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Os intérpretes
Tradução de:
Maria Helena Morbey
Título original:
The Interpreters
Primeira Parte
Era, uma vez mais, a hora de almoço em casa dos Faseyi. Para
Bandele. tal era um prazer a que nunca conseguia resistir, pois
tratava-se de um almoço após uma crise conjugal e a mãe de Faseyi
deveria estar a realizar milagres culinários. A penalidade a pagar era
insignificante. Nada ouvia que não dese-jasse ouvir, proferia as
palavras adequadas na altura certa e virava as narinas na direcção da
cozinha para captar os primeiros aromas do festim.
Monica, habituada àquela rotina, servia as bebidas e saía. Faseyi
nem esperava que a porta acabasse de se fechar sobre ela para
colocar Bandele entre a espada e a parede.
- Viste tudo, não viste? Viste o que se passou. Viste como aquela
mulher me arruinou ante todos!
Bandele gesticulou suplicante.
- Não foi nada. Ninguém reparou realmente.
- Como podes tu dizer isso? Escuta, Bandele, tu sempre foste
sincero comigo. Enh? E quanto a Kola, ele estava lá? Olhava
directamente para Kola, mas dirigindo-se, curiosamente, a Bandele. -
Ele estava na festa?
- Não, não estava - disse Kola, muito firmemente.
- Não estava? Era capaz de jurar que foi ele quem, depois,
dançou com Monica.
- Não, não fui eu. - Kola voltou-se para Egbo e iniciou uma
conversa com ele.
- Não, não me recordo de lá ter visto Kola - afirmou Bandele.
- Compreendes a minha posição? Ainda se eu fosse um daqueles
que casam com raparigas londrinas analfabetas só para poderem
gabar-se de ter uma mulher branca. Diz-me sinceramente, pareço ser
um desses?
Bandele murmurou algo sobre a boa educação de Monica.
- Estás a ver? E vai ela desgraçar-me daquela maneira! Como se
não conhecesse as mais simples regras de etiqueta.
- Escuta, Fash...
Porém, Faseyi interrompeu-o:
- Não estás a ver o caso do meu ponto de vista... não, espera aí. -
Dirigiu-se à porta e parou a escutar. - Óptimo. A minha mãe está
neste momento a falar com ela. Sabes o que a esposa do professor
lhe disse? Que nunca mais toleraria a presença de Monica em sua
casa.
Bandele murmurou:
- Meu Deus!
- Começas agora a ver pelo meu ponto de vista, não é verdade?
Com-portar-se daquela forma num círculo social tão decente! Porquê?
Às vezes penso que Monica não tem qualquer respeito pelos
africanos. E isso o que me ocorre. Faria ela aquilo em casa de um
branco? Se o professor fosse branco, teria ela feito aquilo?
- Já estiveste com o professor? - quis saber Bandele.
- Ainda não. Mas vou ter de lá ir apresentar as minhas desculpas.
Não que isso repare os estragos feitos. Deve saber que estava
presente um ministro. Sim, e mais um ou dois tipos altamente
importantes. Oguazor conhece bastante gente, sabes? Vi lá quatro
presidentes de empresas e alguns secretários. Uma coisa daquelas.
Kola, é o suficiente para me arrumar socialmente.
- Sim.
- Escute, enfrentemos os factos. A universidade não é mais do
que um trampolim. Política, grandes empresas. Há sempre uma
possibilidade. Para não falar destas firmas estrangeiras, sempre à
procura de directores nigerianos. Kola, você é um artista, mas tenho a
certeza de que tudo isto não é mais do que um meio, ou não é assim?
Kola simulou não ter ouvido.
- Não consegui pregar olho toda a noite, sabem? Realmente
estou mesmo contente por vocês terem vindo. A mamã e excelente.
Esta manhã, a primeira coisa que fiz foi ir buscá-la.
Mas na realidade uma pessoa só consegue falar com pessoas da
mesma idade. Além de que a mamã gosta demasiado de Monica.
Chega mesmo a mimá-la.
- E que disse a tua mãe?
- Por enquanto, nada. Declarou que vai ouvir primeiro o que
Monica tem a dizer. Como se ela tivesse algo a acrescentar ao que eu
lhe disse!
- Vamos até à varanda, Egbo.
Deixaram a sala de estar entregue a Faseyi e Bandele. Egbo
murmurava:
- Nunca conseguirei perceber aquele Bandele. Como suporta ele
este tipo?
- Não mo perguntes.
- Não fazia a mínima ideia do que me esperava quando concordei
em vir.
- Eu fazia. E é esse o meu problema.
- Como?
- Monica.
Egbo fitou-o e abanou a cabeça.
- Percebo. O pólen do amor voa, livre, por toda a parte.
- Já descobriste a rapariga? - inquiriu, por sua vez, Kola.
- Desapareceu. Eu não sabia que as férias estavam tão perto.
Kola riu:
- Nunca pensei ver-te tão abatido.
- Nem eu - reconheceu Egbo. - Devo estar a envelhecer.
O aspecto das instalações universitárias mudara, os sons eram
diferentes, os movimentos no seu interior mais ordenados - quase em
sequências predeter-minadas: um grupo de conferencistas passava
de um salão a outro e de novo regressava aos enormes dormitórios,
agora melancolicamente despovoados. Haviam-se silenciado as
tumultuosas manifestações estudantis, os insípidos excessos da
juvenilidade que, apropriadamente denominadas de “Verme” ou
“Lodo”, ultrajavam até o mais liberal dos elementos docentes e
levava-os a suspirar, perguntando a si próprios se os seus esforços
não seriam mais úteis se fossem ministrados aos macacos do Jardim
Zoológico. Porém, sempre por uma boa causa, os Oguazor
resignavam-se a que alguns rapazes simpáticos lhes sujassem as
almofadas com a sua presença, esperando que o chá e as sanduí-
ches conseguissem introduzir alguma gentileza no seio daqueles que
fosse possível remir. Mas os convidados regressavam aos seus
mimeografos para lançarem mais um sórdido assalto à inviolabilidade
dos superiores, desenca-deando novas apoplexias nos empolados
disciplinadores. Seguidamente, retiravam as suas palavras com
abjecta humildade, lançando-se aos pés do deão, mas regressavam
para junto dos outros estudantes vangloriando-se ruidosamente de
terem desafiado abertamente, não só o deão, mas a totalidade do
Senado universitário. E os convites foram tentados com selecções
mais cuidadas e seguras, filhos de ministros e outras personalidades
famosas. Porém, o chá acabava por arrefecer, as sanduíches
endureciam, as almofadas perma-neciam sem ocupante e o professor
Oguazor consolava a esposa dizendo; “Que ti disse eu? Estes rapazes
não têm qualquer cultura.” E o “Lodo” deslizava novamente e o
“Verme” rastejava. Os editores esperavam em vão a lógica repressão,
canonização e inevitável crescimento de popularidade em nome da
“liberdade de expressão”, com as esperanças fixas nas próximas
eleições sindicais. Mas, nessa altura, o deão estava já farto do caso, o
corpo docente mostrava-se indiferente e os estudantes deploraram a
perda de “dinamismo académico”. Os quadros negros também
estavam agora limpos, não só dos mistérios do cálculo matemático,
mas também dos desenhos pornográficos e dos chistes estudantis. E
as salas viam-se finalmente libertas do áspero ecoar de conversas
obscenas, com ilustrações e exemplos inconfundíveis, produtos da
imaginação estudantil, vingança por tentativas de aproximação
falhadas, frustração geral, cólera devido à existência de raparigas
daquele meio que lutavam pela igualdade, e que, em inferioridade
numérica, tinham de dizer cem nãos por cada sim, e cujo enorme
privilégio se tornava, assim, para aqueles que perdiam, uma
imperdoável arrogância. E de novo voltavam as conversas, centenas
de ficções, lúridos diagramas, engenho de cérebros diarreicos...
- E mesmo assim, de entre eles... por vezes é incrível.
- O que foi?
- Estava simplesmente a pensar que de entre eles, isto é, de
entre estes estudantes, surge por vezes um futuro génio.
- Não fales tão afectadamente como se fosses um velho.
- E não sou ?
- Tens trinta e um. Isso é ser velho?
- Trinta e dois.
- E então? Não deixas de pertencer à mesma geração dos teus
alunos.
- A geração não depende apenas da idade.
- De qualquer modo, não te lamuries como qualquer velhote
dirigindo-se à sua alma mater.
Kola, impaciente, exclamou:
- Aquele Bandele às vezes irrita-me. Há quanto tempo ele está a
ouvir aquele tipo!
- Espera. Deixa-os resolver o assunto.
Kola, porém, já abrira a porta, pondo de lado os últimos vestígios
de compunção. Faseyi dizia:
- Não há outra coisa a fazer, repito, tudo isto já foi longe de mais
e já decidi o que vou fazer. Pedi à mamã que cá viesse apenas para
lhe dizer isso mesmo, porque ela gosta muito de Monica. Não queria
expulsá-la de casa sem primeiro informar a mamã.
Kola sentiu um arrepio e recusou aceitar o que ouvia. Lamentava
agora ter adiado a sua própria decisão até muito tarde, pois parecia
que afinal o caminho lhe estava a ser aberto e tal não era o que
desejara. O que ele queria, pelo menos como certa forma de
compensação, era que este tipo se rebaixasse totalmente, que
regateasse os seus direitos sobre Monica. Lamentava que Faseyi fosse
incapaz de evidenciar a mínima manifestação de virilidade de modo
que ele o pudesse humilhar impiedosamente, deliberadamente, sem
procurar desculpar-se com a fraqueza do marido...
- Talvez se você suplicasse a Oguazor, tudo se recompusesse.
Faseyi virou-se ao ouvir a sua voz, olhando a aproximação de
Kola como se ele fosse a imagem da esperança.
- Que queres tu dizer com suplicar a Oguazor? - e a veemência
de Bandele parecia desnecessária, plena de desconfiança. Uma vez
mais, Faseyi desiludiu-o.
