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Curso ministrado no Primeiro Semestre de 2015

Pós-graduação
Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo

Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética


adorniana
12 aulas

Prof. Vladimir Safatle


Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 1

Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo XXV de
Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian
Leverkuhn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem
musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de
uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas
especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um
rufião ou um marginal. Na verdade:

“usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos com


aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto
avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o
nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha,
e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os
cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos, ao lado.
Em suma um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte
e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da
composição musical, na medida das suas capacidades”1.

Em suma um intelectual, mas um intelectual bem específico, desses que tem


nome conhecido. Um intelectual com quem a segunda metade do século XX conviveu
de maneira difícil devido à sua consciência crítica, seus livros, artigos em jornais e
entrevistas no rádio que jogavam uma sombra incômoda na efetividade: Theodor
Adorno. Adorno come diavolo, como disse um dia Jean-François Lyotard. Um diabo
que não levará Leverkuhn ao deserto para tentá-lo com poder e prazer. Os argumentos
diabólicos mudaram depois de certo tempo. Agora, sua tentação passa por discussões
sobre o “nível geral da técnica de Beethoven”, a função expressiva do acorde de
sétima diminuta no começo do opus 111 e de como “cada som traz em si o todo e
também toda a história”. Sim, agora o diabo parece ser a voz mais sensata para
aqueles que não suportam o estado atual da linguagem, que sabem como: “a situação
é demasiado crítica, para que a ausência de crítica esteja à sua altura”2.
Mas esta não era a primeira vez que as palavras de um filósofo apareciam na
boca deste que tem a força retórica de inverter o sentido de todas as palavras, de
embaralhar o sim e o não, de tirar o julgamento do solo seguro onde o certo ainda é o
certo e o errado ainda errado. Esta cena já se repetira anteriormente. O diabo e aquele
que procura se afastar das antigas teorias, que sonha em recuperar os frutos da vida, já
se encontraram antes. Naquele momento, e vai-se aí duzentos anos, ele não teve
problemas em se apresentar com sua alcunha de origem, a saber, “o espírito que
sempre nega”. O mesmo espírito que, se não tinha as feições de outro filósofo, tinha
certamente seu indefectível sotaque suábio. Antes de encarnar em Adorno, o diabo já

1 MANN, Thomas; Doutor Fausto, p. 335


2 Idem, p. 338
aparecera para Fausto, de Goethe, sob a forma de Hegel.É provavelmente pensando
nel que Mefistófoles dirá:

Eu sou o espírito que sempre nega


E com razão, tudo o que nasce
É digno de perecer (zugrunde geht)

Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são à sua
maneira bastante aristotélicos. Pois de onde viria esta peculiar tendência de associar a
dialética nascente em seu território à uma atividade infernal, se em algum momento
eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica, de Aristóteles? Desde Aristóteles,
aquele que acredita poder suspender o princípio de não-contradição só pode nos
convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a
desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma
impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética,
é abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura
capaz de responder à exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética
como a expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe.
Goethe e Thomas Mann sabiam disso.
Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, a última versão
da dialética, esta que conhecemos pela alcunha de dialética negativa, fosse acusada
como representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da
dissolução completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação
determinada”, como dizia Habermas, a última versão histórica da dialética nunca
ofereceria um horizonte de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos,
sombrios, um tanto avermelhados, como disse Mann, só poderiam expressar o
niilismo desse “espírito que sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que
seja a este inferno frio do Grande Hotel Abgrund. Pois, se o diabo é um desses
fenômenos que se diz de muitas maneiras, o inferno também se declina de forma
generosa. Ele pode ser, por exemplo, este lugar no qual a ruína parece eterna e
insuperável, no qual estamos condenados à cantar a cantinela triste da finitude, lugar
no qual as condições da praxis transformadora encontram-se, por isto, completamente
impossibilitadas, não restando outra coisa a não ser o pensamento que denuncia toda
solução como uma traição, toda imanência como um recuo. Um inferno que mais
parece o mundo invertido depressivo produzido por uma teologia negativa. Esta
pareceria ser a estação final da longa e complexa história da dialética no pensamento
ocidental.

Surgir e passar que não surge nem passa

Bem, se propus este curso é porque valia a pena perguntar sobre o que
aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no
que diz respeito à dialética negativa de Adorno, mas principalmente no que diz
respeito à esta tradição dialética que inicia a partir de Hegel. Erro que não seria
simples incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de
filósofos como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em
compasso de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa do
senso comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como:
A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim
é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes3.

Esse delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio, só pode
aparecer para um certo senso comum como palavreado de quem quer criar
movimentos que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e
passar que não surgem nem passam, evanescências que não são apenas
desaparecimentos mas, ao mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No
coração desta dialética delirante encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de
dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os
pensamento determinados.
Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se
perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a
filosofia, ao menos esta que a dialética defende, não seria exatamente o discurso
daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disto que nos
permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade meta-
estável que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte
regulador da crítica. Talvez isto explique porque as paradas finais da dialética sempre
foram tão sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as
discussões sobre o saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de
que as discussões de Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que
algumas frases e que os momentos de conciliação em Adorno quase nunca são
efetivamente postos. Na verdade, por mais que seus detratores não queiram ver, isto
se explica pelo fato da teleologia da dialética ser a própria imanência do movimento
que ela desvela. Movimento este que será a pulsação interna da experiência do
conceito.
Neste sentido, a dialética nunca poderia ser diagnosticada, como muitos os
fizeram, como a perpetuação da eterna melancolia dos que só veem possibilidades que
nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo
impede toda reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século XX
exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu
uma ontologia da inadequação. Há um equivoco fundamental de setores importantes
da filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa.
Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de
ser o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade é forma de não
esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações
presentes ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente
futuro que se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera
possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos
esclarece de onde a existência retira sua força para se mover. Neste sentido, a
negatividade dialética não é nem poderia ser expressão de alguma espécie de falta ou
privação, como vemos, por exemplo, na tradição da crítica deleuzeana à dialética

3 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito,


hegeliana. Ela é manifestação do excesso do processo do conceito em relação às
possibilidades das determinações postas.
Por isto, se tal latência do existente deve ser compreendida como negatividade
é porque ela pede a desintegração do que se sedimentou ou do que procura se
sedimentar como presença. Esta é uma ideia fundamental da dialética: começa-se
pensando contra representações naturais que se sedimentaram principalmente em uma
estética transcendental, em um conceito representativo de espaço e tempo, e não será
por acaso que daremos atenção especial, em nosso curso, às discussões sobre a
compreensão dialética do tempo.

A dialética e suas mistificações

Mas vocês poderiam logo se perguntar sobre o sentido de falar em “dialética”


desta forma, a saber, como se estivéssemos a analisar um processo semelhante de
pensamento em Hegel, em Adorno e também em Marx. No que podemos colocar uma
questão simples apenas em aparência, a saber, em que as “dialéticas” que conhecemos
no começo do século XIX, em meados do século XIX e em meados do século XX
participam de uma partilha tensa e produtiva de uma mesma experiência de
pensamento? Em que tais dialéticas se aproximam, qual o sentido em insistir em tais
proximidades? Por que não seria melhor selar o diagnóstico da descontinuidade e do
distanciamento? Lembremos, a este respeito, desta conhecida passagem do posfácio
da segunda edição de O Capital:

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do


método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de
pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num
sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a
manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário o ideal não é mais
do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem (...) A
mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto
que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas
formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen). Nele, ela se
encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne
racional dentro do invólucro místico. Em sua forma mistificada, a dialética
esteve em moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. Em sua
configuração racional, ela constitui um escândalo, um horror para a burguesia
e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, o entendimento positivo do
existente/permanente (Bestehenden), inclui, ao mesmo tempo, o entendimento
de sua negação, de sua necessária passagem (Untergangs). Além disso,
apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo
o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência,
crítica e revolucionária4.

As colocações de Marx fornecem um topos clássico para o julgamento da


dialética hegeliana. No entanto, elas são mais ambíguas do que podem inicialmente
parecer. Primeiro porque, como gostaria de mostrar em nossas próximas aulas, a
descrição fornecida sobre a relação entre Ideia e efetividade em Hegel não é de todo
correta. Em Hegel, a Ideia não é, como Marx parece no limite nos fazer acreditar, uma
determinação transcendental que produz o processo efetivo, como quem subsume o
4 MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91
diverso da experiência sensível à generalidade de uma normatividade previamente
assegurada. O processo efetivo não é uma simples manifestação exterior da Ideia,
como se estivéssemos diante de uma totalidade como movimento sem acontecimento.
Leitura que encontrará, no século XX, um modelo paradigmático de interpretação na
crítica heideggeriana a Hegel. O mesmo Heidegger que dirá: “o progresso na marcha
histórica da história da formação da consciência não é impulsionado, em direção ao
ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da consciência, mas ele
é impulsionado pelo alvo já pro-posto”5. Em outra chave, mas com a mesma leitura,
Habermas, falará: “de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta
auto-referência as diversas contradições atuais apenas para fazê-las perder o seu
caráter de realidade, para transformá-las no modus da transparência fantasmagórica de
um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade” 6
No entanto, é possível mostrar como a Ideia em Hegel é, antes, uma
rememoração do processo efetivo, ou seja, sua relação à efetividade é
necessariamente retroativa, daí sua posteridade tão bem descrita quando Hegel afirma
que a filosofia opera como a coruja de Minerva. Pois a Ideia produz uma totalização
que não é mera recontagem, redescrição do que ocorreu, mas é construção
performativa do que, até então, não existia. De fato, a Ideia produz, mas integrando as
contingências que se desdobraram no campo da efetividade em uma construção
retroativa da necessidade. A filosofia hegeliana não é, por isto, um necessitarismo
spinozista para o qual a efetividade é a expressão imanente de uma substância que
aparece como: “totalidade infinita imóvel de coisas singulares em movimento” 7. Ela o
seria se aceitássemos que a rememoração operada pela ideia nada acrescenta, ou seja,
que a passagem à existência, que a posição, nada acrescentaria à determinação
categorial8; como se da determinação à existência não houvesse processo.
Mas é fato que várias questões se derivam daí, Pois, sua posição de coruja de
Minerva não lhe daria necessariamente uma indelével função de “glorificar o
existente”, de “deificar aquilo que é” 9? Como quem vai posteriormente aos campos de
batalha para servir-se de uma teoria do fato consumado a fim de justificar o curso
atual do mundo como expressão ontológica da necessidade. Devido à aceitação de
uma leitura desta natureza, vários comentadores como, por exemplo, Vittorio Hösle,
insistirão no que alguns chamarão de “passadismo” de Hegel. Passadismo que
mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao passado, não prolepse
e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E, na medida em que o
que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à filosofia; ela apenas deve
compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que devo fazer?” não tem,
assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma resposta a ela poderia no
melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na realidade” 10. Ao que parece, a
crítica de Marx fez escola mesmo entre autores que dificilmente chamaríamos de
marxistas.

5 HEIDEGGER, Holzwege, p. 196


6 HABERMAS, Jürgen; O discurso filosófico da modernidade¸Lisboa: Dom Quixote,
1988, p. 60
7 BADIOU, Alain; L’être et l’évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 135
8 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que
cem táleres reais não contém mais do que já está presente em cem táleres
possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, op cit.
9 ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
10 HÖSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o
problema da intersubjetividade, Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468
Discutir a correção ou não de tal leitura nos exigirá entrarmos de maneira
sistemática em questão como a performatividade do conceito, a relação da dialética à
contingência e as relações de negação determinada entre conceito e objeto, o que
faremos em outras aulas. Por enquanto, há de se insistir como, mesmo fazendo tal
crítica, Marx se vê obrigado a reconhecer uma relação profunda de filiação e
transmissão. Ele dirá: devemos virar a dialética hegeliana de cabeça para baixo, mas
há de se reconhecer que as formas gerais do movimento responsáveis pela
compreensão correta da processualidade do existente já estão todas configuradas em
Hegel. Proposição aparentemente surpreendente pois como é possível separar a
estrutura lógica de um pensamento do movimento e da transformação, sua maneira de
apreender a gênese processual das formas e das normatividades que se querem
ontologicamente asseguradas, e sua impotência em funcionar de forma “crítica e
revolucionária”? Como retirar o cerne racional de seu invólucro místico, ou seja,
liberar a dialética da natureza apressada de suas sínteses, como se tal pressa não
estivesse, de certa forma, inscrita no interior da estrutura lógico-formal da dialética?
Pois, se não se trata de criticá-lo no plano lógico, nem, por consequência, de criticá-lo
no plano ontológico, então como seria possível organizar uma auto-crítica da
dialética? Aparentemente, melhor seria criticar a dialética em sua integralidade, com
seus modelos de síntese, com sua maneira de pensar o movimento a partir de
contradições, com sua forma de encaminhar as diferenças a estruturas gerais de
oposição, tal qual várias correntes hegemônicas do pensamento filosófico do século
XX farão.

Ontologia em situação

Coloquemos uma hipótese fundamental de trabalho que orientará nosso curso.


Se é possível explorar linhas de continuidade entre dialética hegeliana, dialética
marxista e dialética negativa é porque a dialética hegeliana é a dialética necessária
para as possibilidades históricas da experiência no início do século XIX, assim como
a dialética marxista o é para o final do século XIX e a dialética adorniana o é para
meados do século XX. Como uma ontologia cujo sistema de posições e
pressuposições modifica-se a partir de configurações históricas determinadas, sem
com isto modificar sua compreensão estrutural da processualidade contínua do
existente, ou seja, como “ontologia em situação”, a dialética reorienta-se
periodicamente em um movimento que leva em conta as transformações de suas
situações históricas. O que não poderia ser diferente para um pensamento que mesmo
nunca aceitando distinções estritas entre ontológico e ôntico, nunca abriu mão da
potencialidade crítica da verdade em relação ao campo de experiências entificado pelo
senso comum. A crítica se mede a partir das configurações historicamente
determinadas de bloqueio.
Isto significa que devemos compreender melhor o que pode ser este conceito
vago de uma “ontologia em situação”. Pois a princípio, tal sintagma soa como a forma
mesma de um paradoxo. A ontologia como discurso do ser enquanto ser é modalidade
de reflexão filosófica caracterizada pela aparente estaticidade da definição nocional de
suas categorias, assim como de suas modalidades de força normativa. Podemos dizer
que a ontologia caracteriza-se por ser um discurso sobre aquilo que permite a outros
discursos definirem sua consistência lógica e, por consequência, sua validade. Mas
uma ontologia em situação seria aquela que deixaria evidente como situações sócio-
históricas engendram sistemas de ideias que se procuram passar por dotados de
necessidade atemporal. Neste sentido, ela seria apenas uma maneira de mostrar como
particularidades, impasses e tensões de dinâmicas em situação são, de certa forma,
sublimados em sistemas de ideias com aspirações universalizantes. A força normativa
de tais sistemas daria então lugar a uma reflexão crítica sobre a gênese material das
normas. Neste sentido, uma ontologia em situação seria, necessariamente, uma
reflexão crítica sobre a ontologia. Algo não muito longe do que faz Marx, em A
Ideologia alemã, quando afirma, por exemplo:

As ideias da classe dominante são as ideais dominantes de cada época, quer


dizer, a classe que exerce o poder objetal dominante na sociedade é, ao mesmo
tempo, seu poder espiritual dominante (...) As ideias dominantes não são outra
coisa a não ser a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas
com ideias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a
classe dominante, ou seja, as ideias de sua dominação11.

A denúncia é evidente: as ideias que compõem o espaço de um domínio no


qual nada pode aparece que não esteja anteriormente assegurado por condições
prévias e não-problematizadas são a “expressão ideal das relações materiais
dominantes concebidas como ideias”. No entanto, poderíamos compreender a noção
de “ontologia em situação” de outra forma, a saber, uma ontologia que seja o campo
de exposição do processo de crítica das categorias ontológicas produzidas por uma
situação sócio-histórica, como ser, essência, identidade, diferença, entre tantas outras.
Por isto que podemos dizer, por exemplo, sobre Hegel: “a lógica hegeliana é a ideia
metódica, que se fundamenta, da unidade entre crítica e apresentação da metafísica” 12.
Ou seja, ela é ao mesmo tempo a apresentação de categorias da metafísica e a crítica
de sua insuficiência. Uma metafísica paradoxal que se realiza como crítica das
categorias metafísicas ou, ainda, como explicitação de significações em seu ponto de
esgotamento13.
Mas esta crítica que organiza as categorias ontológicas a partir de seu
esgotamento, de suas contradições internas, ou seja, de sua incapacidade em abarcar o
campo das experiências a respeito das quais ela se propunha abarcar, não nos leva
necessariamente a uma crítica geral da ontologia. Ela nos leva, paradoxalmente, a
uma certa ontologização da negatividade da crítica, isto no sentido de compreender o
movimento contínuo de dissolução da estabilidade formal do sistema de ideias próprio
a situações sócio-histórica determinadas como sendo a própria manifestação das
“formas gerais de movimento” a respeito das quais fala Marx e seu reconhecimento

11 ENGELS, Friedrich e MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2007, p. 71
12 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen
Logik, Frankfurt: Surhkamp, 1994, p. 16
13 Lembremos, por exemplo, das colocações de Paulo Arantes a respeito da
leitura sugerida por Gérard Lebrun a respeito da dialética: “Numa palavra,
erradicando-lhe todo e qualquer resíduo afirmativo, Lebrun reduzia o
hegelianismo ao que lhe parecia ser o essencial, a Dialética, e esta, a uma
espécie de revolução discursiva sem precedentes, uma ‘máquina de linguagem’
especializada em pulverizar as categorias petrificadas, as fixações arcaicas do
pensamento dito ‘representativo’, encarnado pelo famigerado (depois do
Idealismo Alemão) Entendimento. Comprimidas por tal engrenagem, as
significações correntes se punham a flutuar para finalmente confessar que no
fundo não eram nada mesmo, a não ser um ninho de contradições cujo resultado
se desmanchava no ar, Não havia doutrina portanto, nada a ensinar ou informar.
A Dialética, no final das contas, nada mais era do que uma maneira de falar”
(ARANTES, Paulo; Hegel: frente e verso)
de filiação a Hegel. Tal movimento é, de certa forma, ontologizado, o que dá à
dialética sua peculiar pulsação entre ceticismo desenfreado e compreensão de suas
dissoluções como processos racionalmente orientados não em direção a um telos
finalista, como muitas vezes se afirmou, mas, como gostaria de defender, em direção a
um modelo anti-predicativo de determinação. Ou seja, a positividade da dialética
nunca esteve ligado à orientações normativas teleologicamente asseguradas.
A este respeito, vale a pena lembrar como a etimologia de “predicar” é
bastante clara. Vinda do latin praedicare, que significa “proclamar, anunciar”, a
predicação é aquilo que pode ser proclamado, aquilo que se submete às condições
gerais de anunciação. Predicados de um sujeito são aquilo que ele, de direito, pode
anunciar de si no interior de um campo no qual a universalidade genérica da pessoa
saberia como ver e escutar o que lá se apresenta. No entanto, há aquilo que não se
proclama, há aquilo que faz a língua tremer, há aquilo que não se dá a ver para uma
pessoa. Expressão do que destitui tanto a gramática da proclamação, com seu espaço
pré-determinado de visibilidade, quanto o lugar do sujeito da enunciação, que
pretensamente saberia o que tem diante de si e como falar do que se dispõe diante de
si. Isto que faz a língua tremer e se chocar contra os limites de sua gramática é o
embrião de outra forma de existência. Neste sentido, tal horizonte anti-predicativo de
determinação não será capaz de se encarnar nas condições de determinação do que
pode ser proclamado. Veremos melhor o sentido desta discussões no interior do nosso
curso mas, por enquanto, gostaria de dizer que esta é minha maneira de trabalhar uma
importante elaboração de Ruy Fausto a respeito das determinações dialéticas.
Encontramo-la em afirmações como :

Uma das características da concepção dialética das significações – e, se


poderia dizer, em geral, da dialética – é a ideia de um espaço de significações
em que estão presentes zonas de sombras. Este espaço contém um halo escuro
, e não somente regiões claras, como supõem em geral as descrições não
dialéticas. Longe de representar o limite, em sentido negativo, das
significações, as zonas de sombras lhes são essenciais (...) Expresso à maneira
das filosofias não dialéticas de significação, esse halo obscuro poderia ser
pensado como contendo intenções não preenchidas. Para a dialética, trata-se
entretanto de intenções que não podem nem devem ser preenchidas. Há assim
um campo de intenções que deve se conservar como campo de intenções. O
preenchimento não ilumina as significações, mas as destrói14.

Uma zona de sombra que, como veremos, pode ser expressa sob a forma de
possíveis que não são postos na determinação do objeto, como “desatualização” do
objeto posto, como pura indeterminação, entre outras figuras.
Para finalizar, gostaria ainda de voltar ao conceito de “ontologia em situação”
a fim de insistir como a dialética é sensível à modificação histórica dos sistemas de
ideias, ou se quisermos, ao que aparece ao pensamento com “representação natural”.
Ela é sensível à maneira com que o “campo das experiências possíveis” modifica-se
historicamente a partir de um sistema de causalidades múltiplas. Mas isto significa,
principalmente, que ela também modifica sua forma de construir a “unidade entre
crítica e apresentação da metafísica”. O sistema de posições e pressuposições da
dialética, aquilo que ela deve apenas pressupor e aquilo que se ela se vê em condições
de anunciar deverá necessariamente se modificar de acordo com as condições

14 FAUSTO, Ruy; Marx – lógica e política, op. cit., pp. 149-150


históricas. Isto é o que devemos compreender, em última instância, como “ontologia
em situação”.

Estado e totalidade verdadeira

Podemos fornecer um exemplo sobre esta modificação do sistema de posições


e pressuposições da dialética a partir do problema da relação entre Estado e totalidade
em Hegel e Adorno. Sobre a teoria hegeliana do Estado, Adorno afirmará que Hegel
sabe muito bem como a sociedade civil é uma totalidade antagônica. Da mesma
forma, ele sabe que as contradições da sociedade civil não podem ser resolvidas
através de seu movimento próprio. Sabemos como, ao insistir que a distinção entre
sociedade civil e Estado é uma característica maior do mundo moderno, Hegel se
contrapõe a certas teorias liberais que compreendem o Estado apenas como a estrutura
institucional cuja função seria garantir e assegurar o bom funcionamento da sociedade
civil a partir de princípios de defesa dos indivíduos com seus interesses econômicos
particulares. Hegel não teria problemas em admitir que: “a sociedade civil é o
fundamento objetivo da emancipação dos cidadãos modernos e da subjetividade
moderna”15. Mas ele insistiria que, levando em conta apenas seu movimento próprio, a
sociedade civil, como expressão dos princípios do livre-mercado, tende
fundamentalmente à atomização social, à clivagem e à pauperização de largas
camadas da população. Lembremos deste famoso trecho dos Princípios da filosofia
do direito:

Quando a sociedade civil não se encontra impedida em sua eficácia, então em


si mesma ela realiza uma progressão de sua população e indústria. Através da
universalização das conexões entre os homens devido a suas necessidades e ao
crescimento dos meios de elaboração e transporte destinados a satisfazê-las,
cresce, de um lado, a acumulação de fortunas – porque se tira o maior proveito
desta dupla universalidade. Da mesma forma, do outro lado, cresce o
isolamento e a limitação do trabalho particular e, com isto, a dependência e a
extrema necessidade (Not) da classe (Klasse) ligada a este trabalho, a qual se
vincula a incapacidade ao sentimento e ao gozo de outras faculdades da
sociedade civil, em especial dos proveitos espirituais16.

O modo de inserção no universo do trabalho depende, segundo Hegel, de uma


relação entre capital e talentos que tenho e que sou capaz de desenvolver. Isto implica
não apenas entrada desigual no universo do trabalho, mas também tendência à
concentração da circulação de riquezas nas mãos dos que já dispõem de riquezas,
assim como o consequente aumento da fratura social e da desvalorização cada vez
maior do trabalho submetido à divisão do trabalho. Desta forma, na aurora do século
XIX, Hegel é um dos poucos filósofos a se mostrar claramente consciente tanto dos
problemas que organizarão o campo da questão social nas sociedades ocidentais a
partir de então quanto da real extensão destes problemas. Para ele, esta tendência de
aumento das desigualdades e da pauperização, tendência que o leva a afirmar que por
mais que a sociedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente rica para eliminar a

15 KORTIAN, Garbis ; Subjectivity and civil society, In: PELCZUNSKI; The state and
civil society : studies in Hegel’s political philosophy, Cambridge University Press,
1984, p. 203
16 HEGEL, Filosofia do direito, par. 243
pobreza, é um problema que exigiria o recurso a um conceito de Estado justo. Adorno
sabe disto. Tanto que afirmará:
O livre jogo de forças da sociedade capitalista, cuja teoria econômica liberal
Hegel aceitara, não possui nenhum antídoto para o fato de a pobreza, do
“pauperismo”, segundo a terminologia de Hegel atualmente em desuso,
aumentar com a riqueza social; menos ainda poderia Hegel imaginar uma
elevação da produção que faria troça da afirmação de que a sociedade não
seria suficientemente rica em mercadorias. O Estado é solicitado
desesperadamente como uma instância para além desse jogo de forças17.

Tal recurso ao Estado como expressão do desespero mostra a verdadeira


potência crítica da dialética hegeliana. Adorno chega a dizer que o recurso hegeliano
ao Estado é um ato necessário de violência contra a própria dialética porque, de outra
forma, a sociedade se dissolveria em antagonismos insuperáveis. Ou seja, ele sabe o
que está em jogo na aposta hegeliana pelo Estado. Adorno só não está seguro de que
tal aposta poderá ser paga com a moeda que Hegel tem em mãos. Colabora para tal
desconfiança a compreensão adorniana da natureza da imbricação atual entre estado e
capitalismo. Imbricação na qual: “o intervencionismo econômico não é enxertado de
um modo estranho ao sistema, mas de modo imanente a ele, como a quintessência da
autodefesa do sistema capitalista”18. Na esteira das discussões de Friedrich Pollock a
respeito do “capitalismo de estado”, mas com um diagnóstico relativamente distinto,
Adorno acaba por apontar a mesma impossibilidade de pôr a possibilidade de um
Estado justo em nossa situação sócio-histórica. Sua articulação orgânica com as
dinâmicas monopolistas do capitalismo tardio lhe retiraria toda possibilidade de ser
um veículo de justiça social. Isto não implica, em absoluto, que a dialética negativa se
contentará em denunciar falsas totalidades lá onde a dialética hegeliana acreditava que
uma totalidade verdadeira poderia ser posta. Antes, ela criticará as figuras atualmente
postas da totalidade verdadeira, isto a fim de deixá-las em pressuposição devido à
situação sócio-histórica na qual o pensamento atualmente se move. A questão
importante será se perguntar onde estão os modelos de totalidade verdadeira, para
onde eles foram deslocados, já que não podem mais aparecer sob a forma do estado.
Isto significa modificar o sistema de posições e pressuposições da dialética.
Note-se ainda como, de acordo com o momento histórico, a dialética não teme
em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se desloca em um tempo
que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade que exige uma certa
plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra como toda enunciação
filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma enunciação filosófica não se
produz através da definição normativa do dever-ser, e ninguém mais do que Hegel
recusou tal ideia. Ela se produz através do reconhecimento do desconforto em relação
aos limites da situação na qual os sujeitos da enunciação se encontram. Por isto, ela
nasce como crítica, sem que precise começar por definir qual seria o horizonte
normativo que a legitima.

Dialética como auto-crítica da razão

Neste ponto, podemos fornecer uma definição operacional de dialética com a


qual trabalharemos neste curso. Ela vem de Adorno:

17 ADORNO, Tres estudos sobre Hegel,


18 ADORNO, Spätkapitalismus oder Industriegesellschaft?, pp. 363-364
Dialética não significa nem um mero procedimento do Espírito, por meio do
qual ele se furta da obrigatoriedade do seu objeto – em Hegel ela produz
literalmente o contrário, o confronto permanente do objeto com seu próprio
conceito – nem uma visão de mundo [Weltanschauung] em cujo esquema se
pudesse colocar à força a realidade. Do mesmo modo que a dialética não se
presta a uma definição isolada, ela também não fornece nenhuma. Ela é o
esforço imperturbável para conjugar a consciência crítica que a razão tem de si
mesma com a experiência crítica dos objetos19.

Nem método, nem visão de mundo. Desta forma, o filósofo de Frankfurt


procurava fornecer o último capítulo de um longo périplo no qual a dialética deixara
para trás sua acepção inicial de diálogo baseado na oposição de opiniões contrárias,
tão evidente na maiêutica socrática e que justificará sua presença no trivium medieval.
A este respeito, lembremos como “dialética” vem de “dialegesthai” que significa algo
como a arte da discussão por meio do diálogo e nos remete ao verbo “dialegein”, no
qual encontramos “legein”, a saber, “falar”/”juntar”, e o prefixo “dia”, que nos remete
a relação ou troca. “Legein” estará também na base de “logos”. Pensando no interior
deste horizonte, Platão definirá o praticante da dialética como: “este que sabe
interrogar e responder”20 até alcançar o esclarecimento dos princípios gerais. A
dialética de Platão, tão claramente presente na maiêutica socrática é assim uma
espécie de ascese crítica em direção à intelecção do caráter gerador da Ideia.
Lembremos desta definição canônica de A República:

Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele
que a razão (logos) atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não
princípios, mas hipóteses de fato, um espécie de degraus e de pontos de apoio,
para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo,
atingindo o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí
decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado
sensível, mas passando das ideias uma às outras, e terminando em ideias21.

Através da dialética, o que é hipótese é destruído até alcançarmos a Ideia como


princípio que nos permite construir silogismos sem se servir em nada de qualquer
dado sensível. Algo que, como vimos, Marx tende a encontrar em Hegel ao falar da
Ideia como o demiurgo do processo efetivo. Notemos ainda que este diálogo de ascese
crítica tem, como característica diferencial, apelar aos pressupostos já presentes nas
proposições dos envolvidos (o que permitia à Sócrates, por exemplo, mostrar que
Ménon não sabia o que sabia). Daí porque: “no debate oratório, semelhante a um
processo, são terceiros que dirimem; na discussão dialética, pode-se eximir-se de
recorrer aos terceiros graças a um acordo sobre uma verdade revelada aos
interlocutores pela razão comum deles”22. Por ter como pressuposto a razão comum, a
dialética confunde-se neste momento com a própria definição essencial da
argumentação filosófica.
Por sua natureza de técnica de diálogo, baseada principalmente na explicitação
de paralogismos, contradições e na redução ao absurdo de teses adversárias (método
inicialmente utilizado, ao que tudo indica, por Zenão), o destino da dialética será mais

19 ADORNO, Três estudos sobre Hegel


20 PLATÃO, Crátilo, 390c
21 PLATÃO; A República, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 511 bc
22 PERELMAN, Chaim; Retóricas, São Paulo: Martins Fontes, p. 8
ligado à retórica do que propriamente à lógica 23, mesmo que ela tenha sido: “o
primeiro termo técnico a ser usado para o assunto que hoje chamamos de lógica” 24. É
desta forma que ela entrará no trivium medieval, juntamente com a gramática e a
retórica.
O declínio da filosofia medieval parece levar junto consigo o prestígio da
dialética. Lembremos como Descartes, por exemplo, associa a dialética à retórica
para, em um mesmo movimento, separar os campos da filosofia e da retórica. A
dialética é, para Descartes, uma “arte da raciocinação” meramente formal, pois ligada
à análise das qualidades formais do discurso. Daí sua crítica contra os dialéticos que
creem governar a razão:

prescrevendo-lhe certas formas de raciocínio tão necessariamente


concludentes que a razão neles confiantes, embora de certa maneira dispense a
evidência e a atenção da própria inferência pode, todavia, em virtude da forma,
concluir por vezes algo de acertado. Efetivamente, observamos que a verdade
se subtrai muitas vezes a esses laços, enquanto aqueles que deles se servem
neles permanecem enredados25.

Esta desqualificação da dialética como raciocínio meramente formal, incapaz


de integrar o que é da ordem da contingência da empiria será uma das figuras
clássicas da crítica e chegará até Kant. Vem de Kant sua definição como “lógica da
aparência” que expressava as ilusões produzidas quando as ideias da razão procuram
se tomar por determinações objetivas da coisa em si, produzindo contradições
insuperáveis. Neste sentido, tal lógica da aparência não será apenas uma dialética
lógica que visa descobrir a falsa aparência na forma dos raciocínios. Ela será uma
dialética transcendental que visa denunciar a “aparência transcendental”. Uma
aparência diferente da aparência empírica própria, por exemplo, à ilusão de ótica, ou
da aparência lógica, que consiste na simples imitação da forma da razão e da
desatenção à regra lógica. Tal aparência transcendental se refere ao fato de nossa
razão ter:

“regras fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por


completo o aspecto de princípios objetivos, pelo que sucede a necessidade
subjetiva de uma certa ligação dos nossos conceitos, em favor do
entendimento, passar por uma necessidade objetiva da determinação das coisas
em si26.

23 “Deste modo, a dialética, sob os seus diversos aspectos, prepara a lógica. Para
se tornar, verdadeiramente, uma arte, ela supõe um estado das articulações
lógicas do discurso, das relações de consecução ou de incompatibilidade entre as
proposições; é preciso reconhecer e analisar os diversos modos de argumentaão,
saber distinguir entre os encadeamentos legítimos e encadeamentos incorretos.
Falta-lhe, no entanto, ainda duas coisas que a distinguem da lógica. Primeiro e
sobretudo, o seu saber lógico continua, em larga medida, em estado implícito. É
uma arte, uma técnica. Dá regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular
sistematicamente as leis que as justificam. Além disso, o seu caráter agonístico
tem como efeito, não apenas impdir-lhe o acesso à independência científica, mas
concentrar seu interesse na argumentação de caráter erístico ou refutativo”
(BLANCHË, Robert; História da lógica, Lisboa: Edições 70, p. 21)
24 KNEALE e KNEALE; The development of logic, Oxford University Press, 1962, p.
7
25 DESCARTES, René; Regras para a direção do espírito
26 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, A 297
Enquanto faculdade dos princípios, a razão conhece o particular no universal
mediante conceitos que Kant chama de “ideias transcendentais”. Tais conceitos tem
“o aspecto de princípios objetivos”, o que acaba por nos induzir a pensar que eles tem
a normatividade suficiente para determinar objetivamente as coisas em si. No entanto,
os conceitos da razão nunca permitem o conhecimento imediato das coisas, apenas
um conhecimento por inferência a partir de premissas não imediatamente derivadas da
premissa maior. Por exemplo, “todos os homens são mortais” já tem relação analítica
com a proposição “alguns homens são mortais”, mas não “todos os sábios são
mortais”, já que o conceito de sábio não está posto. Sua articulação é possível através
daquilo que Kant chama de “inferências da razão” que visam unificar em princípios
gerais a diversidade das regras do entendimento. Tais princípios, dirá Kant:

Não prescrevem aos objetos nenhum lei e não contém o fundamento da


possibilidade de os conhecer e de os determinar como tais em geral; é
simplesmente, pelo contrário, uma lei subjetiva da economia no uso das
riquezas do nosso entendimento, a qual consiste em reduzir o uso geral dos
conceito do entendimento ao mínimo número possível27.

Assim, o conhecimento caminha do caráter condicionado do entendimento ao


caráter incondicionado da razão, na medida que este incondicionado contem um
fundamento da síntese do condicionado. Kant não faz, desta forma, uma negação
simples da Ideia em sua matriz platônica. Antes, lembra como seu caráter
transcendente pode funcionar como horizonte regulador, como no caso da liberdade
moral como Ideia da razão28. No entanto, a Ideia como totalidade absoluta dos
fenômenos é “apenas uma ideia, pois como não podemos nunca realizar numa
imagem algo semelhante, permanece um problema sem solução”29. Isto significa, é
possível ascender das condições ao incondicionado, mas não é possível descer do
incondicionado ao condicionado.
Tal totalidade pode dizer respeito ao sujeito, ao mundo (como série de
condições do fenômeno) ou a Deus (como condição de todos os objetos do
pensamento em geral). Ao tentar legislar sobre o entendimento, ultrapassando seu
caráter meramente regulador, tais Ideias só podem produzir paralogismos e
antinomias nas quais tese e antítese entram em conflito sem possibilidade de
resolução. Exemplos de tais antinomias são: O mundo tem um começo no tempo e é
limitado no espaço/O mundo não nem começo nem limites no espaço, é infinito tanto
no tempo quanto no espaço; Toda substância composta é constituída por partes
simples/Nenhuma coisa composta é constituída por partes simples; Há uma
causalidade pela liberdade/ Tudo ocorre em virtude das leis da natureza; Ao mundo
pertence um ser absolutamente necessário/Não há um ser absolutamente necessário
que seja a causa do mundo.
É neste contexto de desqualificação que Hegel recupera a dialética ao vincular
a experiência crítica dos objetos à consciência crítica que a razão tem de si mesma.
Mas tal consciência crítica da razão não está, como em Kant, vinculada a consciência
27 Idem, A 306
28 “Pois qual seja o grau mais elevado em que a humanidade deverá parar e a
grandeza do intervalo que necessariamente separa a ideia da sua realização, é o
que ninguém pode nem deve determinar, precisamente porque se trata de
liberdade e esta pode exceder todo o limite que se queira atribuir” (KANT; idem, B
374)
29 Idem, A 328
dos limites da legislação da razão. Trata-se, antes, de transformar a experiência crítica
dos objetos, ou seja, a consciência do descompasso entre a experiência e os modelos
de representação de objeto, em motor de crítica da razão. Essa experiência crítica dos
objetos não deve, por sua vez, nos levar a alguma forma de pensamento do imediato.
No fundo, vale para Adorno a definição canônica da dialética em Hegel: “espírito de
contradição organizado”30, regime de pensar que afirma só ser possível superar as
dicotomias produzidas pela razão ao reconhecê-las e levá-las ao extremo, ao invés de
fazer apelo a alguma forma de “empirismo feliz” ou de legislação sobre a
determinação dos limites intransponíveis da razão. Pois se trata de levar tal tensão até
o extremo da contradição, isto para que, neste extremo, o pensar aprenda a não reduzir
as contradições à condição de simples manifestação do que não pode ser pensado.
Neste sentido, “organizar a contradição” consiste, no fundo, em reconhecer o caráter
produtivo da contradição enquanto modo de experiência do mundo. Veremos no
decorrer de nosso curso o que isto pode significar.

30 Ver a este respeito ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz
e Terra, 1996
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 2
Por que uma ontologia do ser não é possível?
Hegel e Heidegger

Das divisões da Lógica

Na aula de hoje, gostaria de mostrar como Hegel inicia sua Ciência da Lógica
respondendo à pergunta : “por que uma ontologia do ser não é possível?”. Ou seja, por
que “ser” é uma categoria que não serve como fundamento para a determinação
normativa do que deve orientar nossa experiência do mundo. Devemos então nos
perguntar sobre qual problema a categoria de “ser” oferece, qual a natureza de sua
inadequação. Veremos como Hegel desenvolve a seguinte resposta: “Uma ontologia
do ser não é possível porque o ser é pura abstração”. O ser é exatamente aquilo do
qual se diz apenas uma tautologia auto-referencial (“O ser é aquilo que é”). Esta sua
indeterminação não é resultado de sua realidade superior em relação a todo ente,
como se estivéssemos diante de um Ens realissimus. Na verdade, para Hegel, ela é
apenas substancialização de ausência de realidade concreta.
Contra esta ausência de realidade, veremos em outras aulas como Hegel
propõe uma ontologia assentada no conceito de essência (Wesen), isto depois de
reconstruir a noção de essência através da absorção daquilo que Aristóteles entendia
por energeia (que pode ser traduzido por atividade, ato) e dynamis (potência,
movimento) no interior de uma teoria da reflexão. Hegel acredita que uma ontologia
do ser irá necessariamente transformar o fundamento em normatividade sem
temporalização, fundamento ligado à procura de expressão imediata do originário
pensado como pré-subjetivo. Falar de ser, seria para Hegel sempre retornar aos
domínios das identidades abstratas. Já a reconstrução hegeliana do conceito de
essência seria, ao menos para Hegel, dotado da possibilidade de compreender os
processos de temporalização. Tal forma hegeliana de desqualificar uma ontologia do
ser nos leva, necessariamente, a avaliar as críticas que, um século depois, Heidegger
fará à estratégia hegeliana. Como veremos, estará em confrontação duas maneiras
distintas de se pensar a temporalização das categorias da ontologia, ou seja, esta
maneira de pensar como a ontologia é capaz de dar conta do que se manifesta no
interior do tempo.
No entanto, se uma ontologia do ser não é possível, isto não significa que a
experiência da indeterminação do ser seja uma simples ilusão. Ela tem um conteúdo
de verdade, pois será a primeira manifestação de uma impossibilidade que servirá de
motor para o movimento dialético, a saber, a impossibilidade de pôr a identidade
imediata entre realidade (Wirklichkeit) e fenômeno (Erscheinung). A experiência da
indeterminação nos lembra que há algo que não se esgota nas formas atualmente
determinadas da presença. Em última instância, ela nos obrigará a reconstruir a
própria noção do que significa “determinar algo”. De uma certa forma, a
impossibilidade de uma ontologia do ser já é uma experiência com conseqüências
ontológicas. Isto talvez nos explique porque a impossibilidade de uma ontologia do
ser leva Hegel a afirmar algo como a possibilidade de uma ontologia que parte desta
que será a primeira categoria concreta da Ciência da Lógica, a saber, o devir.
Podemos dizer que uma ontologia que parte do devir não pode ser apenas uma
doutrina que substitua a centralidade do conceito de ser por um conceito de outra
natureza, como, no caso, o devir. Na verdade, sua operacionalidade deve ser diferente,
seus processos devem ser descritos de outra maneira. Trocar um conceito por outro
conservando a operacionalidade interna da teoria, seu modo de conceitualizar, não nos
leva muito longe. Por isto, podemos dizer que a ontologia tentada por Hegel tem por
característica principal procurar apreender os conceitos em seu processo de alteração.
Ela parte da defesa de que nenhum conceito isolado apreende adequadamente os
processos internos ao campo da experiência, mas tais processos podem ser
apreendidos através da passagem de um conceito a outro. Vale aqui o que dirá
posteriormente Adorno a respeito de Hegel: “Como cada proposição singular da
filosofia hegeliana reconhece sua própria inadequação à unidade, a forma exprime
então tal inadequação na medida em que ela não pode apreender nenhum conteúdo de
maneira plenamente adequada”31. Este movimento de passagem, que mostra a
insuficiência de conceitos pensados como descrição de objetos, é o fenômeno que
funda uma ontologia de caráter especulativo, como quer Hegel.
Uma maneira possível de compreender melhor este ponto passa pela tentativa
de compreender a natureza da estrutura peculiar da Ciência da Lógica com suas
divisões. Tal estrutura já nos introduz a certas especificidades do conceito hegeliano
de ser.
A primeira divisão com a qual nos defrontamos é a dualidade Lógica objetiva
(que engloba a Doutrina do ser e a Doutrina da essência) e a Lógica subjetiva
(Doutrina do Conceito). Grosso modo, a divisão não parece trazer maiores
dificuldades, já que ele parece indicar um movimento de internalização no qual a
tematização do ser (objeto da lógica objetiva), enquanto determinação aparentemente
exterior à forma do pensar, entra em movimento até se transformar em tematização do
conceito (objeto da lógica subjetiva). Ao alcançar a forma do conceito, o movimento
que animou as categorias ligadas ao ser, dará a forma para a re-organização dos
elementos da lógica tradicional (conceitos/formas do julgamento/modo s de
inferência). Ou seja, a passagem da lógica objetiva à lógica subjetiva descreveria, em
larga medida, o movimento através do qual a substância (o ser) é apreendida como
sujeito (o conceito), já que esta dualidade é inspirada da distinção sujeito/objeto.
No entanto, há duas peculiaridades importantes nesta divisão. Primeiro, a
lógica objetiva é dividida internamente a partir de duas noções (ser e essência).
Segundo, a lógica subjetiva não se contenta em apenas re-organizar os elementos da
lógica tradicional. Ela tem ainda uma longa subdivisão intitulada exatamente
“objetividade”, onde é questão de categorias normalmente vinculadas à filosofia da
natureza, como o “mecanismo”, o “quimismo” e a “teleologia” própria a organismos
biológicos (ou seja, os dispositivos de determinação da racionalidade dos fenômenos
nos campos da física, da química e da biologia). Como se não bastasse, a última
subdivisão, intitulada “A idéia”, dá espaço para a “vida”, assim como para a idéia do
verdadeiro (objeto da teoria do conhecimento) e do bom (objeto da moral) não dando,
curiosamente, desenvolvimento para a idéia do belo (objeto da estética). O que pode
se explicar se levarmos em conta que Hegel quer, na verdade, insistir na maneira com
que a Idéia unifica teoria e prática (o que o par verdadeiro/bom já parece dar conta).
De qualquer forma, fica claro como a tendência da lógica subjetiva é retornar à
exterioridade. Note-se que a Idéia não é nem uma categoria da subjetividade, nem da
objetividade. Ao contrário, ela é o que se encontra para além e para aquém da
distinção sujeito e objeto. Por isto, ela deve aparecer como superação destas
perspectivas particulares.

31 ADORNO, Drei studien über Hegel, p. 104


Analisemos pois o sentido da primeira destas “peculiaridades” na estrutura da
lógica hegeliana, a saber, a necessidade de dividir a lógica objetiva a partir das noções
de ser e essência. Ela é justificada por Hegel a partir da exigência de introduzir uma:

esfera de mediação, esfera do conceito como sistema das determinações de


reflexão, ou seja, do ser que se transforma em ser em-si do conceito, que desta
forma não é ainda posto como para si [tal como na lógica subjetiva], mas que
compreende o ser imediato como algo que também lhe é exterior. Isto é a
Doutrina da essência que está no meio entre a Doutrina do ser e do conceito32.

Ou seja, a essência é, fundamentalmente, uma noção que opera a mediação


entre o ser e o conceito. Daí porque talvez seja correto dizer que esta é a região central
do livro, onde os processos principais são apresentados. Mas qual a necessidade desta
mediação? Grosso modo, podemos dizer que as categorias do ser (como “ser”,
“nada”, “finito”, “infinito”, “um”, múltiplo”) tendem a produzir a ilusão de serem
determinações isoladas e não relacionais. No conceito de ser não está imediatamente
expresso que ele é impensável sem seu oposto, o nada. Já as categorias da essência
(como “identidade”, “diferença”, ‘contradição”, “fundamento”) são imediatamente
categorias relacionais, onde um termo traz imediatamente o seu oposto. Desta forma,
a tematização da essência permite o abandono de uma noção fixa e identitária de
objeto em prol de uma noção onde “objeto” nada mais é do que o nome de uma
estrutura relacional. Tal passagem é fundamental porque, em Hegel, o conceito não é
conceito de objeto, o conceito não tece relações bi-unívocas com objetos isolados.
Antes ele é a formalização de relações entre objetos, o conceito é um conceito de
estados de coisas. Daí porque podemos dizer que: “no Ser reina uma imediatez sem
relação, na essência emerge uma estrutura relacional, que se eleva, no conceito, à pura
reflexividade”33. A própria maneira como a Doutrina do ser é subdividida (qualidade,
quantidade e medida) indica um movimento onde se parte da determinação imanente
mais aparentemente singular e irredutível (a qualidade) a uma determinação que só é
no interior de uma relação geral com outros (a medida).
Mas é sempre bom lembrar que esta passagem do ser à essência é
impulsionada pelo ritmo da explicitação: trata-se de explicitar uma estrutura
relacional que já estava em operação, mas de maneira não-reflexiva, na compreensão
das categorias do ser. Isto pode nos explicar porque: “a passagem do ser à essência é
passagem das determinações que parecem existir por si nas ‘coisas’ (o ser) à revelação
de que as determinações aparentemente as mais ‘imediatas’ estão desde sempre
constituídas e organizadas em um pensamento unificado (...) Uma mesma unidade
pensada organiza as percepção das coisas e a compreensão de suas relações: ser e
essência são uma e outra o produto do conceito” 34. Neste sentido, a necessidade desta
região intermediária que é a Doutrina da essência demonstra como a Ciência da
Lógica procura, acima de tudo, apreender os conceitos em seu processo interno de
alteração.

