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Clovis Gorczevski

Mônia Clarissa Hennig Leal


Organizadores

ConstituCionalismo
C ontemporâneo
E SUAS FORMAS
CONTEMPORÂNEAS
Alcione de Almeida Giovana Krüger
Alex Silva Gonçalves Janaína Machado Sturza
Alexandre Brandão Rodrigues Jonas Faviero Trindade
Aline Michele Pedron Leves Julia Gonçalves Quintana
Ana Helena Scalco Corazza Leopoldo Ayres de V. Neto
Betieli da Rosa Sauzem Machado Liane Tabarelli
Carla Luana da Silva Natalia Berna
Carlos Eduardo Araujo Faiad Paula Cunha
Carolina Andrade Barriquello Paulo Henrique Schneider
Caroline Müller Bitencourt Roberta de Moura Ertel
Charlise P. Colet Gimenez Robson Alves de Almeida Diniz
Cíntia Jotz Vargas Rodrigo Freitas Palma
Claudine Rodembusch Rocha Rogério Gesta Leal
Cláudio Ricardo Pereira Selma Pereira de Santana
Cristina Klose Parise de Souza Suzéte da Silva Reis
Daniélle Dornelles Tatiane de Fátima da Silva Pessôa
Ester de Lacerda Lucas Vinícius Oliveira Braz Deprá
Fernando Oliveira Piedade

ISBN 978-85-8443-165-6
Constitucionalismo
Contemporâneo
e suas formas contemporâneas
Multideia Editora Ltda.
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Coordenação editorial e revisão: Fátima Beghetto


Diagramação: Bruno Santiago Di Mônaco Rabelo
Projeto gráfico e capa: Sônia Maria Borba

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte

Gorczevski, Clovis (org.)


G661 Constitucionalismo contemporâneo: e suas formas contemporâneas / organização de
Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal – Curitiba: Multideia, 2017.

370p.; 22,5cm

ISBN 978-85-8443-165-6

1. Direito constitucional. 2. Direitos humanos. 3. Cidadania. 4. Justiça. I. Leal, Mônia


Clarissa Hennig (org.). II. Título.

CDD 347 (22. ed.)


CDU 347.91

Autorizamos a reprodução dos conceitos aqui emitidos, desde que citada a fonte.
Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98.
Clovis Gorczevski
Mônia Clarissa Hennig Leal
Organizadores

Constitucionalismo
C ontemporâneo
e suas formas contemporâneas
Autores
Alcione de Almeida Giovana Krüger
Alex Silva Gonçalves Janaína Machado Sturza
Alexandre Brandão Rodrigues Jonas Faviero Trindade
Aline Michele Pedron Leves Julia Gonçalves Quintana
Ana Helena Scalco Corazza Leopoldo Ayres de Vasconcelos Neto
Betieli da Rosa Sauzem Machado Liane Tabarelli
Carla Luana da Silva Natalia Berna
Carlos Eduardo Araujo Faiad Paula Cunha
Carolina Andrade Barriquello Paulo Henrique Schneider
Caroline Müller Bitencourt Roberta de Moura Ertel
Charlise P. Colet Gimenez Robson Alves de Almeida Diniz
Cíntia Jotz Vargas Rodrigo Freitas Palma
Claudine Rodembusch Rocha Rogério Gesta Leal
Cláudio Ricardo Pereira Selma Pereira de Santana
Cristina Klose Parise de Souza Suzéte da Silva Reis
Daniélle Dornelles Tatiane de Fátima da Silva Pessôa
Ester de Lacerda Lucas Vinícius Oliveira Braz Deprá
Fernando Oliveira Piedade

Curitiba

2017
Prefácio
A linha de pesquisa é, nos dizeres de Niklas Luhmann, uma fórmula
da unidade. Com base em um núcleo de ideias centrais, uma determinada
estrutura de um sistema (no caso o educacional) é capaz de se ligar a di-
versas outras, formatando uma certa unidade. Significa dizer que em torno
do conteúdo de constitucionalismo contemporâneo é possível que orbitem
diversas temáticas – todas elas, contudo, unificadas em torno da linha.
E em que consiste este núcleo do Constitucionalismo Contempo-
râneo? Muito embora ainda hoje exista discussão doutrinária, trata-se
da noção de Constituição principiológica, ética, dirigente, aberta à co-
munidade e aos tratados de direitos humanos, dirigente e voltada à rea-
lização dos direitos fundamentais.
Tendo em vista este núcleo de ideias centrais, percebe-se facil-
mente o enlace com os trabalhos aqui presentes.
De fato, o texto O controle de constitucionalidade exercido
pelo Tribunal de Contas e a possível usurpação de competência do
Supremo Tribunal Federal, de Caroline Müller Bitencourt e Betieli da
Rosa Sauzem Machado, lida com a competência de dois órgãos funda-
mentais do sistema de controle da constitucionalidade e moralidade no
sistema constitucional brasileiro.
O importante valor da liberdade de expressão encontra polêmi-
ca ante as normas de disciplina partidária emitidas pelo TSE. Tal polê-
mica é trabalhada no artigo A Resolução 23.475/2015 emitida pelo
Tribunal Superior Eleitoral em face da liberdade de expressão, de
Alcione de Almeida.
A noção de garantia de direitos é fundamental no constituciona-
lismo contemporâneo. Mas o que significa garantir a democracia? É este
o objeto do texto A democracia na perspectiva do constitucionalis-
mo garantista, de Alexandre Brandão Rodrigues e Daniélle Dornelles.
A complexa teoria de Amartya Sen pode se ligar com a mediação,
sendo que este feito foi atingido por Charlise P. Colet Gimenez e Giovana
Krüger no trabalho A mediação sob a ótica da análise econômica do
direito em Amartya Sen.
A aplicabilidade do princípio constitucional da função social
da propriedade frente à desapropriação urbana é a contribuição de
Cíntia Jotz Vargas e Claudine Rodembusch Rocha, uma vez que o bem-es-
tar no meio ambiente urbano é um dos elementos do constitucionalis-
mo contemporâneo.
As relações entre tributação e cidade são analisadas no texto Ci-
dadania tributária frente aos princípios republicanos e da morali-
dade tributária, de Alex Silva Gonçalves.
Aline Michele Pedron Leves, Carolina Andrade Barriquello e Janaí-
na Machado Sturza se voltam ao problema na saúde, com o título Do
constitucionalismo à emersão da sociedade de risco globalizada: a
necessária proteção ao direito à saúde.
Jonas Faviero Trindade preocupa-se com as consequências do di-
reito extimidade nas relações previdenciárias públicas, no trabalho a
Sociedade da informação e regimes próprios de previdência social:
fiscalização no Facebook de segurados que obtiveram concessões
dos benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez.
Julia Gonçalves Quintana e Leopoldo Ayres de Vasconcelos Neto se-
guem, coerentemente, a sua linha pesquisa, explorando O ativismo ju-
dicial e a problemática da efetivação dos direitos sociais no Brasil.
As soluções do constitucionalismo contemporâneo acabam sendo
postas à prova quando são colocadas diante de novos desenvolvimentos
sociais, sendo tal preocupação refletida no texto de Natalia Berna e Paulo
Henrique Schneider intitulado Teletrabalho transnacional em foco:
análise dos critérios de solução de conflitos em face da efetividade
dos direitos humanos laborais.
Uma das características do constitucionalismo contemporâneo é
Janriê Rodrigues Reck – Prefácio

a colonização sadia do direito civil por parte do direito constitucional.


Isto pode ser observado no artigo A hermenêutica civil-constitucio-
nal e os préstimos da boa-fé objetiva como ferramentas para o re-
conhecimento de novos direitos, de Liane Tabarelli e Cristina Klose
Parise de Souza.
O constitucionalismo contemporâneo impõe muitas e variadas
missões ao poder público, o qual nem sempre consegue realizá-las. Essa
problemática é observada por Robson Alves de Almeida Diniz em O Esta-
do e suas crises: contemporaneidade e globalização.
Somente em um contexto histórico é possível entender o surgi-
mento de determinadas instituições. No caso, uma importante reconstru-
8
9
ção histórica é levada a efeito por Rodrigo Freitas Palma, Ester de Lacerda

Constitucionalismo Contemporâneo
Lucas e Carlos Eduardo Araujo Faiad, em O combate à segregação racial
nos Estados Unidos da América em perspectiva jurídico-constitucio-
nalista: da vigência dos Black Codes no sul à edição das leis Jim Crow.
Os laços entre corrupção e sociedade da informação são explora-
dos no trabalho Sociedade da informação: movimentos sociais em
rede no combate à corrupção e preservação dos direitos funda-
mentais, de Rogério Gesta Leal e Carla Luana da Silva.
É evidente que uma Constituição-garantia se preocupa com as
crianças. Esta é a razão pela qual Suzéte da Silva Reis e Paula Cunha lan-
çam ideias em O trabalho infantil no meio artístico e a violação da
proteção constitucional.

e suas formas contemporâneas


Carla Luana da Silva e Tatiane de Fátima da Silva Pessôa abordam
a Teoria da argumentação jurídica e a ordem democrática: racio-
nalidade da decisão das salvaguardas institucionais na ação popu-
lar no caso da demarcação de terras da reserva indígena Raposa
Serra do Sol.
Vinícius Oliveira Braz Deprá e Cláudio Ricardo Pereira lançam Um
olhar constitucional sobre as licitações públicas: o sistema de re-
gistro de preços à luz do princípio da eficiência.
Uma das dimensões do bom governo é a transparência – sendo
essa também um direito fundamental, o qual é trabalhado no texto
Transparência pública na sociedade da informação: a edição da
Lei de Acesso à Informação em um contexto de ciberdemocracia,
de Ana Helena Scalco Corazza e Roberta de Moura Ertel.
Selma Pereira de Santana e Fernando Oliveira Piedade promovem
interessantes reflexões sobre a conduta de Robin Hood, tomando por
base concepções de justiça em diversos contextos histórico-sociais no
último texto desta obra - De herói a criminoso: recategorização do
personagem Robin Hood ante as concepções de justiça.
Esta variada gama de artigos está enlaçada entre si, como visto,
através do constitucionalismo contemporâneo. Este livro permite, por-
tanto, uma importante atualização do debate de quem vive a Constituição.

