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A CONSTRUÇÃO DO CORPO SEXUADO: UMA REFLEXÃO


SOBRE OS SIGNIFICADOS DE GÊNERO E DE COMO ESTE
SE ARTICULA COM O CORPO

THE CONSTRUCTION OF THE SEXED BODY: A REFLECTION


OF MEANINGS OF GENDER AND HOW IT ARTICULATES WITH
THE BODY

THAYSE FIGUEIRA GUIMARÃES1

Recebido em: 11/04/2011


Aprovado em: 24/06/2011

RESUMO ABSTRACT

A despeito dos diversos modos de compreender os Considering the different ways of understanding the
corpos sexuados e teorizar sobre eles, argumenta-se, sexed body and theorize about it, it is argued here
neste artigo, que o processo de naturalização das di- that the naturalization of sexual differences and the
ferenças sexuais e a patologização das identidades pathologizing of social identities perpetuate regimes
sociais perpetuam regimes de verdades que relacio- of truth that relate intelligible bodies with
nam corpos inteligíveis a expressões de gênero, com- expressions of gender, that are understood as real
preendidas como verdadeiras e/ou originais. Parte- and/or original. Through this perspective, I propose,
se do pressuposto de que a natureza do corpo sexuado based on the thought of Judith Butler, questioning
é “naturalizada” e de que o gênero é um conceito- the process of regulation of sexed body in order to
chave para se entender a materialidade do sexo e de cause frictions in the norm that qualifies the human.
como ele se faz passar por natural. Sob essa perspec- I assume that the nature of sexed body is
tiva, propõe-se, com base no pensamento de Judith “naturalized” and that gender is a key concept for
Butler, questionar o processo de normatização do understanding the materiality of sex and how it is
corpo sexuado, com vista a causar fricções na norma pass for natural. For this, besides developing
segundo a qual se qualifica o humano. Para isso, além butleriano’s concept of materiality of the body, also
de desenvolver a noção butleriana de materialidade I present the Foucault’s account of the regimes of
corpórea, apresenta-se também a perspectiva knowledge/power that produce sexed subjects. I
foucaultiana dos regimes de saber-poder que consti- bring also the historical perspective developed by
tuem os sujeitos sexuados. Traz-se ainda a perspec- Laquer of the passage of isomorphism for
tiva histórica desenvolvida por Laquer sobre a pas- dimorphisms. These perspectives show the sexed
sagem do isomorfismo para o dimorfismo. Tais pers- body linked to a history, being part of a discursive
pectivas mostram o corpo sexuado ligado a uma economy of a given era and culture.
historicidade, sendo parte de uma economia Keywords: Body; Gender; Materiality; Sexuality;
discursiva de uma determinada época e cultura. Subject.
Palavras-chave: Corpo; Gênero; Materialidade;
Sexualidade; Sujeito.

1
Graduada em Letras Licenciatura Plena Português/Inglês pela Faculdade São José (FSJ), mestre em Linguística Aplicada pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2009) e doutoranda do Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da mesma
instituição. E-mail: thayseguimaraes780@gmail.com

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Quase tudo o que se queira dizer sobre sexo – de qualquer forma que o
sexo seja compreendido - já contém em
si uma reivindicação sobre o gênero.
(LAQUER, 2001, p. 23).
Constituídos como um fenômeno social na esfera pública, meu corpo é
e não é meu. Entregue desde o início ao mundo dos outros, carrega sua
marca, é formado dentro do cadinho da vida social; somente mais tarde,
e com certa insegurança, posso reclamar
meu corpo como meu, se, de fato, eu alguma vez o fizer.
(BUTLER, 2004, p. 25, tradução nossa).

1 Introdução São suas estruturas cromossomáticas? São


seus hormônios? É a possibilidade de repro-
De modo geral, na história dos estu- dução? Por que seriam esses os fatores de-
dos sobre os corpos sexuados, compreende- cisivos? E o gênero?
se a humanidade como parte das espécies Nascemos em um mundo previa-
de reprodução sexuada que tem dois sexos mente posto, possibilitado por normas an-
anatomofisiológicos. A sociedade se organi- teriores a nós, que privilegiam somente um
za confiando nessa diferença sexual, de tal modo de sociabilidade para a vida corpórea.
modo que existir é, antes de tudo, ser ho- Essa concepção parte do princípio de que
mem ou ser mulher. Tomando como há dois corpos opostos incomensuráveis:
referencial a situação de uma mulher grávi- macho e fêmea, diferentes não somente em
da, por exemplo, conforme os meses pas- seus sexos, mas em todo aspecto concebí-
sam, aumenta a ansiedade sobre o sexo da vel do corpo e da alma (LAQUER, 2001).
criança. A revelação esperada não é um di- Esses corpos são portadores de diferenças
agnóstico imparcial e descompromissado, irrelacionáveis, como a espessura da pele, o
mas um comando, a enunciação de uma tamanho do crânio, a estrutura psíquica e os
norma. A materialidade do corpo só adqui- órgãos genitais, sendo que tais diferenças só
re vida inteligível quando é anunciado o se complementariam no ato sexual. As mar-
sexo do feto (BENTO, 2010). Essa revela- cas anatomofisiológicas, nesse caso, não são
ção evoca um conjunto de expectativas e su- somente a causa do que é distinto entre os
posições que se dirigem para a preparação corpos, mas também algo que torna essa dis-
do corpo, para que desempenhe com êxito tinção altamente binária e heteronormativa:
o seu gênero. Logo a sociedade irá receber cria-se um corpo-homem e um corpo-mu-
uma menina ou um menino, e a construção lher com essências próprias, nos quais a
de tal corpo seguirá expectativas de com- heterossexualidade daria coerência às dife-
portamento, tipo de vestimenta, campo renças binárias do gênero (NICHOLSON,
discursivo, gestos, olhares e outros, cujas 2000). Dentro dessa interpretação funda-
bases obedecem à lógica dos gêneros inte- cionalista da diferença sexual, o único lugar
ligíveis: vagina-mulher-feminino versus habitável para o feminino torna-se os cor-
pênis-homem-masculino. Esses sinais exte- pos-mulheres, e, para o masculino, os cor-
riores, postos em ação, dão visibilidade ao pos-homens (BENTO, 2010), sendo os
corpo e o qualificam dentro da categoria de mesmos compreendidos como naturalmen-
humano (BENTO, 2010). Mas afinal, qual te opostos - signo pelo qual esse corpo se
é a substância material que determina a ver- torna legítimo. Daí as promessas e expecta-
dade desses corpos? São as suas genitálias? tivas que se produzem para cada um desses

