respostas… ou dois horizontes de resposta…
(α) Um horizonte de resposta, por um lado, que, ao apostar na possibilidade de
separação-Isolierung de um certo mundo prático e ao associar esta separação a uma pretensão
de humanitas (especificada como jus numa intenção à validade e numa exigência de realização… e
no círculo luminoso que estas alimentam) — possibilidade que, como já vimos, terá tido o
seu início luminoso (a sua primeira afirmação plena) na praxis de responsa dos jurisconsultos
romanos —, determina que o tratamento culturalmente possível se procure transformando
aquele problema (ou parte dele). Entenda-se, definindo os limites de relevância (veremos já a

672 Já mobilizei este contraponto em «Direito, violência e tradução: poderá o direito, enquanto forma de

vida civilizacionalmente situada, oferecer-nos as condições de tercialidade exigidas pelo problema do diálogo
intercultural?», comunicação apresentada nas IV Jornadas da ATFD (Universidade Nova de Lisboa, Fevereiro
2012), a publicar em breve.
673 No sentido que Castanheira Neves nos ensina a reconhecer: ver «Coordenadas de uma reflexão

sobre o problema universal do direito», cit nos Digesta, vol. 3º, cit., pp. 13-16.
171

seguir quais!) que nos permitem tratar tal problema como uma experiência inconfundível
de afirmação e de assimilação das diferenças.
(β) Um horizonte de resposta, por outro lado, que, ao manter-se fiel a uma exigência de
inseparabilidade — à interpenetração de intenções e significações que a sustenta e à procura
de equilíbrios internos que esta holisticamente determina —, reage ao mesmo problema global
assumindo (experimentando, recriando, ainda que raramente tematizando) um continuum
prático (imune àquela pretensão de autonomia).

Um continuum no qual a moralidade comunitária, a prática religiosa, as narrativas


partilhadas, as concepções de vida boa, os modelos-exempla de autocompreensão (ou de
felicidade individual) e outros cânones socialmente vigentes — sem prejuízo das diversas
soluções de equilíbrio que se vão comunitariamente institucionalizando e das possíveis
mudanças que estas, mais ou menos contingentemente, introduzam…— são confirmados-
sancionados como constitutivamente indissociáveis… e para o qual a ordem «jurídica» (Raz
diria the legal system674) não será (nem deverá ser) porventura mais do que a institucionalização
regulativamente eficaz ou do que a projeccção coercitiva do conteúdo desse continuum —
aquela ordem jurídica (aquele direito) que se nomeia quando se invoca o núcleo normativo
culturalmente único da ordem islâmica, do dharma indu, do halakhah judaico ou do
beehaz’aanii indígena.

Como se se tratasse de partir de um problema necessário de partilha do mundo,


submetendo a expressão dessa necessidade a uma imediata tradução cultural… que
implacavelmente nos impusesse conformações distintas. Com a consequência esperada de
as traduções em causa nos impedirem de reconhecer o problema partilhado (ou o seu common
ground)…

3.3.3.2. Comecei por dizer que o projecto-projectar do mundo prático do direito


assume a possibilidade da sua autonomia tornando-a indissociável da rejeição (ou pelo menos da
problematização) de uma pretensão de universalidade. Fortalecidos pelo esclarecimento introduzido
pelo contraponto (α)/ (β) (ou pela aposta em (α) exigida pelo percurso precedente), é tempo

674Para Raz, trata-se de invocar os exemplos das theocratic autonomous Jewish communities e das Islamic
theocracies (e outros sistemas político-religiosos), mostrando que o continuum normativo que nelas se manifesta
nos impede seguramente de falar da assimilação de um concept of law (autonomizado do concep of religion e do
concept of ethics), embora nos imponha que continuemos a identificar nas suas práticas um autêntico legal system:
«Yet beyond doubt theocratic Jewish communities did have a legal system, even though they lacked the
concept of law (…). [It] would be absurd to think that Iran (…) does not have a legal system…» (Raz, «Can
There be a Theory of Law?», Between Authority and Interpretation. On the Theory of Law and Practical Reason,
Oxford. Oxford University Press, 2009, p. 40).
172

de perguntarmos o que significa uma tal rejeição-problematização… e em que termos é que


esta nos estimula a associar o projecto-projectar do jurídico a uma forma de vida prático-
comunitária (com uma identidade inconfundível).
Se a oportunidade a aproveitar pelo seminário é agora a dos binómios universal /
particular, acultural /cultural (ou a da sobreposição que os dinamiza), importa saber se
ganharemos algum esclarecimento precioso invocando um eixo de arrumação hoje
recorrentemente frequentado: refiro-me claro àquele que, enfrentando directamente o
problema do cosmopolitism about justice675, opõe universalismos liberais e particularismos
comunitaristas, em termos tais que a pretensão de juridicidade apareça nos primeiros vinculada
ao horizonte de uma moralidade crítica ou de uma filosofia moral — mais ou menos
explicitamente justificada por uma representação da relação necessidades/ direitos (e pela
integração desta num modelo aculturalmente protegido de societas676) —, em contraponto
com a exigência alimentada pelos segundos, de acordo com a qual se trata afinal de
compreender o direito (os muitos e particulares direitos!) na sua relação prioritária com
cada uma das comunidades vigentes — como a institucionalização dos «mores, padrões ou
cânones» que alimentam a particularidade moral e cultural de cada uma delas, mas também
como uma conversão prático-normativa da identidade narrativa que as distingue (no limite,
como um sancire autoritário da herança-tradição em que tais comunidades se inscrevem)677.
A pergunta que acabámos de formular juntou aos outros dois binómios (universal /
particular, acultural /cultural) um terceiro, já bem nosso conhecido (communitas /societas),
criando a aparência de uma «afinidade» entre os particularismos comunitaristas e a nossa
tentativa de explorar o jurídico como projectar de significações comunitárias. A aparência é
ilusória, se não perigosa. O que há em comum àqueles particularismos e a esta tentativa
situa-se, com efeito, exclusivamente no plano global do discurso prático: na assunção,
explícita ou implícita, do regresso da comunidade, se quisermos, na exigência de não reduzir a
identidade colectiva a uma representação acultural da societas (que é também, pela positiva, a
de tratar esta como uma tradição e a de assim instalar uma irredutível dialéctica societas/
comunitas). Quando o problema a pôr é já o do direito enquanto tal, a convergência passa,

675 Trata-se de invocar as pretensões cosmopolitas associadas às teorias da justiça (cosmopolitism about

justice), em contraponto com aquelas que se reconhecem como parte integrante de um discurso sobre a
cultura e a construção das identidades (cosmopolitism about culture and the self): esta distinção deve-se a Samuel
Scheffler, «Conceptions of Cosmopolitism» (1999), Utilitas 1, pp.255-276, doi:10.1017/S0953820800002508
(acedido em Dezembro de 2011).
676A incapacidade de assumir em pleno a exigência de continuidade do jurídico, permitindo que a

experiência deste, implicitamente embora, permaneça prisioneira da conformação moderno-iluminista (e do


seu pathos de universalidade), está presente mesmo em propostas (como as de Fuller, Dworkin ou Simmonds)
que rompem explicitamente com um modelo acultural de societas.
677 Neste parágrafo socorri-me de novo das formulações propostas por Jeremy Waldron em

«Particular Values and Critical Morality», cit., pp. 561 e ss.


173

sem paradoxo, a estabelecer-se entre os dois veios oponentes da teoria da justiça: decerto
porque universalismos liberais e particularismos comunitaristas, ocupando-identificando embora
campos contrários — e assumindo uma posição relativamente diferenciada em relação à
herança formalista678 —, não obstanto acordam no tratamento do jurídico como um mero
regulador social679 ou como uma mera instância de institucionalização, entenda-se, como um
acervo de recursos de institucionalização intencionalmente neutros, capazes de corresponder,
como que instrumentalmente, a outros tantos modelos societários ou comunitários de
identidade colectiva (político, económico ou eticamente construídos). Não sendo certamente
por acaso que o tratamento garantido por estas teorias da justiça — e pelos pensamentos que
as assimilam (mesmo quando, já para além das referidas teorias, se propõem inventar um
tertium genus680) nos condena sem remissão a uma alternativa inescapável: aquela que, não
estando em condições de pôr (nem de reconhecer)um problema de demarcação-Abgrenzung
— que pudesse dizer-se determinado por uma perspectiva intrinsecamente jurídica (capaz
de conferir à Law’s claim um sentido intencional unitariamente autónomo) —, se vê
constrangida a optar entre a prescrição de uma moralidade criticamente universal e a
consagração de uma moralidade positiva convencionalmente particular (se não de uma
eticidade substantiva vigente)681. Como se as pretensões que constituem (que dinamizam
internamente) este eixo pudessem ao fim e ao cabo mostrar-se ambas compossíveis (por
razões diversas embora) com a irrelevância (se não indesejabilidade, pelo menos
impossibilidade) de um problema de demarcação da juridicidade. Observação que nos leva a
uma conclusão inevitável. Para acentuar que, se importa hoje abrir a oportunidade reflexiva
de interpelar o direito como projecto-projectar de sentidos comunitários, é, com efeito,
desde logo para perceber que aquilo que está em causa não é o reconhecimento trivial da

678Herança que não é rejeitada em bloco … e que assim permanece presente, seguramente no campo

universalista, mas também (relativizada embora como tradição) nalgumas vozes do campo oponente…
679 Um regulador cujas pretensões de identidade, afirmadas em contextos distintos (e mais ou menos

inter-semioticamente tratadas), são por assim dizer reconduzíveis ao contexto-correlato de uma prática de
decisões contingentes e ao regulativo coercitivamente eficaz que esta prática institucionaliza.
680 Não me refiro apenas aos territórios híbridos do liberalismo comunitarista ou do comunitarismo

liberal — com interlocutores que podem ir de Nussbaum (e Sen?) a Walzer e Taylor —, refiro-me também e
muito especialmente à pretensão de encontrar um «terceiro modelo de democracia», diferente quer da
concepção liberal do Estado enquanto «guardião de uma societas económica» (als Marktwirtschaft), quer da
concepção republicana do Estado enquanto «comunidade ético-material»: o terceiro modelo (dito de
democarcia deliberativa) que vemos exemplarmente exigido pelo republicanismo discursivo-procedimental de
Habermas [«Drei normative Modelle der Demokratie», Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen
Theorie, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1996, cit. na edição de bolso de 1999, pp. 277-292]— num horizonte
reflexivo em que o problema da autonomia do direito, como problema indissociável do «projecto da
modernidade», se reconduz precisamente à institucionalização coercitiva de uma forma político-social. Para
Habermas o problema nunca é, com efeito, o da autonomia do direito mas o da politisch autonome Rechtsetzung:
ver «Zur Legitimation durch Menschenrechte», Die postnationale Konstelation. Politische Essays, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1998, p. 134. Para uma reconstituição mais detida, remeto-me para o já cit. «O homo
humanus do direito e o projecto inacabado da modernidade», passim.
681 Combinem-se (et pour cause!) as formulações de Hart e Waldron com as de Habermas!
174

vocação integradora associada à institucionalização performativamente eficaz da vida em


comum — que assim mesmo impusesse ao direito uma assimilação-recepção passiva dos
valores, standards ou regras produzidos ou estabilizados pelas identidades colectivas de
possíveis comunidades de ideias ou de memória682 (as primeiras a invocarem a universalidade
das aquisições moderno-iluministas, as segundas a celebrarem o particularismo insuperável
dos mores e das tradições) —, porque é antes e em contrapartida a possibilidade de discutir
uma resposta civilizacionalmente específica ao problema da invenção de um commune…

3.3.3.3. O que nos concentra no projectar de um commune específico e neste


concebido como um interlocutor pleno dos outros modos de identidade colectiva vigentes. Um
commune que podemos fazer corresponde a uma Lebensform? Já o sabemos. Importando
acrescentar que a categoria forma de vida nos aparece aqui a traduzir um conteúdo
intencional imediatamente sócio-cultural, se não antropológico-cultural — livre da hesitação
construtiva que a recepção das Philosophische Untersuchungen tem suscitado683—, o qual, por sua
vez, se mostra suficientemente aberto e flexível na sua intensão e suficientemente amplo na
sua extensão para poder evocar:
(a)por um lado (com a ajuda de Wittgenstein), a inventio ou o concipere ou a
«apresentação» de uma linguagem ([u]nd eine Sprache vorstellen heißt, sich eine Lebensform
vorstellen684) — se não também já de um jogo de linguagem (das Sprechen der Sprache [ist] ein Teil
(…) einer Tätigkeit, oder einer Lebensform685)…— e com esta criação-invenção (sem que assim
se prejudique a plausibilidade de uma abertura crítica e da sua argumentação infinita), também

682 Para o dizermos recorrendo aos tipos ideais propostos por Robert Booth Fowler, «Community.

Reflections on Definition», in Amitai Etzioni (ed.), New Communitarian Thinking. Persons, Virtues, Institutions, and
Communities, Virginia, University Press of Virginia, 1995, pp. 88 e ss.
683 Como se sabe a palavra Lebensform é usada nas Philosophische Untersuchungen com uma extraordinária

parcimónia (encontramo-la nos §§ 19, 23 e 241 da I parte e nas pp. 277 e 363 da II parte), parcimónia que
contrasta com as polémicas suscitadas pela leitura-recepção da obra de Wittgenstein, nas quais se debate
precisamente a inteligibilidade mais antropológico-cultural ou mais científico-natural (mais próxima de uma
certa naturalis historia) que a categoria em causa exige. Para uma reconstituição atenta deste problema (inclusive
da polémica que opõe N. Garver e R. Haller) — defendendo de resto uma exemplar solução gradualista (capaz
de ver na categoria em causa eine primäre, speziesspezifische und eine sekundäre, anthropologisch-soziokulturelle Bedeutung)
—, ver Rafael Ferber «„Lebensform“ oder „Lebensformen“. Zwei Addenda zur Kontroverse zwischen N.
Garver und R. Haller», in Klaus Puhl (ed.) 1992, Wittgensteins Philosophie der Mathematik: Akten des 15.
Internationalen Wittgenstein-Symposiums, Teil 2, Schriftenreihe der Wittgenstein-Gesellschaft, Band 20/2, pp. 270-
276. Sem esquecer o desenvolvimento proposto por Marion Colas-Blaise (com uma exploração sistemática
das cinco passagens das Philosophische Untersuchungen, confrontadas com o universo da semiótica greimasiana),
«Forme de vie et formes de vie : vers une sémiotique des cultures», in Nouveaux actes sémiotiques, nº 115, Les
formes de vie à l'épreuve d'une sémiotique des cultures, 2012, disponível em http://revues.unilim.fr/nas/
document.php?id=4158 (extraído em Janeiro de 2013).
684Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen (1937-1949), Frankfurt am Main, Surkamp, ed. de bolso,

1971, p. 24 (II § 19)


685 Ibidem, p. 28 (I § 23).
175

a indispensabilidade de uma estabilização dogmática e da argumentação finita que esta


proporciona (Das Hinzunehmende, Gegebene —könnte man sagen—seien Lebensformen686);
(b) por outro lado (concertando contributos tão heterogéneos como os de Boyd
White, Landowski, Bubner e Castanheira Neves!), uma ordem-ordinans de «ocasiões» ou de
«oportunidades de criação de sentido» (law not as a system for producing material results in the
world, but as a system of meaning, or, perhaps better, as a set of occasions and opportunities for the creation
of meaning687), oportunidades todas elas orgânico-estruturalmente institucionalizadas (ainda
que oferecendo distintas modalidades normativo-intencionais de vinculação-vigência)688, as
quais, ao serem vividas por dentro (viewed from the inside, by someone who lives on its terms, and thus
seen as a field of life and practice689) — ao imporem-se-nos (também no plano estritamente
semiótico) como expressões-recursos prático-existenciais (il y a place, en sémiotique, pour la vie!690)
—, instituem no horizonte das significações comunitárias (enquanto referência a um
commune que é sempre também procura desse commune) uma inconfundível cultura do
argumento («perpetuamente refeita» pelos sujeitos que nela participam)691 — uma cultura que,
por ser dominada por uma certa experiência do problema-controvérsia, se poderá dizer
distinta de todas as outras culturas do argumento e das tematizações (éticas ou filosóficas) que as
consagram, na mesma medida em que, mobilizando (em referência à sua
«institucionalidade» prático-normativamente específica), uma linguagem também específica
(homóloga à linguagem comum)692, estabelece vínculos não menos inconfundíveis com a
prática quotidiana e com as disposições existenciais, se não, numa palavra, com a
particularidade e concretude do humano mundo-da-vida (Lebenswelt)693.

