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No seu curto Necropolítica, o filósofo Achille Mbembe parece descrever uma situação na
qual podemos identificar a sociedade brasileira: a colônia, argumenta ele, representa o lugar
em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei, um
lugar no qual a paz tende a assumir o rosto de uma “guerra sem fim”. As colônias são zonas
em que guerra e desordem se alternam a fim de fazer operar toda forma de violência do estado
de exceção; a colonização, portanto, é o exercício do poder soberano em nome da suposta
civilização contra a barbárie. No ensaio, Mbembe consegue articular colonialidade, racismo,
violência de Estado e crítica ao capitalismo global, unindo pontas que apareciam até então
dispersas em diferentes autores ou correntes de pensamento. É uma das características do
pensamento em forma ensaística, caminhar pelas ideias de forma mais livre, menos
colonizada pelo modo de saber do especialista. É, guardadas as imensas proporções, o gesto
que vou tentar repetir aqui.
Para isso, será fundamental no meu argumento pensar como a ideia de racismo é fundante de
um projeto colonial que está em vigor em diferentes partes do mundo e em inúmeras
configurações coloniais, e assume no Brasil características muito particulares. No centro do
racismo está a divisão entre brancos humanos e negros inumanos. A este traço perverso se
soma a intersecção entre classe, gênero, origem, local de nascimento, renda, escolaridade,
religião, lugar de moradia, fenótipos, transexualidade e formas de exercício da sexualidade, de
tal modo que o racismo produz uma forma múltipla de fazer e refazer os cortes entre quem
cabe e quem não cabe na categoria de humano.
Nas pesquisas da antropóloga Berenice Bento (UnB), essa forma de violência está sendo
chamada de necrobiopoder, dispositivo do Estado para distribuir “de forma não igualitária o
reconhecimento de humanidade”, como ela argumenta no artigo “Necrobiopoder: Quem pode
habitar o Estado-nação?”, publicado nos cadernos Pagu. No trabalho da antropóloga Adriana
Vianna (UFRJ), o dispositivo é nomeado de necrobiogovernança: “uma prática tecida nas
rotinas policiais, judiciárias, hospitalares e escolares capaz de deslocar morbidamente a
conhecida fórmula foucaultiana do “fazer viver/deixar morrer” para um “fazer morrer alguns”
e “deixar morrer outros (e outro(a)s) tanto(a)s”, como ela descreveu no dossiê da CULT “A
violência como ordem”, publicado em março de 2018. Tentando encontrar meu próprio
caminho de leitura de Mbembe e me mantendo numa interlocução com as duas antropólogas
cujos trabalhos tanto prezo, convoco mais uma autora e dois autores. A filósofa Judith Butler,
que recorre a Mbembe quando está discutindo o tema do poder colonial na guerra permanente
entre Israel e Palestina e sua articulação com o racismo de Estado; o pensador peruano Anibal
Quijano e seu conceito de colonialidade do poder, expressão criada por ele para propor que
raça e racismo são o eixo de organização do capitalismo global e das relações de poder; e o
filósofo italiano Giorgio Agamben com seu conceito de vida nua, aquela desde sempre
exposta ao direito e, portanto, à morte. Quijano, Butler e Giorgio Agamben, nessa ordem, me
ajudam a pensar as nuances do racismo à brasileira. Com a colonialidade do poder, posso
pensar o problema da separação entre vidas vivíveis e vidas matáveis; já o aparato estatal-
capital nos fornece diferentes escalas de vidas precárias vivíveis; e o aparato jurídico nos
abandona à condição de vida nua.
Se aqui eu retomar a noção de “guerra sem fim” proposta por Mbembe, talvez possa me
arriscar numa reflexão sobre como a metáfora da guerra define o Brasil desde o início da
empresa colonial europeia e se perpetua em práticas cotidianas que produzem distinção entre
aqueles que só podem viver à margem da lei e àqueles que instituem a lei a fim de instituir os
que ficarão à margem. A permanente situação de “guerra ao tráfico”, que assola as grandes
cidades brasileiras e produz mortos em combate, já está bem descrita no artigo de Suely Aires.
Se a retomo, é apenas para articular a nossa guerra com outras tantas guerras sem fim que
estabelecem o modo da política em que a soberania se exerce em nome de um certo povo,
desde que contra outro povo.
Quando Foucault inverte o aforismo militar de Carl Von Clausewitz – “A guerra é a mera
continuação da política por outros meios” – para dizer que a política é a guerra por outros
meios, dá conta de pensar processos de constituição e manutenção dos Estados-nações na
Europa, mas para enfrentar a condição colonial é preciso levar à última radicalidade a “guerra
sem fim” nas colônias, tal qual propõe Mbembe, porque é dessa guerra que se alimenta uma
divisão fundamental. O racismo se constitui na divisão entre os que são alvo da guerra e a
polícia, aqui tomada no seu sentido mais amplo como dispositivo de gestão da vida pública.
Ao pensar com Mbembe e com Butler, posso acrescentar um problema nessa concepção de
guerra: o permanente processo de precarização da vida, capaz de empurrar enormes
contingentes de população da política para a guerra, de tal modo que não seja possível existir
nenhum lugar de amparo na situação colonial. Na instabilidade, cresce o poder de mover a
linha imaginária do racismo para qualquer um, a qualquer tempo, e no limite está em jogo
quem tem ou não o direito de permanecer como raça humana.
“Muitos Estados já não podem mais reivindicar o monopólio sobre a violência e sobre os
meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre
seus limites territoriais. A própria coerção tornou-se produto do mercado. (…) Milícias
urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de
Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar.” A situação africana
descrita por Mbembe cabe no contexto brasileiro: às Forças Armadas se somam forças
policiais ligadas às três esferas de governo. No âmbito federal, a Força especial e a Polícia
Federal; nos estados, atuam as Polícias Militares, cuja função é o chamado policiamento
ostensivo; nas prefeituras, crescem as guardas municipais, cada vez mais dotadas de poder de
polícia e reivindicando uso de armas. Tudo isso sem contabilizar o contingente de segurança
privada que age oficialmente nos espaços ditos públicos e as milícias que atuam sob a lógica
do mercado informal e paramilitar, e se aliam a organizações como PCC e Comando
Vermelho. Tudo isso ecoa o diagnóstico de Mbembe: “Cada vez mais, a guerra não ocorre
mais entre exércitos de dois Estados soberanos. Ela é travada por grupos armados que agem
por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, ambos os lados
têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como
milícias”.
Restaria como questão tentar nomear essa violência cuja origem não se limita mais a uma
única fonte – Estado, capital ou direito – nem à combinação dessas três fontes, mas pode
emergir de qualquer lugar contra qualquer um. Por isso, gostaria de concluir lembrando que
2018 é o trágico ano do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, abatida a tiros
também para anunciar que ninguém está a salvo. A perversidade da violência brasileira é
querer nos fazer crer que a execução de Marielle se deu por não haver nada que uma mulher
negra oriunda de uma favela possa fazer para vencer sua condição subalterna, vulnerável,
mera vida descartável. Nessa guerra sem fim à moda colonial brasileira, a maior violência não
está só em criar uma fronteira entre quem pode ou quem não pode viver, mas está sobretudo
em manter borradas as fronteiras entre a vida vivível e a vida matável.