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corpos sexuados, tais como virilidade e for- e sexuais mostra que as fronteiras entre o
ça versus instinto materno e amor. gênero, o sexo e o desejo são porosas, flexí-
Agir de acordo com um/a homem/ veis e cheias de contradições e que as mo-
mulher seria pôr em ação verdades que se bilidades de gênero não estão condiciona-
acreditam estar fundamentadas na nature- das a um tipo de sexualidade. Não há nada
za sexuada daquele corpo (BENTO, 2010). por traz de um gênero que garanta sua
Sob essa perspectiva, se tal corpo fracassa ontologia e nenhuma razão para supor que
nas idealizações normativas de seu gênero, os gêneros devam permanecer em número
ele poderá ser posto à margem do conside- de dois (BUTLER, 1999).
rado humanamente legítimo. Entretanto, se Nesse sentido, a escolha de uma por-
as ações fracassam, ou seja, não corres- ta de entrada para um estudo sobre o corpo
pondem às verdades estabelecidas a cada sexuado parece estar repleta de paradoxos,
gênero, abre-se também a possibilidade de mas, se os paradoxos são as condições de
desarranjo das normas segundo as quais se nossa existência (BUTLER, 2004), será
qualifica o humano legítimo. Assim, vale possível evitá-los? A escolha da porta de
nos questionarmos sobre o que seria um entrada, neste trabalho, são as possibilida-
homem/mulher de verdade? Quem são os des de desarranjo de noções vistas como
seres não concebíveis como homem ou estáveis sobre nossas identidades sociais,
mulher? que, nesse caso, devem estar desvinculadas
O processo de naturalização das de qualquer ponto determinante. Assim,
identidades sociais e a sua patologização propomos, com base no pensamento de
perpetuam regimes de verdades que relaci- Judith Butler, questionar o processo de
onam corpos inteligíveis a expressões de normatização do corpo sexuado, com vista a
gênero compreendidas como originais e/ou causar fricções na norma segundo a qual se
verdadeiras. O gênero adquire vida pelas qualifica o humano. Partimos do pressupos-
roupas que compõem o corpo, gestos, olha- to de que a natureza do corpo sexuado é
res, ou seja, por uma estilística apropriada “naturalizada”, ou seja, é um processo em
(BUTLER, 1999). Aprendemos a distinguir, curso estritamente social, temporal, variá-
pelas marcas de gênero, corpos “femininos” vel, contínuo, repetitivo, arbitrário e contin-
de corpos “masculinos” e o tipo de sexuali- gente, mas indispensável como parte de
dade que tal corpo deve expressar. Sendo o esquemas de constituição dos sujeitos soci-
corpo controlado pelas idealizações de gê- ais e da materialidade de seus corpos
nero, devemos, então, questionar-nos sobre (BUTLER, 2004). Não se trata de negar
o caráter imutável do sexo e da diferença “fatos naturais”, mas de investigar os dis-
sexual. Se a explicação para os corpos-ho- positivos pelos quais o sexo, o gênero e a
mem e para os corpos-mulher está no seu sexualidade tornam-se fatos naturais.
gênero, não seria também o próprio Com base nesse objetivo, o trabalho
dimorfismo dos corpos tão contestável quan- se estrutura a partir de uma perspectiva his-
to seu gênero? Seria o corpo-sexuado suas tórica, desenvolvida por Laquer (2001), so-
marcas de gênero? bre a passagem do isomorfismo para o
O caráter aparentemente óbvio do dimorfismo. Em seus trabalhos, Laquer
gênero e do sexo, formulado com base na (2001) indica caminhos pelos quais a biolo-
compreensão binária e heteronormativa, gia da diferença sexual pôde ter se desen-
pode ser também o aparato através do qual volvido e sua relação com os interesses
esses termos se desconstroem e se epistemológicos e sociopolíticos da época.
desnaturalizam (BUTLER, 2004). A possi- Não desejamos, com essa abordagem histó-
bilidade de se viver em trânsitos identitários rica, procurar a verdade dos fatos, nem

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tampouco negar a existência de tal verda- qualquer forma que o sexo seja compreen-
de; mas, antes, tentar compreender o pro- dido - já contém em si uma reivindicação
cesso mesmo pelo qual é produzido e sus- sobre o gênero” (LAQUER, 2001, p. 23).
tentado aquilo que conta como verdade. Na representação tradicional do sexo
Apresentamos, em seguida, a noção e da reprodução, ilustrada na cultura ociden-
foucaultiana dos regimes de saber-poder tal pela literatura médica da Antiguidade,
que constituem os sujeitos sexuados (FOU- segundo Laquer (2001), até o fim do século
CAULT, 1999). O corpo só ganha significa- XVII, a compreensão da natureza sexual
do e é sexuado no contexto das relações de humana foi diferente da distinção binária.
poder, ao ser determinado por discursos. Por O autor identifica uma noção que, embora
fim, entrelaçamos tais perspectivas à percep- variável em muitos aspectos, operava com
ção butleriana de materialidade corpórea, um corpo “unissexuado”: uma noção de
segundo a qual não há possibilidade de corpo do sexo único. Até meados do século
acessar o corpo em sua materialidade, uma XVII, os anatomistas trabalhavam com a
vez que o mesmo está, desde o início, apri- convenção de que existia apenas um corpo
sionado em redes de significados e valores, e pelo menos dois gêneros. Não havia uma
sendo o gênero porta de entrada para essa noção de homens e mulheres pertencentes
realidade. a sexos incomensuravelmente diferentes.
Enquanto que, no dimorfismo, os órgãos
2 O corpo sexuado: do isomorfismo ao sexuais femininos diferem dos masculinos,
dimorfismo na convenção isomórfica, os órgãos do cor-
po feminino eram vistos como menos de-
As diferenças atribuídas ao corpo afe- senvolvidos que os do corpo masculino.
tam o modo como compreendemos e lida- Nessa noção, o corpo feminino era
mos com a noção de identidade. A tendên- considerado uma versão inferior do corpo
cia é pensar em identidade sexual como um masculino “num eixo vertical de infinitas
pressuposto dado, básico, comum, na me- graduações”. Havia uma estrutura básica do
dida em que podemos distinguir, em quase corpo humano e essa estrutura era masculi-
todas as sociedades, alguma forma de dis- na. Segundo o médico Galeno, seguidor de
tinção masculino/feminino (NICHOLSON, Aristóteles, as mulheres tinham a mesma
2000). Entretanto, fazendo alusão a um genitália que os homens, só que a delas fi-
questionamento butleriano (1999, p. 25), cava para dentro do corpo e não para fora,
podemos nos referir a um dado sexo sem devido à falta de calor vital (BOZON, 2004).
antes investigar como são dados os sexos e Assim, a vagina e o colo do útero não eram
por que meios? Quais as tecnologias que algo distinto do pênis, mas se constituíam
fazem o corpo sexuado? Os corpos uma versão do pênis menos desenvolvida.
anatomicamente diferenciados possuem A diferença entre masculino e feminino era
uma genealogia capaz de expor as opções de grau de perfeição e não de natureza. As
binárias como uma construção variável. mulheres se diferenciavam dos homens por
A pesquisa histórica de Laquer serem machos menos perfeitos, tanto no fí-
(2001) versa sobre a criação do sexo. Em seu sico quanto no social, situados hierarquica-
trabalho, o autor apresenta um estudo so- mente mais abaixo. Nessa época, segundo
bre a passagem do isomorfismo para o Laquer (2001), o discurso dominante inter-
dimorfismo, demonstrando como a inven- pretava os corpos masculinos e femininos
ção da diferença sexual foi motivada pelos como versões hierárquicas e verticalmente
interesses de gênero, de modo que “quase ordenadas de um sexo. Os discursos da bio-
tudo o que se queira dizer sobre o sexo – de logia ligavam as qualidades íntimas e as ex-