686 Ibidem, p. 363 (II, xi).


687Boyd White, From Expectation to Experience. Essays on Law and Legal Imagination, Michigan 1999, p.
52.
688 Castanheira Neves, O actual problema metodológico da interpretação juridica, I, Coimbra, Coimbra

Editora, 2003, p. 241.


689 Boyd White, From Expectation to Experience, p, 103.
690Do que se poderá dizer uma certa forma ou género (ou estilo) de vida. «Comment les appeler ? C’est

la question, un peu byzantine comme toute question d’ordre terminologique, qui nous est posée : faut-il y voir
des « formes » ou des « styles » de vie ? Ou, pourquoi pas, des « genres », ou par exemple des « modes » de vie
? — La discussion est ouverte. Mais quelle qu’en soit l’issue, l’essentiel restera pour nous cette confirmation :
d’une façon ou d’une autre, il y a place, en sémiotique, pour la vie ! L’obstination de quelques marginaux de notre
espèce est sans doute pour quelque chose dans le regain d’intérêt pour cette notion qui, en deçà du textuel et
au-delà des disputes terminologiques, reconduit vers l’existentiel. Ce qui revient à dire qu’à nos yeux, c’est la
logique du projet sémiotique dans son ensemble qui commandait ce retour…» (Landowski, «Régimes de sens
et styles de vie», in Nouveaux actes sémiotiques, nº 115, Les formes de vie à l'épreuve d'une sémiotique des cultures, 2012,
cit., p. 2, itálicos nossos).
691 Ver muito especialmente Boyd White, Heracles’Bow. Essays on the Rhetoric and Poetics of the Law,

Madison 1985, pp. 215-237 («Plato’s Gorgias and the Modern Lawyer. A Dialogue on the Ethics of
Argument»).
692 Castanheira Neves, O actual problema metodológico da interpretação juridica, I, cit., pp. 230-251 («A

linguagem em geral e a linguagem juridical em particular»), 282-283.


693 Nos termos exemplares evocados por Bubner no já várias vezes cit. Dialektik als Topik (o

subtítulo desta monografia, não certamente por acso é: Bausteine zu einer lebenswltlichen theorie der Rationalität).
176

Uma forma ou modo de vida cujos compromissos práticos (civilizacionalmente


cunhados, mesmo quando iluminados por uma pretensão de universalidade) se nos expõem
dominados por uma certa experiência do problema-controvérsia e encontrando nesta a sua
condição de identidade-continuidade (aquela que distingue o jurídico de outras respostas ao
problema da vida em comum)? Importará reconhecê-lo. O que significa ter presente que tal
identidade só se manifestará em pleno se, ao tratarmos a institucionalização do problema
em causa como uma resposta plausível ao desafio da phronêsis — o desafio de estabelecer
uma «mediação» racional entre a «permanência» (se não «universalidade») do «escopo para
agir» e «a mutabilidade das situações»694—, percebermos simultaneamente que esta
«mediação» cumpre intenções e compromissos práticos específicos, mostrando-se-nos
enquanto tal (genetico-culturalmente) indissociável do percurso aberto pela praxis de
responsa do «primeiro humanismo» — ou daquele que Heidegger dirá o «primeiro
humanismo» (unter ihrem Namen wird die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt in der Zeit
der römischen Republik (…), die eigentliche romanitas des homo romanus besteht in solcher humanitas 695).
Acentuar este início — reconhecendo por um lado a mediação judicativa que realiza o seu
cosmos normativo (na sua racionalidade interna, se não na imanência do seu processo de
Isolierung)696, enfrentando por outro lado a contingência das suas condições institucionais (e
a representação externa do respondere social que estas efectivam)697 — significa, com efeito,
dar atenção a um movimento de continuidade e à pretensão de iterabilidade que, no nosso
horizonte civilizacional, o torna reconhecível. Como se se tratasse de associar a inventio em
causa a um processo de repetição-transformação e este nos reconduzisse à exigência de
sentido e ao contexto-aspiração — mas também à tarefa efectivamente prosseguida (neste
sentido insuperavelmente situada)— de um ius suum cuique tribuere698.699

694 «Phronêsis è la ragion che si convalida nel pratico, che media l’universalità dell’orientamento a
uno scopo dell’agire con la varietà dei casi nelle situazioni mutevoli…» [Bubner, Handlung, Sprache und Vernunft
: Grundbegriffe praktischer Philosophie (Frankfurt am Main, 1976), cit. na nova edição (com apêndice) de 1982 e na
trad. italiana Azione, linguaggio e ragione: I concetti fondamentalli della filosofia pratica, Il Mulino, Bologna, 1985, p.
240].
695 Heidegger, Über den Humanismus, cit., p. 19.
696 A que «mediação racional» me refiro? Decerto àquela que, atribuindo a titularidade do jurídico ao

populo romano, encontra (delimita) o seu campo problemático ao exigir que uma certa prática da
intersubjectividade-reciprocidade, envolvendo «homens humanos» virtuosos (iguais e responsáveis) e as respectivas
máscaras de sui juris — na mesma medida em que alimenta uma condição (referencial-objectiva e judicativo-
subjectiva) de tercialidade —, se autonomize (se separe!) das outras práticas da civitas e dos discursos (éticos,
filosóficos, religiosos, narrativos) que as constroem…
697 O que significa situá-la (inscrevê-la) no plano do respondere social e então e assim perceber em que

termos é que a conjugação (sobreposição) do status civitatis e do munus do pater familias circunscreve a máscara
deste sui iuris a um círculo exemplarmente restrito (na mesma medida em que inventa e estabiliza uma nova
excelência aristocrática).
698Exigência-tarefa esta com um sentido que, considerado na perspectiva da nossa circunstância

presente, diríamos amplíssimo — porque abrange os três iuris praecepta (e as suas complexas posteridades), ou
porque conjuga in nuce as diversas formas do justo jurídico (permitindo que estas lhe sejam retrospectivamente
177

O que por um lado (cedendo ao estímulo daquela reconstrução externa) nos


reconduz ao diagnóstico habitual de um explícito alargamento do círculo (the “expanding circle”
view) e à luta pelo reconhecimento que o institucionaliza …

atribuídas)…—, mas que nem por isso se nos expõe (e nos atinge) com um sentido menos específico e menos
originário — obrigando-nos a situar em planos distintos, assim mesmo inteiramente compossíveis, as duas
conhecidas formulações atribuídas a Ulpianus [«Justitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique
tribuendi /…tribuens», « Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique
tribuere»]. Para uma exploração destes planos, preocupada sobretudo em mostrar que a formula «ius suum
cuique tribuendi», em confronto com a formuletta «suum cuique tribuere», impõe uma compreensão global do
mundo prático do direito, assim mesmo referida a todas as determinações-esclarecimentos das «posições» de
direitos e deveres dos sujeitos, ver Giuseppe Falcone, «Ius suum cuique tribuere», in Studi in onore di Remo
Martini, Siena, Giuffrè Editora, 2008, pp. 971 e ss., cit. na paginação disponível on line (no sítio da
Universidade de Palermo), http://www.unipa.it/~dipstdir/pub/annali/2007-2008/Falcone.pdf (acedido em
Janeiro de 2013), pp. 135 e ss. «Invero, dall’accostamento-giustapposizione rispetto all’ ‘alterum non laedere’
sembra doversi concludere che il precetto ‘suum cuique tribuere’ sia stato assunto da Ulpiano come riferentesi
esclusivamente all’attribuzione del diritto o comunque della situazione di vantaggio che spetta a ciascuno:84 il
ricorso all’espressione ‘ius suum’ avrebbe consentito al giurista di distinguere la concettualizzazione riguardante
la iustitia, quale volontà di attribuire qualsiasi posizione giuridica, ivi inclusa la sottoposizione a sanzioni, da
quella, avente minore estensione, espressa con l’ultimo dei tre praecepta iuris…» (Ibidem, p. 172)
699 A atenção conferida a este argumento de continuidade (vinculando a procura do homo humanus do

direito à dinâmica, se não à «racionalidade intrínseca», do ius suum cuique tribuere) é por sua vez suficiente para
expor o nosso auditório implícito a uma nova série de possibilidades temáticas, todas elas em condições de
discutir a persistente denúncia deste tribuere como «fórmula vazia» e os argumentos (distintos) que a
constroem [Para uma concentração exemplar destes argumentos (radicalizados na sua rejeição das pretensões
de autonomia do jurídico), veja-se Govaert C. J. J. Van der Bergh, «Jedem das Seine» (2005), disponível em
http://www.forhistiur.de/zitat/0503vandenbergh.htm (extraído em 2007) — o autor vai ao ponto de
questionar-desconstruir a thesis of isolation de Schulz: «In the heyday of legal positivism the isolation of law was
also projected back in history, as is inevitable. According to Schulz, it was the Romans - who else - who
succeeded for the first time in isolating law from all that is not law. (…) In retrospect, this seems an absurd
thesis What Schulz, on the authority of Jhering, presented as history was nothing else than nineteenth century
bourgeois ideology »]. Não se trata, com efeito, apenas de poder mostrar em que termos é que esta atribuição
de direitos e deveres, responsável pela construção de um cosmos específico e pelas máscaras que nele se
interrelacionam — máscaras cuja identidade é constituída pelo próprio exercício de interrelação (na sua
bilateralidade atributiva) —, se distingue da justiça particular distributiva consagrada (holisticamente) pela Ética a
Nicómaco (aquela que se quer relativa «às honras ou às riquezas» ou a «tudo o que possa ser distribuído em
partes pelos membros da comunidade-polis») [Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro V, cap. 2 (V, 2, 1130b 30 e
ss.) ]. Trata-se também de explorar a irredutibilidade deste tribuere à forma de delimitação das interacções mediatas
(as the structure in which parties are related as persons subject to common benefit or burden), forma esta que, num plano de
inteligibilidade já assumidamente jurídico (se quisermos mesmo imanentemente jurídico), Weinrib associa à
mesma igualdade por proporcionalidade geométrica (à função de dividir os benefícios ou os ónus segundo um
determinado critério) — precisamente enquanto opõe esta forma ou «estrutura justificatória» do direito
público (que exige o contributo da política e de um discurso de fins) à forma de interacção imediata associada à
justiça correctiva e à exigência exclusivamente jurídica da «igualdade quantitativa» (in corrective justice politics is
absent) [Weinrib, «Legal Formalism: On the Immanent Rationality of Law», cit., pp. 976 e ss. (IV. «The Forms
of Justice»)]. Discussão tanto mais relevante quanto é certo que nos abre as portas para (agora já claramente
para além da proposta de Weinrib, antes covocando Honneth, se não, através dele, Hegel… e Mead!)
podermos experimentar as diferenças que separam os «padrões de reconhecimento recíproco» do direito e da
solidariedade [Honneth, «Muster intersubjektiver Anerkennung: Liebe, Recht, Solidarität», Kampf um
Anerkennung (1994), erweiterte Ausgabe, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2003, pp. 148 e ss.]. Antes de
enfrentarmos o contexto institucional da neomaterialização imputada ao Estado social, para muito especialmente
nos concentrarmos no problema da responsabilidade de contribuição: responsabilidade de contribuição que (levada
a sério como dimensão do princípio normativo-jurídico da responsabilidade) deverá conjugar as «condições
da existência comunitária» com uma tradução macroscopicamente jurídica da solidariedade social e assim
mesmo se expor a questões de demarcação particularmente delicadas (suscitadas pelas interpelações decisivas
da ética e da política).
178

Que alargamento? Aquele que associa a máscara de homo humanus sui iuris a novas
manifestações da subjectividade colectiva (na sua identidade societária ou comunitária), ao
mesmo tempo que invoca as divisas da justiça geral, da justiça protectiva, da justiça distribuutiva700.
Mas sobretudo aquele que, vinculado a uma exigência de igualdade e a uma dinâmica de
progresso (com uma crescente sensibilidade às diferenças e um não menos crescente
tematização desta sensibilidade), culmina numa atribuição da máscara da pessoa jurídica a todos
os homens-sujeitos, na sua facticidade antropológica (the idea of law or of a legal system now
embodies the assumption that everyone in a society ruled by law is treated as sui juris, as having full legal
dignity701)

O que por outro lado (privilegiando a perspectiva interna) muito significativamente


nos confronta com a experiência de uma ordem-ordinans de validade e com os
compromissos práticos que, em distintos contextos, tal ordem vai especificando: como se
se tratasse de conferir àquele «alargamento do círculo» (e à sua «luta») uma intencionalidade
inconfundível, distinguindo-a de outras dinâmicas de crescimento (e de outras lutas)
também culturalmente possíveis, se não libertando-a do pathos de «progresso» ou da
providentialist teleology702 que — ao impor-lhe um ponto de chegada acultural e um «brilho
meliorista complacente» — certamente a desfigura. Que intencionalidade? Aquela que uma
prática de reconhecimento recíproco, cumprida como um exercício de delimitação interna e
assim mesmo levada a sério na sua continuidade — sem prejuízo da pluralidade de ambientes
culturais e institucionais em que virá a inscrever-se e das soluções não menos distintas que
estes estimulam703 — persistentemente prossegue e renova. Numa palavra, aquela que
(retrospectivamente reconstituída) nos aparece a identificar a procura-projectar de uma
comunidade de sujeitos-pessoas, se não a construção-inventio da pessoa ou da pessoalidade na

