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RESUMO ABSTRACT
A despeito dos diversos modos de compreender os Considering the different ways of understanding the
corpos sexuados e teorizar sobre eles, argumenta-se, sexed body and theorize about it, it is argued here
neste artigo, que o processo de naturalização das di- that the naturalization of sexual differences and the
ferenças sexuais e a patologização das identidades pathologizing of social identities perpetuate regimes
sociais perpetuam regimes de verdades que relacio- of truth that relate intelligible bodies with
nam corpos inteligíveis a expressões de gênero, com- expressions of gender, that are understood as real
preendidas como verdadeiras e/ou originais. Parte- and/or original. Through this perspective, I propose,
se do pressuposto de que a natureza do corpo sexuado based on the thought of Judith Butler, questioning
é “naturalizada” e de que o gênero é um conceito- the process of regulation of sexed body in order to
chave para se entender a materialidade do sexo e de cause frictions in the norm that qualifies the human.
como ele se faz passar por natural. Sob essa perspec- I assume that the nature of sexed body is
tiva, propõe-se, com base no pensamento de Judith “naturalized” and that gender is a key concept for
Butler, questionar o processo de normatização do understanding the materiality of sex and how it is
corpo sexuado, com vista a causar fricções na norma pass for natural. For this, besides developing
segundo a qual se qualifica o humano. Para isso, além butleriano’s concept of materiality of the body, also
de desenvolver a noção butleriana de materialidade I present the Foucault’s account of the regimes of
corpórea, apresenta-se também a perspectiva knowledge/power that produce sexed subjects. I
foucaultiana dos regimes de saber-poder que consti- bring also the historical perspective developed by
tuem os sujeitos sexuados. Traz-se ainda a perspec- Laquer of the passage of isomorphism for
tiva histórica desenvolvida por Laquer sobre a pas- dimorphisms. These perspectives show the sexed
sagem do isomorfismo para o dimorfismo. Tais pers- body linked to a history, being part of a discursive
pectivas mostram o corpo sexuado ligado a uma economy of a given era and culture.
historicidade, sendo parte de uma economia Keywords: Body; Gender; Materiality; Sexuality;
discursiva de uma determinada época e cultura. Subject.
Palavras-chave: Corpo; Gênero; Materialidade;
Sexualidade; Sujeito.
1
Graduada em Letras Licenciatura Plena Português/Inglês pela Faculdade São José (FSJ), mestre em Linguística Aplicada pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2009) e doutoranda do Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da mesma
instituição. E-mail: thayseguimaraes780@gmail.com
Quase tudo o que se queira dizer sobre sexo – de qualquer forma que o
sexo seja compreendido - já contém em
si uma reivindicação sobre o gênero.
(LAQUER, 2001, p. 23).
Constituídos como um fenômeno social na esfera pública, meu corpo é
e não é meu. Entregue desde o início ao mundo dos outros, carrega sua
marca, é formado dentro do cadinho da vida social; somente mais tarde,
e com certa insegurança, posso reclamar
meu corpo como meu, se, de fato, eu alguma vez o fizer.
(BUTLER, 2004, p. 25, tradução nossa).
corpos sexuados, tais como virilidade e for- e sexuais mostra que as fronteiras entre o
ça versus instinto materno e amor. gênero, o sexo e o desejo são porosas, flexí-
Agir de acordo com um/a homem/ veis e cheias de contradições e que as mo-
mulher seria pôr em ação verdades que se bilidades de gênero não estão condiciona-
acreditam estar fundamentadas na nature- das a um tipo de sexualidade. Não há nada
za sexuada daquele corpo (BENTO, 2010). por traz de um gênero que garanta sua
Sob essa perspectiva, se tal corpo fracassa ontologia e nenhuma razão para supor que
nas idealizações normativas de seu gênero, os gêneros devam permanecer em número
ele poderá ser posto à margem do conside- de dois (BUTLER, 1999).