- Mas Kola tem razão. Com efeito, desejava lá ir esta manhã, mas
a mamã disse que eu devia aguardar. Parece ser a única coisa
sensata a fazer.
- Eu diria que o melhor é esqueceres tudo, Fash.
- Oguazor não esquecerá - avisou Kola e insistiu para não deixar
dúvidas: - Oguazor é um elefante. Eu conheço-o. Não vai esquecer
uma coisa dessas.
- Que queres tu dizer com isso? - ripostou Bandele, exaltado.
- Tu próprio afirmaste que nem sequer estavas presente.
- Mas contaram-me tudo.
- Então o que sabes não passa de mexericos que ouviste. Como
podes tu julgar seja o que for?
O olhar de Faseyi ia de um para o outro, grato pelo tom de
interesse pessoal de Kola e pela sua convicção. E, por pura gratidão,
pegou nos copos e foi enchê-los. Bandele aproveitou a ocasião para
sussurrar:
- Kola, que raio de jogo é o teu?
- Deixa-o humilhar-se se é isso que ele quer.
- Isso é uma coisa que ele deve decidir sozinho.
- Quem és tu? O anjo-da-guarda dele?
Bandele fitou-o longa e friamente. Todavia, Kola recusou dizer o
que pensava.
Faseyi regressou com as bebidas.
- Compreendem, tudo depende realmente da mamã. E é pena o
papá ter partido numa das suas viagens ao estrangeiro. Ele poderia
dar-nos uma ajuda preciosa. Conhece todas estas pessoas.
Bandele afastou-se deles e juntou-se a Egbo no exterior.
- Vou só dizer à mamã...
- Por que lhe há-de dizer? - perguntou Kola. - Ela apenas o
aconselhará a aguardar. O melhor é ir lá imediatamente e arrumar o
caso.
- É isso, você tem toda a razão. Eu... hum... escute, se é meu
amigo, quando a mamã perguntar por mim diga-lhe simplesmente
que eu tive de ir fazer um trabalho urgente ao laboratório.
- Claro, claro.
E Kola teve a sensação peculiar de que isto era muito melhor,
que era necessário ele dar um jeito no que quer que sucedesse.
Monica reapareceu alguns momentos depois.
- Parece que você acaba sempre por ser abandonado sozinho,
quando cá vem. Lamento muito.
- Eu não me importo nada. - O silêncio interpôs-se, embaraçoso.
- Obrigada pelo que fez na festa.
- Por favor... não nos vamos pôr com salamaleques.
- Eu estou a ser sincera.
- Bem sei. O que quero dizer é que há coisas que nunca devemos
agradecer.
- Não vejo quais sejam.
- Isso deve-se ao facto de você ter sido educada erradamente.
- Deseja beber alguma coisa?
- Não, não quero nada... O meu amigo jornalista envia-lhe os
seus protestos de admiração. Chamou-lhe a guerreira desconhecida
no cemitério dos Oguazor.
- É melhor não dizer isso na presença de Ayo.
- Dir-lho-ei directamente, se preferir.
- Não faça isso. - Ela calou-se, por instantes. - Como vai a
pintura?
- Estará terminada brevemente. Pode ser que a apresente na
exposição do Sekoni. Uma única pintura minha.
- Mais nenhuma?
- Não, a exposição é realmente dedicada a Sekoni, acontece
apenas que não vejo ocasião mais indicada para experimentar
mostrar o maior trabalho que fiz até hoje.
- Vejo-o vir com frequência buscar Usaye, mas nunca se lembra
de vir visitar-nos.
- Bem, é ela quem eu venho procurar.
- E nós não temos qualquer utilidade para si; ao menos é franco.
- Os óculos dela devem estar prontos na próxima semana.
- Muito obrigada. Foi muito amável da sua parte ter-se
incomodado tanto.
- Lá está você a agradecer-me outra vez, quando o que fiz foi
aproveitar a pobre rapariga para o meu próprio trabalho.
- É verdade, agora me recordo. Você gosta de rejeitar a bondade
e... como foi que lhe chamou?... ah, sim, emoções irreais.
- Mas eu estou a dizer-lhe a verdade. Ela posou para mim várias
vezes.
- Está bem, não discuto. Obrigada por tê-la levado ao
oftalmologista, qualquer que tenha sido o motivo.
Continuaram sentados junto da janela, de novo em embaraçoso
silêncio. Usaye brincava sob uma fila de blusas brancas, de renda e
estampadas, a alguma distância do tronco da árvore.
- Não sei como isso acontece - disse Monica -, mas acabo sempre
por o deixar ficar mal.
- É isso o que sinceramente pensa?
- Compreendo o que ele sente. Acha que, por vezes, me
comporto estupidamente?
- Você acredita nisso?
- Sim. Eram os amigos do meu marido. A sociedade a que ele
pertence. Eu não tinha o direito de o humilhar daquela maneira.
- É uma questão de opinião.
- O quê?
- Que aquela é a sociedade do seu marido. Que aquilo que você
viu representa uma sociedade. É isso a que me refiro. Quanto à sua
conduta, é coisa a ser decidida entre si e o seu marido, ou não acha?
- Sim. E a minha sogra é muito boa para mim. Adoro-a.
Sinceramente. Você nem imagina como somos amigas. Na realidade,
ela não vem aqui muito frequentemente. Se Ayo não lhe pedisse, ela
nunca viria visitar-nos.
- E o que diz ela a isto tudo?
Durante algum tempo ela calou-se, pensativa, e Kola disse:
- Desculpe, talvez eu não devesse ter perguntado...
- Sim. Estava a pensar se deveria discutir consigo este assunto.
Mas não me importo de lhe dizer. Ela acha que eu devia abandoná-lo.
Kola virou a cara.
- Ficou chocado? Não é a primeira vez que ela me diz isso. E
quando eu analiso verdadeiramente a situação, penso... bem, por que
não? Não será o passo mais lógico? Ao fim e ao cabo isto envolve
atitudes profundamente enraizadas e nenhum de nós mudará.
Ela estava agora preocupada porque Kola nada dizia.
- Você está chocado. Será por a sugestão ter vindo da própria
mãe dele...? Desculpe, esqueça o que eu disse. Não devíamos discutir
este assunto...
Bandele e Egbo regressaram da varanda.
- Bom, não acredito nisso - dizia Egbo.
- Repito, se eu visse de novo a cara dela. nem a reconheceria.
Era já noite escura quando ela me trouxe o bilhete.
- Mas eu descrevi-ta. Certamente deves recordar qual das tuas
alunas é.
- Nada disso. As caras deles e delas parecem-se umas com as
outras. Nem os distingo.
Egbo apelou para Kola.
- És capaz de lhe dizer que eu não quero seduzi-la e mesmo que
queira fazê-lo ninguém tem nada com isso? Por que não me diz ele o
nome dela?
- Ele sabe-o?
- É o que me fano de lhe dizer. Eu não conheço a rapariga.
- Está bem. Dá-me os nomes de todas as raparigas que
frequentam as tuas aulas.
Kola riu.
- Queres que ele faça isso agora? Bandele contemporizou:
- Quando sairmos daqui, vamos ao meu gabinete. Então,
entregar-te-ei essa lista.
- Quantas são elas?
- No total?
- No segundo ano.
- Não sei. Sinceramente, não sei.
- Bem, talvez tenhas ainda alguns ensaios que não tenhas
devolvido. Sou capaz de reconhecer a letra dela.
- É possível. Terei de procurar no meu gabinete. De qualquer
modo, a culpa é tua. Devias ter-lhe perguntado o nome.
- Pensei que tu mo poderias dizer, por isso nunca lhe pedi que
mo dissesse.
A porta da cozinha abriu-se subitamente. Mrs. Faseyi parou no
limiar e relanceou rapidamente o olhar pela sala e depois espreitou
na varanda.
- Foi o carro dele que eu ouvi há pouco?
Monica olhou também à sua volta, consciente, pela primeira vez,
de que Faseyi estava ausente.
- Julguei que ele estava na varanda convosco - disse, fitando
Bandele.
Bandele respondeu:
- Não, deixei-o aqui com Kola.
E Kola, sentindo a acusação no tom dê Bandele, defendeu-se:
- Ah, sim, ele foi tratar de um trabalho urgente no laboratório.
Afirmou que não demoraria muito.
Mrs. Faseyi era imponente, negra, o negro firme conferia-lhe
quase uma outra dimensão. Pertencia à raça de esbeltas estátuas,
arrogantes, orgulhosa-mente estúpidas, como um puro-sangue
travado em plena carga da cavalaria. Neste momento, fungava,
incrédula, expressando também o seu espanto por uma mentira tão
pueril ser usada na tentativa de a iludirem.
- Qual dos amigos de Ayo é você?
- Mãe, este é Kola...
Ela atacou-o, irada:
- Com que então é você o bandido que desprezou o meu
cozinhado no outro dia! E, segundo parece, também é mentiroso. Foi
ao laboratório! Qual laboratório? O laboratório-sala-de-estar dos
Oguazor?
- Lamento o que sucedeu no outro dia, Mrs. Faseyi. Vou tentar
remediar isso hoje.
- Por que julga você que tenciono oferecer-lhe de novo a minha
comida depois da forma como a tratou da última vez?
- Estou realmente arrependido, minha senhora...
- O meu filho disse-me que você já cá estava. Porém, quando o
almoço ficou pronto, você desaparecera. Que foi que lhe aconteceu?
- Foi, hum... eu... é difícil explicar. Tive uma ideia inesperada para
um trabalho em que estava empenhado...
- Sim, Monica falou-me sobre o seu trabalho. Mas que tem isso a
ver com o desdém pela minha comida?
Kola deu por si começando a sentir-se verdadeiramente culpado
de um crime odioso.
- Lamento profundamente, Mrs. Faseyi, a minha intenção era
apenas dar lá um salto, mas o tempo voou...
- O tempo voou! Hein? Vocês, artistas, parecem julgar que têm a
prerrogativa da falta de educação. O tempo voou!
Monica tentou salvar a situação.
- Mãe, está a embaraçar o pobre homem.
- Como ele bem merece. E espero que também esteja
envergonhado.