Janriê Rodrigues Reck


Doutor em Direito e Procurador Federal
Sumário

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EXERCIDO


PELO TRIBUNAL DE CONTAS E A POSSÍVEL USURPAÇÃO
DE COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL............................13
Caroline Müller Bitencourt & Betieli da Rosa Sauzem Machado

A RESOLUÇÃO 23.475/2015 EMITIDA PELO TRIBUNAL SUPERIOR


ELEITORAL EM FACE DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO..............................................33
Alcione de Almeida

A DEMOCRACIA NA PERSPECTIVA DO CONSTITUCIONALISMO


GARANTISTA.................................................................................................................................45
Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

A MEDIAÇÃO SOB A ÓTICA DA ANÁLISE ECONÔMICA DO


DIREITO EM AMARTYA SEN...................................................................................................63
Charlise P. Colet Gimenez & Giovana Krüger

A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO


SOCIAL DA PROPRIEDADE FRENTE À DESAPROPRIAÇÃO URBANA...................77
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

CIDADANIA TRIBUTÁRIA FRENTE AOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS


E DA MORALIDADE TRIBUTÁRIA........................................................................................95
Alex Silva Gonçalves

DO CONSTITUCIONALISMO À EMERSÃO DA SOCIEDADE DE RISCO


GLOBALIZADA: A NECESSÁRIA PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE..................121
Aline M. Pedron Leves; Carolina A. Barriquello & Janaína Machado Sturza

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E REGIMES PRÓPRIOS DE


PREVIDÊNCIA SOCIAL: FISCALIZAÇÃO NO FACEBOOK DE SEGURADOS
QUE OBTIVERAM CONCESSÕES DOS BENEFÍCIOS DE AUXÍLIO-DOENÇA
E APOSENTADORIA POR INVALIDEZ .............................................................................141
Jonas Faviero Trindade

O ATIVISMO JUDICIAL E A PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO


DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL.................................................................................157
Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres de Vasconcelos Neto

TELETRABALHO TRANSNACIONAL EM FOCO: ANÁLISE DOS CRITÉRIOS


DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS EM FACE DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS
HUMANOS LABORAIS............................................................................................................173
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider
A HERMENÊUTICA CIVIL-CONSTITUCIONAL E OS PRÉSTIMOS DA
BOA-FÉ OBJETIVA COMO FERRAMENTAS PARA O RECONHECIMENTO
DE NOVOS DIREITOS .............................................................................................................203
Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise de Souza

O ESTADO E SUAS CRISES: CONTEMPORANEIDADE E GLOBALIZAÇÃO ........225


Robson Alves de Almeida Diniz

O COMBATE À SEGREGAÇÃO RACIAL NOS ESTADOS UNIDOS DA


AMÉRICA EM PERSPECTIVA JURÍDICO-CONSTITUCIONALISTA: DA
VIGÊNCIA DOS BLACK CODES NO SUL À EDIÇÃO DAS LEIS JIM CROW...........241
Rodrigo Freitas Palma; Ester de Lacerda Lucas & Carlos Eduardo Araujo Faiad

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: MOVIMENTOS SOCIAIS EM


REDE NO COMBATE À CORRUPÇÃO E PRESERVAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS.................................................................................................255
Rogério Gesta Leal & Carla Luana da Silva
Clovis Gorczevski & Mônia Clarissa Hennig Leal – Organizadores

O TRABALHO INFANTIL NO MEIO ARTÍSTICO E A VIOLAÇÃO


DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL...................................................................................275
Suzéte da Silva Reis & Paula Cunha

TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E A ORDEM DEMOCRÁTICA:


RACIONALIDADE DA DECISÃO DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS
NA AÇÃO POPULAR NO CASO DA DEMARCAÇÃO DE TERRAS DA
RESERVA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.............................................................297
Carla Luana da Silva & Tatiane de Fátima da Silva Pessôa

UM OLHAR CONSTITUCIONAL SOBRE AS LICITAÇÕES PÚBLICAS:


O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS À LUZ DO PRINCÍPIO DA
EFICIÊNCIA ................................................................................................................................323
Vinícius Oliveira Braz Deprá & Cláudio Ricardo Pereira

TRANSPARÊNCIA PÚBLICA NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO:


A EDIÇÃO DA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO EM UM CONTEXTO
DE CIBERDEMOCRACIA........................................................................................................337
Ana Helena Scalco Corazza & Roberta de Moura Ertel

DE HERÓI A CRIMINOSO: RECATEGORIZAÇÃO DO PERSONAGEM


ROBIN HOOD ANTE AS CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA...................................................351
Selma Pereira de Santana & Fernando Oliveira Piedade

12
O CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE EXERCIDO
PELO TRIBUNAL DE CONTAS
E A POSSÍVEL USURPAÇÃO
DE COMPETÊNCIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Caroline Müller Bitencourt


Professora do Programa de Mestrado e Doutorado da
Universidade de Santa Cruz do Sul (Santa Cruz do Sul-RS,
Brasil). Doutora em Direito pela Universidade de Santa Cruz
do Sul. Advogada. (carolinemb@unisc.br)

Betieli da Rosa Sauzem Machado


Bacharela em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
Advogada. (betielisauzem@yahoo.com.br)

Introdução
O instituto do controle de constitucionalidade surgiu com a ideia
de assegurar a supremacia da Constituição, dando, desta forma, maior
estabilidade nas relações e efetividade no ordenamento. Dito isso, o
controle é realizado pelo Poder Judiciário em um ordenamento que se
encontre escalonado, devendo ter uma Constituição Federal em posição
hierarquicamente superior às demais legislações, a qual serve de baliza
para a leitura da validade das demais normas, devendo estas estarem de
acordo com a norma no topo do ordenamento jurídico. Assim, tal com-
petência de guardião da Constituição foi atribuída ao Supremo Tribunal
Federal, em conformidade com o texto constitucional.
No que se refere à Constituição de 1988, observa-se que o consti-
tuinte adotou um modelo misto, isto é, o controle difuso (inspirado no
modelo norte-americano) e o controle concentrado (inspirado no mo-
delo austríaco), visando assim garantir estabilidade nas relações, segu-
rança jurídica e preservação do Estado Democrático de Direito.
Porém, verificar-se-ão, no presente trabalho, as possibilidades
de o Tribunal de Contas, que é um órgão não jurisdicional, que integra
o Poder Legislativo, fazer o juízo de apreciação da constitucionalidade
de leis e atos normativos, a quem foi deferida tal atribuição por meio
do artigo 71, inciso X, da CF, e da Súmula nº 347 do Supremo Tribunal
Federal.
Desta forma, o problema da presente pesquisa centra-se na se-
guinte questão: quando o Tribunal de Contas exerce a competência que
lhe é atribuída pela Súmula nº 347, estaria ele usurpando da competên-
cia atribuída ao Supremo Tribunal Federal no controle de constitucio-
nalidade em tese? Em decorrência de tal indagação, questiona-se: qual
a extensão do conteúdo interpretativo atribuído pelo próprio Supremo
Tribunal Federal à Súmula Vinculante nº 47?
O presente trabalho, municiado dos métodos histórico e hipotéti-
co-dedutivo, tem como objetivo, num primeiro momento, analisar o pa-
Rosa Sauzem Machado

pel do Tribunal de Contas no Direito brasileiro a partir das suas atribui-


ções com o advento da Constituição de 1988. Em um segundo momento,
será abordado o contexto de edição da Súmula nº 347 do STF, sendo isso
de fundamental importância para o objeto do presente trabalho, visan-
do assim esclarecer como se deu a edição dessa súmula. E, finalmente,
para concretizar o objeto da pesquisa, averiguar-se-á o entendimento
que permeia do Supremo Tribunal Federal, se tal Súmula constituiria
ou não violação da competência do Supremo Tribunal Federal, a partir
da

da interpretação do significado extraído do texto da referida súmula no


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

contexto pós-Constituição de 1988.