rado humanamente legítimo. Entretanto, se Nesse sentido, a escolha de uma por-
as ações fracassam, ou seja, não corres- ta de entrada para um estudo sobre o corpo
pondem às verdades estabelecidas a cada sexuado parece estar repleta de paradoxos,
gênero, abre-se também a possibilidade de mas, se os paradoxos são as condições de
desarranjo das normas segundo as quais se nossa existência (BUTLER, 2004), será
qualifica o humano legítimo. Assim, vale possível evitá-los? A escolha da porta de
nos questionarmos sobre o que seria um entrada, neste trabalho, são as possibilida-
homem/mulher de verdade? Quem são os des de desarranjo de noções vistas como
seres não concebíveis como homem ou estáveis sobre nossas identidades sociais,
mulher? que, nesse caso, devem estar desvinculadas
O processo de naturalização das de qualquer ponto determinante. Assim,
identidades sociais e a sua patologização propomos, com base no pensamento de
perpetuam regimes de verdades que relaci- Judith Butler, questionar o processo de
onam corpos inteligíveis a expressões de normatização do corpo sexuado, com vista a
gênero compreendidas como originais e/ou causar fricções na norma segundo a qual se
verdadeiras. O gênero adquire vida pelas qualifica o humano. Partimos do pressupos-
roupas que compõem o corpo, gestos, olha- to de que a natureza do corpo sexuado é
res, ou seja, por uma estilística apropriada “naturalizada”, ou seja, é um processo em
(BUTLER, 1999). Aprendemos a distinguir, curso estritamente social, temporal, variá-
pelas marcas de gênero, corpos “femininos” vel, contínuo, repetitivo, arbitrário e contin-
de corpos “masculinos” e o tipo de sexuali- gente, mas indispensável como parte de
dade que tal corpo deve expressar. Sendo o esquemas de constituição dos sujeitos soci-
corpo controlado pelas idealizações de gê- ais e da materialidade de seus corpos
nero, devemos, então, questionar-nos sobre (BUTLER, 2004). Não se trata de negar
o caráter imutável do sexo e da diferença “fatos naturais”, mas de investigar os dis-
sexual. Se a explicação para os corpos-ho- positivos pelos quais o sexo, o gênero e a
mem e para os corpos-mulher está no seu sexualidade tornam-se fatos naturais.
gênero, não seria também o próprio Com base nesse objetivo, o trabalho
dimorfismo dos corpos tão contestável quan- se estrutura a partir de uma perspectiva his-
to seu gênero? Seria o corpo-sexuado suas tórica, desenvolvida por Laquer (2001), so-
marcas de gênero? bre a passagem do isomorfismo para o
O caráter aparentemente óbvio do dimorfismo. Em seus trabalhos, Laquer
gênero e do sexo, formulado com base na (2001) indica caminhos pelos quais a biolo-
compreensão binária e heteronormativa, gia da diferença sexual pôde ter se desen-
pode ser também o aparato através do qual volvido e sua relação com os interesses
esses termos se desconstroem e se epistemológicos e sociopolíticos da época.
desnaturalizam (BUTLER, 2004). A possi- Não desejamos, com essa abordagem histó-
bilidade de se viver em trânsitos identitários rica, procurar a verdade dos fatos, nem
tampouco negar a existência de tal verda- qualquer forma que o sexo seja compreen-
de; mas, antes, tentar compreender o pro- dido - já contém em si uma reivindicação
cesso mesmo pelo qual é produzido e sus- sobre o gênero” (LAQUER, 2001, p. 23).
tentado aquilo que conta como verdade. Na representação tradicional do sexo
Apresentamos, em seguida, a noção e da reprodução, ilustrada na cultura ociden-
foucaultiana dos regimes de saber-poder tal pela literatura médica da Antiguidade,
que constituem os sujeitos sexuados (FOU- segundo Laquer (2001), até o fim do século
CAULT, 1999). O corpo só ganha significa- XVII, a compreensão da natureza sexual
do e é sexuado no contexto das relações de humana foi diferente da distinção binária.
poder, ao ser determinado por discursos. Por O autor identifica uma noção que, embora
fim, entrelaçamos tais perspectivas à percep- variável em muitos aspectos, operava com
ção butleriana de materialidade corpórea, um corpo “unissexuado”: uma noção de
segundo a qual não há possibilidade de corpo do sexo único. Até meados do século
acessar o corpo em sua materialidade, uma XVII, os anatomistas trabalhavam com a
vez que o mesmo está, desde o início, apri- convenção de que existia apenas um corpo
sionado em redes de significados e valores, e pelo menos dois gêneros. Não havia uma
sendo o gênero porta de entrada para essa noção de homens e mulheres pertencentes
realidade. a sexos incomensuravelmente diferentes.