- Imensamente, Mrs. Faseyi. Garanto-lhe...
- Não admito que excentricidades interfiram com os meus
cozinhados. Se deseja fazer esse tipo de coisas, vá para Chelsea.
Monica puxava-lhe por um braço.
- Chega, mãe. Acho que ele aprendeu a lição, não é verdade,
Kola?
Ansiosamente, Kola exclamou:
- Sim, sim, nunca mais voltarei a fazê-lo. Juro.
- Agora venha daí, mãe, vamos ver como vai a comida. Bandele,
é melhor tranquilizar Kola, pois isto são apenas bravatas, não vá ele
fugir de novo.
- Que queres tu dizer com “são apenas bravatas”? - No entanto,
ela já transpusera o limiar arrastada pela nora.
Kola ficou imóvel, atordoado, e Bandele pôs-lhe um copo nas
mãos.
- Bebe isto e descontrai-te. Já acabou.
- Que mal fiz eu?
- A prova do fogo. Com ela, é um ritual.
- Mas... aquela mulher estava mesmo enfurecida.
- Ela faz um casus belli do primeiro encontro com toda a gente.
Especialmente com aqueles que ela pensa serem amigos de Ayo.
- Que ironia!
- Bem, tu estavas a mentir em benefício dele, não estavas? Ou
talvez não estivesses. Tomaste a mentira tão óbvia que até uma
criança a detectaria.
- Onde queres tu chegar?
- Vais dizer-me?
- Escuta. És o pai dele ou quê?
- Tenho a certeza de que podias ter mentido muito melhor se
quisesses.
- Ora cala-te.
- Por que não deixas tu aqueles dois resolverem sozinhos o seu
problema?
Mrs. Faseyi ignorou-os quando regressou com as travessas
fumegantes, seguida de Monica, que protestava:
- Vamos esperar um pouco por Ayo.
- Tolice. Ouça! - Kola deu um salto. - O seu amigo disse-lhe para
espe-rarmos por ele?
Assustado, Kola balbuciou algo ininteligível.
- Vêem? Provavelmente ele está a almoçar neste momento com o
professor.
- Kola disse que ele tinha ido ao laboratório. Mrs. Faseyi riu
sonoramente.
- Os homens têm um sentido de honra muito peculiar. Saiu
novamente e reapareceu com mais comida. - Estes leais amigos dele
devem pensar que eu não conheço Ayo. Acontece simplesmente que
eu sou mãe dele. Vamos, vamos. Sentem-se onde quiserem.
Monica disse a Kola:
- É melhor você comer e comer avidamente.
- O meu filho deixa-me ficar mal - prosseguiu Mrs. Faseyi. - Por
exemplo, que estou eu aqui a fazer hoje? Já não suporto encontrar
aqui qualquer dos amigos dele, sem pensar que eles devem comentar
entre si: “Aquela é a mulher que governa a vida de Ayo.” E é mentira,
sabem? A causa é ele falar tanto sobre mim.
- Deve gostar muito de si - afirmou Bandele.
- Gostar de mim? Porquê? Seria um filho desnaturado se não
sentisse alguma coisa, mas isso é uma trivialidade. Quanto a gostar
de mim, isso é outro problema. Acontece que eu gosto muito de Moni,
embora ela não seja minha filha. Todavia, gosto realmente desta
rapariga pateta. Ela, por vezes, é bastante pateta, sabem? Mas eu
interesso-me pela felicidade dela.
Monica mostrava-se aflita, como se soubesse o que se ia seguir.
Murmurou algo sobre a comida que guardara para Usaye e
abandonou a mesa.
- Se eu não me preocupasse com ela, continuaria a sarar as
disputas deles. Em vez disso; digo-lhe simplesmente: “Deixa-o e vai
procurar a felicidade noutro lugar, não a conseguirás junto deste meu
filho.”
Bandele, Egbo e sobretudo Kola fitavam-na como peixes
estripados, perguntando-se até que ponto estaria ela a falar
seriamente.
A mãe de Ayo soltou uma ruidosa gargalhada e o seu semblante
endureceu, pleno de desafio.
- Ena, ena, vejo que estão todos escandalizados. Não existe nada
de misterioso num lar desfeito. Sei-o por experiência própria e, talvez
por isso, vocês dirão que eu não sou a pessoa indicada para lhes dar
conselhos. Porém, não me agradam sentimentalismos supérfluos.
Bandele inquiriu:
- Será só sentimentalismo, Mrs. Faseyi?
- Que outra coisa pode ser? Meu rapaz, eu estou separada do pai
de Ayo há doze anos, não, há quinze. Sei bem quando um casamento
é apenas sustentado por mero sentimentalismo. Nessa altura, servia
Kola e hesitou brevemente. - É decerto uma opinião contestável,
escaldante até. mas não suporto um nigeriano que não goste de
picante - E, com deliberada malícia, pôs mais comida no prato que
tinha na mão e empurrou-o para diante de Bandele. Depois, encarou-
o, marcando a cadência das suas palavras com movimentos da colher
com que o servia. Você acha que eu não me preocupo o suficiente,
não é assim?
- Não, não. No entanto, penso que se a senhora dissesse a Ayo
que ele deveria fazer tudo para salvar o seu casamento, ele fá-lo-ia.
- Não. O que você quer dizer é que se eu lhe dissesse para não
mandar embora Monica, ele me obedeceria.
- Muito bem - concordou Bandele. - É o mesmo.
- Não, não é o mesmo. Oh, se eu quisesse que Monica
continuasse cá, o que desejo, ela ficaria, mas que tem isso a ver com
o casamento deles? É melhor seguirem caminhos diferentes antes de
terem filhos que lhes compliquem a vida. Portanto, o que vou dizer a
Ayo é o que sempre disse: “Tens que ser tu próprio a decidir. Faz o
que quiseres.“ Respondi-lhe a mesma coisa quando ele me escreveu
dizendo que queria casar com uma rapariga branca. E sei qual vai ser
a sua opinião sobre isto, de modo que já avisei Moni para se ir
preparando.
De início, Kola não ousava erguer o olhar. Agora, examinava a
casa deles, confuso por não sentir qualquer altivez. Dificilmente teria
esperado aquela argumentação. Quando Monica lhe comunicara o
que a sogra aconselhara, apenas vislumbrara uma mulher ressentida,
amarga. Ao escutar agora as palavras da boca dela, via-se forçado a
um reajustamento do quadro.
- O seu amigo é casado? Eu sei que você não é. Dirigia-se a
Bandele.
Desconfiado, Kola perscrutou o rosto dela, mas era uma pergunta
bem intencionada.
- É casado? - repetiu ela, voltando-se para ele.
- Não.
- Mas provavelmente tem filhos!?
- Não tenho.
- Bem, escusa de assumir esse ar virtuoso. Provavelmente sabia
o que fazia. Há muitos jovens que o não sabem ou simplesmente não
se importam.
Monica regressara.
- Usaye esteve aqui?
- Anda cá, rapariga, anda, senta-te aqui. Tu e o teu marido
deixam os convidados sozinhos e contam comigo para cuidar deles.
Quem julgas tu que eu sou? A criada?
Monica perguntou descontraidamente:
- A mãe continua a armar em dura?
- Bem, o melhor é tu começares a aprender a armar em dura.
Sabiam que esta pateta quase fugiu para Inglaterra uma semana
depois de ter chegado? Fui esperá-los ao barco e vi-a agarrada ao
braço de Ayo, um pouco assustada por tudo o que via de estranho.
Oh, eu de vez em quando também sou muito pateta, sabem o que fiz?
Desatei a chorar. Moni, porém, não me compreendeu, pensou que
ficara desapontada ou algo assim. Julgou que eu não gostara dela.
Não, só uma rapariga branca poderia ser tão pateta.
Kola perguntou, fitando directamente Monica, indiferente à
confirmação das suspeitas que Bandele poderia conseguir:
- A senhora chama-lhe Moni, foi .ideia sua?
- E de que outra pessoa poderia ser, do meu filho? Ele tem tanta
imaginação como o pai. Qualquer outra pessoa pensaria ser natural
que ele já a tratasse por Moni; não existe nome mais belo de que me
recorde. Mas não, oh, não, ele chama-lhe querida. E a mim mamã.
Bandele contrapôs:
- Bom, não se pode condená-lo por conservar um hábito de
infância.
- De infância? Mas em criança ele não o fazia. Não, este hábito
de chamar-me mamã apanhou-o em Inglaterra. E o que me aborrece
é que ele só me trata assim diante de outras pessoas. Porquê?
Digam-me, porquê?
Kola descobriu que não procurava uma justificação, o que
desejava era uma abdicação forçada, uma transferência do título de
posse. Nem mesmo buscava a sua própria exoneração, porque isto
implicava o reconhecimento de um julgamento da culpabilidade e
uma absolvição. Repentinamente, ansiou que o tivessem deixado
seguir cegamente o seu destino, arremessado contra um seu igual,
contra um vencido relutante. Na sua boca. sentiu um travo nauseante
que depressa comprometeu a imagem de Monica, até que deu por si
a desprezá-la pelo seu crime 'de acessibilidade, de falta de
discriminação, o seu crime de mau julgamento. Lentamente, a auto-
anulação de Faseyi surgia a seus olhos menos grave. Afinal, que vira
ela nele? Atendendo a que deveriam existir conversas amorosas,
promessas e juras e quanto ao acto de amor... ?
- Que se passa? - A voz de Monica soava directamente diante
dele.
- O frango já está morto, tranquilize-se. Não há qualquer
necessidade de esfaqueá-lo dessa maneira.
Até que ponto se teria traído? Se Bandele estivesse a olhá-lo,
teria concluído erradamente. Mas se ele soubesse a verdade, se ele
soubesse qual o seu actual estado de espírito...
Mrs. Faseyi falava ainda.
- Ele vai voltar mais logo e esperar que esta pobre criança o
compreenda.
“Querida, eles convidaram-me para almoçar, teria sido falta de
educação da minha parte não aceitar... oh, eu achei simplesmente
que seria boa ideia visita-los no regresso do laboratório.”