As atribuições do tribunal de contas com


a constituição de 1988
A Constituição de 1988 ampliou consideravelmente as atribuições
do Tribunal de Contas, estando localizadas no Título IV (Organização
dos Poderes), no Capítulo I (Do Poder Legislativo), regulado na Seção IX,
a qual trata da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária, no que
dispõem os artigos 70 a 75, da CF/88.
O artigo 70 da CF/88 preceitua que a fiscalização contábil, finan-
ceira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades
14
15
da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade,

Constitucionalismo Contemporâneo
economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será
exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo
sistema de controle interno de cada Poder. Com a inserção do parágrafo
único no artigo 70 da CF/88, pela Emenda Constitucional nº 19/1998,
ampliou-se a atuação do Tribunal de Contas, eis que ele passou a ter
competência para fiscalizar não só as contas da administração pública
direta e indireta, mas também as de qualquer pessoa física ou jurídica,
pública ou privada, que utilizem dinheiro, bens e valores públicos ou
pelos quais a União responda (BRASIL, 1988).
Para Bulos (2012), conforme está previsto no artigo 130 da CF/88,
atua junto à Corte de Contas um Ministério Público Especial, também
conhecido como Ministério Público de Contas, que é especializado nas

e suas formas contemporâneas


matérias que são objeto de atuação do Tribunal de Contas.
Já o artigo 71 da CF/88 e o artigo 1º do Regimento Interno do
Tribunal de Contas estabelecem as funções do Tribunal de Contas da
União, o qual deve auxiliar o Congresso Nacional no exercício do con-
trole externo e na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, opera-
cional e patrimonial da União, nas atribuições, conforme dispõe o artigo
71 da Constituição Federal1.


1
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante pa-
recer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e va-
lores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades ins-
tituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a
perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; III - apre-
ciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer títu-
lo, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo
Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem
como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melho-
rias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório; IV - realizar, por
iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou
de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, ope-
racional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II; V - fiscalizar as contas nacionais das
empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indi-
reta, nos termos do tratado constitutivo; VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos
repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congê-
neres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município; VII - prestar as informações solicitadas
pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas
Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimo-
nial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas; VIII - aplicar aos responsáveis,
em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em
lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao
O Regimento Interno do Tribunal de Contas, nos seus artigos 1º,
2º, e 3º, expõe um mister de atribuições e competências maior do que
o elencado no artigo 71 da CF/88. Desta forma, percebe-se que o artigo
1º do Regimento Interno, no seu caput, diz que, “Ao Tribunal de Contas
da União, órgão de controle externo, compete [...]”, trazendo um rol, nos
seus incisos elencados, mais extensivo das competências já estabeleci-
das na Constituição, no artigo 71, e com algumas inovações.
Nesse sentido, vale ressaltar, de forma meramente exempli-
ficativa, alguns pontos do artigo 1º, comparando-se com o artigo
71. A exemplo do inciso IV, que acrescenta ser o TCU legítimo para
a emissão de pronunciamento conclusivo sobre matéria submeti-
da à apreciação da Corte de Contas; inciso V, que traz a possibilida-
de de auditar projetos e programas autorizados na lei orçamentária
anual; inciso XIII, que preconiza a possibilidade de que o órgão fe-
deral fiscalize o cumprimento da Lei Complementar nº 101, de 2000
(Lei de Responsabilidade Fiscal); o inciso XVII explana que compete
Rosa Sauzem Machado

ao órgão de contas a aplicação de sanções aos responsáveis e a ado-


ção de medidas cautelares previstas no regimento interno; o inciso
XXV, o qual diz que compete ao órgão de contas decidir sobre consulta
que lhe seja formulada por autoridade competente, a respeito de dú-
vida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares
concernentes à matéria de sua competência; e, ainda, o inciso XXIX,
que acrescenta a possibilidade de o TCU realizar demais fiscalizações,
sem prejuízo de suas atribuições elencadas na normativa constitucio-
da

nal. Assim, há que se ressaltar que todos os incisos retrorreferidos


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

estão relacionados com a função do órgão de contas como auxiliar


do Congresso Nacional no exercício do controle externo e fiscaliza-
ção contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da
União (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2015).

erário; IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias
ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; X - sustar, se não atendido, a exe-
cução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado
Federal; XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.
§ 1º No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso
Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis. § 2º Se o
Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as me-
didas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito. § 3º As decisões do
Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.
§ 4º O Tribunal encaminhará ao Congresso Nacional, trimestral e anualmente, relatório de
suas atividades. (BRASIL, 1988)
16
17
Já os incisos XXX, XXXI, XXXIII, XXXIV do artigo 1º do Regimento

Constitucionalismo Contemporâneo
Interno do Tribunal de Contas abordam um rol de competências dife-
renciadas quanto às matérias organizacionais da Corte de Contas, como
se pode verificar nos incisos abaixo:
Art. 1º [...]
XXX – alterar este Regimento;
XXXI – eleger seu Presidente e seu Vice-Presidente, e dar-lhes
posse;
XXXII – conceder licença, férias e outros afastamentos aos mi-
nistros, ministros-substitutos e membros do Ministério Público
junto ao Tribunal, dependendo de inspeção por junta médica a li-
cença para tratamento de saúde por prazo superior a seis meses;

e suas formas contemporâneas


XXXIII – organizar sua Secretaria e prover-lhe os cargos, observa-
da a legislação pertinente;
XXXIV – propor ao Congresso Nacional a criação, transforma-
ção e extinção de cargos e funções do quadro de pessoal de
sua Secretaria, bem como a fixação da respectiva remuneração.
(TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2015).

O artigo 2º do Regimento Interno autoriza o órgão de contas, que


assiste o poder regulamentar, expedir atos normativos sobre matérias
de sua competência e sobre a organização dos processos que lhe devam
ser submetidos, obrigando ao seu cumprimento aqueles que lhe estão
jurisdicionados, sob pena de responsabilidade, nos termos do artigo 3º
da Lei nº 8.443, de 1992. Bem como, o artigo 3º explana que o Tribunal
de Contas, no exercício de sua competência, terá irrestrito acesso a to-
das as fontes de informações disponíveis em órgãos e entidades juris-
dicionados, inclusive as armazenadas em meio eletrônico, bem como
aquelas que tratem de despesas de caráter sigiloso.
Sendo assim, os artigos 70 e 71 da CF/88 reservaram ao Tribunal
de Contas competências de fiscalização próprias, no tocante às atividades
administrativas elencadas, consagrando, desse modo, competências mais
amplas do que as anteriores, referentes ao tópico da fiscalização externa.
Segundo o entendimento de Justen Filho (2013), no sistema an-
terior, a fiscalização externa envolvia somente o exame da legalidade
dos atos que tinham sido praticados. O artigo 70 da CF/88 refere-se à
fiscalização da legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das
subvenções e renúncia de receitas. Não condiz essa redação com a cria-
ção de competência para rever o mérito dos atos administrativos ou de
invadir o âmbito de liberdade que detinha a autoridade que praticou tal
ato. Logo, não foi reconhecido ao Congresso Nacional e ao Tribunal de
Contas o exercício em nome próprio das atividades de que os outros ór-
gãos estão investidos, porque os órgãos de fiscalização não substituem
os órgãos fiscalizados, pois estes continuam como detentores, com ex-
clusividade, da competência para a prática dos atos.
Seguindo a explanação de Justen Filho (2013), não cabe, via de
regra, à Corte de Contas averiguar o mérito dos atos administrativos,
eis que a discricionariedade é a liberdade de verificar a conveniência e
escolher a solução melhor para o caso. Desta forma, o mérito da atua-
ção discricionária não está sujeito à revisão, nem mesmo pelos órgãos
do Judiciário. Assim, se o mérito pudesse ser revisado pelo Congresso
Nacional ou pela Corte de Contas, perderia a discricionariedade.
Outrossim, a ausência de referência na Constituição quanto à fis-
calização do mérito, da conveniência ou da discricionariedade não é
Rosa Sauzem Machado

casual, pois a Constituição menciona apenas à economicidade e legiti-


midade, que são matérias complementares da atuação do gestor públi-
co. Cabe aos órgãos fiscalizatórios verificar se existiu ou não abuso de
poder, desvio de finalidade, ou se a decisão adotada era a melhor, sem,
no entanto, rever o mérito, via de regra.
O doutrinador Justen Filho (2013, p. 1.209) explica que:

A economicidade compreende os diversos ângulos da eficiência


da

econômica. Indica a utilização mais satisfatória e eficiente dos


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

recursos públicos, com o menor dispêndio possível para a reali-


zação dos fins buscados.
A legitimidade significa não apenas a compatibilidade do ato
com as normas legais, mas também a correção do ato segundo os
princípios fundamentais e as circunstâncias concretas existentes
à época da prática do ato. A legitimidade abrange, então, alguns
aspectos do exercício da discricionariedade, ainda que não com-
preenda o mérito da escolha do agente estatal. (Grifos originais)

Todavia, se houver o descumprimento da proporcionalidade, está


autorizada a revisão dos atos administrativos, pois já existe uma série
de jurisprudência sobre isso.
Mello (2015) explana que o princípio da proporcionalidade está
centrado originariamente na proteção de direitos e garantias indivi-
18
19
duais, e sua aplicação é considerada igualmente válida na preservação