Começar com o ser

32 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 58


33 HÖSLE, idem, p. 247
34 LONGUENESSE, Hegel et la critique de la métaphysique, p. 9
Mas antes de passar diretamente à Doutrina do ser, Hegel deve responder à
questão: Qual deve ser o começo da ciência? Como sabemos, já na Fenomenologia
Hegel criticava todo empreendimento filosófico que fizesse apelo a estratégias de
dedução transcendental a fim de assegurar o saber no campo prévio a toda e qualquer
experiência. Neste caso, o primeiro passo do saber fenomenológico consistia em
examinar a figura da consciência que procura afirmar a possibilidade da
imediaticidade entre pensar e ser. Era daí que Hegel partia no primeiro capítulo do
livro, este dedicado à Certeza sensível. Maneira hegeliana de proceder de forma
imediata a fim de ver se é possível um saber que tenha duas características
fundamentais: espontaneidade e caráter repentino (Plötzlichkeit)35. Saber que apreende
de maneira imediata seu objeto e que estabelece a possibilidade de operações
intuitivas aparentemente independentes de toda capacidade conceitual. Como dirá
Heidegger: “O saber imediato tem precisamente este traço em si, este modo de saber:
deixar o objeto completamente a si mesmo. O objeto se sustenta em si como o que
não tem necessidade alguma de ser para uma consciência, e é exatamente ao tomá-lo
como tal, como o que se dá em si que a consciência o sabe imediatamente”36. É a
impossibilidade deste saber que deixa o objeto completamente a si mesmo que nos
levará aos caminhos trilhados pela Fenomenologia.
No entanto, a consciência acredita que o conteúdo concreto deste saber é “um
conhecimento de riqueza infinda, para o qual é impossível achar limite”. Este saber é
apresentado como uma certeza sensível (sinnliche Gewissheit), ou seja, certeza de que
a presença do ser se dá através da receptividade da sensibilidade. Presença integral do
ser, já que “do objeto nada ainda deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude,
diante de si”. Presença que, por se dar através de uma intuição imediata, não se
completa através do desdobramento do espaço e do tempo ou da inspeção detalhada
de suas partes. Ao tematizar o que chama de certeza sensível, Hegel procura assim dar
conta de toda tentativa de pensar a tarefa filosófica como retorno à espontaneidade do
ser, retorno à origem muda graças a receptividade plena de uma intuição não-
dependente do trabalho do conceito. Retorno que Hegel descreve como a crença de
que é possível filosofar como quem dá um tiro com uma pistola.
Neste sentido, a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da lógica se
encontram nos seus respectivos pontos de partida. Se a Fenomenologia inicia seu
trajeto através da tematização do saber imediato do puro ser, a Lógica também parte
do puro ser a fim de mostrar como ele equivale ao nada indeterminado.
Mas antes de apresentar suas reflexões sobre o ser, Hegel se pergunta porque
não começar pelo Eu, elevando com isto o princípio de subjetividade à condição de
fundamento da objetividade do saber e dando continuidade, desta forma, a uma
seqüência que conhecemos atualmente como “filosofias da consciência”, que tem em
Kant sua figura mais bem acabada, e que Hegel alude ao da maneira com que o “novo
tempo” (ou seja, a modernidade) elevou o Eu a condição de fundamento do saber. As
colocações de Hegel a este respeito são de extrema importância.
Hegel insiste que a primeira verdade que constitui a série do saber deve ser
uma certeza imediata (unmittelbar Gewisses). No entanto, há uma dificuldade
estrutural em tomar o Eu como o fundamento desta certeza imediata. Mas o Eu, ao
mesmo tempo em que procura afirmar-se como consciência-de-si imediatamente certa
de si mesma, é uma instância empírica envolta na “multiplicidade infinita do mundo”.
É isto que Hegel tem em mente ao afirmar : “mas Eu em geral é também, ao mesmo

35 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein, p. 201


36 HEIDEGGER, A fenomenologia do espírito de Hegel, p. 92
tempo, um concreto, ou ainda, na verdade, o Eu é o que há de mais concreto – a
consciência de si como um mundo infinitamente múltiplo” 37. Para ser fundamento, o
Eu deve se separar desta multiplicidade empírica. Isto exige um ato absoluto através
do qual o Eu se purifica de si mesmo como Eu abstrato (ou, se quisermos, como
sujeito transcendental). Isto significa elevar-se a esta perspectiva do puro saber onde a
diferença entre sujeito e objeto desaparece (já que o Eu aparece como fundamento
para a constituição de todo e qualquer objeto da experiência).
Mas Hegel insiste que este puro Eu não é um imediato acessível ao “Eu
ordinário” (gewöhnlich Ich). Mesmo assim, para não ser uma perspectiva arbitrária e
imposta de maneira não-reflexiva, seria necessário que: “o movimento dos Eus
concretos da consciência imediata até o puro saber fosse mostrado e apresentado neles
mesmos a partir de uma necessidade interna”38, como se o fundamento do saber fosse
gerado a partir da necessidade interna própria ao Eu empírico (caminho que, no
fundo, é o sentido da Ciência da experiência da consciência), e não como ruptura
radical em relação a toda e qualquer empiricidade do Eu psicológico. No entanto:

Como este puro Eu deve ser essencialmente puro saber [determinação


transcendental absoluta], e o puro saber só está posto na consciência
individual através do ato absoluto de auto-elevação, não existindo
imediatamente nela, perde-se a vantagem que deveria surgir deste começo da
filosofia, a saber partir de algo absolutamente conhecido que cada um encontra
imediatamente em si e ao qual se pode acrescentar reflexões posteriores39.

Neste sentido, diz Hegel, fala-se de algo conhecido, ou seja, do Eu cuja


referência não pode ser outro que o eu psicológico da consciência empírica, mas
refere-se a algo que é absolutamente estranho (Unbekanntes) à consciência. No
entanto, por ainda se falar do puro Eu: “a determinação do puro saber como Eu leva
consigo à rememoração (Rückerinnerung) contínua do Eu subjetivo” como modo de
construção de sínteses. O que explicaria porque o fundamento acaba por trazer para si
a oposição insuperável ao objeto própria ao Eu enquanto conceito. Melhor seria
abandonar o Eu como fundamento e mostrar como, através dos desdobramentos do Eu
empírico demonstramos que ele não existe enquanto entidade isolada, mas é desde
sempre Espírito, ou seja, aquilo que não é um Eu absoluto, mas o que aparece quando
a individualidade irredutível do Eu se mostra como ilusão. Esta é uma das razões
pelas quais Hegel pode dizer que a Fenomenologia é um pressuposto da Ciência da
Lógica. Pois a Fenomenologia nos livra da ilusão de procurar no Eu o fundamento do
saber e nos abre à tematização de um modo de síntese que não seja mais dependente
da figura de um Eu.
Desta forma, ficam abertas as portas para que o ser possa aparecer como
fundamento, já que ele é o termo comum a todos os outros aspirantes à fundamento
primeiro (o Uno, o absoluto, o divino). Para ser fundamento, o uno, Deus, o absoluto
devem ser. Neste sentido, nada mais natural do que começar com esta categoria que
parece estabelecer o campo no qual o fundamento poderá aparecer de maneira mais
elaborada, a saber, o ser. Isto a ponto de Hegel afirmar que a própria história da
filosofia começaria verdadeiramente com o compreensão do absoluto como ser, isto
através de Parmênides e sua proposição: “o ser é, o nada não é”.

37 HEGEL, Wissenschaft der Logik, p. 76


38 Idem, p. 76
39 Idem, p. 77
Pura forma da intuição

Ser, puro ser: sem nenhuma determinação outra. Na sua imediatez


indeterminada, ele é apenas igual a si mesmo e não é desigual em relação a
outra coisa; ele não tem diversidade alguma no interior de si nem fora.
Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como diferentes,
ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe
permitiria manter-se em sua pureza. Ele é pura indeterminidade e vazio
(Leere). Não há nada a intuir nele, se da intuição poderíamos aqui dizer; ou ele
é apenas este próprio intuir, puro e vazio (...) O ser, o imediato indeterminado
é, na verdade, nada, não mais nem menos que nada40.

Esta é, sem dúvida, uma das afirmações mais conhecidas e polêmicas de Hegel. Antes
de comentá-la, notemos a peculiaridade que consiste em afirmar que a primeira
manifestação da qualidade é a indeterminação. Hegel reconhece que, por ser
indeterminado, o ser aparece como desprovido de qualidade; mas em-si o caráter de
indeterminação é posto como oposto da determinação ou do qualitativo. Por isto, o
ser: “faz da sua própria indeterminação sua qualidade”41.
Esta posição do ser como indeterminação aparece a Hegel porque o ser, como
começo, não pode referir-se a nada outro que ele mesmo, senão ele não seria começo,
isto no sentido da categoria mais imediata do saber. O ser é auto-referência imediata e
incondicional. No entanto, como a determinação é um processo relacional, só se
determina algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo, então esta auto-
referência imediata do ser só pode equivaler à absoluta indeterminação. Daí porque
Hegel pode dizer: “Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como
diferentes, ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe
permitiria manter-se em sua pureza”. De fato, o ser só passa à determinação quando
é posto em uma situação, ou seja, em um contexto (Zusammenhang) próprio à
existência. O que nos explica porque a segunda categoria da qualidade deve
necessariamente ser o Dasein (no sentido de existência, presença, ser-aí). Desprovido
de uma situação, abstraído de todo contexto ôntico, o ser só pode ser apreendido como
pura abstração:

A reflexão deve, em vista disso, empenhar-se em procurar uma firme


determinação para o ser, pela qual ele seria diferente do nada. Por exemplo:
toma-se o ser como o que persiste em toda mudança, a matéria infinitamente
determinável etc., ou, ainda sem reflexão, como uma existência singular
qualquer, o sensível ou o espiritual mais próximo que houver. Porém todas as
determinações ulteriores e mais concretas como essas não deixam mais o ser
como puro ser; como é imediatamente, aqui no começo42.

Desta forma, Hegel procura criticar todo conceito pré-reflexivo de ser por
acreditar que isto significa fazer a filosofia determinar, como seu objeto privilegiado,
nada mais do que um vazio total, um X inexprimível que, por se subtrair a toda
predicação, advém um Ens realissimum.
Hegel dirá então que o ser: “é apenas a própria intuição pura, vazia”, ou seja, o
pensamento desprovido de objeto. Ao definir posteriormente o nada como “igualdade

40 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 82


41 HEGEL, idem, p. 82
42 HEGEL, Enciclopédia, par. 87
simples consigo mesmo, vazio perfeito (vollkommene)”, Hegel admite que ele pode
existir em nossa intuição ou pensamento. O que não deixa de nos remeter à noção
kantiana de ens imaginarium, uma intuição vazia sem objeto que Kant define nos
seguintes termos: “A simples forma da intuição, sem substância, não é em si um
objeto [determinado], mas a sua condição simplesmente formal (como fenômeno),
como o espaço puro e o tempo puro que são algo, sem dúvida, como formas da
intuição, mas não são em si objeto suscetíveis de intuição (ens imaginarium)”43. Neste
sentido, se aceitarmos a definição proposta do ser como forma da intuição vazia sem
objeto, como aquilo que nos permite nomear a forma do tempo puro e do espaço puro,
então chegaremos a uma situação estruturalmente similar àquela que encontramos no
primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito. Lá, vemos a consciência tomar a
pura forma do tempo e do espaço como ser de realidade mais elevada. De uma certa
forma, ela crê ser possível substancializar a pura forma do espaço e tempo, chamando
tal substancialização de “ser”. Mas ao tentar expressar tal forma pura da intuição, a
consciência fará a experiência contraditória da impossibilidade de tal expressão. Não
posso expressar a pura forma da intuição. Ao tentar, ou digo apenas nada ou coloco o
ser em relação, não tenho mais a pura forma da intuição, mas tenho um conteúdo
situado. Hegel dirá : não tenho mais o ser (Sein), mas apenas o ser-aí (Da-sein).
Hegel lembra que a consciência acredita ter muito mais do que o puro ser que
constitui a essência da sua certeza sensível: “Uma certeza sensível efetiva (wirkliche
sinnliche Gewissheit) não é apenas essa pura imediatez, mas é um exemplo da
mesma”44. Ou seja, a consciência acredita ter uma colocação em cena desta imediatez,
o que demonstraria que não estávamos diante de um puramente indeterminado. Esta
colocação em cena é operada através da capacidade que teria a consciência de indicar
o ser através de dêiticos como “isto”, “este”. Através deles, a consciência quer indicar,
de maneira ostensiva, a significação do ser que lhe aparece à intuição. No entanto, o
“isto” e o “este” produzirão a determinação diferenciadora da singularidade do ser.
Não estaremos mais exatamente diante do puro ser. Colocar em cena a imediatez é
necessariamente diferenciar, colocar o ser em relação e romper o absoluto.
O que é interessante neste contexto será o saldo da experiência. Ao tentar
substancializar o que deveria ser simples condição formal para os fenômenos (a saber,
as formas pura da intuição), a consciência não cometia um simples equívoco. Na
verdade, ela procurava tematizar o incondicionado. Mas ao procurar o
incondicionado, ela apenas encontrou o indeterminado. Vai da astúcia de Hegel
afirmar que tal experiência não é um simples fracasso, mas deslevamento do excesso
que indica como toda estruturação de objeto será sempre assombrada pela
indeterminação. Pois a afirmação segundo a qual o ser é, de fato, nada, não mais nem
menos que nada, visa solapar a segurança ontológica do que deveria aparecer como
fundamento para o processo de determinação dos objetos. Tentemos compreender
melhor este ponto.

A primeira categoria concreta

Neste sentido, o devir (Werden) como resultado da posição da unidade entre


ser e nada deve ser medido em todas as suas conseqüências. O pequeno parágrafo
sobre o devir é, sem dúvida, um dos mais decisivos de todo o livro. Por isto, ele deve
ser citado na íntegra:

43 KANT, Crítica da razão pura, B 347/A 291


44 HEGEL, Fenomenologia, par. 91
O puro ser e o puro nada são pois o mesmo. O verdadeiro não é nem o ser
nem o nada, mas que o ser passou no nada (übergegangen ist) e que o nada
passou no ser – não que ele passa. No entanto, ao mesmo tempo, a verdade não
é a indiferenciação entre os dois, mas que eles não são o mesmo, que eles são a
diferença absoluta, embora sejam inseparáveis e inseparados e que,
imediatamente, cada um desaparece em seu oposto. Sua verdade é pois este
movimento do imediato desaparecer de um no outro: o devir, um movimento
através do qual ambos são diferentes, mas através de uma diferença que
imediatamente se dissolveu (aufgelöst hat)45.

Este pequeno parágrafo sintetiza o que Hegel entende por movimento e identidade
dialética. Não se trata exatamente de dizer que “ser” e “nada” são termos que
designam o mesmo, um pouco como “Vênus” e “estrela Dalva” designam o mesmo.
Trata-se de dizer que eles alcançam uma identidade que é resultado de um
movimento. No entanto, trata-se de um peculiar “movimento imediato”, ou seja,
movimento que ocorre imediatamente a partir do momento em que um termo é posto,
já que não é possível ao ser pôr-se sem passar no seu oposto (passagem no oposto que
Hegel chama de Verkehrung - inversão). Esta é uma maneira de dizer que o conceito
de ser não tem realidade. Da mesma forma, o conceito de nada não tem realidade.
No entanto, a passagem do conceito de ser ao conceito de nada tem realidade. Esta
passagem não é alguma forma de nadificação do ser, mas de reconhecimento da
insuficiência de sua significação. A significação do ser demonstra sua inanidade
quando é posta.
Aqui, devemos entender melhor a idéia de posição. Tentemos, por exemplo,
interpretar uma afirmação como: “ser e nada são o contrário em toda a sua imediatez,
isto é, sem que em um deles já tinha sido posta uma determinidade, que contivesse
sua relação para com o outro” 46. Fica claro como a idéia de posição implica
determinar, isto no sentido de passar à dimensão concreta, ôntica, fenomenal. Ser e
nada são contrários quando não são postos, quando são imediatamente visados. Até
porque: “não há nada no céu e na terra que não contenham em si ser e nada” 47. Este é
um ponto fundamental para todo penasamento dialético: a passagem à existência, a
posição, sempre é um acréscimo em relação à determinação categorial, e não sua
mera repetição, como se da determinação à existência não houvesse processo.
Lembrem a este respeito da afirmação kantiana, segundo a qual cem táleres reais não
contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis48.
Mas dizer isto implica afirmar que o próprio uso gramatical do verbo não pode
ser visto de maneira indiferente pela especulação filosófica. Talvez isto explique
porque Hegel fala a todo momento que a forma da proposição “O Ser é nada”, forma
de um julgamento de identidade, é inadequada para expressão a verdade especulativa:
“Sendo o conteúdo especulativo, então também a não-identidade do sujeito e do
predicado é momento essencial, mas isto não está expresso no julgamento” 49. Isto a
ponto de Hegel afirmar que o conteúdo especulativo só poderia ser apreendido através
de uma série de duas proposições contrárias (“O Ser é nada” e “O Ser não é nada”)
que apresentam uma antinomia.

45 HEGEL, idem, p. 83
46 Idem, Enciclopédia, par. 88
47 HEGEL, ibidem, p. 86
48 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de ver
FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique,
49 Idem, Wissenschaft der Logik, p. 93
Todas estas colocações visam indicar que não é possível pensar o devir a partir
de uma gramática filosófica própria à entificação das categorias do entendimento.
Pois o devir deve aparecer como movimento interno ao ser, isto a ponto de todas as
utilizações do verbo “ser” no interior de proposições de identidade não poderem mais
expor igualdades tautológicas, mas, digamos, “proposições de devir”.
Esta afirmação do devir como verdade do ser é a maneira hegeliana de
introduzir a temporalidade no interior do ser. Por isto, ele define os momentos do
devir como “nascer e perecer” (Entstehen und Vergehen), além de determinar o devir
como a potência da inquietude que corrói o ser por levá-lo ao ponto de
evanescimento, o que fica claro em uma afirmação como: “O devir é o
desaparecimento/ o desvanescer do ser no nada e do nada no ser, assim como o
desaparecimento do ser e nada em geral (...) O resultado é o ser que desaparece
(Verschwundensein), mas não como nada”50. Ou seja, o devir é a categoria que
determina a significação do ser e do nada como passagem ao seu limite, o que nos
leva a superar o caráter limitado destas categorias e a problematizar uma gramática
que visa fazer referência a uma experiência que a todo momento lhe escapa. O que
pode nos explicar porque: “O devir é o primeiro pensamento concreto e, com isto, o
primeiro conceito; ao contrário, ser e nada são abstrações vazias”51.
Esta idéia do devir como dispositivo de formalização de determinações que
estão passando no seu limite diz muito a respeito de um conceito renovado de
determinação que parece animar as considerações hegelianas (e não devemos
esquecer que o título desta nossa seção é exatamente “determinidade”). Neste ponto,
devemos lembrar desta rápida, porém importante, consideração hegeliana sobre o
caráter dialético das “grandezas infinitamente pequenas”. Tais considerações devem
ser lidas juntamente com a idéia de que, como notaram alguns comentadores, o termo
que teria valor de termo nulo está ausente da doutrina hegeliana do Conceito 52. Isto
acontece porque, em Hegel, o termo negado nunca alcança o valor zero, já que esta
função do zero será criticada por Hegel como sendo um “nada abstrato” (abstrakte
Nichts). Neste sentido, o interesse hegeliano pelo cálculo infinitesimal, base para sua
reflexão sobre as grandeza infinitamente pequenas, estaria ligado à maneira com que
Hegel estrutura sua compreensão da negação como um impulso ao limite da
determinidade. A negação hegeliana nunca alcança o valor zero porque ela leva o nada
ao limite do surgir (Entstehen) e o ser ao limite do desaparecer (Vergehen). O que
nos explica porque ele afirma: “Estas grandezas foram determinadas de tal modo que
são em seu desaparecer, não antes de seu desaparecer, pois seriam grandezas finitas,
nem depois de seu desaparecer, senão seriam nada”53. Ou seja, elas são pensadas no
processo em que as determinações discretas deixam de conseguir se referir às
grandezas ou, se quiseremos, onde a distinção entre ser e nada deve dar lugar a algo
que Hegel deplora por não ter, por enquanto, termo melhor do que “estado
intermediário” (Mittelzustand) entre ser e nada. Na verdade, podemos dizer que a
noção de grandezas infinitamente pequenas forneceria a exposição deste movimento
no qual o ser está desaparecendo e onde o nada esta manifestando-se em uma
determinidade. Movimento cuja exposição exige uma outra compreensão do que é um
objeto, para além da idéia do objeto como pólo fixo de identidade, e de determinação,
para além da idéia de determinação como definição atributiva de predicados
limitadores.

50 Idem, p. 113.
51 Idem
52 DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145
53 HEGEL, idem, p. 111
Notemos ainda como Sartre criticará esta maneira hegeliana de pensar a
indissociabilidade entre ser e nada ao afirmar: “não é possível que ser e não-ser sejam
conceitos de mesmo conteúdo porque, ao contrário, o não-ser supõe um
encaminhamento irredutível do espírito: qualquer que seja a indiferenciação primitiva
do ser, o não-ser é esta mesma indiferenciação negada. O que permite a Hegel “fazer
passar” o ser no nada é que ele introduz implicitamente a negação na própria
definição do ser”54. A crítica fará escola e consiste em dizer que ser e nada não podem
ser tratados como similares já que o nada seria não-ser, negação do ser: “Ora, o ser é
vazio de toda determinação diferente da identidade consigo mesmo, mas o não-ser é
vazio de ser. Em uma palavras, o que se deve lembrar contra Hegel, é que o ser é o
não-ser não é”55. No entanto, é exatamente a crença de que o ser seria identidade
consigo mesmo o objeto da crítica hegeliana. Hegel insiste que tal identidade expressa
no conceito de ser é simplesmente uma abstração inefetiva, por isto, ao tentar afirmar
sua identidade ele passa necessariamente no nada. Ao menos neste sentido, a
passagem do ser ao nada é simplesmente a forçagem da diferença enquanto potência
de movimento.

Heidegger, leitor de Hegel

Neste ponto, podemos lembrar de um filósofo para quem esta desqualificação


hegeliana de uma ontologia do ser era inaceitável, a saber, Martin Heidegger. A
confrontação de Heidegger a Hegel é uma constante. Heidegger dedica cursos à
Fenomenologia do Espírito, assim como vários artigos a Hegel (em especial, “Hegel e
os gregos” e “Hegel e seu conceito de experiência”). Tal confrontação justifica-se pela
necessidade de distinguir duas fenomenologias: esta que nos leva a compreensão do
caráter produtor do Espírito (Hegel) e esta que nos leva à compreensão da história da
ocultação do ser (Heidegger). Todas as duas partem da crítica da experiência
fenomenal, embora seus resultados sejam profundamente distintos.
Partamos de uma afirmação maior para nosso problema relativo à
possibilidade de uma ontologia do ser. Diz Heidegger, a respeito de Hegel: “O ser,
enquanto primeira e simples objetividade dos objetos, é pensado desde o ponto de
vista da referência ao sujeito a ser pensado, por meio da pura abstração deste” 56. Ou
seja, a defesa hegeliana da natureza de abstração própria ao ser seria resultado da
crença de que apenas a reflexão subjetiva poderia fornecer um fundamento ao pensar.
Hegel pode afirmar que ser e nada são pois o mesmo porque, para ele, aquilo que resta
quando a subjetividade retira seu representar é apenas o puramente indeterminado.
Esta forma de compreender o ser nos explica porque Heidegger afirma, sempre a
respeito de Hegel: “o ser e, por conseguinte, aquilo que é representado nas palavras
fundamentais, não é ainda determinado e não é ainda mediado através e para o
interior do movimento dialético da subjetividade absoluta”57. Pois é o sujeito com suas
estruturas de reflexão que determina o que há a ser pensado e ele determina o que há a
ser pensado necessariamente sob a forma de “entes”. “O que não é um ente”, dirá
Heidegger a respeito de Hegel, “é nada” 58. O que nos deixa com a questão de
compreender o que pode significar determinar algo sob a forme de um ente.

54 SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant, p. 49


55 Idem, p. 50
56 HEIDEGGER, Martin; Marcas do caminho, Petrópolis: Vozes, p. 444
57 Idem, p. 446
58 HEIDEGGER, Martin; Hegel, p. 44
Para compreender este modo de produtividade da subjetividade devemos
insistir que a interpretação de Heidegger deve partir de um pressuposto fundamental,
a saber, desde Descartes “sujeito” é o que se fala da mesma maneira. Hegel chegaria
apenas lá onde Descartes já havia definido a meta, a saber, compreender a essência do
que é como objeto disponível ao entendimento calculador de um sujeito, o mesmo
sujeito que diante de um pedaço de cera só verá res extensa. A terra firme que,
segundo Hegel, Descartes descobre é a compreensão do saber como: “certeza de si do
sujeito sabendo-se incondicionalmente”59. Compreensão que Hegel levará ao extremo
através de seu idealismo absoluto.
Em uma passagem célebre de seus cursos sobre Nietzsche, Heidegger insiste
que a estrutura da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é
fundamentalmente posicional. Refletir é por diante de si no interior da representação,
como se colocássemos algo diante de um “olho da mente”. Seguindo os rastros de
texto cartesiano, ele nos lembra que, em várias passagens, Descartes usa cogitare e
percipere como termos correlatos. Um uso necessariamente prenhe de consequências.
De fato, Heidegger deve pensar aqui, primeiro, na maneira peculiar com que
Descartes utiliza o termo latim percipere. Ele raramente é utilizado para designar
processos sensoriais, como visão e audição (nestes casos, Descartes prefere utilizar o
termo sentire). Percipere designa, normalmente, a apreensão puramente mental do
intelecto, já que, em Descartes, é a inspeção intelectual que apreende os objetos, e não
as sensações. Assim, por exemplo, na meditação terceira, ao falar daquilo que aparece
ao pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: “todas as vezes que volto
para as coisas que penso conceber mui claramente sou de tal modo persuadido
delas ...”60. Mas, de fato, “penso conceber” é a tradução não muito fiel de percipere61.
Da mesma forma, Descartes, mais a frente falará de : “tudo aquilo que concebo clara e
distintamente”62 pelo pensamento. Mas, novamente, o termo “conceber” é uma
tradução aproximada de percipere, já que o texto latim diz: “illa omnia quae clare
percipio”. De onde se vê como percipere serve, nestes casos, para descrever o próprio
ato mental do pensamento.
Heidegger é sensível a este uso peculiar de percipere por Descartes pois a
reconstrução etimológica do termo nos mostra que ele significa: ‘tomar posse de algo,
apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-
stellen) [lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-
si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”63. Desta forma, a compreensão
de cogitare por Vor-stellen (re-presentar/por diante de si) estaria mais próxima do
verdadeiro sentido deste fundamento que Descarte traz como terra firma da filosofia
moderna.
Tais aproximações permitem a Heidegger interpretar o cogitare cartesiano
como uma representação que compreende o ente como aquilo que é essencialmente
representável, como aquilo que pode ser essencialmente disposto no espaço da
representação. É assim que devemos compreender a frase-chave: “O cogitare é um
dispor-para-si do representável”64. Assim, cogitare não seria apenas um processo geral
de representação, mas seria um ato de determinação da essência do todo ente como
aquilo que acede a representação. Isto indicaria como todo ato de pensar é um ato de
59 HEIDEGGER, Martin; Holzwege, p. 163
60 DESCARTES, Meditações, p. 108
61 Conforme o texto em latin: “Quoties vero ad ipsas res, que valde clare
percipere arbitror ...”
62 ibidem, p. 116
63 HEIDEGGER, Nietzsche II
64 idem
dominar através da submissão da coisa à representação. O diagnóstico de Heidegger
seria claro: “algo só é para o homem na medida em que é estabelecido e assegurado
como aquilo que ele pode por si mesmo, na ambiência (Umkreis) de seu dispor, a todo
instante e sem equívoco ou dúvida, reinar como mestre”65. Pois a compreensão do
pensamento como capacidade de articular representações, como competência
representacional impõe um modo específico de manifestação dos entes ao
pensamento. O ente será, a partir de agora, aquilo que aparece, para um sujeito
cognoscente, como objeto adequado de uma representação categorizada em
coordenadas espaço-temporais extremamente precisas. Neste sentido: “o homem se
coloca si mesmo como a cena (Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se
apresentar (vor-stellen, präsetieren)”66. Daí porque Heidegger pode afirmar que o
cogito traz uma nova maneira da essência da verdade.
Nada disto é estranho a Hegel quando este insistir que a reflexão, enquanto
disposição posicional dos entes diante de um sujeito, não pode deixar de operar
dicotomias e divisões no interior do que se oferece como objeto da experiência entre
aquilo que é para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se dá através da
receptividade da intuição e aquilo que é ordenado pela espontaneidade do
entendimento com suas estruturas reflexivas de representação, entre o que é da ordem
do espírito e o que é da ordem da natureza, entre o que é acessível à reflexão e o que é
Absoluto.
No entanto, Heidegger acredita que Hegel não é capaz de dar uma resposta
adequada que possa superar tais divisões. Antes, ele seria apenas a culminação de um
longo projeto de determinação pela representação e de afirmação da destinação
técnica das coisas impulsionado pelo sujeito cartesiano. No interior deste modo de
determinação, a verdade seria sempre definida como adequatio intellectus rei, ou seja,
como adequação entre representações mentais e estados de coisa dotados de
acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica. O sujeito seria, assim, o
fundamento de um modo de determinação por representação, modo no interior do
qual “objeto” seria apenas aquilo que ocorre às coisas quando elas se deixam
representar pelo sujeito. Dentro desta imagem do pensamento, o que não se deixa
representar não pode ser pensado. Preso no interior da representação, o sujeito só
pode relacionar-se à exterioridade do campo do representável através da
“negatividade”. A negatividade seria assim a última astúcia de um pensamento
incapaz de escapar da representação como único modo de determinação. Hegel admite
aquilo que Heidegger chama de “diferença ontológica” entre ser e ente, mas apenas
para reduzir o ser à imediaticidade indeterminada do nada.
Tudo se passa assim como se houvesse uma antropologia insidiosa a se
confundir com a modernidade, limitando as possibilidades do que há a ser
experimentado devido ao horizonte estabelecido por nossos processos de
racionalização. A possibilidade da filosofia abandonar uma época histórica marcada
pela metafísica e suas estruturas reificadoras (época que seria fundamentalmente
“metafísica do sujeito”) estaria vinculada à sua capacidade de acordar deste sono
antropológico, abandonando um projeto que culmina com o império da filosofia da
consciência. A reificação produzida pelas categorias metafísicas de nosso pensamento
exigiria uma crítica radical das estruturas que constituíram o que entendemos pura e
simplesmente por “pensamento racional”, isto para que um sentido originário do
logos possa ser recuperado. O que explica proposições como: “Se o homem quiser
voltar a se encontrar novamente nas cercanias do ser, então ele precisa antes aprender

65 idem
66 HEIDEGGER, Holzwege, p. 119
a existir no sem-nome (...) Antes de falar, o homem precisa novamente deixar-se
interpelar, correndo o risco de que, sob esse apelo, ele pouco ou raramente tenha algo
a dizer”67. Só assim, ele poderia: “libertar o ser no sentido grego, o ει ναι, da
referência ao sujeito, para, então, entregá-lo à liberdade de sua própria essência”68.
Assim, contra uma concepção correspondencialista de verdade como
adequação (ou contra seu complemento hegeliano através da ontologização da
inadequação), Heidegger se propõe a recuperar o conceito grego de aletheia (verdade
como desvelamento, a-lethe: não-esquecimento). Uma verdade que apenas eclode lá
onde a atividade subjetiva de determinação não é mais sentida. Nestas condições: “a
liberdade revela-se como o deixar-ser (Gelassenheit) do ente”69. Daí uma afirmação
como: “Deixar-ser o ente – a saber, como o ente que ele é – significa entregar-se ao
aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por
assim dizer, consigo. Esse aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o
seu início, como τα αληϑεα, o desvelado” 70. Uma abertura que é deixar ser o que
aparece à racionalidade instrumental como acontecimento: “imprevisível e
inconcebível”71 ou, como dirá Heidegger, como Ereignis (acontecimento, evento,
ocorrência).
A primeira questão que podemos colocar diz respeito à correção deste modo
de leitura que assimila a subjetividade hegeliana ao sujeito cartesiano. Pois,
contrariamente a Descartes, para Hegel, pensar não é representar nem a verdade é
uma questão de adequação. O conceito não é uma representação previamente definida
em sua clareza e distinção, como o que se dispõe como o que há a ver, como imagem
de uma coisa na presença, mas um processo de reconstrução normativa a partir do
desdobramento da experiência, mesmo que Heidegger desqualifique o conceito
hegeliano de experiência como a confirmação da “etantidade do ente” que se desdobra
no campo da representação a si da consciência 72. Como veremos daqui a duas aulas, a
dialética desconhece representações porque, em seu interior, as relações entre
conceitos e objetos não se dão sob a forma de subsunções, por isto não é possível falar
em adequação entre conceito e objeto. As relações são pensadas a partir de negações
determinadas. Hegel chega mesmo a eleger o pensar representativo como objeto
maior de combate da dialética.
A segunda questão diz respeito à estratégia heideggeriana de dissociar ser e
sujeito a fim de abrir espaço à temporalidade fundamental do acontecimento.
Heidegger critica a estratégia hegeliana de compor uma historicidade pensada através
do desdobramento de negações determinadas pois, a seu ver, trata-se de uma
confirmação do que a consciência inicialmente projetara. Ou seja, trata-se de uma
historicidade sem acontecimento. Daí uma afirmação como: “o progresso na marcha
histórica da história da formação da consciência não é empurrado para a frente, em
direção ao ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da
consciência, mas ele é impulsionado a partir do objeto já proposto” 73. Esta é uma
crítica que fará escola e consiste a dizer que a história em Hegel é a teleologia do
Espírito que confirma a si mesmo no mundo e em uma progressão contínua.

67 Idem, Marcas do caminho, p. 332


68 Idem, p. 449
69 Idem, p. 200
70 Idem, p. 200
71 Idem, p. 205
72 “A experiência é a apresentação do sujeito absoluto se desdobrando na
representação e assim se apreendendo. A experiência é a subjetividade do sujeito
absoluto” (HEIDEGGER, Martin; Holzwege, p. 226)
73 Idem, Holzwege, p. 196
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética negativa
Aula 3
Os conceitos hegelianos de tempo e história

Na aula de hoje, gostaria de discutir o conceito hegeliano de temporalidade. Chave


para a compreensão da natureza do movimento dialético, o conceito de temporalidade
é pensado a partir de suas articulações com a noção de historicidade. O que nos
lembra como, para pensadores do porte de Hegel e Marx, a história aparecia como a
destinação necessária da consciência não apenas por ela ser o campo no qual se daria
a compreensão do sentido das ações dos indivíduos com suas determinações causais a
serem reconstruídas, mas sobretudo por ela impedir o isolamento da consciência na
figura do indivíduo atomizado, construindo identidades coletivas ao mostrar como a
essência da consciência encontra-se na reconciliação de seu ser com um tempo social
rememorado. Através da história, ser e tempo se reconciliariam no interior de uma
memória social que deveria ser assumida reflexivamente por todo sujeito em suas
ações. Memória que seria a essência orgânica do corpo político, condição para que ele
existisse nas ações de cada indivíduo, como se tal corpo fosse sobretudo um modo de
apropriação do tempo, de construção de relações de remissão no interior de um campo
temporal contínuo capaz de colocar momentos dispersos em sincronia a partir das
pressões do presente.
Deste momento em diante, a consciência não podia mais ser, como ela era para
Descartes, simplesmente o nome do ato de reflexão através do qual posso apreender
as operações de meu próprio pensamento. Ato através do qual poderia encontrar as
operações de meu pensar quando me volto para mim mesmo no interior de um tempo
sem história, tempo instantâneo e pontilhista que dura o momento de uma enunciação,
como vemos na segunda meditação cartesiana74. A partir de então, a consciência será
fundamentalmente “consciência histórica”, ou seja, modo de atualização de um
complexo de relações que parecem se articular a partir de uma unidade em progresso.
É este caráter vetorial de um tempo que dá a impressão de progredir e acelerar em
direção a um encontro consigo mesmo que forneceria ao corpo político sua
consistência.

Spinoza, esperança e contingência

Mas o advento de tal corpo foi, na maioria dos casos, dependente da


circulação de um afeto que ganhou dimensões políticas decisivas, a saber, a
esperança. É a esperança que sustentará tal corpo social por vir, que produzirá sua
ossatura. Pois esperança é, acima de tudo, uma forma de ser afetado pelo tempo, afeto
indissociável do que poderíamos chamar de “temporalidade da expectativa” 75. Ela é
um modo de síntese do tempo que partilha com outro afeto, a saber, o medo, uma
relação com o que teóricos da história chamarão de “horizonte de expectativa”76.

74 Ver, a este propósito as relações entre criação contínua e tempo descontínuo


em WAHL, Jean; Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris:
Alcan, 1920.
75 A este respeito, ver BODEI, Remo; Geometria delle passioni: paura, speranza,
felicitá, op. cit., pp. 72-82

76 KOSELLECK, idem, pp. 306-327


Vem de Spinoza essa compreensão de medo e esperança como relações ao
tempo de valência invertida: “a esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de
uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida. O medo é uma
tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização
temos alguma dúvida”77. Pois se medo é a expectativa de um dano futuro que nos
coloca em risco, esperança é expectativa da iminência de um acontecimento que nos
colocaria no tempo providencial da imanência enfim desprovida de antagonismos
insuperáveis. Imanência própria à expectativa da concórdia da multiplicidade no seio
da comunidade. No entanto, se o medo é fonte da servidão política por ser: “o que
origina, conserva e alimenta a superstição” 78 da qual se serve o poder de estado para
impedir o exercício do desejo e da potência de cada um como direito natural, a
esperança mostrará seus limites por perpetuar um “fantasma encarnado da imaginação
impotente”79 aprisionada nas cadeias da espera. Neste sentido, ganha importância uma
afirmação como:

Supõe-se que quem está apegado à esperança, e tem dúvida sobre a realização
de uma coisa, imagina algo que exclui a existência da coisa futura e, portanto,
desta maneira, entristece-se. Como consequência, enquanto está apegado à
esperança, tem medo de que a coisa não se realize. Quem, contrariamente, tem
medo, isto é, quem tem dúvida sobre a realização de uma coisa que odeia,
também imagina algo que exclui a existência dessa coisa e, portanto, alegra-se.
E, como consequência, dessa maneira, tem esperança de que essa coisa não se
realize80.

A compreensão precisa de Spinoza sobre a impossibilidade de haver esperança


sem medo, assim como medo sem esperança, vem da natureza linear do tempo
submetido a uma estrutura de expectativas. A interversão da esperança em medo é
afecção necessária de um tempo pensado sob o paradigma da linearidade. Pois
expectativa é abertura em relação a possíveis, realização iminente de possíveis que
não são necessários no momento de sua enunciação e projeção pelos sujeitos. Há uma
distância linear, uma relação descontínua de sucessão entre a localização temporal na
qual o possível torna-se efetivo e esta na qual ele é inicialmente enunciado como
possibilidade. Esta temporalidade linear não pode escapar da aporia própria à “ideia
de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida”. Pois a
ideia de uma coisa futura ou passada é ideia de uma ausência, de uma não-presença
atual, ideia do que nos afeta inicialmente pela sua distância. Por ter sido uma coisa
gerada na distância, por ter sido enunciado na ausência, a realização do possível
nunca poderá superar por completo a condição do que pode a qualquer momento não
mais ser, voltar a sua condição inicial de não-ser. O que passou uma vez pode passar
novamente: esta é regra fundamental da descontinuidade pontilhista do tempo linear.
Por isto, este tempo só poderá ser o tempo da ânsia.
Devemos falar em “tempo da ânsia” porque ele será assombrado pela
possibilidade de dominar a contingência e, com isto, garantir as condições de
possibilidade para a realização da ideia de uma coisa futura ou passada, quando for
objeto de esperança, ou seu afastamento, quando for objeto de medo. Talvez por isto

77 SPINOZA, Bento; Etica, op. cit., p. 243


78 SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, Lisboa: Imprensa Nacional, 1988,
p. 112
79 BODEI, Remo; idem, p. 78
80 SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., pp. 243-245
Spinoza contraponha a esperança e o medo a afetos mais fortes como o contentamento
e a segurança (securitas). “Se, desses afetos, excluímos a dúvida”, dirá Spinoza, “a
esperança torna-se segurança”81. O que lhe leva a afirmar que o fim último do Estado
deve ser: “libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível,
em segurança, isto é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo para si
ou para outros, o seu direito natural a existir e a agir” 82. Desparecido o medo e a
esperança, ficamos enfim sob a jurisdição de nós mesmo, ficamos livres e seguros.
Compreendida neste contexto como: “alegria nascida de uma coisa passada
ou futura da qual foi afastada toda causa de dúvida” 83, a segurança pressupõe ausência
de dúvida que só pode aparecer quando: “a contingência é dobrada por nosso poder
sobre as circunstâncias”84. Ou seja, se a segurança é o afeto mais forte capaz de
superar o medo e a esperança, ele só se afirma quando a ação que se desdobra na
temporalidade for capaz de controlar a violência da contingência. Ela é o resultado de
duas operações centrais: a moderação das paixões em relação aos bens incertos da
fortuna, ou seja, o controle dos que “desejam sem medida” (cupiant sino modo), e a
conservação e ampliação das circunstâncias que estão sob nosso poder, o que fornece:
“os instrumentos de estabilização da temporalidade, ou seja, instituições políticas que
estão e permanecem em poder dos cidadãos e da coletividade” 85. Segurança é, assim,
indissociável da maneira com que o corpo político, pensado como multitude, desarma
a sujeição produzida pelos afetos de medo e esperança, enfrentando a contingência
através da partilha entre aquilo que não pode ser submetido ao engenho humano e
aquilo que pode a ele ser submetido através da institucionalização das condições que
permitem à esta mesma multitude a estabilização da temporalidade. Daí uma
afirmação clara como: “quanto mais nos esforçamos por viver sob a condição da
razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança e por nos livrar do
medo, por dominar, o quanto pudermos, o acaso (fortunae), e por dirigir nossas ações
de acordo com o conselho seguro da razão”86.
Notemos como o tempo aparece assim como a potência fundamental do que
nos desampara. Medo e desamparo são, em seu sentido mais profundo, afetos
produzidos pela expectativa de amparo diante da temporalidade produzida por uma
contingência que nos despossui de nossa condição de legisladores de nós mesmos.
Mas que a contingência apareça aqui como problema central da dinâmica política dos
afetos, eis algo necessário para uma filosofia que não terá medo de afirmar: “nada
existe na natureza das coisas que seja contingente”87, já que tudo seria determinado,
pela necessidade da natureza divina, não apenas a existir, mas a existir e a operar de
uma maneira definida, só havendo determinação necessária. A noção de contingência
seria, na verdade, expressão de uma : “deficiência de nosso conhecimento”88 que, ou
não compreende a ordem das causas, ou não percebe como a essência em questão
comporta contradição e que, por isto, sua existência é impossível. Por isto, só a
imaginação faz com que consideremos as coisas como contingentes. Do ponto de
vista da razão, as relações são sempre necessárias89.

81 SPINOZA, Bento; Ética, op, cit. p. 187.


82 SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, op. cit,. p. 367
83 SPINOZA, Bento; Etica, op. cit., p. 245
84 CHAUÍ, Marilena; idem, op. cit., p. 191
85 Idem, p. 172
86 Idem, p. 321
87 Idem, p. 53
88 Idem, p. 57
89 “É da natureza da razão perceber as coisas verdadeiramente, a saber, como
são em si mesmas, isto é, não como contingentes, mas como necessárias” (idem,
Este esvaziamento da dignidade ontológica da contingência leva a razão a
perceber as coisas sob a perspectiva da eternidade, já que: “os fundamentos da razão
são noções que explicam o que é comum a todas as coisas e que não explicam a
essência de nenhuma coisa singular; portanto, essas noções devem ser concebidas sem
qualquer relação com o tempo, mas sob uma certa perspectiva da eternidade” 90. É pela
recusa da temporalidade que o comum se desvela, que ele se apresenta como:
“totalidade infinita imóvel de coisas singulares em movimento”91. E se Spinoza afirma
que o amor excessivo por coisas que estão sujeitas a variações e da qual nunca
podemos dispor (possumus) só pode ser fonte de infortúnio, a razão nos leva a ideias
claras e distintas de afetos, colocando-nos mais próximo do conhecimento de Deus:
“conhecimento que gera um amor por uma coisa imutável e eterna, e da qual podemos
realmente dispor”92.

Um devir sem tempo

Tais proposições não deixarão de ter consequências políticas claras. Pois é um


verdadeiro devir sem tempo que a razão, segundo Spinoza, nos propõe. Há devir
porque a vida política conhece movimento e processo, haja vista a compreensão anti-
contratualista de que leis e acordos que se demonstraram necessários sejam
abandonados por não serem mais úteis. Ou seja, viver de acordo com a razão não
implica eternidade das instituições e normas. “Um pacto não pode ter qualquer força a
não ser em função de sua utilidade e, desaparecida esta, imediatamente o pacto fica
abolido e sem eficácia”93. No entanto, há de se tirar as consequências de não ser a
partir da contingência que se cria, mas contra ela. Pois isto significa: a política em
Spinoza desconhece a necessidade de integrar o reconhecimento do caráter
impredicável da contingência como motor contínuo da transformação política, já que
a contingência só poderia produzir todas as paixões que mobilizam a imaginação a
criar suas fantasias de amparo. O que nos permite afirmar para Spinoza a política é
forma humana de esvaziar o tempo.
Podemos falar nesta função da política como esvaziamento porque, para haver
tempo, faz-se necessário que as mudanças sejam impredicáveis, que as
transformações não sejam o efeito imanente de uma causa eternamente presente. Para
haver tempo em um sentido estrito, não basta que fatos ocorram, que corpos entrem
em movimento permitindo-me perceber um estado anterior e outro posterior, que
devires se desdobrem de uma causa imanente retroativamente apreensível. Faz-se
necessário que o modo estrutural de compreensão das relações também obedeça a
mudanças e rupturas, tendo uma gênese e um perecimento advindo do impacto da
contingência como acontecimento. A ideia, tão bem sintetizada por Kant, de que as
coisas passam dentro do tempo enquanto o tempo como forma não passa esconde a
crença equivocada de que a forma do tempo não estaria submetida a mudanças, que
ela não teria gênese nem esgotamento. Isto significa pensar o tempo como totalidade
imóvel devido à estabilidade formal do que permite a intelecção genérica do devir. Se
o tempo é uma totalidade imóvel, então tudo o que ocorre em seu interior, todos seus
devires, todos os ritmos de suas sucessões, só podem ser, em seu nível formal,
expressão de tal imobilidade. Por mais que coisas singulares se transformem, elas

p. 139)
90 Idem, p. 141
91 BADIOU, Alain; L’être et l’évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 135
92 SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., p. 389
93 SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, op. cit., p. 312
apenas desdobrarão os possíveis de uma totalidade formalmente já assegurada em sua
eternidade. Por isto, pensar a mudança fundadora da experiência temporal sob a forma
da “sucessão de determinações opostas”94, como o faz Kant seguindo uma tradição
aristotélica, será pensar o movimento a partir da estabilidade do princípio de
contagem aplicado ao que se sucede, como Aristóteles que falava do tempo como: “o
número do movimento segundo o anterior-posterior” 95. É esta estabilidade que se
expressa em afirmações como: “Toda mudança só é possível por uma ação contínua
da causalidade”96.
De certa forma, podemos dizer que é isto o que acontece em Spinoza, para
quem todas as relações, temporais ou não, devem ser pensadas sob a estabilidade
estrutural da causalidade e seu desvelamento retroativo imanente da univocidade da
substância ou, ainda, da conveniência (convenientiam) entre ideia e ideado97. Isto
implica afirmar que o modo da causalidade com suas ordens e sua constituição de
relações necessárias não mudará com o tempo, não será afetado por ele, não perderá
sua centralidade na determinação das relações e dos argumentos que a razão
reconhece como legítimos. Muito diferente seria se as coisas singulares modificassem
em continuidade a totalidade, operando mutações qualitativas na forma do tempo.
Neste caso, como veremos mais a frente, não teríamos apenas tempo formal, mas um
regime muito específico de tempo concreto. Por isto, é correto dizer que a imanência
própria ao governo da multitude é um devir sem tempo. É este devir sem tempo que
aparece como contraposição ao tempo linear do medo e da esperança. A sua maneira,
este devir sem tempo trará ainda outra consequência política importante por
fundamentar o horizonte de concórdia prometido pela paz social.
Neste ponto, podemos medir a distância que separa Spinoza e Hegel.

A crítica da duração

No tempo, costuma-se dizer, tudo nasce e perece. Quando dele é abstraído


tudo, a saber, o que preenche o tempo, assim como o que preenche o espaço,
então resta o tempo vazio, como resta o espaço vazio, ou seja, estas abstrações
da exterioridade estão postas e representadas como se fossem algo para si.
Mas no tempo não nasce e perece tudo, antes o próprio tempo é o devir, o
nascer e o perecer, a abstração existente, Cronos que tudo engendra e destrói
seus filhos98.