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periências do prazer sexual à ordem social e uma mudança política e epistêmica da


cósmica. época.
Laquer (2001) trata da literatura Surge o sexo do iluminismo, como
médica de um corpo cujos fluidos – sangue, fundamento biológico do que é ser femini-
sêmen, leite e excrementos variados – são no e masculino. Ao mesmo tempo, a políti-
substituíveis, transformando-se uns nos ou- ca criou novas formas de constituir o sujeito
tros, e cujos processos – digestão, menstru- e as realidades sociais. Falar sobre sexuali-
ação e outros sangramentos – não eram tão dade em um discurso científico era falar da
facilmente distinguíveis ou assinaláveis para ordem social que ela representava e legiti-
um sexo ou outro, como se tornaram depois mava (LAQUER, 2001). A reconstrução do
do século XVIII. Além disso, acreditava-se corpo foi intrínseca a esses movimentos e,
que, caso recebessem mais calor, as mudan- consequentemente, a outros fatores sociais
ças nas estruturas corpóreas fariam com que da época. Entre esses fatores, estão: a as-
um corpo “feminino” passasse facilmente censão evangélica; a teoria política do
da categoria social feminina para a masculi- Iluminismo; as ideias de Locke, de casa-
na. A diferença entre os corpos não era de mento como contrato; o desenvolvimento
espécie, mas sim de graus dentro de uma de novos tipos de espaços públicos no sé-
escala de perfeição. Enquanto a mulher culo XVIII; as mudanças motivadas pela
poderia ascender na hierarquia, o homem Revolução Francesa; o feminismo pró-revo-
não poderia jamais descender e tornar-se lucionário; o sistema de fábricas, com sua
mulher, uma vez que a natureza teria uma divisão sexual do trabalho; dentre outros
tendência a caminhar sempre em direção à (LAQUER, 2001, p. 22).
“perfeição”. Assim, por volta do século XVIII, a
No final do século XVII, de acordo natureza sexual humana parece ter se alte-
com Laquer (2001, p. 22), uma ebulição de rado. A consequência é nossa ideia de “iden-
fatores contribuiu com novas formas de in- tidade sexual” – “um eu masculino e um
terpretar o corpo, dentre eles, o surgimento eu feminino precisamente diferenciado e
de uma nova epistemologia, conjugada a profundamente enraizado num corpo dife-
uma revolução sociopolítica, que contribuía renciado” (NICHOLSON, 2000, p. 21). A
na rediscussão do estatuto social da mulher “economia corporal genérica de fluidos e
e do homem. Por volta desse século, as di- órgãos” começou a ceder diante de uma
ferenças anatômicas e fisiológicas visíveis noção “bissexuada” (LAQUER, 2001, p.
entre os sexos não eram consideradas, até 57). O vocabulário que não distinguia siste-
que se tornou politicamente importante di- maticamente partes do corpo como ovários
ferenciar biologicamente homens e mulhe- e testículos tornou-se discursivamente di-
res. Nesse caso, o discurso científico aban- ferente; órgãos que não se diferenciavam por
dona o sentido de corpo como parte de um um nome específico recebiam um nome;
microcosmo de uma ordem maior, na qual a estruturas que eram consideradas comuns a
experiência sexual humana refletia a reali- homens e mulheres – esqueleto e sistema
dade metafísica, e produz um corpo de co- nervoso - foram diferenciadas, passando a
nhecimento que busca diferenças funda- corresponder aos aspectos culturais do mas-
mentais entre os sexos. Segundo Laquer culino e do feminino, de acordo com o mo-
(2001, p. 22), uma nova forma de interpre- delo dicotômico (NICHOLSON, 2000).
tar o corpo surge não como consequência de Nasce uma incitação política, econômica e
um maior conhecimento científico especí- técnica a falar do sexo, não tanto como for-
fico, mas como resultado, entre outros, de ma de uma teoria geral da sexualidade, mas
sob forma de análise, de contabilidade, de

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classificação e de especificação (FOU- nas ocidentais a partir do século XVII. Seu