Constitucionalismo Contemporâneo
do interesse público. Assim, o doutrinador leciona que, quando o princí-
pio da proporcionalidade apresentar caráter normativo, é possível afir-
mar que ele, enquanto norma, proibirá a produção de atos administrati-
vos e a edição de leis desproporcionais, tornando-os inconstitucionais.
Ou seja, este princípio, como uma norma, veda as ações do Estado que
sejam desproporcionais, eis que pode integrar a própria norma quando
for considerado com feição da matéria, passando, assim, a ditar regras
de conduta aos administradores públicos.
Associando o princípio da proporcionalidade com o artigo 71 da
CF/88, que traz um rol de competências constitucionais ao Tribunal de
Contas, conferindo legitimidade para que a Corte de Contas, que é um
órgão de controle, aplique este princípio, nota-se que tal princípio visa

e suas formas contemporâneas


proteger o interesse público, mesmo que tal ação mitigue o princípio da
legitimidade. Portanto, as decisões do Tribunal de Contas são fundamen-
tadas com base nos princípios, nas leis, na jurisprudência e na doutrina,
eis que a Constituição atribuiu competência ao órgão de contas para jul-
gar as contas e apreciar a legalidade dos atos da administração pública.
Conforme Bulos (2012), as competências atribuídas aos Tribunais
de Contas têm sido ampliadas, não só em razão da Constituição de 1988,
mas também devido às modificações produzidas na prestação da ativi-
dade administrativa, investindo, assim, o órgão com poderes mais am-
plos, que visam sua eficiência maior, eis que impõe desafios aos órgãos
do controle da coisa pública, ou seja, celeridade nas demandas, fiscali-
zação contábil, orçamentária, financeira, patrimonial e operacional dos
órgãos e entidades de sua administração direta e indireta.
Deste modo, no Regimento Interno do Tribunal de Contas, ressalta-
se que alguns artigos especificam a forma como serão exercidas as com-
petências supracitadas, visando eficiência e celeridade nas demandas.
Logo, nos artigos 188-A ao 265, estão estabelecidas as atividades de sua
competência, que serão desenvolvidas no exercício do controle externo,
através do órgão de contas, no qual estes artigos abordam o julgamento
das contas; tomada e prestação das contas; as decisões e suas execuções;
apreciação das contas do Presidente da República; a fiscalização, suas
subdivisões e instrumentos de fiscalização, tais como, levantamento, au-
ditorias, inspeções, acompanhamentos; a apreciação de atos sujeitos a re-
gistro; resposta à consulta. Bem como os artigos 266 ao 289 estabelecem
as sanções aplicadas no exercício da atividade desenvolvida no controle
externo, quais os tipos de recursos cabíveis das decisões proferidas pela
Corte de Contas, e as medidas cautelares cabíveis.
Para Sodré (2006), o Tribunal de Contas tem como atribuição
a realização do controle de constitucionalidade, com previsão cons-
titucional nos artigos 70 e 71 da CF/88, cuja competência está defi-
nida no artigo 71, X, da CF/88, que atribuem à Corte de Contas o po-
der de sustar, se não for atendido, a execução de um ato impugnado,
assim comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado
Federal, bem como encontrar fundamento em seu regimento interno
e na Lei Orgânica, por meio dos quais, de acordo com o artigo 66 da
Lei 8.443/92 (Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União) cominado
com o artigo 15, I, “e”, do Regimento Interno, compete ao Plenário do
TCU privativamente deliberar originariamente sobre os conflitos de
lei ou ato normativo do poder público com a Constituição, em matéria
que seja de competência do órgão de contas.
Rosa Sauzem Machado

Já o artigo 16, VI, do Regimento Interno, leciona que compete ao


Plenário deliberar sobre propostas de determinações de caráter nor-
mativo, de estudos sobre procedimentos técnicos, bem como daqueles
em que se entender necessário o exame incidental de inconstituciona-
lidade de lei ou de ato normativo do poder público. Portanto, compete
ao Presidente do TCU votar quando for apreciar a inconstitucionalidade
de lei ou de ato normativo do poder público, conforme expressa o artigo
da

28, X, do Regimento Interno. Outrossim, também está presente em ma-


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

téria sumular, cujo tema será abordado no próximo tópico.

Contexto de edição da Súmula 347 do STF


Como já ressaltado no tópico anterior, a Constituição Federal de
1988 ampliou consideravelmente o rol de atribuições do Tribunal de
Contas. No entanto, no rol de competências arroladas na Constituição
não se encontra a possibilidade de apreciação de constitucionalidade
de leis ou de atos normativos, ainda que na via difusa.
Segundo o doutrinador Lenza (2012), no exercício das suas ativi-
dades, o Tribunal de Contas poderá, sempre diante do caso concreto e
de forma incidental, apreciar a constitucionalidade de leis ou atos nor-
mativos, bem como poderá deixar de aplicá-los, quando entender que é
20
21
flagrante a inconstitucionalidade. Ou seja, pode o órgão de contas, como

Constitucionalismo Contemporâneo
uma faculdade, por meio do exercício de suas atribuições e na sua atua-
ção, deixar de aplicar atos normativos e leis do Poder Público, quan-
do estiver diante de interpretação e análise destes, que sejam eivadas
de inconstitucionalidade, sempre na forma incidental, diante do caso
concreto, no que tange às suas competências, no exercício do controle
externo, as quais a Constituição lhe confere.
Para melhor entendimento, conforme lecionam Mendes e
Branco (2012), o modelo de controle de constitucionalidade difuso
foi incorporado na Constituição brasileira de 1891, assim permitindo
ao Judiciário verificar a legitimidade das leis em face da Constituição.
As demais Constituições mantiveram este modelo de controle de
constitucionalidade.

e suas formas contemporâneas


Segundo o doutrinador Jacoby Fernandes (2016), a corte de con-
tas foi criada definitivamente pelo Decreto 966-A, em 1890, no gover-
no provisório. O chefe deste governo, Marechal Manoel Deodoro da
Fonseca, instituiu o Tribunal de Contas, por iniciativa do Ministro da
Fazenda Rui Barbosa, eis que, justificava a sua criação para a verificação
da regularidade das despesas públicas e de modo geral da gestão orça-
mentária, passando a ser inserido tal órgão de contas no texto constitu-
cional, com o advento, da Constituição de 1891, no seu artigo 89. O seu
primeiro Regimento Interno foi editado em 13 de março de 1896.
Ante o exposto, para Fajardo (2008), o Tribunal de Contas, antes
da vigência da Constituição de 1988, recebeu normativamente a atri-
buição de que estaria investido de competência para realizar o con-
trole de constitucionalidade, ou seja, apreciando a constitucionalidade
de leis ou de atos normativos federais. Sob a égide da Carta Magna de
1946, na qual, no seu artigo 77, estavam dispostas as competências do
Tribunal de Contas, eis que este rol de competências do referido artigo
serviu de base para edição da Súmula nº 347 do STF, isto é, a corte de
contas pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder
Público, no exercício de suas atribuições, sendo que a referida súmula
foi aprovada em Sessão Plenária, do dia 13 de dezembro de 1963, em
um contexto totalmente diferente do atual. Ressalta-se que o Regimento
Interno da corte de contas que estava em vigor na data de edição da
súmula era de 1896, logo, anterior à Carta Magna de 1946 e anterior à
data de edição da Súmula, na qual não fazia menção à competência da
Corte de Contas para promover a apreciação da constitucionalidade de
leis e atos normativos.
Assim, no entendimento do autor supracitado, a Súmula nº 347
do STF teve como base o julgado do Mandado de Segurança nº 8.372
do Ceará, publicado em 26 de abril de 1962, com o Ministro Pedro
Chaves como relator. O caso tratava de um recurso impetrado por um
delegado de polícia substituto aposentado contra uma decisão da cor-
te de contas do Ceará, a qual negou que fosse efetuado o registro da
aposentadoria, sendo que a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça
do Ceará manteve a decisão do órgão de contas, no qual o ministro
relator proferiu o voto de que:

Nego provimento ao recurso. Considerando sem efeito a lei


que servira de fundamento ao ato de aposentadoria do recor-
rente, não poderia ser feito o registro por falta de supedâneo
jurídico. A meu ver o acórdão recorrido bem decidiu a espécie,
mas não posso deixar de lhe opôr um reparo de ordem dou-
Rosa Sauzem Machado

trinária, pois não quero ficar vinculado a uma tese que tenho
constantemente repelido. Entendeu o julgado que o Tribunal
de Contas não poderia declarar a inconstitucionalidade da lei.
Na realidade, esta declaração escapa à competência específica
dos Tribunais de Contas. Mas há que distinguir entre declara-
ção de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitu-
cionais, pois esta é a obrigação de qualquer tribunal ou órgão
de qualquer dos poderes do Estado. Feita essa ressalva, nego
provimento ao recurso. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MS
da

8.372, Rel. Ministro Pedro Chaves, julgado em 11/12/1961)