É claro aqui como Hegel recusa a noção de que haveria uma pura forma do
tempo, assim como uma pura forma do espaço, estabelecidas como condição geral de
possibilidade para o movimento e a mudança. Tomadas como formas puras da
intuição, tempo e espaço são, segundo Hegel, abstrações da exterioridade ou, se
quisermos pecar por certo anacronismo, são reificações. Não pode haver dedução
transcendental das categorias de tempo e espaço, o que não é de se estranhar para uma
filosofia na qual: “toda constituição transcendental é uma instituição social” 99. O que
aparentemente é confirmado quando Hegel afirma que a temporalidade (Zeitliche) é
uma determinação objetiva das coisas, e não uma determinação subjetiva do sujeito
94 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Lisboa: Calouste Gulbenkian, B 291/
A461
95 ARISTÓTELES, Physique – livres I-IV, Paris: Belles Lettres, 2012, 219b
96 ARANTES, Paulo; Hegel: a ordem do tempo, São Paulo: Hucitec, 2000, p. 114
97 SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., p. 79
98 HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 258
99 BRANDOM, Robert; Tales of the mighty dead,
que as apreende. “O processo das próprias coisas efetivas produz o tempo” 100 (macht
also der Zeit), isto não apenas no sentido da mudança que percebemos nas coisas, sua
geração e destruição, nos revelar a existência do tempo, um topos clássico que insiste
como, se as coisas não mudassem nem se movessem, não seria para nós possível
perceber o tempo que passa. Se devemos afirmar que o processo das próprias coisas
efetivas produz o tempo é por tal processo concreto fazer o tempo nascer e perecer,
modificar seu modo de passagem, paralisá-lo ou acelerá-lo, tirá-lo, por exemplo, do
regime da sucessão para colocá-lo no interior de uma dinâmica de simultaneidades. O
tempo é engendrado pelo processo das coisas porque o próprio tempo é uma
processualidade formalmente cambiante. Há uma plasticidade fundamental do tempo,
o que talvez nos explique porque Hegel se vê na necessidade de afirmar que o próprio
tempo é o devir, o nascer e o perecer. Problema de plasticidade cuja centralidade não
deve nos estranhar, já que é o problema da estrutura de um tempo em revolução que
se coloca no centro da reflexão filosófica de Hegel. Se é fato que: “a Revolução
Francesa permanecerá o centro decisivo da filosofia hegeliana: o evento que cristaliza
a intemporalidade da experiência histórica”101 há de se lembrar que um tempo em
revolução é, no seu ponto de vista estrutural, tempo que abandonou a ilusão da
estaticidade de suas determinações formais, que engendra outras categorias de
movimento e mudança a partir do processo efetivo das coisas.
Mas se assim for, o que dizer desta tendência muda da dialética hegeliana em
procurar superar o tempo em direção à eternidade do conceito; movimento que, ao
menos exteriormente, parece recuperar a defesa spinozista de que a razão concebe
necessariamente sob a perspectiva da eternidade? Pois não é possível esquecer como
Hegel afirma claramente: “o próprio tempo é eterno em seu conceito”, assim como ele
não temerá construir uma aparente oposição entre tempo e conceito já presente em
célebre passagem do capítulo final da Fenomenologia do Espírito:

O tempo é o próprio conceito que é aí e que é representado pela consciência


como intuição vazia. Por isto, o Espírito se apresenta (erscheint)
necessariamente no tempo, e ele se apresenta no tempo enquanto não apreende
seu puro conceito; o que significa, enquanto não elimina (tilgen) o tempo. O
tempo é a intuição exterior do puro Si não apreendido pelo Si, ele é apenas o
conceito intuído. Quando o conceito se auto-apreende, ele supera (aufheben)
sua forma temporal (Zeitform), conceitua o intuir e é intuição conceituada e
conceituante102.

Notemos, no entanto, a especificidade desta eternidade do conceito. Duas


características devem nos chamar a atenção, a saber, a distinção entre eternidade e
duração, assim como a definição da eternidade como “presente absoluto” 103. Sobre a
primeira característica, Hegel dirá: “a duração é por isto distinta da eternidade, pois
ela é apenas a superação (Aufhebung) relativa do tempo. Mas a eternidade é infinita,
ou seja, não relativa, um duração em si refletida” 104. A duração é apenas uma
superação relativa do tempo porque a eternidade não pressupõe estaticidade ou
permanência. Se Hegel afirma que na auto-apreensão do conceito ocorre a superação
100 HEGEL, G.W.F.; idem, par. 258
101 COMAY, Rebecca; Mourning sickness: Hegel and the french revolution,
Stanford University Press, 2010, p. 5
102 HEGEL, G.W.F.; Phänomenologie des Geistes, Hambrugo: Felix Meiner, 1988,
p. 324
103 HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 247
104 Idem, par. 259
do tempo, há de se lembrar que algo da inquietude do tempo é conservada pelo eterno
movimento do conceito.
A este respeito, não é mero acaso a insistência na desqualificação da
permanência própria às reflexões hegelianas sobre o tempo e a história. Basta
lembrarmos do sentido de uma afirmação como: “Os Persas são o primeiro povo
histórico, porque a Pérsia é o primeiro império que desapareceu (Persienist das erste
Reich, das vergangen ist)”105 deixando atrás de si ruínas. Esta frase de Hegel diz muito
a respeito daquilo que ele realmente entende por “progresso” no interior de sua
filosofia da história. O progresso é a consciência de um tempo que não está mais
submetido à simples repetição, mas que está submetido ao desaparecimento.
“Progresso” não diz respeito, inicialmente, a uma destinação, mas a uma certa forma
de pensar a origem. Pois, sob o progresso, a origem é o que, desde o início, aparece
marcada pela impossibilidade de permanecer. “Origem” é, na verdade, o nome que
damos à consciência da impossibilidade de permanecer em uma estaticidade
silenciosa. Por isto, a verdadeira origem, esta que aparece na Pérsia, é caracterizada
por um espaço pleno de ruínas, por uma mistura entre tempo e fogo que tudo
consome.
O ato de desaparecer é assim compreendido como a conseqüência inicial da
história. Colocação importante por nos lembrar que as ruínas deixadas pelo
movimento histórico são, na verdade, modos de manifestação do Espírito em sua
potência de irrealização. Se os persas são o primeiro povo histórico é porque eles se
deixam animar pela inquietude e negatividade de um universal que arruína as
determinações particulares. Notemos como este desaparecimento não é a afirmação
sem falhas da necessidade de uma superação em direção a perfectibilidade. Na
verdade, há uma pulsação contínua de desaparecimento no interior da história. Esta
pulsação contínua faz parte, de certa forma, do próprio telos da história. Assim, ela
realiza sua finalidade quando este movimento ganha perenidade, quando ele não é
mais vivenciado como perda irreparável, mas quando a desaparição, paradoxalmente,
nos abre para uma nova forma de presença, liberada do paradigma da presença das
coisas no espaço. O que explica porque Hegel dirá: “ Deve-se inicialmente descartar
o preconceito segundo o qual a duração seria mais valiosa do que a desaparição” . Só
as coisas que tem a força de desaparecer permitem que se manifeste um Espírito que
só constrói destruindo continuamente suas determinações finitas.
Isto fica claro se fizermos uma leitura atenta do capítulo dedicado ao Espírito
na Fenomenologia do Espírito. Lá vemos como a história do Espírito é um peculiar
movimento de explicitação das rupturas e insuficiências. Não por acaso, o Espírito
hegeliano se manifesta através de figuras como Antígona (com sua exposição da
desagregação da substância normativa da polis), o sobrinho de Rameau (com sua
exposição da desagregação da substância normativa do ancien régime), o jacobinismo
(com sua afirmação de uma liberdade meramente negativa) e a bela alma (com sua
exposição trágica dos limites da moralidade). Se elas desempenham papéis centrais na
narrativa da história do Espírito é porque tal narrativa é fascinada pelos momentos no
quais o próprio ato de narrar depara-se com sua impossibilidade, depara-se com a
desagregação da língua, com a violência seca de uma morte indiferente e com o
impasse sobre a norma. Neste sentido, vale a compreensão de Gérard Lebrun:

Se somos assegurados de que o progresso não é repetitivo, mas explicitador, é


porque o Espírito não se produz produzindo formações finitas mas, ao
contrário, recusando-as uma após outra. Não é a potência dos impérios, mas
105 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p. 215
sua morte que dá razão à história (...) do ponto de vista da história do mundo,
os estados são apenas momentos evanescentes106.

A temporalidade concreta

Se a eternidade do conceito não se confunde com a duração, então há de se


perguntar sobre como devemos compreender seu presente absoluto, tão bem descrito
em passagens como: “A eternidade não está nem antes nem depois do tempo, nem
antes da criação do mundo, nem depois do mundo passar. A eternidade é o presente
absoluto, o agora sem antes e depois”107. De fato, o tempo, enquanto aquilo que não
sendo, é, e enquanto aquilo que sendo, não é, ignora a presença absoluta, tal como
poderíamos encontrá-la, por exemplo, no tempo instantaneista cartesiano, este sim um
tempo de pura presença por desconhecer potência e ser plenamente ato. Mas uma
eternidade que supera o tempo, conservando-o, ou seja, recusando uma negação
simples do tempo e de suas latências, também não poderá estabelecer o presente
absoluto como presença absoluta. Presente absoluto é tempo sem expectativa, sem
medo nem esperança por não ter mais elevado a contingência à processo que pode
quebrar a imanência com a eternidade. Presente absoluto não é tempo da pura
presença, que implicaria absorção integral do instante sobre si mesmo. Presente
absoluto é a expressão da temporalidade concreta, expressão de como: “o presente
concreto é resultado do passado e está prenhe de futuro” 108, temporalidade que é a
produção do processo concreto das coisas. Podemos procurar compreender sua
estrutura se partimos de uma importante afirmação de Hegel:

A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado,


permanecem simultâneos (nebeneinander) e apenas por outro lado aparecem
como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também
os tem em sua profundidade presente109.

O presente como um círculo de degraus que aparecem, ao mesmo tempo,


como simultâneos e como passados. Momentos que estão, ao mesmo tempo, atrás e
presentes. Como vemos, trata-se de uma experiência temporal contraditória para a
perspectiva do entendimento, mas que pode ser compreendida se lembrarmos como o
conceito, enquanto expressão da eternidade, é uma forma de movimento que faz todos
os processos desconexos se transfigurarem em momentos de uma unidade que não
existia até então, ou seja, que é criada a posteriori mas (e este é o ponto fundamental)
só pode ser criada porque coloca radicalmente em cheque a forma da unidade e da
ligação tal como até então vigorou. O que não poderia ser diferente já que o conceito
não é expressão de uma substância ontologicamente assegurada em sua eternidade,
mas um operador de adequação pragmática. Por ser um operador pragmático, ele pode
produzir performativamente formas de síntese completamente novas, implodindo as
impossibilidades da linguagem com a força da confissão de outra língua que nasce. O
conceito obriga o mundo a falar outra língua.
Nesta sua força de colocar em simultaneidade o que até então era radicalmente
disjunto, de criar a contemporaneidade do não-contemporâneo, o conceito pode

106LEBRUN, Gérard ; L’envers de la dialectique, Paris : Gallimard, 2007, p. 33


107 HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 247
108 HEGEL,G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 259
109 HEGEL, G.W.F.’ Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p.
`104
instaurar o tempo de um presente absoluto no qual não há mais nada a esperar. Mas
não haver nada mais a esperar não significa que, a partir de agora, acontecimentos
serão desprovidos de história ou a história será desprovida de acontecimentos. Não há
nada mais a esperar porque os impossíveis podem agora se tornar possíveis, já que
relações contraditórias foram reconstruídas no interior de um mesmo processo em
curso. Neste sentido, podemos lembrar do que está pressuposto na própria construção
hegeliana do conceito de “história universal”, desta história que é o progresso na
consciência da liberdade.
Aceitar que exista algo como uma “história universal”, parece implicar que a
multiplicidade de experiências históricas e temporais devam se submeter a uma
medida única de tempo. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da
definição da história como “coletivo singular”. Definição que teria permitido que: “se
atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada acontecimento que
afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um
plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se
responsável ou mesmo em cujo nome pôde acreditar estar agindo” 110. Parece ser de
fato algo desta natureza que Hegel teria em mente ao falar do espírito do mundo como
“alma interior de todos os indivíduos”, como um corpo social unificado na
multiplicidade de seus espaços nacionais pelas mãos de plano que é a versão
secularizada da Providência.
No entanto, a figura do círculo de degraus, ao mesmo tempo, simultâneos e
passados não permite pensar unificações temporais redutíveis a um plano geral
unívoco a partir do qual todos os devires se extrairiam. Melhor pensar no advento de
um tempo definido como a relação entre tempos que são incomensuráveis sem serem
indiferentes entre si, o que não é sem relação com o fato dos espaços nacionais
animados pelo espírito do mundo não poderem, por sua vez, ser submetidos a um
plano comum de paz eterna sem darem lugar a decisões soberanas marcadas pela
contingência. Os espaços nacionais que compõem a história universal entram em
relação sem garantia alguma de paz e estabilidade111.
Da mesma forma, tempos incomensuráveis mas não indiferentes
interpenetram-se em um processo contínuo de mutação. Algo muito diferente da
universalidade produzida pelo primado do tempo homogêneo, mensurável e abstrato
da produção capitalista global, tão bem descrita por Marx. Neste sentido, falar em
“história universal” implica simplesmente defender que temporalidades
incomensuráveis não são indiferentes. Tal interpenetração de temporalidades
incomensuráveis significa abertura constante àquilo que não se submete à forma
previamente estabilizada do tempo, o que faz da totalidade representada pela história
universal, do presente absoluto que ela instaura, uma processualidade em contínua
reordenação, por acontecimentos contingentes, da forma das séries de elementos
anteriormente postos em relação. Daí sua plasticidade cambiante.
Neste sentido, podemos dizer que as relações entre os momentos obedecem a
um processo de transfiguração da contingência em necessidade, que não implica
negação simples da contingência. Em Hegel, a contingência não é vista como fruto de
um “defeito de nosso conhecimento”, mas é integrada como momento de um processo
de constituição da necessidade a partir de uma historicidade retroativa. Hegel
determina a contingência como uma “necessidade exterior” 112, já que é acontecimento
que aparece como causado por outra coisa que si mesmo, não se integrando na

110 KOSELLECK, idem, p. 52


111 Cf. a conhecida crítica de Hegel à paz eterna de Kant em HEGEL, G.W.F.;
Grundlinien der Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, par. 333
imanência de uma “necessidade interior” que põe suas próprias circunstâncias. No
entanto, esta exterioridade não é um erro a respeito do qual devemos abstratamente
negar, mas um momento necessário resultante do fato da imanência não estar
imediatamente posta, dela ser construída retroativamente a partir da liberalidade da
razão em procurar integrar retroativamente o que se produziu a partir de
acontecimentos contingentes.
Tal liberalidade exige, no limite, pensar a totalidade posta pela história
universal como um sistema aberto ao desequilíbrio periódico, pois a integração
contínua de novos acontecimentos inicialmente experimentados como contingentes e
indeterminados reconfigura o sentido dos demais anteriormente dispostos. Se
quisermos, podemos afirmar que um belo exemplo deste movimento é a maneira com
que Hegel lembra que o Espírito pode “desfazer o acontecido” (ungeschehen machen
kann113) reabsorvendo o fato em uma nova significação. É só em uma totalidade
pensada como processualidade em plasticidade formal contínua que o acontecido
pode ser desfeito e que as feridas do Espírito podem ser curadas sem deixar
cicatrizes114. Neste ponto, é difícil não concordar mais uma vez com Lebrun, para
quem: “Se a História progride é para olhar para trás; se é progressão de uma linha de
sentido é por retrospecção (...) a ‘Necessidade-Providência’ hegeliana é tão pouco
autoritária que mais parece aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus
desígnios”115.
Por outro lado, isto pode nos explicar porque não há tempo formal nem mero
devir sem tempo em Hegel, mas uma espécie muito específica de temporalidade
concreta. Pois não se trata de definir as formas gerais da experiência do tempo com
sua normatividade imanente limitadora dos modos possíveis de experiência da
consciência. Trata-se de explicar como as formas temporais são empiricamente
engendradas e modificadas através da interpenetração contínua e da integração
retroativa de temporalidades descontínuas que foram, por sua vez, produzidas pelo
“processo das coisas efetivas”. O tempo não aparece assim como uma normatividade
transcendental. Ele é um campo de relações plasticamente reconfigurado ( nas suas
dimensões de passado, presente e futuro) a partir do impacto de acontecimentos
inicialmente contingentes.

Glorificar o existente

Mas voltemos a esta força do Espírito de “desfazer o acontecido” pois ela


pode nos fornecer mais orientações sobre o que está em jogo no conceito de presente
absoluto. Muitas vezes pareceu, com tal força, estarmos diante da defesa de uma
teoria do fato consumado que transfigura as violências do passado em necessidades no
caminho de realização da universalidade normativa de um Espírito que conta a
história a partir da perspectiva de quem está a: “deificar aquilo que é”116. A confiança

112 HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die
Vernunft in der Geschichte, op. cit., p. 29
113 HEGEL, Fenomenologia do Espírito II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 139 .
114 “As feridas do espírito são curadas sem deixar cicatrizes. O fato não é o
imperecível, mas é reabsorvido pelo espírito dentro de si; o que desvanece
imediatamente é o lado da singularidade (Einzelnheit) que, seja como intenção,
seja como negatividade e limite próprio ao existente, está presente no fato”
(idem, p. 140 – tradução modificada)
115 LEBRUN, O avesso da dialética, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.
34-6.
116 ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
no Espírito seria a senha para um certo quietismo em relação ao presente. Melhor
seria definir o espírito do mundo: “objeto digno de definição, como catástrofe
permanente”117, ou seja, consciência desperta do que foi necessário perder, e do que
ainda é necessário, no interior do processo histórico de racionalização social. Pois
pode parecer que uma filosofia a procura de explicar como os “homens históricos”
[geschichtlichen Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história mundial”
[welthistorischen Individuen] serão aqueles cujos fins particulares não são postos
apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins à transfiguração,
permitindo que eles contenham a “vontade do espírito do mundo” [Wille des
weltgeistes] só poderia nos levar a alguma forma de justificação do curso do mundo,
como temia Adorno em sua Dialética negativa, repetindo uma crítica já feita por
Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva118 e por Marx quando acusa
Hegel de “glorificar o existente”119. Pois sendo a vontade do Espírito do mundo aquilo
que se manifesta através do querer dos homens históricos, então como escapar da
impressão de que, retroativamente, a filosofia hegeliana da história constrói a
universalidade a partir daquelas particularidades que conseguiram vencer as batalhas
da história? Como dirá Nietzsche: “quem aprendeu inicialmente a se curvar e a
inclinar a cabeça diante do ‘poder da história’ acaba, por último, dizendo ‘sim’ a todo
poder”120.
Escapa-se desta impressão, entretanto, explorando melhor duas características
fundamentais da ação histórica em Hegel, a saber, sua natureza inconsciente e sua
força de recuperar o que parecia perdido, de reativar oportunidades perdidas que
pareciam petrificadas, isto através da reabertura do que está em jogo no presente.
Sobre este segundo ponto, lembremos como, quando o Espírito sobe à cena e narra a
história, sua prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham
fatos. Primeiro porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que
se passou às costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva que rememora, que só
alcança voo depois do ocorrido. Uma totalização que não é mera recontagem,
redescrição, mas construção performativa do que, até então, não existia. Pois um
relato não é apenas uma relato. Ele é uma decisão a respeito do que terá visibilidade e
será percebido daqui para a frente, por isto as acusações que vem na filosofia
hegeliana uma forma de “passadismo” erram completamente de alvo.
A este respeito, lembremos de, por exemplo, Vittorio Hösle, para quem o
passadismo de Hegel mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao
passado, não prolepse e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E,
na medida em que o que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à
filosofia; ela apenas deve compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que
devo fazer?” não tem, assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma
resposta a ela poderia no melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na

117 Idem, p. 266


118 “Chamou-se, com escárnio, esta história compreendida hegelianamente o
caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez através da
história. Todavia este Deus se tornou transparente e compreensível para si
mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus
dialeticamente possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelação: de modo que,
para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do processo do mundo se
confundiriam com a sua própria existência berlinense” (NIETZSCHE, Friedrich;
Segunda consideração intempestiva, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 72)
119 MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91
120 Idem, p. 73
realidade””121. Nada mais distante da perspectiva que gostaria de defender, pois tal
posição pressupõe que “recordar” equivale a redescobrir fatos que foram arquivados
na memória social. Se é verdade que, para Hegel, filosofia é recordação, vale lembrar
que todo ato de rememoração é uma reinscrição do que ocorreu a partir das pressões
do presente122. Rememorar é ainda agir, e não simplesmente chegar depois que a
realidade já perdeu a sua força. Antes, é mostrar como o passado está em perpétua
reconfiguração, redefinindo continuamente as possibilidades do presente e futuro.
Neste sentido, ignorar a força de decisão da descrição do passado é operar com a
ficção da história como um quadro estável “do que realmente ocorreu”, “wie es
eigentlich gewesen”, como dizia Ranke. No entanto, seremos mais fieis a Hegel se
afirmarmos que o passado é o que está perpetuamente ocorrendo, pois ele não é
composto de uma sucessão de instantes que são desconexos entre si. Ele é composto
por momentos em retroação.

O trabalho de luto do conceito e seus fantasmas

Podemos compreender melhor esta força performativa da rememoração se


explorarmos a maneira com que a narrativa da história em Hegel se assemelha, em
certos pontos importantes, à elaboração de um trabalho de luto123, fato difícil de
negligenciar em alguém que descreve a sequência de experiências da consciência em
direção ao saber absoluto como um “caminho do desespero”. Neste sentido, talvez
não haja momento mais claro do que esta passagem canônica de A razão na história:

Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante já sentiu tal melancolia.
Quem esteve diante das ruínas de Cartago, Palmira, Persépolis, Roma sem
entregar-se a observações sobre a transitoriedade dos impérios e dos homens,
sem cobrir-se de tristeza por um vida passada, forte e rica?124.

De novo, as ruínas; cuja descoberta aparece agora inicialmente como signo de


melancolia. Uma melancolia que parece expressar fixação em uma passado arruinado
que aparentemente poderia ter sido outro, deveria ter permanecido em seu esplendor.
Fixação que desqualifica o existente por ele pretensamente não estar à altura das
promessas que as ruinas das grandes conquistas um dia enunciaram. O que poderia
esta melancolia produzir além do circuito da perda e da reparação, além da crença de
que a transitoriedade nos revela o sofrimento de nossa vulnerabilidade extrema diante
da contingência e do gosto amargo do presente? Ainda mais se lembrarmos que: “a
história universal não é o lugar de felicidade”. Posição melancólica na qual a rejeição
do existente (o que poderia ter sido o presente se Cartago, Palmira, Roma não
tivessem tal destino?) pode facilmente se transmutar em acomodação conformista
com o que é.
Mas é para nos livrar da fixação melancólica no passado, abrindo uma
processualidade retroativa, que o conceito trabalhará. Daí porque, no mesmo trecho,

121 HÖSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o


problema da intersubjetividade, Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468.
122 Desenvolvi este ponto em SAFATLE, Vladimir; Grande Hotel Abismo, São
Paulo: Martins Fontes, 2012
123 Sobre este tema ver, por exemplo, COMAY, Rebecca; Mourning sickness, op.
cit.; ARANTES, Paulo; Hegel: a ordem do tempo, op. cit., e LEBRUN, Gérard;
L’envers de la dialectique, op. cit..
124 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band
1: Die Vernunft in der Geschchte, op. cit., p. 35
Hegel, não deixará de dizer: “Mas a esta categoria da mudança liga-se igualmente a
um outro lado, que da morte emerge nova vida”. É importante lembrar, no entanto,
como tal trabalho de luto não opera por mera substituição do objeto perdido através
do deslocamento da libido. Dar a tal deslocamento o estatuto de uma substituição
equivaleria a colocar os objetos em um regime de intercambialidade estrutural, regime
no interior do qual a falta produzida pelo objeto perdido poderia ser suplementada em
sua integralidade pela construção de um objeto substituto a ocupar seu lugar. Um
mundo de balcão de trocas sem prazo de vencimento. Se, como diz Freud, o homem
não abandona antigas posições da libido mesmo quando um substituto lhe acena é
porque não se trata simplesmente de substituição. O tempo do luto não é o tempo da
reversibilidade absoluta. O desamparo que a perda do objeto produz não é
simplesmente revertida. Por isto, vincular o luto a uma operação de esquecimento
seria elevar a lobotomia a ideal de vida.
Nem substituição, nem esquecimento, o luto não significa deixar de amar
objetos perdidos. A respeito do luto, Freud fala de um tempo de latência no qual:
“uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são
focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido”125. Tal
desligamento não é um esquecimento, mas uma “operação de compromisso” a
respeito da qual Freud não diz muito, da mesma forma como não diz muito a
propósito de um processo estruturalmente semelhante ao luto, a saber, a sublimação.
Talvez seja o caso de afirmar que tal operação de compromisso própria ao trabalho de
luto é indissociável da abertura a um forma de existência entre a presença e a
ausência, entre a permanência e a duração. Uma existência espectral que, longe de ser
um flerte com o irreal, é existência objetiva do que habita em um espaço que força as
determinações presentes através de ressonâncias temporais126.
Como Derrida compreendeu bem, a respeito de Marx: “A semântica do
Gespenst assombra a semântica do Geist”127. Esta proximidade, à sua maneria, vale
também para Hegel. Pois a existência do Espírito é descritível apenas em uma
linguagem de espectros que animam os vivos, que dão à realidade uma espessura
espectral pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado à
desaparição, vida do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em uma
metamorfose contínua. Metamorfose que Hegel não temeu em encontrar sua primeira
elaboração imperfeita na representação oriental da transmigração das almas
(Seelenwanderung)128. Nada melhor que o Espírito hegeliano mostra, mesmo que
Derrida não queira aceitar, como:

Se há algo como a espectralidade, há razão para duvidar desta ordem


asseguradora de presentes e sobretudo desta fronteira entre o presente, a
realidade atual ou o presente do presente a tudo o que podemos lhe opor: a
ausência, a não-presença, a inefetividade, a inatualidade, a virtualidade ou
mesmo o simulacro em geral, etc. Há de se duvidar inicialmente da
contemporaneidade a si do presente. Antes de saber se podemos diferenciar o
espectro do passado e este do futuro, do presente passado e do presente futuro,
faz-se necessário talvez perguntar se o efeito de espectralidade não consistiria
125 FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49
126 Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência
liminar” em GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre
Walter Benjamin, São Paulo: Editora 34, 2014
127 DERRIDA, Jacques; Spectres de Marx, Paris: Galilée, 1993, p. 175
128 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, op. cit.,
p. 35
em desmontar tal oposição, mesmo tal dialética, entre o presente efetivo e seu
outro129.

Derrida não percebeu como é através deste efeito de espectralidade que , em


Hegel, desaparece a desaparição, é assim que o Espírito se afirma como processo de
conversão absoluta da violência das perdas e separações em ampliação do presente.
Pois esse espaço de metamorfoses produzido pelo luto é uma figura privilegiada da
linguagem de temporalidades múltiplas que se interpenetram. Por isto, podemos dizer
que o trabalho de luto não é construção de processos de substituição próprias a uma
lógica compensatória. Ele é produção de uma temporalidade que pode se dispor em
um presente absoluto. Não se trata assim de justificar a realidade mas, de certa forma,
desrealizá-la mostrando como os espectros do passado ainda estão vivos e prontos a
habitarem outros corpos, a abrirem outras potencialidades.
Por isto, o trabalho de luto do conceito nunca poderia ser compreendido como
uma astuta operação de resignação, como várias vezes foi sugerido, de Marx até
Deleuze. Ele é uso da força do desamparo na dissolução dos bloqueios do presente, na
transformação concreta da experiência do tempo a fim de produzir uma forma
inaudita de confiança e abertura. É tendo isto em vista que podemos compreender os
parágrafos finais da Fenomenologia do Espírito, dedicados ao saber absoluto, estes
que, ao falarem da história como devir do Espírito, afirmam:

Este devir apresenta uma sucessão de espíritos e um movimento lento, uma


galeria de imagens na qual cada uma dotada com toda a riqueza do Espírito e
ele se move de forma tão lenta para que o Si possa assimilar e penetrar toda
riqueza de sua substância. Como a realização do Espírito consiste em saber
integralmente o que ele é, saber sua substância, este saber é seu ir-para-si (In-
sich-gehen) através do qual o Espírito deixa sua existência (Dasein) e transfere
sua figura (Gestalt) à rememoração. Em seu ir-para-si, o Espírito é absorvido
pela noite da consciência-de-si, mais sua existência desaparecida conserva-se
nele, e sua existência superada (aufgehobne) – esta precedente, mas que
renasceu pelo saber – é a nova existência, um novo mundo e uma nova figura
do Espírito. Nela, o Espírito deve recomeçar naturalmente (unbefangen) em
sua imediatez desde o início e daí recuperar novamente sua grandeza, como se
todo precedente fosse para ele perdido e ele nada houvesse aprendido da
experiência dos espíritos anteriores. Mas a rememoração (Erinnerung) lhes
conservou; ela é o interior e, na verdade, a forma mais elevada da substância.
Se este espírito recomeça sua formação desde o início, como se partisse
apenas de si, é na verdade de um nível mais elevado que ele começa130.

Sim, a história é uma rememoração na qual as formações do Espírito passam como


uma galeria de imagens diante das quais é necessário demorar-se, passar mais de uma
vez, como quem está diante da perlaboração de um luto. Desta forma, o Espírito
transfere a existência à rememoração. No entanto, tal transferência é bastante singular
por parecer inicialmente um esquecimento, por nos fazer adentrar na noite da
consciência de si. Pois o Espírito recomeça como se nada houvesse aprendido, como
se houvesse tudo perdido, desamparado por ter tudo perdido. Mas tal perda total é
uma necessidade, pois ela significa simplesmente que este “novo mundo”, que esta
“nova existência” é resultado da força do Espírito em abrir novos começos com a

129 DERRIDA, Jacques; idem, p. 72


130 HEGEL, G.W.F.; Phänomenologie des Geistes,
naturalidade de quem nada tem mais a carregar nas costas, com a naturalidade de
quem cura suas feridas sem deixar cicatrizes, desfazendo o acontecido. Ao agir como
se houvesse esquecido, o Espírito pode reencontrar as experiências passadas em uma
forma mais elevada, retomá-las de um ponto mais avançado, pois ele perceberá que
simplesmente deixou a profundidade inconsciente das experiências agirem através de
seus gestos, deixou seus espectros habitarem seus gestos. Nunca se perde nada,
apenas se termina um mundo que já não pode mais ser sustentado, que já deu tudo o
que podia dar, para que outro mundo comece, reconfigurando o tempo das
experiências passadas em outro campo de existência, em outro modo de existência.
Assim, o Espírito reencontra o destino produtivo das experiências que o
desampararam. Nenhum passadismo, nenhuma glorificação do existente. Apenas a
crença de que nenhum fato poderá nos fazer perder, de uma vez por todas, a
possibilidade de recomeçar. Pois:

O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos
homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo
medidas e segundo medidas apagando-se131.

131 HERÁCLITO; Fragmentos contextualizados, Rio de Janeiro: Odysseu, 2012, p.


135
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 4
A processualidade da essência e o problema da contradição em Hegel

Na aula de hoje, gostaria de discutir o conceito hegeliano de essência e a compreensão


dialética singular da contradição não apenas como contradição lógica, ou seja,
contradição entre dois enunciados a respeito de um estado de coisas, mas como
contradição real, como determinação objetiva de um estado de coisas. Esta sempre foi
uma das elaborações mais polêmicas de Hegel: a noção de que a contradição é uma
forma objetiva de descrição da essência do que há a conhecer. Como veremos, Hegel
insiste que na efetividade não há apenas oposição real, ou seja, oposição entre dois
fenômenos positivos que entram em relação de contrariedade (como um barco que
anda 500 metros para o leste e 500 metros para o oeste, tendo zero como resultado do
seu movimento). Há contradição real. Conceito fundamental para compreendermos
como Hegel define determinações dialéticas. Por outro lado, gostaria de mostrar como
tal conceito de contradição foi criticado não apenas por aqueles que viam nele uma
monstruosidade lógica, como no caso de Russell e sua ideia de que o uso hegeliano da
contradição baseava-se em um equívoco primário a respeito da identidade e da
predicação, nem apenas por antigos marxistas com uma visão muito pouco dialética,
como Lucio Colleti, que afirmava que a ciência só poderia aceitar oposições reais, não
contradições, mas também por aqueles que viam no conceito hegeliano de contradição
uma forma de limitar todo pensamento disposto a pensar ontologia para além da
representação, como no caso de Gilles Deleuze. A aposta hegeliana de que o
pensamento crítico é aquele capaz não apenas de indicar e criticar as contradições na
efetividade tendo em vista sua suspensão, mas de compreender as contradições como
índice de inteligibilidade adequada de fenômenos em movimento é o ponto mais
dramático e passível de confusões da dialética. Para tanto, gostaria de começar
apresentando o conceito hegeliano de essência para passarmos às determinações de
reflexão e enfim para uma discussão sobre o problema da contradição.

Considerações gerais sobre a Doutrina da Essência

Antes de iniciarmos nosso comentário de texto, creio ser necessário uma


contextualização a respeito do lugar da Doutrina da Essência no interior do projeto da
Ciência da Lógica e a natureza de sua divisão interna. Esta é uma forma de
compreender melhor o conceito hegeliano de essência.
Vimos desde a primeira aula como a Ciência da Lógica visava dar conta do
movimento que vai do ser ao conceito. Um movimento que, no fundo, realizava um
dos motivos maiores do idealismo hegeliano: apreender a substância como sujeito e,
com isto, explicitar a maneira com que tudo o que se oferece à experiência é posto
pela estrutura conceitual do sujeito. Este movimento também explicava porque a
Ciência da Lógica era inicialmente subdividida em “Lógica objetiva” e “Lógica
subjetiva”. No entanto, vimos também que Hegel insistira na necessidade da “Lógica
objetiva” ser dividida a partir das noções de ser e essência. Tal subdivisão era
justificada por Hegel a partir da exigência de introduzir uma:

esfera de mediação, o conceito como sistema das determinações de reflexão,


ou seja, do ser que se transforma em ser em-si do conceito, que desta forma
não é ainda posto como para si [tal como na lógica subjetiva], mas que está
marcado ao mesmo tempo pelo ser imediato como algo que também lhe é
exterior. Isto é a Doutrina da essência que está no meio entre a Doutrina do ser
e do conceito132.

Ou seja, a essência é, fundamentalmente, uma noção que opera a mediação


entre o ser e o conceito. Daí porque talvez seja correto dizer que esta é a região central
do livro, região onde os processos principais são apresentados. Mas qual a
necessidade desta mediação? Grosso modo, podemos dizer que as categorias do ser
(como “ser”, “nada”, “finito”, “infinito”, “um”, múltiplo”) tendem a produzir a ilusão
de serem determinações isoladas e não relacionais. No conceito de ser não está
imediatamente expresso que ele é impensável sem seu oposto, o nada. Decerto, vemos
na Doutrina do ser uma sucessão de passagens de um conceito a outro: “Sem dúvida,
nessa progressão por rupturas, as determinações finitas denunciam a sua instabilidade,
mas somente sob a forma da substituição de um conteúdo por um conteúdo diferente.
A necessidade é camuflada”133.
Já as categorias da essência (como “identidade”, “diferença”, ‘contradição”,
“fundamento”) são imediatamente categorias relacionais, onde um termo traz
imediatamente o seu oposto. Com isto, o Outro perde o aspecto de um exterior
indiferente para se tornar aquilo que está desde o início indissociável de seu oposto.
Desta forma, a tematização da essência permite o abandono de uma noção fixa e
identitária de objeto em prol de uma noção onde “objeto” nada mais é do que o nome
de uma estrutura relacional. É verdade que esta noção ainda é apenas “em-si” porque
falta a anulação do vocabulário da alteridade que só poderá ser realizada pela
Doutrina do conceito.
Mas é sempre bom lembrar que esta passagem do ser à essência é
impulsionada pelo ritmo da explicitação: trata-se de explicitar uma estrutura
relacional que já estava em operação, mas de maneira não-reflexiva, na compreensão
das categorias do ser. Esta dinâmica da explicitação pode ser encontrada na própria
organização interna da Doutrina da essência, toda ela construída através do
movimento que vai da interioridade à tematização da exterioridade. Assim, partindo
da reflexão da essência em si mesma (através principalmente da apresentação das
determinações de reflexão) vamos em direção aos modos da Erscheinung
(fenômeno/aparecer), ou seja, daquilo que aparece à consciência em sua experiência,
isto até a realidade (Wirclichkeit) enquanto espaço de manifestação do absoluto em
sua necessidade e em seus modos de relação. À sua maneira, este movimento da
interioridade à exterioridade também é retomado pela Doutrina do conceito.
Assim, se o ritmo de explicitação visa mostrar como a essência é, na verdade:
“o movimento do próprio ser”134 ou como a natureza do ser é advir essência, é porque:
“a passagem do ser à essência é passagem das determinações que parecem existir por
si nas ‘coisas’ (o ser) à revelação de que as determinações aparentemente as mais
‘imediatas’ estão desde sempre constituídas e organizadas em um pensamento
unificado (...) Uma mesma unidade pensada organiza as percepção das coisas e a
compreensão de suas relações: ser e essência são uma e outra o produto do
conceito”135.

132 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 58


133 LEBRUN, A paciência do conceito, p. 324
134 HEGEL, WL II, p. 13
135 LONGUENESSE, Hegel et la critique de la métaphysique, p. 9
Este comentário é de extrema importância por evidenciar que a passagem à
essência é um aprofundamento através do qual aquilo que parece existir por si nas
´coisas´ revela-se como sempre constituído e organizado em um pensamento
unificado. É desta maneira que devemos compreender a primeira frase da Doutrina da
Essência: ‘A verdade do ser é a essência”136. Um essência que parece estar “por trás”
do ser, em um Hintergrund que constitui (ausmach) o ser. Ou ainda, que parece
“anterior” ao ser, em um passado que não deixa de ressoar na própria maneira com
que o particípio passado do verbo ser em alemão (gewesen) contém uma referência à
essência (Wesen). Um estranho passado descrito por Hegel como: “o passado, mas o
ser passado desprovido de tempo (zeitlos)”137. Como uma anterioridade que nunca
passa e que, por isto, modifica radicalmente nossa concepção de presente, já que:
“aquilo que passou nem por isto é negado abstratamente, mas apenas superado: e por
isto, ao mesmo tempo, conservado”138.
No entanto, se retornarmos ao comentário de Longuenesse, veremos que
entramos em uma idéia maior do livro: a essência não é da ordem de um em-si
independente do pensamento. Ela é a da ordem da reflexão. Da porque a primeira
parte do livro deve necessariamente chamar-se: “A essência como reflexão em si
mesma”. A reflexão é a essencialidade que constitui o ser. Ou seja, ao afirmar que a
verdade do ser é a essência e ao determinar a essência como reflexão, Hegel, à sua
maneira, está dizendo não haver nada anterior ou mesmo exterior à reflexão.
Proposição que parece a realização última do chamado “idealismo absoluto” do qual
ele seria o representante.
Fica claro que a verdadeira questão decisiva do livro gira em torno da
compreensão do que Hegel se refere quando fala em “reflexão”. Pois costumamos
compreender a reflexão como um procedimento meramente subjetivo do pensar
vinculado à auto-observação de operações de nossa própria mente. Lembremos, por
exemplo, do que diz Locke a respeito da reflexão: “A mente, recebendo as idéias de
fora, quando volta sua visão para si mesma e observa suas ações sobre as idéias que
tem, produz daí outras idéias que são tão capazes de ser objetos de sua contemplação
quanto qualquer outra que ela recebe de coisas exteriores”139. Ou seja, se sensações
são idéias cuja fonte são objetos externos, reflexão é: “the notice which the mind takes
of its own operations” e que produz idéias a partir do sentido interno.
Trago esta citação de Locke apenas para insistir na peculiaridade da noção
hegeliana de reflexão. Noção que, em hipótese alguma, pode ser confundida
simplesmente com esta auto-apreensão que a mente faz de suas próprias operações,
como se ela estivesse diante de um espelho. Metáfora especular fundamental para a
própria constituição da noção moderna de consciência. Embora Hegel conserve esta
metáfora especular na compreensão da reflexão, não é difícil imaginar que Hegel não
pode aceitar distinções entre sensação e reflexão tais como estas pressupostas por
Locke. Pois trata-se de mostrar como: “a reflexão é o que pelo qual algo enquanto
algo é”140. Ou seja, a reflexão não apenas observa as operações da mente, mas ela põe
os objetos com os quais a consciência se depara. De uma certa forma, ela é o
movimento das próprias “coisas”. Daí porque o que mais interessa Hegel nesta

136 HEGEL, WL II, p. 13


137 HEGEL, WL II, p. 13
138 HEGEL, Enciclopédia I, par. 112
139 LOCKE, An essay concerning human understanding, Book II, Chapter VI
140 HAAS, Bruno, Die freie Kunst, p. 53
metáfora especular seja o fato do imediato se cindir e se mediatizar, colocando-se
como um outro141.
No entanto, mesmo assim ainda não saímos necessariamente de uma
perspectiva idealista clássica. Pois podemos dizer que a reflexão, ao apreender as
operações do próprio pensar, simplesmente põe as condições de possibilidade para
que um objeto seja, para que ele apareça à consciência. Como se a reflexão fosse
exatamente aquilo que nos permite falar do que aparece, eleva-lo à condição de
nomeável no interior de uma linguagem humana, já que a reflexão revelaria a forma
do que há a ser pensado (em uma operação na qual a forma aparece no lugar da noção
de essência). É assim que, por exemplo, podemos interpretar a afirmação canônica de
Kant: ‘A reflexão não tem que ver com os próprios objetos, para deles receber
diretamente conceitos; é o estado de espírito em que, antes de mais, nos dispomos a
descobrir as condições subjetivas pela quais podemos chegar a conceitos”142.
No entanto, a proposição de Hegel é mais ousada. Trata-se de dizer: a reflexão,
enquanto movimento próprio da essência, não é apenas a posição das condições
subjetivas para a constituição de tudo o que é determinado e condicionado por um
sujeito. Ela é o movimento do que é absoluto e incondicionado. A ideia de que a
reflexão subjetiva está de um lado e o mundo objetivo de outro parte do pressuposto
de que a constituição da estrutura da reflexão é, de certa forma, anterior ao mundo,
autônoma a ele. Como lembrou bem John McDowell, mais correto seria dizer que
mundo e reflexão, de certa forma, nascem ao mesmo tempo. Não é por outra razão
que a Doutrina da Essência deve caminhar para a tematização do absoluto enquanto
realidade. Mas há aqui uma contradição a respeito da qual Hegel demonstrava-se
cônscio ao menos desde seu Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e
Schelling:

O absoluto deve ser construído para a consciência, tal é a tarefa da filosofia:


mas, dado que tanto o produzir como os produtos da reflexão são apenas
limitações, isto é uma contradição. O absoluto deve ser refletido, posto; mas
deste modo ele não é posto, mas sim suprimido (aufgehoben worden), pois, ao
ser posto, tornou-se limitado. A mediação desta contradição é a reflexão
filosófica. Deve-se preferencialmente mostrar em que medida a reflexão é
capaz de captar o absoluto e como, no seu trabalho como especulação, suporta
a necessidade e a possibilidade de ser sintetizada com a intuição absoluta, e ser
para si, subjetivamente, justamente tão perfeita como o seu produto, o absoluto
construído na consciência, dever ser, ao mesmo tempo, consciente e
inconsciente143.

Hegel chega a falar que, para superar tal contradição de só poder pensar o
condicionado ao pôr uma multiplicidade infinita de condições e relações, a reflexão
deve dar para si mesma a lei de seu auto-aniquilamento. Podemos dizer que a Ciência

141 Diz Hegel: “O termo ´reflexão´ é empregado inicialmente [a propósito] da luz,


quando em sua propagação em linha reta encontra uma superfície especular e é
por ela relançada para trás. Temos pois aqui um duplo: primeiro, um imediato, um
ente; e segundo, o mesmo enquanto mediatizado ou posto. Ora, é esse
exatamente o caso quando refletimos ou (como também se costuma dizer)
nachdenken [refletir, considerar – colocar diante] sobre um objeto, enquanto aqui
não é mesmo o objeto que conta em sua imediatez. Mas queremos conhecê-lo
enquanto mediatizado” (HEGEL, Enciclopédia, par. 112)
142 KANT, Crítica da razão pura B 316
143 HEGEL, Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 41
da Lógica realiza o que já estava posto neste escrito de juventude. Pois, de uma certa
forma, a reflexão, para se pôr como movimento do que é absoluto e infinito, deverá
aniquilar aquilo que serve como fundamento para seus modos de determinação. É
exatamente isto que veremos neste capítulo fundamental dedicado às determinações
de reflexão, a saber, a identidade, a diferença e a contradição. Pois modificado o
sentido do que compreendemos por identidade, diferença e contradição são as bases
gerais das operações de reflexão, tal como ela é compreendida pelo entendimento, que
se encontrarão aniquiladas. Neste momento, aquilo que Hegel compreende por
reflexão especulativa poderá se impor, o que permitirá a apreensão do absoluto sem a
necessidade do recurso a alguma forma de intuição imediata ou de posição do pré-
reflexivo.
Para o entendimento, esta reflexão especulativa própria à essência equivale à
pura negatividade, pois: “a determinação da essência tem um outro caráter do que as
determinidades do ser”144. Ela é pura negatividade por anular incessantemente todas as
determinidades próprias ao ser. Mas esta anulação não é simplesmente a abstração de
todo predicado do ser. Antes, ela é o que Hegel chama de movimento reflexivo no
interior do próprio ser. É pensando nesta força de corrosão própria à essência que
Hegel poderá falar da “natureza negativa da essência”145. Proposição fundamental,
pois se a essência tem uma natureza negativa (o que implica dizer que ela não está
simplesmente em uma situação na qual ela aparece como negativa, mas que ela é
‘negatividade em si” [Negativität an sich]146), então será um movimento de
confrontação incessante do que aparece ao entendimento como determinado. O que
nos explica uma afirmação como:

A essência como o retorno perfeito do ser em si mesmo é inicialmente essência


indeterminada; as determinidades do ser estão nela superadas; ela as contém
em si, mas não como se estivessem postas147.

A identidade como determinação de reflexão

Como movimento de efetivação e explicitação das condições de apreensão conceitual


do absoluto, a essência exige a recompreensão dos fundamentos lógicos do pensar. É
aqui que Hegel apresenta uma das operações mais ousadas e arriscadas da dialética, a
saber, o questionamento do princípio de identidade (A=A), do princípio de não-
contradição (A não pode ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, A e ¬A) e do
princípio do terceiro excluído (algo cai sob A ou sob ¬A, não há uma terceira opção).
Tais questionamentos, que visam mostrar como estas são “leis do entendimento
abstrato”, têm como base a reconstrução dos conceitos de identidade, diferença e, por
fim, contradição.
Hegel parte de considerações sobre a identidade, já que: “a identidade consigo
é a imediaticidade da reflexão”148. No entanto, Hegel não cansará de repetir a
existência de diferenças maiores entre a “identidade formal” do entendimento, ou
seja, identidade como exclusão da diferença, como exterioridade em relação à
diferença, e a “identidade concreta” da razão especulativa. Tal diferença é para ele tão
importante que não temerá afirmar: “é este o ponto em que toda má filosofia [pois

144 HEGEL, WL II, p. 15


145 HEGEL, WL II, p. 21
146 HEGEL, WL II, p. 22
147 HEGEL, WL II, p. 15
148 HEGEL, WL II, p. 39
aferrada ao senso comum] se distingue da que unicamente merece o nome de
filosofia”149. Neste sentido, a identidade concreta será a negação absoluta como:

a negação que imediatamente nega a si mesma – um não-ser e diferença que


desaparece no seu surgir ou um diferenciar para o qual nada é diferenciado,
mas que colapsa imediatamente em si mesmo150.

Por isto, Hegel dirá que: “a identidade é também em si mesma absoluta não-
identidade”151. Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério as crítica que
Hegel apresenta na nota 2 “Primeira lei originária do pensamento, proposição da
identidade”. Aqui, Hegel apresenta três críticas distintas, porém complementares, que
visam mostrar como a proposição A=A é uma tautologia vazia, desprovida de
conteúdo e sem valor algum para o conhecer. Os três argumentos usados por Hegel
são:
 toda enunciação da identidade imediata é uma contradição performativa;
 a experiência não fornece o fundamento da identidade
 não é possível definir a significação de A=A a partir da pretensa analiticidade
da proposição.
Primeiro, Hegel procura mostrar como sempre enunciamos a clivagem ao
tentar pôr a igualdade imediata a si. Pois sendo a identidade imediata, a exclusão da
essencialidade da diferença é um processo constitutivo de sua própria determinação.
Mas, ao afirmar que a identidade e a diferença são diferentes: “Eles [a consciência
comum] não vêem que já dizem que a identidade é algo de diverso; pois dizem que a
identidade é diversa em relação à diversidade” (HEGEL, 1986b, p. 41). Com isto,
produz-se uma passagem da negação exterior à negação internalizada resultante do
reconhecimento da posição da diferença ser momento essencial e interno ao processo
de posição da identidade. Daí porque Hegel pode dizer que a verdade é apenas a
unidade da identidade e da diversidade.
Notemos ainda esta estratégia, tipicamente hegeliana, de medir a verdade de
proposições lógicas fazendo apelo à pragmática da fala. Ao falarmos sobre a
identidade, sempre somos obrigados a pressupor a diferença como dado primeiro e
definidor. Pôr a identidade exige pressupor a diferença. Ou seja, invertermos a ordem
lógica e colocamos o reconhecimento da diferença como lei originária do pensar, já
que “a identidade de uma entidade consiste em um conjunto de seus traços
diferenciais” (ZIZEK, 1999, p. 135). Ela é momento de uma separação em relação a
um processo no qual a diversidade desempenha papel fundante.
Por outro lado, Hegel afirma que a identidade não é um dado de alguma forma
derivado de experiência imediatamente acessível à consciência. Não há um
componente factual orientando o uso de enunciados do tipo A=A. Na verdade, a
experiência fornece apenas a relação da identidade do Um com a multiplicidade da
diversidade. Daí porque: “o concreto e a aplicação é justamente a relação do idêntico
simples a algo de variado distinto dele” 152. Ou seja, a aplicação expõe o esforço do
149 HEGEL, Enciclopédia, § 115
150 HEGEL, WL II, p. 40
151 HEGEL, WL II, p. 41
152 Isto talvez nos explique porque Hegel afirma que: “Nenhuma consciência
pensa, nem tem representações, nem fala segundo essa lei [da identidade]; e
nenhuma existência, seja de que espécie for, existe segundo ela. O falar conforme
esssa suposta lei da verdade (um planeta é – um planeta; o magnetismo é – o
magnetismo; o espírito é – um espírito) passa, com razão, por uma tolice: essa
sim é uma experiência universal” (HEGEL, Enciclopédia, par. 115
pensar em unificar o que não tem identidade imediata em si mesmo. Por isto que:
“expresso como proposição, o concreto seria inicialmente uma proposição
sintética”153. A posição da proposição de identidade já é, segundo Hegel, uma
modificação da experiência, já que esta nos mostra, na verdade, a unidade da
identidade com a diversidade.
Mas podemos dizer que A=A, enquanto proposição analítica seria
independente da experiência, o que sabemos, ao menos desde Quine, que não é
exatamente o caso, já que sabemos que um dos dogmas fundamentais do empirismo
é: “a crença em certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em
significados independemente de questões de fato, e verdades sintéticas, ou fundadas
em fatos”154. Por isto, Hegel deve lembrar que mesmo a forma proposicional da
proposição já diz mais do que afirma. Este é uma maneira astuta de dizer que a
analiticidade de proposições do tipo A=A são um problema. Para chegar a tal
compreensão especulativa da proposição, Hegel compreende toda proposição a partir
de sua forma geral (S é P) que coloca as diferenças categoriais quantitativas entre a
particularidade do sujeito e as predicações de universais e rompe, assim, com a
sinonímia pressuposta entre sujeito e predicado155.
Quando digo, por exemplo “uma rosa é uma rosa” vê-se que a expectativa
aberta pela enunciação “uma rosa é ...”, na qual o sujeito aparece como forma vazia e
ainda não determinada, como “algo em geral”, como “som privado de sentido” 156, é
invertida ao final da proposição. A rosa que aparece na posição de sujeito é um caso
particular, uma determinação empírica. Rosa que, em si mesmo, é apenas negação –
acontecimento contingente desprovido de sentido – enquanto que a rosa presente no
predicado aparece inicialmente como “representação universal”157 abstrata que
forneceria a significação (Bedeutung) do sujeito. Podemos mesmo afirmar que ela é
extensão de um conjunto ainda vazio. Para Hegel, ao enunciar “uma rosa é uma
rosa”, dizemos que o conjunto é idêntico a um de seus elementos, dizemos que o
singular é o universal. Esta é a interpretação que podemos dar à afirmação: “Já a
fórmula da proposição está em contradição com ela [a proposição A=A], pois uma
proposição promete também uma diferença entre sujeito e predicado; ora, esta não
fornece o que sua própria forma exige”158. Ou seja, a posição da identidade produz
necessariamente uma contradição. O que nos explica por que Hegel afirma: “Se
alguém abre a boca e promete indicar o que é Deus, a saber Deus é – Deus, a
expectativa encontra-se enganada pois ela esperava uma determinação diferente”159.
Hegel teria compreendido a existência, na forma geral da proposição, de uma
cisão estrutural entre o regime geral de apresentação e a designação nominal do
acontecimento particular. Pois o primeiro momento da afirmação “o singular é o
universal” põe a inessencialidade do singular e a realidade do universal. Uma rosa

153 HEGEL, WL II, p. 43


154 QUINE, Dois dogmas do empirismo, p. 231
155 Esta maneira de levar em consideração as diferenças categoriais
quantitativas expressas na forma geral da proposição é o que faz a especificidade
da teoria hegeliana do julgamento, isto a ponto de Hegel afirmar que se deve:
“ver como uma falta de observação digna de surpresa que, nas lógicas, não
encontramos indicado o fato de que em todo julgamento exprime-se tal
proposição: ‘o singular é um universal’" (HEGEL, Encyclopédie, op. cit., par. 166).