A inversão dos seus sentimentos aproximava-se do auge e Kola
duvidava que Mrs. Faseyi alguma vez viesse a saber que expiação
inconsciente ela conseguira ao desequilibrar tanto a sua escala moral,
da qual os valores de Faseyi se vingavam radicalmente, reduzindo
tudo o que lhe dizia respeito a uma ineficácia total. Kola contemplava
de novo o rosto de Monica... teria sido simplesmente o desejo de ver
a África? Quando ela o amava, seria os sonhos que ela amava, o Sol,
o riso lendário, a vitalidade inesgotável?... Em relação ao marido, Kola
não se sentia misericordioso e não lhe concedia atenuantes: o
prestígio de uma mulher branca, acima de tudo o prestígio de uma
esposa branca, mas porquê? Porquê? Pois se afirmavam ser Faseyi um
homem bri-lhante e os seus colegas no hospital respeitavam os seus
vastos conhecimentos! Então porquê...?
A sua mente recuou num salto ao início da refeição, Monica
sentada com a cabeça inclinada, as mãos cruzadas sobre o peito e a
voz de Mrs. Faseyi interrompendo a admiração de Kola:
- Por favor, poupa-nos a acção de graças, guarda-a para quando
tu e o teu marido estiverem sozinhos.
Naquela tarde ele deixou a casa dos Faseyi com um sentimento
de derrota e era incapaz de apontar com clareza o que exigia
verdadeiramente; apenas sabia que se ressentia desta contaminação
de Monica. De volta ao estúdio, empoleirou Usaye no banco e pegou
nos pincéis. Era este novo sentimento que experimentava que era a
traição. Conquanto nem uma palavra tivesse sido trocada entre eles,
sentia agora que havia traído Monica.
- Usaye, por favor, está quieta.
Porém, Usaye naquela tarde estava irrequieta, baixando a cabeça
para esquadrinhar as borlas de seda do vestido especialmente criado
para as aias de Obaluwaiye.
- Usaye, por favor... - Mas de qualquer modo ele acabou por
descobrir que sentia pouco entusiasmo e deixou-a ir-se embora. A
jovem não abandonou imediatamente o atelier, movimentando-se
entre os cavaletes, colando os olhinhos a todos os objectos, como se
os inspeccionasse minuciosamente. A porta abriu-se lentamente e Joe
Colder entrou.
- Vi o teu carro lá fora.
- Entra.
- Não estás a trabalhar? Estou estafado com todos estes ensaios
para o Concerto de Férias. Ainda cá estarás nessa altura?
- Não tenciono sair.
- Não achas as instalações quase saudáveis? Os estudantes
partiram todos. Os edifícios estão deliciosamente vazios.
- Há um pouco mais de paz.
- Quando o corpo docente e o pessoal menor também tiverem
partido, a cura será total.
- Suponho que sim.
- Há algum problema? Não estás a prestar-me atenção.
- Estou sim, continua.
- Penso que as universidades residenciais como esta somente
são inte-ressantes nos poucos meses do ano em que estão
completamente vazias. É então que vale realmente a pena viver
nelas. Suponho que para ti isto soa como um belo paradoxo
académico.
- Sim.
Golder baixou a voz.
- Para mim é óptimo. Quando as instalações da universidade se
esvaziam, há menos tentações. Meu Deus, os períodos de aulas são
um inferno para mim. Um verdadeiro inferno!
Kola estava apreensivo. Não se sentia com disposição para
enfrentar mais um dos acessos periódicos de depressão, aversão por
si mesmo e degradação física de Golder. Ele conhecia as diversas
fases desta doença. Joe Golder, posan-do para o seu retraio,
sucumbia de repente e começava a chorar abertamente, sem
constrangimento. Uma vez havia afirmado: “Devias pintar-me como
um daqueles deuses índios hermafroditas.” Kola rira e replicara:
“Talvez te surpreenda saber que nós também temos alguns deuses
assim. Numa área são masculinos, noutra femininos.” Mas Golder
abanara a cabeça: “Não, existe maior precisão nos vossos deuses,
como se eles tivessem resolvido, desde o princípio, aquilo que eram;
a confusão existente encontra-se apenas na mente dos cronistas. E as
vossas esculturas deles são robustas, masculinas. Até as das
divindades femininas. Organicamente, os deuses índios são
hermafroditas. Nem uma coisa nem outra.” E com o rosto
impetuosamente distorcido, com uma angústia que Kola
ingenuamente tentava em vão transpor para uma tela, com profundo
desprezo por si próprio, colérico, Joe Golder brandara subitamente:
“Meu Deus! Eles enojam-me.”
Curvado sobre um banco como uma alma deformada, Joe Colder
pranteava a sua vida.
Joe conhecia o tormento das conversas tendenciosas nas aulas
que encami-nhava para o seu objectivo, tentando descobrir membros
do culto, discutindo casualmente o relatório Wolfenden e
perscrutando, como um falcão, a reacção do interlocutor. E possuía
um livro de pinturas índias. Quando convidava alunos para o chá,
costumava mostrá-lo e observar as suas faces, quando, perplexos,
perguntavam: “Isto é um homem ou uma mulher?” Emprestava-lhes a
sua Vida de Nijinsky. Havia uma torrente de filmes de índios em todos
os cinemas e Joe Colder, que detestava as espalhafatosas e ridículas
imitações das banalidades de Hollywood, oferecia-se para levar os
alunos ao cinema.
- Eles têm heróis tão formosos - comentavam sempre alguns
estudantes.
- Achas que sim? - perguntava Joe Colder. - Gostas daquele tipo
de beleza?
- Oh, sim, dava tudo para ser tão belo como eles.
- Mas não achas que são demasiado efeminados, quase
mulheres?
- Claro, são demasiado formosos.
- Mas tu não te importarias de ser assim?
- Qual é o mal de se ser belo?
- Às vezes - prosseguia Joe -, pergunto a mim mesmo se aqueles
homens serão o modelo dos deuses ou os deuses o modelo dos
homens. De qualquer modo, nos deuses aquela beleza até fica bem,
mas tu, se tivesses aquele aspecto, poderias ser assaltado por
homens.
- Quer dizer que me tomariam por uma mulher?
- Sim e não. Para algumas pessoas isso é indiferente.
- Que raio de lunáticos são esses? Constantemente mortificado
por desco-brir que o desejo de beleza ou “formosura” era unicamente
mais uma defor-mação estética estudantil, Joe Colder vagueava pela
universidade; à noite, vagueava pelos clubes nocturnos onde era
induzido em erro pelo menear das ancas de um rufia de calças muito
justas, pela cultivada indolência das suas pálpebras, pela pomada dos
seus cabelos; e acabou selvaticamente espancado no seu
apartamento pelo incrédulo rufia, sumamente insultado, e nem se
atreveu a chamar a polícia.
E uma vez o criado fizera chantagem com ele, a ponto de, pleno
de desespero, ter procurado um advogado que o aconselhou a ignorar
as ameaças e que, eficientemente, fizera o chantagista fugir para a
segurança da sua cidade natal.
Joe Colder convidava estudantes para beberem xerez e
escutarem recitais, aproveitando para roçar acidentalmente o seu
joelho, pedindo reciprocidade.
Joe Colder corria a sala de leitura da biblioteca sempre que o
desejo o dominava e receava as consequências das sondagens mal
sucedidas. Aí, contemplava-os e desprezava-os. Animais, pensava,
meros vermes. Enchem as cabeças de sabedoria, vomitam-na
laboriosamente, mas permanecem imutáveis em todo o processo, são
como o intestino único e recto da barata, misturando saber com
saliva e cuspindo-o de novo para o examinador. Desprezava-os, mas
não aos seus corpos, pelo que continuava na sala de leitura, via-os
entrar, via os seus reflexos no soalho lustroso, e maravilhava-se com
a beleza deles, deixando-a subjugá-lo. E só na saciedade Joe
encontrava segurança. Daquele soalho subiam até ele a sensualidade
e o escárnio dos outros, nele se reflectiam as suas fantasias íntimas e,
afirmara uma vez, o seu destino, como numa bola de cristal. Entre
grande número de jovens sentia-se a salvo, os seus sentidos
confundiam-se, não sabia para onde se voltar e o desejo morria. Joe
Colder permanecia na biblioteca olhando enormes tomos de
enciclopédias, espreitando pernas em calções, babando-se por aquela
negrura até se sentir enjoado e com vertigens, e recompondo-se
gradualmente.
Em cima do banco, Joe Colder, um homem feio, confessava:
- Lembras-te daquela primeira vez, quando te convidei para
beberes um copo comigo? Aquela tarde, quando...
Como poderia ele esquecer? Ao entrar no apartamento ficara
admirado por ver Joe deitado, nu. no sofá. com uma escassa toalha
sobre a cintura, fingindo Giovanni's Room.
- Está um calor terrível, não está? Que horas são? Ia agora tomar
banho.
Porém, Kola avistara Joe quando virara em direcção ao prédio e
Joe estava então completamente vestido, de pé, na varanda. Logo
que Kola entrou, ergueu-se, deixando que a toalha tombasse no chão
e ficou de pé na sua nudez incircuncidada. Kola dirigiu-se à lareira e
disse:
- Não sabia que estes apartamentos tinham lareira.
Joe Colder tentou mais algumas experiências, acabando por
desistir, e puderam então tornar-se amigos. E de todos os seus
modelos, apenas ele aceitava posar totalmente despido. Possuía um
corpo torneado, realmente belo.
- Compreendes - dizia -, o meu corpo é o de um negro; é
simplesmente um acto de perversidade que eu tenha saído quase
branco. - Seguidamente, saltava de repente, vindo ver o resultado das
primeiras pinceladas. - Por amor de Deus, pinta-me mais escuro.
Toma-me a mais negra negrura do teu Panteão.
- O que eu vim realmente perguntar-te - dizia neste momento Joe
Colder -, diz respeito ao trabalho de Sekoni. Sabes que eu quero O
Lutador.
- Vou realizar brevemente uma exposição dos trabalhos dele. Há-
de vir alguém de Lagos ajudar-me a avaliá-los. A totalidade do
dinheiro irá para a mulher dele.