(FAJARDO, 2008, p. 27)
Caroline Müller Bitencourt & Betieli

Ainda, no entendimento de Fajardo (2008), o Ministro Pedro


Chaves adotou, não por acaso, a tese que era predominante em tal
época, tendo como base os seguintes pontos: de que toda lei ou ato
normativo inconstitucional seriam nulos, inexistentes, e não pode-
riam produzir efeitos; que por serem inexistentes, a corte de contas,
e todos os poderes da administração pública têm o poder-dever de
afastar a aplicação de uma norma jurídica inconstitucional; e que só
o Poder Judiciário teria competência para declarar a inconstituciona-
lidade de leis ou atos normativos. Em síntese, a referida decisão do
Ministro Pedro Chaves, que serviu de base para a edição da Súmula
nº 347 do STF, enfatiza a obrigação, de qualquer órgão dos poderes
22
23
do Estado ou de qualquer tribunal, além da Corte de Contas, de não

Constitucionalismo Contemporâneo
aplicar leis inconstitucionais.
No que tange aos pontos da tese supracitada, estes resumem o
que se ressaltava na época, de que qualquer tribunal ou órgão devia
afastar (negar-se) de aplicar uma lei que fosse considerada inconstitu-
cional por ele, no entanto, estes colidem frontalmente com teses moder-
nas, que já foram consolidadas na doutrina e na jurisprudência atual.
Cabe ressaltar que, após a edição da Súmula nº 347 do STF, se-
gundo lecionam Mendes e Branco (2012), apenas em 1965 se inseriu no
ordenamento jurídico brasileiro o modelo de controle de constitucio-
nalidade concentrado, por meio da Emenda Constitucional nº 16, onde
era admitido anteriormente como legítima a recusa de um órgão não
jurisdicional em aplicar uma lei que fosse considerada inconstitucio-

e suas formas contemporâneas


nal. Sendo que tal controle devia ser proposto pelo Procurador-Geral da
República, competindo ao STF realizar o julgamento por meio de ação
direita de inconstitucionalidade.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal, com a promulgação da
Constituição de 1988, reconheceu essa competência, quando recepcio-
nou a Súmula nº 347. Portanto, a dúvida que se estabeleceu é sobre o
que compreende essa competência, ou seja, o que pode ser objeto de
controle, atos concretos ou leis e atos normativos, e se tal controle seria
exercido no caso concreto ou em tese.
Desta forma, no próximo tópico, passa-se a abordar a possibilida-
de de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas e
a divergência na aplicação da Súmula nº 347.

A possibilidade de controle de constitucionalidade


por parte do Tribunal de contas: a divergência
sobre a aplicação da Súmula 347
O Supremo Tribunal Federal vem se manifestando, por meio de
decisões monocráticas em mandados de segurança, interpretando o que
preceitua a Súmula nº 347, eis que as decisões questionam a declaração
de inconstitucionalidade realizada pelo Tribunal de Contas da União.
Gilmar Mendes (2006) apreciou o Mandado de Segurança nº
25.888, que trata de uma medida liminar impetrada pela Petrobras
contra ato praticado pelo Tribunal de Contas da União, no qual este ór-
gão de contas determinou que a impetrante e seus gestores deixassem
de aplicar o Decreto nº 2.745/1998, que estabelece o regulamento de
Procedimento Licitatório Simplificado para a Petrobras em muitos pre-
cedentes. Tal decisão relatou que a Corte de Contas vem decidindo no
sentido de que a Petrobras deve se submeter à Lei nº 8.666/1993 (Lei
das Licitações), ao invés de aplicar o referido decreto, por entendê-lo
como inconstitucional.
Na petição inicial, o Tribunal de Contas da União, quando apre-
ciou o processo TC nº 008.210/2004-7, determinou que a impetran-
te (Petrobras), no acórdão nº 1.498/2004, deveria justificar, de modo
circunstanciado, a aplicação das sanções previstas no artigo 87 da Lei
nº 8.666/1993, garantindo prévia defesa da contratada e mantendo no
respectivo processo administrativo os documentos que evidenciem tais
procedimentos. Outrossim, a impetrante teria que obedecer aos artigos
22 e 23 da Lei nº 8.666/1993, que se referem às modalidades e aos limi-
Rosa Sauzem Machado

tes da licitação, com base no valor estimado de contratação.


Contra tal decisão, a impetrante interpôs recurso de reexame e
alegou que seus procedimentos de contratação não estariam regulados
pela Lei das Licitações (8.666/1993), mas sim pelo Regulamento de
Procedimento Licitatório Simplificado, que foi aprovado pelo Decreto
nº 2.745/98, do Exmo. Sr. Presidente da República, o qual possui lastro
legal no artigo 67 da Lei nº 9.478/97.
da

Em análise ao pedido de reexame, o TCU negou provimento, deter-


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

minando que a Petrobras observasse os ditames da Lei nº 8.666/1993,


e que, segundo a Súmula nº 347 do STF, o TCU, no exercício das suas
atribuições, possui competência para apreciar a constitucionalidade
das leis e dos atos do Poder Público. Assim, a Petrobras interpôs embar-
gos de declaração, os quais não foram acolhidos pelo TCU, no Acórdão
nº 39/2006.
Em face da decisão do TCU, a Petrobras impetrou o aludido
Mandado de Segurança, o qual alegou que o TCU não possui competên-
cia para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, eis
que, a Súmula nº 347 do STF foi editada em 1963, tendo como base o
artigo 77 da Constituição de 1946, há muito tempo revogada, e que a
regra do Regimento Interno do TCU, que prevê essa competência, não
pode se sobrepor à Constituição. No mais, salientou nas alegações que
24
25
a Petrobras é empresa integrante da administração indireta, está sub-

Constitucionalismo Contemporâneo
metida ao princípio da legalidade e deve cumprir o artigo 67 da Lei
nº 9.478/1997 e o Decreto nº 2.745/1998, que estão vigentes, e serão
precedidos de procedimento licitatório simplificado, afastando a aplica-
ção da Lei nº 8.666/1993.
E ainda, que, por força do § 1º do artigo 40 da LC nº 73/1993,
a Petrobras é obrigada a cumprir o Parecer AC-15, da AGU, onde con-
clui-se que a inaplicação do Decreto nº 2.745/98, por alegada incons-
titucionalidade do regime simplificado, a todo o Grupo Petrobras, es-
barra no princípio da presunção de constitucionalidade das leis e da
legalidade dos atos da administração até que sobrevenha decisão ju-
dicial em contrário, sendo insuficiente a opinião do TCU, a quem cabe
tão só julgar a regularidade das contas. Bem como alegou que, após a

e suas formas contemporâneas


Emenda Constitucional nº 9/1995, que alterou o § 1º do artigo 177 da
Constituição, a impetrante passou a atuar na exploração do petróleo em
regime de livre concorrência com outras empresas. Com isso, o artigo
67 da Lei nº 9.478/1997 determina a submissão da impetrante a um
procedimento licitatório simplificado, por ora, afastando a aplicação da
Lei nº 8.666/1993, que estabelece um regime de licitação e contratação
inadequado para a atuação da empresa num ambiente de livre competi-
ção. Desse modo, a impetrante requereu, em sede de medida liminar, a
suspensão da decisão proferida pelo TCU, no Acórdão nº 39/2006.
O Ministro Gilmar Mendes acabou por julgar monocraticamente
a presente liminar, e determinou a suspensão da decisão do Tribunal
de Contas da União que declarava como inconstitucional o Decreto
2.745/1998, de procedimento licitatório simplificado.
Um dos principais fundamentos utilizado pelo Ministro em sua
decisão monocrática, sendo de suma importância a análise desta para o
desenvolvimento e conclusão do presente trabalho, diz respeito à carên-
cia de competência do TCU para declarar a inconstitucionalidade, mes-
mo diante de casos concretos, diante do ordenamento constitucional
atual e do sistema de controle de constitucionalidade da Constituição
de 1988. Dessa forma, afirmou que seria necessário reexaminar a sub-
sistência e a compatibilidade do entendimento da Súmula nº 347 do
STF, devendo assim ficar suspenso cautelarmente a decisão proferida
pelo Tribunal de Contas, até o julgamento final do presente Mandado de
Segurança, o qual até o momento não transitou em julgado.
Desta forma, destacam-se os principais pontos do Mandado de
Segurança 25.888:

Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de


Contas da União, do art. 67 da Lei nº 9.478/97, e do Decreto nº
2.745/98, obrigando a Petrobras, consequentemente, a cumprir
as exigências da Lei nº 8.666/93, parece estar em confronto com
normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio
da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71),
assim como aquelas que conformam o regime de exploração da
atividade econômica do petróleo (art. 177).
Não me impressiona o teor da Súmula nº 347 desta Corte, se-
gundo o qual “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribui-
ções, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do
Poder Público”. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão
Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmen-
te diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional
nº 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abs-
Rosa Sauzem Machado

trato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte


de órgãos não-jurisdicionais, a aplicação da lei considerada in-
constitucional.
No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de
1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de con-
trole de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho en-
fatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato,
com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão
constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança
da

substancial no modelo de controle de constitucionalidade até en-


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

tão vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de for-


ma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar
o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de
normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a
amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude
do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipica-
mente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal
mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o proces-
so de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla
função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva
quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas.
Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucio-
nalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a ne-
cessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula nº 347 em face
da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988.
26
27
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MS 25.888/06, Rel. Ministro