156 HEGEL, Fenomenologia I, p. 21


157 HEGEL, Encyclopédie¸ tome 1, op.cit, p. 245.
158 HEGEL, Encyclopédie, p. 163.
159 HEGEL, WL I, p. 44.
será sempre uma rosa. É o predicado que põe o sujeito e, a partir do momento em que
o sujeito (ainda indeterminado) é posto, ele se anula: o que era predicado advém
sujeito. Devido à forma geral da proposição, o ato de enunciação da identidade
produz sempre a posição de uma alienação. Pois: “Se dizemos também: ‘o
efetivamente real é o Universal’, o efetivamente real como sujeito desaparece
(Vergeht) em seu predicado”160.
Pode parecer que Hegel faça aqui uma confusão entre predicação e
identidade, como já dissera Russell. Ele parece negligenciar que há ao menos dois
empregos diferente do termo “é”. Frege nos lembra que “é” pode ter ao menos duas
funções (Cf. FREGE, Ecrits logiques et philosophiques, Paris: Seuil, 1971, p. 129)
"é" pode ter a função de forma lexical de atribuição a fim de permitir a predicação de
um conceito a um objeto. Assim, em ‘uma rosa é odorante’, ‘odorante’ é a predicação
conceitual de um nome de objeto (rosa). Mas, por outro lado, “é” pode ter a função de
signo aritmético de igualdade a fim de exprimir a identidade entre dois nomes de
objeto (como no caso da proposição “A estrela da manhã é Vênus”) ou a auto-
igualdade de um nome de objeto a si mesmo (“Vênus é Vênus”). Nos parece que, na
verdade, a dialética deve, em uma certa medida, confundir predicação e identidade.
Normalmente, diríamos que algo e idêntico quando é intercambiável em qualquer
condição cognitiva possível, como seriam, por exemplo, “solteiro” e “homem não
casado”. Mas: “não há garantia de que a concordância extensional de ‘solteiro’ e
‘homem não casado’ se baseie no significado em vez de se basear meramente em
questões de fato acidentais, como acontece com a concordância entre ‘criaturas com
coração’ e ‘criaturas com rins’161. Uma relação de definição, assim como uma relação
de sinonimia, pressupõe o reconhecimento anterior do uso, ou seja, um ajustamento
em relação a casos empíricos convenientes. Esta passagem em direção a empiria é
vista por Hegel como um caso de predicação.

A diferença, entre a diversidade e a oposição

Tais colocações permitem a Hegel dizer que a proposição de identidade contém mais
do que ela visa, pois contém sempre a enunciação da diferença como seu pressuposto.
Hegel afirma que a diferença conhece dois momentos distintos: a diversidade
(Verschiedenheit) e a oposição.
A diversidade é a diferença pensada a partir da reflexão exterior. Por isto: “os
diversos estão em relação um com o outro não como identidade e diferença, mas
apenas como diversos em geral que são indiferentes um em relação a outro e em
relação à sua determinidade”. De uma certa forma, a diversidade é um gênero de
retorno à imediaticidade, um momento de recaída no empirismo de quem afirma que
“Todas as coisas são diversas” ou que “Não existem duas coisas que sejam iguais uma
à outra”. Tais proposições não deixam de se referir ao princípio leibniziano de
identidade dos indiscerníveis (se X e Y tem as mesmas propriedades, então eles são
idênticos).
Hoje diríamos que os termos sob a noção de diversidade estão dispostos como
um multiplicidade pura, ou seja, estrutura cujos elementos não tem função
subordinada, mas são estruturados por relações recíprocas que não podem ser
compreendidas como relações de oposição. Hegel compreende esta determinação da

160 HEGEL, Fenomenologia I., op.cit, p. 55


161 QUINE, De um ponto de vista lógico, p. 52
diferença como pura multiplicidade uma determinação deficiente. Sua deficiência
vem do fato de Hegel insistir que toda posição da diversidade, para ser minimamente
estruturada, exige a ação de comparação entre termos. Tal comparação pede a
presença de uma espécie de “terceiro termo” comum que permita a estruturação de
relações de igualdade e desigualdade. Este terceiro termo, que permite a comparação
mas está para além dos elementos comparados, acaba por nos obrigar a passarmos da
diversidade à oposição. Pois a simples diversidade é indemonstrável. A afirmação de
que todas as coisas são diversas é algo que a experiência não pode garantir. O que a
experiência me fornece são arranjos locais de diferenciação.
No entanto, segundo Hegel: “a diferença não tem de ser apreendida
simplesmente como diversidade exterior e indiferente, mas como diferença em si; e
que por isto compete às coisas, nelas mesmas, serem diferentes”162. Maneira de
afirmar que a diferença não deve ser apenas o resultado de uma distinção entre termos
e elementos, como se fosse algo produzido de forma contingente. Ela deve ser o modo
de relação interna dos termos e elementos. Daí esta afirmação surpreendente de que
compete à coisas serem, nelas mesmas, diferentes. Ou seja, a diferença deve ser uma
determinação ontológica das coisas. Por isto, devemos passar da diferença à
contradição, já que, para Hegel, a contradição é esta figura da diferença em si.
Por outro lado, Hegel chega a pensar a possibilidade de uma multiplicidade
que não seja estruturada a partir de um princípio geral de medida, mas através de algo
mais próximo daquilo que Wittgenstein chamou de semelhanças de família: “porque
as diversas semelhanças entre os membros de uma família, constituição, traços faciais,
cor dos olhos, andar, temperamento, etc. sobrepõem-se e cruzam-se [umas às
outras]”163. No entanto, isto não modifica o problema central, que consiste em afirmar
que a diferença deve necessariamente resolver-se na posição da igualdade e da
desigualdade. Posição que, por sua vez, transforma a diversidade em oposição 164, já
que no interior de uma relação de semelhança de família opera-se a partir de uma
comparação opositiva entre dois elementos onde tal comparação é determinante para a
posição da identidade, mesmo que apenas sob um de seus aspectos.
Sobre a oposição Hegel dirá que, nela, identidade e diferença são momentos da
diferença mantidos no interior dela mesma. Isto está enunciado na seguinte definição
hegeliana da relação de oposição:

Cada um é ele mesmo e seu outro, o que faz com que cada um tenha sua
determinidade em si mesmo, e não em um outro. Cada um relaciona-se a si
mesmo como se relacionando a um outro. Isto tem dois sentidos: cada um está
em relação com seu não-ser como suprimindo este outro, assim seu ser-outro é
apenas um momento interno ao si. Mas, por outro lado, o ser-posto se
transformou em um ser, um subsistir indiferente (...) consequentemente, cada
um é apenas na medida em que seu não-ser é.

Esta é a maneira hegeliana de afirmar que a oposição instaura uma relação de


incompatibilidade material (p/ não p) que tem a força de estruturar a extensão dos
termos em relação. No entanto, tal relação não pode ser compreendida apenas como
determinação exterior.
162 HEGEL, Enciclopédia, par. 117
163 WITTGENSTEIN, Inverstigações filosóficas, par. 67
164 Na verdade, não pode haver multiplicidade não-estruturada para Hegel. A
simples posição de uma proposição como ”Não há duas coisas que sejam
completamente idênticas’ já pressupõe um dispositivo de contagem que organiza
a diversidade a partir da estrutura de uma multiplicidade numérica.
Este é um ponto central que pode ser melhor compreendido se levarmos em
conta a crítica hegeliana à noção kantiana de oposição real tal como Kant a
desenvolveu em seu Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza
negativa. Para Kant, uma oposição real indica que dois predicados de um sujeito são
opostos de maneira contrária, mas sem contradição lógica. Assim: “a força motriz de
um corpo que tende a um certo ponto e um esforço semelhante deste corpo para se
mover em direção oposta não se contradizem, sendo ao mesmo tempo possíveis como
predicados de um mesmo corpo” (KANT, 2005, p. 58). Tal oposição é descrita em
linguagem matemática através dos signos + e - (+A e -A) a fim de mostrar como uma
predicação pode destruir outra predicação, chegando a uma conseqüência cujo valor é
zero, mas sem que seja necessário admitir um conceito que se contradiz em si mesmo
(nihil negativum). Isto permitirá a Kant sublinhar que o conflito resultante de um
princípio real que destrói o efeito de outro princípio no nível da intuição não
pressupõe uma contradição no nível das condições transcendentais de constituição do
objeto do conhecimento. Este conflito real, ou oposição real, é a boa negação; “que
permite ao entendimento constituir objetos " (DAVID-MÈNARD, 1990, p. 41), já
que, contrariamente à contradição lógica (pensada como objeto vazio sem conceito),
esta negação deixa fora de seu julgamento a questão da existência do sujeito do
julgamento.
Mas se Kant afirma que os predicados opostos são contrários sem serem
contraditórios, é porque eles se misturam como forças positivas determinadas no
resultado de uma realidade final. Os opostos reais são, para Kant, propriedade
igualmente positivas, eles correspondem a referências objetivas determinadas. Não há
realidade ontológica do negativo (mesmo se há um poder negativo do transcendental
na determinação do númeno como conceito vazio em relação à intuição de objetos
sensíveis). A aversão e a dor são tão positivas (no sentido de se referirem a objetos
positivos) quanto o prazer. Elas têm uma subsistência positiva como objetos sensíveis
que não é redutível à relação de oposição.
Hegel está atento à maneira com que a oposição real não modifica a noção de
determinação fixa opositiva. Mesmo reconhecendo a existência de uma solidariedade
entre contrários no processo de definição do sentido dos opostos (ao afirmar que : “a
morte é um nascimento negativo”, Kant reconhece que o sentido da morte depende da
determinação do sentido do nascimento), a noção de oposição nos impede de
perguntar como a identidade dos objetos modifica-se quando o pensamento leva em
conta relações de oposição165. Como nos diz Lebrun: “Que cada um dos termos só
possa ter sentido ao ligar-se ao seu oposto, isto o Entendimento concede, esta situação
é figurável. Mas que cada um advenha o que significa o outro, aqui começa o não-
figurável” (LEBRUN, 1971, p. 292). Daí porque: “Mesmo admitindo, contra os
clássicos que o positivo pode se suprimir e que o negativo possui de alguma maneira
um valor de realidade, Kant jamais colocará em questão o axioma: ‘A realidade é
algo, a negação não é nada’. Essa proposição é até mesmo a base do escrito sobre as
grandezas negativas: ela é a condição necessária sem a qual não se poderia discernir a
oposição lógica da oposição real” (LEBRUN, 2002, p. 266).
Neste sentido, podemos dizer que Hegel procurar desdobrar todas as
conseqüências possíveis de um pensamento da relação assentado na centralidade de
negações determinadas. Pois a produção da identidade através da mediação pelo

165 Ela nos impede de colocar a questão: “como os objetos são redefinidos,
reconstituídos pelo fato de se inscreverem em relações? Quais transformações a
noção de objeto recebe pelo fato de assim ser reconstituída pelo pensamento?
(LONGUENESSE, 1981, p. 80)
oposto, tal como vemos na oposição real, é reflexão-no-outro. Um recurso à alteridade
que aparece como constitutivo da determinação da identidade que promete uma
interversão (Umschlagen) da identidade na posição da diferença. Como nos dirá
Henrich, o primeiro passo deste movimento dialético consiste em passar de algo que
se distingue do outro enquanto seu limite para algo que é apenas limite (HENRICH,
1967, p. 112). Tal passagem advém possível porque Hegel submete a negação
funcional-veritativa à noção de alteridade, seguindo aí uma tradição que remonta ao
Sofista, de Platão166: "Contrariamente à negação funcional-veritativa [fundada na idéia
de exclusão simples], a alteridade é uma relação entre dois termos. Faz-se necessário
ao menos dois termos para que possamos dizer que algo é outro" (HENRICH, 1967,
p. 133).
Tal submissão da negação à alteridade nos explica porque a figura maior da
negação em Hegel não é exatamente o nada ou a privação, mas a contradição
Contradição que aparece quando tentamos pensar a identidade em uma gramática
filosófica que submete a negação à alteridade. Nesta gramática, só há identidade
quando uma relação reflexiva entre dois termos pode ser compreendida como relação
simples e auto-referencial, ou seja, só há identidade lá onde há reconhecimento
reflexivo da contradição.

166 Como vemos na afirmação: “Quando enunciamos o não-ser, não enunciamos


algo contrário ao ser, mas apenas algo de outro” (PLATÃO, Sofista, 257b)
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 5
A processualidade da essência e o problema da contradição em Hegel
(continuação: Deleuze, leitor de Hegel)

Na aula de hoje, gostaria de dar sequência a nossas discussões sobre a


estrutura lógica do pensamento dialético através de uma discussão sobre o estatuto da
contradição. Trata-se de um dos problemas mais decisivos do pensamento dialético.
Não por outra razão, ao ser perguntado por Goethe sobre o que entendia por dialética,
Hegel afirmou: “dialética é o espírito de contradição organizado”. Então trata-se aqui
de entender, primeiramente, como é possível organizar a contradição, ou seja, não
reduzí-la apenas a expressão de um objeto vazio desprovido de conceito, mas dar-lhe
o estatuto de um movimento ordenado próprio aos objetos da experiência. Segundo,
veremos nesta aula uma das críticas mais relevantes contra a estratégia dialética de
pensar a contradição como fundamento do movimento imanente das próprias coisas, a
saber, aquela que podemos encontrar na filosofia da diferença de Gilles Deleuze. Há
um confronto entre contradição e diferença como categorias capazes de apreender a
determinação imanente do que constitui nossa experiência do mundo que gostaria de
discutir com vocês na aula de hoje.

Sobre a contradição

Comecemos pois pelo estatuto dialético da contradição. Em sua Metafísica,


Aristóteles afirma: “É impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao
mesmo sujeito e sob a mesma relação”167. Esse princípio de não-contradição era “o
mais seguro de todos os princípios”, já que aceitar a realidade da contradição, aceitar
que algo pode, ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva, ser e não ser A,
significaria arruinar nossa capacidade de julgar:

“Se todos os contraditórios relativos ao mesmo sujeito são verdadeiros ao


mesmo tempo é evidente que todos os seres seriam apenas um. Haveria
identidade entre um trirreme, uma muralha e um homem se, de todo sujeito,
fosse possível afirmar ou negar, indiferentemente, um predicado (...) Porque
pois nosso filósofo vai a Mégara ao invés de ficar em casa pensando que viaja?
Porque, se ele encontra um poço ou um precipício, não se dirige a ele, mas
toma cuidado, como se pensasse que não é igualmente bom e ruim nele cair? É
claro que ele estima que tal coisa é melhor e que tal outra é pior. Se é assim,
ele também deve julgar que tal objeto é um homem, que tal outro é um não-
homem, que isto é doce, que aquilo é não-doce”168.

Afirmações desta natureza querem dizer que abandonar o princípio de não-


contradição seria algo que nos levaria à completa indeterminação, pedir sua
comprovação seria como pedir a comprovação de um axioma. No entanto, tudo nos
leva a crer que: “o homem precisa evitar a contradição para escapar da confusão e do

167 ARISTOTELES; Metafísica, 1005b 19


168 ARISTOTELES, Metafísica, IV, 4, 15-20
caos, ou seja, para dominá-los; e isso na medida que lhes impõe a forma do que é livre
de contradição, uniforme e a cada vez o mesmo”169.
Como vocês devem imaginar, Hegel não quer ir a Mégara ficando em casa, ele
não quer dizer que podemos afirmar algo e seu contrário de todo e qualquer objeto da
experiência ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Pois uma coisa é determinar a
contradição como princípio lógico-argumentativo, como impossibilidade do nosso
uso ordinário da linguagem em suas expectativas comunicacionais; outra coisa é
determinar a contradição como princípio metafísico, como algo da ordem do ser
enquanto ser ou, ainda, da essência. É claro que Hegel em momento algum quer
colocar em questão o princípio de não-contradição como princípio lógico-
argumentativo, mas ele quer colocar em questão toda tentativa de elevar o princípio
de não-contradição á condição de princípio metafísico. “Para Hegel e para Heráclito, a
´contradição´ é o elemento do ser, de modo que já distorcemos tudo se falamos em
uma contradição do falar e do dizer, em vez de em uma oposicionalidade do ser” 170.
Insistir na contradição como elemento do ser significa que não se trata de limitar a
linguagem filosófica ao horizonte da dimensão comunicacional da linguagem. A
linguagem filosófica não é uma comunicação no interior da qual processo
informações a partir de um certo grau de previsibilidade. Ela é tematização de
experiências que, do ponto de vista da consciência aferrada ao senso comum, são
impossíveis e mesmo impensáveis. Do ponto de vista da consciência aferrada às
representações naturais do senso comum, a contradição vale como a contingência, a
abnormalidade e a doença (cf. HEGEL, 1986b, p. 75).
Hegel via como preconceito lógico acreditar que a contradição não seria uma
determinação tão essencial quanto a identidade. Para ele, não há apenas contradição
lógica, mas também algo que devemos chamar de “contradição objetiva”, certamente
um dos conceitos mais importantes de todo pensamento dialético. Pois, na verdade,
face à contradição, a identidade seria apenas a determinação do ser morto: “Algo é
vivente apenas na medida em que contém em si a contradição (Widerspruch in sich
enthält) e é esta força [que consiste] em apreender em si e a suportar a contradição"
(HEGEL, 1986b, p. 76). Mas o que pode significa a noção de conter em si a
contradição? Hegel utiliza exemplos orgânicos para mostrar como algo pode conter
em si mesmo aquilo que lhe nega. Ele chega a afirmar que a contradição é a raiz de
todo movimento (que produz Trieb und Tätigkeit) e de toda vida, já que o movimento
é pensado como impulso em direção à superação de uma contradição posta, de uma
inadequação interna. Daí porque ele pode dizer: “o negativo em sua determinação
essencial é o princípio de todo automovimento” 171. Notemos, no entanto, que
reconhecer o princípio de um auto-movimento necessário não implica afirmar o
caráter contraditório de tudo o que é. Afinal, a passagem da potência ao ato, por
exemplo, não implica contradição, embora implique certa forma de negação e de
contrariedade.
No entanto, Hegel dirá claramente: “O que em geral move o mundo é a
contradição e é ridículo dizer que a contradição não se deixa pensar”172. Este é ponto,
a meu ver, central: afirmar que o que se move, move-se através da contradição. Ele
implica afirmar que “movimento” não é o desenvolvimento progressivo de uma
identidade previamente assegurada, nem pode ser simplesmente pensado a partir da
dinâmica de passagem da potência ao ato. Não há nada de contraditório no fato de que

169 HEIDEGGER, Nietzsche I, p. 460


170 HEIDEGGER, idem, p. 465
171 HEGEL, WL II, p. 76.
172 HEGEL, Enziklopädie, par. 119
algo em potência tornou-se ato ou no fato de que uma substância expressa seus
possíveis em seus atributos, que os atributos de uma substância são as atualizações em
devir de seus possíveis. No entanto, a princípio parece que é da passagem entre
potência e ato que Hegel fala ao tematizar contradições como: “Algo move-se a si
mesmo não enquanto está aqui neste agora e em outro agora depois, mas enquanto
está e não está aqui neste agora, enquanto é igual e não é igual a este aqui” (HEGEL,
1986b, p. 76). Pois estar em movimento parece ser ocupar potencialmente o outro
agora, o outro aqui; logo, por me projetar em direção ao outro aqui, já o conteria em
mim mesmo. No entanto, volto a insistir, se assim fosse, não haveria razão alguma
para falar em contradição, no máximo deveríamos falar de contrariedades. Na
verdade, estaremos mais próximo de Hegel se aceitarmos que a contradição não é
entre este agora e o agora posterior, mas entre a compreensão representacional da
presença e a compreensão dialética da presença. A compreensão representacional da
presença a define a partir de oposições, identidades próprias à disponibilidade de
sucessões vinculadas às determinações do espaço. Já a compreensão dialética da
presença tem uma profunda relação de contradição com o pensar representativo, já
que implicar pensar a presença a partir da simultaneidade espectral do tempo.
Compreender que, agora, estou e não estou aqui, implica transformar essencialmente
o que entendemos por presença, como pensamos a presença.
Por isto, podemos dizer que o movimento dialético não é mera modificação,
mas é a destruição da identidade inicialmente posta. Daí porque: “a diferença em
geral é a contradição em si”173. Para Hegel, a contradição é a determinação do ser a
partir do primado da diferença. Pois contradição não é mera oposição, mas negação da
totalidade da identidade inicial através do movimento da identidade realizar-se como
exceção de si, da totalidade encarnar-se em um termo que a nega. O que não poderia
ser diferente para alguém que define o movimento da essência como uma auto-
negação. Definir tal auto-negação como atualização do movimento da essência
significa que esta destruição da identidade posta não é fruto de um acidente, mas a
realização da essência, ou mesmo a integração do acidente no interior da essência. Se
fosse um acidente meramente exterior, não haveria contradição. O que se move,
move-se por destruição de si e por inscrição desta destruição em um movimento de
“retorno em si” (Rückkehr in sich selbst) que modifica retroativamente o termo inicial
finito e limitado, ao invés de assegurá-lo em sua identidade inicial. Esta é a maneira
hegeliana de afirmar que algo tem em si a própria causa do que lhe transforma. Ter em
si a própria causa do que lhe transforma não é expressar a imanência de um devir que
se desdobra no interior da totalidade da substância. Antes, ter em si a própria causa do
que lhe transforma é integrar uma exceção que só poderá ser encarnada por uma
totalidade, só pode ser integrada à condição da totalidade modificar o que determina
seu regime de relações. Daí porque é necessário falar em contradição como condição
para o movimento.
Notemos como a função desta reflexão filosófica sobre o conceito de
contradição não se resume à noção de que o pensamento crítico deve ser capaz de
indicar as contradições reais no seio da vida social a fim de expô-las tendo em vista
uma possível superação. Pois ao dar à contradição um caráter ontológico, a própria
noção de “superar a contradição” deve ser radicalmente revista. Conhecemos um uso
tradicional desta noção de superação, por exemplo, através da exposição marxista da
contradição entre meios de produção e forças produtivas tendo em vista uma
superação em direção à sociedade reconciliada. No entanto, neste caso, notem como a
contradição serviria apenas para indicar a existência de situações de crise a serem
173 HEGEL, Wissenschaft der Logik II, p. 65
superadas já que a contradição é o que não pode permanecer como tal. Ela é índice
de uma crise que deve ser explicitada a fim de produzirmos uma situação na qual não
existam mais crises. Não é difícil perceber como, neste ponto, temos um pensamento
para o qual a contradição continua sem ter realidade ontológica alguma, pois se trata
de um pensamento assombrado pela possibilidade de retornar à identidade.
Neste sentido, há de se tirar as consequências do fato de Hegel dar à
contradição um estatuto claramente ontológico. Zizek está certo ao afirmar: “a figura
mais elementar da reversão dialética reside na transposição de um obstáculo
epistemológico para a coisa em si, como sua falha ontológica (o que nos parece
incapacidade de conhecer a coisa indica uma rachadura na coisa em si, de modo que
nosso próprio fracasso em atingir a verdade plena é indicador da verdade)” 174. Isto
significa que a contradição não pode ser eliminada, nem é explicitada para ser
eliminada. O que a dialética faz é transformar a contradição, de limite ao pensamento
e ação, à condição de intelecção de realidades nas quais as determinações nunca são
completas, nas quais elas estão em um devir contínuo de alteração da estrutura de suas
formas. O que a dialética faz é transformar a realidade (Wirklichkeit) em “atividade
absoluta”.
No entanto, a identidade reinstaurada que conserva a contradição não é a
perpetuação de um movimento incessante de auto-ultrapassagem, como se
devêssemos conservar a identidade negada para que ela fosse continuamente exposta
em sua finitude e inadequação. Maneira de perpetuar uma determinação finita que
teria como função simplesmente confessar continuamente sua própria impotência.
Esta não é a atividade absoluta da realidade que Hegel tem em mente. Pois isto
implicaria confundir dois movimentos distintos em Hegel: a umschlagen e a
Aufhebung. O primeiro movimento é uma passagem incessante nos opostos, uma
reversão contínua de uma determinação em seu outro. O segundo movimento é uma
superação que suspende o ritmo de tais passagens incessantes, pois implica produção
de uma nova forma de determinação. O primeiro movimento nos leva ao que Hegel
chama de infinito ruim por ser a perpetuação infinita do limite, a afirmação infinita do
limite em sua impotência. O infinito é aqui meramente potencial, pois é a expressão
de um para além que nunca se encarna, como uma essência que nunca está presente,
mas que continuamente apresenta sua ausência a fim de marcar a realidade com o selo
do que está sempre em falta consigo mesmo.
Já a Aufhebung expressa um movimento que é o caminho para a atualização de
uma infinitude verdadeira, pois ela opera com negações determinadas. As negações
determinadas tem por característica assumir que a posição de dois termos em relação,
por mais incomensuráveis que sejam inicialmente, produz a modificação recíproca na
natureza das identidades de ambos. Mas para que este processo seja apreendido, como
veremos mais a frente, é necessário que a própria ideia de determinação mude e
abandone sua natureza representacional. Ela advém uma determinação infinita. Neste
sentido, podemos dizer que a reconciliação, para um pensamento que determina a
contradição de forma ontológica, não pode ser a suspensão pura e simples da
negatividade. Seria mais correto dizer que, para a dialética, a reconciliação é a
situação na qual não é mais necessário negar a negatividade, pois acedemos a um
novo regime de determinação na qual é possível dar forma à processualidade contínua
do devir com suas alterações formais estruturais. Só conseguiremos pensar a
reconciliação de forma dialética quando abandonarmos a ideia de que reconciliações
indicam telos, a aproximação de uma imagem de suspensão de antagonismos e

174 ZIZEK, Slavoj; Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético,
São Paulo: Boitempo, 2013, p. 26
conflitos. Para a dialética, a reconciliação não significa a antecipação filosófica de um
destino, mas a compreensão efetiva de que as condições para a atividade já estão
dadas, que o que anteriormente era posto como impossível já é possível. Daí este
movimento peculiar de afirmação que a reconciliação se realiza quando
compreendemos que ela já ocorreu. Ou seja, a reconciliação não diz respeito à
antecipação formal de um destino, mas ao redimencionamente efetivo da ação.

Ter a contradição em si

Mas, tentemos entender melhor a natureza objetiva da contradição dialética


através de certos exemplos que Hegel nos fornece no momento de explicar como algo
poderia conter em si a contradição. Notemos a importância da afirmação de Hegel a
respeito da presença imediata da contradição nas determinações de relação: “Pai é
outro do filho e filho é outro do pai, cada termo é apenas como outro do outro (...).
[No entanto] O pai, para além da relação ao filho também é algo para si (etwas für
sich); mas assim ele não é pai, mas homem em geral (Mann überhaupt)”. Hegel se
serve do mesmo raciocínio em outro exemplo que toca de maneira direta o problema
da designação e lembra os exemplos presentes na discussão hegeliana sobre a certeza
sensível:

Alto é o que não é baixo, alto é determinado apenas a não ser baixo, e só é na
medida em que há baixo; e inversamento, em uma determinação encontra-se
seu contrário". Mas : "alto e baixo, direita e esquerda, também são termos
refletidos em si, algo fora da relação [itálico meu]; mas apenas lugares em
geral (HEGEL, 1986b, p. 71).

Os dois exemplos convergem em uma intuição maior: as determinidades são,


ao mesmo tempo, algo em uma oposição real e algo para si, fora do sistema reflexivo
de determinações opositivas. Elas têm um modo particular de subsistir próprio
irredutível. Hegel já tinha sublinhado este ponto ao comentar a oposição entre o
positivo e o negativo enquanto determinações-de-reflexão autônomas: "o negativo
também tem, sem relação ao positivo [itálico meu], um subsistir próprio (eigenes
Bestehen)" (HEGEL, 1986b, p. 71). Ou seja, o negativo não é simples privação de
determinação ou um positivo em si que aparece como negativo apenas no interior de
uma relação. Ele é também um negativo em si, fora de sua oposição ao positivo, e está
é a base da operação de restituição da dimensão ontológico do negativo.
Tais frases são muito importantes para a compreensão do verdadeiro caráter da
contradição hegeliana. A identidade sempre é enunciada com seu contrário não
porque, por exemplo, o pai é o contrário do filho e sempre que pomos o pai
deveríamos pressupor o filho. A contradição encontra-se no fato de que o pai é, ao
mesmo tempo, determinação para os outros (enquanto significante ‘pai’ que se
determina através de oposições entre outros significantes: ‘mãe’, ‘filho’, ‘tio’) e
indeterminação para si (enquanto ele pode sempre se identificar com a negatividade
da indeterminação do homem em geral). Como nos indicou Zizek: “não sou apenas
‘pai’, esta determinação particular, mas para além de seus mandatos simbólicos, não
sou nada mais do que o vazio que deles escapam (e que como tal é um produto
retroativo)" (ZIZEK, 1999, p. 136). Como se a inscrição da individualidade em um
sistema estrutural de oposições produzisse sempre uma espécie de resto, de excesso
reiterado da inscrição que Hegel teria reconhecido através desta maneira de conceber
a contradição.
Pode parecer estranho que termos como ‘homem em geral’ e ‘lugar em geral’
sejam vistos como pontos de excesso da tentativa de inscrever a individualidade em
um sistema estrutural. Pode parecer, por exemplo, que Hegel queira simplesmente
mostrar como os sujeitos são, ao mesmo tempo, singulares individualizados em um
universo estrutural de identidades e diferenças (pai de..., filho de...), e pessoa em geral
que tem em comum com outras pessoas propriedades essenciais. No entanto, se assim
fosse, não haveria sentido algum em falar de “contradição” neste caso. Se Hegel vê
aqui um exemplo privilegiado de contradição é porque “homem em geral” é um lugar
vazio que aparece como excesso às determinações relacionais e nos envia à dialética
do fundamento (Grund), que se segue às reflexões de Hegel sobre a contradição.
Assim, servindo-se de um witz famoso do idealismo alemão, Hegel dirá: “Estas
determinações-de-reflexão se superam e a determinação que vai ao abismo (zu
Grunde gegangen) é a verdadeira determinação da essência" (HEGEL, 1986b, p. 80).
Ou ainda: "A essência, enquanto se determina como fundamento, determina-se como
o não-determinado, e é apenas o superar de seu ser-determinado que é seu determinar"
(HEGEL, 1986b, p. 81). Ou seja, isto nos permite deduzir que “homem em geral”
apenas indica o que não se determina através de predicações e individualizações, mas
permanece indeterminado e negativo. Um homem em geral que indica um gênero sem
arche e sem forma, que será recuperado por Marx quando falar da “vida do gênero”.
Ao menos neste caso, compreender o caráter objetivo da contradição será
compreender a tensão entre determinação e indeterminação que habita todo sujeito.
Este exemplo mostra como a contradição é interna ao objeto porque ela exprime a
cisão que resulta da operação de inscrição do objeto visado em uma rede de
determinações simbólicas175. Podemos criticar esta estratégia hegeliana afirmando que
ele reduz o que está fora do sistema a um ponto vazio, a uma presença pura
desprovida de individualidade predicável. Neste sentido, não seria um acaso o fato de
Hegel comparar o horror habitual do pensamento representativo diante da contradição
ao horror da “natureza diante do vácuo” (HEGEL, 1986b, p. 78).
No entanto, o problema hegeliano consiste em saber como apresentar o que é
inicialmente vazio de conceito em uma determinidade conceitual, e não como anular o
não-conceitual através do império total do conceito. É possível compreender o não-
conceitual como o impulso em direção a uma concepção não-representacional de
conceito, a uma concepção processual de conceito? Eis uma problemática hegeliana
por excelência. Como bem sublinhou Mabille, há, no interior mesmo da ontologia
hegeliana, um risco de indeterminação que sempre devemos inicialmente assumir
para poder após conjurar.
Parece-me que, para Hegel, esta tarefa filosófica maior só pode ser realizada
quando tentamos responder à questão das condições dos modos de “apreensão e
enunciação (Auffassen und Aussprechen) da contradição". Ou seja, de uma
enunciação que possa apresentar a contradição, que possa levar a contradição à
dimensão das operações próprias do conceito, da coisa e do sujeito, já que: “A coisa,
o sujeito, o conceito são apenas esta própria unidade negativa” 176. Neste sentido, o

175 É neste sentido que compreendemos a afirmação de Longuenesse: “o que


resta, segundo Hegel, uma descoberta inestimável, é a tensão entre a unidade do
Eu penso e a multiplicidade do não pensado, ou não completamente unificado
pelo pensamento. Todo objeto (pensado) porta em si tal tensão, é por isto que
todo objeto porta em si a contradição" (LONGUENESSE, 1981, p. 51). Uma
contradição: « entre sua inscrição em uma unidade racional e sua irredutibilidade
à unidade” (ibidem, p. 52).
176 HEGEL, WL II, p. 79
conceito é dependente da compreensão de que: “o não-ser do finito é o ser do
absoluto”177.

A crítica deleuzeana

Uma das crítica mais contundente a esta forma de pensar a diferença a partir
da contradição vem de Deleuze. Deleuze tende a compreender que a posição de Hegel
não é essencialmente diferente da maneira que Aristóteles define a diferença e a
determinação. Esta articulação é fundamental para Deleuze poder afirmar que o que
temos em Hegel ainda é uma forma de pensamento da representação. Como não há
possibilidade de pensar a diferença no interior da representação, a não ser como
diferença opositiva que se acomoda a um quadro estruturado de representações, esta é
a forma de Deleuze afirmar que a dialética hegeliana é um pensamento da identidade,
incapaz de pensar a produtividade da diferença.
Deleuze inicia afirmando que a tendência hegemônica, desde Aristóteles,
consiste em pensar a determinação a partir de quatro princípios: a identidade em
relação ao conceito, a analogia entre julgamentos, a oposição entre os predicados de
um mesmo sujeito ou entre sujeitos exteriores e a semelhança entre os objetos
percebidos. Estes quatro princípios serão a base do que compreendemos por
representação. Representar algo é determiná-lo a partir de princípios de oposição,
identidade, semelhança e analogia. No interior deste modo de disposição que funda
aquilo que Deleuze chama de “representação orgânica”, a diferença distingue-se da
diversidade e da alteridade, aparecendo submetida à oposição, que é elevada à
condição de diferença fundamental.
Aristóteles afirma que é diferente aquilo que difere do outro a partir de um
elemento particular, sendo necessário a existência de um elemento idêntico que
construa um campo de equivalência possível. Este elemento comum pode ser o gênero
ou a espécie. Duas coisas são distintas em gênero quando não há matéria comum ou
geração recíproca, como é o caso de coisas de categorias diferentes. Elas são distintas
em espécie quando são idênticas segundo o gênero.
Sabemos que Aristóteles distingue quatro tipos de oposição: contrariedade,
contradição, relação e privação. É na contrariedade que Aristóteles verá a “diferença
perfeita”, já que a contrariedade representa a diferença máxima no interior do gênero
(“branco” e “preto”, “pedestre” e “alado”, etc,). Por “gênero” entendamos o que
constitui a unidade e a identidade de dois seres e que diferencia estes seres de uma
maneira que não é simplesmente acidental. “Animal” define minha unidade com um
cão, ao mesmo tempo que “animal” diferencia-se em mim e no cão de forma não
acidental, pois nos distingue em espécies. Ou seja, esta diferença no interior do gênero
divide-o, produzindo espécies que tem, entre si, relações de contrariedade (como
“mamíferos pedestres” e “mamíferos alados”). Desta forma, percebemos como a
diferença aparece como especificidade que divide o que permanece comum, a saber, o
gênero. Ela é um operador que permite a conservação da identidade conceitual do
gênero, inscrevendo-se no conceito indeterminado do gênero.
Esta “diferença específica”, ou seja, que determina espécies, é compreendida
por Deleuze como modo de não apresentar um conceito de diferença, mas de
submeter a experiência da diferença às limitações representacionais do conceito,
transformando-a em predicado de uma espécie. Daí porque ele precisa insistir que:
”confunde-se a determinação de um conceito próprio de diferença com a inscrição da

177 HEGEL, WL II, p. 80


diferença no conceito em geral”178. Neste sentido, ao falar que procura uma diferença
desprovida de conceito, Deleuze insiste que há uma experiência exterior ao modo de
determinação de predicações conceituais que deve ser recuperada a fim de nos
livrarmos de uma imagem do pensamento que para nos aparece com o peso do senso
comum.
Por outro lado, a relação dos gêneros entre si desconhece um terceiro termo
comum, por isto Aristóteles afirma que os seres de gêneros distintos são
incomunicáveis. Ele dirá então que: “entre uma coisa e as coisas fora de seu gênero,
não há diferença concebível”179. O ‘único termo comum possível seria “ser”. No
entanto, Aristóteles afirma que, na dimensão da distinção entre gêneros, há uma
equivocidade radical do ser, isto enquanto as espécies são unívocas em relação ao
gênero.
Levando isto em conta, podemos dizer que a crítica deleuzeana à Hegel pode
ser sintetizada na seguinte frase: “Hegel, assim como Aristóteles, determina a
diferença por oposição dos extremos ou dos contrários” (DELEUZE, 2000, p. 64), o
que implica reduzir a contradição hegeliana a uma forma radicalizada de
contrariedade. Se aceitarmos a leitura de Deleuze poderíamos explicar porque, na
Ciência da Lógica, a diversidade (como diferença exterior e multiplicidade não-
estruturada) deve necessariamente resolver-se na posição da igualdade e da
desigualdade para daí advir oposição180. Poderíamos ainda compreender tentativas,
como a de Robert Brandom, de definir a negação determinada como a simples
reflexão sobre as conseqüências de assumirmos o caráter estruturante de relações de
incompatibilidade material. Lembremos do que ele afirma: “Hegel aceita o princípio
medieval (e spinozista) omni determinatio est negatio. Mas a mera diferença ainda
não é a negação que a determinidade exige de acordo com esse princípio.
Essencialmente, a propriedade definidora da negação é a exclusividade codificada no
princípio de não-contradição: p exclui-se de não-p; eles são incompatíveis”
(BRANDOM, 2002, p. 179). Assim: “o conceito de incompatibilidade material ou,
como Hegel o designa, de ´negação determinada´ é seu mais fundamental instrumento
conceitual” (BRANDOM, 2002, p. 180).
No entanto, tais leituras não são corretas. Hegel não pensa os pólos opostos a
partir de relações de exterioridade, o que impossibilita a tentativa de reduzir a
contradição a uma forma de incompatibilidade material. Deleuze sabe disto, por isto
dirá que, para além do modo “orgânico” de representação marcado pela aplicação
estrita dos quatro princípios anteriormente mencionados, há ainda um modo da
representação tentar englobar o que lhe nega, englobar o “sentimento” da infinitude.
Trata-se daquilo que Deleuze chama de representação “orgiástica” e que conhecemos
simplesmente por dialética em sua matriz hegeliana. Por representação orgiástica,
Deleuze compreende o conceito enquanto operador de internalização do que lhe
aparece inicialmente como diferença exterior. Daí porque a noção de limite se
modifica: “Ela não designa mais os limites da representação finita, mas ao contrário a
matriz na qual a determinação finita não cessa de desaparecer e de nascer, de se
absorver e se desdobrar na representação orgiástica”181.

178 idem, p. 48
179 ARISTOTELES, Metafísica, X, 4, linea 26
180 Na verdade, não pode haver multiplicidade não-estruturada para Hegel. A
simples posição de uma proposição como: “Não há duas coisas que sejam
completamente idênticas” já pressupõe um dispositivo de contagem que organiza
a diversidade a partir da estrutura de uma multiplicidade numérica.
181 DELEUZE, idem, p. 62
Deleuze insiste que a maneira que Hegel dispõe de criticar a representação
consiste em salvá-la, ou seja, em conservá-la como fundamento a partir do qual o que
não se conforma à representação é posto como negativo. Daí porque a determinação
finita (a representação) não cessa de desaparecer (já que ele se confronta
incessantemente com o que lhe nega) e de nascer (já que ela permaneceria como
fundamento dos modos de orientação do pensamento). É isto que Deleuze tem em
mente ao afirmar que a dialética só pode descobrir o infinito deixando subsistir a
determinação finita: “dizendo o infinito da determinação finita, representando-a não
como dissolvida ou desaparecida, mas como dissolvendo-se e a ponto de desaparecer,
ou seja, também como engendrando-se ao infinito”182.
No fundo, esta maneira de só pensar o infinito como desaparecimento infinito
da determinação finita seria fruto de uma espécie de “sono antropológico” hegeliano.
Hegel seria ainda preso à antropologia da consciência, ou seja, aos limites cognitivos
da consciência psicológica. Por isto, desde de sua resenha crítica ao livro de Jean
Hyppolite, Lógica e existência, Deleuze se pergunta: “não podemos fazer uma
ontologia da diferença que não teria que ir até a contradição porque a contradição
seria menos do que a diferença, e não mais? A contradição não seria apenas o aspecto
fenomenal e antropológico da diferença?”183. Anos depois, em Nietzsche e a filosofia,
Deleuze acusará a dialética de ser “uma mistura bizarra de ontologia e antropologia,
de metafísica e de humanismo”184. Esta insistência na dialética hegeliana como
pensamento dependente dos limites de uma antropologia (tema heideggeriano por
excelência) vem da compreensão da consciência-de-si como uma consciência presa às
determinações representacionais de uma consciência empírica. Pois seria para uma
consciência presa ainda à representação que tudo não pensável sob a forma da
representação só pode ser uma contradição, ou seja, uma impossibilidade do
pensamento que só se apresenta como negatividade diante da clareza do pensamento
representacional. Daí porque Deleuze afirmará que a Fenomenologia hegeliana é, no
fundo, uma fenomenologia da consciência infeliz, tema que ele traz das leituras
hegeliana de Jean Wahl. Como se ela fosse prisioneira da cisão própria à consciência
infeliz entre a efetividade e a essência.
No entanto, tal interpretação é dificilmente sustentável. Primeiro, porque se
para a consciência a contradição é o impensável, para o Espírito ela é índice de
verdade. O Espírito não é uma consciência hipostasiada, mas outra forma de
pensamento, radicalmente distinta da forma de pensamento que define a consciência.
A Fenomenologia do Espírito não é uma antropologia da consciência, nem a
consciência infeliz é seu destino final, o que seria bizarro já que Hegel criou tal figura
da consciência para dramatizar as clivagens próprias à consciência moral kantiana,
que ele critica185. Por isto, o fundamento ao qual a contradição é reportada não pode
ser considerado: “uma maneira de tomar particularmente a sério o princípio de
identidade, dando-lhe um valor infinito, tornando-o coextensivo ao todo e, assim,

182 DELEUZE, idem, p. 63


183 DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 23
184 DELEUZE, Gilles; Nietzsche et la philosophie, p. 210
185 O que Derrida compreendeu bem ao afirmar: “a Fenomenologia do Espírito
não se interessa por qualquer coisa a que possamos chamar simplesmente o
homem. Ciência da experiência da consciência, ciência das estruturas da
fenomenalidade do espírito relacionando-se com ele mesmo, ela distingue-se
rigorosamente da antropologia. Na Enciclopédia, a seção intitulada
Fenomenologia do Espírito vem depois da Antropologia e excede muito
explicitamente os limites desta” (DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia,
Campinas: Papirus, 1986, p. 156).
fazendo-o reinar sobre a própria existência”186. Ao contrário, o ir ao fundamento é
uma desarticulação do anteriormente fundado. As oposições, quando vão ao
fundamento (Grund), caem todas no abismo (Abgrund).
Sabemos que fundar é determinar o existente através da sua relação a um
padrão que me permite orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas
categoriais como a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos
fenômenos, determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como
fundamento posso garantir e clarificar o critério do verdadeiro e do falso, do correto e
do incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas estruturas
aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre princípios lógicos gerais
de ligação e unidade capazes de constituir objetos da experiência e fundar proposições
de identidade e diferença. Estes princípios de ligação (Verbindung) e unidade são
derivados do Eu como unidade sintética de apercepções, que aparece assim como o
verdadeiro fundamento das determinações. No entanto, a problematização de tais
princípios é o verdadeiro objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um
Witz ao dizer que, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die
Bedeutung das Seinen hat)187, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a
consciência significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e
unidade que é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a
partir de sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções
kantianas entre receptividade e espontaneidade. A dialética precisa pois aceder a um
fundamento não mais dependente da forma auto-idêntica do Eu, o que é possível
através da superação dos modos naturalizados de determinação, através a fragilização
das imagens de mundo que orientam e constituem nosso campo estruturado de
experiências188.