700 Vejam-se as reconstituições da tectónica da ordem jurídica (com a convocação destas «intenções
clássicas da justiça») propostas por Castanheira Neves e Fernando José Bronze, respectivamente no Curso de
Introdução ao Estudo do Direito (O sentido do direito, 140 pp.), nova versão, policop., Coimbra, s/ data, pp. 7-13
e nas Lições de Introdução ao Direito, cit., pp.31-58 (2ª lição). Sem esquecer o tratamento das «modalidades da
justiça» proposto por Castanheira Neves no já cit. Curso de Introdução ao estudo do direito, Lições proferidas no
ano lectivo de 1971-72, polic., pp. 122-125 (d)).
701 Waldron, «How Law Protects Dignity: the 2011 David Williams Lecture at the University of

Cambridge», disponível (como working paper nº 11-83) na Public Law & Legal Theory Research Paper Series da
New York University School Of Law, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1973341##
(extraído em Fevereiro de 2013), p. 17.
702 A fórmula é de Michael Rosen, «How Law Protects Dignity. Replies to Jeremy Waldron: Dignity,

Rank and Rights…», http://scholar.harvard.edu/files/michaelrosen/files/replies_to_jeremy_waldron.pdf


(extraído em Fevereiro de 2013), p. 2.
703Pluralidade que, ao abandonar as pretensões de intellegere de um Ser heterónomo (e a sua

interpretatio ontológico-metafísica) há-de submeter a soluções distintas as tensões autonomia-


autodeterminação/responsabilidade… e que há-de encontrar equilíbrios não menos distintos para os binómios
formal/material, procedimental/substantivo, mas que também, et pour cause, há-de tematizar diferentemente, em
termos mais ou menos criticamente reflectidos, a pretensão de universalidade.
179

sua relevância jurídica (distinta ou a distinguir-se de outras possíveis invenções da pessoa


assumidas no mesmo horizonte civilizacional)…

Uma identidade que não encontra(re)mos senão in nuce na experiência romana do


direito e na reflexão que lhe vai sendo associada — mesmo quando (ou sobretudo quando)
tal reflexão, no crepúsculo da República, graças a Cícero (e ao «fogo de Prometeu» da
filosofia estóica), se mostra capaz de tematizar a dignitas como fundamento da justiça704
(reconduzindo esta a um pro dignitate cuique tribuere705)706…—, mas que se nos imporá já em
pleno a partir do ciclo cristão-medieval — com a perspectivação teológica da communitas (e a
inter-relação liberdade para pecar /dever de resistir ao pecado) a iluminar(em) um desenho
inconfundível da interpessoalidade (e dos absolutos que, sem perder o seu valor, nela se
relativizam)707… —, antes de nos expor às aquisições luminosas (mas também aos riscos de
absolutização do individual) que são introduzidos pela viragem moderno-iluminista (e pelo
auto-projecto da societas e dos direitos humanos). Não sendo preciso acrescentar que a
acentuação dinâmica desta identidade-iterabilidade se cumpre enfim restituindo-nos à nossa
circunstância e aos desafios (já bem nossos conhecidos) que, para uma tal compreensão
jurídica da pessoalidade (enfim livre da necessidade onto-antropológica que a dizia individua
substantia, se não já explicitamente iluminada como uma «aquisição axiológica»708), constituem
— já em plena crise deste paradigma moderno — tanto as celebrações (aparentemente

704 Não nos esqueçamos que Waldron, sem invocar embora Cícero — não certamente por acaso, já

que o seu problema é o dos direitos do homem! —, sustenta a sua recompreensão do alargamento do círculo
da igualdade, propondo-se precisamente mostrar-nos que a dignidade enquanto status é uma ideia
genuinamente jurídica: «Even as the ground of rights, dignity need not be treated in the first instance as a
moral idea. After all it is not just the surface-level rules that are legal in character (as though anything deeper
must be “moral”). I am enough of a Dworkinian to believe that grounding doctrines can be legal too — legal
principles, for example, or legal policies. Law contains, envelops and constitutes these ideas; it doesn’t just
borrow them from morality…» [Waldron, «Dignity, Rank, and Rights:The 2009 Tanner Lectures at UC
Berkeley», disponível (como working paper nº 09-50) na Public Law & Legal Theory Research Paper Series da
New York University School Of Law, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1461220 (extraído em
Fevereiro de 2013), p.3 (agora também publicado, com comentários e respostas, pela Oxford University
Press, 2012).
705 Ver ainda Falcone, «Ius suum cuique tribuere», cit., pp. 158 e ss.
706Ou ainda quando, em formulações não menos pesuasivas (e não menos inspiradas pelo holismo

da kosmopolis estóica), tal experiência do jurídico, já sob o imperium dos principis, estimula Séneca, à luz de uma
universal lex naturae, a explorar o ius humanum comum a escravos e homens livres (e a societas iuris humani que,
enquanto vínculo, o fundamenta). Para uma primeira evocação da stoa nos pensamentos de Cícero e de
Séneca, ver Brad Inwood e Fred d. Miller Jr, «Law in Roman Philosophy», in Miller Jr (ed.), A History of the
Philosophy of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics (vol. 6 de Pattaro, ed., A Treatise of Legal Philosophy and
General Jurisprudence), Dordrecht/ Heidelberg/…, Springer, 2011), pp. 133 e ss., 140-153.
707 Sem prejuízo das tensões que, já no final deste ciclo, dividem as grandes concepções dominicana

e fransciscana, entenda-se, tomista e (neo-)agostiniana, do(s) ius/iura: ver por todos Janet Coleman, «Are
There any Individual Rights or Only duties? On the Limits of Obedience in the Avoidance of Sin according
to Late Medieval and Early Modern Scholars», in V.Mäkinen, P. Korkmann (eds.), Transformations in Medieval
and Early-Modern Rights Discourse, The New Synthese Historical Library, vol. 59, Springer, 2006, pp. 3-36.
708 Castanheira Neves, «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito», cit. no

Digesta, vol. 3º, cit, p. 34.


180

contraditórias) da pluralidade e do continuum prático (dominado por compreensões éticas,


filosóficas ou religiosas da pessoa) quanto os distintos regressos da comunidade (comunidade
também ela, por uma vez, concebida como artefactus)…

3.3.3.4. Levada a sério nesta relação constitutiva com a invenção do homo humanus
sui iuris, a tarefa de ius suum cuique tribuere expande significativamente as suas possibilidades,
na mesma medida no entanto em que, sem paradoxo, as especifica. Mais do que admitir
que o respondere juridicamente relevante nos reconduz invariavelmente a uma experiência
(reflexivamente assimilada) de justeza prática ou de justo concreto (rechtliche und (…) juristische
Richtigkeit709), trata-se, com efeito, muito simplesmnte, de o concentrar numa prática de
identificação-comparação de sujeitos comparáveis. Concentração que nos autoriza a reconstruir
a controvérsia jurídica (enquanto núcleo do mundo prático do direito) partindo de uma
estrutura elementar…

Aquela que podemos identificar distinguindo os seguintes quatro planos: α) a


situação histórico-concreta partilhada; β) o contexto-ordem (e a dogmática integrante que o
estabiliza numa ordem-ordinans de referências, se não já explicitamente num sistema de
fundamentos e critérios); γ) os sujeitos na sua autonomia-diferença, a exprimirem diversas
posições sobre a mesma situação histórico-concreta (posições estas a inscrever e a assumir
no mesmo horizonte de fundamentos e critérios); δ) a condição da tercialidade enquanto
possibilidade-exigência (subjectiva e trans-subjectivamente institucionalizada) de
«tratamento» (ou de assimilação) desta diferença710.

Concentração que também exige que nos dirijamos aos elementos (bem
conhecidos) desta estrutura elementar, evocando um efeito de emergência e de progressão
simultâneas, ou pelo menos, acentuando a reciprocidade que os torna dependentes uns dos
outros (se não já a circularidade que, resistindo a uma integridade pré-determinada dos seus

709 «In Wahrheit hat das Recht seine Realität in etwas anderem als in Gesetzen oder sonistigen
Wörtern und Sätzen(…). In Wahrheit hat das Recht seine Realität im konkreten Fall, der entschieden werden
will. Und was dort, in jedem einzeln Fall, erkannt werden muß, ist letzlich Gerechtigkeit, freilich in der zivilen
Form juristischer Richtigkeit [Nicht: rechtliche Richtigkeit, denn juristische ist eben die rechtswissenschafliche
Richtigkeit]…» (Joachim Lege, «Was Juristen wirklich tun. Jurisprudential Realism», in Brugger, Neumann,
Kirste (Hg.), Rechtsphilosophie im 21. Jahrhundert, cit., p. 208 e nota 7).
710 Já assim nos meus Sumários desenvolvidos de Introdução ao Direito, cit., pp. 3 e ss. (1.1. «A controvérsia

como problema prático mergulhado no mundo»), 7 e ss.(1.2.2.1. «A especificidade-objectividade mundanal-


-social dos problemas jurídicos»).
181

núcleos, impede uma distribuição em compartimentos-etapas). A evocação ou acentuação


deste efeito abre-nos de resto a porta para considerar-discutir uma sequência de corolários
ou de implicações indispensáveis (todos eles enquanto plataformas possíveis de
experimentação da reciprocidade ou circularidade em causa).

(1) Trata-se, desde logo, de fazer depender a comparabilidade juridicamente relevante


de uma condição de parte e da inter-relação que a torna possível (com a consequente
relativização, pela mediação do mundo, dos sujeitos envolvidos711)…

De tal modo que partes, neste sentido amplíssimo, sejam tanto os sujeitos privados
quanto os membros da comunidade, tanto os indivíduos-cidadãos quanto os cidadãos-
beneficiários (inventados por distintos palcos da societas-Estado), mas também e muito
significativamente a própria communitas dos bens jurídicos a preservar e a societas político-
juridicamente institucionalizada (ou os orgãos que a representam)712…

(2) Trata-se depois de associar esta comparabilidade e a condição de parte à exigência


do contraditório (enquanto genaues Hinhören713), reconhecendo em simultâneo que o dever de
assimilação-tratamento da controvérsia se baseia fundamentalmente na especificidade dos
argumentos confrontados ou na diferença que estes constroem — se não na possibilidade,
que é também e sem paradoxo exigibilidade, de mobilizar o contexto dogmático para assimilar
integrantemente uma tal diferença714…

Significa isto decerto admitir que a diferença em causa, evitando o abismo do diferendo
— se não impondo-se-nos como um verdadeiro litígio —, pressupõe como condição de
inteligibilidade aquele contexto-ordem (na sua maior ou menor complexidade) e a dogmática
que o estabiliza — contexto este que, sem prejuízo da pluralidade de respostas que admite
(sem esta não seria concebível a diferença que tudo desencadeia!), não obstante se pressupõe

711«Não haverá juridicidade (…) se não estivermos perante uma relação socialmente objectiva

(constituída pela mediação do mundo e numa sua comungada repartição)…» (Metodologia jurídica, cit., p. 232)
712 Um sentido amplíssimo que se estende a todos os sujeitos, de todas as linhas da tectónica da

ordem jurídica: ver supra, nota 700..


713 «Dieser Anspruch auf Gehör ist das fundamentalste Recht überhaupt. Wem es verwigert wird,

der ist aus der Rechtsgemeinschaft aus geschlossen…» (Joachim Lege, «Was Juristen wirklich tun», cit., p. 207,
nota 2).
714 Para uma consideração da dimensão dogmática da normatividade jurídica, ver Castanheira Neves,

«A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen)», Digesta, vol. 2º, cit.,
pp. 140-145 («A coordenada dogmática»).
182

partilhado (convocado) por todos os sujeitos-tipo, entenda-se pelas partes da controvérsia e


pelo terceiro que (ao assumir-se imparcial) interrompe o seu face-à-face715.
Mas não só. Porque significa ainda e sobretudo reconhecer que a situação de
afirmação-defesa de argumentos distintos (dirigidos a uma situação histórico-real partilhada)
só se nos imporá como jurídica (ou como susceptível de esperar uma resposta jurídica) se não
puder contentar-se com o ponto de chegada da agregação-justaposição (mais ou menos
esclarecida) das posições-argumentos (com as suas distintas conclusion-claims e a trama
argumentativa que as alimenta) — quer se trate ainda de as justificar como expressões
plausíveis da subjectividade (se não style de vie), quer se trate já de as assumir como máscaras
sociais (legitimadas embora pela referência exclusiva a um mundo cultural)716 — … e se antes, e
em contrapartida, invocando um horizonte de integração-assimilação prático-
-normativamente pressuposto, exigir (virtualmente embora) que passemos deste confronto-
-justaposição para um tratamento logrado da diferença — aquele que há-de eliminá-la
enquanto tal, reconduzindo-a a uma solução judicativo-decisória definitiva (e neste sentido a
uma resposta única).

(3) Trata-se ainda de reconduzir o exercício de comparação-tribuere, sem prejuízo


da sua complexidade, à representação, tematização ou esclarecimento autoritários da identidade (da
«condição») das partes — e destas enquanto máscaras ou «formas plásticas» de direitos e de
deveres (le rôle du juriste sera donc (…) d’attribuer à chacun et à chaque chose, la condition juridique qui
lui revient717) —, identidade que se dirá duplamente relativa, por um lado na sua «posição» ou
«condição» bilateralmente atributiva (reciprocamente constitutiva)718, por outro na relação não

715Tercialidade, não seria preciso acrescentar, no sentido que Levinas nos estimula a explorar:
enquanto intervenção-interrupção de um terceiro que supera a assimetria ética de uma responsabilidade pela
responsabilidade e a ausência de reversibilidade que a distingue (consumada na plenitude de um «encontro»
interior com a «proximidade»-alteridade), para antes e em contrapartida submeter os rostos nus (incomparáveis)
às formas plásticas da representação-tematização. A tercialidade que perturba o continuum ético-prático de um
duelo de rostos e que assim mesmo nos obriga a frequentar os lugares que a assunção de uma
responsabilidade puramente ética deve evitar: aqueles lugares a que só poderemos aceder se levarmos a sério as
pretensão de comparação (ou de «medida», se não de «cálculo»), mas também de exposição sistemática e de
determinação sincrónica que o chamado temps du Dit alimenta. Os lugares da responsabilidade jurídica, mas
também os da responsabilidade política e filosófica. Com um dizer que corresponde à sucessão temporal do jogo
das significações enquanto «exposição ao Outro». Com um dito, que é também escrito… e que submete aquele
dizer a uma representação temporalmente reversível, justificada pela simultaneidade de uma identificação! Para
um esclareciemento de todas estas categorias e das suas possibilidades (clarificando o contraponto justiça da
alteridade /justiça da comparabilidade), remeto-me para o meu já citado «O dito do direito e o dizer da justiça.
Diálogos com Levinas e Derrida», cit., pp. 7 e ss., 19-40, 41 e ss.
716 «Não haverá juridicidade (…) se, embora num quadro de mediação social (p.ex., por mediação do

mundo cultural), não se suscitar a dialéctica , a exigir uma resolução, entre uma pretensão de autonomia e
uma exigência comunitária…» (Metodologia jurídica, cit., p. 232).
717 Michel Villey, «Suum jus cuique tribuens», in St. De Francisci, I, 1954, pp. 364 ss., apud Falcone,

«Ius suum cuique tribuere», cit., pp. 136-137, nota 4.