Enquanto que, no dimorfismo, os órgãos
2 O corpo sexuado: do isomorfismo ao sexuais femininos diferem dos masculinos,
dimorfismo na convenção isomórfica, os órgãos do cor-
po feminino eram vistos como menos de-
As diferenças atribuídas ao corpo afe- senvolvidos que os do corpo masculino.
tam o modo como compreendemos e lida- Nessa noção, o corpo feminino era
mos com a noção de identidade. A tendên- considerado uma versão inferior do corpo
cia é pensar em identidade sexual como um masculino “num eixo vertical de infinitas
pressuposto dado, básico, comum, na me- graduações”. Havia uma estrutura básica do
dida em que podemos distinguir, em quase corpo humano e essa estrutura era masculi-
todas as sociedades, alguma forma de dis- na. Segundo o médico Galeno, seguidor de
tinção masculino/feminino (NICHOLSON, Aristóteles, as mulheres tinham a mesma
2000). Entretanto, fazendo alusão a um genitália que os homens, só que a delas fi-
questionamento butleriano (1999, p. 25), cava para dentro do corpo e não para fora,
podemos nos referir a um dado sexo sem devido à falta de calor vital (BOZON, 2004).
antes investigar como são dados os sexos e Assim, a vagina e o colo do útero não eram
por que meios? Quais as tecnologias que algo distinto do pênis, mas se constituíam
fazem o corpo sexuado? Os corpos uma versão do pênis menos desenvolvida.
anatomicamente diferenciados possuem A diferença entre masculino e feminino era
uma genealogia capaz de expor as opções de grau de perfeição e não de natureza. As
binárias como uma construção variável. mulheres se diferenciavam dos homens por
A pesquisa histórica de Laquer serem machos menos perfeitos, tanto no fí-
(2001) versa sobre a criação do sexo. Em seu sico quanto no social, situados hierarquica-
trabalho, o autor apresenta um estudo so- mente mais abaixo. Nessa época, segundo
bre a passagem do isomorfismo para o Laquer (2001), o discurso dominante inter-
dimorfismo, demonstrando como a inven- pretava os corpos masculinos e femininos
ção da diferença sexual foi motivada pelos como versões hierárquicas e verticalmente
interesses de gênero, de modo que “quase ordenadas de um sexo. Os discursos da bio-
tudo o que se queira dizer sobre o sexo – de logia ligavam as qualidades íntimas e as ex-
corpo, formou-se uma teia de observações pecíficos de saber e poder a respeito do sexo.
sobre o sexo. Essas observações tornaram a São eles: (1) a histerização do corpo da mu-
sexualidade um domínio penetrável “natu- lher; (2) a pedagogização do sexo da crian-
ralmente” por processos patológicos, que ça; (3) a socialização das condutas de procri-
solicitava intervenção médica e normaliza- ação; e (4) a psiquiatrização do prazer per-
ção. Assim, entraram também, em ativida- verso (FOUCAULT, 1999, p. 99). Consi-
de, outros focos que suscitaram os discur- derando esses dispositivos de saber-poder,
sos sobre o sexo, tais como a Medicina, a se a preocupação com o sexo aumentou ao
Psiquiatria, a Justiça Penal, a Pedagogia e longo do século XVIII, quatro figuras se
toda a estrutura do espaço escolar. esboçaram como objetos privilegiados de
Abre-se, assim, segundo Foucault saber e alvos ou pontos de fixação de em-
(1999), a era do biopoder. Uma explosão de preendimentos do poder: a mulher histéri-
técnicas diversas para obter a sujeição dos ca, a criança masturbadora, o casal
corpos e o controle das populações. Falou- malthusiano e o adulto perverso. Cada uma
se de sexo, não apenas como uma coisa que dessas figuras tornou-se correlativa a uma
se deve simplesmente coordenar ou tolerar, daquelas estratégias, que percorreram ou
mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, utilizaram o sexo das crianças, dos homens
regular para o bem de todos, fazer funcio- e das mulheres.