O problema do infinito

Na verdade, entre Deleuze e Hegel passa ao menos um ponto em comum:


todas as duas são filosofias para as quais o problema filosófico fundamental consiste
em como pensar o infinito atual. Infelizmente, não há espaço aqui para falar sobre a
maneira com que Deleuze pensa o infinito, mas podemos levantar algumas
características do pensamento dialético sobre o infinito. Podemos começar lembrando
como, para Hegel, o infinito não está ligado a determinações quantitativas, mas a
determinações qualitativas. Não se trata de pensar o infinitamente grande ou pequeno,
mas o infinitamente outro. Pois infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria
negação e que, ao invés de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade. Daí
porque Hegel pode afirmar, em uma frase chave: “A infinitude, ou essa inquietação
absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que é determinado de
qualquer modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa
determinidade”189. Ou seja, a infinitude é construída a partir da experiência da
contradição. No entanto, enquanto a contradição é compreendida pelo entendimento
como impossibilidade de constituir um objeto, a infinitude permite a constituição de
186 DELEUZE, Gilles; Différence et répétition, p. 70
187 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159
188 Esta é nossa maneira de adotar a tese de Ruy Fausto, para quem, se
fundamentação é, necessariamente, clarificação : “Apenas os discursos cujos
fundamentos primeiros são de alguma maneira ‘obscuros’ (ou seja, marcados pela
negação) são discursos efetivamente claros (no sentido dialético)” (FAUSTO, Ruy;
Marx: logique et politique, Paris : Publisud, 1986, p. 35)
189 idem, par. 163
um objeto da experiência que move-se a si mesmo, que tem em si mesmo a própria
causa de sua transformação, o próprio princípio do que destruíra sua identidade
suposta.
Mais uma vez poderíamos dizer que isto parece fazer com que o infinito seja o
ato contínuo de ultrapassagem do finito, de um finito que permanece, que se conserva
por precisar ser continuamente ultrapassado. Por isto, Deleuze podia dizer que , em
Hegel, a representação infinita não se livra do princípio de identidade, mesmo que
este princípio da identidade agora seja mobilizado preferencialmente através daquilo
que indica seu limite, como as noções de oposição, antagonismo, contradição e
conflito.
No entanto, lembremos como tal leitura só seria possível se reduzíssemos
todas as figuras dialéticas da negação à oposição, o que está longe de ser o caso em
Hegel. A oposição pode admitir que só é possível pôr um termo através da
pressuposição da realidade do seu oposto, que aparece aqui como limite de
significação. Mas a oposição não pode admitir, e aqui começa uma compreensão
dialética da infinitude, que a identidade de um termo é a passagem no seu oposto, que
o limite de um termo, por seu seu-limite, faz parte da extensão do próprio termo.
Admitir isto significaria desarticular a própria noção de identidade em sua força de
distinção entre elementos, o que desarticularia a noção de “finito”. Pois perdida a
capacidade de distinção entre elementos, o que resta da identidade? Certamente, nada
referente a seu significado habitual. Ela deixa de ter a função organizadora que
normalmente esperamos da representação. Por isto, para Hegel, a identidade do
conceito nada tem a ver com a identidade da representação. Pensar o conceito (e isto
Deleuze parecer ter dificuldade em compreender, dificuldade que Schelling já havia
demonstrado em seu tempo, em carta a Hegel 190) significa pensar para além da
representação. Daí a dificuldade em aceitar uma afirmação de Deleuze como: “pois a
diferença só implica o negativo e só se deixa levar até a contradição na medida em
que continuamos a subordiná-la ao idêntico”191. Ela cria a ilusão de sabermos o que
falamos ao denunciar a “subordinação ao idêntico”. Mas não seria esta a verdadeira
questão de Hegel: levaremos a identidade até sua auto-exaustão, até este ponto onde
não temos mais certeza do que estamos falando, onde continuar a falar seu nome será
a maneira mais astuta de trair suas ilusões iniciais?
A vantagem da perspectiva hegeliana talvez se encontre no fato dela fornecer
um princípio explanatório para o seguinte problema que fica em aberto no
pensamento deleuzeano: sendo a multiplicidade e a diferença aquilo que permite a
intelecção da univocidade do ser192, então como explicar a recorrência perpétua das
ilusões do finito e da identidade? Tais “ilusões” devem ser: a) ou momentos da
univocidade, b) ou entidades com dignidade ontológica próprias (pois se elas fossem
entidades simplesmente “inexistentes”, isto produziria a situação cômica de ter de
explicar porque montamos verdadeiras máquinas filosóficas de guerra contra aquilo
que, no final das contas, do ponto de vista ontológico, é inexistente) ou c) expressões

190 “Reconheço não apreender até aqui o sentido da oposição que você
estabelece entre conceito e representação”(Carta de Schelling a Hegel, 02 de
novembro de 1807)
191 DELEUZE, idem, p. 1
192 Isto se admitirmos a leitura de Alain Badiou, para quem: “o problema
fundamental de Deleuze não é certamente liberar o múltiplo, é dobrar o
pensamento a um conceito renovado do Uno. O que deve ser o Uno para que o
múltiplo nele seja integralmente pensável como produção de simulacros?”
(BADIOU, Alain; Deleuze : o clamor do ser, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.
18)
de alguma forma de “fraqueza moral”, de descaminho do ser. Se aceitarmos c), então
colocaremos a crítica filosófica nas vias de uma crítica moral, como se o finito e a
identidade fosse a versão contemporânea do mal, um mal agora chamado de
“ressentimento”, tal como Deleuze acusa Hegel em Nietzsche e a filosofia. Não me
parece uma saída filosoficamente condizente com um pensamento, como o hegeliano,
que critica violentamente posturas morais deontológicas baseadas na cisão entre
desejo e vontade, entre dever e paixões. Um pensamento que é uma filosofia da
atividade e da transformação contínua, algo muito distante da fixação temporal
própria a todo ressentimento.
Se o finito e a identidade forem, por outro lado, entidades com dignidade
ontológica próprias, então a univocidade do ser estará quebrada e a multiplicidade se
mostrará mais frágil do que a identidade, já que a identidade seria uma “ilusão” com a
força de exilar a experiência da multiplicidade, isolá-la em territórios e momentos
regionais. Por isto, a identidade deve ser um momento da diferença, o finito deve ser
um momento da estratégia de atualização do infinito. Hegel parte do finito porque
começamos a pensar contra representações naturais enraizadas na linguagem
cotidiana e nas operações do senso comum. Como diria Sartre, o primeiro ato
filosófico é pensar contra si mesmo. Ignorar isto é esquecer que as determinações do
mundo atual não se confundem imediatamente com o que a experiência é capaz de
produzir. Ignorar isto seria elevar os limites do mundo atual a condição de limites de
toda linguagem e pensamento possível. Há uma explosão dos limites do atual que é
resultado de um processo de trabalho do conceito, dirá Hegel. Pois o fracasso do
finito em determinar-se deve ser momento de atualização de um infinito que,
inicialmente, deve aparecer como força de indeterminação, para depois aparecer
como força produtiva através da resignificação dos limites do finito. O finito deve
confessar que ele não é finito, ele deve se auto-negar através de uma crítica imanente
na qual ele descobre em si mesmo o infinito em operação, na qual ele começa a falar
outra linguagem, como se sua linguagem natural fosse simplesmente destruída. Ele
deve explodir seus limites e se realizar como infinito. É assim que devemos entender
uma afirmação central como:

“A superação (Aufheben) não é a alteração ou o ser-outro em geral, nem a


superação de algo. Isto no qual o finito se supera é o infinito como a negação
da finitude, mas a finitude foi determinada por muito tempo apenas como
existência enquanto não-ser. Por seu lado, a infinitude foi determinada como o
negativo da finitude e da determinidade em geral, como o vazio do para além.
A superação de si na finitude é um retorno deste vôo vazio, a negação do para
além que é, em si mesmo, um negativo” 193.

Terminemos lembrando: como não há um pensamento da univocidade do ser em


Hegel, ele precisa apreender a substância como sujeito em atividade de negatividade,
ou seja, ele precisa compreender a atualização como uma atividade na qual a
totalidade é uma produção retroativa incessantemente redimensionada pelo que lhe
reconfigura. Ao compreender isto, a contradição deixa de ser um limite ao
pensamento para ser a expressão de um mundo que é movimento que só se estabiliza
em uma transformação da linguagem. Mundo no qual poderemos enfim dizer frases
incompreensíveis para o entendimento, como:

193 (HEGEL, Wissenschalft der Logik I, p. 160)


A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim
é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes194.

194 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito,


Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 6
Sujeito e reconhecimento em Hegel

Na aula de hoje, terminaremos nosso primeiro módulo através da discussão a respeito


do conceito hegeliano de sujeito. O objetivo destas aulas foi permitir uma
compreensão renovada de problemas fundamentais da reflexão dialética. Procurei
explorar certas vias para requalificar melhor o que devemos entender por dialética.
Vimos inicialmente porque a dialética não pode ser uma ontologia do ser, isto através
da insistência hegeliana em qualificar toda ontologia do ser como o pensamento do
puramente indeterminado. Daí a necessidade de insistir na indissociabilidade entre ser
e nada, assim como na elevação da categoria de devir (Werden) como a primeira
categoria concreta da ontologia. Nesta mesma aula, apresentei a crítica de Heidegger a
maneira com que Hegel desqualifica toda e qualquer ontologia do ser. Para Heidegger,
tratava-se da consequência necessária de uma filosofia incapaz de abrir mão das
aspirações fundacionistas do conceito de sujeito. Ficamos assim com a necessidade de
explorar de forma mais sistemática os usos hegelianos do conceito de sujeito.
Vimos na aula seguinte como, em Hegel, não temos algo como um devir sem
tempo, como tentei mostrar que seria o caso em Spinoza. Há um modelo de devir que
se articula no interior da historicidade, ou seja, a reflexão sobre a natureza da
experiência histórica e as estruturas do seu movimento são campos decisivos para a
compreensão das “formas gerais do movimento” que fornecem o fundamento para a
crítica das categorias da ontologia, tal como encontramos na Ciência da Lógica. Esta
temporalidade concreta descrita por Hegel visa mostrar como a dialética não pode ser
um pensamento que parte de uma concepção de substância previamente assegurada
que expressará suas potencialidades através da multiplicidade de seus atributos, como
no fundo várias vezes se criticou em Hegel (como podemos ver em Heidegger,
Habermas, entre outros). Insistir que o absoluto não está dado no início, mas é um
resultado, implica aceitar que totalidades não podem se estabelecer como campo de
determinação prévia das condições gerais de possibilidade da experiência. Totalidades
são resultados, em processualidade contínua, da integração de acontecimentos
contingentes com suas temporalidades múltiplas. Falar em absoluto, neste caso,
significa simplesmente falar na possibilidade de apreensão não da totalidade dos
conteúdos do saber, mas estrutura da processualidade que atravessa o existente.
Alcançar o absoluto não implica ser capaz de deduzir o que é e o que será, mas
reconciliar com o movimento, com a inquietude do tempo.
Por fim, nas nossas últimas duas aulas vimos como Hegel pensa a estrutura de
tal movimento através de uma discussão sobre as determinações de reflexão, em
especial a identidade, a diferença e a contradição. Neste caso, procurei dar atenção
especial ao estatuto da contradição em Hegel, o que não poderia ser diferente para um
pensamento que define a dialética como: “espírito de contradição organizado”. Vimos
como uma discussão rigorosa a respeito do estatuto da contradição é condição maior
para a compreensão da especificidade do projeto hegeliano. A ideia da contradição ser
a determinação essencial do movimento nos levou a uma compreensão da maneira
com que Hegel compreende o movimento através de um processo de destruição de
identidades postas e de retorno a si no interior de novas formas de determinação.

O conceito de sujeito
Na aula de hoje, gostaria de discutir com vocês as características principais do
conceito hegeliano de sujeito. Não foram poucas vezes que a filosofia hegeliana foi
compreendida por seus críticos como uma filosofia que hipostasia o conceito de
consciência, só conseguindo determinar experiências a partir do quadro prévio de
categorias próprias a uma subjetividade constituinte. Neste sentido, a dialética
hegeliana sempre seria uma dialética idealista, isto no sentido que Robert Brandom dá
à “tese idealista”, a saber: “a estrutura e unidade do conceito é a mesma que a
estrutura e unidade do eu”195. Mas podemos compreender tal proposição de duas
formas. Primeiro, que o eu projeta sua estrutura e unidade no mundo através dos
conceitos por ele produzidos. Segundo, que o eu descobre em seu interior a estrutura
daquilo que o conceito tenta unificar. De certa forma, no primeiro caso, o objeto
aparece como o que se submete à estrutura representacional da consciência. No
segundo, a consciência descobre, em seu interior, algo da ordem da opacidade própria
aos objetos do mundo. A meu ver, esta segunda tese é mais adequada para pensarmos
a dialética hegeliana.
Para mostrar tal tese, devemos compreender como, em Hegel, “sujeito” não é
uma entidade substancial e auto-idêntica capaz de determinar a si mesmo, como
encontramos na tradição da filosofia moderna que vai desde Locke e Descartes. Na
verdade, “sujeito” é o nome de um movimento de reflexão e implicação com o que
não porta imediatamente a forma da identidade. Tal movimento é pensado por Hegel
através do conceito de “negatividade”. Ao cunhar tal termo, Hegel pensava não
apenas em uma negação, ou seja, o sujeito não é apenas aquele que nega a
imediaticidade do mundo. Tratava-se também de insistir em uma atividade negativa,
ou ainda, em uma atividade que parte da negação do mito do dado, do mito das
espécies naturais e que sempre será refratária a tal mito. Negatividade é o nome da
atividade que compreende o campo de determinações socialmente disponível como
limitado, como em falta diante das potencialidades da experiência.
Isto nos obriga a quebrar duas ilusões. A primeira consiste em confundir o
conceito de sujeito com o conceito de indivíduo, ou seja, esta entidade dotada de
inseparabilidade corporal, continuidade identitária e de um sistema pretensamente
consciente de interesses singulares. O sujeito hegeliano não é o indivíduo. Por outro
lado, sujeito não diz respeito a uma consciência mas a uma estrutura de relações entre
consciências que Hegel chama de consciência de si. Esta relação entre consciências é
pensada por Hegel a partir das dinâmicas de “reconhecimento” (Anerkennung).
Reconhecimento é o nome dado por Hegel para descrever o processo através do qual
sujeitos são instituídos como consciências de si. Só existem sujeitos que são
reconhecidos como tal. Gostaria então de discutir o que poderíamos chamar de “teoria
hegeliano reconhecimento”, base para a compreensão do que Hegel entende por
sujeito em sua capacidade judicativa.
Sabemos que Hegel desenvolve seu conceito de individualidade através da
noção de consciência-de-si. No entanto, esquecemos com freqüência como a
consciência-de-si hegeliana não é um conceito mentalista próprio à reflexividade de
uma subjetividade auto-suficiente que se delimita em relação ao que lhe é exterior. Na
verdade, consciência-de-si é, para Hegel, um conceito relacional que visa descrever
certos modos de imbricação entre sujeito e outro que têm valor constitutivo para a
experiência do Si mesmo. Por ser a consciência-de-si um conceito relacional, seus
atributos maiores na dimensão prática (como determinação, autonomia, liberdade e
imputabilidade) só podem ser pensados em seu verdadeiro sentido quando
195 BRANDOM, Robert; Tales of the Mighty Dead, p. 210
abandonamos a crença de que a experiência da ipseidade está assentada na entificação
de princípios formais de identidade e unidade. Até porque, a consciência-de-si não se
funda na apreensão imediata da auto-identidade, mas naquilo que nega sua
determinação imanente.
Mas dizer que a consciência-de-si é um conceito relacional é ainda dizer muito
pouco. Pois isto pode simplesmente significar que toda subjetividade é, desde o início,
dependente de uma estrutura intersubjetiva de relações que a constitui e a precede. No
entanto, parece que Hegel quer dizer algo a mais. Para tanto, precisaremos
compreender melhor quem é este outro com o qual me relaciono em experiências
constitutivas que se dão no campo do trabalho, da linguagem e do desejo. Trata-se
apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma alteridade mais profunda que está
para além do que determina uma individualidade como objeto de representação
mental, um para além que me coloca em confrontação com algo que, do ponto de
vista da consciência, é indeterminado? O que pode exatamente significar, neste
contexto, essa expressão tão aproximativa : “uma alteridade mais profunda”?
Se seguirmos esta segunda hipótese, talvez compreendamos melhor porque,
para Hegel, a individualidade livre (ou seja, a individualidade que realizou seu
processo de formação) é aquela que leva ao campo da determinação a força
disruptiva da confrontação com o indeterminado e que, por isto, tem a capacidade de
fragilizar toda aderência limitadora a uma determinidade finita. Talvez seja assim que
devamos entender afirmações maiores de Hegel como: “A liberdade não se vincula
pois nem ao indeterminado nem ao determinado, mas ela é ambos” 196. Ou ainda: “O
Eu é a passagem (Ubergehen) da indiferenciação indeterminada para a distinção
determinada e põe uma determinação como um conteúdo e objeto” 197. Lembremos
que, por ser passagem, o Eu nunca deixa de conservar os momentos que ele coloca em
relação através do movimento de passar no oposto. O que nos leva a dizer que ele
deve conservar algo do que ainda não é um Eu, algo que é pré-individual.
Por outro lado, insistir neste aspecto nos permitirá mostrar como, a partir de
uma perspectiva hegeliana, o processo de reconhecimento da individualidade não
pode estar restrito ao simples reconhecimento da reivindicação de direitos individuais
positivos que não encontram posição em situações normativas determinadas, como o
quer Honneth ao afirmar não ser possível compreender porque a “antecipação da
morte, seja a do próprio sujeito seja a do Outro deveria conduzir a um reconhecimento
da reivindicação de direitos individuais”198. O mesmo Honneth para quem a
experiência da indeterminação é vivenciada pela consciência basicamente como fonte
de sofrimento, como: “um estado torturante de esvaziamento”199.
De fato, a questão não pode ser respondida se compreendermos o que exige
reconhecimento como sendo direitos individuais, expressões singulares da autonomia
e da liberdade. Mas não é isto que Hegel tem realmente em vista. Tanto é assim que
ele não teme afirmar que o não arriscar a vida pode produzir o reconhecimento
enquanto pessoa, mas não enquanto consciência-de-si autônoma e independente.
Como se a verdadeira autonomia da consciência-de-si só pudesse ser posta em um
terreno para além (ou mesmo para aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de
diretos positivos e determinações individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a crer que
Hegel insiste que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da
196 HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp,
1996, § 7.
197 idem, § 6
198 HONNETH, Axel ; Lutte pour reconnaissance, Paris: Cerf, 2000, p. 30.
199 HONNETH, Axel; Sofrimento da indeterminação, São Paulo: Esfera Pública,
2007, p. 102
confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-
enraizamento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos contextos
particulares e nossas visões determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em
mostrar como o demorar-se diante desta negatividade é condição para a constituição
de um pensamento do que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento
também não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
Habermas ao afirmar:

Eu me compreendo como ‘pessoa em geral’ e como ‘indivíduo inconfundível’


que não se deixa substituir por ninguém em sua biografia. Sou pessoa em geral
na medida em que tenho em comum com todas as outras pessoas as
propriedades pessoais essenciais de um sujeito que conhece, fala e age. Sou ao
mesmo tempo um indivíduo inconfundível, que responde, de maneira
insubstituível, por uma biografia tão formadora quanto singular200.

Interpretações desta natureza entificam uma noção personalista de individualidade,


noção ligada ao Eu como figura de uma determinação completa. Isto nos impede de
pensar a fluidez de um conceito de individualidade onde toda determinação seria
corroída por um fundo de indeterminação que fragiliza sua identidade e sua fixidez.
Por outro lado, tais interpretações tendem a constituir a universalidade como conceito
normativo e essencialista ao demarcá-la a partir de um conjunto determinado de
“propriedades pessoais essenciais” que não são objetos de questionamento ou
conflito, mas motor de toda demanda presente em conflitos sociais. Esta é uma via
que nos leva, necessariamente, à substancialização de um conceito antropológico de
sujeito. Como veremos, é exatamente para impedir derivas desta natureza que Hegel
insiste tanto na necessidade do trajeto em direção à universalidade passar pelo
“trabalho do negativo” e pelo “caminho do desespero”.

Ontogêneses e conflitos

Se reconstruirmos o dispositivo fundamental de desenvolvimento da teoria


hegeliana da formação da consciência-de-si veremos que se trata de partir de
considerações sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos,
uma ontogênese que se desenvolve através de processos de socialização e de
individuação. Trata-se de se perguntar sobre a gênese empírica de nossas habilidades
cognitivas e de nossos esquemas de determinação racional da ação. No entanto, ao
invés de partir da análise das práticas de socialização através de identificações que
ocorrem em núcleos elementares de interação social (família, sociedade civil,
instituições, Estado), Hegel prefere, inicialmente, fornecer algo como uma matriz
fenomenológica geral para a inteligibilidade de tais processos. Trata-se da dialética do
Senhor e do Escravo (DSE).
Através da DSE, Hegel procura nos mostrar como os processos de
reconhecimento social são mediados por um desejo que instaura o conflito enquanto
solo ontológico, por se apresentar desde o início como aquilo que constitui relações
apenas a partir de dinâmicas de dominação e servidão (e veremos, mais a frente, as
conseqüências em dar ao conflito uma dignidade ontológica). Através do desejo,
procuro submeter o outro à condição de objeto desprovido de autonomia, outro cuja

200 HABERMAS, Jürgen; Verdade e Justificação, Belo Horizonte: Loyola, 2004, p.


195
essência consiste apenas em ser suporte do meu desejo. Mas como o desejo é o
primeiro modo de relação ao outro, então o conflito que ele instaura tem o peso de um
dado ontológico para o modo de ser da consciência-de-si.
É certo que o desejo enquanto relação negativa para com o objeto exige ser
superado. No entanto, tal superação não implica recuperar alguma forma de interação
recíproca entre sujeitos fortemente individualizados e determinados, muito menos
implica pôr processos de indiferenciação simbiótica pré-pessoais como horizonte de
desenvolvimento de relações sociais. Como gostaria de mostrar, a experiência da
negatividade do desejo será, de uma certa maneira, conservada como base para a
reconstrução dos modos de relação à si e ao outro.
Se voltarmos ao texto da Fenomenologia, veremos que o desejo aparece pela
primeira vez em um contexto esclarecedor. Trata-se de uma discussão a respeito das
condições para a realização da unidade entre consciência-de-si e consciência de
objeto. Ao lembrar que a noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem em
si nenhum ser” (já que é apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade
da consciência-de-si consigo mesma mas, ao contrário, era a própria clivagem (já que
a essencialidade está sempre em um Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel
afirma: “Essa unidade [da consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que
significa: a consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)”201.
O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em
geral”, ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos
compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se alojado no
“interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e
a determinação essencial dos objetos, só será possível a partir do momento em que
compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação.
A princípio, uma afirmação desta natureza parece algo totalmente temerário.
Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que
submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou estaria ele
insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche e Freud,
que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é racional e
legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos, interesses que
nos levam a recuperar a dignidade filosófica da categoria de “desejo”?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin:

Hegel parece estar dizendo que o problema da objetividade, do que estamos


dispostos a contar como uma reivindicação objetiva é o problema de satisfação
do desejo, que a ‘verdade’ é totalmente relativizada por fins pragmáticos (...)
Tudo se passa como se Hegel estivesse reivindicando, como muitos fizeram
nos séculos XIX e XX, que o que conta como explicações bem-sucedidas
dependem de quais problemas práticos queremos resolver (...) que o
conhecimento é uma função de interesses humanos202.

No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade à

201 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 120


202 PIPPIN, Robert; Hegel´s idealism: The satisfaction of self-consciousness,
Cambridge University Press, 1989, p. 148
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser
que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo
particularismo de apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática
tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as
aspirações universalizantes da razão. Lembremos ainda que, por não admitir
distinções estritas entre empírico e transcendental, Hegel não está disposto a operar
rupturas entre desejo patológico e vontade livre cujo reconhecimento seria o
fundamento para a constituição do universo dos direitos. Há algo da universalidade
da vontade livre que já se manifesta no interior do desejo.

O que realmente falta ao desejo?

Para Hegel, o desejo (Begierde) é a maneira através da qual a consciência-de-


si aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento. Neste sentido, ele é, ao mesmo
tempo, modo de interação social e modo de relação ao objeto. Além do desejo, Hegel
apresenta, ao menos, outros dois operadores reflexivos de determinação da
consciência-de-si: o trabalho e a linguagem. Estes três operadores tecem entre si
articulações profundas, já que o trabalho é “desejo refreado” e a linguagem obedece à
mesma dinâmica de relação à expressão que o trabalho.
Lembremos inicialmente como Hegel parece vincular-se a uma longa tradição
que remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Vejamos,
por exemplo, um trecho maior da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel
afirma:

O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
ser, mas uma atividade absoluta203.

A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto) é
uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
mesma por objeto e, neste mesmo movimento, assimila o objeto a si. Esta experiência
da falta é tão central para Hegel que ele chegar a definir a especificidade do vivente
(Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação
(Erregung) que o leva à necessidade do movimento; assim como ele definirá o sujeito
como aquele que tem a capacidade de suportar (ertragen) a contradição de si mesmo
(Widerspruch seiner selbst) produzida por um desejo que coloca a essência do sujeito
no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, como
sabemos, não é isto o que ocorre:

203 HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia - vol III, op. cit., § 427


O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo [notemos
esta articulação fundamental: a certeza de si mesmo é estritamente vinculada
aos modos de satisfação do desejo] são condicionados pelo objeto, pois a
satisfação ocorre através do suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse
Outro deve ser. A consciência-de-si não pode assim suprimir o objeto através
de sua relação negativa para com ele, pois essa relação antes reproduz o
objeto, assim como o desejo204.

A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas


uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição
da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si
mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na
verdade, a consciência procura a si mesma. Até porque, devemos ter clareza a este
respeito, a falta é um modo de ser da consciência, modo de ser de uma consciência
que insiste que as determinações estão sempre em falta em relação ao ser.
Como sabemos, esta proposição do desejo como falta foi, nas últimas décadas,
objeto de críticas virulentas vindas principalmente de autores como Gilles Deleuze e
Félix Guattari. Seu alvo não era apenas a apropriação do conceito hegeliano feita pela
psicanálise lacaniana, mas também a metafísica da negatividade presente no conceito
hegeliano de desejo. Pois a maneira com que a psicanálise procura socializar o desejo
produziria um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo
como falta que nos remete, afinal de contas, a Hegel. No entanto, “Nada falta ao
desejo”, dirão os dois, “ele não está em falta em relação ao seu objeto. Na verdade, é
o sujeito que está em falta com o desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há
sujeito fixo graças à repressão”205. Neste caso, tratava-se de insistir que a afirmação do
desejo como falta não poderia ser outra coisa que fruto de uma ilusão metafísica a
respeito da realidade do negativo. Ilusão animada por uma teologia negativa que
sequer tem medo de dizer seu nome.
A este respeito, lembremos que há três maneiras de compreender a proposição
de que a essência do desejo é falta. Primeiro, a falta pode ser simples manifestação da
carência, da privação de um objeto determinado da necessidade. Esta claramente não
é a posição hegeliana, já que implicaria uma naturalização de sistemas de
necessidades estranha a uma filosofia que não compreende a natureza como sistema
fechado de leis. Segundo, podemos dizer que a falta é um modo de ser da consciência
porque ela indica a transcendência do desejo em relação aos objetos empíricos,
seguindo aqui uma via aberta por Platão.
Sabemos como Platão faz Sócrates afirmar, em O banquete: "Desejamos
aquilo do qual somos desprovidos"206 ou aquilo que não está presente ou aquilo que
pessoalmente não sou. Daí porque Eros é o intermediário entre dois contrários: ele
manifesta a falta de coisas belas e boas que impelem o desejo (epithumia), coisas a
respeito das quais tenho um certo saber. Ou seja, o objeto do desejo é aquilo que, ao
mesmo tempo, não tenho e está em mim. Este caráter intermediário entre presença e
ausência fica visível a partir do momento que Eros é compreendido a partir da
perspectiva do amante (erastes), e não do amado (eromenos).

204 Idem, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 124


205 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix ; L´anti-OEdipe, Paris: Minuit, 1969, p. 34
206 PLATÃO, Le banquet, Paris: Gallimard, 1950, 200a
No entanto, esta falta que mobiliza o desejo não está exatamente ligada à
dimensão dos objetos sensíveis. Pois: "a beleza que existe em tal ou tal corpo é irmã
da beleza que reside em outro e, se devemos perseguir o belo em sua forma sensível,
seria uma insígnia desrazão não julgar una e idêntica a beleza que reside em todos os
corpos"207. Esta desqualificação do sensível permite a abertura a uma série de asceses
que nos levará à "essência mesma do belo" para além do que é mortal e corruptível.
Uma essência cuja visão implicaria liberar o belo em sua pureza, abrir espaço para sua
manifestação sem misturas na unicidade de sua natureza formal. Poderíamos mesmo
afirmar que, nesta ascese: "a pessoa deixa sua particularidade para trás" 208, como se
fosse questão de negar a essencialidade do que é da ordem da natureza mortal, isto em
prol da essencialidade de algo que: "de alguma forma lhe pertence, mas que não lhe é
imediatamente disponível"209. Assim, a negatividade do desejo seria, no fundo,
manifestação intencional da transcendência inesgotável do ser em relação à
empiricidade.
É pensando nesta vertente que Deleuze e Guattari desenvolvem sua crítica ao
desejo como falta. Tudo se passaria como se Hegel se apropriasse deste esquema de
transcendência para colocá-lo em operação no interior de uma certa teologia negativa
onde não é mais a transcendência da Idéia que produz a desqualificação de todo
sensível, mas a "pura negatividade" que só aparece através da reiteração infinita da
ultrapassagem da determinação finita sensível, do sacrifício infinito de uma
determinação finita que precisa continuar a desaparecer, permanecer desaparecendo,
isto a fim de que a negatividade tenha realidade.
No entanto, podemos dizer que não é esta a questão que está em jogo na
definição hegeliana do desejo em sua negatividade. Pois a negatividade do desejo não
vem exatamente da pressão negadora da transcendência, como queria alguém como
Kojève (no fundo, a referência maior de Deleuze em sua leitura de Hegel 210). Por
sinal, este apelo irrestrito à transcendência seria estranho para um autor, como Hegel,
que compreende o saber absoluto como reconciliação com uma dimensão renovada do
empírico. A este respeito, basta lembrar como, ao falar sobre a reconciliação
produzida pelo saber absoluto, Hegel apresenta um julgamento infinito capaz de
produzir a síntese da cisão entre sujeito e objeto. Trata-se da afirmação: “ o ser do eu é
uma coisa (das Sein des Ich ein Ding ist); e precisamente uma coisa sensível e
imediata (ein sinnliches unmittelbares Ding)”. Desta afirmação, segue-se um
comentário: “Este julgamento, tomado assim como soa imediatamente, é carente-de-
espírito, ou melhor, é a própria carência-de-espírito”, pois se compreendemos a coisa
sensível como uma predicação simples do Eu, então o Eu desaparece na empiricidade
da coisa – o predicado põe o sujeito: “mas quanto ao seu conceito, é de fato o mais
rico-de-espírito”211. Pois seu conceito nos leva a uma recompreensão da dimensão do
sensível para além da sua domesticação pelas estruturas identitárias e finitas da
estética transcendental.

207 Idem, 210b


208 LEAR, Jonathan; Eros and Unknowing: the psychoanalytic significance of
Plato's Symposium In: Open minded, Harvard University Press, 1998, p. 163.
209 MORTLEY, Robert ; Désir et différence dans la tradition platonicienne, Paris:
Vrin, 1988, p. 81
210 Como lembrou muito bem Paulo Arantes em ARANTES, Paulo; Um Hegel
errado mas vivo In: Revista Ide, São Paulo, n. 21, 1991
211 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit, p. 209.
Recorrer ao conceito de infinito

Na verdade, para entender o que Hegel tem em vista na sua noção de desejo como
falta, não devemos compreender a falta como privação, como carência ou
simplesmente como transcendência, mas como manifestação da infinitude. Esta
infinitude pode ser ruim, se a satisfação do desejo for vista como consumo reiterado
de objetos que produzem um gozo (Genuss) que é apenas submissão narcísica (ou
“egoísta”, se quisermos usar um termo hegeliano) do outro ao Eu. Mas ela será
infinitude verdadeira quando confrontar-se com objetos liberados de determinações
finitas.
Lembremos inicialmente que, para Hegel, a falta aparece como modo de ser da
consciência em um contexto histórico preciso. Contexto marcado pela
problematização do que serve de fundamento às formas de vida da modernidade.
Hegel compreende a modernidade como o momento histórico no qual o espírito
"perdeu" a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como
substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as várias esferas
sociais de valores. Daí diagnósticos clássicos de época como:

“[Nos tempos modernos] Não somente está perdida para ele [o espírito] sua
vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu
conteúdo. [Como o filho pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando
sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora exige da filosofia não tanto o
saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e
densidade do ser [que tinha perdido]”212.

Décadas depois de Hegel, a sociologia de Durkheim e Max Weber constituirão


quadros convergentes de caracterização da modernidade como era própria a um certo
sentimento subjetivo de indeterminação resultante da perda de horizontes estáveis de
socialização. A autonomização das esferas sociais de valores na vida moderna, assim
como a erosão da autoridade tradicional sedimentada em costumes e hábitos
ritualizados, teria produzido uma perda de referências nos modos de estruturação das
relações a si, uma problematização sem volta da espontaneidade de sujeitos agentes.
A partir de então, o sujeito só pode aparecer como:

Esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade desta noite, uma
riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das
quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que não existem como efetivamente
presentes (...) É esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos
olhos, uma noite que se torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante
de nós213.

No entanto, Hegel não está disposto a se contentar com diagnósticos sócio-


históricos. Ele quer fornecer o fundamento ontológico da situação histórica própria à
modernidade, como se tal perda de horizontes estáveis não fosse apenas o resultado da
contingência de processos históricos, mas fosse a realização de um destino marcado
com a necessidade do que tem dignidade ontológica. Para tanto, Hegel precisa de uma
noção de individualidade como aquilo que é habitado por uma potência de

212 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 24


213 HEGEL, G.W.F.; Jenenser Realphilosophie II, Hamburgo : Feliz Meiner, 1967,
pp. 180-181
indeterminação, como aquilo que não se submete integralmente à determinação
identitária da unidade sintética de um Eu. A teoria do desejo como falta, ou ainda,
como negatividade que impulsiona o agir, teria fornecido a Hegel este fundamento
ontológico procurado. Ou seja, a falta aqui é, na verdade, o modo de descrição de uma
potência de indeterminação e de despersonalização que habita todo sujeito.
Por sua vez, esta potência de indeterminação é um outro nome possível para
aquilo que Hegel compreende por infinitude, já que o infinito é o que demonstra a
instabilidade e a inadequação de toda determinação finita. O que não poderia ser
diferente pois, como vimos na aula passada, para Hegel o infinito não está ligado a
determinações quantitativas. Antes, infinito é aquilo que porta em si mesmo sua
própria negação e que, ao invés de se auto-destruir, conserva-se em uma
determinidade que nada mais é que a figura da instabilidade de toda determinidade.
Daí porque ele podia afirmar, em uma frase chave: “A infinitude, ou essa inquietação
absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que é determinado de
qualquer modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa
determinidade”214.
No entanto, como o sujeito é essencialmente locus de manifestação da
infinitude, podemos dizer que o vocabulário da negatividade do desejo serve para
salientar a natureza de inadequação entre as expectativas de reconhecimento de
sujeitos e as possibilidades disponíveis de determinação social de si. Pois se trata de
afirmar que a positividade da realidade reificada com suas representações finitas
estabeleceu-se de maneira tão forte como “representação natural do pensar” que
apenas um esforço de negação pode romper tal círculo de alienação. Ou seja, o
vocabulário da negatividade nada tem a ver com formas de julgamento resignado da
vida, como se a vida precisasse ser desvalorizada enquanto espaço da finitude, como
quer Lebrun215. Ao contrário, ele é fruto da consciência do descompasso entre modos
de determinação da vida social e as potencialidades da vida que realizou seu destino
como Espírito.

O caráter formador do “puro terror do negativo”

Este é o pano de fundo adequado para a reflexão sobre a confrontação com a


morte no trajeto de formação da consciência-de-si. Notemos, inicialmente, uma
conseqüência maior : se é verdade que Hegel é animado por uma teoria do desejo
desta natureza, então o conflito produzido pelo desejo, conflito que aparece enquanto
motor da DSE, não pode ser a mera colisão entre sistemas particulares de interesses
de duas consciências distintas, como quer comentadores como Terry Pinkard e Jürgen
Habermas216. Conflito através do qual Eu procuro dominar o outro graças à submissão
do seu sistema de valoração e interesse à perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu
procuro submeter o desejo do outro ao meu desejo. Ao contrário, se Hegel pode
afirmar que a formação para a vontade livre e universal passa pela submissão a um
senhor, é porque este senhor não pode simplesmente representar uma outra
determinação particular de interesse.

214 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 116


215 Ver, LEBRUN, Gerard ; L’envers de la dialectique, op. cit., p. 222
216 Ver PINKARD, Terry; Hegel´s phenomenology: The sociality of reason, op. cit.
e HABERMAS, Caminhos da destranscendentalização In: Verdade e Justificação,
op. cit.
Se voltarmos os olhos à DSE, veremos Hegel insistindo que, após a luta por
reconhecimento, a essencialidade do escravo parece estar depositada no senhor. É ele
quem domina o seu fazer consumindo o objeto de seu trabalho. O escravo vê assim
seu fazer como algo estranho. No entanto, Hegel insiste que este estranhamento pode
significar elevação para além da particularidade, já que: “Enquanto o escravo trabalha
para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo da sua própria singularidade, seu
desejo recebe esta amplitude que consiste em não ser apenas o desejo de um este, mas
de conter em si o desejo de um outro”217. Ter seu desejo vinculado ao desejo de um
outro, entretanto, não nos fornece a universalidade do reconhecimento almejado pela
consciência. Para que este vínculo não seja simples submissão, faz-se necessário que
este outro tenha algo da universalidade incondicional do que é essencial, que ele seja
um “senhor absoluto”, cuja internalização me leva a ser reconhecido para além de
todo e qualquer contexto. É tendo este problema em vista que devemos interpretar a
afirmação central:

Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade se conquista e se prova que a


essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela
surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida, mas que nada há para a
consciência que não seja para ela momento evanescente (verschwindendes
Moment); que ela é somente puro ser-para-si. O indivíduo que não arriscou a
vida pode ser bem reconhecido como pessoa (Person), mas não alcançou a
verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente218.

Se a confrontação com a morte é condição para a conquista da liberdade, é porque a


morte é figura privilegiada desta universalidade incondicional e absoluta que, por ser
incondicional e absoluta, manifesta-se como negação de tudo o que é condicionado e
finito. Devemos levar isto em conta quando encontramos Hegel dizendo:

A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da


verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da vontade, o
sentimento do nulidade do egoísmo, o hábito da obediência (Gehorsams) é um
momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste
cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém
livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de
se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
submissão a um senhor219.

Afirmações desta natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está dizendo
que a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade construída a partir da
internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos de práticas de auto-controle.
Não é qualquer submissão a um senhor que produz a liberdade, mas apenas a um
senhor que seja capaz de realizar exigências incondicionais de universalidade. Isto nos
explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes de submeter um povo
produzem, necessariamente, o sentimento de que o trabalho do Espírito é sem medida

217 HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia das ciências filosóficas - vol III, op. cit., § 433
218 HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., pp. 128-129
219 Idem, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
comum com toda e qualquer política finita, com todo cálculo utilitarista baseado em
“meu” sistema de interesses egoístas. Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste
exatamente em ver na crítica hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de
esvaziamento do particular. Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma
individualidade neste “ego”, já que não há nada de individual no interior de um
sistema de interesses construído, na verdade, a partir de identificações e internalização
de princípios de conduta vindos de uma outra consciência determinada. Por isto, a
“dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberação”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar que a
formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo definido como o
que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente. Pois: “ganhar uma
determinação acaba sempre por ser renúncia a uma diferença que me individualizava,
advir um pouco mais meu ser verdade na medida em que sou um pouco menos meu
ego”220. Neste sentido, tremer diante do mestre absoluto seria tomar consciência da
impotência de princípio que representa a singularidade natural. Como se a liberação
hegeliana fosse um passe de mágica no qual o sentimento de fraqueza se transforma
em legitimação da incapacidade de resistir. Assim: “em troca de seus sofrimentos, é o
gozo do universal que se oferece à consciência – belo presente ...” 221. Não estamos
muito longe de Deleuze vendo a dialética hegeliana como “idéia do valor do
sofrimento e da tristeza, valorização das ‘paixões tristes’ como princípio prático que
se manifesta na cisão, no dilaceramento”222.
No entanto, podemos fornecer uma interpretação diferente. Basta estarmos
mais atentos para o sentido que Hegel dá a esta despossessão de si produzida pela
internalização da morte como senhor absoluto. Neste contexto, a morte não é
destruição simples da consciência (e toda confusão neste sentido deve ser fortemente
rechaçada como um equívoco profundo), não é um simples despedaçar-se (zugrunde
gehen), mas é modo de ir ao fundamento (zu Grund gehen). Pois a confrontação com
a morte é experiência fenomenológica que visa exprimir o acesso ao caráter
inicialmente indeterminado do fundamento, que visa exprimir como: “A essência,
enquanto se determina como fundamento, determina-se como o não-determinado
(Nichtbestimmte) e é apenas a superação (Aufheben) de seu ser determinado
(Bestimmtseins) que é seu determinar”223. O que pode ser entendido da seguinte
maneira: a indeterminação do fundamento vem do fato dele servir de substrato
comum entre determinações opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o
fundamento implica a identidade entre a identidade e a diferença (die Einheit der
Identität und des Unterschiedes). Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o
fundamento da experiência, assim como o princípio de ligação e unidade que
determina o modo de articulação entre o fundamento e aquilo que ele funda, então
pensar a verdadeira essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro
(sein Sein in einen Anderen hat) exige a confrontação com um estado de diferenças
não submetidas à forma do Eu.
Vemos assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-si
compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma potencia do
pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive, recompreender o que vem
a ser a diferença. A diferença não será aquilo que determina a distinção entre

220 LEBRUN, Gerard ; L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100


221 idem, p. 211
222 DELEUZE, Gilles ; Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
223 HEGEL, G.W.F.; Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
entidades conceitualmente articuladas, como Deleuze imputa a Hegel. A diferença em
Hegel é esta potência interna da in-diferença que corrói toda determinação. Ela será
esta expressão do ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é
um processo de demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos esta “franja de
indeterminação da qual goza todo indivíduo”224. Não se trata exatamente de um ganho
de determinação e positividade, mas da assunção de um risco vinculado à
confrontação com aquilo que se coloca enquanto puramente indeterminado. Nestas
condições, submeter-se a um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo que parecia
fixo e determinado nada tem a ver com uma a dinâmica psicológica da resignação, do
ressentimento ou da necessidade da repressão.

224 DELEUZE, Gilles ; Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 7
Trabalho como movimento da essência em Marx

Na aula de hoje, daremos início ao segundo módulo do nosso curso, a saber, este
dedicado a aspectos da dialética em Marx. É importante começar salientando a
dimensão de “aspectos” pois não se trata de procurar dar conta da dialética marxista
em três encontros. Diria que se trata de qualificar articulações importantes da
articulação entre Marx e Hegel, isto a fim de mostrar como a visão que afirma existir
rupturas profundas no conceito de dialética utilizado pelos dois deve ser criticada.
Certamente, vocês conhecem, por exemplo, a leitura de Louis Althusser, para quem
entre Marx e Hegel passava uma espécie de corte epistemológico presente no interior
dos próprios textos de Marx. Pois o jovem Marx estaria, no fundo, ainda preso à
temática de uma filosofia do sujeito herdada da filosofia hegeliana e da
fenomenologia da perda da consciência através de seus processos de exteriorização.
Filosofia historicista cuja temática da alienação da falsa consciência seria o exemplo
maior de uma maquinaria humanista. Marx só se tornaria Marx quando ele
abandonasse os problemas centrados na filosofia do sujeito para operar uma “guinada
estruturalista” que nos levaria em direção a O capital. Um abandono que não seria
apenas de temáticas, mas de concepção de dialética. Althusser recusa radicalmente a
ideia exposta pelo próprio Marx: “A mistificação que a dialética sofre nas mãos de
Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo
e consciente, suas formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen).
Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o
cerne racional dentro do invólucro místico”. Para ele, não se trata de “desvirar” a
dialética hegeliana, mas de simplesmente abandoná-la. Como ele dirá: “as estruturas
fundamentais da dialética hegeliana, tais como a negação, a negação da negação, a
identidade dos contrários, a “superação”, a transformação da quantidade em
qualidade, a contradição etc., possuem em Marx uma estrutura diferente desta que
elas possuem em Hegel”225.
A diferença se daria principalmente por Marx ter pretensamente abandonado a
antropologia filosófica de Hegel. Abandonada tal antropologia, as estruturas
fundamentais da dialética não poderiam mais ser compreendidas como o movimento
através do qual a consciência opera, graças à reflexividade de seus conceitos, a
exteriorização de si e a interiorização de um mundo traz as marcas de sua própria
atividade constitutiva. A crítica não poderia mais ser crítica da alienação da
consciência, mas crítica da economia política com sua descrição dos modos de
produção e suas descontinuidades históricas.
No entanto, aqui poderíamos nos perguntar sobre o quanto tal tema de um
“antropologismo” a guiar a dialética hegeliana é, de fato, defensável. Tal tema, da
forma como ele se apresentou no pensamento francês contemporâneo, é tributário do
estruturalismo e da crença de que o sujeito é, de certa forma, uma determinação
completa da estrutura. Neste sentido, toda compreensão que parta da perspectiva dos
sujeitos agentes será necessariamente ideológica e marcada pelo desconhecimento. O
próprio conceito de sujeito, com suas ilusões de agência a partir das representações de
sua consciência, é o conceito ideológico por excelência por impedir a compreensão
225 ALTHUSSER, Louis; Pour Marx, p. 92
das determinações estruturais da ação. Por outro lado, esta perspectiva da agência dos
sujeitos traria em seu bojo a naturalização de um conceito essencialista de homem
com seus regimes de praxis e reflexão. Ao naturalizar um conceito essencialista de
homem que passa pela descontinuidade dos modos de produção conservando seus
atributos essenciais, a dialética hegeliana seria ideologia por excelência.
A meu ver, tal leitura é dificilmente sustentável. Ela precisa abandonar a
discussão sobre alienação em Marx por não saber como lidar com determinações
ontológicas que permanecem no horizonte da crítica da economia política marxista e
de sua crítica do trabalho. A natureza determinante dos modos de produção não
implica que tudo o que opera na transformação de tais modos são contradições
funcionais. Neste sentido, proponho começar a reler Marx a partir de discussões sobre
a centralidade da categoria de trabalho e da alienação no trabalho.
Enquanto categoria que descreve o princípio de atividade capaz de produzir as
transformações no interior do campo da experiência, o trabalho é a expressão
fundamental do que, na filosofia hegeliana, compreendemos como essência. Ele
seguirá um processo de exteriorização e retorno à si que marca os movimentos
próprios às determinações de reflexão. Esta exteriorização não segue, no entanto, as
dinâmicas expressivistas de uma consciência-de-si que se procura fazer-se intuir no
mundo a partir da pressuposição de uma unidade simples originária, como gostaria de
mostrar.

Marx, os animais e os humanos

Comecemos por nos perguntar por que uma certa tradição dialética viu, no
trabalho, algo mais do que a reiteração de processos disciplinares que nos levariam,
necessariamente, a modelos cada vez mais evidentes de reificação social e de
sofrimento psíquico. Por que tal tradição insistiu, para além da estrutura disciplinar da
autonomia, em lembrar que o trabalho deveria também ser compreender como modelo
fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades sociais
intersubjetivamente partilhadas, isto a ponto de elevá-lo (juntamente com o desejo e a
linguagem) a condição de um dos eixos de constituição daquilo que podemos entender
por “forma de vida”? Tal aposta no trabalho como processo emancipatório de
reconhecimento era, de fato, possível e necessária ou não passava da expressão dos
equívocos de filosofias tão fascinadas pelas dinâmicas de transformação que tendiam
a negligenciar como atividades socialmente avalizadas funcionam fundamentalmente
como processos de reiteração de sujeições?
Partamos, para isto, da definição do trabalho como modelo de exteriorização
(Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto. Lembremos, a este respeito, da
famosa comparação de Karl Marx, certamente um dos pensadores modernos que
melhor configurou certa via ainda hegemônica na caracterização do trabalho:

Uma aranha executa operações que se assemelham às do tecelão e uma abelha


envergonha, através da construção de sua colmeia, vários construtores
humanos. Mas o que distingue o pior construtor da melhor abelha é que ele
construiu os favos na cabeça antes de construí-los na cera. No final do
processo de trabalho, vemos um resultado que desde o início estava na
representação do trabalhador, presente como ideal (ideell). Ele não efetua
apenas uma modificação formal no que é natural, mas nele realiza também seu
próprio objetivo, que ele conhece, que determina como uma lei a modalidade
de sua ação e ao qual ele deve subordinar (unterordner) sua vontade226.

Como lembra Habermas, através de afirmações como esta Marx eleva o


trabalho não apenas a uma categoria antropológica fundamental, mas a uma categoria
da teoria do conhecimento, já que a compreensão dos objetos como objetos
trabalhados permite o desvelamento da natureza histórico-social das estruturas
normativas da experiência. Marx partilha com Hegel a noção de que a modalidade de
síntese responsável pela constituição dos objetos da experiência não seria produção de
uma subjetividade transcendental, mas de uma subjetividade empírica às voltas com
os modos de reprodução material da vida227. Tal ampliação da função da categoria de
trabalho é paga, entre outras coisas, com a necessidade de uma distinção ontológica
entre expressão subjetiva e comportamento natural. Habermas (1976, p. 64) sintetiza
bem tal distinção ao afirmar que: “Marx não apreende a natureza sob a categoria de
um outro sujeito, mas apreende o sujeito sob a categoria de uma outra natureza”. Já a
definição de Marx: “toda produção é apropriação (Aneignung) da natureza pelo
indivíduo no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade” 228 é
clara em suas distinções ontológicas. Apropriar-se é relacionar-se com o que não me é
próprio e, por mais que formas sociais definam modalidades historicamente
determinadas de apropriação com suas consequências específicas, há de se insisitir
novamente que a dinâmica da apropriação pressupõe um modo estrutural de pensar a
ação de produção como dispor do que não me é próprio, como absorção do que se
coloca como inicialmente estranho, redução do estranho ao familiar, que já traz
consequências decisivas para a orientação normativa da crítica social.
Marx descreve em vários momentos tal apropriação como um “metabolismo”
(Stoffwechsel)229 através do qual: “a totalidade da natureza é socialmente mediada e,
inversamente, a sociedade é mediada através da natureza pensada como componente
da realidade total”230. Neste metabolismo, as modificações ocorrem a partir da
passagem da potência ao ato, na qual o trabalhador: “desenvolve as potências que na
natureza jazem latentes”231 , convertendo “valores de uso apenas possíveis
(mögliche)” em valores de uso reais (wirkliche). Tal processo compreendido como a
passagem do possível ao real é o que deve ser melhor definido. Como vimos, Marx
parece inicialmente dizer que o trabalho distingue-se de toda outra atividade por ser
exteriorização de uma idealidade, mas há de se definir melhor o que devemos
entender por “ideal” neste contexto. Pois se “ideal” significar simplesmente a
transformação da natureza a partir de uma ação dirigida por uma finalidade
previamente determinada, como o texto de Marx parece inicialmente nos fazer
acreditar, sua conformação a uma forma previamente presente como representação
ideal, então será difícil não perceber nesta atividade algo que dificilmente pode ser
chamado de “processo”. A passagem do possível ao real operada pelo trabalho social
não passaria de mera exteriorização de uma finalidade abstrata.