Constitucionalismo Contemporâneo
Gilmar Mendes, julgado em 22/03/2006, grifos originais)

Na mesma linha, em decisão monocrática, o Ministro Eros Grau


(2009), no Mandado de Segurança nº 28.252, julgou a presente segu-
rança no mesmo sentido, sendo que, ela foi impetrada pela Petrobras,
contra ato do Tribunal de Contas da União, onde este determinou que
fosse realizada uma auditoria operacional na Petrobras, para que se ave-
riguasse a contratação de serviços relacionados a obras de implantação,
manutenção e consultoria dos sistemas de telecomunicação de unidade
de negócios localizada no Estado do Espírito Santo, eis que a contrata-
ção, realizada pelas empresas litisconsortes, foi regida pelo Decreto
nº 2.745/1998 (procedimento licitatório simplificado). Contudo, o

e suas formas contemporâneas


Acordão nº 27.689/2009 do TCU manteve o entendimento de que a im-
petrante não poderia aplicar o Decreto nº 2.745/1998, o qual estabelece
o procedimento licitatório simplificado, devendo, em contrapartida, apli-
car a Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações).
E ainda, a impetrante alegou no mandado de segurança em co-
mendo que o TCU estava ignorando todos os precedentes do Supremo
Tribunal Federal sobre a matéria, oriundos de mandados de segurança
idênticos ao presente. Também sustentou que o procedimento licita-
tório simplificado deve ser aplicado por todas as empresas do grupo
Petrobras, alegando ainda que o entendimento acerca da inconstitucio-
nalidade de tais normas, por parte do TCU, seria insuficiente para afas-
tar a sua aplicação.
Dito isso, o Ministro Eros Grau, ao decidir o presente mandado de
segurança, utilizou como fundamento a decisão monocrática proferida
pelo Ministro Gilmar Mendes (no Mandado de Segurança nº 25.888), e
assim reiterando o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em ou-
tras decisões monocráticas, de que é ausente a competência da Corte de
Contas para determinar o afastamento (não aplicação) de ato normativo,
via controle incidental, ou seja, mesmo nos casos concretos, fazendo-se
necessário o reexame da compatibilidade do entendimento da Súmula
nº 347 do STF, diante do sistema atual de controle de constitucionalidade.
Sobre as demais decisões monocráticas que reiteram o posicio-
namento do Supremo Tribunal Federal quanto à ausência de competên-
cia da Corte de Contas e que foram citadas no Mandado de Segurança
nº 28.252, vale dizer:
No mesmo sentido as decisões monocráticas proferidas no MS
n. 26.410, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 2.3.07;
e MS n. 25.986, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 30.6.06; e,
recentemente, MS n. 27.232, de que sou Relator, DJ de 20.5.08.
15. Adoto como razão de decidir os argumentos expendidos pelo
Ministro Gilmar Mendes nos autos do MS n. 25.888. (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, MS 28.252/09, Rel. Ministro Eros Grau, jul-
gado em 28/09/2009)

Ante o exposto, existem alguns julgados no mesmo sentido sem


que o Supremo Tribunal Federal tenha decidido definitivamente a
matéria suscitada nos mandados de segurança. Outrossim, podem-
se destacar as seguintes decisões, as quais já obtiveram parecer da
Procuradoria-Geral da República, com manifestação denegatória, nos
seguintes mandados de segurança: Relator Ministro Celso de Mello, MS
nº 25.986, do DF; Relator Ministro Ricardo Lewandowski, MS nº 26.410;
Relatora Ministra Ellen Gracie, MS nº 26.783, Relator Ministro Eros
Rosa Sauzem Machado

Grau MS nº 27.232 do DF e 27.337, Relator Marco Aurélio, MS nº 31.439,


entre outros.
Em todas as decisões supracitadas, a Petrobras atuou como im-
petrante contra os atos praticados pelo TCU. Esses atos consistem na
determinação da inaplicabilidade do Decreto nº 2.745/98, que prevê
o procedimento licitatório simplificado, devendo assim a impetrante
aplicar nas licitações a Lei 8.666/93. A Petrobras aduziu nos presen-
tes mandados de segurança que a Corte de Contas não possui compe-
da

tência para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

assim sustentando que a Súmula nº 347 do STF foi editada em 1963,


tendo esta como base a Constituição de 1946 (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2011).
Desta forma, todos os Ministros, nos referidos mandados de segu-
rança, julgaram monocraticamente, e acompanharam o entendimento
do ilustrado no aludido MS nº 25.888 do DF, suspendendo assim a eficá-
cia dos acórdãos do TCU.
Marco Aurélio (2012), no MS nº 31.349, reafirmou a posição do
Ministro Gilmar Mendes no caso paradigma, do MS nº 25.888, indo além
quando não reconheceu que tal competência do Tribunal de Contas po-
deria ser qualificada como controle de constitucionalidade pela via in-
cidental, pois aduziu que o Tribunal de Contas, no exercício das suas
28
29
atribuições constitucionais, poderá determinar a não aplicação de lei

Constitucionalismo Contemporâneo
que for manifestamente inconstitucional, contudo não configura esta
determinação como controle repressivo de constitucionalidade de lei,
pois tal competência é exclusiva do Poder Judiciário.
Ademais, as decisões supracitadas ainda não transitaram em jul-
gado e também não se têm notícias de decisões mais recentes proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal, em que seja reconhecida a competência
do Tribunal de Contas da União para declarar a inconstitucionalidade.

Considerações finais
Portanto, como visto no decorrer do presente trabalho, entende-
se que o Tribunal de Contas União é um órgão autônomo e integrante

e suas formas contemporâneas


de Poder Legislativo, com atribuições delegadas pela Constituição de
1988 em um rol taxativo (do art. 71), e pelo seu regimento interno. Isso
porque, o referido órgão presta auxílio ao Poder Legislativo, no controle
externo, tendo atribuições próprias e exclusivas de forma independente
dos outros Poderes do Estado.
Assim, quando o Tribunal de Contas exerce o controle de consti-
tucionalidade no caso concreto, afasta apenas a aplicação da lei ou dos
atos praticados pelo Poder Público, pois as suas decisões têm caráter
meramente administrativo, ou seja, estão sujeitas ao reexame por parte
do Poder Judiciário quanto à legalidade e juridicidade, deste modo, não
caracteriza um bis in idem ou uma dupla punição, pelo fato de que estas
têm caráter diverso umas das outras, não sendo, portanto, idênticas;
logo, as decisões emanadas pela Corte de Contas não possuem caráter
jurisdicional, mas tão somente viés administrativo.
Dito isso, há que se ressaltar que a natureza jurídica de orienta-
ção do Tribunal de Contas é administrativa, pois trata-se de um órgão
consultivo e orientativo da Administração Pública, sendo que, além das
suas atribuições, há que se observar que a Corte de Contas possui uma
atribuição implícita, isto é, no momento em que este órgão decide, aca-
ba por influenciar as demais Administrações Públicas no âmbito esta-
dual e municipal. Logo, é imprescindível de se pensar que as decisões
de afastamento tomadas por este órgão de contas terão efeitos não sim-
plesmente para aquele caso em tela, mas também repercutirão muito
além, o que ainda o diferencia do caso concreto.
Desta forma, como já salientado, os julgados supracitados (STJ e
TJRS) vêm corroborar com a tese de que a interpretação do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul está em descompasso com a do Supremo
Tribunal Federal.
Ademais, os mandados de segurança julgados pelo Supremo
Tribunal Federal têm se posicionado predominantemente com base
no caso paradigma do MS nº 25.888 do DF, dispondo, sobre a Súmula
nº 347 do STF, de que se trata nos casos de não aplicação da referida
súmula, ou seja, de que Corte de Contas carece de competência para
determinar o afastamento ou não aplicação de atos do Poder Público,
mesmo nos casos concretos, isto é, faz-se necessário reexaminar a com-
patibilidade do entendimento que se apresenta na Súmula nº 347 do
STF diante do sistema atual de controle de constitucionalidade.
Ante o exposto, pela pesquisa enfrentada, conclui-se que não é
adequado o entendimento de que a competência do STF estaria sendo
usurpada pela possibilidade de realização do controle de constituciona-
Rosa Sauzem Machado

lidade pelo Tribunal de Contas, contanto que este órgão de contas siga
fielmente os ditames elencados nos limites de sua competência, vale di-
zer, que afaste a aplicação de uma norma considerada ilegal, em cada
caso concreto.

Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
da

Senado Federal, 1988.