- Ele era casado?
- Sim. Haja muito tempo, com efeito.
- Filhos?
- Um.
- Nunca o suspeitara.
- Se for possível, tentarei fazer coincidir a exposição com o teu
concerto. Poderíamos até realizá-la no foyer da sala do concerto.
Joe Colder ficou exultante com a ideia.
- Vou colocar uma etiqueta de “vendido” no Lutador, mas só será
teu depois da exposição.
- De acordo. Obrigado, Kola. E a tua ideia de usar a sala do
concerto é excelente, simplesmente excelente.
A porta voltou a abrir-se e Bandele entrou, pondo imediatamente
Kola de sobreaviso, quase beligerante:
- Se vieste cá para recomeçares... Bandele ergueu o livro que
tinha na mão.
- Apenas venho procurar um pouco de paz. Simi descobríu que
Egbo está cá. Estava à minha espera no meu apartamento quando lá
cheguei.
Kola soltou um longo e agudo assobio.
- Ela sabe da outra rapariga?
- Não fiquei lá para o descobrir.
Poder... Kola deu por si meditando no que Egbo havia dito, pois
Egbo, ao dizê-lo, fazia-o soar quase como uma experiência e Kola
sentira frequentemente que, a esse respeito pelo menos, o seu papel
e o de Egbo deveriam inverter-se. Caprichosamente, demasiado
caprichosamente para plena compreensão do seu significado, ele
havia sentido esta sensação de poder, o conhecimento do poder
dentro das suas mãos, da vontade de transformar. E compreendia
então que o meio era de somenos importância, que o acto, na tela ou
na matéria humana, era o processo vital, e isso trazia-lhe o medo
intenso de se realizar. E este era outro paradoxo, ele não ousava,
verdadeiramente, realizar-se. Junto da sua mão achava-se o travão
invisível que o impedia de concretizar o impulso final no acto. Era
característico que Egbo se oferecesse para regressar com ele para ir
buscar Noé, pois Egbo não hesitava em perseguir o ilusório, nunca
procurava definir o que dizia nas suas frequentes e fúteis discussões.
Efectivamente, era peculiar do combate de Egbo com o mundo que a
experiência o levasse às suas admissões e que ele nada formulasse
antes. E Sekoni, havia também Sekoni, que explodira subitamente
com este feito de poder, mas Kola, recuando mental-mente a tempos
longínquos, compreendia que isso não fora tão súbito. Pois como
podia o artefacto ser mais importante que a revelação no poder vital
do homem? O Lutador, reconhecia agora, tardiamente, sabendo que a
sua identi-dade física provinha de uma luta há muito esquecida no
clube Mayomi, que tivera o seu início, inevitavelmente, em Egbo.
Egbo mostrara-se verdadeira-mente irritável nessa noite. Alguns
pensamentos despeitavam as passagens mais sombrias da sua mente
e, é claro, seguidamente tomava-se a raposa da fábula: Tu sujaste a
minha água. Não? Bem, se não foste tu foi o teu pai.” Todos os
pretextos lhe serviam, manifestando as suas ideias com inesperada
violência. Um criado contribuiu com uma desculpa para tal,
expressando comentários francos por as cadeiras estarem empilhadas
sobre as mesas e os outros clientes já terem saído. Só a mesa deles
permanecia ocupada e silenciosa e os criados estavam ansiosos por
chegar a casa e deitarem-se. Todavia, eles continuavam sentados,
imóveis, sem beberem, e nem sequer conversavam. Ninguém sabia
como aquilo principiara, mas o que fora insolente passou perto de
Egbo e este passou-lhe uma rasteira. De um momento para o outro, o
caos encheu a noite. Bandele permanecera sentado, indiferente, até o
porteiro, um pesado bota-fora de calças justas de ganga, chocar com
ele como que por acidente e Bandele ser catapultado para trás,
mergulhando numa pilha de cadeiras, sob as quais ficou
completamente enterrado. O rufia - chamava-se Okonje - rondava-os,
provo-cante, enquanto Kola o conservava à distância com uma
garrafa, esperando que a polícia chegasse e os substituísse na tarefa
de se protegerem. Porém, subita-mente, Okonje caiu. Sem que nada o
fizesse prever, sem causa imediata, Okonje caiu. E então viram um
objecto duplo, um par de laços de cânhamo esfiado, ao que parecia,
em ambas as extremidades, que deslizara silenciosamente através da
confusão de pernas das cadeiras e puxava Okonje pelos pés. Com a
mesma eficiência, todos eles começaram a atá-lo, trabalhando
velozmente. Uma extre-midade passou por baixo do braço do finório,
em tomo da garganta, e desceu pelas costas. A outra envolveu-lhe o
joelho e a virilha, forçando a coxa a apro-ximar-se do peito. Era
grotesco, como um cadáver dobrado e seco dos Maori, soltando
guinchos qual porco amarrado pelas patas a caminho do matadouro.
Até Egbo interrompeu o seu próximo salto ao ver a cena. Não se viam
sinais de Bandele, pelo que o homem parecia ter-se atado sozinho.
Rapidamente, Okonje foi arrastado, deslizando sobre as nádegas em
direcção à pilha de cadeiras. Gradualmente, os tendões
desapareceram dando lugar a uma pele complacente, aliviada de
tensão... e Sekoni deu uma volta ao cativo, assombrado com o
resultado. Os seus olhos percorreram os braços observando o traçado
de fios e músculos reteses enquanto Kola e Egbo desempilharam
cautelosamente o inexpugnável catafalco. Sekoni, enleado em
incredulidade, comoção, admiração e expectativa crescentes, imergiu
num estado de tranquila mudez. Á luta ocorrera vários anos antes da
feitura do Lutador, antes de todos terem abandonado o país,
espalhando-se pelo mundo ocidental, e Kola recordava agora como a
tensão que emanava da escultura lhe fora de imediato familiar e
alheia... Mas Sekoni conservara este conhecimento dentro de si até o
seu poder irromper, num trabalho aparentemente discordante, de
intensa dor e piedade, obscurecendo a sua própria identidade.
Assim, talvez se esta intuição final não o traísse e a tela
estivesse pronta. Kola a exibisse na exposição de Sekoni... Se acaso
regressarmos vivos - pronunciara em voz alta o mesmo pensamento
que martelava no cérebro de Egbo.
Porque eles estavam perdidos. A chuva começara a cair ao
princípio da tarde, varrendo tudo à superfície da terra e submergindo
as cabanas e as tendas mais pequenas do mercado. Nos
estabelecimentos à beira da lagoa a água subira rapidamente,
cobrindo a vegetação e tomando imunda a água limpa armazenada
até nas prateleiras mais altas.
Cacos flutuantes, brilhando entre fuligem e massas solidificadas
de óleo, moedas e aves domésticas sacrificadas. Era como se o mar
ciumento tivesse irrompido dos intestinos da terra, devastando as
oferendas a deuses menores... Abandonaram o carro numa ponte de
pranchas tangentes - todas as pontes se assemelhavam -, provisória
e insegura, quatro tábuas estendidas através dos inertes semicanais
de detritos da lagoa. Um bode morto, imensamente disten-dido,
estava entalado num dos extremos das tábuas e dois cães tentavam
puxá-lo para fora sem molharem os focinhos. Levaram ambos as
mãos ao nariz devido ao fedor e passaram adiante.
- Assim termina o reinado de Noé como santo solar resmungou
Kola.
- Não atravessámos tanta água como isso. Kola. Não devemos
estar perto do local.
- Não, estamos no caminho certo.
- Voltemos para trás. Não fui feito para esta caça aquática ao
tesouro.
- Não, o que temos a fazer é separarmo-nos. Tu vais por ali e eu
vou por aqui. Se um de nós descobrir o caminho, regressa aqui e
espera pelo outro.
- Enquanto espera pode ir gritando. O som propagar-se-á muito
bem sobre a água.
- Está bem. Inicialmente, vamos procurar durante trinta minutos.
- Qual inicialmente! Ao fim de trinta minutos regressamos a casa.
Uma pesada enfiada de objectos submersos e pés de cereais
arrastavam-se no regaço cuprino das cheias. O solo por baixo deles
era traiçoeiro e Egbo pegou numa estaca e começou a sondar a água
à medida que avançava, reti-rando, com tédio crescente, cada pé da
aspiração do solo sob a perigosa toalha líquida. Era impossível tornear
todas as poças e até a terra descoberta lhe embaraçava os
movimentos. “Custa a crer que os nossos carros tenham vindo por
aqui”, pensou Egbo. Parecia-lhe agora bem possível errar um passo,
avaliar mal o terreno e desaparecer para sempre nalgum atoleiro
oculto.
Contemplando aquela cinzenta desolação, Egbo perguntava a si
mesmo a que altura teria subido a água na igreja de Lázaro.
Recordava agora que fora construída numa ligeira elevação do solo,
mas a cheia parecia-lhe suficien-temente grande para alcançar a
igreja e até o altar, vários degraus acima do chão da nave. A metade
apodrecida de uma canoa rompendo as águas lodosas lembrou-lhe a
voz da telefonista no escritório de Sagoe, que o punha maluco; e
agora duvidada de tudo o que sabia, e de tudo o que vira, pois
compreendia que a humanidade brotava da garganta dela como a
água suja numa negra canoa em decomposição. Frequentemente vira
Sagoe suspirar, nostálgico, pela companhia de alienados com quem
pudesse expelir e inalar emoções como um estranho... Sagoe,
Sagoe... mas então, não tinham sido todos eles capturados numa
centrifugadora vulgar através da mágoa de douradas abstracções,
cheias de moscas, buscando um enxota-moscas que afastasse os
pensamentos enterrados em cada ferrão...