718 Com o alcance que a proposta de Miguel Reale (lendo Petrasisky) — num ponto de chegada onde

encontramos evidentemente as mediações indispensáveis de Del Vecchio e de Cossio — nos permite


reconstituir: Filosofia do direito, 9ª edição revista e actualizada, saraiva, 1982, pp. 681-694 (cap. XLV, «A
183

menos insuperável com a perspectiva do acontecimento-problema. Um corolário tão óbvio


(na sua simplificação) quanto implicado nos anteriores? Admitamos que sim. E que no
entanto, reconduzindo-nos ao núcleo da igualdade-comparabilidade microscopicamente exigida
pelo mundo prático do direito, não menos logradamente nos autoriza a insistir na resposta
(na mediação racional) que este mundo institucionaliza enquanto enfrenta (especifica) os
desafios simultâneos da phronêsis e da humanitas.
Mobilizando ainda as formulações exemplares de Bubner, diríamos que se trata de
concluir que a identidade do projecto prático-cultural do direito só se manifestará em pleno
quando invocarmos (ou reconstituirmos) o seu modo único de experimentação e de
assimilação-tratamento do particular e do novo, entenda-se, o modo como a sua resposta se
permite institucionalizar-garantir que esse particular e esse novo não excluam uma
participação (uma certa participação) no geral ou no velho719. Significa isto decerto ver na
própria controvérsia jurídica um artefactus prático-cultural. Ora um artefactus que se nos
torna explícito não só no (ou a partir do) momento em que conforma-perspectiva uma
resposta ou possibilidade de resposta para o problema geral da vida em comum e para os
conflitos que nele emergem (Recht (…) ist nämlich nur eine von mehreren Möglichkeiten,
gesellschaftliche Konflikte zu lösen720). Que antes e em contrapartida se torna explícito logo no
momento em que reconhece-identifica o problema a que deverá responder (e enquanto o
identifica)…

Não se trata com efeito apenas de conformar-isolar uma dimensão ou um campo de


experimentação do problema da vida em comum (distinguindo-o de outros campos de
determinação-experimentação também culturalmente possíveis), trata-se muito especialmente
de exigir que esta escolha (na sua apreensão selectiva do que deve valer e vincular como
novum e simultaneamente do alcance que deverá ter a pressuposição dogmaticamente
estabilizada que limita este novum) seja nuclearmente protegida como uma perspectiva-prius
irredutível. Decerto porque a interpelação a que se dá resposta não é já aquela que resulta de
uma consideração global (como tal inevitavelmente indiscriminada) da exigência de
hierarquizar as nossas necessidades subjectivas, submetendo os recursos mundanais
disponíveis (mais ou menos escassos) a um processo de «fruição» e de «repartição» —

bilateralidade atributiva do direito»). Cfr. os desenvolvimentos propostos por por Castanheira Neves e
Fernando José Bronze, respectivamente no Curso de Introdução ao Estudo do Direito (O sentido do direito, 140
pp.), cit., pp. 18 e ss. (e nota 18) e nas Lições de Introdução ao Direito, cit., pp. 62 e ss. (3ª lição).
719 «Das Neue das Alte ist, aber auf eine Weise, die nicht nur in der einseitigen Perspective eines dem

Zweifel ausgesetzten und nach Verteidigung suchenden Partners als Verbindung von These und Argument
gilt, sondern in der Perspective aller Teilnehmener diesen Vorzug aufweist…» (Bubner, Dialektik als Topik,
cit., p. 64).
720Joachim Lege, «Was Juristen wirklich tun», cit., p. 207.
184

exigência que, reconduzida ao núcleo duro da condição da sociabilidade (e neste à tensão entre
a pluralidade das necessidades subjectivas e a unicidade dos recursos mundanais), podemos
dizer necessária (comum a todos os horizontes civilizacionais e a todos os ciclos históricos) —,
porque é já e em contrapartida aquela em que a fruição-repartição de tais recursos se nos
expõe de imediato reconhecendo (apenas como problema culturalmente possível) uma certa
intersubjectividade (caracterizada como bilateralidade atributiva e iluminada por uma pretensão de
comparabilidade), e então e assim sempre levando a sério uma tarefa de suum cuique tribuere (e a
validade comunitária que a alimenta)…

É certo que Bubner não nos oferece os recursos que nos permitem explorar essa
especificidade! Dá-nos no entanto (e de modo suficientemente eloquente) a deixa… para
reconhecermos que estão aqui em jogo duas faces insepareáveis (indispensáveis à Lebensform
que nos ocupa), mas também para percebermos que o caminho possível se pode fazer
explorando a sua irredutibilidade (os vínculos e as tensões que nelas reciprocamente se
manifestam). A que faces me refiro?
Por um lado àquela face que se nos impõe quando percebemos, como que pela
negativa, que os referidos particular e novo têm que ser protegidos de um tratamento-
assimilação que veja neles um mero impulso para um percurso epistemologicamente
possível ou pragmático-funcionalmente contextualizado… — e que como tal os confine a
uma etapa ou os dilua num momento (entre outras etapas ou momentos) do processo
reflexivo ou deliberativo721 …— ou já pela positiva, quando assumimos que um tal particular e
um tal novo têm que ser protegidos no seu núcleo problemático intersubjectivo e na sua
dinâmica de contraditório (se não já na bilateralidade atributiva direitos/deveres que os
especifica)… durante todo o percurso da realização — mantendo-se o núcleo que geram
como uma perspectiva-prius intocável, até que o juízo-julgamento do terceiro imparcial se
conclua, apaziguando a controvérsia722!

721 Considerei este ponto já em «Phronêsis und Tertialität: Die Behandlung des Neuen als Kern des

“geworfenen Entwurfs” des Rechts», in Lothar Philipps und Rainhard Bengez (Hrg.), Von der Spezifikation
zum Schluss: Rhetorisches, topisches und plausibles Schließen in Normen- und Regelsystemen, Nomos Verlag, 2013 (no
prelo), pp. 37 e ss., 42-44 (2.1). Para estabelecer desenvolvidamente o confronto com o tratamento
epistemológico assumido pelo teleologismo tecnológico de Hans Albert, ver também «Is Law’s Practical-Cultural
Project Condemned To Fail The Test Of “Contextual Congruence”? A Dialogue With Hans Albert’s Social
Engineering», cit., passim.
722 Para um desenvolvimento (centrado no problema da prova), remeto-me para o meu ensaio

«Evidence (or Proof?) as Law´s Gaping Wound: a Persistent False Aporia?», Boletim da Faculdade de Direito, vol.
LXXXVIII tomo 1 (2012), Coimbra, pp. 65-89. Sem esquecer que o contraponto singularidade irrepetível
/concretude judicativo-analógica nos abre a oportunidade de explorar a proposta metodonomológica de Fernando José
Bronze: começando precisamente por «Pj → Jd. A equação metodonomológica (as incógnitas que articula e o
modo como se resolve)» [Analogias, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 311 e ss., 372-391 (10.-13)] e
«Praxis, problema, nomos (um olhar oblíquo sobre a respectiva intersecção)» [Ibidem, pp.233 e ss., 244-253 (o
diálogo com Schapp), 257-263 (8)].
185

Por outro lado àquela face que identificamos quando reconhecemos que este
problema-controvérsia exige a interposição lograda de um terceiro (e a experiência de
tercialidade que o instutucionaliza), devendo enquanto tal superar a singularidade e
irrepetibilidade que o radicalizariam como um incomparável (e que reduziriam qualquer
referência contextual a um exercício ilegítimo de violência)… para antes e em contrapartida
723
se nos expor iluminado como um (caso) concreto judicativo-analogicamente comparável —
comparabilidade que exigirá a mediação (a autoridade-potestas) de um terceiro sujeito… mas que
exigirá ainda e muito especialmente que a decisão deste terceiro se nos apresente com a
plausibilidade racional de um juízo-julgamento (irredutível a uma mera decisão)… e então e
assim sustentada pela referência fundadora, racionalmente autónoma, a um tertium
comparationis vigente ou ao sistema pluridimensional de fundamentos e critérios que
assegura este tertium (um sistema que possa por sua vez corresponder à experiência de
estabilização-especificação, permanentemente aberta, de uma validade comunitária)724

(4) Trata-se por fim de fortalecer o círculo, reconhecendo que a estrutura básica da
controvérsia (ou a perspectiva que esta estrutura garante) antecipa-reflecte in nuce (nem por
isso menos claramente) a compreensão jurídica da pessoalidade725 ou a experiência
construtiva das suas fronteiras (fronteiras cuja tematização hoje se nos impõe como
absolutamente indispensável).
Há aqui duas notas a conjugar (também elas como explicitações de elementos já
anteriormente acentuados).
(a) A primeira nota diz respeito à posição dos sujeitos-partes, na sua relação com a
situação-acontecimento [supra, p. 181, δ)] e na sua relação com o contexto-ordem
dogmaticamente pressuposto [ibidem, β)]. Se vimos atrás que a exigência de assimilação-
tratamento da controvérsia se baseia na especificidade da diferença que os argumentos
confrontados constroem, dir-se-ia redundante acrescentar que a condição por excelência da
identidade das formas-máscaras (e destas enquanto aretefactos prático-culturais) repousa por
sua vez na possibilidade-legitimidade (que é também oportunidade instutucionalmente
consagrada) de cada um dos sujeitos envolvidos, referindo-se à mesma situação concreta e

723 Ver «O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e Derrida», cit., cit., pp.47-56 («A
procura da humanitas que responsabiliza o direito»).
724 Remeto-me para a reconstituição da compreensão jurisprudencialista do sistema que desenvolvi

em «Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», cit., pp. 156-174
(mas também em «Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em espelho sobre a concepção
jurisprudencialista do sistema», cit. passim).
725 Já assim (esquematicamente) em «Law’s Cultural Project and the Claim to Universality or the

Equivocalities of a Familiar Debate», cit., pp. 498-499 e em «Phronêsis und Tertialität: Die Behandlung des
Neuen als Kern des “geworfenen Entwurfs” des Rechts», cit., pp. 53-54.
186

convocando o mesmo contexto-ordem dogmaticamente vigente, construir-manifestar-


sustentar compreensões nuclearmente distintas das máscaras em causa e dos vínculos que
reciprocamente as relacionam(-constituem). A observação é menos trivial do que parece.
Nesta possibilidade-oportunidade e na atenção que ela institucionaliza (abrindo um processo
de assimilação-tratamento e submetendo este a uma dinâmica de contraditório) conjugam-
se, com efeito, duas dimensões imprescindíveis, dimensões que tornam a experiência do
problema-controvérsia e o reconhecimento do sujeito-pessoa como que geneticamente
indissociáveis — ao ponto porventura de podermos dizer que é esta indissociabilidade que
nos fornece a chave para distinguirmos (demarcarmos) aquela experiência e este
reconhecimento na sua estrita relevância jurídica (para identificarmos o sentido e os limites que
o mundo prático do direito lhes atribui). A que dimensões me refiro? Por um lado a uma
pragmática de respeito pelos sujeitos-partes que se traduz na exigência de ouvir as posições
defendidas e os argumentos que as racionalizam, por outro lado a um procedimento de
recepção destes argumentos que, ao tematizá-los na sua reversibilidade (-
universalizabilidade) — ao reconstitui-los (filtrá-los) na sua melhor luz! —, assegura as
condições que, sem prejuízo das suas diferenças e das tensões que estas geram, nos
permitem levá-los a sério na univocidade ou promessa de univocidade das suas referências,
como experimentações (interpretações) plausíveis de um contexto-ordem (e da praxis que
dogmaticamente o estabiliza) — contexto que, como sabemos, deverá também assegurar o
tertium comparationis indispensável a um tratamento judicativo trans-subjectivamente logrado
(e às palavras últimas que este assegura). Impondo-se-nos acrescentar que, se é certo que
nesta acentuação inicial tal respeito nos aparece mais próximo da dignity as rank or status —
tal como a vemos exemplarmente explorada (enquanto compreensão originária e
inerentemente jurídica!) por Jeremy Waldron (dignity has to function as a normative idea: it is the
idea of a certain status that ought to be accredited to all persons and taken seriously in the way they are
ruled726)727 — do que da Menschenwürde kantiana (que o mesmo Waldron associa à construção
moral de uma dignity as value728), não é menos certo que aquela especificação do status,

726 Waldron, «How Law Protects Dignity: the 2011 David Williams Lecture at the University of

Cambridge», cit., p. 3.
727 «It is probably not a good idea to treat dignity as a moral conception in the first instance or

assume that a philosophical explication of dignity must begin as moral philosophy. Equally we should not
assume that a legal analysis of dignity is just a list of texts and precedents, in national and international law, in
which the word .dignity. appears. There is such a thing as legal philosophy, and it is a jurisprudence of dignity,
not a hornbook analysis that I will be pursuing in these lectures…» (Waldron, «Dignity, Rank, and Rights:The
2009 Tanner Lectures at UC Berkeley», cit., p. 3)
728 Sem prejuízo de se reconhecer que isto é assim em pleno no que diz respeito à Grundlegung zur