226 MARX, Karl; Das Kapital I, Berlin: Dietz Verlag, 1983, p. 130
227 Ver, a este respeito, Habermas, 1976, p. 60.
228 MARX, Karl; Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 43
229 Por exemplo: “o processo de trabalho é inicialmente um processo entre o
homem e a natureza, um processo no qual, através de sua própria ação, ele
media, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (MARX, Karl; Das
Kapital I, op.cit., p. 129)
230 SCHMIDT, Alfred; The concept of nature in Marx, Londres: Verso, 2014, p. 79
231 MARX, idem, p. 129
Se este fosse o caso, tal modo de determinação do trabalho nos impediria, em
última instância, de distingui-lo do comportamento natural. Todo organismo biológico
tem a capacidade de se orientar e operar escolhas a partir de uma finalidade que serve
de norma de avaliação. O filósofo da biologia Georges Canguilhem é preciso neste
sentido. Sendo a vida uma “atividade de oposição à inércia e à indiferença”
(CANGUILHEM, 1983, p. 208), toda individualidade biológica diferencia e escolhe a
partir de normas. Toda individualidade biológica age a partir de um “ideal” com forte
potencial normativo, valorativo e, não devemos esquecer, transformador do meio-
ambiente.
Se quisermos dar alguma realidade à dicotomia afirmada por Marx, talvez
devamos voltar a uma importante afirmação presente nos Manuscritos (2004, p. 84):
“O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É
ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua
consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade
(Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente”. A diferença entre a
transformação do meio-ambiente devido ao comportamento animal e ao trabalho
humano está no fato da relação de identidade imediata pressuposta pela animalidade,
isto ao menos segundo Marx, perder-se a partir do momento em que o homem “faz de
sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência”. Pois, desta forma, o
homem, segundo o jovem Marx, poderia produzir mesmo livre das determinações
próprias à necessidade natural232. Sua atividade: “não é uma determinidade com a qual
ele coincide imediatamente”.
Assim, se o trabalho é um modelo de expressão subjetiva, não há como pensá-
lo como passagem simples da interioridade pensada à exterioridade constituída. Ele é
expressão do estranhamento da vontade às formas que se colocam como
“representações naturais”, no sentido que Hegel utiliza tal termo na Fenomenologia
do Espírito233. Isto talvez explique porque Marx seja obrigado a definir a ideia
trabalhada como uma lei que “subordina” a vontade. Quem diz “subordinação” diz
imposição de uma norma a algo que lhe seria naturalmente refratário. A vontade
humana precisa ser subordinada à ideia trabalhada porque ela pode, a todo momento,
subvertê-la, desertá-la. Há uma característica negativa da vontade presente na
capacidade que tenho de flertar com a indeterminação através do que Hegel chamou
um dia de trabalho do negativo. Já a abelha de Marx não precisa subordinar sua
vontade à lei que determina sua ação porque ela não tem outra vontade possível, sua
vontade está completamente adequada à lei, sua potência é imediatamente ato. Por
isto, podemos dizer que a existência mesma do trabalho pressupõe a possibilidade
humana, possibilidade esta que é exclusivamente humana, do não-exercício do que se
coloca como potência. De certa forma, a expressão que se manifesta no interior do
trabalho será sempre marcada por esta potência de não passar imediatamente ao ato
ou por esta potência de alterar a determinidade que me seria imediatamente adequada.
Maneiras de expressar como a atividade humana encontra sua essência no excesso dos
possíveis (que podem aparecer inicialmente como impossíveis) em relação aos limites
das determinidades postas.

232 Daí uma afirmação como: “o animal produz apenas sob o domínio da
necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da
necessidade física, e só produz, primeira e verdadeiramente.em liberdade para
com ela; o animal só reproduz a si mesmo, enquanto homem reproduz toda a
natureza ” (MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad.
modificada])
233 Cf. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito,
Neste sentido, podemos insistir em uma certa matriz hegeliana deste modo de
pensar a dimensão ontológica do trabalho. Como já foi dito, vem de Hegel as
primeiras colocações sobre o trabalho como fonte de reconhecimento social. No
entanto, é interessante lembrar como, em vários de seus textos, o trabalho aparece não
como a simples exteriorização de uma ideia, mas como modo de defesa contra a
angústia. A consciência se angustia diante da possibilidade de não ter objetividade
alguma, de não ter forma alguma que seja reconhecida socialmente. Por isto, ela
trabalha. Na verdade, ela trabalha como quem se defende contra uma possibilidade de
indeterminação que está sempre a lhe assombrar. No entanto, os objetos trabalhados
sempre terão as marcas desta sombra. Como Hegel (1992, p. 132) dirá, a respeito do
trabalho: “a relação negativa para com o objeto torna-se a forma do mesmo e algo
permanente”. Ou seja, a impossibilidade do ser humano encontrar um objeto que lhe
seja natural, algo que seja a expressão natural de sua vontade, ganha a forma de um
objeto trabalhado. Pois faz parte de toda defesa absorver algo do medo contra o qual
ela foi erigida.
Neste sentido, podemos a partir disto tentar complexificar nossa noção de
trabalho alienado. Normalmente, entendemos por trabalho alienado aquela
modalidade de atividade laboral na qual não me reconheço no que produzo, já que as
decisões que direcionam a forma da produção foram tomadas por um outro. Desta
forma, trabalho como um outro, como se estivesse animado pelo desejo de um outro.
Como dirá o jovem Marx (2004, p. 83): “Assim como na religião a auto-atividade da
fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do
indivíduo e sobre ele; isto é como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim
também a atividade do trabalhador não é sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a
perda de si mesmo”. Superar tal perda do que me é próprio seria indissociável da
capacidade de constituir-me como sujeito capaz de apropriar-me da totalidade das
relações produtoras de sentido social com suas mediações, colocando-me assim como
a “essência das forças motrizes”234. Constituição ligada, segundo certa tradição
marxista, a formação da consciência de classe proletária, única capaz de realizar a
apreensão do “caminho do processo de desenvolvimento histórico como
totalidade”235.
Mas podemos também insistir que não é certo que tal modalidade de
apropriação da totalidade possa no levar à superação da alienação. Pois tal
apropriação normalmente determina a totalidade como uma estrutura fechada na qual
todas as relações são necessárias pois previamente determinadas no interior de um
sistema meta-estável que encontra em um conceito de história teleologicamente
orientado seu campo de desdobramento e nos modos de apreensão reflexiva da
consciência seu destino final. Apropriar-se da totalidade aparece aqui como o ato de
reconhecer, na dimensão de tudo o que aparece, a natureza constituinte de uma
subjetividade que abandonou sua crença no encaminhamento transcendental apenas
para encontrar, em operação no interior do trabalho social com suas relações de
interação, a mesma forma de subsunção do diverso da sensibilidade em
representações que animava a atividade teórica.
Melhor seria lembrar como o trabalho alienado é, ao contrário, exatamente
aquele no qual aceitamos um leitura literal da ideia de Marx, segundo a qual: “no final
do processo de trabalho, vemos um resultado que desde o início estava na
representação do trabalhador, presente como ideal”. Pois, neste caso, a imaginação
do trabalhador é apenas a faculdade humana da planificação, do esquematismo prévio,

234 LUKÀCS, Gyorg; História e consciência de classe, op. cit., p. 171


235 Idem, p. 317
um pouco como o sujeito kantiano com seu esquematismo transcendental capaz de
determinar previamente a forma geral do que há a ser representado. Este trabalho já é
o trabalho industrial da fábrica, que só produz objetos que são exemplares
intercambiáveis da ideia. Neste trabalho, a expressão tem uma estrutura especular, já
que o homem encontra, no objeto, apenas o ideal que ele próprio previamente
projetou. Mas não é possível, para um pensamento materialista, aceitar que, no
processo de trabalho, o resultado final já estava determinado no início como
representação. Pois isto implicaria aceitar que a passagem à existência, que a posição,
nada acrescentaria à determinação categorial236; como se da determinação à existência
não houvesse processo. Se assim fosse, nunca poderíamos entender como, no interior
do processo de trabalho, categorias são reconstruídas a partir de negações
determinadas produzidas pelo “metabolismo” da atividade humana com seus objetos.
Não poderíamos compreender como o início, mesmo quando formalmente idêntico, é
semanticamente outro.

Identidades

Se quisermos procurar outra via para encaminhar o problema da superação da


alienação, talvez valha a pena lembrar de uma importante dimensão da crítica
marxista à divisão social do trabalho. No primeiro livro de O Capital, Marx sublinha
como o modo industrial de trabalho no capitalismo havia transformado trabalhadores
em membra disjecta, como se seus corpos tivessem sido marcados pelo caráter
unidimensional do trabalho industrial. “Não só os trabalhos parciais particulares são
separados entre diferentes indivíduos, mas o próprio indivíduo é mutilado,
transformando-se em motor automático de um trabalho parcial, realizando assim a
fábula absurda de Menênio Agripa que representa um homem como simples
fragmento de seu próprio corpo”237. Como já foi dito, há uma individualização pelo
trabalho que se impõe através da funcionalização brutal da personalidade e da
“repressão de um mundo de pulsões e capacidades produtivas”. Pois tal
individualização é integração dos sujeitos a um “corpo social de trabalho” no qual: “a
cooperação dos assalariados é um mero feito do capital que os emprega
simultaneamente. A interconexão de suas funções e sua unidade como corpo
produtivo total reside fora deles, no capital, que os reúne e os mantém unidos” 238.
Contra tal corpo social fantasmático construído a partir da limitação funcional dos
sujeitos, podemos lembrar desta célebre passagem da Ideologia Alemã:

Na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si um círculo


exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões no ramo que
melhor lhe aprouver, a sociedade encarrega de regular a produção universal,
com o que ela torna possível, justamente através disso, que eu possa me
dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa caçar pela parte da manhã,
pescar pela parte da tarde e a noite apascentar o gado, e depois de comer,
criticar, se for o caso conforme meu desejo, sem a necessidade de por isto me
tornar caçador, pescador, pastor ou crítico algum dia239.

236 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que
cem táleres reais não contém mais do que já está presente em cem táleres
possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, op cit.
237 MARX, Karl; Das Kapital I, op. cit., p. 294
238 Idem, O Capital – volume I, op. cit., p. 406
239 MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
Como veremos em outra aula, percebe-se aqui a natureza anti-predicativa do
reconhecimento proposto por Marx. Não me defino como caçador, pescador, pastor ou
crítico, embora possa caçar, pescar ou criticar. Não estou completamente vinculado
nem ao tempo originário da caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de apreensão
reflexiva da crítica, embora possa habitar as temporalidades distintas em uma
simultaneidade temporal de várias camadas. Não limito minha ação nem ao trabalho
manual, nem ao trabalho intelectual. Todas essas negações demonstram como, por não
passar completamente nos predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva
algo da dimensão negativa da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do
corpo social. Eis um ponto importante: a negatividade na relação a representações
naturais da atividade, apresentada nesta necessidade de estabelecer distinções
ontológicas entre expressão subjetiva e comportamento natural, pede também
manifestação no interior da relação entre o sujeito e seus predicados. Pois o problema
não diz respeito apenas a uma configuração histórico-temporal da atividade humana,
mas refere-se também a uma crítica ontológica da identidade, recurso fundamental a
todo pensamento dialético. Pois tal trabalho no comunismo desconheceria a
dominação disciplinar da identidade.
No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos perguntar
sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade comunista e aquele
diagnóstico a respeito, por exemplo, do desenvolvimento do capitalismo nos EUA
presente nos Grundrisse:

A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de


sociedade em que os indivíduos passam (übergehen) com facilidade de um
trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles
contingente e por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de
riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos
em sua particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau
de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade
burguesa – os Estados Unidos240.

A parte a mais moderna forma de existência da sociedade burguesa não ser


exatamente uma “sociedade encarregada de regular a produção universal”, assim
como a parte o primeiro trecho dizer respeito à crítica da divisão do trabalho enquanto
o segundo versa sobre o conceito de trabalho abstrato, a indiferença em relação ao
trabalho determinado parece a mesma tal como descrita na futura sociedade
comunista. A contingência em relação ao tipo determinado de trabalho, a flexibilidade
das atividades concebidas na indiferença da abstração parece, a primeira vista, algo
próximo dos comunistas que caçam, pesca, pastoreiam e fazem crítica literária,
mesmo que ela seja muito mais uma construção ideológica do que uma realidade
efetiva em solo norte-americano. Mas, se for o caso, então será difícil não dizer que a
sociedade comunista apenas realizaria o que as sociedades burguesas mais avançadas
prometem sem, no entanto, serem capazes de cumprir. Como se as promessas da
sociedade burguesa fossem o fundamento normativo da crítica; fundamento que enfím
poderia ser realizado no momento em que a falsa totalidade do “corpo social de
trabalho” fosse abandonada em direção à verdadeira totalidade produzida pela
regulação racional da produção universal.

240 MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 58


Mas insistamos em um ponto: o que está em questão no processo histórico
pensado por Marx não é apenas a superação da divisão social do trabalho, nem a
defesa de uma “regulação social da produção”. Mesmo tal divisão pode mostrar-se
obsoleta para o capitalismo, ao menos em suas sociedades mais avançadas, como
veremos mais a frente; mesmo tal regulação pode ser feita através de fortes
intervenções estatais, como no modelo da social-democracia escandinava em seu
auge. O que está em questão é, também e principalmente, a liberação do trabalho em
relação à produção do valor, em relação à produção de objetos que sejam apenas o
suporte próprio de determinações do valor e em relação à submisão do tempo ao
tempo de produção do valor241. Não somente o vínculo à identidade social produzida
pelo trabalho deve absorver uma certa potência da indeterminação, mas também o
objeto produzido, a ação realizada242.
Neste ponto, podemos compreender melhor a importância de sublinhar que o
elemento decisivo na produção do valor é a submissão do objeto à condição do
próprio. Sua intercambialidade absoluta, resultante de um modo de determinação que
privilegia a instrumentalidade do mensurável, do quantificável e do calculável é a
afirmação maior de que as coisas agora submetem-se por completo à condição do
“próprio”. Elas são a expressão do que os indivíduos podem determinar como sua
propriedade, prontas a serem comparadas e avaliadas com outras propriedades,
prontas para circularem em um circuito de velocidades sem fricções, dominadas na
familiaridade do que conhece o tamanho e o limite, representadas sob a forma
juridicamente determinada do que pode ser descrito no interior de um contrato. Mas o
trabalho livre só pode ser a produção do impróprio. Um impróprio que não é
propriedade comunal, mas circulação do que não tem relações especulares com o
sujeito, por isto o trabalho nunca poderia ser apropriação da natureza, dominação das
coisas pelas pessoas. Ele é expressão do que circula fora da utilidade suposta pela
pessoa. É tendo uma questão desta natureza em mente que podemos compreender
afirmações decisivas de Marx sobre os processos sociais de sujeição como:

241 Lembremos de uma boa síntese feita por Postone: “O objetivo da produção no
capitalismo não são os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da
atividade do trabalho sobre o produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-
valor. Mas, valor é um objetivo puramente quantitativo, não existe diferença
qualitativa entre o valor do trigo e das armas. Valor é puramente quantitativo
porque, como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a objetivação do
trabalho abstrato – do trabalho como meio objetivo de aquisição de bens que não
produziu” (POSTONE, Moishe; idem, p. 210)
242 A respeito deste trecho de Marx, Fausto dirá: “a mobilidade do trabalhador
não realiza o universal que é ao mesmo tempo singular, o universal não é outra
coisa aqui que uma sucessão de singularidades ou de particularidades” (FAUSTO,
Ruy; Marx: logique et politique, Paris: Publisud, 1986, p. 114). De fato, mas
poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinação uma
universalidade que é ao mesmo tempo singular deve ter. Em que condições a
universalidade é posta no campo das singularidades? Insistiria que a
universalidade que se singulariza implica, neste caso, recusa a determinar o
singular como uma determinação completa, sendo que a incompletude de sua
determinação é forma de indicar a integração do indeterminado enquanto seu
momento próprio. Neste sentido, é verdade que tal determinação só é incompleta
para o entendimento, mas seu gênero de posição nada tem a ver com as
determinações já determinadas como possíveis. Tentarei indicar o desdobramento
deste tempo através de certa leitura do que podemos entender por “vida do
gênero” em Marx.
Na relação monetária, no sistema de trocas desenvolvido (e essa aparência
seduz a democracia), são de fato rompidos, dilacerados, os laços de
dependência pessoal, as diferenças de sangue, as diferenças de cultura etc.
(todos os laços pessoais aparecem ao menos como relações pessoais; e os
indivíduos parecem independentes (essa independência que, aliás, não passa
de mera ilusão e, mais justamente, significa apatia – no sentido de
indiferença), livres para colidirem uns com os outros e, nessa liberdade, trocar;
mas assim aparecem apenas para aquele que abstrai das condições, das
condições de existência sob as quais esses indivíduos entram em contato (e
essas, por sua vez, são independentes dos indivíduos e aparecem, apesar de
geradas pela sociedade, como condições naturais, i.e., incontroláveis pelos
indivíduos). A determinidade (Bestimmtheit) que, no primeiro caso, aparece
como uma limitação pessoal do indivíduo por parte do outro, aparece no
segundo caso desenvolvida como uma limitação coisal do indivíduo por
relações dele independentes que repousam sobre si mesmas243.

Ou seja, a ruptura dos laços diretos de sujeição e de dependência entre sujeitos


parece deixá-los livres para estabelecer relações de troca e propriedade. No entanto,
tal “liberdade” não é liberdade alguma porque, agora, os indivíduos são submetidos a
uma determinidade que funciona como condição de possibilidade capaz de definir
como eles devem entrar em contato e estabelecer relações enquanto pessoas capazes
de assumir contratos. A dominação aqui apenas se deslocou para o controle produzido
pelas “condições de existência” que se colocam em posição de determinidade
transcendental incontrolável pelos sujeitos. Mas coloca-las sob o determinação dos
sujeitos passa pelo fim das ilusões de que podemos ainda agir como indivíduos e
reapropriarmos do que era nosso de direito.

Gattungsleben

É neste contexto que uma intuição fundamental do jovem Marx pode ser
recuperada, a saber, esta, tão presente no idealismo alemão, que consiste em pensar a
expressão subjetiva na dimensão do trabalho a partir do paradigma da produção
estética. Como se a produção estética pudesse fornecer o horizonte normativo de toda
e qualquer atividade não alienada. Lembremos, neste sentido, de uma afirmação
como: “O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da espécie
a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer
espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem
também forma, por isso, segundo as leis da beleza”244. Esta caracterização do homem
como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida adequada”, de onde se segue sua
possibilidade de produzir segundo a medida de qualquer espécie, abre a possibilidade
para uma indiferença genérica em relação à determinação própria à toda espécie na
suas relações de transformação do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida
inerente ao próprio objeto. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro,
o objeto pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser
para-um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz à tal condição de ser
para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma, não tem

243 MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 111


244 MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad.
modificada]
imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben) que se
objetifica no objeto trabalhado245.
No entanto, diferente do que encontramos em Aristóteles, o gênero do qual o
homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele não pode
constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a orientação da
praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino. Mas, e há de se
salientar isto com toda força, esta monstruosidade de um gênero que se objetifica sem
ser espécie alguma definida, gênero que imediatamente se determina e que prenuncia
a produção própria aos “indivíduos histórico-universais” de A ideologia alemã, não é
apenas a afirmação de que o homem só age de maneira não alienada apenas quando
age conscientemente como “ser social”, ou seja, reconhecendo que sua essência é seu
“ser social” genérico e historicamente determinado. Se assim fosse, a afirmação da
vida do gênero não seria nada mais que uma apropriação reflexiva da universalidade
situada de minhas condições históricas, assim como da substância comum às relações
intersubjetivas que me constituíram e que se expressa silenciosamente nos objetos que
trabalho. O que nos levaria a uma especularidade muito bem descrita
involuntariamente por Feuerbach ao falar, não por acaso, da especificidade da
Gattungsleben humana:

“A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria de si


mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é apenas quando o
homem namora sua própria forma individual, mas não quando ele admira a
forma humana. Ele deve admirá-la; não pode conceber nenhuma forma mais
bela, mais sublime que a humana. Certamente, todo ser ama a si mesmo, a sua
essência, e deve amá-la”246.

A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao homem olhar-se no espelho e


não ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da forma humana, a
substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e dificilmente não seria atualmente
completada com a pergunta: mas o que dizer se insistíssemos que, ao contrário, o
homem é exatamente este ser que se perde ao olhar-se no espelho, que estranha sua
imagem como quem vê algo prestes a se deformar, que não reconhece sua própria
imagem por não ter uma forma essencial que lhe seja própria? O que dizer se
aceitarmos que a experiência do espelho é confrontação com algo do qual não nos
apropriamos por completo, mas que nos atravessa produzindo o sentimento de uma
profunda impropriedade?

245 O termo vem de Feuerbach que, ao procurar estabelecer distinções entre


humanidade e animalidade, dirá: “De fato é o animal objeto para si mesmo como
indivíduo – por isto ele tem sentimento de si – mas não como gênero – por isto,
falta-lhe a consciência, cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe
também a faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na
vida, lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para
o qual seu próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter por objeto
outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial deles” (FEUERBACH,
Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35)
246 FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido,
devemos assumir a crítica de Zizek, para quem: “o sujeito tem de reconhecer em
sua alienação da substância a separação da substância de si mesmo. Essa
sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o
agente ativo que pôs o que aparece para ele como seu pressuposto substancial”
(ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p. 101).
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que passa
à existência não pode existir como mais uma espécie, não pode se determinar tal
como se determinam espécies particulares, como se disséssemos algo como: “existem
cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois não estamos diante de uma universalidade
por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só podem vir à existência
através da desarticulação do campo de determinações que permite a organização das
diferenças predicáveis responsáveis pela particularização dos existentes. Neste
sentido, estamos diante de uma universalidade por excesso em relação ao espaço de
manifestação de particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade
não deve ser compreendida como determinação normativa capaz de definir, por si só,
o sentido daquilo que ela subsume, mas como a força de descentramento da
identidade autárquica dos particulares. A universalidade é, neste contexto, apenas a
generalização da impossibilidade do particular ser idêntico a si mesmo e a
trasnformação desta impossibilidade em processo de constituição de relações.
Aceitando tal conceito de universalidade, deveremos dizer que o trabalho que
expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido como a fonte inesgotável dos
possíveis que passa à existência, mas sem nunca determinar-se por completo em um
valor particular de uso totalmente funcionalizado. Por isto, ela pode impulsionar os
objetos trabalhados a uma processualidade sempre aberta de sentido sob a forma de
devir contínuo. Processualidade que as obras de arte expressam em sua forma mais
bem acabada.

Gênero e genialidade estética

Tal perspectiva talvez faça justiça de forma mais adequada à dimensão estética
da reflexão marxista sobre o trabalho. De fato, podemos dizer que é como portador
da vida do gênero que o sujeito trabalha segundo “as leis da beleza”. Pois as leis da
beleza não são estas que fundam as formas humanas em uma arché, um pouco como a
afirmação de Feuerbach parece nos levar a acreditar. Esta leitura seria
necessariamente conservadora a respeito das questões próprias à forma estética e
radicalmente defasadas mesmo diante do estado da crítica na estética romântica tardia
à época de Marx. Mais correto seria afirmar que as leis da beleza são estas que se
quebram diante da expressão do gênio, temática fundamental da estética romântica.
Não por acaso, a raiz latina da palavra alemã Gattung é o latim genus e o grego
génos. Genus partilha com genius a raiz gen que indica engendrar, produzir.
Giorgio Agamben tem um pequeno texto sobre o conceito de gênio que pode
auxiliar nas consequências desta estética da produção a animar o jovem Marx e, como
gostaria de defender, pressuposta mesmo no Marx de maturidade. Agamben lembra
que os latinos chamavam Genius ao deus ao qual todo homem é confiado sob tutela
na hora do nascimento. Resultado da afinidade etimológica entre gênio e gerar. Por
isto, Genius era, de uma certa forma, a divinização da pessoa, o princípio que rege e
exprime toda sua existência. No entanto, Agamben faz questão de insistir a respeito de
um ponto de grande importância para nós:

Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais impessoal
em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede. “Genius” é a
nossa vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu origem. Se ele
parece identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois, como algo
mais do que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e
menos do que nós mesmos. Compreender a concepção de homem implícita em
Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência
individual, mas que, desde o nascimento até a morte, ele convive com um
elemento impessoal e pré-individual247.

Ou seja, o que funda o gênio não é a expressão da singularidade irredutível da


pessoa, mas é o que estará necessariamente ligado a maneira singular de lidar com a
impropriedade de um elemento impessoal e pré-individual que habita todo e qualquer
sujeito (o que não deixa de ressoar o fato de genius ter ligações também com genus,
com este gênero impotente a se determinar como espécie do qual fala Marx). Assim, a
expressão subjetiva só poder aparecer lá onde o artista saberá quebrar a regularidade
da forma, fazendo circular o que força a linguagem em direção à não-comunicação.
Sua genialidade estará ligada à capacidade de quebrar a regularidade sem
desestruturar a forma por completo. Quebras que darão à forma sua tensão interna,
que lembrarão à forma como ela estará sempre assombrada por algo de informe que
parece insistir e dever encontrar lugar248.
Insistir na proximidade entre gênero e gênio, ao menos neste contexto, tem o
mérito de permitir a posição de uma universalidade que se realiza na ação sem ser a
expressão da partilha positiva de atributos gerais, como se estivéssemos a falar da
condição de atribuição de elementos múltiplos a um mesmo conjunto. A vida do
gênero é o advento de uma universalidade não-substancial, fundada na
indeterminação que faz de toda essência uma atividade em reinscrição contínua de
seus acontecimentos, e não um ser. Neste sentido, a expressão laboral de uma vida
que é vida do gênero, Gattungsleben, só poderia se dar como problematização do
objeto trabalhado enquanto propriedade especular das determinações formais da
consciência, enquanto aquilo do qual a consciência se apropria por completo no
interior de um plano construtivo. A vida que se expressa como vida do gênero é o que
nos libera das amarras das formas de determinação atual da consciência, de seus
modos de apropriação, sem nos levar a uma universalidade que é apenas a figura da
individualidade universalizada. Pois há de se aceitar a noção de que: “o comum não é
característica do próprio, mas do impróprio ou, mais drasticamente, do outro; de um
esvaziamento – parcial ou integral – da propriedade em seu negativo; de uma
desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário, forçando-o a sair de si
mesmo”249. Por isto, a vida que se expressa como vida do gênero é o que há de
impróprio em nós e o que permite ao trabalho aparecer como expressão do
estranhamento enquanto afeto de relação do sujeito a si.
Gostaria de terminar a aula de hoje insistindo neste ponto. Para Marx, a
dominação no trabalho não está ligada apenas à impossibilidade dos produtores
imediatos disporem de sua própria produção e dos produtos por eles gerados. Não se
trata apenas de uma questão de apropriação e dominação consciente, através da
“cooperação histórico-universal dos indivíduos”; apropriação destes: “poderes que,
nascidos da ação de alguns homens sobre os outros, até agora se impunham sobre
eles, e os dominavam na condição de potências absolutamente estranhas” 250. Pois, se

247 AGAMBEN, Giorgio; Profanacoes, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 16


248 A história da sonata romântica é a problematização cada vez maior de seu
desenvolvimento é o melhor exemplo desta forma que flerta a todo momento
com sua própria informidade. Para uma análise do desenvolvimento da forma
sonata, ver ROSEN, Charles; Sonata forms, Nova York: W.W. Norton and Company,
1988.
249 ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
250 MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.
61
não nos perguntarmos sobre a extensão real de tal domínio, correremos o risco de
deixar dois problemas intocados, a saber, o fato da produção do valor, como forma de
riqueza e de determinação de objetos, permanecer no centro das estruturas de
dominação abstrata251 e, principalmente, o fato da relação sujeito/objeto continuar a
ser pensada sob a forma do próprio (como expressão da consciência, seja ela falsa ou
histórico-universal) e da propriedade (seja ela individual ou comunal, injusta ou
justamente distribuída). O problema relativo à reflexão do trabalho acaba por definir-
se como um problema de “redistribuição de propriedade”, redistribuição do que se
dispõe diante de mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo, sua
verdadeira essência. Neste sentido, é difícil não aceitar que: “o sujeito histórico seria
nesse caso uma versão coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e constituindo o
mundo por meio do ‘trabalho’”252. Por isto, ao menos dentro de tal perspectiva, não
faria sentido falar do trabalho como categoria de contraposição ao capitalismo, já que
ele estaria organicamente vinculado às estruturas disciplinares de formação da
natureza utilitária das relações próprias à individualidade liberal e seus direitos de
propriedade, expressando apenas amplos processos de reificação.
As discussões a respeito do trabalho e sua alienação raramente estiveram
dissociadas da estrutura de determinação da relação sujeito/objeto sob a forma da
propriedade. Mesmo quando elas estiveram ligadas às exigências de apropriação da
produção e seus produtos pelos produtores imediatos, ela se limitava a uma discussão
sobre os destinos da propriedade253. Para além da inegável importância política do
problema da espoliação, há uma discussão sobre a estrutura dos processos de
reconhecimento no interior do trabalho que se faz urgente. Normalmente, pensamos o
trabalho como a produção do que me é próprio, do que é a confirmação especular de
minhas próprias determinações, mesmo que tal próprio não seja o indivíduo isolado,
mas o “ser social”, a “consciência de classe” 254. Neste sentido, passar do indivíduo ao
ser social, à consciência de classe não implica, necessariamente, uma mudança
ontológica se a crítica ao trabalho na sociedade capitalista limitar-se à critica à
destinação da propriedade ou sua forma de manifestação. Pois sendo propriedade
privada ou coletiva, cooperação de indivíduos livres ou sujeição de trabalhadores
assalariados, não se muda o fator fundamental: minha atividade deve produzir o que
me confirma no interior da esfera do próprio. Ela me assegura no espaço do familiar.
Assim, proletário ou capitalista, são os afetos do sujeito burguês e suas exigências de

251 Cf. POSTONE, idem, p. 151


252 Idem, p. 99
253 No fundo, vale neste caso a afirmação precisa de Esposito: “Que se deva
apropriar-se do nosso comum (através do comunismo e do comunitarismo) ou
comunicar o nosso próprio (através da ética comunicativa) o resultado não muda:
a comunidade continua duplamente vinculada à semântica do próprio”
(ESPOSITO, Roberto; Communitas: origine e destino della comunitá, Turim:
Einaudi, 1998, p. IX)
254 De nada adianta afirmar, por exemplo: “que a consciência de classe não é a
consciência psicológica de cada proletário ou a consciência psicológica de massa
no seu conjunto, mas o sentido, que se tornou consciente, da situação histórica
de classe” (LUKÀCS, Gyorg; História e consciência de classe, op. cit., p. 179). A
pergunta correta é: qual a distinçào formal entre a consciência do sentido na
consciência de classe e na consciência psicológica? O que é o “sentido” nestes
dois casos, a não ser a apropriação reflexiva do regime de causas no interior de
uma totalidade de relações representáveis, totalidade no interior da qual a
representação determina a forma geral do que há a ser apreendido? Não seria
prova de ingenuidade dialética deixar de começar por se questionar sobre os
limites da experiências impostos pela forma da representação?
identidade que continuam a nos guiar e a guiar, inclusive, os móbiles da crítica 255.
Como o burguês que dispõe, no interior de sua home, os objetos que contam seus
feitos pessoais, suas pequenas idiossincrasias, viagens exóticas e lembranças, a
consciência que trabalha parece querer transformar a natureza à sua volta em uma
grande home decorada por objetos que são a expressão de sua própria história. Ela
quer o afeto da segurança do reencontro. Pois a propriedade é, no fundo, um afeto;
um afeto de segurança e amparo. Assim, quando o trabalho aliena-se de seu trabalho,
submetendo-o à dominação de uma força estranha, a crítica insistirá que tal
estranhamento precisaria desaparecer por completo. Nada deve ser estranho ao
homem que se reencontra a si mesmo no interior do trabalho. Como dizia o liberal
Locke, que parece ter neste debate a palavra final, aquilo no qual trabalho é meu, é-
me próprio.
Melhor seria, no entanto, compreender como o trabalho é a produção do
impróprio, como há um estranhamento que não é simplesmente alienação, mas
abertura ao que não se dispõe diante de mim como aquilo que se submete a meu
tempo, meu espaço, minha forma, minhas relações de causalidade. Eliminar toda
forma de estranhamento, ou compreender todo estranhamento como alienação a ser
superada, é transformar o trabalho em forma maior de domínio de um mundo no qual
tudo se transforma à semelhança da consciência. Por mais paradoxal que isto possa
parecer, superar o trabalho alienado é indissociável da capacidade de permitir que o
estranhamento circule como afeto do mundo do trabalho. Estranhamento não como
Entfremdung (uma péssima escolha de tradução, dessas que é difícil perdoar), mas
como unheimlichkeit. Há uma espoliação no mundo do trabalho que não é apenas a
espoliação econômica do mais-valor, mas é espoliação psíquica do afeto de
estranhamento. O mesmo afeto que define a possibilidade de relação do sujeito a si
para além das ilusões de transparência reconquistada pela consciência.

255 Daí, por exemplo, este horizonte de transparência absoluta que opera no
recurso à crítica do desvelamento da totalidade em Lukàcs. Lembremos, neste
sentido, do peso determinista de afirmações como: “As se relacionar a consciência
com a totalidade da sociedade, torna-se possível reconhecer os pensamentos e os
sentimentos que os homens teriam tido numa determinada situação de sua vida,
se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente esse situação e os
interesses dela decorrentes, tento em relação à ação imediata, quanto em relação
à estrutura de toda a sociedade conforme esses interesses” (LUKÀCS, Gyorg;
História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 141)
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 9
Proletário como sujeito político em Marx

Na aula de hoje, daremos sequencia a nossa análise sobre aspectos da dialética


marxista. Na aula passada, começamos por uma discussão a respeito da estrutura da
categoria marxista de trabalho. Procurei sugerir uma interpretação no interior da qual
as dinâmicas de exteriorização e alienação referentes à determinações de reflexão na
doutrina hegeliana da essência fornecem o quadro normativo para a reconstrução da
categoria de trabalho. Neste sentido, fiz apelo a temáticas próprias ao jovem Marx
(como a vida do gênero e o topos de uma certa “estética da produção” a animar a
crítica marxista do trabalho alienado) para construir uma forma de produzir a
passagem entre a negatividade hegeliana e a dialética marxista.
Na aula de hoje, procurarei desdobrar tal perspectiva através de uma discussão
sobre o conceito marxista de sujeito. No entanto, há alguma ressalvas a serem feitas
quando falamos de algo que deva ser entendido como “conceito marxista de sujeito”.
Não há em Marx algo como um desenvolvimento sistemático de uma teoria do
sujeito, mas há uma reflexão ampla e consequente sobre a emergência do sujeito no
interior da dimensão prática. Todos vocês conhecem a famosa frase de Marx: “Os
filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa agora transformá-lo”.
Podemos dizer que tal transformação se dá a partir do momento em que a filosofia é
capaz de enunciar a emergência de novas configurações de sujeitos políticos. Diria
que esta é a principal tarefa que Marx se colocou: fornecer uma teoria da emergência
do sujeito no interior da situação presente. A este sujeito emergente, Marx dará um
nome: proletariado. Como gostaria de insistir, proletário não designa apenas uma
classe social de trabalhadores assalariados desprovidos de propriedade. Proletário, em
Marx, designa ao mesmo tempo uma condição própria a toda emergência de sujeitos
políticos.
Notemos, neste ponto, uma inovação importante de Marx. Em Hegel,
encontramos a descrição de processos de emergências do sujeito. Tais processos estão
configurados através, por exemplo, de figuras da consciência, como a consciência
infeliz, o senhor e o escravo, o mal e seu perdão, entre tantas outras. Tais figuras não
descrevem apenas situações históricas precisas, mas são a dramatização de uma
multiplicidade de processos que, mesmo temporalmente dispersos, compõem um
simultâneidade sobredeterminada. O que a “consciência infeliz” realmente
representa? A moralidade kantiana, a experiência religiosa pré-reforma protestante, a
consciência cognitiva diante do desvelamento da parcialidade relativista de seus
modos de apreensão ou a sobredeterminação de tais processos temporalmente
dispersos em um pressão de transformação? E a dialética do senhor e do escravo?
Uma antropogênese das relações sociais, a relação entre Napoleão e Toussaint
L’Ouverture, a cisão entre consciência apareceptiva e consciência conceitual, a matriz
elementar de alienação do desejo ou a sobredeterminação de todos esses processos?
Por serem sobredeterminadas, tais figuras descrevem retornos continuamente
possíveis, formas do Espírito que passaram mas que ele guardam como latência.
No entanto, Marx procura algo diferente, ou seja, ele procura pensar uma
emergência em processo de efetivação, pensar a emergência do sujeito em seu
momento presente. Uma emergência que é expressão da urgência de uma nova época
que precisa inicialmente ser nomeada para posteriormente tornar-se possível. Por ser
um sujeito em emergência, o proletariado terá uma realidade espectral. Ele será um
fantasma a assombrar a Europa, como uma virtualidade cuja realização é, ao mesmo
tempo, a passagem a uma forma de vida outra.

Genealogia do proletariado

Para compreender melhor este ponto, há de se insistir que uma situação define a
emergência do proletariado, a saber, sua despossessão. De fato, conforme definido da
Constituição Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe
composta por aqueles caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade
alguma ou por não terem propriedades suficientes para serem contado como cidadão
com direito a voto e obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de
procriar e ter filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à
condição de reprodutor da população, os proletários representam o que não se conta.
Daí uma colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa
“pessoa prolífica” – pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem
nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” 256. Até o
final do século XVIII, proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como
sinônimo de “nômade”, de sem lugar.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade
básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos
de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não
são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de
sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da
pobreza”257. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou,
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil
mais ou menos oculta na sociedade existente” 258. Daí porque Marx falará, a respeito
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”259. Pois trata-se de levar às últimas consequências o fato de que: “o
proletariado romano viva à custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna
vive à custa do proletariado”260.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
256 RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN,
John; The identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
257 STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84
258 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo,
p. 50
259 Idem, p. 66
260 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; O 18 do brumário, op. cit., p. 19
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:

A revolução comunista se dirige contra o tipo anterior de atividade, elimina o


trabalho e suspende a dominação de todas as classes, ao acabar com as
próprias classes já que essa revolução é levada a cabo pela classe a qual a
sociedade não considera como tal, não reconhece como classe e que expressa,
de per se, a dissolução de todas as classes, nacionalidades etc. dentro da
sociedade atual261.

Teremos de entender melhor o que significa dizer que o proletariado expressa


a dissolução de todas as classes, a dissolução do que constitui classes. Inicialmente,
lembremos como tal guerra civil entre proletários e burguesia que leva à revolução é
fruto de uma contradição cujo motor é a própria burguesia. Marx não cansará de
afirmar que a burguesia é uma classe revolucionária: “A burguesia não pode existir
sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as
relações de produção e, com isso, todas as relações sociais” 262. É ela que mostrará
como tudo o que é solido se desmancha no ar. No entanto, a burguesia é uma espécie
de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode
controlar os poderes infernais que invocou”263, ela “produz seus próprios coveiros”264.
Ou seja, sua ação é contraditória no sentido de ter por efeito necessário a destruição
do próprio princípio que a gere. Contradição porque, no processo de auto-realização
de si, a burguesia produz uma figura que lhe será oposta e que lhe destruirá. Assim, a
burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação
que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da
própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre
sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.
Tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A burguesia
produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem grande
parte das forças produtivas já criadas: “A sociedade possui civilização em excesso,
meios de subsistência em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso”. Um
excesso que: “lança na desordem a sociedade inteira e ameaça a existência da
propriedade burguesa”. Pois tal excesso de produção, de comércio, de civilização leva
a uma desvalorização tendencial da produção que só pode ser superada através ou da
destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas ou pela conquista de
novos mercados, pela exploração mais intensa dos antigos. Ela leva uma estrutura
monopolista que só pode significar a abolição da propriedade privada “para nove
décimos da sociedade”. Note-se um ponto importante. Por ser impulsionada pela
produção do excesso, a burguesia é produtora necessária de desordem, ela nunca
consegue ser adequada a seu próprio conceito.

261 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98


262 Idem, Manifesto Comunista, p. 43
263 Idem, p. 45
264 Idem, p. 51
No entanto, tal desordem produzida pela burguesia e sua escalada global não é
apenas o anúncio da destruição. Ela é a produção involuntária de novas relações que
tem em seu germe a forma de outro mundo:

Apenas esse desenvolvimento universal das forças de produção traz consigo


um intercâmbio universal dos homens em virtude do qual, por um lado, o
fenômeno da massa “despossuída” se produz simultaneamente em todos os
povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das
transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos
histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais265.

A desordem produz um fenômeno universal de despossessão e de intercâmbio. Mas


tal despossessão universal não é apenas um fenômeno negativo, pois ele produz novas
formas de interdependência e de simultaneidade. A burguesia abre o espaço para o
advento de indivíduos histórico-universais caracterizados pela despossessão comum e
pela simultaneidade de tempos até então completamente dispersos. Ela produz as
condições para o advento de uma universalidade concreta que suspenderá e superará o
estado de coisas atual. É assim que ela produz seus próprios coveiros.

A indeterminação social do proletariado

A fim de melhor compreender este ponto, lembremos como, segundo Marx, a


revolução só pode ser feita pela classe dos despossuídos de predicado e
profundamente despossuídos de identidade. Classe formada por: “indivíduos
histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais” 266. Para
que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se necessário uma certa experiência
de negatividade que, desde Hegel, é condição para a fundamentação da verdadeira
universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre através da despossessão
completa de si descrita por Marx em termos como:

O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua relação com


mulher e crianças não tem mais nada a ver com as relações da família
burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital,
tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha,
retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele
preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses267.

Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema,


mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos
não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de
permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e
uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No
entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como: “essa massa indefinida,
desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la

265 Idem, A ideologia alemã, p. 58


266 MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
267 MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-
bourprol.htm
bohème”268 e que Marx define como “lumpemproletariado”269. Vale a pena discutir
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin,
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força
revolucionária em Marx.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:

Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa,


rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por
vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das
galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni, batedores de carteira,
prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos de bordel, carregadores,
literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros,
mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de
um lado para outro, que os franceses denominam la bohème270.

Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador
que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do
brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”. Aquele
que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história mesma repetida como
farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação social. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
268 MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p.
91
269 Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the
lumpenproletariat and the proletarian unamable”; Economy and Society Volume
31 Number 3 August 2002: 434–460
270 MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social. O lumpemproletariado representa
uma negatividade que não produz processo histórico algum.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços a modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida, o que Marx deixa claro quando afirma esperar:

“um intercâmbio universal dos homens [há de se insistir no peso de uma


formulação desta natureza] em virtude do qual, por um lado, o fenômeno da
massa “despossuida” se produz simultaneamente em todos os povos
(concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das
transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos
histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos
locais”271.

Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se


confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida
desrespeitadas claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a
afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados que,
como diz a Ideologia alemã, poderão se satisfazer ao pescar de dia, pastorear à tarde e
fazer crítica à noite, sem (e este é o ponto principal) ser pescador, pastor ou crítico, ou
seja, sem permitir que o sujeito se determine inteiramente em seus predicados 272. Isto
significa que a atividade de pescar, pastorear e criticar não pode ser, ao mesmo tempo,
identificação do sujeito.
Como em Hegel, a posição do sujeito, sua exteriorização, mostra como há algo
de radicalmente anti-predicativo a animar o movimento da essência. Como dirá Alain
Badiou: “Marx já sublinhava que a singularidade universal do proletariado é não
portar nenhum predicado, nada ter, e especialmente não ter, em sentido forte,
nenhuma ‘pátria’. Essa concepção antipredicativa, negativa e universal do homem
novo atravessa o século”273. O que não poderia ser diferente se pensarmos o
proletariado como essa classe: “que expressa, de per si, a dissolução de todas as
classes dentro da sociedade atual”274. A classe do que dissolve todas as classes por
representar: “a perda total da humanidade”275, o que não encontra mais figura na
imagem atual do homem. Neste sentido, podemos dizer que, tal como na teoria
hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificaria tal assimilação por ver, em Hegel,
uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua
alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do
271 MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 58
272 MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
273 BADIOU, Alain; O século, Aparecida: Ideias e letras, 2007, p. 108
274 MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
275 MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo:
Boitempo, 2005, p. 156
fundamento e conservar algo desta indeterminação276. Seu papel de redenção
(Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de
dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito
político é o aparecimento de um: “sujeito como vazio”277 que não é, em absoluto,
privado de determinações práticas. Trata-se de uma ideia presente também em Jacques
Rancière, para quem: “os proletários não são nem os trabalhadores manuais nem as
classes trabalhadoras. Eles são a classe dos não-contados, que só existe na própria
declaração através da qual eles se contam a si mesmos como os que não são
contados”278. Essa manifestação de um vazio em relação às determinações identitárias
atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si só é possível à condição de
uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar identidades imediatas entre
sujeito e seus predicados.

Luta de classes como luta por reconhecimento?

Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
perspectiva da integralidade de suas personalidades. Pois é assim que Axel Honeeth
define o que Marx compreenderia por “luta de classes”. Na verdade, Honneth serve-
se, entre outros, dos estudos de historiadores como E.P. Thompson e Barrington
Moore a fim de afirmar que a estrutura motivacional das lutas da classe operária
baseou-se, principalmente: “na experiência da violação de exigências localmente
transmitidas de honra”279, já que, mais importante do que demandas materiais teria
sido o sentimento de desrespeito em relação a formas de vida que clamam por
reconhecimento. Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth pode
afirmar que, em Marx:

a luta de classes não significa, primeiramente, um afrontamento estratégico


visando a aquisição de bens ou de instrumentos de poder. Ela constitui um
conflito moral cuja questão é a ‘emancipação’ do trabalho, condição essencial
de que depende, ao mesmo tempo, a estima simétrica entre sujeitos e a
consciência individual de si280.

Ao insistir na centralidade da experiência moral do sentimento de


“desrespeito” como motor das lutas políticas, elevando-o a condição de base
motivacional para todo e qualquer conflito, Honneth pode inscrever problemas de
redistribuição no interior do quadro geral de demandas morais. Assim, sendo a
vulnerabilidade social ligada a pauperização compreendida, principalmente, como
expressão material da impossibilidade da realização de exigências morais de respeito,
abre-se as portas para afirmar que: “a distinção entre empobrecimento econômico e

276 Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu
SAFATLE, Vladimir; Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do
reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes, 2012.
277 BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie
philosophique, Paris: PUF, 2011, p. 260.
278 RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et philosophie, Paris: Galilée,
1995, p. 63
279 Idem, p. 131.
280 HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik sozialer
Konflikte, Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 233
degradação cultural é fenomenologicamente secundária”281, já que conflitos por
redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e
qualquer experiência de desrespeito social. Mas, ao reduzir a integralidade das lutas
sociais às demandas pela afirmação das condições para a formação da identidade
pessoal, sua perspectiva anula por completo uma dimensão fundamental para a
compreensão da luta de classe, ao menos para Marx, a saber, a força de des-identidade
própria ao conceito marxista de proletariado.
Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do Manifesto
Comunista:

Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão


abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, o
modo de apropriação existente até hoje. Os proletários nada tem de seu a
salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da
propriedade privada até aqui existentes282.

Percebamos o caráter paradoxal deste trecho. Os proletários só podem


apoderar-se das forças produtivas abolindo todo modo de apropriação até hoje
existente. O modo de apropriação dos proletários é um modo que não existe até o
momento, impensável até agora pois não é simples passagem da propriedade privada
à propriedade coletiva. Ele é apropriação de quem não tem nada de seu a
salvaguardar, de quem não tem nem terá nada que lhe seja próprio. Tal apropriação
não é apenas a destruição da propriedade, mas também a destruição do próprio. Neste
sentido, podemos afirmar que a abolição da propriedade privada deve acompanhar
necessariamente a abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da
personalidade como categoria identitária. Por esta razão, a luta de classes em Marx
não pode ser compreendida como mera expressão de formas de luta contra a injustiça
econômica, já que ela é também modelo de crítica à tentativa de transformar a
individualidade em horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento
social. O que não poderia ser diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da
tradição dialética, “pessoa” é uma categoria derivada historicamente do direito
romano de propriedade (dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de
sua origem, era vista já por filósofos como Hegel como “expressão de desprezo” 283
devido a sua natureza meramente abstrata e formal advinda da absolutização das
relações de propriedade. Lembremos a este respeito da canônica definição de Locke:
“Though the Earth and all inferior Creatures be common to all Men, yet every Man
has a Property in his own Person. This no Body has any Right to but himself”.
(LOCKE, John; Two treatises of government, Cambridge University Press, 2005, p.
287). Tal articulação entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma
larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a “self-
ownership” como atributo fundamental da pessoa284.
Encontramos claramente em Marx esta crítica já presente em Hegel. Por isto,
Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela Declaração
dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em larga medida na
absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como:
281 Idem, p. 171
282 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
283 HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis,
1992, p. 33
284 A este respeito, ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and
equality, Cambridge University Press, 1995
“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não
prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre
dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do
homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (…) A aplicação
prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à
propriedade privada”285.