nar segundo um padrão ótimo. O sexo não O poder, tal como Foucault trabalha,
se julga apenas, mas se administra. Através aparece em sua análise, como já menciona-
de pesquisas quantitativas ou causais, o dis- do, em contraposição ao que o autor chama
curso formulado sobre o sexo deixa de ser de “hipótese repressiva”. Foucault não ade-
um discurso unicamente da moral e passa a re à conceituação de poder em que o mes-
ser também da racionalidade (FOUCAULT, mo é compreendido como externo, assumin-
1999). É uma tecnologia do sexo inteiramen- do uma forma geral, homogênea e sempre
te nova, porque sem ser realmente indepen- negativa. Para o filósofo, o poder disfarça
dente da temática do pecado, escapa, pelo uma parte importante de si mesmo – seu
discurso científico e racional, da instituição caráter produtivo –, e só assim ele é tolera-
eclesiástica. do e aceito. De acordo com Foucault (2002,
A característica dos séculos XVIII e p. 203), o poder não deve ser entendido
XIX é a variedade, a larga dispersão dos apa- apenas “como dominação, como suprema-
relhos inventados para falar do sexo, para cia, como um dado fundamental, um prin-
fazê-lo falar, para obter que fale de si mes- cípio único. Ao contrário, ele sempre deve
mo, para escutar, registrar, transcrever etc. ser considerado em relação a um campo de
(FOUCAULT, 2005). Em seu estudo, interações, contemplado em uma relação
Foucault (1999) aborda diversos discursos que não pode ser dissociada de formas de
e diferentes formas de articulação poder- conhecimento”. Pode-se afirmar que o po-
saber que marcaram a história do corpo der é onipresente, pois se produz a cada ins-
sexuado. Seu objetivo era entender os me- tante, em todas as relações entre um ponto
canismos pelos quais o que é considerado e outro. Para o autor, o indivíduo é, desde o
problema ganha tal status. Segundo o au- seu surgimento, modelado por um poder
tor, não existe uma estratégia única, global, regulador, cuja característica de funciona-
válida para toda a sociedade e uniformemen- mento é sua capacidade criativa para disfar-
te referente a todas as manifestações do çar sua genealogia e estratégia de permanên-
sexo, mas parece possível distinguir, a par- cia. Tem-se que sempre onde há poder, há
tir do século XVIII, quatro conjuntos estra- resistência. Se, como afirmarmos, o poder
tégicos, que desenvolvem dispositivos es- se dá nas relações através dos discursos, é
também o discurso que cria a possibilidade operam indicando quem, o quê e que práti-
de resistência. Dessa forma, essa resistên- ca são considerados reais ou verdadeiros.
cia não se encontra nunca em posição de Assim, a sexualidade, longe de ser um fe-
exterioridade, mas em pontos móveis e tran- nômeno natural, é, ao contrário, profunda-
sitórios. Assim, mente suscetível às influências sociais e
culturais; é produto de forças sociais e his-
é preciso admitir um jogo complexo e ins- tóricas. É a sociedade e a cultura que desig-
tável em que o discurso pode ser, ao mes- nam se determinadas práticas sexuais são
mo tempo, instrumento de efeito de po- apropriadas ou não, morais ou imorais, sau-
der, e também obstáculo, escora, ponto de
resistência e ponto de partida de uma es-
dáveis ou doentias. A história da nossa con-
tratégia oposta. O discurso veicula e pro- cepção de sexo e sexualidade é a história
duz poder; reforça-o mas também o mina, dos sistemas de valores fundamentais em
expõe, debilita e permite barrá-lo cada sociedade.
(FOUCAULT, 1999, p. 96). Nesse ponto, na medida em que a
sexualidade é coextensiva à existência hu-
Nas relações de poder, a sexualida- mana e produto de forças sociais e históri-
de é um dos elementos dotados de maior cas, os termos que desenham o campo de
instrumentalidade, utilizável no maior nú- possibilidade dos sujeitos surgem como ele-
mero de manobras e servindo de articula- mentos centrais neste trabalho. A
ção às mais variadas estratégias, funcionan- materialidade do corpo e seu gênero apare-
do de acordo com técnicas móveis, poli- cem como lócus principal desta discussão.
morfas e conjunturais de poder. É por isso
que, no século XIX, ela foi esmiuçada em 4 Radicalizando a materialidade do cor-
cada existência, nos seus mínimos detalhes. po
A sexualidade é um dispositivo histórico e
deve ser pensada a partir das técnicas de Até agora, com a finalidade de ex-
poder que lhe são contemporâneas; é uma pandir e realçar um campo de possibilida-
forma de moldar o self “na experiência da des para a vida corpórea, este trabalho se
carne”, que se constitui em torno de certas empenhou em apresentar a diferença sexu-
formas de comportamento (FOUCAULT, al e o corpo natural como socialmente pos-
1999). É assim que as micropráticas do tos, como parte de uma economia discursiva
biopoder aparecem fortemente ligadas à de uma determinada época e cultura
sexualidade. “Sexualidade é um ponto de (FOUCAULT, 1999). O corpo tem uma
passagem particularmente denso pelas re- historicidade, como apresentado por Laquer
lações de poder” (FOUCAULT, 1999, p. e Foucault, e se constitui nas/pelas relações
136); ela se põe como um instrumento de de poder. Há uma história social ligada às
subjetivação, como uma ferramenta do po- diferenças sexuais e ao sexo: termos como
der. “natureza”, “sexo”, “masculino”, “femini-
Aqui cabe o conceito foucaultiano de no”, “biologia”, “pênis”, “vagina”, “sexua-
episteme, segundo o qual cada época tem lidade” e “gênero” não existem fora de um
seus paradigmas típicos, que orientam e marco cultural. A própria noção de sexo, to-
condicionam a produção científica e inte- mado como um dispositivo de sexualidade
lectual de um dado momento histórico. por Foucault, permitiu, segundo o autor,
Desse modo, não há uma abordagem pura- agrupar elementos anatômicos, funções bi-
mente epistêmica da sexualidade, que seja ológicas, condutas, sensações e prazeres.