Metaphysic der Sitten (1785) e à Kritik der praktischen Vernunft (1788)… mas não em relação à Tugendlehre de Die
Metaphysik der Sitten (1797-1798): «I am using dignity as a status idea rather than a value idea (as it is used by
Kant, for example, in the Groundwork of the Metaphysics of Morals, where it refers to a certain kind of precious
187

enquanto compreensão da dignidade explicitamente vinculada ao princípio audiatur et altera


pars (à presença autónoma e responsável de um sujeito que quer ser ouvido pela outra parte
e pelo terceiro imparcial729), nos oferece já em si mesma — porventura apenas in nuce (mas
impondo uma dinâmica constitutiva insuperável)! — uma (se não a) condição fundamental
para podermos pensar (e experimentar) a igualdade no seu sentido intrinsecamente
jurídico730. Uma condição que se tornará ainda mais luminosa se a reforçarmos com as
exigências de reversibilidade-univociodade invocadas pela segunda dimensão que
autonomizámos (relativa ao contexto-ordem)… e, mais ainda, se admitirmos que uma tal
dimensão integra (como sua componente indispensável), o que, com Fuller (ou com Fuller
lido por Waldron731), poderíamos dizer uma celebração-reconhecimento da dignity of self-
-application (to embark on the enterprise of subjecting human conduct to the governance of rules involves of
necessity a commitment to the view that man is, or can become, a responsible agent, capable of understanding
and following rules, and answerable for his defaults732)733. Reunidos (concertados) estes elementos,
a estrutura da controvérsia passa, com efeito, a expor-se-nos como a institucionalização
indispensável de uma reserva de possibilidades de autodeterminação (igualitaria e
responsabilizantemente) distribuídas pelos sujeitos-partes. O que nos reconduz ao núcleo

and non-fungible value). Twelve years after the publication of the Groundwork, Kant wrote again about dignity
in “The Doctrine of Virtue” which is the second part of his late work, The Metaphysics of Morals, and there he
spoke of it much more as a matter of status: he talks of the respect which a person can “exact” as a human
being from every other man, and that respect is no longer simply the quivering awe excited in a person by his
own moral capacity (which is what you find in the Second Critique, for example) but a genuine making-room
for another on a basis of sure-footed equality and acting toward another as though he or she too were one of
the ultimate ends to be taken into account. The later discussion preserves the elementof infinite value but
presents it much more in the light of this status idea…» (Waldron, «How Law Protects Dignity: the 2011
David Williams Lecture at the University of Cambridge», cit., p.3)
729 «When you hear my definition, the sense in which law inherently promotes dignity begins to

become apparent. For it is easy to get the impression from the way I set this out of a person appearing in
their own behalf before a public tribunal (say) and demanding to be listened to,demanding indeed that their
view of things be taken account of before any public decision is made (for example, any public decision about
what is to be done with them). This is evidently a legal idea, and it is arguably noncontingently so—in the
sense that it is not a matter of the law-maker having just decided to promote dignity (…).Dignity seems to
hook up in obvious ways with juridical ideas about hearings and due process and status to sue…» (Ibidem,
pp. 4-5).
730 Sentido precisamente distinto daqueles (embora não decerto indiferente àqueles) que no

environment desta procura (situada) do direito devemos originaria e intrinsecamente atribuir a outras arenas
discursivas (morais, éticas, políticas, filosóficas, religiosas).
731 Como é sabido, com o contributo indispensável de Henry Hart e Albert Sacks: ver Waldron,

«Dignity, Rank, and Rights:The 2009 Tanner Lectures at UC Berkeley», cit, pp. 39 e ss. («Fuller and Internal
Connections Between Law and Dignity»), sem esquecer a síntese proposta em «How Law Protects Dignity:
the 2011 David Williams Lecture at the University of Cambridge», cit., pp. 6-10 («Fuller and the Dignity of
Self-Application»). A acentuação de Fuller corresponde à importante reflexão sobre the view of man implicit in
legal morality (The Morality of Law, cit., pp. 162-167).
732 Ibidem, p. 162.
733 «Self-application is an extraordinarily important feature of the way legal systems operate. They

work by using, rather than short-circuiting, the agency of ordinary human individuals. They count on people’s
capacities for practical understanding, for self-control, for self-monitoring and modulation of their own
behavior in relation to norms that they can grasp and understand…» (Waldron, «How Law Protects Dignity:
the 2011 David Williams Lecture at the University of Cambridge», cit., p. 7)
188

de uma exigência de igualdade-comparabilidade microscopicamente reconhecível… e com esta


exigência à identificação (conformadora) de uma das polaridades de sentido constitutivas
da pessoa, na sua inteligibilidade jurídica — precisamente aquela que Castanheira Neves nos
ensina a reconhecer, ao autonomizar o pólo do suum ou do proprium e ao fazê-lo
corresponder às explicitações normativas dos princípios suprapositivos da igualdade e da
participação. Sem esquecermos de resto que a acentuação da pragmática (se não ética) da
reversibilidade e das pretensões (tanto de universalidade quanto de contextualização
dogmática734) que lhe estão associadas — exigindo (num plano já não puramente
intersubjectivo mas trans-subjectivo) que as «diferenças» («tanto de atribuição beneficiadora
como de imputação responsabilizante») «sejam apenas de sentido situacionalmente
reversível»735 (para que quem invoca a seu favor um argumento ou ponto de vista, apoiado
num determinado warrant, esteja em condições de aceitar o mesmo argumento, se estiver na
posição do destinatário!) — nos obrigam enfim a dar atenção à dialéctica suum /commune ou
ao que, no referido pólo do suum, nos abre decisivamente para a antecipação (circularmente
constitutiva) desta dialéctica.
(b) É já nuclearmente com o princípio suprapositivo da responsabilidade (e o pólo do
commune) que tem a ver a segunda nota. Trata-se, com efeito, de insistir na estrutura da
bilateralidade atributiva e nas formas-máscaras que esta constitui e relaciona —
concentradas no direito a (se não na dignitas de) exigir que a mera justaposição das posições
em confronto seja trans-subjectivamente comparada e assimilada (to have a right in law is to
possess the dignity of a recognized claimant entitled to push his case before us and demand that it be
considered736) —, mas agora com a intenção de reconhecer uma primeira (fundamental,
insuperável) experiência dos limites do mundo prático do direito. Ora uma experiência que
nos aparecerá especialmente persuasiva na sua pretensão de demarcação se o contraponto
negativo se fizer invocando a responsabilidade assimétrica, infinita e incondicional associada às
éticas da alteridade-singularidade e o princípio da heteronomia que as ilumina — aquele que
nos estimula a procurar o humano (as dimensões-«probabilidades» humanas do eu) na
734 Entenda-se, de tercialidade, num dos seus sentidos possíveis.
735 Castanheira Neves, «O direito interrogado pelo tempo presente…», cit., p. 65.
736 Waldron, «How Law Protects Dignity: the 2011 David Williams Lecture at the University of

Cambridge», p. 5. Ver também (sempre em diálogo com Joel Feinberg) «Dignity, Rank, and Rights:The 2009
Tanner Lectures at UC Berkeley», cit., p. 38 («Right-bearer’s dignity»). Uma das possibilidades a explorar pelo
auditório modelo (a partir dos textos de Feinberg) — e no âmbito dos problemas sucitados pelo que dissemos o
segundo equívoco (Tempo I, 1.) — poderia ser de resto a possibilidade de se falar de direitos morais. Ver muito
especialmente «In defense of Moral Rights: their Bare Existence» (in Freedom and Fulfillment. Philosophical Essays,
Princeton, Princeton University Press, 1992, pp. 197-219), no qual Feinberg, convocando o binómio que bem
conhecemos (moralidade convencional/ moralidade crítica) distingue exemplarmente direitos morais convencionais,
autênticos direitos morais (assumidos pela «verdadeira moral») e direitos juridicos (Ibidem, p. 200)! Ver ainda Id., «The
Nature and Value of Rights», Journal of Value Inquiry, 4 (4), 1970, pp. 243-257 e «The Social Importance of
Moral Rights», Philosophical Perspectives, 6, 1992, pp. 175-198.
189

«realidade excessiva» (tão estranha quanto vulnerável) do Rosto do Outro-Autrui e da


expiação pelo Outro (l’absolument Autre, l'Etranger qui trouble le chez soi) e, graças ao caminho
que esta abre, na irredutibilidade constitutiva de uma «relação ética» pura (rapport non-violent à
l’infini comme infiniment-autre, [rapport] à autrui, passage et sortie vers l’autre737). Decerto porque os
limites em causa se experimentam rompendo com o continuum de responsabilidade a que
um tal princípio nos condena: assumindo a mediação irredutível da intersubjectividade
(mundano-social) e com esta (e com a relativização dos sujeitos que esta justifica) também
um sentido específico de comunidade. Um sentido que só a intentio de uma responsabilidade
finita e delimitada, sustentada nas exigências que os princípios (suprapositivos) do mínimo e da
formalização impõem738 estará afinal em condições de institucionalizar…

Sequência. Chegados a este ponto, estamos em condições de formular as perguntas


que abrem a etapa VI. O que significa (dever) abandonar o plano fechado concentrado sobre
as etapas IV e V e (poder) regressar à exposição inicial (supra, Tempo I, 7.)…

737 A fórmula é já de Derrida, no primeiro grande estudo que consagra a Levinas (a partir do qual
passa também ele próprio a assimilar o contraponto Dit / Dire): Derrida «Violence et métaphysique», L’écriture
et la différence, cit., p. 123.
738 Com o alcance que a proposta de Castanheira Neves nos ensina a reconhecer: ver muito

especialmente “O princípio da legalidade criminal”, Digesta , vol. 1º, cit., pp. 415-416. Trata-se muito
claramente de acentuar o ‘discretum normativo’ que (rompendo com um continuum, se não já com uma
hipertofia de responsabilidade) deverá corresponder à institucionalização da responsabilidade comunitária (ou
às implicações negativas do commune que esta justifica)… e então e assim de reconhecer que será
imprescindível impor um limite aos limites. “Limite dos limites que (…) haverá de ser assumido em dois planos
e se projectará em dois (…) princípios. No plano material ou quoad substantiam, há que reconhecer um princípio
do mínimo, pois só serão legítimos os impedimentos de realização que se reconheçam como indispensáveis
condições de realização de todos, i.é, que sejam condição necessária tanto da coexistência como da
convivência comunitárias para a realização pessoal de cada um. No plano formal ou quoad modum, não há
menos a reconhecer um princípio de formalização, ou seja, a exigência de uma institucionalização formal dos
limites materialmente intencionados em obediência ao princípio do mínimo, porquanto sem essa
institucionalização formal — com as características normativas que ela, enquanto tal, implica: a definição de
um esquema jurídico susceptível de pré-demarcar de um modo objectivamente controlável o seu concreto
cumprimento — abrir-se-ia a possibilidade de um continuum de impedimento que não só frustraria o princípio
do mínimo como tenderia igualmente à (…) hipertrofia da responsabilidade…” (Ibidem, p. 416).
190
191

SEGUNDA PARTE
Um itinerário possível

Sumário÷

Tema: O DIREITO COMO MUNDO PRÁTICO AUTÓNOMO:

“EQUÍVOCOS” E POSSIBILIDADES

Etapa I
A «sobreposição» de dois diagnósticos
e a antecipação de um primeiro equívoco homogeneizador

(A) Um cruzamento-sobreposição de duas grandes conjunturas de crise (ditas crise do direito e


crise da filosofia do direito), acompanhado de uma atenção especial ao chamado debate das
alternativas (ao direito/ no direito, no interior do horizonte civilizacional europeu/ para além
deste horizonte).
(A)’ A crise do direito
1. Os sinais da crise imediatamente reconhecíveis (dimensões sociológica e funcional).
1.1. A inadequação normativa e a ineficácia (se não exaustão) institucional.
1.1.1. O confronto permanente com problemas novos a condenar-nos ao desafio
de uma «questão prática global» (Derrida) e à contingência decisória das prescrições que a
assimilam (se não a um processo interminável de politicização).
1.1.2. A exaustão institucional reconhecida nos múltiplos sintomas da «crise da
justiça».
1.1.3. A exclusão do jurídico (já para além da funcionalização pragmático-
-instrumental) determinada pela rise of the network society (Castells).
1.1.4. O panjuridismo da indiferença regulativa (ou da impossibilidade de pensar os
limites da juridicidade).

÷ Tendo em atenção a exposição-«descrição» deste itinerário proposta na Primeira Parte, o presente

sumário será deliberadamente contido. Os desequilíbrios de (maior ou menor) desenvolvimento que mani-
festa são de resto também condicionados por essa exposição prévia, no sentido de que um maior desenvol-
vimento só se justifica se a epígrafe em causa não tiver sido suficientemente identificada supra. É o que
acontece precisamente com diversos elementos temáticos da etapa I.
192

1.2. Os «fluxos» contrários (se não contraditórios) dos fenómenos de inflação e de


retracção regulatórias.
1.2.1. O desafio dos programas finais e da teoria da legislação que lhe corresponde.
1.2.2. Consideração exemplar de alguns processos de retracção: o alargamento
social do campo do non-droit, as estratégias de deslegalização, o sentido de um (pós-coasiano)
market-mimicking, o crescimento dos processos «alternativos» de assimilação dos conflitos
(negociação, mediação, arbitragem).

Proposta de excurso: A transação mediada e a controvérsia prática (duas compreensões


inconfundíveis do problema-prius e da sua relevância).

Alguns planos possíveis de exploração deste confronto, confiados a perspectivas


(ditas) internas: (a) a investigação jurídico-metodológica dos tipos de racionalidade envolvidos
e dos discursos que lhe correspondem (controvérsia prática versus transação mediada, tercialidade
versus mediação, dialéctica sistema/problema versus consenso a posteriori, racionalidade material versus
racionalidade procedimental, juízo decisório versus acordo), associada a uma consideração plural dos
modelos de compreensão do modus operandi do juiz e a um tratamento discursivo dos três
pilares da alternative dispute resolution [ADR] (negociação, mediação, arbitragem); (b) a discussão (no
plano da teoria e da filosofia do direito) tanto da condição da tercialidade associada ao sentido
de um direito autónomo (ausente na transacção mediada) quanto da expansão de um direito
reflexivo (vinculado ao quadro institucional de uma reprocessualização pós-instrumental) — e
esta discussão projectada no problema-limite das alternativas ao direito; (c) a exploração
dogmática dos limites das «resoluções alternativas», pensados a partir da especificidade
normativa dos diversos domínios jurídicos — o problema dos critérios pressupostos pelo
juízo-julgamento e pela arbitragem e das diversas experiências constitutivas que os sustentam
(nas suas matrizes legislativa, consuetudinária e jurisdicional), a experiência do direito
privado concentrada no problema das condições adjectivas respectivamente do juízo
decisório e da transação mediada, a arbitragem comercial internacional e a nova lex mercatoria,
o problema das transações em direito penal, os distintos relevos normativo-dogmáticos da
desjurisdicionalização, as diversas experiências de negociação neo-corporativista no direito do
trabalho e no direito do consumo, o contraponto entre a opção ex ante pela arbitragem e a
sua prescrição autoritária, o problema-limite da constituição reflexiva ou de organização.