A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de indivíduo
que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo poste da
cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que, através
da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar.
Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo
sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade.
Que esta força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado tenha ganhado
evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière, isto
demonstra como algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de sujeito
alcançou a política através de ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal
descentramento tem sua matriz na noção de “negatividade” própria ao sujeito
hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de
sujeito acaba por voltar a cena através da influência surda em operação nos textos de
ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência, a saber, Louis Althusser.
Por esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a
categoria de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e
limitadora que define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma
espécie de anti-povo, isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a
lembrar a provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação
constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada.
Esta é uma maneira de aceitar proposições como:

A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmo a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum286

Neste sentido, a felicidade do conceito forjado por Marx residia em sua


capacidade de sobrepor lógica política e descrição sociológica, permitindo a criação
de uma relação profunda entre trabalhadores realmente existentes (que constituíam
uma importante maioria social) e proletários287. No entanto, sustentar tal relação não é

285 MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
286 RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée,
1995, p. 34
287 Como nos lembra LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit., p. 308
condição necessária para que o conceito marxista de “proletariado” continue a mostrar
sua operatividade. Na situação histórica atual de reconfiguração da sociedade do
trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços outros para a
manifestação de exigências próprias a uma certa ontologia do sujeito pressuposta pela
construção marxista.
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 9
A revolução como forma do tempo

Na aula de hoje, terminaremos nosso módulo dedicado a discussão sobre aspectos da


dialética marxista através de uma concepção sobre o conceito de tempo em Marx. No
entanto, sabemos como, em Marx, não há reflexão sobre a temporalidade que não seja
uma reflexão sobre a historicidade pensada enquanto temporalidade em revolução. O
conceito de revolução em Marx é seu mais importante dispositivo para a análise do
tempo histórico, juntamente com a noção de modos de produção própria ao
materialismo histórico.
Este conceito de revolução se vincula a três fatores decisivos, a saber: uma
concepção de tempo histórico, uma concepção de sujeito político e uma concepção de
processualidade dialética. Tentemos analisar esses três fatores a fim de melhor
compreender a maneira com que a temática da revolução se introduzir de forma
fundamental na filosofia de Marx.

Uma concepção de tempo histórico

É de Reinhart Koselleck a ideia de que até o final do século XVI, a história do


ocidente é uma história: “das expectativas, ou melhor dizendo, de uma contínua
expectativa do final dos tempos; por outro lado, é também a história dos repetidos
adiamentos desse mesmo fim do mundo”288. Koselleck alude à perspectiva milenarista
da abreviação do tempo como sinal da vontade divina de permitir o Juízo final, tão
presente nos reformadores protestantes. Ela produz uma limitação do horizonte da
história, pois projeta para o futuro próximo a suspensão final do tempo.
Neste sentido, uma das maiores produções do século XVIII foi uma certa
aceleração da história, não mais em direção a sua suspensão, mas em direção a sua
realização como abertura de possíveis até então impossíveis. A experiência de um
tempo radicalmente novo ligado à Revolução pressupõe a possibilidade da ordem
político poder ser profundamente reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na
ordem política não implica mais agir a partir do reconhecimento de exemplos vindos
do passado, mas implica o conhecimento de causas que determinam o presente como
depositário da latência do que ainda não se realizou. Haveria um processo em marcha
que empurra o tempo para frente em direção a uma realização sem referência com o
que até agora foi feito. Haveria um projeto que parece indicar a possibilidade de
encarnar na ordem política o que a filosofia iluminista tinha tematizado através da
noção de “progresso”. O tempo entra assim em regime de progressão e é dela que, a
partir de agora, irá tratar a historia. Por isto, a história não será mais o espaço de uma
reprodução do passado no presente, mas de uma construção que pode inicialmente
parecer começar no passado em direção ao presente.
Notemos simplesmente que será a partir deste momento que poderemos falar
de “a história” como autônoma e autoativa, e não apenas “história de ...”. Esta
autonomia expõe que a história não será mais apenas a narrativa de ações de sujeitos
(como a história de César) ou de objetos determinados (como a história do Brasil). Ela
288 KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado, p. 24
será um “metaconceito”289 que descreve o processo de temporalização da experiência,
com causas e consequências próprias ao desdobramento temporal, com uma
velocidade própria. A história como discurso com aspirações científicas pode se
constituir, assim pode aparecer um “tempo especificamente histórico”290.
Mas esta “história” é profundamente assombrada pela perspectiva de
revoluções, o que pode provocar riscos como: “o tempo que assim se acelera a si
mesmo rouba ao presente a possibilidade de se experimentar como presente,
perdendo-se em um futuro no qual o presente, tornado impossível de se vivenciar, tem
que ser recuperado por meio da filosofia da história” 291. Esta filosofia da história pode
transformar a experiência revolucionária em horizonte teleológico do político. Nesta
perspectiva, por trás da aparência de abertura ao acontecimento sustentada pela
esperança na revolução e sua força de projeção temporalizada, pulsa uma fuga
contínua em direção à suspensão do tempo, uma sustentação contínua de expectativas
feitas apenas para fornecerem um horizonte de transcendência negativa que não pode
se encarnar. Pois, aqui, revolução é algo que se espera. Mas a espera da revolução tem
a característica de ser expressão maior de um tempo histórico pressionado pela
expectativa e animado pelas interversões incessantes entre esperança e medo. Neste
sentido, não foram poucos que lembraram como, no interior da experiência moderna,
a revolução adquire: “um sentido transcendental, tornando-se um princípio regulador
tanto para o conhecimento quanto para a ação de todos os homens envolvidos na
revolução”292. Isto quer dizer: ela se transforma em condição de possibilidade para a
produção de sentido do tempo histórico em geral, sendo apenas isto, a saber, uma
condição categorial de possibilidade para a produção de sentido e, consequentemente
da experiência histórica, por descrever a forma geral do tempo em movimento de
aceleração e repetição. Mas por ser forma geral, ela não poderá em momento algum
ser encarnação de um tempo concreto. É esta impossibilidade de encarnação que lhe
dá o caráter de uma transcendência negativa.
Um conceito transcendental é expressão da determinação categorial de
predicados em geral. Ele não define previamente quais objetos lhe convém, qual a
extensão de seu uso, mas definirá quais as condições para que algo seja um objeto,
que predicados algo pode portar. Nesta definição, decide-se previamente a extensão
da forma do que há a ser experimentado, pois a determinação categorial
transcendental ignorará acontecimentos que exigiriam mudanças na estrutura geral da
predicação, que imporiam uma gênese de novas categorias. Tal determinação formal
acaba por se transformar, assim, na expressão da impossibilidade de todo e qualquer
processo no qual a experiência produza categorias estranhas àquelas que pareciam
previamente condicioná-la. Experiências que, do ponto de vista das condições de
possibilidade temporalmente situadas no presente, produzem necessariamente
acontecimentos impredicáveis. É isto que levou várias correntes da filosofia
contemporânea a criticar o próprio conceito de história enquanto espaço de exposição
de uma metafísica da verdade.
No entanto, nada afetado pela esperança com seu sistema de projeções pode
operar com o desamparo que acontecimentos impredicáveis produzem. Pois a
impredicação é o que mostra a inanidade de toda expectativa, não no sentido de
mostrar seu equívoco de previsão, mas seu erro categorial. A temporalidade concreta

289 ENGELS e alli, idem, p. 122


290 KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado: contribuição á semântica dos tempos
históricos, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 54
291 Idem, p. 37
292 Idem, p. 69
dos acontecimentos é impredicável pois sem referência com o horizonte de
expectativas da consciência histórica, por isto ela é expressão de um tempo
desamparado, marcado exatamente pela contingência. Talvez isto explique porque,
por exemplo, várias tentativas de encarnação da Revolução, com sua maiúscula de
rigor, no processo revolucionário concreto, ou seja, várias tentativas de encarnação da
força insurgente da esperança em políticas de governo serão indissociáveis de uma
certa imunização produzida pela necessidade de apelar à circulação social do medo,
compondo com ele uma dualidade afetiva indissociável. Ela se transforma em prova
do corolário: “não haverá esperança sem medo”. Medo que expressa a
impossibilidade da encarnação, pois expressão do desvio e da traição sempre à
espreita contra o corpo social produzido pela esperança. Medo do retorno do tempo e
dos atores que já deveriam estar mortos. O corpo social por vir da esperança não se
sustenta, por isto, sem a necessidade de imunização constante, sem a necessidade de
ações violentas periódicas de “regeneração do corpo social” (BODEI, Idem, p. 426),
em suma, sem a transmutação contínua da esperança em medo. A história das grandes
revoluções, seja a francesa com seu “grande medo”293, seja a russa com seus
“expurgos”, apenas para ficar em dois dos melhores exemplos, nos mostra isto bem.
Contra esta passagem incessante nos opostos complementares da esperança e
do medo, muitos acreditaram dever retirar a política de toda dimensão do porvir,
produzindo um esfriamento das paixões através da recusa de qualquer ruptura
desestabilizadora profunda de nossos conceitos já em circulação de democracia.
Como se o tempo histórico das revoluções fosse uma simples aporia tão bem descrita
por Hegel quando, ao falar da passagem da insurreição e da mobilização ao governo
no jacobinismo, lembrava: “o [simples] fato de ser governo o torna facção e
culpado”294; resultado necessário de um liberdade que não é capaz de superar seu
primeiro impulso negativo.
Mas talvez seja possível liberar a política transformadora de toda atividade de
projeção temporal, dando-lhe um temporalidade concreta. Neste sentido, gostaria de
fornecer uma interpretação ao problema da revolução em Marx que possa responder a
acusação de que sua filosofia da história seria animada por uma “metanarrativa” que
parece fundir a multiplicidade das identidades coletivas em uma unidade compacta.

Uma concepção de processualidade dialética

Um texto fundamental para compreender a teoria da revolução de Marx é o


primeiro capítulo do 18 de brumário de Luís Bonaparte. Não por acaso, trata-se da
reflexão sobre uma revolução abortada, a saber, os levantes de fevereiro e junho de
1848. Certamente, todos vocês conhecem a frase inicial do livro:

Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes


fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por
assim dizer, duas vezes. Ele esqueceu de acrescentar: a primeira como
tragédia, a segunda como farsa. Caussidière como Danton, Luis Blanc como
Robespierre, a Montanha de 1848-51 como a Montanha de 1793-95, o
sobrinho como o tio295.

293 LEFEVRE, Georges; La grande peur de 1789, Paris: Armand Colin, 1970
294 HEGEL, G.W.F.: Fenomenologia do Espírito
295 MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 25
A colocação de Marx era precisa por problematizar um ponto fundamental da dialética
como processualidade referente à necessidade da repetição. A frase Hegel, dita a
respeito da morte de César, era: “de fato, uma revolução política é geralmente
sancionada pelos homens quando ela se repete. Assim, Napoleão sucumbiu duas vezes
e duas vezes foram afastados os Bourbons. Através da repetição, o que apareceu
inicialmente como possível e contingente adquire realidade e permanência”296. Nota-
se claramente aqui como a revolução é definida como uma forma específica de
repetição a partir de um acontecimento que aparece inicialmente como contingente,
como meramente possível no sentido de poder ter sido de outra forma, poder ter
ocorrido ou não. Uma revolução é repetição de um acontecimento contingente, mas
uma repetição feita de forma tal que transforma a contingência, transforma o que até
então não aparecia para uma situação como fruto de uma causalidade necessária, em
necessidade. Neste sentido, podemos falar em, “revolução” porque tal transformação
só é possível à condição do acontecimento produzir uma contradição formal com a
situação presente. O acontecimento é impensável no interior da situação presente, ele
não obedece ao regime de necessidade do que está imediatamente posto. Repeti-lo é
inscrevê-lo em uma nova estrutura simbólica.
Tentemos compreender melhor este ponto. Lembremos, inicialmente, como
Hegel define a contingência: “essa unidade da possibilidade e da efetividade
(Wirklichkeit) é a contingência (Zufälligkeit). O contingente é um efetivo que, ao
mesmo tempo, é determinado apenas como possibilidade, cujo outro ou oposto
também é” (HEGEL, 1986, p. 230). A contingência é unidade da possibilidade e da
efetividade porque, embora existente, ela conserva a marca do que poderia não ser, do
que é mera possibilidade. O outro de si, sua inexistência, seu oposto, era igualmente
possível. Daí porque ela é, aos olhos de Hegel, o espaço de uma contradição maior: “o
contingente não tem fundamento, porque é contingente, e da mesma forma tem um
fundamento, porque como contingente, é”. Sua existência não tem fundamento por
estar corroída pela situação de mero possível, ela é vizinha do não-ser, como dizia
Aristóteles, mas ao mesmo tempo tem alguma forma de fundamento por participar da
efetividade posta. Assumir a existência efetiva da contingência é, para Hegel,
confrontar-se como o que é uma: “interversão posta imediata” (gesetzte unvermittelte
Umschlagen), ou seja, com uma passagem contínua entre opostos que nunca se
estabiliza e que por isto abre a experiência a uma “absoluta inquietude do devir”
(absolute Unruhe des Werdens).
Hegel poderia, por exemplo, recusar dar a contingência alguma forma de
dignidade ontológica e professar um necessitarismo absoluto nos moldes daquele que
encontramos em Spinoza. Mas se ele fizesse isto, não haveria mais dialética, pois não
haveria mais produtividade da contradição. Hegel deve admitir que todo
acontecimento se apresenta inicialmente como contingente e tal apresentação não é
simplesmente um “defeito de nosso entendimento”. Ela é a expressão do fato da
essência estar em uma relação de exterioridade consigo mesma, dela se manifestar
como uma espécie de exceção de si. É nesta exceção, nesta excepcionalidade que uma
outra ordem começará por entrar em contradição com a situação normal para depois
afirmar-se.
Mas notemos um ponto. A contingência é absoluta inquietude do devir apenas
para uma filosofia, como a hegeliana, que ao recusar distinções ontológicas estritas
entre contingência e necessidade, procura compreender como o necessário se
engendra a partir da efetividade, como a efetividade produz a necessidade, produz um
“não poder ser de outra forma”. O que não significa que a realidade atual deva ser
296 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 242
filosoficamente completamente justificada, como já se criticou Hegel em mais de uma
vez. Antes, significa compreender como fenômenos contingentes, por não
encontrarem lugar na determinação necessária da realidade atual, transfiguram-se em
necessidade ao inaugurar processualidades singulares.
Assim, por exemplo, o assassinato de César – tópico fundamental no trecho da
Filosofia da História citado acima - aparece inicialmente como a anulação de uma
individualidade que parecia colocar em risco a forma da República, como a anulação
de algo que poderia ter sido de outra forma. Diante da situação representada pela
República Romana e sua institucionalidade, um acontecimento como César era
puramente contingente, colocando-se em contradição com a situação normal.
Eliminando-o, a necessidade da situação normal se restabeleceria. No entanto, o
assassinato de César produz sua repetição sob a forma simbólica de Césares que
retornam instaurando um novo regime de necessidade e de temporalidade no qual a
perda produzida no passado é apenas uma forma de abrir uma temporalidade espectral
que dará ao presente a espessura de novas camadas. Esta repetição é a prova de que a
forma da República havia sido esvaziada de sua substância. Ela não passava de um
mero formalismo.
Diria que esse processo de integração processual das contingências é a base
estrutural da compreensão de revolução presente em Marx. No entanto, ele
complexificado por Marx ao estabelecer a existência de um modo de repetição
histórica que é apenas a expulsão do que aparecia como a potência de transformação
de um acontecimento. Uma revolução sempre desencadeia um sistema de repetições,
mas há de se saber como e o que se repete. É importante para Marx operar tal
distinção no interior do conceito de repetição histórica para dar conta de um processo
bem descrito no capítulo III do 18 de brumário:

Na primeira Revolução Francesa, seguiu-se ao governo dos constitucionalistas


o governo dos girondinos e ao governo dos girondinos o governo dos
jacobinos. Cada um desses partidos se apoiou no mais avançado. Assim que
um deles conduziu a Revolução até o ponto de não mais poder segui-la e
manos ainda puxar-lhe a frente, o aliado mais ousado que estava logo atrás
dele o pôs de lado e o mandou para a guilhotina. Assim, a Revolução se
moveu numa linha ascendente. Aconteceu o contrário na Revolução de 1848.
O partido proletário figurou como apêndice do partido democrático pequeno-
burguês sendo traído por este e abandonado à própria sorte em 16 de abril, 15
de maio e nas jornadas de junho. O partido democrático, por sua vez, apoiou-
se nos ombros do partido republicano-burguês. Os republicanos-burgueses mal
sentiram o chão firma debaixo dos pés e já se desvencilharam do incômodo
camarada, apoiando-se, eles próprios, nos ombros do Partido da Ordem. O
Partido da Ordem encolheu os ombros, deixou os republicanos-burgueses
cariem e se jogou nos ombros das Forças Armadas. Ele ainda acreditava estar
sobre os ombros destas quando, numa bela manhã, deu-se conta de que os
ombros haviam se transformado em baionetas. Cada um desses partidos bateu
por trás naquele que avançava e se curvou para trás para apoiar-se naquele que
retrocedia. Não admira que, nessa pose ridícula, cada um desses partidos
tenha perdido o equilíbrio e, depois de ter rasgado as suas inevitáveis caretas,
estatelado-se no chão fazendo cabriolas esquisitas. Desse modo, a revolução se
moveu numa linha descendente297.

297 Idem, pp. 55-56


A descrição de Marx é clara na sua caracterização de revoluções que seguem
linhas ascendentes e outras que seguem linhas descendentes. No primeiro caso, os
sujeitos políticos se sucedem através de um movimento no qual o informulado pelo
sujeito precedente, o que ele não é capaz de enunciar sem se destruir, impulsiona uma
transformação ainda maior em relação ao que era a situação normal de partida. No
segundo caso, os sujeitos políticos se sucedem através de um movimento no qual o
informulado posto inicialmente pelo partido proletário é cada vez mais afastado até
que, em um movimento descendente contínuo, o processo termina nas baionetas das
Forças Armadas.
Sugiro que para entender esta clivagem entre linha ascendente e linha
descendente, devemos adentrar na forma com que Marx estabelece, ao menos, dois
regimes distintos de repetição histórica. Lembremos inicialmente como Marx insiste
que: “a tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o
cérebro dos vivos” pois, no momento em que parecem empenhados em criar algo
nunca visto, os homens reavivam espíritos do passado, tomam emprestado os seus
nomes a fim de representar as novas cenas da história mundial, abrindo uma dinâmica
de identificações históricas. Por exemplo, foi com figurinos romano e fraseologia
romana que a Revolução Francesa se realizou como ereção da moderna sociedade
burguesa. Mas ela reviveu tal tempo para ocultar aos agentes históricos: “a limitação
burguesa do conteúdo de suas lutas” 298. Neste sentido, seguiria Guillaume Silbertin-
Blanc a fim de lembrar que: “Jamais la « révolution bourgeoise » nʼaurait pu avoir
lieu, si elle avait dû être faite par des bourgeois. Dʼabord, elle ne put être
révolutionnaire quʼen étant dʼabord populaire et « de masse », donc à la condition de
transfigurer son contenu de classe particulier dans les formes idéologiques dʼune
émancipation universelle capables dʼexalter lʼenthousiasme bien au-delà des seules
fractions de la bourgeoisie, et de mobiliser le peuple en masse dans les affrontements
contre les forces contre- révolutionnaires intérieures et extérieures. Mais elle ne fut
jamais faite par la bourgeoisie en un autre sens encore: la bourgeoisie de 1789 comme
classe révolutionnaire, ne fut jamais révolutionnaire en tant que bourgeoise, mais
seulement en tant quʼelle sʼhéroïsa, se transfigura elle-même et, littéralement,
sʼhallucina dans les rôles grandioses dʼune tradition romaine quʼavaient déjà idéalisée
théoriquement, si lʼon peut dire, les philosophes des Lumières, dans des figures
héroïques où ses caractères bourgeois lui devenaient méconnaissables”299.
Neste sentido, a repetição aparece como uma forma de “ilusão necessária”,
uma astúcia que só poderia produzir, ao final, formas de decepção histórica. A
ressurreição dos mortos serve aqui para glorificar as novas lutas, exaltar na fantasia as
missões recebidas e para redescobrir o espírito da revolução. Mas aqui se abre uma
ambiguidade importante. Quando os fantasmas do passado são chamados, eles não
voltam mais para o passado. Ninguém ressuscita os mortos sem se deixar invadir por
eles, sem fazer com que as promessas não realizadas no passado, voltem a assombrar
os vivos, criando uma profunda instabilidade que impulsionará a Revolução em uma
linha ascendente. Não é apenas o heroísmo da Roma antiga que é convocado a fim de
permitir à burguesia alucinar seu próprio papel histórico. São também as promessas
quebradas à plebe, os tribunos assassinados, as revoltas sufocadas, em suma, o que
ficou na histórica como derrota a espera de outra oportunidade e é isto que impulsiona
a Revolução em linha ascendente. Pois ressuscitar os mortos é aproximar-se de outro
tempo, não é apenas trazer os mortos para o presente, mas também presentificar o
tempo do passado em sua integralidade. O tempo da Revolução é uma temporalidade

298 Idem, p. 27
299 SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Pensée politique en temps inactuels, p. 64
outra; é, para usar um conceito hegeliano, um “presente absoluto”. Há um outro
tempo a assombrar o presente e ele só deixará de assombrá-lo quando não houver
mais presente tal como até agora houve. Pois as rupturas nos modos de produção que
as Revolução proletárias procuram realizar são modificações que, como bem lembra
Balibar, modificam: “a base econômica, as superestruturas jurídicas e políticas, as
formas da consciência social”300. Neste contexto, “formas da consciência social”
significa o modo de determinação dos sujeitos e de sua experiência espaço-temporal.
As configurações de sujeitos vão juntamente com os modos de produção.
No entanto, Marx fala que: “não é do passado, mas unicamente do futuro, que
a revolução social do século XIX pode colher sua poesia” 301. A princípio, parece que
Marx está a dizer que não se trata mais de recorrer a memórias históricas para
travestir burgueses de césares, insensibilizando a sociedade em relação ao real
conteúdo dos processos de transformação social. Como Marx insistirá, ao invés da
fraseologia histórica superar o verdadeiro conteúdo do processo revolucionário, era o
conteúdo que deveria enfim superar a fraseologia. No entanto, talvez Marx fale que é
apenas do futuro que a revolução poderá colher sua poesia porque não há figuras no
passado que possam dar forma à subjetividade política revolucionária pois o que uma
revolução faz ressoar é exatamente aquilo que, no interior do passado, ficou sem
forma e figura, aquilo que ficou sem lugar. A poesia da revolução é a poesia do que
não se inscreveu no tempo da história. Neste sentido, tem razão Walter Benjamin
quando afirma: “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre
vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso
um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a
acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”302. Ou seja, a revolução
é este processo que reconstrói o tempo a partir da capacidade de “extrair uma época
determinada do curso homogêneo da história” 303. Tal extração pode, inclusive,
paralisar o tempo em uma configuração saturada de tensões que se cristaliza como
uma mônada. Assim, o tempo pode paralisar-se em uma saturação contínua, fazendo
com que os múltiplos instantes na história sejam o mesmo instante em repetição, até
que tal pressões de tensões produza a emergência de um novo sujeito.
Por exemplo, sabemos como Marx dirá que as revoluções do século XVIII são
intensas e tem vida curta, enquanto as revoluções do século XIX (1830, 1848) estão
em constante auto-crítica, parecem interromper sua marcha para começar tudo de
novo, para zombar da debilidade de suas primeiras tentativas. Elas “recuam
repetidamente ante a enormidade ainda difusa de seus próprios objetivos até que se
produza a situação que inviabiliza qualquer retorno”304. O que significa tais recuos e
interrupções? Podemos dizer que eles são os processos que paulatinamente produzem
o sujeito revolucionário através da consciência de sua ausência completa de lugar.
Marx, por exemplo, lembra como é recorrente este processo no qual o proletariado
abre mão de revolucionar o velho mundo para se lançar a: “experimentos doutrinários,
bancas de câmbio e associações de trabalhadores” 305. Como se o proletariado
acreditasse que os problemas sociais que enfrenta poderão ser resolvidos através da
conservação reajustada dos modos atuais de produção, dos modos atuais de narrativa
e de dramatização política. Ao fazer isto, eles só poderão produzir uma repetição
300 BALIBAR, Etienne; “Concepts fondamentaux du matérialisme historique”, In:
ALTHUSSER, Louis (org.); Lire le Capital, p. 424
301 MARX, Karl; 18 de brumário, p. 28
302 BENJAMIN, Walter; Sobre o conceito de história, p. 232
303 idem, p. 231
304 MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 30
305 Idem, p. 35
histórica como paródia da revolução. Repetição como aprisionamento em um tempo
morto no qual o que retorna, retorna sob a forma da impotência social.
Assim, por exemplo, incapaz de assumir sua condição de completa
despossessão o proletariado francês em 1848 deixou-se apreender pelo imaginário
burguês da Revolução Francesa. Esperando pela repetição de Napoleão, ele terá que
se contentar com um Napoleão caricaturado, até que assuma sua condição de
expressão de um sujeito político sem figura e que, por isto, não pode mais se
representar sob a forma dos antigos atores. Enquanto isto não acontecer, sobe à cena
do político estes que não acreditam que poesia alguma virá do futuro porque são
movidos pela nostalgia de uma antiga ordem ou pela acomodação complacente à
desordem do presente. Movidos por uma negatividade improdutiva, sua espera por
transformações será, no fundo, espera por uma restauração. Vimos na aula passada
como tal anti-sujeito político é o que Marx chama de “lumpemproletariado”. Volto a
insistir, o lumpemproletariado é composto por todos os desenraizados que não são
capazes de se engajar em um processo de contradição com a situação normal. Sua
negatividade não chega à contradição. Neste sentido, o conceito de
lumpemproletariado traduz, acima de tudo, uma posição política diante de um
processo revolucionário.
Dentro deste processo, há de se sublinhar como ele se estabiliza através do
deslocamento do poder para uma caricatura, a saber, Napoleão III. Vendo-se na
incapacidade de unificar o poder em suas mãos, a burguesia francesa permite a
produção de uma espécie de dominação estatal que paira acima das classes. A figura
da estabilização através de um personagem que representa apenas o próprio vazio do
poder, que permite a coesão do estado por não exigir mais convicção alguma em
relação ao estado.

Uma concepção de sujeito político

Neste sentido, podemos dizer que uma revolução é, acima de tudo, o processo
de emergência de novos sujeitos políticos. Esta emergência é a condição para que o
acontecimento contingente possa se transformar em necessidade. Sem tal emergência
acontecimentos se seguirão um após o outro sem que nenhuma sequência de
transformações se inicie. No entanto, tais sujeitos são produzidos por acontecimentos.
Daí porque todo acontecimento ocorre, ao menos duas vezes. A repetição do
acontecimento é levada a cabo por outros sujeitos.
Falta a aula 10
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 11
A categoria de sujeito em Adorno

Em vários momentos, deve ter ficado claro como a dialética não é uma ontologia do
ser, mas uma filosofia do sujeito. O conceito de sujeito lhe é absolutamente central e
deveríamos agora nos perguntar a razão para tal centralidade. Esta centralidade fica
evidente na recuperação adorniana da dialética. Podemos mesmo dizer que, do início
até o fim, a filosofia adorniana não será outra coisa que uma complexa teoria do
sujeito que procura desdobrar suas conseqüências nos campos da reflexão sobre a
teoria do conhecimento, a estética, a moral e a teoria social. Ou melhor, uma teoria do
sujeito que só pode se configurar através das passagens da filosofia em direção a
campos empíricos do saber. Não seria difícil mostrar que, neste ponto, Adorno acaba
por mostrar sua profunda solidariedade com a tradição dialética inaugurada por Hegel,
já que a filosofia de Hegel é, a sua forma, também uma longa elaboração a respeito da
reconstrução possível da categoria de sujeito. Uma construção que também exige a
dispersão conceitual do fazer filosófico.
A primeira razão que podemos dar para este insistência na conservação da
categoria de sujeito é a defesa de que “sujeito” é o nome que damos para uma
experiência radical de não-identidade. A defesa do primado da não-identidade pede a
reflexão sobre a estrutura da categoria de sujeito. Desde Hegel, a reflexão cuja
atividade constitui a categoria do sujeito não é definida como auto-reflexão,
capacidade de auto-apreensão de si no interior de uma consciência especular. Ela é um
movimento necessário de alienação e retorno. Esta reflxividade dá ao sujeito sua
característica principal, a saber, sua dinâmica de implicação. Sujeito é o nome que
damos para um movimento de implicação com o que não se deixa pensar sob a forma
da identidade. Notemos ainda que Adorno prefere falar em não-identidade, ao invés
de, por exemplo, diferença, para insistir na natureza do movimento que permite o
redimensionamento do campo da experiência. Tal movimento não parte da eliminação
pura e simples das expectativas de organização próprias ao sujeito, como se fosse
possível suspendê-las por decreto e colocar-se diretamente na perspectiva do infinito.
Ele é dialético por levar tais expectativas a seu ponto de exaustão, a levar a identidade
até o ponto no qual ela confessa sua impossibilidade. Como se o sujeito fosse
necessariamente animado por um movimento de auto-superação de si.
Tal compreensão do sujeito como regime de implicação com uma experiência
de não-identidade explica porque, ao começar sua descrição das categorias de uma
lógica dialética (na segunda parte de Dialética Negativa), Adorno comece não com
uma consideração sobre o ser ou mesmo sobre o sujeito, mas com o “algo” (Etwas)
como “caráter coisal não idêntico ao pensamento” 306. Não partir do “algo” é, para
Adorno, aceitar a: “dominação do conceito que gostaria de permanecer constante ante
seus conteúdos”307. No entanto, se quisermos uma dialética materialista, há de se
pensar o processo de alteração do conceito pelo não imediatamente conceitual.
“Sujeito” é o nome que damos para a implicação com tal processo, para a capacidade
de ser afetado pelo pensamento de tal processo. Por isto, ele nos mostra como:

306 ADORNO, Dialética negativa, p. 119


307 Idem, p. 121
O que quer que a palavra venha algum dia a trazer consigo em termos de
experiência , só é exprimível em configurações do ente, não por meio da
alergia em relação a ele, de outro modo o conteúdo da filosofia se transforma
em resultado irrisório por um processo de subtração não diverso do que
outrora a certeza cartesiana do sujeito, da substância pensante308.

No entanto, uma colocação desta natureza pode parecer estranha. Pois à


pergunta sobre o que é o sujeito, nós normalmente oferecemos uma resposta como:
sujeito é uma entidade substancial, ou seja, idêntica a si mesma e capaz de auto-
determinar sua própria essência. Por isto, na modernidade, sujeito tende a se
confundir com termos como “consciência” já que tendemos a atribuir ao sujeito as
mesmas determinações da consciência, a saber, a autonomia potencial das ações e
condutas q ue leva à imputabilidade da pessoa jurídica, a unidade coerente das
representações e da personalidade, a capacidade reflexiva do pensar, entre outros. Ou
seja, autonomia, imputabilidade, reflexividade, unidade e identidade nos aparecem
normalmente como atributos básicos de toda e qualquer noção de sujeito.
O que veremos em Adorno, no entanto, será um esforço sistemático para
repensar todas estas categorias, isto a fim de elaborar uma noção de sujeito onde a
identidade dê lugar à não-identidade e à clivagem, onde a reflexividade abra espaço
ao reconhecimento da racionalidade do que não é imediatamente conceito. Na
verdade, trata-se de constituir um conceito de sujeito capaz de servir de fundamento à
crítica à noção hegemônica de subjetividade. Projeto que Adorno enunciou ao afirmar
querer: “Com a força do sujeito, quebrar a ilusão (Trug) da subjetividade
constitutiva”309. Para tanto, ele precisará operar recursos massivos a campos
empíricos do saber como a psicanálise e a sociologia.
Notemos ainda que a problematização do conceito moderno de sujeito é um
dos tópicos mais recorrentes na filosofia do século XX. Tudo se passa como se o
pensamento contemporâneo tomasse consciência de que as expectativas
emancipatórias da razão, estas expectativas que prometiam ao homem sair de sua
minoridade e, como dizia Descartes, ser “senhor da natureza” haviam produzido o
inverso daquilo que era seu conceito. Uma inversão da emancipação em dominação
de si que não deixava de estar ligada ao destino deste conceito que serve de
fundamento à racionalidade moderna: sujeito. Pois não foram poucos aqueles que
insistiram na questão: quanto devemos pagar para que a unidade, a autonomia, a
transparência e a identidade do sujeito possam se impor enquanto realidade? O que
deve acontecer com a experiência de nós mesmos para que ela possa ser vista como
campo que se submete a tais categorias? E o que acontece com a experiência do
mundo quando o fundamento da experiência é um sujeito pensado a partir destes
atributos? Podemos dizer que tais questões são a base de um dos livros centrais de
Adorno: a Dialética do Esclarecimento.
De fato, elevar tal experiência de si à condição de problema é algo que
necessariamente traz conseqüências profundas. Pois a maneira com que
compreendemos a categoria de sujeito não poderia de deixar de ter conseqüências na
maneira com que definimos o que é um objeto da experiência, quais as condições para
que algo aceda à condição de objeto. Ou seja, trata-se da compreensão de que toda
verdadeira crítica da razão tem seu solo na crítica àquilo que serve de fundamento às
operações de categorização e de constituição do objeto de experiências que aspiram
preencher critérios racionais de validade.

308 Idem, p. 123


309 ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt: Suhrkamp, 1975, p. 10
Neste sentido, devemos estar atentos, por exemplo, para o fato de boa parte
das operações críticas da Dialética do Esclarecimento visarem demonstrar como o
processo de constituição do Eu moderno, com suas exigências de auto-identidade
imediata e de auto-determinação, significou a submissão de toda experiência possível
ao primado da identidade e da abstração. Assim, por exemplo, se Adorno precisa
insistir tanto na necessidade do pensamento racional denegar toda força cognitiva da
mimesis (tema maior do advento da razão moderna no qual se vinculam a degradação
do pensar por imagens e a crítica da força cognitiva da semelhança e da analogia), é
porque se trata de sustentar: “a identidade do eu que não pode perder-se na
identificação com um outro, mas [que] toma possessão de si de uma vez por todas
como máscara impenetrável”310. Pois a identidade do Eu seria dependente da
entificação de um sistema fixo de identidades e diferenças categoriais.
A projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e
Horkheimer chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e as
processos de categorização do sujeito cognoscente 311, já que, em última instância, a
categorização seria uma projeção do princípio de identidade do Eu na síntese do
diverso da intuição em representações de objetos da experiência. Mesmo a
compreensão da cognição como assimilação do objeto através de uma rememoração
(Erinnerung) capaz de internalizar as cisões que a própria consciência teria produzido
não escapará dos motivos da crítica frankfurtiana. Neste momento, valem para
Adorno e Horkheimer a afirmação de um filósofo que, em vários momentos, cruzou o
caminho dos frankfurtianos através de uma crítica da razão como modo de dominação
técnica do mundo e de si, Martin Heidegger: “nos parece que, em todo lugar, o
homem só encontra a si mesmo. Heisenberg teve plena razão ao dizer que, para o
homem de hoje, o real (Wirklichen) não pode parecer de outra forma” 312. Assim, toda
boa leitura de Adorno deve tentar compreender como ele foi capaz de constituir uma
crítica do sujeito moderno que, ao mesmo tempo, colocou-se como afirmação de uma
teoria renovada da subjetividade, de uma teoria do sujeito independente das temáticas
ligadas à filosofia da consciência313.

O capitalismo não tem sujeitos

Por outro lado, trata-se de demonstrar como, no interior da experiência


intelectual adorniana, estas temáticas próprias à reflexão sobre o estatuto de um
conceito filosófico, como sujeito, servirão de base para o desenvolvimento de uma
complexa crítica social do capitalismo avançado. É este movimento fundamental entre
crítica da razão, crítica do sujeito e crítica social que interessa a Adorno. Como
conceitos filosóficos, ao mesmo tempo, fundamentam a crítica social e se configuram
a partir dela, ou seja, são gerados pela situação social mas, ao mesmo tempo,
310 ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 24
311 Neste sentido, sigamos a afirmação: “Sempre que as energias intelectuais
estão intencionalmente concentradas no mundo exterior (...) tendemos a ignorar
o processo subjetivo imanente à esquematização e a colocar o sistema como a
coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento objetivador contém
a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa” (idem, p. 180)
312 HEIDEGGER, Martin; Essais et conférences, p. 35
313 Um belo exemplo deste trabalho nos é fornecido por DEWS, Peter, Adorno,
pós-estruturalismo e crítica da identidade In: ZIZEK, Slavoj, Um mapa da
ideologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, pp. 51-71. Tomo a liberdade de
também remeter ao meu: SAFATLE, Vladimir; Espelhos sem imagens: mimesis e
reconhecimento em Lacan e Adorno, Revista Trans/form/ação, vol. 28 (2), 2005,
pp. 21-47
fornecem a perspectiva que fundamenta a crítica à esta mesma situação? Como o que
nasce no interior de uma situação pode servir de ponto de fuga, como perspectiva que
me permite criticar esta própria situação? Como se dá esta passagem tensa entre
filosofia e teoria do capitalismo? Como é possível, por exemplo, articular a crítica do
sujeito como locus da identidade imediata e a compreensão de que: “a ideologia é a
forma originária da ideologia”314? Todas estas questões só podem ser respondidas
através de uma leitura atenta do texto adorniano.
Partamos, a este respeito, de uma consideração adorniana fundamental. Para
Adorno, o conceito de sujeito é o espaço de uma ambiguidade entre “o momento da
individualidade humana – chamada egoidade por Schelling”315 e uma determinação de
universalidade. Adorno insiste várias vezes como o sujeito transcendental é uma
abstração do Eu empírico, que tentar salvar seu conceito é como transformar o
condicionado em incondicionado. É importante insistir neste ponto para denunciar o
caráter ideológico de certa ideia de autonomia. Pois:

Quanto mais os homens individuais são reduzidos a funções da totalidade


social por sua vinculação com o sistema, tanto mais o espírito,
consoladoramente, eleva o homem, como princípio, a um ser dotado do
atributo da criatividade e da dominação absoluta316.

Ou seja, a transcendentalidade do sujeito é uma ilusão compensatória para sua


verdadeira impotência social. Seu postulado de autonomia expressa “a primazia das
relações friamente racionais (...) relações que tem seu modelo na troca” 317. Segundo
Adorno, o capitalismo ontologiza seus regimes de equivalência e intercambiabilidade
através do recurso à imutabilidade formal do transcendental. Ele permite a indiferença
em relação ao material através de uma eternização da forma-geral da objetividade.
Adorno pensa aqui a partir da temática luckacsiana da forma-mercadoria como
modelo geral de objetividade social, assim como deve lhe ressoar as relações de
Alfred Sohn-Retel sobre subjetividade transcendental e modo de produção capitalista.
É desta forma que o capitalismo aparece para Adorno como uma “ideologia da
identidade”. Sua crítica se transforma na: “crítica da própria consciência
constitutiva”318 em suas exigências de identificação do objeto à identidade do
pensamento, o que fica claro em afirmações como:

O princípio da troca, a redução do trabalho humano ao conceito universal


abstrato do tempo médio de trabalho, é originalmente aparentado com o
princípio de identificação. Esse princípio tem na troca o seu modelo social, e a
troca não existiria sem esse princípio; por meio da troca, os seres singulares
não-idênticos se tornam comensuráveis com o desempenho, idêntico a ele. A
difusão do princípio transforma o mundo todo em algo idêntico, em
totalidade319.

Assim se cria, segundo Adorno, a falsa totalidade do Capital, contra a qual


não se trata de defender a anulação pura e simples da categoria de medida da
comparabilidade. De fato, contra tal princípio de identificação a dialética se propõe a
314 ADORNO, Negative Dialektik, op. cit., p. 151
315 ADORNO, Palavras e sinais, p. 181
316 Idem, p. 185
317 Idem, p. 186
318 ADORNO, Dialética negativa, p. 129
319 ADORNO, Dialética negativa, p. 128
ser uma : “lógica da desintegração: da desintegração da figura construída e objetivada
dos conceitos que o sujeito cognoscente possui de início em face de si mesmo” 320.
Mas, para Adorno, isto significa que não trata de abandonar o pensamento da relação
que o princípio de troca pressupõe. Trata-se, antes, de pensar uma relação não-
violenta. Daí porque: “é preciso se opor à totalidade, imputando-lhe a não-identidade
consigo mesma que ela recusa segundo o seu próprio conceito” 321. Se a totalidade
produzida pelo forma-equivalente é a submissão integral à identidade, há de se pensar
uma totalidade não-idêntica como condição normativa para a crítica.
Tal exigência pode nos explicar porque Adorno deve ainda lembrar que o
transcendental expressa, mesmo que de maneira deformada, a impossibilidade do
particular ser idêntico a si mesmo. Ele pode assim ser salvo apenas como princípio de
expressão da diferença, sem poder conservar suas disposições normativas. Daí porque
Adorno deve lembrar: “O conceito de transcendental recorda que o pensamento, em
virtude dos momentos de universalidade que lhe são imanentes, ultrapassa a sua
própria irredutível individuação”322. No entanto, tal universalidade não expressa um
conjunto de normas positivas a serem universalmente partilhadas. Antes, ele é a
expressão do desejo de constituir relação a partir da tendência de auto-ultrapassagem
imanente de toda individuação. Neste sentido, o momento da individualidade do qual
fala Adorno, ou ainda da egoidade, não pode ser compreendido como defesa da
irredutibilidade da estrutura do indivíduo. Na verdade, esta é um maneira de
evidenciar como o sujeito tem um “núcleo de objeto”323.
Encontrar um núcleo de objeto no sujeito é uma maneira de impedir que a
negatividade do objeto para com o sujeito apareça como um resíduo resultante da
operação de descontar toda atividade subjetiva ou que apareça como o puramente
indeterminado, em uma chave que nos remeteria à coisa em si kantiana. Nem resíduo,
nem incognoscível. Na verdade, há de se perceber como o primado do objeto altera
qualitivamente a estrutura da consciência. Adorno parece aceitar a ideia de que o
kantismo não escapa das aporias do subjetivismo por suas determinações de espaço e
tempo serem condições subjetivas da experiência objetiva. Neste sentido, afirmar que
o primado do objeto altera qualitativamente a experiência da consciência significa
encontrar, na experiência, a força para quebrar a prisão dos modos de determinação
categorial. Pois:

o fato de que, enquanto sujeitos cognoscentes, dependam de espaço, tempo e


forma de pensamento, marca sua dependência em relação à espécie. Esta se
sedimentou em tais constituintes, não por isso estes valem menos. O ‘a priori’
e a sociedade estão entrelaçados324.

Adorno chega mesmo a falar que o que Kant chama de “enformação” (Formierung) é
deformação ou, ainda, chega mesmo a falar de um “cativeiro interiorizado” a fim de
sublinhar o caráter de coerção de tais condições formais da experiência. “O cativeiro
categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de cada indivíduo”, dirá.
Ou seja, os limites da estrutura atual da experiência são a expressão das condições
materiais para a reprodução de um regime de funcionamento da vida social. O
capitalismo tem sua forma de tempo e de espaço, assim como ele tem seus regimes de

320 ADORNO, Dialética negativa, p. 127


321 Idem, p. 128
322 ADORNO, Palavras e sinais, p. 199
323 Idem, p. 188
324 Idem, p. 191
identidade. Toda determinação transcendental é uma instituição social e isto não pode
ser esquecido por toda crítica social que não queira ser filosoficamente ingênua. Há
algo que não é aplicação de método, mas abertura à experiência em sua capacidade de
transformação.

O mais desastroso desentendimento desde Kierkegaard

Adorno insiste em pensar a partir de uma dialética entre sujeito e objeto que afirma:
“a separação entre sujeito e objeto é real e aparente”325. Verdadeira por expressar uma
situação concreta atual e aparente por não poder ser hipostasiada como invariante. No
entanto, uma separação radical leva o sujeito a “esquecer o quanto ele mesmo é
objeto”326. Ou seja, ignorar como não apenas o objeto é mediado pelo sujeito, mas
como o sujeito é mediado pelo objeto leva, paradoxalmente, o objeto da experiência a
ser nada mais que uma projeção de um sujeito constituinte. Adorno precisa andar em
uma linha tênue entre aqueles que recusam, ao mesmo tempo, um estado originário de
indiferenciação genérica entre sujeito e objeto, assim como uma separação ontológica
entre os dois. Daí uma afirmação importante como:

Se fosse permitido especular sobre o estado de reconciliação, não caberia


imaginá-lo nem sob a forma da indiferenciada unidade do sujeito e objeto nem
sob a de sua hostil antítese; antes, a comunicação do diferenciado. Somente
então o conceito de comunicação encontraria seu lugar de direito como algo
objetivo. O atual é tão vergonhoso porque trai o melhor, o potencial de um
entendimento entre homens e coisas, para entregá-lo à comunicação entre
sujeitos, conforme os requerimentos da razão subjetiva327.

A colocação é clara: há uma espécie de síntese não identitária entre sujeito e objeto
que é resultado de um processo, que é uma produção, antes de ser o desvelamento de
uma unidade indiferenciada que muito se criticou como pressuposição da dialética
hegeliana. Esta síntese não tem a forma de uma comunicação entre sujeitos, mas de
um entendimento entre o que tem realidades ontológicas distintas, a saber, homens e
coisas. Tentemos entender melhor este ponto, assim como entender como tal ponto
nos abre para uma relação importante entre dialética hegeliana e dialética negativa.
De fato, há uma proximidade nem sempre relevada a respeito da dialética entre
sujeito e objeto em Hegel e Adorno. Proposição que pode parecer inicialmente
disparatada e ir na contramão de várias asserções explícitas do próprio Adorno. Pois
em mais de um momento, Adorno age como quem afirma que Hegel não pode levar a
dialética sujeito-objeto às suas reais conseqüências. Daí a necessidade de afirmações
como:

O sujeito-objeto hegeliano é sujeito. Isso esclarece a contradição não resolvida


no que se refere à exigência do próprio Hegel de uma coerência total, segundo
a qual a dialética sujeito-objeto, que não é subordinada a nenhum conceito
superior abstrato, perfaz o todo e, entretanto, se realiza por sua vez como a
vida do Espírito absoluto328.

325 Idem, p. 182


326 Idem, p. 183
327 Idem, p. 184
328 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
Adorno reconhece o momento de verdade da crítica hegeliana da oposição entre a
consciência que concede forma e a simples matéria. Ele sabe que a construção da
consciência-de-si como unidade especulativa entre sujeito e objeto abre espaço para
pensarmos a partir da própria coisa, já que ela não é relegada à condição de simples
matéria impensada. Neste sentido, Adorno insiste que, para Hegel:

mediação nunca significa, como a pintou o mais desastroso desentendimento


desde Kierkegaard, um meio entre os extremos, mas a mediação ocorre por
meio dos extremos e nos próprios extremos; esse é o aspecto radical de Hegel,
que é irreconciliável com todo moderantismo [Moderantismus]329.

Esta mediação por meio dos extremos é, no entanto, a maneira com que a própria
dialética negativa funciona. O que demonstra quão equivocada são perspectivas que
procuram diferenciar a dialética hegeliana e a dialética adorniana a partir da pretensa
distinção entre seus modelos de mediação330. Tanto é assim que Adorno dará um nome
para tal mediação por meio dos extremos e nos próprios extremos que estaria entre
operação na dialética entre sujeito e objeto: mimese. Mas Adorno aproxima, de
maneira explícita, negação determinada hegeliana e mimese, como vemos em uma
afirmação como:

O conceito especulativo hegeliano salva a mimese por meio da


autoconsciência do Espírito: a verdade não é adaequatio, mas afinidade e, no
idealismo em declínio, esse retorno da razão à sua essência mimética é
revelada por Hegel como seu direito humano331.