Era impossível que este silêncio frouxo, cinzento, fizesse parte do
oceano matinal de seixos castanhos volteando placidamente na praia,
porque Egbo avistava agora a cruz. Como se tivesse um ramo
enganchado no sovaco, a cruz, com a base cravada na lama, erguia
uma curta parte da ponta superior acima das águas, apontando para
Egbo. Olhando à sua volta, Egbo não viu sinais da igreja. Era já noite,
porém, sabia que ela devia estar perto e, pondo-se em bicos de pés,
olhou para longe. Não tinha a certeza, mas julgara discernir os
contornos da igreja contra o fundo liso e cinzento. Prosseguiu naquele
sentido, sendo totalmente engolido pela escuridão.
Egbo-o-o-o-o-o Egbõ-o-o-o-o-o Egbo-o-o-o-o-o. A voz parecia
muito distante, ressaltando, num timbre agudo, sobre a superfície da
água imobili-zada... Soava tão distante e remota como a de sua tia,
chamando-o do outro extremo da praia, para lá do mar de ondas
fluindo, refluindo, chocando com os seus ouvidos, ensurdecendo-o...
Egbo-o-o-o-o-o-o Egbo-o-o-o-o-o-o-o... era a primeira recordação da
sua infância; via a excitada corrida que fizera para banhar os pés no
mar, vencendo as furiosas advertências da tia que jazia, cansada, sob
o luar, e cerrara os olhos por um breve momento, demasiado longo. E
achara estranho que ela, que se elevava nos ares tão à vontade,
vivesse com tal terror do oceano.
- Fica aqui ao pé de mim e deixa a orla branca vir lamber-te os
pés. Espera aqui mesmo e a água virá ter contigo.
- Todavia, ele escapara-se para longe, muito longe, da forma
adormecida... - Socorro! Socorro! Egbo, volta para aqui! Egbo-o-o-o-o.
Ele, porém, desejara receber duas grandes pulsações daquele
mar e queria sentir a água pelos joelhos e não apenas nos dedos dos
pés. No momento em que a água recuava, a tia alcançara-o e a
palmada dela catapultara-o em direcção ao perigo real de que
tentava protegê-lo.
Perguntara, enquanto regressavam ao local onde estava
estendida a capa dela:
- É agora que a mamã-água vai aparecer?
- Fecha-me essa boca e vamos embora. Egbo-o-o-o-o-o Egbo-o-o-
o-o... Ressaltando na superfície envidraçada da água à sua volta.
Kola! Há muito expirara a meia hora estabelecida e Kola devia
estar preocupado com ele. Parou. De qualquer modo, estava farto
daquela busca inútil...
Nesse momento, viu as chamas. Onde até momentos antes fora
total escuridão, um súbito clarão de chamas reflectia-se, bruxuleante,
nas paredes do moinho-igreja. Num arco, e quadrava-se uma canoa
entre duas alas de chamas; a água dançava violentamente
incendiada por dentro, mas à superfície apenas uma suave pulsação o
denunciava. As chamas - e abalado com aquele mistério, Egbo
procurava explicações não eram mais altas do que o seu peito e
esten-diam-se por quase cem metros ao longo da margem.
Iluminadas pelo fulgor, Egbo visualizava agora claramente as estacas
dos pescadores penetrando no leito da lagoa, uma estreita rede de
pesca separada das águas por um banco de aluviões. Por dentro
desta profunda enseada, num esguio curso de água, erguiam-se as
chamas, pois não havia dúvida, elas brotavam da superfície líquida.
Uma mudança do vento trouxe-lhe o odor acre da gasolina e,
vendo um barril deitado de lado, compreendeu o que sucedera. Não
se via qualquer outro ser humano ali perto e distinguia agora as duas
figuras que aguardavam do outro lado daquela armadilha: Lázaro e
Noé.
As chamas mal se haviam ateado quando a canoa avançou,
entrando na única passagem. Num instante, com golpes expeditos, os
remadores chegaram ao local onde Lázaro e Noé esperavam. Lázaro
saltou para a canoa, recuperou o equilíbrio, depois estendeu a mão a
Noé. Egbo forçou a vista, em busca de pormenores. Parecia que as
mangas brancas dos remadores haviam sido chamuscadas de negro
na viagem de ida. O suor corria livremente nas suas faces e
mantinham-se, naquela espera
claramente alargada, no centro das duas muralhas de fogo. E o
seu desconforto sob o calor aumentava, porque Noé não se mexia.
Lázaro estendera a mão e retirara-a imediatamente quando as
chamas lhe lamberam a manga vorazmente.
Porém, Noé continuava petrificado, incapaz de afastar os olhos
do fogo. Lázaro esperava e os dois remadores não se atreviam a
olhar, esperando que Lázaro agisse.
Não pronunciaram uma só palavra, limitaram-se a esperar até
Noé, o apóstata, encontrar coragem, ou a pálida figura, erecta na
canoa enquadrada pelas chamas, ceder e viajar sozinha através do
túnel de fogo.
Noé não olhava Lázaro e era evidente que este aguardava o
momento em que o rapaz o fizesse. A espera já fora demasiado longa
e o alcatrão começara a reluzir com um brilho viscoso, perigoso, nos
lados da canoa. Por trás de Lázaro, as águas dissolviam-se na negrura
da noite, vastos lagos de escuridão, oihos-antenas de Olokun;
permaneceria a canoa ali, insuportavelmente imóvel, qual oferenda a
um deus que o fogo consumiria à meia-noite?
Todavia, Noé continuava a fixar as chamas. A madeira da canoa
deu um estalo e os remadores olharam, não implorativamente, mas
olharam para Lázaro como se dissessem que agora decerto não
deviam esperar mais tempo. Ouviu-se outro estalo e algo quebrou
dentro de Noé. Deu meia volta e desatou a correr. Corria na direcção
de Egbo, mesmo à medida que as chamas iam morrendo, e a canoa,
com os flancos totalmente queimados, soltava estalidos cada vez
mais fracos. A fila de espectadores precipitou-se para a margem e,
com uma vara, puxaram Lázaro para terra. Noé prosseguia
cegamente a sua corrida, enquanto Lázaro permanecia de pé,
indiferente ao facto de o barco estar já atracado, e os apóstolos
observavam a figura de Noé que, na sua fuga, tropeçara na espessa
lama, emaranhando-se em redes ocultas. Egbo escutou o repulsivo
esmagamento de caranguejos nocturnos, espremidos sob os pés nus
de Noé, que espreitava constantemente por sobre o ombro, receando
ser perseguido. As chamas abateram-se lentamente, lançando a
longa sombra de Lázaro sobre a igreja. Conservou-se imóvel por
muito tempo, com os apóstolos atrás de si. Até que, por fim, se
afastou da margem e foi engolido pela igreja, sozinho, com o peso
enorme da sua derrota.
Egbo perguntava a si mesmo por que não sentira pena de
Lázaro, mas alegrava-se por o albino ignorar a sua presença ali.
E, caminhando na direcção que Noé tomara, sentia intimamente
que devia guardar o segredo da derrota daquele homem.
E o que é feito destes dilúvios do princípio de tudo, dos febris
nevoeiros do princípio, do primeiro arauto, o dedal da terra, uma ave
doméstica e uma espiga de cereal, procurando o local onde um
arranhão se tornaria uma ilha povoada? O que é feito do primeiro
apóstata rolando o penedo ao longo do dorso da divindade confiante -
porque elas devem receber a primeira facada nas costas e fazer que
os inferiores se conservem inofensivos, debaixo de olho-, e a
divindade a despedaçá-lo em mil pedaços, que eram recolhidos e
colados com devoção? O que é feito da concha da tartaruga em tomo
da divina ? E da interminável cadeia às ordens do deus, e do falo sem
origem apontado para um buraco do céu não divino! O que é feito do
amante da pureza, o irrepreensível cuja imensa compaixão abraçava
os estropiados e os mudos, os anões, os epilépticos e, realmente, por
que não? - Eles eram criação da sua mão ébria e qual a utilidade da
eterna penitência de favoritismo e abstinência? Que é feito do
amante de sangue, invencível em combate, insaciável no amor e na
carnificina, o explorador, o descobridor, protector da forja e das mãos
criadoras, companheiro da cabaça cuja visão carmínea de devassidão
o levou a atacar os seus e a chaciná-los até o grito penetrante cortar
aquele nevoeiro vínico, sustentando o seu braço e fazendo-o
pendurar a espada, tão absurda como a sua boca entreaberta? O que
é feito daquele que estava suspenso, imóvel, que ascendeu no lhama
às abóbadas celestes e domou o relâmpago de língua bífida e a pedra
de incandescência, longos braços da funda divina brincando ao jogo
fortuito das crianças, arrancando casas, árvores e crianças como a
manga ainda verde? O que é feito do ser bissexuado que se fendeu
no rio? E o rompimento do nevoeiro e o recuo do princípio, a guerra
eterna dos olhos perscrutadores, dos cento e um olhos de erudição,
ante e após-visão, a eterna guerra do primeiro processo com a longa
foice do acaso, ridicularizando eternamente as pretensões da taça
dos desígnios, ridicularizando linhas de ordem no anel do caos? O que
é feito do repulsivo flagelo purulento açoitando merídinas marés de
silenciosas selecções de vítimas? O que é feito daquele que ficou a
vigiar os primeiros frutos de gengibre terrestre com o vento soprando
à sua volta e o calor, a chuva e os sinais de mudança das estações...
- Apenas é necessária a ponte - disse Kola - ou a escadaria entre
o céu e a terra. Uma corda ou uma corrente. O elo, simplesmente.
Quinze meses depois, apenas falta o elo... Egbo interrompeu-o:
- No momento em que disseres de acordo, a minha faca
penetrará no pescoço deste carneiro. De acordo e um jorro de sangue
chegará ao tecto deste estúdio.
- Espero que ele te agrade - disse Simi.
- Sabes o que ela comprou primeiro? - perguntou Egbo.
- Um carneiro branco. Um carneiro branco, imagina!
- Bem, tu disseste um carneiro sem mancha.
- Mais uma razão para tu comprares um carneiro negro. Um
carneiro branco não pode ser sem mancha, é impossível não ter uma
mancha, ou estarei enganado?
- Joe Colder ter-te-ia feito uma prelecção se o carneiro fosse
branco. Complexo de inferioridade de cor, eis o que eu lhe chamaria.