CAULT, 1999). Não só o sexo é diferente, ponto essencial era fazer uma genealogia do
como são diferentes todos os aspectos con- “fato discursivo” global, da “colocação do
cebíveis do corpo e da alma, todos os aspec- sexo em discurso” (FOUCAULT, 1999, p.
tos físicos e morais. A diferença deixa de ser 16). No tópico seguinte, tentaremos expor
de grau e se torna de espécie (LAQUER, sua perspectiva e problemática.
2001); o corpo surge, cada vez mais frequen-
temente, como recurso para atestar a natu- 3 Vontade de saber sobre o sexo: a se-
reza diferenciada dos seres humanos. xualidade no cerne do biopoder
Assim, o antigo modelo no qual ho-
mens e mulheres eram classificados confor- Como vimos, o conhecimento sobre
me seu grau de perfeição metafísica deu o sexo é situacional, dependente de um con-
lugar, no final do século XVII e início do texto social que decide o que conta como
XVIII, a um novo modelo dimórfico, de di- evidência dos sinais das diferenças. Esse
vergência biológica (LAQUER, 2001). Ba- conhecimento, segundo Foucault (1999),
sicamente, a metafísica transformou o sen- está sempre embutido de poder, de tal for-
tido das características físicas: o sinal ou ma que não se pode dissociar um do outro.
marca da distinção masculino/feminino pas- Considerar o conhecimento sobre o corpo
sou a ser sua causa, aquilo que lhe dá ori- sexuado exterior ao poder é a base do que o
gem (NICHOLSON, 2000). filósofo chama “hipótese repressiva do po-
Dentro da concepção surgida no sé- der”. Em História da sexualidade, Foucault
culo XVIII, os corpos de machos e de fê- (1999) argumenta contra tal hipótese, segun-
meas tornaram-se “opostos incomensurá- do a qual o desejo seria reprimido pela lei, e
veis, horizontalmente ordenados” (LA- a Psicanálise o libertaria, conferindo-lhe
QUER, 2001, p. 24). Toda vida política, eco- positividade pela fala. De fato, a partir do
nômica e cultural passou, de certa forma, a século XVII, houve uma proliferação
apoiar-se no “fato” de que havia dois sexos discursiva sobre o sexo, mas esse estímulo
estáveis, incomensuráveis e opostos. Assim, à fala também constituiu um meio de con-
toda uma psicologia da diferença pôs-se a trole da sexualidade, um dos mecanismos
acompanhar essa biologia (BOZON, 2004). do biopoder.
A esse respeito, deve-se observar ainda que Considerando o marco histórico de
o fato de os grandes anatomistas renas- interpretação dos corpos sexuados como
centistas persistirem em ver a vagina como dimórficos, segundo Foucault (1999), a so-
uma versão interna do pênis e de os ana- ciedade que se desenvolveu a partir do sé-
tomistas modernos perceberem dois sexos culo XVII – sociedade burguesa, capitalista
incomensuráveis sugere que o sexo é si- ou industrial – deu início a uma época de
tuacional, sendo quase todos os sinais da tratamento peculiar ao sexo, não como ex-
diferença dependentes de um contexto clusiva proibição (como se pressupunha na
sociopolítico e epistemológico que decide hipótese repressiva), mas, sobretudo, atra-
o que conta como evidência (LAQUER, vés da incitação dos discursos. Essa época
2001). foi marcada por seu caráter inventivo de uma
Michel Foucault, um dos importan- nova economia de poder, com a criação de
tes autores que se debruçou sobre o tema, uma série de técnicas de poder que agem
foi o primeiro a tornar problemática a natu- positivamente por inclusão, produção e for-
reza da sexualidade humana com relação ao mação de saber. A burguesia dessa época
corpo. O autor tratou de interrogar os dis- empenhou-se em criar para si uma sexuali-
cursos sobre o sexo das sociedades moder- dade e constituir, a partir dela, um corpo

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específico – um corpo de uma “classe” com Essa curiosidade inédita em torno do


saúde, higiene, descendência e raça. O sexo prazer e do corpo formou-se no próprio cam-
confiscado para dentro do quarto do casal po do exercício do poder. Foucault (1999)
(legítimo procriador) e absorvido na função ressalta que, entre os séculos XVII e XVIII,
de reprodução não cessou de provocar inci- o mundo europeu vivenciou a inserção da
tações a falar e dispositivos a ouvir e regis- vida humana na esfera da administração dos
trar. Sua liberdade, seu conhecimento e o corpos e da gestão calculista da vida através
direito de falar dele eram partes de um re- de uma série de intervenções e controles
gime de saber que submeteu o sexo a uma reguladores: o que o autor chama de uma
abundante enunciação e a uma fermenta- biopolítica da população. O próprio Estado
ção discursiva, acelerada a partir do século assumia a tarefa de gerir a vida através da
XVIII. Esses discursos passaram a não co- articulação entre dois eixos, ao longo dos
locar o domínio do sexo exclusivamente sob quais se desenvolveu toda a tecnologia po-
o registro da culpa e do pecado, do excesso lítica da vida. Um dos eixos centrou-se no
ou da transgressão, mas sim no regime do corpo como máquina: no seu adestramento,
normal e do patológico (FOUCAULT, 1999, na ampliação de suas aptidões, na exorta-
p. 66). Tratavam de dizer a verdade sobre o ção de suas forças, no crescimento paralelo
sexo, de modificar sua economia no real, de de sua utilidade e docilidade etc. O outro
subverter a lei que o rege, de mudar seu centrou-se no corpo como espécie, no cor-
futuro pela racionalidade e cientificidade po transpassado pela mecânica do ser vivo
(FOUCAULT, 1999, p. 13). como suporte dos processos biológicos: a
A sexualidade como atributo huma- proliferação dos nascimentos e a mortalida-
no singular é correlata dessas práticas de, o nível de saúde, a duração da vida, a
discursivas. Através do dispositivo que vin- longevidade. O sexo torna-se acesso à vida
cula a prática de confissão (prática já exis- do corpo e, ao mesmo tempo, à vida da es-
tente desde a Idade Média) aos métodos de pécie. Isso porque a biopolítica articula
escuta clínica (discurso científico), pôde biopoderes capazes de englobar o corpo do
aparecer algo como “sexualidade” enquan- indivíduo e o corpo da população, o orgâni-
to verdade do sexo e dos prazeres (FOU- co e o biológico.
CAULT, 1999, p. 67). Foucault (1999) ex- Tais processos foram assumidos
plica que a própria existência da sexualida- mediante uma série de intervenções e con-
de enquanto uma essência dada, que se troles reguladores. Nascia uma população
manifesta nos sujeitos que a trazem consi- como problema econômico e político. Os
go, é uma invenção histórica da raciona- governos perceberam que não teriam de li-
lidade moderna, um dispositivo de poder, dar simplesmente com sujeitos, nem mes-
tendo início na Europa por volta do século mo com um “povo”, mas sim com uma “po-
XVII. A partir dessa época, a sociedade oci- pulação”, com suas variáveis próprias: nata-
dental produziu uma série de discursos so- lidade, morbidade, fecundidade, alimenta-
bre o sexo, com o intuito de criar saberes ção e outros (FOUCAULT, 1999). Tornou-
científicos e verdades sobre os corpos. A se necessário analisar a taxa de natalidade,
sexualidade é, segundo Foucault (1999), a idade do casamento, a precocidade e a
parte dessa “economia discursiva” que ins- frequência das relações sexuais, a maneira
creve o sexo não somente no domínio do de torná-las fecundas ou estéreis etc. Pela
prazer, mas também em um regime orde- primeira vez, a fortuna e o futuro da socie-
nado do saber que determina suas caracte- dade eram ligados à maneira como cada pes-
rísticas fundamentais. soa usava o seu sexo. Através da economia
política da população e pela disciplina do