Caroline Müller Bitencourt & Betieli

______. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Mandado de Segurança. MS 25.289/DF.


Rel. Benedito Gonçalves, julgado em 02/12/2015, DJ 02/02/2016. Disponível em:
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______. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Mandado de Segurança. MS 8.372/DF. Rel. Ministro


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Caroline Müller Bitencourt & Betieli

32
A RESOLUÇÃO 23.475/2015 EMITIDA
PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
EM FACE DA LIBERDADE
DE EXPRESSÃO

Alcione de Almeida
Graduado em Direito pelo Centro Universitário Franciscano
– UNIFRA, Especialista em Controle da Gestão Pública pela
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Mestrando
em Direito pela Universidade de Santa Cruz – UNISC.
Procurador Jurídico do Município de São Martinho da Serra –
RS. Advogado. (almeida_advogado@hotmail.com)

Considerações iniciais
A liberdade de expressão é um direito constitucionalmente pre-
visto no título que aborda os direitos e garantias fundamentais, contu-
do, tal direito não é tido como absoluto devendo respeitar, dentre outros
direitos e garantias fundamentais protegidos, a imagem e a intimidade
das pessoas, pois, segundo Cruz (2010, p. 118), sofre limitações de na-
tureza ética e de caráter jurídico.
No que tange ao período eleitoral, a liberdade de expressão sofre
uma limitação, pois não é possível ao cidadão exteriorizar tudo o que
pensa sobre candidatos, uma vez que a legislação eleitoral estabelece
preceitos severos para os meios de comunicação, inclusive para redes
sociais quando extrapolam os limites do tolerável.
A liberdade de expressão é importante para a efetivação da de-
mocracia, onde há divergência de ideias e de ideais, assim, o direito de
expressar opiniões não pode ser restringido para que a verdadeira de-
mocracia seja concretizada. Portanto, a liberdade de expressão, em uma
democracia, deve ser concebida como regra e não exceção.
Diante desse contexto, o intuito com a presente pesquisa é ana-
lisar eventuais limites à liberdade de expressão notadamente no pe-
ríodo eleitoral. Assim sendo, questiona-se: As resoluções do Tribunal
Superior Eleitoral podem restringir o direito fundamental à liberdade
de expressão e quais os desafios que devem ser enfrentados para a efe-
tivação de tal direito neste período?
Para a construção do estudo, no primeiro capítulo, analisar-se-á
o instituto da liberdade de expressão como direito fundamental, e no
segundo capítulo dissertar-se-á sobre a Resolução 23.475/15 emitida
pelo Tribunal Superior Eleitoral para as eleições municipais do ano de
2016 e a sua interferência na efetivação da liberdade de expressão no
Brasil, durante o período eleitoral.
Diante da relevância do instituto da liberdade de expressão para
efetivação da democracia, busca-se com o presente trabalho verificar as
consequências da mitigação de tal direito no período eleitoral.
Como caminho a ser percorrido à correta construção do estu-
do, utilizar-se-á, como método de abordagem, o hipotético-dedutivo, o
qual, partindo de um problema, buscará vislumbrar possibilidades de
solução por meio de um vasto referencial bibliográfico interdisciplinar.
No que se refere ao método de procedimento, utilizar-se-á o his-
tórico e o monográfico, sendo o primeiro pela necessidade de compre-
ender a importância da liberdade de expressão, e o segundo para na
compreensão de todas as perspectivas que circundam a mitigação à li-
berdade de expressão no período eleitoral. Dessa forma, empregar-se-á
a pesquisa bibliográfica para sistematizar e encontrar possíveis respos-
tas ao problema proposto.

A liberdade de expressão como direito


fundamental no brasil
O Brasil pós-democratização assegurou ampla liberdade de ex-
pressão, tendo tal instituto sido concebido como direito fundamental,
pois sua efetivação é essencial para a concretização da democracia, fo-
mentando, inclusive, o debate político. Nesse sentido, tal liberdade é in-
Almeida

dispensável para que as pessoas possam se manifestar sem que sejam,


eventualmente, reprimidas, e exerçam, assim, a cidadania.
Tamanha é a importância de tal direito, que a Constituição Federal
de

assegurou à liberdade de expressão o status de direito fundamental, e,


Alcione

no dizer de Mendes (2002, p. 2), tais direitos formam a base do ordena-


mento jurídico de um Estado de direito democrático.
34
35
O artigo 5º da Constituição Federal estabelece que “é livre a ma-

Constitucionalismo Contemporâneo
nifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (inc. IV), que
“ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política” (inc. VIII), que “é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, indepen-
dentemente de censura ou licença” (inc. IX) e que “é assegurado a todos
o acesso à informação” (inc. XIV).
Os direitos fundamentais surgiram como produto da fusão de vá-
rias fontes, desde tradições arraigadas nas diversas civilizações, até a
conjugação dos pensamentos filosóficos jurídicos, das ideias surgidas
com o cristianismo e com o direito natural (MORAES, 1999).
Os direitos fundamentais podem ser conceituados como a catego-

e suas formas contemporâneas


ria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade humana
em todas as dimensões (ARAUJO, 2005).
Nesse sentido, os direitos fundamentais se prestam para assegu-
rar a dignidade, a liberdade e a igualdade de todas as pessoas e, por essa
razão, tal direito não pode ser rechaçado.
A liberdade de expressão, nesse sentido, é um direito fundamen-
tal de primeira dimensão, ou seja, ligado ao direito à liberdade, limi-
tante da atuação do Estado na interferência às liberdades individuais
(SCALQUETTE, 2004).
A titularidade dos direitos de primeira geração é dos indivíduos,
sendo oponíveis ao Estado e revelando-se como mera liberalidade dos
cidadãos que os carregam na sua subjetividade, sendo esta a sua maior
característica (BONAVIDES, 2006)
Assim, a liberdade de expressão é intrínseca ao indivíduo, não
podendo o Estado interferir a ponto de mitigá-la, sob pena de violar
preceitos constitucionais.
Tratando da concepção de liberdade de expressão na ordem jurí-
dica contemporânea, Tôrres (2013) destaca que a liberdade de expres-
são consiste, em sentido amplo, num conjunto de direitos relacionados
às liberdades de comunicação, que compreendem: a liberdade de ex-
pressão em sentido estrito (ou seja, de manifestação do pensamento ou
de opinião), a liberdade de criação e de imprensa, bem como o direito
à informação.
A liberdade de expressão, portanto, é composta por outros di-
reitos pautados na manifestação do indivíduo, englobando também o
direito de informação, que é indispensável para a formação de opinião.
Nesse sentido, a liberdade de expressão, principalmente no que
tange a questões políticas e de interesse público, mostra-se indispen-
sável para que se concretize a democracia, sobretudo para que haja a
participação plena na vida pública e na tomada de decisões.
Vianna (2013), ao abordar a questão da liberdade de expressão
como direito fundamental, destaca que ela pode se revelar através das
palavras, dos sinais, símbolos ou, ainda, do silêncio. Além disso, a liberda-
de de expressão compreende a crítica e a discordância, próprias de uma
democracia, fomentando o crescimento intelectual e humanístico.
Como visto, a liberdade de expressão pode ser exteriorizada de
várias formas, incluindo a possibilidade de silenciar, pois figura como
um direito do cidadão e não como um dever, sendo o indivíduo livre
para optar por sua forma de agir.
Considerando esta abrangência do instituto da liberdade de ex-
pressão e levando em conta a sua amplitude, em especial no que tange
ao direito de informação, demonstra-se oportuno observá-la diante do
contexto da sociedade da informação, onde as informações são noticia-
das muito rapidamente e difundidas de forma mais célere ainda.

A liberdade de expressão
na sociedade da informação
Em um Estado democrático de direito, como é caso do Brasil, a
participação social se mostra indispensável, contudo, essa participação
só é possível se a população tem conhecimento dos acontecimentos
para que possa formar opinião sobre os fatos.
Nesse cenário, a evolução tecnológica, sobretudo a internet, tem
Almeida

em muito contribuído para que a informação seja difundida com uma


velocidade absurda, dando origem à sociedade da informação.
Das mudanças pelas quais passaram as sociedades modernas, des-
de

tacam-se as novas tecnologias, dando origem a um novo tipo de socieda-


Alcione

de pautada essencialmente na informação, daí o título de Sociedade da


Informação ou, ainda, Sociedade do Conhecimento (ANTUNES, 2008).
36
37
Assim, a sociedade da informação/conhecimento transforma a