- Quem é Joe Colder?
- Não o conheces? Agora me lembro, tu não assististe ao
concerto dele naquele dia.
- Não, não assisti. Foi naquele dia em que esta desnaturada não
apareceu.
- A culpa foi tua. Mandaste-me recado dizendo que irias buscar-
me a minha casa.
- Não: que devias ir ter comigo a casa de Bandele.
- Já te expliquei que o rapaz me disse...
- Vão recomeçar outra vez? E eu ainda não tive oportunidade de
te agradecer o carneiro. Simi.
- Devias agradecer-me era a mim, não a ela. Fui eu que lhe disse
para o comprar.
- E quem o pagou?
- A questão não é essa.
- No que me diz respeito, é.
Monica entrou, imobilizando-se ao ver Simi. Egbo fez as
apresentações e Monica estava cheia de admiração.
- E verdade. Você é aquela jovem bela, mas... é incrível! Kola
explicou:
- Ela estava convencida de que eu tinha idealizado Simi na
pintura.
- Sim, pensei que ele... oh, que falta de educação a minha em
estar a olhá-la assim, mas é realmente muito formosa. Não me parece
que a sua deusa pudesse ser mais bela na vida real. Sinceramente,
Kola, agora que a vi, digo-lhe que a sua pintura não lhe faz justiça.
- Esperem aí. - Egbo.levantou-se. - Eu julgava que nenhum de
nós podia ver essa coisa antes de a teres terminado.
A mão de Monica voou em direcção à boca e deu um pequeno
grito, corando violentamente.
Kola acenou as mãos, apelando à calma.
- Foi uma casualidade...
- Claro que foi uma casualidade, continua.
- Bom, isso não tem importância porque ela não posou para mim.
Eu não poderia aceitar que vocês... bem, ouviste o género de coisas
que ela tem estado a exclamar desde que entrou, como se eu tivesse
pedido a Simi que viesse aqui posar para mim. Suponhamos que
todos vocês se começavam a queixar porque eu vos deturpara no
meu trabalho... Quer dizer, a verdade é que vocês estão a substituir...
- Pois, pois... Nós compreendemos, não é, Simi?
- Bem, foi uma casualidade como já te disse, só que, em relação
a ela, o caso pouco importa.
- Oh, por favor, escusas de explicar, nós compreendemos. - Egbo
esquivou-se rapidamente a um tubo de tinta, enquanto Simi sorria
dentro da plácida armação do seu enigma.
- Vamos embora, Simi, alguns esperam quinze meses para ver
uma obra-prima, outros conseguem-no numa semana.
- Amarrem o carneiro lá fora quando saírem.
- Claro, claro, já sabemos que não somos precisos aqui.
- Você não está a trabalhar - declarou Monica. Havia já algum
tempo que estavam sós.
- Estou à espera de Lázaro.
- Lázaro? Pensava que ele se chamava Noé.
- Já acabei com Noé. Este ser sem rosto, aqui, é Noé... repare... é
o servo traiçoeiro fazendo rolar a pedra que esmagaria o seu patrão.
- Mas você disse...
- Foi um erro de avaliação. Noé como elo? Devia ter-me afogado
antes de dizer tamanha estupidez. Tive-o aqui, sentado, enquanto
tentava formular Esumare em torno da neutralidade dele. Enganava-
me redondamente, estupida-mente. Depois de lutar com ele quatro
horas sem sinal de um princípio, de um começo, tive de parar e, pela
primeira vez, olhei realmente para Noé. Se não tivesse sido vítima de
uma dose excessiva de cinismo, tê-lo-ia visto logo da primeira vez.
Noé era meramente negativo. A inocência do seu rosto era vacuidade
não aliviada. Ele não tinha nada, absolutamente nada. Desgostou-me
a minha falta de percepção.
- Então quem é Lázaro?
- O mestre de Noé. Um albino traficante de religião que Sagoe
conheceu. Ele vai trazê-lo cá esta tarde; é ele que eu espero.
- E depois?
- Depois, estará finalmente terminado. Trabalharei toda a noite se
necessário for. Sabe, Monica, tenho andado tão desesperadamente
ansioso por acabar com isto... Se amanhã não fosse a exposição...
Estou farto, farto e enjoado de ver este quadro. E... ora, isso pouco
importa.
- Porquê? Conte-me lá.
- Não, não tem importância, acredite. Agora já deve saber que
não sou verdadeiramente um artista. Nunca me decidi a sê-lo. Porém,
compreendo a natureza da arte e, por isso, sou um excelente
professor de arte. É tudo. Este quadro, por exemplo. Egbo obrigou-me
a começá-lo, sem o saber, é claro, e, com efeito, deveria ser ele a
pintá-lo, não eu, porque está mais ligado ao tema dele, bem
intimamente, e porque é suficientemente impiedoso. Mas, ao menos,
sou capaz de recordar, as minhas reminiscências de todas estas
presenças foram demasiado momentâneas e elas surgem em
fragmentos desarticulados, eis a razão porque levei tanto tempo...
- Quinze meses não é muito tempo e você fez outras coisas
entretanto.
- Nada de que me orgulhe particularmente. Nada que pusesse ao
lado dos trabalhos de Sekoni, mesmo sem falar no Lutador.
- E o Panteão?
- O Panteão é pesado. Confunde os sentidos, envergonha as
respostas objectivas. Mas refiro-me a mim próprio e ao processo vital.
Até Sagoe tem uma espécie de sétimo sentido, algo como uma
antena criadora com a qual desem-penha a sua vocação. Eu, porém...
Diga-me, acha que Egbo alguma vez tomaria Noé pelo Esumare? São
acidentes como esse que destroem a espontaneidade e fazem de um
artista um pinta-monos. E eu enganei-me quanto à natureza da sua
apostasia...
Monica estava de pé diante dele e indecisa, dando finalmente o
primeiro passo que iria comprometer ambos, ao acariciar o pescoço
dele com a sua longa cabeleira.
- Não será simplesmente porque o trabalho está quase terminado
e você está cheio de dúvidas? Kola, isso é normal, o desejo de não
crermos em nós próprios porque receamos que os outros não o
façam.
- Não, não é isso...
- E tem tanto medo da compaixão, da ternura até, como se isso o
pudesse enfraquecer. Mas a sua natureza é tema, por isso, porque
olha especialmente para Egbo quando afinal não o compreende?
- Não o compreendo?
- Não é o único. Bandele também é de opinião de que todos
vocês levam uma vida insensível, indiferente.
Ouviu-se um carro aproximar-se e Monica afastou-se dele.
- Espero que seja Sagoe - disse Kola.
- Sou eu - anunciou a voz no outro lado da porta. Lázaro está lá
fora. Posso trazê-lo aqui?
- Claro.
- Chegou a sua última figura, não o incomodarei mais.
- E Monica dirigiú-se para a porta. - Que nome lhe pôs?
- Esumare. O rasto de vómito da serpente celestial. Kola
começou a trabalhar como um louco enquanto Lázaro se sentava com
monumental tranqui-lidade; era, sem dúvida, o modelo mais sereno
que ele jamais tivera. Que algo o preocupava, era óbvio. Os seus
olhos interrogativos vasculhavam o estúdio, todavia. Kola preferiu
adiar a resposta àquela pergunta evidente, até ter o albino
aprisionado no ente que havia formulado e diariamente remode-lado.
Lázaro conservava-se obedientemente imóvel e Kola trabalhava com
frenesim, como se o mundo não lhe concedesse mais tempo.
Duas horas se escoaram antes' que ele começasse a afrouxar, e
Lázaro começou a agitar-se no banco.
- Onde está Noé?
- A passear pela universidade, suponho. Vem aqui comer quando
tem fome. Ò meu criado trata dele.
O outro parecia reordenar novamente as suas ideias.
- No mínimo, pensei ver nele um sucessor. Precisava de arranjar
um, fora da igreja. Os apóstolos, como humanos que são, invejam-se
entre si. Eu procu-rava um jovem com audácia, um jovem com um
fogo íntimo.
- Como os outros apóstolos?
- Sim - concordou. - Como os outros. Tem de haver algo a
converter. Um homem pacífico pode ser um bom praticante da
religião, mas não é um cristão seguro, cheio de fogo e dedicação. De
facto, quanto mais um homem conheceu o mal, mais força e poder
consegue tirar dele. Sei o que digo. Estas coisas ensinei-as a mim
próprio por tentativas. A igreja é a minha dedicação e tudo o que sei
aprendi-o sozinho. Sou capaz de ler a Bíblia em grego, sabia? Em
grego. Encontrei um dia uma velha Bíblia em grego e fui assaltado por
um desejo de aprender a língua dos Gregos, julgando que era a
mesma dos Hebreus. Não era. Porém, fiquei a saber a grega.
- Poucas pessoas se podem gabar disso.
- Para mim, o que é realmente importante é eu saber a
aritmética da religião. O assassino é o nosso futuro mártir, é o que se
inclina mais a ser o nosso mártir. Poucas pessoas se apercebem disso.
- Diga-me, como converteu Noé? - Kola estava apenas
semiatento e a reacção do albino quebrou a sua concentração.
Estava quase a gritar:
- Converti!? Eu não converti nada. Aquilo com que temos de
lutar, aquilo que combatemos e derrotamos, isso é que é uma
conversão. Transformar a natureza de um verdadeiro ladrão numa
semana, já alguma vez ouviu uma coisa dessas? Eu apenas persisti
porque era a época das cheias e essa é a altura dos nosso ritos
evangelizadores. Precisávamos de Noé. Os meus verdadeiros
discípulos são os ladrões, os rejeitados pela sociedade. Um dos
apóstolos é um falsário que passou cinco anos na prisão. Outro foi o
único membro que escapou à captura quando a quadrilha dele foi
presa após o assalto a um banco. Por muito urgente que fosse a
minha necessidade, não podia quebrar esta regra. Tinha de encontrar
um pecador.
- E assassinos? - inquiriu Kola.
- Um. Esfaqueou a mulher numa aldeia perto de Ughelli. Alguns
minutos depois, tendo recuperado a calma, afirmou:
- Tenho de tentar fazer com que Noé não regresse à sargeta.