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corpo, formou-se uma teia de observações pecíficos de saber e poder a respeito do sexo.
sobre o sexo. Essas observações tornaram a São eles: (1) a histerização do corpo da mu-
sexualidade um domínio penetrável “natu- lher; (2) a pedagogização do sexo da crian-
ralmente” por processos patológicos, que ça; (3) a socialização das condutas de procri-
solicitava intervenção médica e normaliza- ação; e (4) a psiquiatrização do prazer per-
ção. Assim, entraram também, em ativida- verso (FOUCAULT, 1999, p. 99). Consi-
de, outros focos que suscitaram os discur- derando esses dispositivos de saber-poder,
sos sobre o sexo, tais como a Medicina, a se a preocupação com o sexo aumentou ao
Psiquiatria, a Justiça Penal, a Pedagogia e longo do século XVIII, quatro figuras se
toda a estrutura do espaço escolar. esboçaram como objetos privilegiados de
Abre-se, assim, segundo Foucault saber e alvos ou pontos de fixação de em-
(1999), a era do biopoder. Uma explosão de preendimentos do poder: a mulher histéri-
técnicas diversas para obter a sujeição dos ca, a criança masturbadora, o casal
corpos e o controle das populações. Falou- malthusiano e o adulto perverso. Cada uma
se de sexo, não apenas como uma coisa que dessas figuras tornou-se correlativa a uma
se deve simplesmente coordenar ou tolerar, daquelas estratégias, que percorreram ou
mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, utilizaram o sexo das crianças, dos homens
regular para o bem de todos, fazer funcio- e das mulheres.
nar segundo um padrão ótimo. O sexo não O poder, tal como Foucault trabalha,
se julga apenas, mas se administra. Através aparece em sua análise, como já menciona-
de pesquisas quantitativas ou causais, o dis- do, em contraposição ao que o autor chama
curso formulado sobre o sexo deixa de ser de “hipótese repressiva”. Foucault não ade-
um discurso unicamente da moral e passa a re à conceituação de poder em que o mes-
ser também da racionalidade (FOUCAULT, mo é compreendido como externo, assumin-
1999). É uma tecnologia do sexo inteiramen- do uma forma geral, homogênea e sempre
te nova, porque sem ser realmente indepen- negativa. Para o filósofo, o poder disfarça
dente da temática do pecado, escapa, pelo uma parte importante de si mesmo – seu
discurso científico e racional, da instituição caráter produtivo –, e só assim ele é tolera-
eclesiástica. do e aceito. De acordo com Foucault (2002,
A característica dos séculos XVIII e p. 203), o poder não deve ser entendido
XIX é a variedade, a larga dispersão dos apa- apenas “como dominação, como suprema-
relhos inventados para falar do sexo, para cia, como um dado fundamental, um prin-
fazê-lo falar, para obter que fale de si mes- cípio único. Ao contrário, ele sempre deve
mo, para escutar, registrar, transcrever etc. ser considerado em relação a um campo de
(FOUCAULT, 2005). Em seu estudo, interações, contemplado em uma relação
Foucault (1999) aborda diversos discursos que não pode ser dissociada de formas de
e diferentes formas de articulação poder- conhecimento”. Pode-se afirmar que o po-
saber que marcaram a história do corpo der é onipresente, pois se produz a cada ins-
sexuado. Seu objetivo era entender os me- tante, em todas as relações entre um ponto
canismos pelos quais o que é considerado e outro. Para o autor, o indivíduo é, desde o
problema ganha tal status. Segundo o au- seu surgimento, modelado por um poder
tor, não existe uma estratégia única, global, regulador, cuja característica de funciona-
válida para toda a sociedade e uniformemen- mento é sua capacidade criativa para disfar-
te referente a todas as manifestações do çar sua genealogia e estratégia de permanên-
sexo, mas parece possível distinguir, a par- cia. Tem-se que sempre onde há poder, há
tir do século XVIII, quatro conjuntos estra- resistência. Se, como afirmarmos, o poder
tégicos, que desenvolvem dispositivos es- se dá nas relações através dos discursos, é

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156 THAYSE FIGUEIRA GUIMARÃES

também o discurso que cria a possibilidade operam indicando quem, o quê e que práti-
de resistência. Dessa forma, essa resistên- ca são considerados reais ou verdadeiros.
cia não se encontra nunca em posição de Assim, a sexualidade, longe de ser um fe-
exterioridade, mas em pontos móveis e tran- nômeno natural, é, ao contrário, profunda-
sitórios. Assim, mente suscetível às influências sociais e
culturais; é produto de forças sociais e his-
é preciso admitir um jogo complexo e ins- tóricas. É a sociedade e a cultura que desig-
tável em que o discurso pode ser, ao mes- nam se determinadas práticas sexuais são
mo tempo, instrumento de efeito de po- apropriadas ou não, morais ou imorais, sau-
der, e também obstáculo, escora, ponto de
resistência e ponto de partida de uma es-
dáveis ou doentias. A história da nossa con-
tratégia oposta. O discurso veicula e pro- cepção de sexo e sexualidade é a história
duz poder; reforça-o mas também o mina, dos sistemas de valores fundamentais em
expõe, debilita e permite barrá-lo cada sociedade.
(FOUCAULT, 1999, p. 96). Nesse ponto, na medida em que a
sexualidade é coextensiva à existência hu-
Nas relações de poder, a sexualida- mana e produto de forças sociais e históri-
de é um dos elementos dotados de maior cas, os termos que desenham o campo de
instrumentalidade, utilizável no maior nú- possibilidade dos sujeitos surgem como ele-
mero de manobras e servindo de articula- mentos centrais neste trabalho. A
ção às mais variadas estratégias, funcionan- materialidade do corpo e seu gênero apare-
do de acordo com técnicas móveis, poli- cem como lócus principal desta discussão.
morfas e conjunturais de poder. É por isso
que, no século XIX, ela foi esmiuçada em 4 Radicalizando a materialidade do cor-
cada existência, nos seus mínimos detalhes. po
A sexualidade é um dispositivo histórico e
deve ser pensada a partir das técnicas de Até agora, com a finalidade de ex-
poder que lhe são contemporâneas; é uma pandir e realçar um campo de possibilida-
forma de moldar o self “na experiência da des para a vida corpórea, este trabalho se
carne”, que se constitui em torno de certas empenhou em apresentar a diferença sexu-
formas de comportamento (FOUCAULT, al e o corpo natural como socialmente pos-
1999). É assim que as micropráticas do tos, como parte de uma economia discursiva
biopoder aparecem fortemente ligadas à de uma determinada época e cultura
sexualidade. “Sexualidade é um ponto de (FOUCAULT, 1999). O corpo tem uma
passagem particularmente denso pelas re- historicidade, como apresentado por Laquer
lações de poder” (FOUCAULT, 1999, p. e Foucault, e se constitui nas/pelas relações
136); ela se põe como um instrumento de de poder. Há uma história social ligada às
subjetivação, como uma ferramenta do po- diferenças sexuais e ao sexo: termos como
der. “natureza”, “sexo”, “masculino”, “femini-
Aqui cabe o conceito foucaultiano de no”, “biologia”, “pênis”, “vagina”, “sexua-
episteme, segundo o qual cada época tem lidade” e “gênero” não existem fora de um
seus paradigmas típicos, que orientam e marco cultural. A própria noção de sexo, to-
condicionam a produção científica e inte- mado como um dispositivo de sexualidade
lectual de um dado momento histórico. por Foucault, permitiu, segundo o autor,
Desse modo, não há uma abordagem pura- agrupar elementos anatômicos, funções bi-
mente epistêmica da sexualidade, que seja ológicas, condutas, sensações e prazeres.
isenta. As categorizações são feitas e susten- “Foi por meio desse dispositivo de sexuali-
tadas pelas relações de poder existentes, que dade que o sexo pôde funcionar como prin-