isenta. As categorizações são feitas e susten- “Foi por meio desse dispositivo de sexuali-
tadas pelas relações de poder existentes, que dade que o sexo pôde funcionar como prin-
cípio causal, de sentido onipresente [...]: o seu próprio contorno físico. O gênero é par-
sexo pôde funcionar como significante úni- te dessa estrutura, quando não a matriz de
co e significado universal” (FOUCAULT, todas as estruturas. Para Butler (1999), o
1999, p. 144-145). gênero vem antes da possibilidade de um
Tal percepção foucaultiana tem pre- eu; é um tipo de porta de entrada para a re-
sença fundamental nas reflexões de Butler. alidade, pelo qual passam os seres huma-
Foucault procurou compreender os meca- nos para alcançar a humanidade completa.
nismos pelos quais os corpos só ganham sig- A crítica de Butler (1999) à confian-
nificados e são sexuados no contexto das ça na primazia e anterioridade da diferença
relações de poder, ao serem determinados sexual está imediatamente implicada na vi-
por um discurso. Similarmente, Butler são de gênero enquanto artefato cultural e
(2004) põe em pauta os processos pelos corporal, enquanto lócus sobre o qual a cul-
quais os fatos naturais vêm a ser natura- tura age imprimindo suas marcas. A autora
lizados. Com base na noção de poder pro- substitui a questão acerca do gênero, como
dutivo de Foucault, a autora investiga os a interpretação do sexo, pela questão de
termos que compõem o campo de possibi- desvendar como o gênero trabalha “materi-
lidade dos sujeitos, recusando qualquer re- alizando” o corpo sexuado. Dessa forma, é
alidade biológica que antecede o discurso e possível compreender que teorizar o sexo
sobre a qual a cultura imprimiria suas mar- como algo biologicamente posto contribui
cas, ou a partir da qual se construiria o gê- para a sua fixação enquanto norma. Tal ques-
nero. Rejeitando a metafísica da substância, tão pode ser mais complexa, mas é também
mais do que descartar a natureza biológica, mais próspera. Quando Butler (1999) assu-
Butler a desloca inteiramente para dentro me que não podemos traçar o caminho se-
do âmbito discursivo da linguagem e da cul- gundo o qual o gênero se referiria a uma
tura (TORRANO, 2010). Tal natureza é realidade biológica anterior à cultura, a au-
socialmente produzida, um efeito que en- tora acaba com o problema daqueles que
tão aparece como anterior, escondendo sua afirmam que o gênero é regulado por uma
origem. Com isso, segundo Butler (2004), força que lhe é exterior. Em síntese, Butler
não é suficiente afirmar que os sujeitos es- (1999) critica a visão consolidada de gêne-
tão mergulhados em seu próprio contexto; ro, que o trata como leitura social da verda-
mais do que isso, o sujeito só é permitido, de do sexo - esse sim, um dado biológico,
possibilitado e legitimado por tal contexto - natural e bruto. A diferença sexual e o cor-
sua cultura, linguagem e história. Assim sen- po natural são, eles mesmos, socialmente
do, a fonte de significado não é o corpo, mas postos; o sexo não é uma descrição ou algo
são as práticas significantes que insistem em que se possua, um constante estático; é uma
localizar o corpo como anterioridade posta. norma, um ideal.