1.3. A experiência radicalmente assumida do pluralismo e da fragmentação a


condenar-nos a uma contingência decisória (ou pelo menos aos processos de aprendizagem
de uma determinação consensual).
193

1.4. Os «fluxos» contrários da celebração da diferença e da globalização, do teorema


da heterogeneidade e da homogeneização. Os fenómenos do pluralismo jurídico
transnacional e a sua teorização (Theorie transnationaler Rechtsprozesse). A experiência limite da
ruptura no horizonte da integração (o furor impius do 11 de Setembro) a colocar-nos perante
os problemas da identidade civilizacional, da universalidade e da tolerância, se não perante o
uníssono contra todos os possíveis «intérpretes» ou «defensores do inumano» (Fürsprecher
des Inhumanen).
[Proposta de excurso: uma leitura comentada de Giovanna Borradori, Philosophy in a
Time of Terror: Dialogues with Jurgen Habermas and Jacques Derrida (2003) ]
2. Alusão a algumas mediações «interpretativas» (enquanto tentativas de organizar
estes sinais) [cada uma delas a corresponder à possibilidade de um excurso]: a hipertrofia
colonizadora do «sistema» (Habermas), a heteronomia da «sociedade de risco» e a
reconstituição das exigências de uma «Europa cosmopolita» (Beck), o institucionalismo das
colisões e a inevitabilidade de um «direito reflexivo» (Wiethölter, Teubner, Fischer-Leskano).
3. A crise no plano prático-cultural.
3.1. A procura da humanitas a confrontar-se com uma experiência radical de pluralidade
e de diferença (facticamente reconhecida e prescritivamente celebrada) e com a «crise do
sujeito» — a crise de um sujeito «descentrado», ferido na sua autonomia pelas forças
indomináveis do poder (Nietzsche, Foucault, Ewald), do inconsciente (Freud, Lacan,
Legendre, Goodrich, Milovanovic) e da linguagem (Saussure, Wittgenstein, Lyotard), mas
não menos privado da sua responsabilidade pela mediação totalizante da societas (e pelo
«processo sistemicamente dirigido da globalização») … e então e assim também fragmentado
na sua unidade (identidade e ipseidade) pelo jogo implacável das diferenças e dos diferendos.
Os diagnósticos exemplares de Welsch e de Honneth, a confrontarem-nos com as
possibilidades-desafios respectivamente da nossa modernidade pós-moderna e das comunidades pós-
tradicionais.
3.2. A exigência de pensar contra todos os «humanismos conhecidos» (Heidegger,
Derrida). Estará a procura da humanitas que alimenta o percurso interno do direito
insuperavelmente vinculada às (e neste sentido também comprometida com as)
possibilidades do humanismo da presença? O desafio de pensar contra o humanismo (e então
também assim contra os valores) sem rejeitar as tentativas de interpretação jurídica do
homem como pessoa (e a pluralidade contextual que justifica a diversidade destas
tentativas): apenas denunciando as raízes ou as «pressuposições» comuns que impedem
essas tentativas de experimentar a autêntica dignidade do homem (ou o que se pode hoje
194

exigir dessa experiência). Um caminho que se dirige à procura do homo humanus


autonomizada (isolada) pelo direito — e à intenção de justiça que a orienta —
reconhecendo a consumação-cristalização (historicamente insuperável) dos sentidos ou dos
contextos de significação que nela(s) se cumprem… e assim também a impossibilidade de
esta procura e de esta exigência contribuirem enquanto tais (na sua plena intencionalidade
constitutiva) para a experiência de demarcação (humano/ inumano) que a nossa circunstância
presente exige.

(A)’’ Breve alusão à crise da filosofia do direito (Castanheira Neves): uma alusão brevíssima,
preocupada apenas em fornecer o diagnóstico global indispensável.
1. A consumação prometida pelo jusracionalismo moderno-iluminista.
2. A superação assumida pelos discursos do século XIX: de Hegel à nova filosofia do
direito positivo (Merkel, Bergbohm). A herança dos diferentes historicismos?
3. A substituição esboçada pelos objectivismos empíricos psicológico e sociológico (e
pelo pragmatismo finalista que os assimila).
4. Duas tentativas de recuperação (a neo-kantiana e a neo-jusnaturalista latissimo
sensu), separadas pelo «parêntesis» trágico do Führerstaat (e da teoria do direito nacional-
socialista). Duas experiências fracassadas?
5. Os múltiplos caminhos da filosofia analítica: brevíssima alusão remissiva à
herança de Hart.
6. A recuperação da reflexão dirigida ao problema do sentido do direito (e à
especificação da validade comunitária) que se cumpre internamente através da reflexão
metodológica (e nos limites desta): uma reflexão sobre o sentido que privilegia o problema
da racionalidade. Exploração brevíssima de três condições-desafios.
6.1. A reabilitação da filosofia prática
6.2. Uma recompreensão do problema da metodologia jurídica que veja na reflexão
que esta permite uma dimensão constitutiva do próprio sentido da juridicidade. A
superação do sentido moderno do discurso do(s) método(s), mas também do contraponto-cisão
entre um a priori de validade (ou um a priori cognitiva ou dogmaticamente determinado) e o
processo posterior de realização.
6.3. A assunção-revisão de um teleologismo de fins e valores (irredutível à imanência
pragmático-instrumental dos fins).
195

7. A exigência de «radicalizar» esta reflexão sobre o sentido: uma recuperação


da filosofia do direito determinada por patamares reflexivos exteriores e pelas possibilidades que
estes oferecem. Uma alusão quase sempre remissiva.
7.1. A recompreensão da autonomia do sistema jurídico justificada pelo funciona-
lismo autopoiético.
7.2. A experimentação da historicidade constitutiva (e da relação finitude / transfinitude)
assumida pela hermenêutica filosófica.
7.3. A discussão da identidade colectiva assumida pelo debate filosófico-político
das teorias da justiça.
7.4. A exigência de um «novo» homo humanus assumida pela desconstrução como filosofia.

(B) As práticas e os discursos jurídicos confrontados com os sinais da pluralidade: um


diagnóstico possível organizado em quatro patamares.
1. Os sinais de pluralidade na experiência da reflexão académica e nas «situações
institucionais» (e modos de fazer sentido) que a cumprem : «sinais» que, confrontando-nos
com a impossibilidade de uma linguagem única, identificam esta com a impossibilidade de
uma concepção dominante (se não já com o processo de superação de um certo
paradigma). Dois planos de interpelação exemplares: aquele que identifica os «sinais» de
perda de unidade (e os problemas correspondentes) «ouvindo» — mobilizando, na sua
imediata inteligibilidade semântica (mas também na sua integridade) — cada um dos
testemunhos que a academic house (tanto no plano dogmático como nas diversas instâncias
meta-normativas), está (estará) em condições de produzir; e aquele que reconhece os sinais da
fragmentação-divisão (e os rastos com que estes nos ferem) considerando exclusivamente a
pragmática destes testemunhos — ou esta enquanto pressupõe, mas também enquanto
reproduz, a experiência inconfundível de um confronto (entre testemunhos rivais).
2. Os sinais de pluralidade determinados pela experiência e pela reconstituição
reflectida das comunidades restritas dos juízes, advogados e juristas académicos: o grupo
semiótico (Landowski, Jackson) enquanto «sociolecto»-território (impondo «correspondên-
cias» e «semelhanças» e outras tantas tipificações narrativas), a comunidade interpretativa (Fish)
enquanto acevo de cânones-critérios de «correcção profissional.
3. Os sinais de pluralidade impostos pelas hetero-referências — com arenas propulsoras
que poderão ir da política à filosofia, passando pela economia, pela ciência e pela ética (e
por uma ética que, ora submetida a um esforço de «trivialização» e «tecnicização», ora
ocupada com a reinvenção de um novo horizonte de sentido, se impõe cada vez mais como
uma alternativa ao direito): as hetero-referências que se impõem às decisões institucionalizadas
196

nas periferias (do legislador e da autonomia privada), mas também aquelas que condenam a
dogmática (se não todo o Juristenrecht) a assimilar teleologias alheias (acompanhando assim
um direito que, no seu ímpeto regulatório, se pulveriza em muitos direitos), ou ainda
aquelas que (independentemente dos movimentos académicos que as mobilizam) se
expõem nas práticas dos movimentos sociais e nas identidades narrativas que as sustentam
(o género, a raça, a orientação sexual, a militância religiosa, a construção de uma identidade
ambientalista).
4. Os sinais de pluralidade assumidos pelo diálogo intercivilizacional, confrontando
pelo menos dois grandes tipos de respostas ao problema da vida em comum: aquelas que
identificam o direito apostando na possibilidade de separação-Isolierung de um certo mundo
prático e aquelas que defendem um continuum holístico (imune àquela pretensão de
autonomia), vendo no direito a institucionalização coercitiva deste.

(C) O problema da autonomia do direito e do pensamento jurídico à luz destes


diagnósticos.
1. Um efeito (paradoxal?) de homogeneização, a reconduzir a pretensão de
autonomia (e da procura da perspectiva interna) à sua inteligibilidade formalista.

Proposta de excurso: O diferendo em torno da expressão formalismo. Faz hoje ainda


sentido a caracterização de Kantorowicz (die formalistische Richtung versus die finalistische
Richtung in der Rechtswissenschaft)? E que mapa ou mapas do pensamento jurísdico
contemporâneo estarão em condições de lhe corresponder?

Uma sucessão de binómios: formalismo versus finalismo, formalismo versus realismo,


formalismo versus instrumentalismo (e) ou pragmatismo, formalismos juridicistas versus discursos da «área
aberta», formalismos versus alternativas «humanistas». Três interpelações do formalismo que
perturbam claramente os equilíbrios neles assumidos e os mapas que estes nos autorizam a
desenhar: (a) a proposta que responsabiliza o super-theorist Unger e o seu manifesto «The
Critical Legal Studies Movement» (conferindo ao território formalista a sua extensão máxima,
que poderá ir de Langdell a Dworkin e a Posner… reunindo assim todos aqueles que
rejeitam a divisa law as politics!); (b) a proposta de Weinrib, a assumir, agora pela positiva, uma
compreensão do formalismo que o vincula à procura de um conhecimento puramente jurídico
do direito (traduzido num luminoso equilíbrio lógica /tempo, sistema /história) e que então e
assim, não menos inequivocamente, o associa a um modelo alternativo de demarcação, capaz
de «tornar explícita» a inteligibilidade racional e a força normativa «latente» nos materiais
197

jurídicos, se não de reconstitutir a juridicidade intrínseca (the juridical mode of intelligibility) de


uma certa prática; (c) a análise de Fish, a celebrar o «êxito» das «situações institucionais» que
as práticas do direito vão construindo e a associar o formalismo à autonomia-distinctiveness, se
não felicidade (pragmaticamente inabalável), do jogo (do desempenho) que estas prosseguem.

2. A exigência de problematizar esta homogeneização. A possibilidade de enquadrar


tal problematização mobilizando um «mapa» do discurso jurídico que convoque três planos
de organização complementares (com intenções compreensivas e soluções de
enquadramento distintas) e que admita simultaneamente que estes planos possam dirigir-se-
nos — e dirigir-se aos interlocutores e aos problemas que distribuem e assimilam —
respectivamente como um filtro de relevância ou grelha principal e como duas grelhas de
relevância complementares. A grelha principal: a proposta de diferenciação (e de «explicitação
sistemática») das perspectivas (se não «paradigmas») de compreensão do direito com que
Castanheira Neves tem procurado corresponder ao desafio de uma teoria do direito crítico-
-reflexiva e à determinação compreensiva que esta exige, distinguindo normativismo,
funcionalismo e jurisprudencialismo, mas também distribuindo o segundo pelas modalidades
principais do funcionalismo material e do funcionalismo sistémico. A primeira grelha
complementar: aquela que mobiliza o contraponto discursos da sociedade / discursos da
comunidade (societas / communitas). A segunda grelha complementar: aquela que contrapõe
discursos juridistas ou juridicistas a discursos da área aberta.

Etapa II
Três distintas compreensões da pretensão de autonomia

1. Uma demarcação rigorosa da concepção formalista da autonomia: a


compreensão normativista (nas suas diferentes versões).
1.1. Uma brevíssima reconstituição do corpus histórico-cultural do normativismo,
concentrada no jusracionalismo moderno e no auto-projecto regulativo de um homem
desvinculado (composto pelas dimensões irredutíveis dos interesses, da liberdade-voluntas e
da ratio), mas também no problema teleológico-político da invenção da societas.
1.2. A construção-especificação da autonomia do direito no processo de
determinação da norma-ratio: a emancipação de um puro dever-ser, conjugada com a desco-
berta da universalidade racional de um programa condicional e com a assunção de uma
textualidade global plenamente constitutiva. Os diferentes elementos da veritas da norma.
198

Uma atenção especial à categoria de inteligibilidade sistema. A unidade por coerência analí-
tico-categorial do normativismo horizontal e a unidade por consistência sintáctico-arqui-
tectónica do normativismo vertical.
1.3. A invenção da autonomia epistemológica do pensamento jurídico: da ciência
dogmática do século XIX à teoria pura de Kelsen, passando pelos desafios-feridas da allgemeine
Rechtslehre.
Proposta de excurso: os sinais de sobrevivência do juridismo formalista nas propostas de
Pattaro, B. S. Jackson, MacCormick e Vermeule (sob o fogo de exigências exteriores,
determinadas pelas heranças heterogéneas dos realismos escandinavo e norte-americano, da
semiótica greimasiana, do positivismo crítico herdado de Hart e do teleologismo
tecnológico), em contraponto com a reinvenção plena do formalismo justificada pelas
reflexões metodológicas de Schauer e Alexander (as a neo-formalist model of practical reasoning).

2. A autonomia do direito e do pensamento jurídicos reinventada como auto-dife-


renciação sistémica. Acentuação preferencial dos pressupostos e possibilidades que tornam
esta compreensão auto-referencial e autopoiética do jurídico completamente distinta das
abordagens formalistas.
2.1. O direito da sociedade como systhemischer Eigenwert (Luhmann) ou a autonomia
concentrada na clausura normativa e na abertura cognitiva dos programas condicionais (e
assim mesmo garantida pelo esquema funcional centro/periferia); a categoria norma ou
qualidade de norma (na recursividade dos elementos do sistema) e o modus operandi do juiz.
2.2. Pluralismo, colisões e a «fórmula mágica» do reflexives Recht (Teubner): a
resposta à possibilidade de «autopoiesis parciais» (direito socialmente difuso /direito
parcialmente autónomo) concentrada nas exigências do programa relacional e do hiperciclo
reprodutor.

Proposta de excurso: O direito reflexivo perante a colisão interdiscursiva (exterior) dos


subsistemas. A herança do kollisonstheoretischen Institutionalismus de Wiethölter.

A impossibilidade de pensar numa unidade integradora (impossibilidade justificada


pela morte das metanarrativas e pela «regra do diferendo) a impor uma solução «descentralizada,
(obtida) no interior de cada discurso particular» (a analogia com o Direito Internacional
Privado e com a «gigantesca teia dos reenvios»). Os dois planos de solução plausíveis: α) a
hipótese da incorporação enquanto re-entry, entenda-se, enquanto reconstrução jurídica interna
de materiais semânticos exteriores (capaz de converter os diferendos em litígios) — uma re-entry
199

não obstante sustentada num «consequencialismo limitado e realista» (e neste como um contrôle
discursivo das consequências); β) a hipótese da exteriorização, segundo a qual as colisões são
tematizadas e decididas por outros sub-sistemas, competindo não obstante ao jurídico
«constituir discursivamente contra-instituições» (capazes de contrariar as «pretensões totalitárias
de universalidade» dos «discursos sociais» em causa).
As colisões, a fragmentação e as novas ilusões do constitucionalismo: o problema
da Globalverfassung (Fischer-Leskano). Um confronto com a «terapia filosófica» da Weltrepublik
ou desta enquanto resposta aos problemas da globalização (Höffe).