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A CONSTRUÇÃO DO CORPO SEXUADO: UMA REFLEXÃO SOBRE OS SIGNIFICADOS DE GÊNERO
E DE COMO ESTE SE ARTICULA COM O CORPO 157

cípio causal, de sentido onipresente [...]: o seu próprio contorno físico. O gênero é par-
sexo pôde funcionar como significante úni- te dessa estrutura, quando não a matriz de
co e significado universal” (FOUCAULT, todas as estruturas. Para Butler (1999), o
1999, p. 144-145). gênero vem antes da possibilidade de um
Tal percepção foucaultiana tem pre- eu; é um tipo de porta de entrada para a re-
sença fundamental nas reflexões de Butler. alidade, pelo qual passam os seres huma-
Foucault procurou compreender os meca- nos para alcançar a humanidade completa.
nismos pelos quais os corpos só ganham sig- A crítica de Butler (1999) à confian-
nificados e são sexuados no contexto das ça na primazia e anterioridade da diferença
relações de poder, ao serem determinados sexual está imediatamente implicada na vi-
por um discurso. Similarmente, Butler são de gênero enquanto artefato cultural e
(2004) põe em pauta os processos pelos corporal, enquanto lócus sobre o qual a cul-
quais os fatos naturais vêm a ser natura- tura age imprimindo suas marcas. A autora
lizados. Com base na noção de poder pro- substitui a questão acerca do gênero, como
dutivo de Foucault, a autora investiga os a interpretação do sexo, pela questão de
termos que compõem o campo de possibi- desvendar como o gênero trabalha “materi-
lidade dos sujeitos, recusando qualquer re- alizando” o corpo sexuado. Dessa forma, é
alidade biológica que antecede o discurso e possível compreender que teorizar o sexo
sobre a qual a cultura imprimiria suas mar- como algo biologicamente posto contribui
cas, ou a partir da qual se construiria o gê- para a sua fixação enquanto norma. Tal ques-
nero. Rejeitando a metafísica da substância, tão pode ser mais complexa, mas é também
mais do que descartar a natureza biológica, mais próspera. Quando Butler (1999) assu-
Butler a desloca inteiramente para dentro me que não podemos traçar o caminho se-
do âmbito discursivo da linguagem e da cul- gundo o qual o gênero se referiria a uma
tura (TORRANO, 2010). Tal natureza é realidade biológica anterior à cultura, a au-
socialmente produzida, um efeito que en- tora acaba com o problema daqueles que
tão aparece como anterior, escondendo sua afirmam que o gênero é regulado por uma
origem. Com isso, segundo Butler (2004), força que lhe é exterior. Em síntese, Butler
não é suficiente afirmar que os sujeitos es- (1999) critica a visão consolidada de gêne-
tão mergulhados em seu próprio contexto; ro, que o trata como leitura social da verda-
mais do que isso, o sujeito só é permitido, de do sexo - esse sim, um dado biológico,
possibilitado e legitimado por tal contexto - natural e bruto. A diferença sexual e o cor-
sua cultura, linguagem e história. Assim sen- po natural são, eles mesmos, socialmente
do, a fonte de significado não é o corpo, mas postos; o sexo não é uma descrição ou algo
são as práticas significantes que insistem em que se possua, um constante estático; é uma
localizar o corpo como anterioridade posta. norma, um ideal.
Segundo o conceito de materialidade A questão acerca do gênero, como a
de Butler (2004), a ontologia não pode ser interpretação social do sexo, também é pre-
separada da sua historicidade: ela é uma ocupação de teóricas como Joan Scott
imposição normativa, de modo que não há (2005), Linda Nicholson (2000) e Anne
nenhum status ontológico para o gênero, o Fausto-Sterling (2001/2002). Suas percep-
sexo ou o corpo para além dos atos ções apontam para a necessidade de exami-
discursivos. Nesse sentido, não há possibi- nar as categorias identitárias de um novo
lidade de acessar o corpo em sua mate- ângulo, o que tem resultado nas teorias de
rialidade, uma vez que ele está, desde o iní- gênero. Entre as autoras, é comum o reco-
cio, “aprisionado” em uma rede de signifi- nhecimento da importância da crítica ao
cados e valores que contribuem para formar universalismo, ao essencialismo, ao bina-