Assim, longe de se reduzir a uma relação meramente projetiva entre sujeito e objeto, a
dialética hegeliana reconhece afinidades miméticas que modificam a identidade dos
dois pólos. Mas isto significa necessariamente reconhecer que o sujeito encontra, no
interior de si mesmo, um “núcleo do objeto”332, isto no sentido de uma opacidade
própria à resistência do que se objeta à apreensão integral da consciência 333. Este
reconhecimento, por sua vez, é a maneira com que uma certa reconciliação opera na
dialética negativa todas as vezes que Adorno fala da relação entre sujeito e objeto
como uma “comunicação do diferenciado”334.
Mas, da mesma forma que é impossível, ao mesmo tempo, guardar o bolo e
comê-lo, não é possível dizer, ao mesmo tempo, que “o sujeito-objeto hegeliano é
sujeito” e que “o conceito especulativo hegeliano salva a mimese por meio da
autoconsciência do Espírito”. Pois no primeiro caso temos uma projeção irrefletida,

329 Idem
330 Como em O’CONNOR, Brian; Hegel, Adorno and the concept of mediation,
Bulletin of the Hegel Society of Great Britain (39/40):84-96.
331 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
332 ADORNO, Palavras e sinais: modelos críticos II, Petrópolis: Vozes, 1995, p. 188
333 O que leva Adorno a afirmar que: “a construção do sujeito-objeto possui uma
duplicidade insondável. Ela não se contenta em falsificar ideologicamente o
objeto e em transformá-lo no ato livre do sujeito absoluto, mas também
reconhece no sujeito o elemento objetivo que se apresenta e com isso restringe
anti-ideologicamente o sujeito” (ADORNO, Dialética negativa, p. 290)
334 ADORNO, Palavras e sinais, op. cit., p. 184. Neste sentido, é correto dizer que
a dialética negativa nos remete a uma relação sujeito-objeto que se situa: “não
apenas para além de suas identidades, mas também para além de suas
diferenças” (RICARD, La dialectique de T.W.Adorno, Laval Théologique et
Philosophique, 55, 2 (junho, 1999), p. 271.
enquanto no segundo ainda temos uma projeção, mas submetida à dupla reflexão de
quem compreende a necessidade de internalizar o momento de resistência do objeto à
organização conceitual.
Neste sentido, lembremos como o pensamento mimético, para Adorno, não é
um modo de pensamento marcado pela crença na força cognitiva das relações de
semelhança e de analogia. A imitação própria ao pensamento mimético é,
principalmente, compreendida como a capacidade transitiva de se colocar em um
outro e como um outro. A mimese seria modo de superar a dicotomia entre eu e outro
(seja tal dicotomia construída na forma sujeito/objeto, conceito/não-conceitual ou
cultura/natureza) através da identificação com aquilo que me aparece como oposto.
Ela é, neste contexto, internalização das relações de oposição, transformação de um
limite externo em diferença interna. Não a mera imitação do objeto, mas a assimilação
de si pelo objeto. Por isto, Adorno descreverá a mimese como um regime de mediação
por meio dos extremos e nos próprios extremos 335. Mediação capaz de construir um
modelo de reconciliação que o filósofo chamará de “comunicação do diferenciado”.
Se Adorno afirma que o conceito especulativo hegeliano salva a mimese, o
que pressupõe a idéia de que a racionalidade mimética e a racionalidade conceitual
não tem entre si uma relação de negação simples, é porque afirmações como: “O Eu é
o conteúdo da relação e a relação mesma, defronta um Outro e ao mesmo tempo o
ultrapassa; e esse Outro, para o Eu, é apenas ele próprio” 336 não podem simplesmente
significar a submissão da relação sujeito-objeto à estrutura projetiva do sujeito. Se o
Eu é ao mesmo tempo a forma e o conteúdo da relação é porque algo da opacidade do
conteúdo à forma já é interno ao próprio Eu. Esta mediação por meio dos extremos da
forma e do conteúdo já é uma mediação interna ao Eu. O que implica internalização
da alteridade para o âmago do Eu337.
É assim que podemos ler uma afirmação como: “A consciência-de-si é a
reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a
partir do ser-Outro”338. Podemos compreender tal passagem da consciência-de-si pela
alteridade do ser do mundo sensível percebido, com seu posterior retorno, levando em
conta como, na certeza sensível e na percepção, a consciência teve a experiência de
resistência do objeto às tentativas de aplicação do conceito à experiência. No próprio
campo da experiência, ela confrontou com algo que negava a aplicação do conceito à
experiência, tendo a experiência de uma diferença em relação ao conceito, uma
diferença vinda do objeto. Retornar de seu ser-Outro é assim internalizar tal diferença,
re-orientando não apenas as relações ao objeto, mas também as relações de identidade
no interior do si mesmo.
Tal reconhecimento de si no que há de opaco no objeto parece-me uma
operação central na estratégia hegeliana, já que ela nos leva ao capítulo final da
335 A respeito do conceito adorniano de mimese, tomo a liberdade de remeter ao
meu “Reconhecimento e dialética negativa”, In: SAFATLE, Vladimir; A paixão do
negativo: Lacan e a dialética, São Paulo: Unesp, 2006.
336 HEGEL, Fenomenologia, par. 166
337 Este modelo de reconciliação dialética foi bem compreendido por Zizek
quando afirma, explorando a via complementar, que a reconciliação deve ser
pensada como a duplicação de duas separações: “o sujeito tem de reconhecer em
sua alienação da substância a separação da substância consigo mesma. Essa
sobreposição [e o que se perdeu na lógica feuerbachiana-marxista da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o
agente ativo que pôs o que aparece para ele como seu pressuposto substancial”
(ZIZEK, Menos que nada, p.101). No entanto, Zizek não leva em conta como este
modelo é operativo na dialética negativa de Adorno.
338 HEGEL, Fenomenologia, par. 167
Fenomenologia. Neste momento central de reconciliação, Hegel apresenta um
julgamento infinito (unendlichen Urteil)339 capaz de produzir a síntese da dialética
entre sujeito e objeto. Trata-se da afirmação: “o ser do eu é uma coisa (das Sein des
Ich ein Ding ist); e precisamente uma coisa sensível e imediata (ein sinnliches
unmittelbares Ding)”. Desta afirmação, segue-se um comentário: “Este julgamento,
tomado assim como imediatamente soa, é carente-de-espírito, ou melhor, é a própria
carência-de-espírito”, pois se compreendemos a coisa sensível como uma predicação
simples do eu, então o eu desaparece na empiricidade da coisa – o predicado põe o
sujeito: “mas quanto ao seu conceito, é de fato o mais rico-de-espírito” 340. Trata-se de
afirmações de importância capital pois nos demonstram que, ao menos na
Fenomenologia, o término do trajeto especulativo só se dá com o julgamento: “o ser
do eu é uma coisa”. Aqui se realiza o reconhecimento de que: “a consciência de si é
justamente o conceito puro sendo-aí, logo empiricamente perceptível (empirisch
wahrnehmbare)"341. Mas se trata de uma modalidade de reconhecimento que só se
efetiva quando o sujeito encontra, em si mesmo e de maneira determinante, um núcleo
do objeto. Encontro que não é subsunção simples do objeto, mas insistência na
racionalidade do movimento do Espírito em integrar continuamente o que
inicialmente aparece como opaco às determinações de sentido. Tais colocações devem
ser levadas em conta para compreendermos melhor a processualidade própria à
totalidade hegeliana. Colocações que o próprio Adorno reconhece sua pertinência ao
afirmar:

Por mais que nada possa ser predicado de um particular sem determinidade e,
com isso, sem universalidade, o momento de algo particular, opaco, com o
qual essa predicação se relaciona e sobre o qual ela se apóia, não perece. Ele
se mantém em meio à constelação; senão a dialética acabaria por hipostasiar a
mediação sem conservar os momentos da imediaticidade, como aliás Hegel
perspicazmente o queria342.

Um “aliás” bastante sugestivo.

339 Hegel definiu o julgamento infinito como uma relação entre termos sem
relação: “Ele deve ser um julgamento, conter uma relação entre sujeito e
predicado, mas tal relação, ao mesmo tempo, não pode ser” (HEGEL, Science de
la logique III, p. 123). No entanto: “o julgamento infinito, como infinito, seria a
realização da vida incluindo-se (erfassenden) a si mesmo” (HEGEL, PhG, p.233)
340 HEGEL, Fenomenologia II, p. 209.
341 HEGEL, Science de la logique III, op.cit, p. 307
342 ADORNO, Dialética negativa, p. 273
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 12
Tempo histórico e tempo musical em Adorno

Esta é a última aula de nosso curso. Durante este semestre, procurei fornecer
chaves de leitura que poderiam nos orientar na recompreensão da experiência
dialética a partir de Hegel. Na verdade, este curso foi a tentativa de elaborar uma
questão simples apenas em aparência, a saber, em que as “dialéticas” que conhecemos
no começo do século XIX, em meados do século XIX e em meados do século XX
participam de uma partilha tensa e produtiva de uma mesma experiência de
pensamento? Em que tais dialéticas se aproximam, qual o sentido em insistir em tais
proximidades? Por que não seria melhor selar o diagnóstico da descontinuidade e do
distanciamento?
Tais perguntas foram colocadas já em nossa primeira aula a fim de permitir a
defesa de uma hipótese fundamental de trabalho. Ela insistia que a exploração de
linhas de continuidade entre dialética hegeliana, dialética marxista e dialética negativa
era possível porque a dialética hegeliana seria a dialética necessária para as
possibilidades históricas da experiência no início do século XIX, assim como a
dialética marxista o seria para o final do século XIX e a dialética adorniana o seria
para meados do século XX. Como uma ontologia cujo sistema de posições e
pressuposições modifica-se a partir de configurações históricas determinadas, sem
com isto modificar sua compreensão estrutural da processualidade contínua do
existente, ou seja, como “ontologia em situação”, a dialética reorienta-se
periodicamente em um movimento que leva em conta as transformações de suas
situações históricas. O que não poderia ser diferente para um pensamento que mesmo
nunca aceitando distinções estritas entre ontológico e ôntico, nunca abriu mão da
potencialidade crítica da verdade em relação ao campo de experiências entificado pelo
senso comum. A crítica se mede a partir das configurações historicamente
determinadas de bloqueio.
Neste sentido, falar em “ontologia em situação” equivaleria a falar de uma
ontologia que seja o campo de exposição do processo de crítica das próprias
categorias ontológicas produzidas por uma situação sócio-histórica, como ser,
essência, identidade, diferença, entre tantas outras. Por isto que podemos dizer, por
exemplo, sobre Hegel: “a lógica hegeliana é a ideia metódica, que se fundamenta, da
unidade entre crítica e apresentação da metafísica”343. Ou seja, ela é ao mesmo tempo
a apresentação de categorias da metafísica e a crítica de sua insuficiência. Uma
metafísica paradoxal que se realiza como crítica das categorias metafísicas ou, ainda,
como explicitação de significações em seu ponto de esgotamento. Vimos este ponto
através de um exemplo privilegiado, a saber, a maneira com que a dialética, de Hegel
a Adorno, auto-compreende-se como discurso de crítica à categoria fundamental da
ontologia: a categoria de ser.
No entanto, contrariamente ao que muitas vezes se defendeu, a dialética não é
apenas o movimento de dissolução das categorias da ontologia. Esta crítica que
organiza as categorias ontológicas a partir de seu esgotamento, de suas contradições
internas, ou seja, de sua incapacidade em abarcar o campo das experiências a respeito

343 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen
Logik, Frankfurt: Surhkamp, 1994, p. 16
das quais ela se propunha abarcar, não nos leva necessariamente a uma crítica geral da
ontologia. Ela nos leva, paradoxalmente, a uma certa ontologização da negatividade
da crítica, isto no sentido de compreender o movimento contínuo de dissolução da
estabilidade formal do sistema de ideias próprio a situações sócio-histórica
determinadas como sendo a própria manifestação das “formas gerais de movimento” a
respeito das quais fala Marx em seu reconhecimento de filiação a Hegel. Tal
movimento é, de certa forma, ontologizado, o que dá à dialética sua peculiar pulsação
entre ceticismo desenfreado e compreensão de suas dissoluções como processos
racionalmente orientados não em direção a um telos finalista, como muitas vezes se
afirmou, mas em direção a um modelo anti-predicativo de determinação que tentei
apresentar quando foi questão da discussão a respeito do conceito de sujeito em
Hegel, em Marx (através da noção de proletariado) e de Adorno. Ou seja, a
positividade da dialética nunca esteve ligado à orientações normativas
teleologicamente asseguradas, mas a compreensão da estrutura de processualidades
abertas.
Este modelo de leitura tem uma função importante para a interpretação do
pensamento de Theodor Adorno. Como vimos, não foram poucos os comentadores
que procuraram ver, na dialética negativa, uma certa forma de pensamento da aporia.
A leitura mais corrente vê a dialética negativa como uma certa forma de “amputação”
da dialética hegeliana. Como se a dialética negativa fosse uma dialética amputada do
momento positivo-racional de síntese. Amputação resultante, principalmente, da
pretensa liberação da negação determinada de sua função estruturadora no interior da
noção hegeliana de totalidade. Pois, em Hegel, a negação determinada seria, ao menos
segundo esta perspectiva, o movimento de constituição de relações entre conteúdos da
experiência tendo em vista a produção de uma totalidade acessível ao saber da
consciência. Ao passar de um conteúdo da experiência a outro através de negações
determinadas, compreendendo com isto que o resultado das negações não é a
anulação do conteúdo anterior mas a revelação de como ambos os conteúdos estavam
em profunda relação de interdependência, a consciência teria as condições de fazer a
experiência de como a determinação de um conteúdo só é completamente possível
através da atualização da rede de negações que o define. Ou seja, ela compreenderia o
verdadeiro sentido do adagio spinozista: Omni determinatio est negatio344. Tal
atualização da rede de negações que determinam conteúdos da experiência seria
exatamente o que Hegel compreenderia por posição da totalidade do saber. Uma
posição que, por sua vez, determinaria a negatividade como astúcia que visa mostrar o
caráter limitado dos momentos parciais da experiência, pois tais parcialidades seriam
superadas pelo desvelamento da funcionalidade de cada momento em uma visão
acessível do todo.
Já a dialética negativa adorniana, enquanto “prática ad hoc da negação
determinada”345, acabaria na aporia de uma crítica totalizante da razão incapaz de se
orientar a partir de um horizonte concreto de reconciliação, beirando assim o niilismo
desenfreado. Isto quando ela não for acusada de simplesmente não ser dialética. Basta
lembrarmos, a este respeito, do comentário de Robert Pippin: “ A ´dialética negativa´
344 Comentadores como Robert Brandom compreenderam claramente este ponto
mas, devido a uma apreensão não-dialética da negação determinada como
simples relação de oposição, eles tendem a ver, no força determinante da
negação hegeliana, apenas uma figura mais rebuscada da incompatibilidade
material (Ver BRANDOM, Robert; Tales of the mighty death, Harvard University
Press, 2002, p. 180)
345 HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 183
simplesmente não é dialética, mas uma filosofia da finitude e uma demanda para o
reconhecimento de tal finitude. O ´não-idêntico´ desempenha um papel retórico
estranhamente semelhante à identificação kantiana da Ding an sich contra os
idealistas posteriores”346. A referência a Kant não é extemporânea porque,
aparentemente, seria possível ver a dialética transcendental como uma espécie de
dialética negativa, já que ela também é uma crítica da totalidade, mas através da
exposição das ilusões produzidas pelo uso transcendente das idéias transcendentais. O
que talvez nos explique porque esta leitura da dialética negativa como uma filosofia
da finitude de ares kantianos será encontrada em várias tradições de interpretação.
Lembremos, por exemplo, de Alain Badiou, para quem: “o que Adorno retém de Kant
é a irredutibilidade da experiência, a impossibilidade de dissolver a experiência na
pura atividade do conceito. Subsiste um elemento totalmente irredutível de limitação
passiva, exatamente como em Kant a passividade, que é a prática do sensível, é
irredutível”347.
No entanto, o que se desprende do texto adorniano é algo totalmente diferente.
Como deveria ser diferente o pensamento de alguém que afirma, claramente: “a
reflexão filosófica assegura-se do não-conceitual no conceito” 348, ou seja, ela integra o
não-conceitual como momento do desenvolvimento do conceito. Há de se notar, por
exemplo, que não existe conceito da dialética hegeliana que Adorno simplesmente
abandone. Totalidade, mediação, síntese, Espírito (compreendido em chave não-
metafísica como trabalho social): nenhum destes conceitos será objeto de uma
negação simples por parte de Adorno. Levando isto em conta, podemos dizer que a
dialética negativa de Adorno é o resultado não exatamente do abandono de certos
conceitos e processos da dialética hegeliana, ou ainda, da amputação desta. Na
verdade, a dialética negativa será o resultado de um conjunto de operações de
deslocamento no sistema de posições e pressuposições da dialética hegeliana. Isto
pode nos explicar esta peculiar operação na qual vemos todos os conceitos hegelianos
em operação na dialética adorniana, mas sem poder mais serem postos tais como eles
eram postos por Hegel, sem poder serem atualizado no interior das situações pensadas
por Hegel. Pois Adorno sabe que, em certas situações, pôr um conceito de maneira
direta é a melhor forma de anulá-lo. Deixá-lo em pressuposição é, às vezes, a melhor
maneira de reconstruir sua força crítica. Como ele dirá:

Mesmo o pensamento que se opõe à realidade ao sustentar a possibilidade


sempre derrotada, só o faz na medida em que compreende a possibilidade sob
o ponto de vista de sua realização, como possibilidade da realização, algo em
direção a qual a própria realidade, mesmo que fraca, estende seus tentáculos349.

Ou seja, a possibilidade que a crítica pressupõe como seu solo de orientação


para a recusa do existente não é “mera possibilidade”, mas uma espécie de latência do
existente. A negatividade da possibilidade em relação ao efetivo é a processualidade
que coloca o efetivo em movimento. Neste sentido, é típico de Adorno a consciência
de que, muitas vezes, não se deve tentar explicitar o que está em latência. Deslocar o
sistema de posições e pressuposições da dialética hegeliana implica recusar pôr
346 PIPPIN, Robert; “Negative ethics: Adorno on the falsehood of bourgeois life”
In: The persistence of subjectivity: on the Kantian aftermath, Cambridge
University Press, 2005, p. 116.
347 BADIOU, Alain; « La dialectique negative d’Adorno » In : Cinq leçons sur le
‘cas’ Wagner, Paris : Nous, 2010, p. 65
348 ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 18
349 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
reconciliações que Hegel julgava já maduras para serem enunciadas. Crença vinda,
entre outras coisas, da defesa de que chegara a hora de confiar na força de
explicitação da linguagem filosófica. Esta confiança é talvez o verdadeiro ponto
fundamental de diferença entre Hegel e Adorno.
Se aceitarmos a interpretação que proponho, será necessário afirmar que os
conceitos ligados ao momento “positivo-racional” da dialética não desaparecerão do
pensamento adorniano. Eles deverão permanecer em pressuposição, isto a fim de
recusar as conciliações em circulação na vida social contemporânea e, com a pressão
do irreconciliável, abrir caminho para o advento de outra reconciliação. Pois, e este
ponto é de suma importância: “a antecipação filosófica da reconciliação é um atentado
contra a conciliação real”350, já que, ao pôr abstratamente a reconciliação, a
especulação filosófica, no fundo e de maneira insidiosa, apoia-se nas figuras concretas
de reconciliação atualmente presentes na vida social. O que, segundo Adorno, deixa a
reflexão indefesa para evitar a obrigação de justificar o curso atual do mundo e
perpetuar falsas reconciliações.

De onde vem as figuras da reconciliação?

Analisemos agora o destino da temática hegeliana da história como


reconciliação. Normalmente, Adorno é descrito como um dialético que se desespera
da crença hegeliana na história enquanto discurso da realização institucional
progressiva da liberdade ou da crença marxista em um processo revolucionário em
marcha. Contrariamente a Hegel, impulsionado pelos novos horizontes abertos pela
Revolução Francesa, Adorno teria em mente, de maneira ainda muito viva, fatos como
a adesão de parte significativa do proletariado alemão ao nazismo e catástrofes como
o holocausto judeu. De fato, não são poucos aqueles que dirão que a filosofia de
Adorno é marcada, sobretudo, por Auschwitz, isto a ponto dela estabelecer como
imperativo categórico para a contemporaneidade: “tudo fazer para que Auschwitz
nunca mais ocorra”. Um dos pensadores mais recentes a insistir neste ponto foi Alain
Badiou, para quem, em Adorno: “Trata-se de saber quais são as redes e condições de
possibilidade de um pensamento após Auschwitz, ou seja, de um pensamento que, em
vista do que foi Auschwitz, não seja um pensamento obsceno, mas antes um
pensamento cuja dignidade seria preservada devido a razão dele ser um pensamento
após Auschwitz”351. Badiou afirma isto para salientar o pretenso caráter
eminentemente negativo e fatalista da reflexão adorniana sobre a história. Pois
Adorno seria incapaz de compreender que nenhuma filosofia pode ser solidária
apenas de um acontecimento meramente negativo (evitar algo, impedir que algo
aconteça novamente etc.). Toda verdadeira filosofia traria também consigo a
exigência de pensar a partir de um acontecimento portador de promessas
instauradoras, o que não poderíamos encontrar em Adorno.
Mas analisemos melhor a posição adorniana. Lembremos, inicialmente, como
Adorno não chega a simplesmente desqualificar a necessidade de um discurso da
história universal em prol, por exemplo, da multiplicidade irredutível de histórias sem
perspectiva teleológica alguma352. Ao criticar o conceito hegeliano de Espírito do
mundo, Adorno mira o pretenso caráter afirmativo da filosofia hegeliana da história,
que parece transmutar a violência contra o particular em uma estratégia de afirmação

350 Idem
351 BADIOU, op. cit., p. 47
352 Como podemos ver, por exemplo, em RICOEUR, Paul; História, memória,
esquecimento,
da necessidade de realização do universal através da aceitação de uma teoria do fato
consumado. Para tanto, ele precisa passar por cima e não tirar as consequências da
idéia hegeliana de que, na história: “o interesse particular da paixão é inseparável da
ação geral”. Da mesma forma, ele não deve relevar o fato de uma filosofia da história
que simplesmente “despacharia tudo o que é individual”353 não poder dar tanto espaço
para a importância da ação individual de “grandes homens”, como vemos na filosofia
da história hegeliana, nem afirmar que o lado subjetivo das ações tem “um direito
infinito a ser satisfeito”. Defender a possibilidade de transmutação do individual no
interior da história não equivale a uma negação simples do indivíduo 354. O que nos
permite perguntar se as injunções de Adorno contra o destino do individual em Hegel
não estariam melhor adaptadas para descrever as interpretações feitas por Lukàcs do
mesmo problema. De toda forma, Adorno sabe que o conceito de Espírito do mundo
não pode ser negado de maneira simples:

A descontinuidade e a história universal precisam ser pensadas juntas. Riscar


esta história universal como resíduo de uma crença metafísica confirmaria
intelectualmente a mera facticidade enquanto a única coisa a ser conhecida e
por isto aceita, do mesmo modo que a soberania, que subordinava os fatos à
marcha triunfal do espírito uno, a ratificara antes como expressão desta
história. A história universal precisa ser construída e negada355.

Ela deve ser construída enquanto perspectiva crítica que permite nos livrarmos
da tendência a simplesmente confirmar a mera facticidade. Encontramos assim mais
uma vez o receio adorniano de uma reflexão sem recurso algum à totalidade se
transformar na afirmação positivista da ilusão do dado bruto. Por outro lado, a história
universal e, com isto, o Espírito do mundo devem ser negados a fim de salientar
como, até agora, a unidade entre os vários momentos históricos se deixa ler apenas
como aprofundamento progressivo dos mecanismos de dominação da natureza e, por
fim, de dominação da natureza interior. Isto leva Adorno a afirmar: “não há nenhuma
história universal que conduza do selvagem à humanidade. Mas há certamente uma
que conduza da atiradeira à bomba atômica”356. É certamente uma consciência desta
natureza que levará Adorno a definir o Espírito do mundo como catástrofe
permanente.
Mas há de se colocar alguns parênteses neste aparente niilismo para o qual a
universalidade do processo histórico seria apenas a perspectiva de denúncia de uma
falsa totalidade cada vez mais inexorável. A definição do Espírito do mundo como
catástrofe permanente pressupõe um sofrimento social advindo da consciência de algo
ainda não-realizado na história. Se os sujeitos não medissem a efetividade com a
promessa do que não se realizou, dificilmente a configuração do presente poderia ser
vivenciada como catastrófica. Neste sentido, a estratégia adorniana baseia-se na
pressuposição de uma experiência histórica em latência, que insiste como uma carta
não entregue. Notemos, a este respeito, que nem sempre o Espírito do mundo aparece
a Adorno como a consciência da catástrofe. Levemos a sério, por exemplo, a seguinte
afirmação:

353 ADORNO, Minima moralia, São Paulo: Atica, 1993, p. 9


354 Para uma crítica hegeliana da crítica adorniana ao destino do individuo em
Hegel, ver SOUCHE-DAGUES, Denise; Logique et politique hégélienne, Paris: Vrin,
1995
355 ADORNO, Dialética negative, op. cit., p. 266
356 Idem
Nas fases em que o espírito do mundo, a totalidade, se obscurece, mesmo as
pessoas notoriamente dotadas não conseguem se tornar o que são; em fases
favoráveis, tal como o período durante e logo após a Revolução Francesa,
indivíduos medianos foram elevados muito acima de si mesmos357.

Note-se aqui (e nisto não poderíamos ser mais hegelianos) que a história
universal, quando se realiza como expressão do Espírito do mundo, eleva os
indivíduos acima de si mesmos por abrir espaço a uma ação social que não é
meramente individual, mas promessa de realização de uma universalidade capaz de
fazer a institucionalização da liberdade avançar. O exemplo da Revolução Francesa
não poderia ser mais evidente neste sentido. Se assim for, então não devemos nos
perguntar se é lícito ou não pressupor, em Adorno, algo como o Espírito do mundo.
Ele precisa estar pressuposto para dar à crítica uma orientação normativa. Melhor
seria se perguntar porque toda tentativa atual de afirmá-lo só pode obscurecê-lo.
Neste ponto, Adorno age como que maprendeu claramente a lição de Freud,
referência maior para a antropologia filosófica que anima todas suas considerações
sobre a história universal desde o primeiro capítulo da Dialética do Esclarecimento.
Pois Freud nos lembra como o processo de desenvolvimento social e maturação
individual é pago com a constituição de um passado recalcado no qual encontramos as
marcas da brutalidade da dinâmica de racionalização social. Não é outro o tema geral
de O mal-estar na civilização. A incapacidade de rememorar tal passado, integrando-o
em um novo arranjo do presente, é fonte maior de patologia e sofrimento. Na verdade,
patologia de quem luta para não ouvir a pressão de uma vida racional que ainda não se
realizou, e que só pode se realizar se souber como integrar aquilo que ficou para trás
no processo de racionalização social.
Assim, a impossibilidade de afirmar a história como horizonte de realização
institucional progressiva da liberdade não aparece como expressão de alguma forma
de niilismo. Ela é condição para que o que ainda não encontrou espaço no interior de
uma história que impôs certa figura do humano e da humanidade, ou seja, que
constituiu uma antropologia determinada, possa ser reconhecido em sua potência de
transformação. É da astúcia do Espírito do mundo, reconstruído pela dialética
negativa, se voltar para o que ainda não tem história a fim permitir à história
continuar.

A reconciliação musical

Aceita tal interpretação, devemos nos perguntar se Adorno acredita haver


algum espaço na vida social onde possa ser posta uma experiência da totalidade como
processualidade contínua, força que transcende a identidade estática dos particulares,
e não como determinação normativa forte e sistema meta-estável. Se quisermos uma
resposta positiva a tal questão, devemos voltar os olhos em direção à estética musical.
O que não deveria nos estranhar, já que Adorno afirmará que a apreensão da
totalidade como esta identidade em si mesma mediada pela não-identidade é uma lei
da forma artística transposta para a filosofia.
Para alguns, tal recurso à estética musical pode parecer extemporâneo. No
entanto, Adorno nunca partilhou da desqualificação filosófica da práxis artística ou de
sua compreensão como mera esfera “compensatória” para uma época incapaz de levar
a cabo grandes transformações estruturais. Para ele, tratava-se, ao contrário, de uma
esfera fundamental da práxis social, com forte capacidade indutiva para o campo da
357 Idem, p. 255
moral, da teoria do conhecimento e da política. Ou seja, a filosofia adorniana exige
uma compreensão mais alargada de práxis social, na qual a produção estética possa
ser reconhecida em sua força de transformação das formas de vida; o que, é fato,
implica virar o pensamento hegeliano, com seu diagnóstico do fim da arte como
veículo do Espírito, simplesmente de cabeça para baixo.
A este respeito, lembremos como a Teoria estética adorniana não temia
afirmar que: “a problemática da teoria do conhecimento retorna (wiederkehren)
imediatamente na estética”358. Ela vai ainda mais longe, na medida em que assevera
que a formalização estética deve ser compreendida com “correção do conhecimento
conceitual”, já que a “arte é racionalidade que critica a racionalidade sem dela se
esquivar”359. Pois: “Com o progresso da razão, apenas as obras de arte autênticas
conseguiram evitar a simples imitação do que já existe” 360. Um exemplo do gênero de
“correção” que a arte pode nos fornecer: “A grosseria do pensamento é a incapacidade
de operar diferenciações no interior da coisa, e a diferenciação é tanto uma categoria
estética quanto uma categoria do conhecimento”361.
Este regime de recurso filosófico à arte será uma constante na experiência
intelectual de Adorno. Vemos, aqui, que a arte não é utilizada como álibi para o
abandono do conceito em prol de alguma espécie de imanência com domínios pré-
conceituais da intuição, de afinidade pré-reflexiva entre sujeito e natureza ou de
hipóstase do inefável, do arcaico e do originário. Ao contrário, tal recurso privilegiado
quer dizer simplesmente que precisamos sustentar novos modos de formalização e
ordenação que não sejam mais assentados na repressão da experiência de não-
identidade. Modos que, em certas situações históricas, encontram sua primeira
manifestação na arte, isto para depois desdobrarem-se em outras esferas da vida
social. Foi esta a aposta que animou a experiência intelectual de Adorno: pensar a
partir das promessas de uma nova ordem trazida pelo setor mais avançado da
produção artística de seu tempo. Digamos que este foi o solo positivo de sua dialética
negativa.
Neste sentido, não é desprovido de interesse lembrar como Hegel aparece no
horizonte da estética musical de Adorno, mesmo que a estética hegeliana, devido ao
seu anti-romantismo declarado, não leve a música em muito boa conta362. Por
exemplo, ao insistir nas comparações entre os processos construtivos de Beethoven e
o projeto da Ciência da Lógica, Adorno acaba por transformar Hegel em uma
referência importante para a reflexão sobre a natureza da totalidade funcional das
obras musicais. É por ter o problema da totalidade hegeliana em vista que Adorno
compreenderá a função da forma estética, tão bem realizada por Beethoven, como a:
“mediação enquanto relação das partes entre si e relação à totalidade, assim que
enquanto completa elaboração (Durchbildung) de detalhes”363. Ele será ainda mais
claro quando definir a função da forma como “síntese musical” 364 ou quando ver na
forma musical : “a totalidade na qual um encadeamento (Zusammenhang) musical
adquire o caráter de autenticidade”365.

358 ADORNO, Theodor; ÄsthetischeTheorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1972, p. 493


359idem, p. 87.
360 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 34
361 ADORNO, Theodor; ibidem, p. 344
362 Para a relação entre Hegel e a música ver, principalmente, DAHLHAUS, Carl;
Die Idee der absoluten Musik,
363 Idem, Aestetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 216
364 Idem, O fetichismo na música e a regressão da audição,p. 167
365 Idem, Quasi una fantasia, p.254.
No entanto, Adorno insiste que a totalidade funcional das obras musicais não
pode ser pensada mais como subsunção dos instantes particulares à estruturas formais
de base. Em um texto tardio ele falará, por exemplo, da constituição de uma noção de
“trabalho temático” não mais vinculada a noção clássica de temas claramente
identificados e trabalhados através de repetições e modulações. Este trabalho temático
de uma outra ordem seria o resultado de:

Complexos de relativa independência que formam devido a sua reunião, uma


unidade que, graças a seu caráter e a maneira com que se relacionam uns aos
outros, apresenta-se como necessário, sem que motivos dados reapareçam
através da obra sob uma forma idêntica ou variada366.

Ou seja, o que Adorno procura aqui é uma noção de síntese “não-totalizante” e


de unidade que seja capaz de conservar a heterogeneidade dos elementos que ela
compõe. Isto fica ainda mais claro quando afirmar, a respeito de seu conceito
programático de música informal: “os impulsos e relações de uma música informal
não pressupõe nenhuma regra a qual ela seria submetida a priori, nem mesmo um
princípio como o do tematismo”367. Pois só há escrita temática (no sentido que Adorno
quer defender) lá onde o todo se forma a partir de elementos independentes que não se
relacionariam entre si a priori, mas através de um “devir” no qual o todo é resultado
de uma processualidade contínua. Trata-se pois de conservar as estrutura de ligação
entre elementos mas, aplicando-a a elementos que permanecem heterogêneos. Adorno
tenta se explicar melhor servindo-se, e isto não deixa de soar surpreendente, de Hegel:

A idéia de Hegel, segunda a qual, mesmo se toda imediaticidade é mediada,


dependente de seu contrário, o conceito mesmo de um elemento imediato,
como fruto de um devir, de um engendramento, não desaparece simplesmente
na mediação – esta idéia é, sem dúvida fecunda para a teoria musical. No
entanto, tal elemento de imediaticidade, em música, não seria o som em si
mesmo, mas a figura do detalhe apreendido isoladamente lá onde ele aparece,
como uma unidade relativamente plástica, distinta de todo contraste e de todo
desenvolvimento368.

Uma afirmação como esta demonstra, primeiro, que Adorno reconhece como a
totalidade em Hegel não se confunde com uma sistematicidade absoluta. Ele sabe que
o momento imediato não desaparece simplesmente na mediação, o que não poderia
ser diferente já que a relação entre o conceito e o não-conceitual é decisiva tanto no
conceito adorniana quanto no hegeliano de mediação. O que Adorno salienta outras
vezes, ao afirmar, por exemplo, que:

A expansão ilimitada do sujeito ao Espírito absoluto em Hegel tem por


consequência que, como um momento inerente a esse Espírito, não apenas o
sujeito mas também o objeto aparecem de modo substancial e com toda a
reivindicação de seu próprio ser. Assim, a tão admirada riqueza material de
Hegel é ela própria função do pensamento especulativo369.

366idem, p. 314
367 Idem, p. 314
368 Idem, p. 319
369 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
Segundo, trata-se de afirmar que tal concepção da totalidade poderia se
atualizar na experiência da forma musical. Experiência vinculada à maneira com que
o detalhe musical, em certas obras, não é apenas momento de uma relação de
contraste (do tipo antecedente/conseqüente), elemento na sequência inexorável de um
desenvolvimento motívico ou ainda momento de um pensamento serial alargado.
Neste sentido, apreender o detalhe musical como uma “unidade relativamente
plástica” significa procurar o motor de seu desenvolvimento dinâmico não na
submissão a um esquema (seja ele a noção de série ou às constantes formais da
linguagem musical tonal), mas no conflito irredutível do material com a forma.
Conflito que encontra sua forma primordial no estilo tardio de Beethoven.
Desta maneira, tudo se passa como se o pensamento se servisse da estética
para pensar aquilo que lhe é interditado em outras esferas da vida social. Através da
reflexão sobre a forma musical, problemas filosóficos de forte capacidade de indução
de transformações sociais, como a possibilidade de uma totalidade que não seja
simplesmente a afirmação autárquica do princípio de identidade, são recuperados. O
que não deve nos surpreender, já que:

A liberação da forma, como quer toda arte autenticamente genuína, é acima de


tudo a marca da liberação da sociedade, pois a forma, a coesão estética
(ästhetische Zusammenhag) de todos singulares (Einzelnen) representa na obra
de arte as relações sociais; por isto, o estabelecido se escandaliza com a forma
liberada (befreite Form)370.

Há de se lembrar disto quando for questão de avaliar as relações entre Adorno


e Hegel, assim como seus respectivos conceitos de dialética. Não é possível
compreende-la em toda sua extensão amputando o sentido do recurso filosófico à
estética, com suas referencias estratégicas a Hegel, no interior da obra adorniana. De
toda forma, que uma figura fundamental da reconciliação desloque-se,
paradoxalmente, para esta arte que parece recusar toda conciliação possível não deve
nos estranhar.

Contra a comunidade

Um exemplo privilegiado do procedimento de Beethoven é sua Abertura Coriolano,


composta na mesma época que a Quinta sinfonia. A obra é uma abertura para a versão
escrita por Heinrich Joseph von Collin para a peça “Coriolano”, de Shakespeare. A
peça de Shakespeare foca-se no desterro do general romano Coriolano, herói romano
devido a sua bravura no comando das tropas contra os Volscos.
Coriolano é a expressão dos ideais aristocratas de honra, bravura e arrogância.
Por isto, sua relação com as demandas populares e com os tribunos sempre foi de
completa incompreensão. Ao ser nomeado cônsul romano pelo senado e pedir o voto
do povo, Coriolano mostra toda sua inabilidade, conseguindo despertar a ira popular e
ser banido de Roma. Ou seja, Coriolano é, acima de tudo, aquele que não sabe como
falar com o povo, ele é aquele que simplesmente não sabe como se expressar.
Na condição de banido, ele acaba por se aliar aos antigos inimigos a fim de
marchar sobre a cidade. Às portas de Roma sitiada a indefesa, Coriolano prepara-se
para o ataque final quando sua mãe e esposa aparecem rogando-lhe que abandone seu
ódio e não invada a cidade. Tomado de tristeza, Coriolano ouve as mulheres e
abandona seus planos, o que lhe levará à morte pelas mãos dos Volscos.
370 ADORNO, Theodor; Ästhetische Theorie, Frankfurt : Suhrkamp, 1972, p. 379
Ao adaptar a peça de Shakespeare, Collin faz duas mudanças principais.
Primeiro, ele atenua o aristocratismo da peça, retirando muitos dos momentos no qual
o desprezo pela pretensa inconstância e pela irracionalidade da opinião popular são
evidentes. Mas, principalmente, o Coriolano de Collin se suicida, deixando mais clara
sua dimensão de herói trágico. Ele é o homem sem comunidade, sem lugar, cuja
certeza de si o exila do contato com os outros homens. Personagem que representa
com clareza a tensão da individualidade moderna nascente com sua potência de
incomunicabilidade, com sua expressão assombrada pela indeterminação. Homem só
capaz de parar diante do objeto de desejo em vias de dissolução. Assim, ao escolher
transformar a morte de Coriolano em suicídio, Collin permite a exploração da
consciência da experiência moderna da desorientação diante da tentativa de ocupar
um lugar marcado pelo desterro.
A composição de Beethoven dá forma à estrutura do conflito já na própria
construção da ideia musical. Pois a ideia musical, exposta logo nos primeiros acordes,
é baseada nas modulações possíveis de uma relação de polaridade e conflito entre dois
grupos de notas. Tal polaridade irá estruturar praticamente toda a música, aparecendo
como elemento construtor interno aos motivos (como podemos ver na partitura em
anexo). Já o motivo que aparece nos compasso 15 a 19 demonstra claramente um
procedimento no qual a polaridade opositiva entre duas notas serve de base
construtiva. Tal polaridade nunca se resolve, mas é simplesmente cortada e suspensa
antes de se completar (como no final deste primeiro motivo) ou aumenta por
acumulação e intensidade. Ela é o melhor exemplo de como: “em Beethoven, ideias
formais e detalhes melódicos vem à existência simultaneamente; o motivo singular é
relativo ao todo. Ao contrário, no final do século XIX a ideia melódica funciona como
um motivo no sentido literal da palavra, colocando a música em movimento e
providenciando a substância de desenvolvimento na qual o tema em si foi
elaborado”371. No caso da Abertura Coriolano, podemos dizer que o motivo é a
própria ideia musical.
Esta permanência extensiva da ideia musical permite integrar acontecimentos
que poderiam ser compreendidos como negações radicais da funcionalidade da obra.
Um exemplo maior encontra-se na forma com que a polaridade dinâmica entre notas
se transforma em polaridade conflitual entre motivos e temas. A peça toda é
atravessada pelo antagonismo entre os motivos, associados a Coriolano e organizados
basicamente através de polaridades entre duas notas e um tema melódico sinuoso
associada às vozes femininas da mãe e da mulher. A primeira apresentação do motivo,
pelo primeiro grupo de violinos e pelo grupo de violas, é na tônica de dó menor. A
segunda é sob uma modulação para a tônica de si bemol menor. Não por acaso a
construção da melodia feminina é baseada em um acorde perfeito de dó maior quando
tocada pelos violinos e em um acorde perfeito de si maior quando tocada pelos
clarinetes. A ideia de contraposição e distensão é evidente, embora não seja possível
dizer que exista aí alguma organização baseada, por exemplo, no esquema
antecedente-consequente ou mesmo em algum princípio de transição. Poderíamos
pensar em uma relação de contraste, mas tal contraste não segue nenhuma forma de
desenvolvimento orgânico. Em certos momentos, ele opera por simples justaposição
ou se serve de longas pausas e suspensão da dinâmica para a melodia “feminina” ser
reapresentada. É possível dizer que a peça se move por antíteses, já que os momentos,
tomados individualmente, parecem contradizer uns aos outros. Ou seja, tomados
isoladamente, cada um dos momentos musicais contradiz o que lhe segue. Esse
caráter irresoluto do conflito chega até o final da peça, onde a transposição musical da
371 DAHLHAUS, Between romanticism and modernism, p. 42
ideia do suicídio de Coriolano ganha forma de um final sem superação, música que
simplesmente dissolve sem cadência conclusiva ou promessa de reconciliação
teleológica. Ela não se resolve, ela simplesmente para.
Nesse ponto, encontramos uma ideia fundamental. A impossibilidade de
resolução do conflito, a contínua luta contra a organicidade, não nos leva, como
poderíamos inicialmente esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a
processualidade da ideia já fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto
central: a contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de
processos visíveis de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela
relação de cada momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em atualizações
contraditórias, sem com isto perder sua univocidade. Pois ela desenvolve, ao mesmo
tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos e a univocidade de sua
processualidade infinita que absorve a multiplicidade das determinações.
Mas se a ideia musical está, no caso de nossa obra, ao mesmo tempo na voz de
Coriolano e na voz de suas mulheres, se ela está, ao mesmo tempo, no
reconhecimento da individualidade expulsa da comunidade e na voz da comunidade
que pede para ser poupada é porque a ideia expressa a inexistência de um solo
comum, na efetividade, no qual essas duas vozes poderiam não entrar em contradição.
Por isto, ela só pode aparecer como o que constitui os temas e motivos e o que os
dissolve em um puro devir que expõe exatamente a fragilidade do enraizamento de
todos os momentos. Tanto a comunidade quanto a individualidade são momentos a
serem dissolvidos. Em Abertura Coriolano, Beethoven mostra de forma clara como a
essência do que constitui as vozes já é o que as dissolve como momentos de um devir.
De certa forma, essa é uma interpretação que fundamenta boa parte da
compreensão feita por Theodor Adorno a respeito de Beethoven. Tal compreensão
parte da defesa de que a unidade da obra é fornecida pela exploração sistemática do
caráter da forma como processo. Tomemos, por exemplo, uma afirmação a respeito da
conhecida comparação adorniana entre Beethoven e Hegel:

“A realização de Beethoven encontra-se no fato de que em sua obra – e


apenas nela – o todo nunca é externo ao particular, mas apenas emerge de seu
movimento, ou melhor, o todo é este movimento. Em Beethoven não há
medição entre temas mas, como em Hegel, o todo como puro devir é a
mediação concreta”372.

Esta é a maneira de dizer que, em Beethoven a ideia musical é o que constrói


uma noção de totalidade dinâmica. Ideia que, pela sua clareza na apresentação (e por
nunca quebrar algumas estruturas elementares de base, como, por exemplo, a
polaridade entre tônica e dominante), permite ao ouvinte conservar a percepção da
processualidade interna da forma, mesmo à despeito da presença de tudo aquilo que, à
época, seria visto como índices de uma forma em desagregação, em flerte contínuo
com o informe. Por isto, não há exatamente mediação entre temas, mas um devir
contínuo, que nunca para por parecer ser capaz de se desdobrar em tudo.

Poi a poi di nuovo vivente

Dentre vários exemplos possíveis de estilo tardio, poderíamos analisar o


adagio da Sonata para piano, n. 31, opus 110, com sua articulação entre um arioso e
uma fuga. Vários elementos nesta peça surpreendem o ouvinte de Beethoven.
372 ADORNO, Beethoven, p. 24
Primeiro, contrariamente à Abertura Coriolano e à Quinta sinfonia, a ideia musical
não é claramente apresentada. Ao contrário, os sete primeiros compassos introdutórios
são um dos mais impressionantes momentos de indeterminação musical na produção
do romantismo. A tonalidade é completamente oscilante. Sete compassos nos quais a
música oscila entre, ao menos, si bemol menor, sol bemol maior, mi maior e dó bemol
menor. Esta oscilação expressa o espírito de uma música em suspensão, que desenha
um motivo para terminar abruptamente em um arppegio, que suspende o
desenvolvimento para insistir de maneira obsessiva na pura repetição da mesma nota
por quase dois compassos. Quando a música de fato começar, com um arioso dolente,
ela ainda não estará na tonalidade que lhe caracteriza (lá bemol maior). A
estabilização da tonalidade só virá quando uma fuga enfim aparecer.
A introdução do adagio funciona como o anúncio da monstruosidade de uma
expressão sem gramática, que parece ter renunciado à seu lugar como motor dinâmico
da ideia musical, quebrando aparentemente a unidade que constitui a própria
especificidade da experiência musical de Beethoven. A posição da expressão nesta
situação levará a música a um movimento de profunda cisão, um pouco como vimos
no antagonismo presente na dinâmica da Abertura Coriolano. No entanto, aqui a cisão
se desenvolverá de outra forma. Com a retração da ideia musical, a obra se construirá
através da radicalização do princípio de mediação pelos extremos, na qual a tendência
à fragmentação é controlada não por uma síntese final, mas, como veremos, pela
alteração interna das formas.
Se lermos de forma dialética a relação entre o momento clássico e tardio de
Beethoven poderemos dizer que a retração da ideia abre a assunção de espaços de
indeterminação formal nas obras. Mas a retração da ideia não é sua pura e simples
anulação. Como foi ela que construiu a linguagem beethoveniana, como sua
linguagem é definida por sua capacidade em produzir totalidades processuais nas
quais identidades estão em contínua reconfiguração, algo da ideia pode permanecer
mesmo quando ela está ausente, a saber, a noção de processo, mesmo que agora
dramatizado pela retração do elemento que garantia sua unidade. Vejamos como isto
se dá no interior da sonata.
A sonata se desdobrará através de uma justaposição entre duas formas: o
arioso e a fuga. O arioso, com seu espírito entre a ária e o recitativo acompagnato,
apresenta um extenso tema melancólico, em um tempo diferente do tempo da
introdução (passamos do 4/4 para o 12/16). Ele é acompanhado por uma fuga, em
outro tempo (6/8) e tonalidade. Não há transição entre os dois materiais, um não é a
introdução do outro pois tudo que poderia funcionar como transição foi subtraído.
Sai-se do adagio do arioso ao allegro da fuga de forma completamente inesperada. O
que não poderia ser diferente já que estamos na posição de extremos: o caráter
profundamente monofônico do canto meio falado do arioso e a polifonia da fuga.
O uso da fuga guarda, por sua vez, as marcas de uma forma gasta em relação
ao estágio do material musical de então. Compor uma fuga em 1822 era revisitar um
modo de composição envelhecido, com suas regras de contraponto e transposição que
andavam na contramão da clareza harmônica e de uma certa liberdade expressiva
defendida pelo romantismo. Seria aparentemente a última coisa a fazer para quem
procura afirmar uma “subjetividade desmesurada”. Mas, à sua maneira, o segundo
movimento da sonata nos descreve o movimento de dar vida ao que parecia mera
forma convencional.
Isto fica claro na passagem da segunda exposição do arioso à segunda
exposição da fuga e ao final da sonata. Ao voltar ao arioso de forma completamente
abrupta, parando um frase ao meio, Beethoven escreve na partitura “perdendo le
forze, dolente”. Deve-se tocar o piano com o horror dos que sentem a força indo
embora. Ou seja, deve-se encontrar uma expressão que se esvanece, cuja intensidade
vai do piano ao pianíssimo, como quem faz do lamento recitado do arioso uma
procura pelo grau zero.
Notemos, no entanto, como nada disto implica suspensão efetiva da
processualidade da peça. Como dirá Adorno, as últimas obras ainda permanecem um
processo, embora ele não possa ser compreendido como desenvolvimento. Se não
temos aqui exatamente a processualidade como movimento de superação de
antagonismos através do desvelamento progressivo da força construtiva da ideia
musical, como vimos na Abertura Coriolano, temos uma outra forma, baseada na
posição do informe no interior das obras e sua transformação em motor de impulso
para o processo de reconfiguração de formas convencionais. No caso da Sonata opus
110, tal transformação ocorre através do retorno final à fuga. Ao terminar a melodia
do arioso, Beethoven apresenta uma sequência de treze acordes em ampliação de
intensidade que tem como função mimetizar um movimento de emergência. O que
nos explica porque a volta da fuga é exposta na partitura com a indicação “piu a piu di
nuovo vivente”. É no interior da segunda exposição da fuga que, de pouco a pouco, a
vida retornará.
A respeito desta sequência massiva de acordes em progressão, dirá Rosen:
“Beethoven não apenas simboliza ou representa o retorno da vida, mas nos persuade
fisicamente do processo”373. Sua análise ainda acerta ao lembrar que a reexposição da
fuga é feita utilizando as regras mais elementares: a inversão do tema da fuga, a
aumentação e a diminuição. Ou seja, a vida que retorna de pouco a pouco se serve das
normas aparentemente ultrapassadas para, sempre de pouco a pouco, mostrar como
alterá-las. Nesse processo, a sonata produz sua realização mais surpreendente.
Beethoven conserva o tema da fuga e suas transposições entre a mão esquerda e
direita, mas agora sem servir-se do contraponto, usando acompanhamentos
completamente estranhos à linguagem barroca, acompanhamentos da linguagem
musical de seu tempo. Mas como tudo deve ser feito “poi a poi” (há três indicações na
ultima parte da partitura), como não deve haver quebra na mutação das formas, elas
agora se alteram em continuidade. E nesta alteração em continuidade torna-se
possível a realização da integração entre dois tempos distintos do material musical.
Assim, a fuga ainda permanece, mas sem ser mais fuga. Ela ainda pode ser
identificável, mesmo que não haja mais o que identificar. A vida, que pouco a pouco
retorna, encontra o caminho de produzir novas formas, quebrando a descontinuidade
do tempo ao produzir-se como expressão do que já não está mais no tempo linear.
Tempo cuja manifestação não seria possível sem o descolamento radical em relação à
gramática da linguagem musical permitida pela posição, desde os primeiros
compassos, da potência do indeterminado.

373 ROSEN, Charles; Beethoven’s piano sonatas, Yale University Press, 2002, p.
240

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