3. A compreensão jurisprudencialista do problema da autonomia (Castanheira


Neves): breve introdução remissiva.
3.1. A «correlatividade» autonomia /sentido ou a exigência de dissorciar a dimensão
material da sua determinação contingente.
3.2. A intenção à validade na sua relação constitutiva com uma experiência de histori-
cidade: os desafios da autodisponibilidade prático-cultural e o da vinculação civilizacional.
3.3. A dimensão metodológica ou a recuperação fundadora da racionalidade do jurídico
e do discurso que a leva sério.

Etapa III
O insuspeitado common ground
dos funcionalismos materiais e dos discursos humanistas:
a luta contra o(s) formalismo(s) e a rejeição-incompreensão da
pretensão de autonomia do jurídico

1. A rejeição da pretensão de autonomia justificada pelos funcionalismos materiais.


1.1. A alternativa da engenharia social levada a sério pelo racionalismo crítico. Uma
discussão dos princípios-ponte de Hans Albert, preocupada sobretudo com a tematização-
-limite da congruência e com o alcance que esta terá na compreensão do jurídico. Se parece
inquestionável que as exigências da explicabilidade e da realizibilidade e os métodos
correlativos sejam usados na racionalização das prescrições legislativas e das decisões da
administração, será já pertinente (será já cultural e institucionalmente plausível) conceber
(reconstruir ou reformar) a função jurisdicional à luz dos mesmos princípios? E o que dizer
do postulado da congruência, enquanto submete a resposta ao problema da societas ao way of
life da comunidade dos cientistas e ao método da tentativa e do erro? A atenção a um «filtro» de
200

determinação exemplar: não se trata só de reduzir a construção do jurídico a um dos seus


ciclos (como se a experiência do direito a ter em conta tivesse começado com a
modernidade iluminista), trata-se também de reconhecer que as aquisições institucionais
deste ciclo (incluindo o Estado-de-direito, os direitos humanos, a separação de poderes, o
constitucionalismo democrático, a exclusão da arbitrariedade, a certeza social, a tolerância,
o respeito, a solidariedade, a freedom from want) precisam hoje da força selectivamente
integradora de uma outra invenção da modernidade europeia, aquela que reconhecemos
quando invocamos a ideia e o projecto da ciência.
1.2. A rejeição da autonomia do direito justificada pelo pragmatic turn de Posner.
Uma oportunidade por um lado para recordar os diversos caminhos do Law & Economics,
por outro lado para explorar o sentido da open area e da discricionariedade (orientada pelos
efeitos da decisão) que esta impõe. A área aberta tematizada por Posner em confronto com a
moldura de Kelsen.
1.3. O «juiz político» do grande consenso (e da grande estratégia) constitucional. O
Estado-de-Constituição. O problema da relação juridicidade / constitucionalidade.
1.4. As «crise(s) do marxismo» e as respostas da teoria do direito neo-materialista. Os
desafios da «nova ordem mundial». A tentativa exemplar de Andrea Maihoffer: brevíssima
alusão.
2. O continuum prático (indiferente à especificidade do mundo prático do direito)
justificado pelos humanistic interdisciplinary projects e pela dupla frente de combate ao formalismo
e aos funcionalismos materiais. A reconstituição do seu possível common ground. Uma
concentração especial no universo do direito e literatura.
2.1. Para além do linguistic turn, um literary turn? E uma resposta aos desafios da law
and economics scholarship?
2.2. Algumas especificações-grelhas.
2.2.1. O contraponto direito da literatura / direito na literatura / direito como literatura.
2.2.2. O contraponto literary jurisprudence / narrative jurisprudence / interpretative
jurisprudence (Minda).
2.2.3. O contraponto humanist / hermeneutic/ narrative..... law-and-lits (Jane Baron)
2.2.4. O contraponto intentio auctoris / intentio operis/ intentio lectoris.
2.3. Uma concentração no território do law as literature.
2.3.1. A Nova Hermenêutica e a Desconstrução como perspectivas filosóficas (e
metódicas!) dominadas pela intentio operis.
201

2.3.2. A teoria jurídica da interpretação e os contrapontos subjectivismo/objectivismo,


interpretação dogmática/teleológica. A especificidade da teoria interpretativa norte-americana
(intentionalism, textualism, purposivism). Alusão ao contraponto Posner/ Dworkin.
2.3.3. «How Law is like literature»: a especificidade do pensamento metodológico
de Dworkin (perspectivada pelo ponto de chegada de Justice for Hedgehogs).
2.3.4. O problema da intentio lectoris. Alusão à estética da recepção e à readers-response
critique. Um contraponto entre Jauss e Fish.
2.3.5. As propostas de Boyd White e de Balkin/Levinson: que intentio lectoris? A
narratica e a ética da tradução (White). A performance enquanto relação triangular entre
criadores de textos-espectáculo (ou textos-notação), intérpretes e auditórios.
2.3.6. Os desafios de Poetic Justice (Martha Nussbaum): o juiz leitor de romances
enquanto judicious spectator ou a república dos leitores.
2. 4. Discursos de uma (soft) open area?

Proposta de excurso: os caminhos (híbridos) dos Critical Legal Scholars e das


Postmodern Jurisprudences. Uma luta contra o juridismo formalista e a Zweckrationalität que se
mostra incapaz de superar logradamente uma teoria da decisão.

O problema de uma dialéctica de desconstrução/ reconstrução (não certamente por


acaso com um peso muito maior na desconstrução lato sensu do que de reconstrução!) que se
nos dirige como se tivesse necessariamente que abstrair de uma perspectiva jurídica (ou
como se importasse desmistificar a possibilidade de autonomizar ou distinguir esta
perspectiva nas suas intenções materiais). A ausência do direito a resultar, sem surpresa, de
uma redução da pretensão de autonomia juridicamente relevante à sua tradução formalista (da
confusão dessa autonomia com o isolamento normativístico)… e da consequente
pressuposição-tratamento do jurídico como um mero estabilizador-instrumento
(compossível com toda e qualquer decidida institucionalização social).

Etapa IV
A problema da incorporação dos princípios morais como uma
(segunda) misinterpretation da pretensão de autonomia do jurídico
Percurso 1 - As peças do puzzle do incorporacionismo

1. A relação juridicidade / moralidade na diferenciação interna do positivismo crítico


herdeiro de Hart. O Postscript de The Concept of Law.
1.1. A tese da separabilidade ou os caminhos dos positivismos includentes.
202

1.1.1. A inclusão tout court: Waluchow.


1.1.2. A incorporação e os seus graus: Coleman e Kramer
1.1.2.1. A discussão no plano interno do problema dos limites de conteúdo da Rule of
Recognition.
1.1.2.2. Frentes de argumentação dirigidas a oponentes exteriores (tanto aos
Dworkinian interpretivists e outros natural law theorists quanto aos exclusive legal positivists).
1.2. A tese da separação ou as possibilidades dos positivismos excludentes.
1.2.1. Moralidade e ideia de Direito.
1.2.2. O contraponto entre o positivismo descritivo e o positivismo ético-prescritivo.
1.2.3. A compossibilidade do continuum com a moralidade e da tese da separação
justificada pela perspectiva da realização em concreto : Raz.
1.2.4. A compossibilidade do continuum com a moralidade e da tese das fontes sociais
reflectida no conceito de direito: Raz e Shapiro.
1.3. A refracção do debate do incorporacionismo no campo não positivista.
1.3.1. Os degraus de reabilitação do jusnaturalismo em Finnis e Robert George no
espelho dos degraus do campo positivista.
1.3.2. A sistematização dos não positivismos justificada pela dual nature thesis de Alexy.
1.3.3. O mapping integrado proposto por La Torre.

Percurso 2- Tentativas inconciliáveis de composição do puzzle:


muitas e variadas moralidades?

2. Diversos tabuleiros possíveis.


2.1. A solução do jusnaturalismo includente (La Torre).
2.2. A auto-reflexão da «nova» arquitectura (Coleman).
2.3. A superação consumada em Justice for Hedgehogs (Dworkin).
2.4. A relação juridicidade/ moralidade-eticidade para além da imagem do sistema único.
2.4.1. O direito como uma ideia moral (Simmonds)
2.4.1.1. A exigência de restituir à reflexão filosófica sobre a «natureza do Direito»
a sua força integradora.
2.4.1.2. O diálogo com os desiderata de Fuller.
2.4.1.3. Juízo crítico.
2.4.2. A passagem dos argumentos puramente éticos para os argumentos especificamente
jurídicos reconstituída por Sousa e Brito.
203

2.4.2.1. Praxis e «razões éticas».


2.4.2.2. Juízo crítico.

Etapa V
A resposta ao segundo equívoco:
o direito como mundo prático autónomo
ou uma especialíssima tese de separação739

A autonomia do mundo prático do direito garantida por uma experiência única do


problema-controvérsia e pela exigência de comparabilidade prático-prudencial que a constitui.
1. A reabilitação da filosofia prática, o regresso da communitas e a recuperação fundadora
da racionalidade prático-prudencial.
1.1. A racionalidade prático-prudencial na pluralidade articulada de razões a que o
livro VI da Ética a Nicómano nos expõe: a prioridade da sophia como tertium comparationis
integrador das exigências de unidade/pluralidade.
1.2. A ordem das disposições racionais como recurso narrativo de uma interpelação do
presente: indispensável para explorar (selectivamente) a identidade da communitas pré-
moderna e a emergência do mundo prático do direito que esta tornou possível — no seu
processo de especificação, em patamares distintos, de pretensões de autonomia
complementares (pretensões associáveis a esferas de determinação que poderemos dizer
filosófico-especulativa, prático-jurisprudencial e dogmático-cultural) — mas também para reconhecer
sucessivas dinâmicas de interrupção-renovação ou de rejeição-recuperação referidas à autonomia da
praxis e ao discurso que a reflecte. As soluções da societas moderno-iluminista e os três
grandes eixos de reinvenção da communitas abertos pela reabilitação do pensamento prático.
2. A recusa de uma identificação do mundo prático do direito que se determine
assumindo unilateralmente as representações globais da communitas e reconhecendo nestas
horizontes alternativos — a exigirem uma opção prévia (como que reflexivamente livre) e a
dinâmica de tradução-assimilação que esta desencadeia.
3. A possibilidade (dinamicamente contrária) de interpelar o mundo prático-
-comunitário na perspectiva do direito e dos compromissos que o distinguem, que é

Para fazer corresponder a numeração introduzida neste sumário da etapa V àquela que foi usada
739

no Tempo II da Primeira Parte (para descrever esta mesma etapa), bastará acrescentar o 3. inicial (de tal
modo que 1. corresponda a 3.1., 2. a 3.2., e por aí fora).
204

também a de assegurar um tratamento metadogmático do jurídico sustentado numa


perspectiva interna.
3.1. A defesa de uma perspectiva de participante, que não obstante supere um plano de
pura imanência interpretativa e o doing what comes naturally que esta justifica.
3.2. O direito como criação cultural e como projecto-projectar.
3.3. O direito como forma de vida prático-comunitária.
3.3.1. A identidade civilizacional, compreendida à luz de uma alternativa-limite.
3.3.2. A rejeição de uma pretensão de universalidade aculturalmente concebida, rejeição
que não nos condena no entanto a um particularismo comunitarista.
3.3.3. Lebensform e problema-controvérsia.
3.3.4. Problema-controvérsia e comparabilidade: (1) a condição de parte; (2) a
exigência do contraditório; (3) a comparação-tribuere; (4) a estrutura básica da controvérsia (ou
a perspectiva que esta estrutura garante) a antecipar-reflectir in nuce a compreensão jurídica da
pessoalidade e a experiência construtiva das suas fronteiras.

Etapa VI
Duas perguntas-limite e um esfoço de resposta comum

1. As perguntas, construídas com elementos das etapas anteriores.


1.1. Estará a compreensão do direito enquanto forma de vida em condições de
reconhecer a transversalidade-continuidade do seu projecto (a sua compossibilidade com
distintos ambientes culturais e institucionais) sem nos condenar a um procedimentalismo?
1.2. Será o tempo de pluralidade e de diferença em que vivemos compossível com a
proclamação incondicional de um direito autónomo?
2. Um esforço de resposta comum — a defender a especificidade substantiva da
intenção à validade que distingue o jurídico (e a plausibilidade-pontualidade do seu homo
humanus) —, esforço este que se cumpre explorando as possibilidades da concepção
juriprudencialista do sistema. Tratando-se muito claramente de mostrar em que termos esta
experiência do sistema — na pluralidade dos seus modos de vinculação-vigência —
responde num plano institucionalmente constitutivo a um conjunto de exigências de
articulação que o discurso prático do nosso tempo (no seu horizonte global) reconduz
resignadamente a desafios aporéticos.
205

NOTAS CONCLUSIVAS SOBRE OS MÉTODOS


«PEDAGÓGICOS»
Encontros e desencontros
do auditório implícito e dos auditórios reais

Conjugando a situação institucional da presente disciplina — como unidade


curricular anual obrigatória de um «curso de especialização» do segundo ciclo (integrado
num «mestrado de investigação» na especialidade de Ciências jurídico-filosóficas)740 — com a
forma ou estrutura aberta que — invocando o movimento descontínuo de uma conversação
responsável e o recurso do auditório implícito —, entendi dever reflectir no presente relatório,
bastar-me-ão agora decerto algumas notas conclusivas para, no percurso em etapas acima
ensaiado (e no itinerário-programa que se propôs apoiá-lo), isolar (-acentuar) as compo-
nentes de uma possível dimensão pedagógica.