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158 THAYSE FIGUEIRA GUIMARÃES

rismo e ao racionalismo iluminista. A per- a personalidade. “Gênero” foi primeiramen-


cepção da diferença sexual aponta para um te utilizado para se contrapor ao deter-
sujeito marcado por particularidades que se minismo biológico, de modo que foi desen-
pretendiam universais. Suas críticas eviden- volvido como uma oposição a “sexo”, o pri-
ciam o fato de que, embora a categoria mu- meiro designando o que é socialmente
lher tenha sido introduzida para unir e criar construído, e o segundo, o que é biologica-
uma solidariedade na identidade, o feminis- mente dado, concepção que a autora chama
mo mantinha ainda a clivagem na distinção de fundacionalismo biológico.
entre sexo e gênero, permanecendo nessa De acordo com a interpretação de
distinção a premissa de que há um biológi- Nicholson (2000, p. 13), no fundacionalismo
co anterior: o sexo, no qual o gênero se ba- biológico, “o biológico foi assumido como a
seia. base sobre a qual os significados culturais
Scott (2005) associa a crítica ao são constituídos. Assim, no momento mes-
binarismo e ao essencialismo. Segundo a mo em que a influência do biológico está
autora, precisamos de teorias que nos per- sendo minada, está sendo também invo-
mitam pensar em termos de pluralidades e cada”. Nesse sentido, a autora invoca uma
diversidades, em lugar de unidades e uni- noção “porta-casacos” da identidade para
versais; com isso, invoca a necessidade de descrever a relação entre biologia e sociali-
romper como esquemas tradicionais das zação dentro tal concepção. Em tal noção, o
velhas tradições filosóficas ocidentais, ba- corpo é visto como um tipo de cabide de pé
seadas em esquemas binários que constro- no qual são jogados diferentes artefatos cul-
em hierarquias, tal como aquela entre uni- turais, especialmente os relativos à perso-
versos masculinos e especificidades femi- nalidade e ao comportamento (NICHO-
ninas. A oposição binária, segundo esta au- LSON, 2000). A teórica encontra, em tal
tora, ao mesmo tempo em que contrapõe os noção, um obstáculo à compreensão das di-
dois termos da oposição, constrói a igualda- ferenças entre mulheres, diferenças en-
de de cada lado da oposição e oculta as múl- tre homens e diferenças em relação a quem
tiplas identificações entre os lados opostos. pode ser homem ou mulher.
Com isso, cada lado da oposição é apresen- As feministas, com base nesse fun-
tado e representado como um fenômeno dacionalismo biológico, não questionavam
unitário. Assumir que tudo em cada catego- o domínio do sexo físico. Butler (1993, p.
ria (mulher/homem) é a mesma coisa é su- 49) pede, nesse sentido, que “percebamos
primir as diferenças dentro de cada catego- como invocar uma matéria é invocar uma
ria (SCOTT, 2005). história sedimentada da hierarquia sexual e
Também, em seu artigo “Interpre- de apagamentos sexuais que certamente
tando o gênero”, Nicholson (2000) faz uma deveriam ser objeto de investigação femi-
distinção entre o “determinismo biológico” nista”. Ainda, conforme crítica de Sterling
e o “fundacionalismo biológico”. O primei- (2001/2002), quanto mais procuramos uma
ro, que sempre recebeu críticas por parte das base física simples para o “sexo”, mais claro
feministas, foi o que permitiu trabalhar os fica que o “sexo” não é uma categoria física
gêneros na sua qualidade de construção cul- pura. Aqueles sinais e funções corporais que
tural. No entanto, como argumenta a auto- definimos como masculinos e femininos já
ra, a rejeição ao determinismo biológico não vêm misturados em nossas ideias sobre o
significa a ausência do biológico para se pen- gênero.
sar o social. O termo “gênero” tem envolvi- Cabe explicar, então, se desde sem-
do diferentes formas de entender o aspecto pre já temos o gênero, onde fica o sexo? Se
biológico para explicar o comportamento e o gênero pertencia antes ao âmbito da cul-

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A CONSTRUÇÃO DO CORPO SEXUADO: UMA REFLEXÃO SOBRE OS SIGNIFICADOS DE GÊNERO
E DE COMO ESTE SE ARTICULA COM O CORPO 159

tura, e o sexo, ao da natureza, localizá-los na se organiza confiando nessa diferença sexu-


esfera cultural significa que os corpos não al.
importam? Butler acrescenta o gênero à fórmu-
A aparente facticidade de fatos la foucaultiana, segundo a qual vir a ser su-
extralinguísticos, mesmo sendo ela mesma jeito, através do gênero, equivale a subme-
produzida na e pela linguagem, não implica ter-se ao gênero, de forma que, para a auto-
eliminar sua materialidade, negar sua exis- ra, somos, a um tempo, sujeitos pelo gênero
tência, nem tampouco censurar toda e qual- e sujeitos ao gênero. A interpelação do gê-
quer menção ao que estaria fora do âmbito nero é fundadora: ao ser nomeada, a criança
discursivo. Assim, não se trata de negar a é trazida ao domínio da cultura, da família,
materialidade do corpo, da mesma forma da linguagem, passando do isso a “ele”/
que não se trata de presumi-la, pois a maté- “ela”. Assim, a citação do médico “é um
ria não é um simples referente, uma menino”/“é uma menina” tem força
positividade bruta. Trata-se, antes, de per- enunciativa vinda de convenções sociais que
ceber que o recurso ao que é exterior à lin- são (re)citadas e (r)evocadas nesse nomear
guagem é feito por intermédio da própria (TORRANO, 2010).
linguagem, sem que ela, em momento al- O ato de nomear é as boas-vindas
gum, se ausente. Para Butler (2004), a ma- daquela coisa no mundo inteligível, que
téria tem um caráter processual, de modo constrange a coisa à forma do nome no mes-
que se materializar equivale a se investir de mo movimento pelo qual a inaugura: não de
poder; a materialidade tem uma dimensão uma vez por todas, mas a cada momento
repetitiva, processual e temporal que é (BUTLER, 1999). As normas não agem ape-
indissociável dela mesma. Esse caráter pro- nas uma vez no nosso surgimento; elas agem
cessual do conceito de matéria poderia ser constantemente, continuamente; isto é, o
traduzido por corpos materializados que se sujeito é produzido repetidamente, de for-
materializam, em que se materializar equi- ma que não é uma unidade unívoca, consis-
vale a ganhar importância. Daí a dinâmica tente e autoidêntica; é uma unidade
da diferenciação na materialização dos cor- dissociada, multiplamente constituída. Em
pos, pelos quais alguns são mais bem outras palavras, ele não é produzido de uma
sucedidamente materializados que outros. vez por todas, e sua produção certamente
Assim, corpos que se materializam, que ga- não coincide com o momento de seu nasci-
nham peso, que ganham significância, são mento. Não há um resultado final ou uma
corpos que significam. conclusão; tudo o que há são processos. Esse
Aqui a própria materialidade do cor- sujeito, que surge continuamente como fru-
po rende-se ao gênero. O gênero é um con- to de um poder relacional instável e insis-
ceito-chave para entendermos a materia- tente, não tem nem início nem fim e não
lidade do sexo e como ele se faz passar por pode ser tomado por uma unidade coerente
natural. Voltemos à situação do nascimento e consolidada (BUTLER, 2004).
(grito do médico sobre o sexo do bebê): não
é um diagnóstico imparcial e descompro- 5 Para concluir: causando fricções na
missado, mas um comando, a enunciação de norma segundo a qual se qualifica o
uma norma, cujo espaço, em uma dada so- humano
ciedade, pode ser tanto maior quanto maior
for a conformidade dos seus agentes com Ao longo deste trabalho, argumen-
ela: a menina ou o menino há de ser do modo tamos que não existe corpo livre de investi-
como as meninas/meninos são – psíquica e mento discursivo in natura e que a natureza
fisicamente (BENTO, 2010) e a sociedade do corpo sexuado é naturalizada nas/pelas