- Tem planos?
- Não. Ele é livre de ir para onde quiser, à excepção de Lagos. - E
a sua veemência renasceu: - Não o quero em Lagos. Não está certo
que qualquer um daqueles que vai à minha igreja o possa encontrar a
surripiar ou a pilhar os mercados.
Aquela ideia parecia obcecá-lo. Lázaro ergue-se repentinamente.
- Você diz que não sabe onde ele está? Deixou-o ir para onde ele
quisesse?
- Não deve estar longe. Por favor, sente-se.
- Vamos procurá-lo.
- Só mais alguns minutos.
- Voltaremos depois, sr. Kola, não deve impacientar-se tanto; ao
fim e ao cabo, submeti-me à sua lei da imobilidade desde que
cheguei.
- Noé está bem, certamente. Deve andar pelos arredores.
- Você devia ter mais paciência. Mesmo o homem que possui o
dom da criação é cheio de paciência.
- Ah, sim? Se estamos a pensar na mesma pessoa, ele não criou
o mundo em apenas seis dias?
- Por favor, vamos procurá-lo imediatamente. Sinto em mim uma
impressão de perigo sempre que penso no caminho que ele tem à sua
frente a partir de agora.
- Está bem, se acha que precisa de uma pausa...
- Não, sr. Kola, não é uma questão de cansaço. Se neste
momento um homem qualquer encontar Noé e lhe disser: “Vem,
vamos roubar uma galinha”, ele segui-lo-á.
- E porque é que isso o preocupa tanto? Se ele for parar à cadeia,
você poderá dormir muito mais descansado.
Quando levava Simi no seu carro, de volta a casa de Bandele,
Egbo avistou Noé sob uma mangueira e parou a viatura. Estava de
pé, no meio de outros pilhantes de fruta, arremessando paus à
solitária manga madura num ramo de cachos verdes, duros. Chamou-
o, mas como Noé não deu sinal de ter ouvido, Egbo perguntou a si
próprio se seria de facto ele. Da sua experiência, dias atrás, não
restavam vestígios; algo ele não sabia bem o quê - deveria haver nele
que lhe recordasse a cena do fogo, mas Egbo nada descobriu que
sugerisse, que testemunhasse o terror e a fuga. Nada restava da
arrebatada gratidão com que havia aceitado a oferta de uma boleia,
da sua patética avidez quando Kola lhe perguntara: “Gostavas de vir
comigo para Ibadan?” E o modo como se acobardara num canto do
banco de trás, nada dizendo até Egbo sair defronte do seu
apartamento e Kola regressar a Ibadan com o seu trofeu.
- Quem é? - quis saber Simi.
- Só um minuto, eu já venho. - E avançou sobre os frutos
apodrecidos, levantando enxames de gordas varejeiras, batendo, por
fim, no ombro de Noé. Este sobressaltou-se e
olhou-o sem expressão. Examinando-o de peno. Egbo descobriu
que o resultado era o mesmo; a experiência da passagem pelo fogo
fora varrida ou simplesmente nunca existira. Noé estava purificado de
todos os momentos do seu passado, à excepção deste instante
recente de assalto às mangas.
- És um fenómeno - disse Egbo.
- Sor?
- Vem comigo.
Foi um súbito impulso de curiosidade. Como seria a confrontação
entre Noé e Lázaro após aquela noite.' Compreendeu então que
desejava estar presente nesse encontro. Felizmente, Noé
acompanhou-o, embora - Egbo estava certo não se lembrasse dele.
Para purificar, pensava Egbo, para purificar verda-deiramente um ser
humano, há que deixá-lo como Noé, morto, desvitalizado, sem
qualquer tipo de carácter, uma folha branca aguardando acidentais
garatujas.
- Foste sempre assim, Noé? Ou isso será obra de Lázaro?
- Sor?
Simi bateu-lhe, por brincadeira.
- Porque falas assim com ele, sabendo de antemão que não te
compreende?
- Na verdade, estou a falar comigo próprio, faço a minha voz
ressaltar no bronze polido do reflexo daquele... ah, agora nem sequer
lhe posso chamar apóstata. Estávamos todos enganados,
terrivelmente enganados. Kola deixou os corpos celestes fora do seu
Panteão, senão descobriria aquilo que Noé é. A apostasia de Noé não
é do género voluntário, trata-se unicamente da recusa de existir, a
recusa de ser um ente vivo, como a Lua.
- De que estás tu a falar?
- Não tem importância. Se não fosses uma canibal,
provavelmente também acabarias assim...
Saltou do automóvel antes que Simi lhe pudesse tocar. Quase de
imediato, o seu rosto tornou-se grave e entrou arrastando os pés,
dominado pela ver-gonha que lhe causava a recordação de, em
tempos, ter chamado apóstata ao seu próprio avô.
Egbo notou um movimento furtivo no canto, por detrás da tela, e
deteve-se, expectante. Por fim, um rosto branco espreitou junto do
cavalete e um homem avançou para ele, sorrindo timidamente.
- Olá.
- Quem é você?
- Lamento parecer tão comprometido, mas entrei aqui às
escondidas para dar uma olhadela ao quadro. Estava ansioso por ver
a parte que foi pintada por último.
Egbo deu cautelosamente um passo na direcção do seu
interlocutor, fitando-o ainda com desconfiança.
- Você deve ser um dos amigos de Kola. Eu sou Joe Colder.
- Ah, o cantor.
- Sim. Vinha à procura de Kola.
- Onde foi ele?
- Eu vi-o sair com o tipo de Lagos. Do meu apartamento consigo
ver este edifício, de modo que, quando eles saíram, pensei dar um
salto aqui, às escondidas, e dar uma vista de olhos ao quadro. A falar
verdade, já o fiz diversas vezes, mas por favor não vá contar isso a
Kola!
- Acho que vou seguir as suas pegadas. Parece que sou o único
com um sentido de respeito demasiado forte por este artista.
Joe Colder sorriu. Parecia quase uma criança cheia de alegria por
descobrir um amigo e conspirador.
- Julgo que sei qual das figuras é você. Com efeito, reconheci-o
imediatamente. Que me diz à última aquisição?
Egbo afastou os olhos daquilo que realmente desejava ver, a sua
própria presença naquela tela irresistível. A parte inacabada era uma
figura arqueada erguendo-se não de uma campa árida mas de um
caos primitivo de vórtices gasosos e águas diluvianãs. Nada a
envolvia excepto a luz, uma translucidez de arco-í ri s. Era Lázaro, a
nova dimensão que Kola via na aliança.
Egbo abanou lentamente a cabeça, como que tentando clarificar
a confusão dentro dela.
- Estou embaraçado - confessou.
- Porquê?
- Não posso aceitar esta concepção da vida. Ele fez do próprio
princípio uma ressurreição. É uma ilusão optimista da continuidade.
- Eu penso que o quadro é muito engenhoso.
- Não me estava a referir a isso.
- É eficaz. Que mais lhe podemos nós exigir?
- O meu amigo tem talentos muito dispares. Por exemplo, olhe
para aquilo que ele fez de mim: um maldito maníaco sanguinário
fugido de uma cela ultravigiada. Será que aquilo sou eu? Ou até
mesmo Ogun, que, presumo, é o que aquilo representa?
- Que tem aquilo de errado?
- É uma distorção desinspirada, é isso que está errado naquilo.
Ele agarrou num único mito, Ogun no auge da bebedeira, perdendo o
seu sentido de recognição e chacinando os seus próprios homens na
batalha; e Kola pintou-o no apogeu da carnificina.
- Bom, certamente que lhe concede o direito de escolher esse
momento.
- É a selectividade dele que eu disputo e contesto. Mesmo o
momento de reconhecimento tardio de Ogun teria sido... pelo menos
esse contém possibili-dades poéticas. Este demónio salpicado de
sangue é meramente melodramático. E, além disso, existe o Ogun da
forja, Ogun como primeiro artesão... ele, porém, deixa tudo isso de
lado para me registar como um facínora animalesco, cego pelo
sangue!
- Acredite, ele tem razão. Sempre lhe ouvi dizer que seria este o
resultado se permitisse que você visse o quadro.
- No que lhe diz respeito, está tudo muito bem. Esta não é a sua
cabeça niquelada substituindo a de Erinle?
- Não acho isso muito lisonjeiro. Todavia, talvez o deus seja ainda
pior. Isso serve-me de consolação.
- Vou-me embora - anunciou Egbo. - E levo comigo o meu
carneiro.
- Oh, aquele belo carneiro é seu?
- Sim, mandei comprá-lo para assinalar a conclusão da pintura e
a exposição de Sekoni; oh, já me esquecia que não era só para aquele
palhaço da paleta.
- Quer dizer que vai... matá-lo?
- Que outra coisa se faz com um carneiro? Mungi-lo? Joe Colder
reagiu com uma expressão nervosa que Egbo captou mas interpretou
erradamente.
- Não gosta de carne de carneiro?
- Não, não é isso. É o acto de matar. A ideia de ver •sangue a
jorrar provoca-me uma sensação esquisita.
Egbo contemplava aquela sólida cabeça, aquele corpo forte,
compacto, musculoso, e mal podia acreditar nos seus ouvidos.
- E verdade. Não suporto ver sangue. Egbo saiu abanando a
cabeça.
- Onde está Noé? - perguntou ao ver Simi sozinha no automóvel.
- Ele saiu logo a seguir a ti. Julgava que tinha ido ter contigo ao
estúdio.
- Oh, que vão todos para o diabo! Vamos embora.
O movimento preferido dela quando o via furioso era começar a
acariciar-lhe a nuca.
- Que foi que te aborreceu ali dentro?
- Aquele pintorzeco ateu! Devias ter visto o monstro que ele fez
de mim.
- Oh, viste o quadro? E a minha figura?
- A tua? Oh, a tua... Até me esqueci que tu também estavas
naquela maldita coisa.
Ligou o motor e partiu irritado, deixando Noé no estúdio com Joe
Golder.
divindade aquática).