1. Trata-se em primeiro lugar, muito simplesmente, de admitir que as dinâmicas de


(maior ou menor) concentração expositiva e reflexiva que, por razões exclusivamente
temáticas, se foram introduzindo — distinguindo as etapas umas das outras e distinguindo
sobretudo explicitamente momentos específicos no percurso interno de cada uma delas
(momentos mais sistematicamente expositivos ou mais abertos, com diversos caminhos em
alternativa) —, encontrem uma correspondência lograda nas diversas sessões que integram
as aulas e nos «regimes lectivos» que estas estão em condições de mobilizar — «regimes»
que, como se sabe, são precisamente os das «aulas teórico-práticas» e os dos «seminários».
Acentuar a importância desta correspondência está longe de ser tão redundante
quanto parece. Não se trata só de consagrar diversas indicações de andamento e de as confiar
a vozes e a patamares distintos — alternando núcleos de «formação» sistemática
(assumidos na íntegra pelo professor) com momentos de discussão (capazes de
responsabilizar a iniciativa dos mestrandos e de traduzir as suas escolhas) —, trata-se
também e muito especialmente de permitir que um território intermédio — frequentado
(construído) por um discurso «complementar» (um discurso que ao dizer-se «prático», se
pretende precisamente «mais concreto-analítico, exemplificador e crítico» do que o discurso

740 Ver supra, nota 3. Acrescente-se apenas que à duração anual correspondem sessões semanais de
três horas distribuídas em dois periodos lectivos.
206

sistemático)741 — esteja em condições de garantir que entre aqueles dois patamares,


tratados menos como intenções polarizadoras do que como degraus indispensáveis, se
possam estabelecer percursos de transição (se não exercícios de circulação) reflexivamente
controlados. Um discurso intermédio ainda fundamentalmente conduzido pelo professor?
Parece inevitável. Tendo presente que a abertura nele assumida — como oportunidade-
-ponte para um autêntico seminário, mas também como recurso para gerir con sveltezza os
diversos degraus (os da lecture teórica, da aula teórico-prático e do seminário) —, está longe de
se reduzir à criação de oportunidades para a intervenção dos mestrandos (e para estimular
uma cooperação efectiva entre estes), antes envolvendo um esforço de distanciação auto-
-reflexiva dirigido aos «materiais» previamente apresentados e às convicções que os
iluminam. O que para este interlocutor-guia significa decerto poder afivelar enfim em pleno
a máscara de primeiro leitor e com esta a disponibilidade para discutir aquelas convicções e
«incorporar» argumentos contrários. Ensaiando sem rede o processus (a vertigem?) de um
pensamento vivo (e a fuzziness luminosa que este exige742)? Importará porventura
reconhecê-lo, reconhecendo simultaneamente que não podem decerto ser outras as
intenções a inscrever no desenho de um auditório implícito. Seja como for, o tema proposto
para o presente seminário reduz os riscos desta aspiração (e atenua a frustração dos seus
objectivos), desonerando parcialmente aquele interlocutor-guia. Fazer corresponder à
pretensão de autonomia significados distintos, inserindo-a (inserindo as suas repetições) num
espectro plural de concepções do direito (e procurando testemunhar o quase diferendo a que
estas nos expõem)743 — e depois também admitir que as peças do puzzle construído pelo
debate da incorporação possam ser distribuídas por tabuleiros diversos, iluminados por vozes
plenamente identificadas744 — significa, com efeito, ter acesso a um elenco apreciável de
arrimos argumentativos (com a vantagem de estes se nos disponibilizarem menos como
catálogos de warrants e de inference licenses do que como argumentos in action). O que é
suficiente, pelo menos numa primeira frente, para alimentar diversos caminhos e as
alternativas a que estes nos expõem e poder assim apreciar a maior ou menor distância que
os separam; sem excluir a possibilidade, sempre muito estimulante, de recorrer a
expedientes de «incorporação»-dramatização, distribuindo a defesa das conclusions-claims que
alimentam estes caminhos pelos diversos participantes em jogo. Sem esquecer que a
responsabilidade do interlocutor-guia passa a ser aqui a de equilibrar a flexibilidade desejável

741 Para o dizer com Castanheira Neves no Relatório com a justificação do sentido pedagógico, o programa, os

conteúdos e os métodos de um curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit., pp. 185-189.


742 Ver infra, nota 745
743 Ver etapas II e III.
744 Ver etapa V, caminho 2.
207

com a inevitabilidade de uma selecção-simplificação das perguntas-problemas e dos


caminhos-respostas a ter em conta. Uma selecção esta última que impeça a reflexão
aflorada de se entregar a uma vertigem auto-referencial (ou de produzir o efeito de
multiplicação de possibilidades equivalentes) … e que assim mesmo se mostre capaz de
preservar a vocação (prático-normativa) de uma perspectiva interna…
É certo que este desenho pertence por inteiro ao auditório modelo programaticamente
antecipado. Como é certo também que o confronto com o auditório real há-de exigir que os
diversos degraus implicados (construídos pelos núcleos duros da lecture teórica e do
seminário tout court e pela mediação teórico-prática que os relaciona) se vejam constrangidos a
procurar soluções de equilíbrio sempre diferentes. Soluções que não podem nem devem por
sua vez ser antecipadamente tipificadas, menos ainda — como há quem pretenda! —
canonicamente quantificadas em abstracto (a partir dos dados pretensamente objectivos que
os créditos atribuídos à disciplina fornecem745)…

745 Significaria isto, como se sabe, partir destes créditos (neste caso, 15 ECTs) para prever as horas de

trabalho total (TT) atribuídas ao (esperadas do) mestrando (que seriam aproximadamente de 420h!), antes de
neste tempo total distinguir (separar) os chamados tempo de contacto (TC) e tempo de trabalho autónomo (TA)… e
de estar assim em condições de programar o modo como o primeiro destes tempos (120h de contacto
previstas) se distribui pelos possíveis regimes lectivos [40h de aulas teórico-práticas (TP) e 80h de seminário
(S), 50h de TP e 70 de S, etc, etc] ! Mobilizar este exemplo de contabilização (com o recurso propositado às
siglas que habitualmente o formalizam!) — e com as possibilidades de contrôle quantitativo que, na sua
homogeneização detersiva, aparentemente disponibiliza — significa decerto acentuar um dos sinais-
-«sintomas» mais imediatos (e mais vulneráveis à crítica e à caricatura) da pequena e apagada Cacânia na qual
a nossa circunstância — ferida pelo pathos de uma pretensa mudança de paradigma (reduzida às fórmulas
vazias da «inovação e de excelência») bem como pela transposição precipitada do modelo de Bolonha (este
privado dos seus aspectos mais luminosos!) — parece querer fechar o ensino superior universitário. Como se,
em nome de uma fungibilidade e de um anonimato convencionalmente fabricados (assentes numa
distribuição funcional de competências e numa programação de objectivos) se tratasse afinal de «libertar»-
purificar este ensino, não politécnico (non-vocational higher education), da força de invenção individual e da
celebração da liberdade-diferença (mas também da originalidade e da autoria) que, associadas a uma
irresistível fuzziness, sustentam a sua identidade. Aquela força e aquela imprevisibilidade (ligadas à
impossibilidade de «sacrificar o futuro à dimensão do presente») que Rorty, com a ajuda de Dewey, invoca
quando nos fala das untheorizable unpredictable occasions of growth que (como erotic relationships, se não leaping back
and forth of sparks between teacher and student), devem dominar as práticas universitárias autênticas (e os processos
de auto-criação que estas estimulam): «The only point in having real live professors around instead of just
computer terminals, videotapes and mimeod lecture notes is that students need to have freedom enacted
before their eyes by actual human beings. That is why tenure and academic freedom are more than just trade
union demands. Teachers setting their own agendas — putting their individual, lovingly prepared specialties
on display in the curricular cafeteria, without regard to any larger end, much less any institutional plan — is
what non-vocational higher education is all about. Such enactments of freedom are the principal occasions of
the erotic relationships between teacher and student that Socrates and Allan Bloom celebrate and that Plato
unfortunately tried to capture in a theory of human nature and of the liberal arts curriculum. But love is
notoriously untheorizable. Such erotic relationships are occasions of growth, and their occurrence and their
development are as unpredictable as growth itself. Yet nothing important happens in non-vocational higher
education without them…» (Rorty, «Education as Socialization and as Individualization»,
http://www.greatbooksojai.com/the-agora-foundation_rorty_education_as_socialization_and_as_individualization.pdf
(extraído em Fevereiro de 2013)]. Para um enquadramento desta acentuação da liberdade e independência
académicas em Rorty (com um tratamento indispensável da herança de Dewey), veja-se Phillip E. Devine,
«The New Fuzziness: Richard Rorty on Education», http://digitalcommons.providence.edu/cgi
/viewcontent.cgi?article=1000&context =philosophy_fac e Radim Šíp, «Dewey’s and Rorty’s Thoughts on
Education», http://www.pragmatismtoday.eu/summer2010/Sip-Deweys_and_Rortys_Thoughts_on_Education.pdf.
208

2. Sem ceder à tentação de antecipações deste género, o que é que é possível dizer-
-se destes auditórios reais? Desde logo que a prescrição de um número limitado de «vagas»
(vinte e cinco mestrandos para cada «unidade» do «mestrado científico»), não nos
autorizando a pretender uma aproximação a um modelo de tutorship, garante decerto
condições suficientes de diálogo e de acompanhamento, sensíveis às especificidades da
formação académico-cultural e à (maior ou menor) vocação reflexiva de cada um dos
estudantes — condições que, ao longo de um ano consecutivo, resultarão não só das
contabilizáveis horas colectivas de contacto (!) mas também de sessões individualizadas de
atendimento (informalmente multiplicáveis), sessões estas absolutamente indispensáveis
para um desenvolvimento logrado dos trabalhos de investigação. Garantia que a
experiência acumulada nos últimos anos me permite de resto confirmar e fortalecer, uma
vez que o número de alunos inscritos na disciplina tem variado entre um número mínimo
de oito e um número máximo de catorze.
Um número particularmente adequado para uma efectiva conversação responsável? Eu
diria que sim. Sem poder no entanto ocultar que este auditório exemplarmente restrito está
longe de pressupor formações e objectivos homogéneos. Não se trata, com efeito, apenas
de ter presente que a disciplina funciona como unidade nuclear obrigatória do curso de
especialização em Jurídico-Filosóficas (ao lado da disciplina de Metodologia do Direito) e
simultaneamente como disciplina de opção para todas as outras especializações; trata-se
também de perceber que o equilíbrio efectivamente estabelecido em todos os anos em que
a disciplina funcionou tem sido sempre desfavorável aos mestrandos (ditos) da especialidade
(o número máximo atingido pelos alunos de Jurídico-filosóficas nas edições já realizadas foi de
cinco alunos); sem esquecer por fim que este grupo (muito restrito) de estudantes residentes
nos aparece (quase sempre) implacavelmente dividido por proveniências académicas,
formações na especialidade e recursos reflexivos muito distintos. Heterogeneidade que, em
todos estes planos, está longe de ser negativa — que tem sido, pelo contrário,
frequentemente responsável pela felicitous performance de um seminário vivo!
Heterogeneidade que exige no entanto sempre opções de equilíbrio relativamente delicadas,
não apenas quanto ao «estilo» da exposição sistemática, mas também quanto às
informações que esta deverá transmitir — desde logo no que diz respeito à exigência de

(ambos extraídos em Março de 2013). Acentuando a mesma importância da «pura afirmação idiossincrática» do
professor e a «magia» destas «expressões de pura liberdade» (com a citação do mesmo ensaio de Rorty), veja-
se Fernando Araújo, O ensino da economia política nas Faculdades de Direito e algumas reflexões sobre pedagogia
universitária, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 307-308.
209

reconstituir-recordar o que, nas áreas metadogmáticas, se pode esperar que corresponda a


uma formação geral (e que deva assim considerar-se pressuposto pelo presente curso de
especialização)746. Parecendo-me possível apenas acrescentar que tais opções (envolvendo
também a simplificação, se não supressão drástica, de alguns caminhos esboçados para o
auditório implícito) não deverão ser nunca tomadas em detrimento do peso das sessões em
seminário, já que serão antes e em contrapartida as possibilidades deste seminário (através
dos caminhos que a flexibilidade controlada das aulas teórico-práticas vai desenhando e
com o reforço exterior dos encontros informais de atendimento) que hão-de estar em
condições de ir desenhando os equilíbrios mais adequados.

3. As palavras finais vão para os «materiais» e para o modelo de avaliação.

3.1. Em relação aos primeiros, importará esclarecer que as sessões de exposição


sistemática (e os percursos teórico-práticos que delas directamente emirjam) deverão ser
apoiados em sumários desenvolvidos previamente distribuídos e nas leituras que estes
seleccionem — leituras colhidas nas indicações bibliográficas propostas para cada etapa do
itinerário e assim indicadas com diversas gradações (leituras indispensáveis/ leituras
recomendadas/ para um aprofundamento). Já no que diz respeito aos seminários propriamente
ditos — sempre que possível admitindo escolhas temáticas da responsabilidade do auditório
real, ou pelo menos a interacção lograda destas escolhas com o elenco daquelas que o
desenho do auditório modelo disponibiliza747 —, os recursos serão sempre textos exemplares
dos autores e das linhas de pensamento em confronto, textos estes previamente confiados
a todos os mestrandos ou distribuídos a mestrandos ou grupos de mestrandos diferentes
(com o intuito de ficcionar um contraditório). A sessão começará sempre com um ou dois
comentários previamente preparados (de preferência escritos e do conhecimento de todos
os participantes).

746 O modelo absoluto não poderá por exemplo ser o do primeiro ciclo da Faculdade de Direito de

Coimbra, no qual os alunos beneficiam de diversas disciplinas com orientações principais associadas a esta
formação, tanto obrigatórias (Introdução ao Direito, Metodologia Jurídica) como facultativas(Introdução ao Pensamento
Jurídico Contemporâneo). A experiência das edições já realizadas mostra-nos, com efeito, que a maioria dos alu-
nos inscritos na especialização em Jurídico-filosóficas fez o primeiro ciclo noutras universidades.
747 Nos termos exemplificados supra, Primeira Parte, Tempo II, 2., pp. 93 e ss.
210

3.2. O regulamento em vigor prescreve um modelo único de avaliação (ao qual não
atribui de resto nenhuma das designações habituais748): correspondendo este à «elaboração
e apresentação de um ou mais trabalhos escritos, com discussão oral»749, as suas
possibilidades mostram-se assim suficientemente flexíveis para se adaptarem aos diferentes
ritmos dos seminários. Baseando-me na experiência das edições anteriores, proponho um
modelo que articule pelo menos as seguintes peças:
(a) a entrega de um pequeno trabalho escrito realizado por todos os mestrandos
(com um tema obrigatório, que poderá corresponder ao comentário da posição de um
autor ou ao tratamento de um problema);
(b) intervenções orais distribuídas pelas diversas sessões (de comentário aos textos
lidos em casa);
(c) entrega e defesa oral de um relatório-paper mais extenso (que possa ser assumido
como um verdadeiro trabalho de investigação), com um tema de preferência inscrito na
temática global do curso750 (sendo o texto previamente distribuído a todos os participantes
no seminário e depois discutido).

Coimbra, Abril de 2013

748 Desigações estas (avaliação contínua, repartida e por exame final) que reserva para o mestrado

forense: Regulamento Académico e Pedagógico do 2.º Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de Direito de Coimbra, cit.,
artº 23 nº 2, artº 24º.
749 Ibidem, artº 23º nº 1.
750 Sem prejuízo evidentemente de poder cruzar perspectivas dogmáticas e metadogmáticas (o que se

estimulará sempre que a área nucler de especialização do mestrando seja outra).


211

ÍNDICE

NOTA INTRODUTÓRIA 3

PRIMEIRA PARTE 11
A justificação do tema e de um desenvolvimento em
etapas Tempo I 12

Tempo II 43

SEGUNDA PARTE Um itinerário possível – 191


Sumário

NOTAS CONCLUSIVAS SOBRE OS Encontros e desencontros 205


do auditório implícito e dos
MÉTODOS «PEDAGÓGICOS» auditórios reais

S-ar putea să vă placă și