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160 THAYSE FIGUEIRA GUIMARÃES

relações de poder. Como apresentado, a in- dizer, uma vez que nem tudo é produzido
tervenção que construiu o corpo sexuado de acordo com as normas (BUTLER, 1999).
como dimórfico e amarrou o destino desse Chegamos, assim, ao caminho indi-
corpo à sua genitália é parte de uma série cado por Butler à possibilidade de desarran-
de normas sociais que tiveram como com- jo na norma segundo a qual se qualifica o
promisso o objetivo de controlar e produzir humano. Há corpos que escapam ao proces-
a “sexualidade normal” em corpos sexuados. so de produção dos gêneros inteligíveis (ho-
Dessa perspectiva, os atos que fazem os cor- mem/masculino e mulher/feminino) e, ao
pos sexuais são experiências compartilhadas fazê-lo, demonstram que não somos predes-
pelas significações sociais. O sexo anatômico tinados a cumprir os desejos de nossas es-
não é aquilo que alguém tem ou uma des- truturas corpóreas. As fronteiras que deli-
crição estática, mas um qualificador para se mitam o campo do que se pode conhecer
adentrar na categoria humano e tornar-se guardam sempre a possibilidade de desar-
sujeito em um mundo previamente posto, ranjo; assim, toda existência que persiste
possibilitado por normas que nos antece- para além das bordas do legítimo distorce e
dem. expande forçosamente essas mesmas bor-
Nossos corpos e nossa subjetividade das. O fato de o abjeto ser, por seu nasci-
estão marcados, desde o início, por um dis- mento, ameaçador por definição permite
curso colocado para nós por outro. Isso nos que ele seja não somente uma contestação
torna, de certo modo, exteriores a nós mes- constante, mas um recurso crítico,
mos: “estou fora de mim desde o início, e desestabilizador da regulação das práticas
devo estar, para sobreviver, e para fazer par- identificadoras que traçam a linha entre le-
te do reino possível” (BUTLER, 1993, p. gítimo e ilegítimo, humano e inumano. Ao
32, tradução nossa). Este outro aparece di- mesmo tempo em que cria o que não é in-
ante de mim e faz exigências sobre mim, teligível enquanto tal, o abjeto instaura, no
estrutura meu ser desde o começo. Entre- mesmo ato, o inteligível, o possível. Com
tanto, ninguém, de fato, cumpre completa- isso, é o abjeto, a exceção, o excepcional,
mente as suas próprias expectativas da que nos sinaliza o caráter produtivo do dis-
normatização, dado que a norma se coloca curso, que pode nos mostrar que há apenas
como um ideal a ser conquistado que nun- contingência e arbitrariedade naquilo que
ca é plenamente atingido em sua instância é dado por necessário (BUTLER, 2004). O
material. Há, dessa forma, uma falha da estranho, por sua própria incoerência, expõe
identidade que lhe é inerente; daí o caráter a construção do que se passa por atemporal
fictício da norma do gênero, uma vez que e mostra que existem formas de se construir
trata de uma categoria histórica, um estilo diferentemente.
corporal, uma representação fantasiosa do É justamente onde se distorcem as
corpo, instituída e inscrita na superfície cor- condições de aceitabilidade de um sistema
poral por normas sociais (BUTLER, 1999). que vemos que as normas sempre falham
As normas do gênero são um projeto em constituir plenamente os sujeitos e que
que visa a sobrevivência cultural, um ideal, são impossíveis de ser incorporadas plena-
norma que nunca pode ser inteiramente mente. No entanto, essa falha é a condição
internalizada (BUTLER, 1999), pois a dis- de possibilidade para se constituir, onde o
tinção mesma entre interno e externo é que é constituído é um sujeito agente, que,
concomitante à instituição do sujeito e de enquanto tal, é maior que o processo pelo
suas identidades. Desse modo, a constru- qual surge, maior que a cena inauguradora
ção social dos sujeitos é sempre parcial, nun- de sua interpelação (BUTLER, 2004). Nun-
ca exaustiva, e deixa um resto, por assim ca estamos capazes de nos desligar da ideo-

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A CONSTRUÇÃO DO CORPO SEXUADO: UMA REFLEXÃO SOBRE OS SIGNIFICADOS DE GÊNERO
E DE COMO ESTE SE ARTICULA COM O CORPO 161

logia; por isso, devemos trabalhar com as FOUCAULT, M. História da sexualida-


ferramentas da ideologia dominante, para de: a vontade de saber. Tradução de Maria
subverter os efeitos materiais dessa sociali- Thereza da Costa Albuquerque e J. A.
zação e, assim, alcançar um futuro aberto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
para nossos corpos no mundo. A fim de al- Graal, 1999. 1 v.
cançar tal objetivo, é preciso, segundo Judith
Butler (2004, p. 228), “ficar na berlinda do _______. Microfísica do poder. Tradução
que já sabemos, colocar nossas próprias cer- de Roberto Machado (Org.). São Paulo: Paz
tezas epistemológicas em questão, e, atra- e Terra, 2005.
vés desse risco e abertura a uma outra ma-
_______. What is critique? In: INGRAM,
neira de conhecer e viver no mundo, expan-
D. (Ed.). The political. Tradução de Lysa
dir nossa capacidade de imaginar o huma-
no”. Hochroth. Massachusetts: Blackwell
Publishers, 2002. p. 191-211.
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