Segundo o conceito de materialidade A questão acerca do gênero, como a
de Butler (2004), a ontologia não pode ser interpretação social do sexo, também é pre-
separada da sua historicidade: ela é uma ocupação de teóricas como Joan Scott
imposição normativa, de modo que não há (2005), Linda Nicholson (2000) e Anne
nenhum status ontológico para o gênero, o Fausto-Sterling (2001/2002). Suas percep-
sexo ou o corpo para além dos atos ções apontam para a necessidade de exami-
discursivos. Nesse sentido, não há possibi- nar as categorias identitárias de um novo
lidade de acessar o corpo em sua mate- ângulo, o que tem resultado nas teorias de
rialidade, uma vez que ele está, desde o iní- gênero. Entre as autoras, é comum o reco-
cio, “aprisionado” em uma rede de signifi- nhecimento da importância da crítica ao
cados e valores que contribuem para formar universalismo, ao essencialismo, ao bina-
relações de poder. Como apresentado, a in- dizer, uma vez que nem tudo é produzido
tervenção que construiu o corpo sexuado de acordo com as normas (BUTLER, 1999).
como dimórfico e amarrou o destino desse Chegamos, assim, ao caminho indi-
corpo à sua genitália é parte de uma série cado por Butler à possibilidade de desarran-
de normas sociais que tiveram como com- jo na norma segundo a qual se qualifica o
promisso o objetivo de controlar e produzir humano. Há corpos que escapam ao proces-
a “sexualidade normal” em corpos sexuados. so de produção dos gêneros inteligíveis (ho-
Dessa perspectiva, os atos que fazem os cor- mem/masculino e mulher/feminino) e, ao
pos sexuais são experiências compartilhadas fazê-lo, demonstram que não somos predes-
pelas significações sociais. O sexo anatômico tinados a cumprir os desejos de nossas es-
não é aquilo que alguém tem ou uma des- truturas corpóreas. As fronteiras que deli-
crição estática, mas um qualificador para se mitam o campo do que se pode conhecer
adentrar na categoria humano e tornar-se guardam sempre a possibilidade de desar-
sujeito em um mundo previamente posto, ranjo; assim, toda existência que persiste
possibilitado por normas que nos antece- para além das bordas do legítimo distorce e
dem. expande forçosamente essas mesmas bor-
Nossos corpos e nossa subjetividade das. O fato de o abjeto ser, por seu nasci-
estão marcados, desde o início, por um dis- mento, ameaçador por definição permite
curso colocado para nós por outro. Isso nos que ele seja não somente uma contestação
torna, de certo modo, exteriores a nós mes- constante, mas um recurso crítico,
mos: “estou fora de mim desde o início, e desestabilizador da regulação das práticas
devo estar, para sobreviver, e para fazer par- identificadoras que traçam a linha entre le-
te do reino possível” (BUTLER, 1993, p. gítimo e ilegítimo, humano e inumano. Ao
32, tradução nossa). Este outro aparece di- mesmo tempo em que cria o que não é in-
ante de mim e faz exigências sobre mim, teligível enquanto tal, o abjeto instaura, no
estrutura meu ser desde o começo. Entre- mesmo ato, o inteligível, o possível. Com
tanto, ninguém, de fato, cumpre completa- isso, é o abjeto, a exceção, o excepcional,
mente as suas próprias expectativas da que nos sinaliza o caráter produtivo do dis-
normatização, dado que a norma se coloca curso, que pode nos mostrar que há apenas
como um ideal a ser conquistado que nun- contingência e arbitrariedade naquilo que
ca é plenamente atingido em sua instância é dado por necessário (BUTLER, 2004). O
material. Há, dessa forma, uma falha da estranho, por sua própria incoerência, expõe
identidade que lhe é inerente; daí o caráter a construção do que se passa por atemporal
fictício da norma do gênero, uma vez que e mostra que existem formas de se construir
trata de uma categoria histórica, um estilo diferentemente.
corporal, uma representação fantasiosa do É justamente onde se distorcem as
corpo, instituída e inscrita na superfície cor- condições de aceitabilidade de um sistema
poral por normas sociais (BUTLER, 1999). que vemos que as normas sempre falham
As normas do gênero são um projeto em constituir plenamente os sujeitos e que
que visa a sobrevivência cultural, um ideal, são impossíveis de ser incorporadas plena-
norma que nunca pode ser inteiramente mente. No entanto, essa falha é a condição
internalizada (BUTLER, 1999), pois a dis- de possibilidade para se constituir, onde o
tinção mesma entre interno e externo é que é constituído é um sujeito agente, que,
concomitante à instituição do sujeito e de enquanto tal, é maior que o processo pelo
suas identidades. Desse modo, a constru- qual surge, maior que a cena inauguradora
ção social dos sujeitos é sempre parcial, nun- de sua interpelação (BUTLER, 2004). Nun-
ca exaustiva, e deixa um resto, por assim ca estamos capazes de nos desligar da ideo-