Constitucionalismo Contemporâneo
coletividade em uma sociedade baseada em tecnologia para a utilização
do conhecimento em decorrência da globalização.
Deste modo, a sociedade é quem instrumentaliza a tecnologia
não só conforme a sua necessidade, mas também em razão dos valores
e interesses daqueles que se utilizam da tecnologia. Ademais, de igual
modo, as tecnologias e as informações se moldam ao uso dado pela so-
ciedade (CASTELLS, 2015).
Portanto, a sociedade é quem comanda o uso da tecnologia valen-
do-se dela conforme seu interesse e necessidade, e fazendo com que a
informação seja difundida.
Segundo Abraão (2005, p. 86), “o campo da informação é aquele

e suas formas contemporâneas


onde habita o direito de todos se interconectarem por meio da notícia,
dos fatos, eventos e documentos históricos, do didático, das projeções
futuras [...]”.
Assim, é importante que a Sociedade da Informação gere um
complexo de relações focada na informação, tendo como pano de fundo
a criação de políticas públicas que contribuam para a diminuição da ex-
clusão de milhares de pessoas que não possuem acesso às tecnologias
da informação e comunicação, por meio da valorização da produção,
distribuição e assimilação de conteúdos que possam ter impacto no dia
a dia do cidadão (SANTOS; CARVALHO, 2010).
Nesse sentido, a sociedade da informação tem que buscar a di-
minuição da exclusão digital, proporcionando, assim, que a informação
chegue às mais variadas camadas sociais, propiciando o aprimoramen-
to da democracia, pois a informação é primordial para que os indiví-
duos se tornem sujeitos ativos na rede, uma vez que, ao receber e trans-
mitir informações, produzindo novos conteúdos, este indivíduo fomen-
ta o ciclo informacional: informação – conhecimento – desenvolvimento
– informação (BARRETO, 1998).
Portanto, o direito à informação é de vital importância para que
os cidadãos possam efetivamente ser protagonistas em um Estado de-
mocrático e, portanto, o Estado deve fomentar o acesso à informação a
todas as camadas sociais.
Nesse contexto, a internet ganha destaque, pois tudo, ou pelo
menos quase tudo, que é informação está disponível na rede, democra-
tizando o acesso à informação na sociedade moderna, uma vez que a
internet tem se demonstrado um dos mecanismos mais usados para a
busca de informação, pois é um dos meios pelos quais as informações,
pensamentos e opiniões se alastram com maior rapidez. Além disso,
através dela é possível ter acesso a uma infinidade de materiais que an-
tes do seu advento nem todos poderiam ter acesso.
Assim, a internet propicia uma gama de informações que permite
aos usuários formar opinião sobre os mais variados assuntos, podendo,
através da rede, realizar pesquisa dos mais diversos assuntos, criando
sua própria base de dados e difundindo o seu estudo também na rede,
além de poder se comunicar com pessoas das mais diversas partes do
mundo (TAMMARO; SALARELLI, 2008).
Contudo, diante do grande número de informações disponíveis
na rede, não se pode ignorar que algumas informações acabam por per-
der a credibilidade, mas, ainda assim, a internet é uma grande fonte de
informação, de todas as partes do mundo, de forma contínua e sem cus-
to para os usuários e, praticamente sem barreiras.
Justamente por quase não haver barreiras, “o grande atrativo da
internet é justamente o fato de ela não ter dono. De não ser controlada
por ninguém. De ser uma “anarquia cooperativa”, como gostam definir
os teóricos” (CAVALCANTI, 1996).
Nesse contexto, Donald Trump recentemente foi eleito presidente
dos Estados Unidos da América, valendo-se da rede mundial de computa-
dores para atacar a candidata da oposição. Durante a campanha, surgiram
evidências de que “o time de Trump usou a falta de filtros do Facebook
para propagar mentiras e reforçar inverdades” (MANSUR, 2016).
Assim, diante das inúmeras vantagens da internet e da evolução
da sociedade para a sociedade da informação, onde as informações
são de fácil acesso, os políticos também aderiram ao uso da rede para
difundir suas plataformas de governo, contudo, regras foram impos-
Almeida

tas para este uso, sobretudo no que tange à restrição à liberdade de


expressão.
de

No próximo tópico, busca-se detalhar a mitigação à liberdade de


Alcione

expressão por meio da legislação do Tribunal Superior Eleitoral.

38
39
A liberdade de expressão no período eleitoral

Constitucionalismo Contemporâneo
Diante do contexto exposto no tópico anterior, no qual se expôs
que a liberdade de expressão e o direito à informação ganham especial
destaque no fortalecimento da democracia, algumas normas sugerem
a mitigação da liberdade de expressão, o que golpeia um direito funda-
mental previsto na Constituição Federal.
Para o presente estudo, tomar-se-á como base a Resolução nº
23.457/2015 editada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para as
eleições municipais do ano de 2016, que estabelece as regras que pre-
cisam ser respeitadas para a realização de propaganda na internet e
nas redes sociais.
O capítulo IV da referida resolução trata da propaganda eleitoral

e suas formas contemporâneas


na internet e, embora o artigo 241 assegure que é livre a manifestação
do pensamento, vedado o anonimato, o parágrafo segundo do mesmo
artigo estabelece que, por solicitação do ofendido, a justiça eleitoral
pode determinar a retirada de publicações que contenham agressões
ou ataque a candidatos.
Nesse sentido, tal parágrafo sugere que a liberdade de expressão
na internet, no que tange aos candidatos, fica limitada, uma vez que a
simples solicitação do ofendido pode ensejar que a justiça eleitoral de-
termine a retirada da publicação, desde que contenha agressões ou ata-
que a candidatos.
Durante período eleitoral, a liberdade de expressão torna-se ain-
da mais preciosa, pois é quando, por meio do discurso e do contraste de
posições na esfera pública, o eleitor é capacitado a escolher seus repre-
sentantes (ClE, 2014).
Nesse sentido, a liberdade de expressão assume papel de desta-
que, para que a sociedade tome conhecimento através da informação e
debata sobre propostas dos candidatados.


1
Art. 24. É livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a cam-
panha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores – Internet, assegurado o
direito de resposta, nos termos dos arts. 58, § 3º, inciso IV, alíneas a, b e c, e 58-A da Lei
nº 9.504/1997, e por outros meios de comunicação interpessoal mediante mensagem
eletrônica. [...] § 2º Sem prejuízo das sanções civis e criminais aplicáveis ao responsável,
a Justiça Eleitoral poderá determinar, por solicitação do ofendido, a retirada de publi-
cações que contenham agressões ou ataques a candidatos em sítios da Internet, inclu-
sive redes sociais. (BRASIL, 2015)
Contudo, justamente por ser um período em que os ânimos ficam
acirrados não só entre os candidatos como também entre os militantes, a
internet, seja por blogs, sites ou até mesmo nas redes sociais, transforma-
se num local de embate entre candidatos e seus defensores, surgindo a
necessidade da regulamentação da campanha nesses sítios virtuais.
Diante disso, não raras vezes, as cortes eleitorais brasileiras emi-
tem resoluções impondo medidas coercitivas para garantir a igualdade
entre os candidatos, tais como a retirada de conteúdos supostamente
lesivos de sites ou redes sociais (ClE, 2014).
Assim, é necessário atentar para que tais normas não interfiram
no direito fundamental à liberdade de expressão, pois, como já referido,
tal direito é fundamental em uma democracia, sobretudo, no período
eleitoral, e não compete ao Estado censurar a livre opinião e manifesta-
ção das pessoas, sob pena de eventual norma se tornar inconstitucional
(MAGALHÃES, 2016).
Contudo, é necessário que se tenha limites, pois a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu artigo quarto, disci-
plina que “a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não pre-
judique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem
não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da
sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser
determinados pela Lei”.
O período eleitoral, notadamente, é o momento em que as críticas
aos candidatos proliferam na internet, seja por sátira, ironia ou até mes-
mo com deboche, expressões, que, por vezes, assumem um tom agressi-
vo, podendo resultar que os ofendidos peçam para que tais comentários
sejam retirados da rede.
Diante desse cenário, torna-se relevante verificar se a Resolução
23.475/2015, do Superior de Tribunal Eleitoral, no que tange ao pará-
grafo segundo do artigo vinte e quatro, fere o direito fundamental da
liberdade de expressão.
Almeida

A Resolução 23.475/2015 do Superior Tribunal


de Justiça e a liberdade de expressão
de
Alcione

O parágrafo segundo do artigo vinte e quatro da Resolução


23.475/2015 assim dispõe: “Sem prejuízo das sanções civis e criminais
40
41
aplicáveis ao responsável, a Justiça Eleitoral poderá determinar, por soli-

Constitucionalismo Contemporâneo
citação do ofendido, a retirada de publicações que contenham agressões
ou ataques a candidatos em sítios da Internet, inclusive redes sociais”.
No que tange a este parágrafo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
tentou estabelecer um limite à liberdade de expressão dos usuários, de-
terminando que, no caso de agressão ou ataques a candidatos, o con-
teúdo seja retirado da rede mundial de computadores.
Em que pese nenhum direito fundamental seja ilimitado, sendo
possível que tenha restrições à liberdade de expressão em razão da pro-
ximidade das eleições, distancia-se da proporcionalidade, pois este é o
momento em que se atinge o auge da democracia (ÁVILA, 2010).
Nesse sentido, a possibilidade de determinadas publicações se-

e suas formas contemporâneas


rem retiradas a pedido do ofendido rechaça o Estado Democrático de
Direito, pois a democracia se fortalece por meio do debate e, para tanto,
as pessoas devem se expressar livremente.
Assim, diante da soberania do povo, a censura à liberdade de ex-
pressão mostra-se um verdadeiro absurdo, pois, quando se permite ao
indivíduo que escolha o seu representante, é necessário também se re-
conhecer a sua capacidade de escolher as diferentes opiniões que os
circundam (FÁVERE, 2010).
Nesse sentido é que se questiona o porquê de algumas informa-
ções ou opiniões serem impedidas de plena difusão, pois trazem infor-
mações que esclarecem e informam a respeito da conduta do candidato
(FÁVERE, 2010).
Assim, a possibilidade de expressar a sua opinião sem que haja
a mitigação à liberdade de expressão, ainda que no período eleitoral,
além de contribuir para o fortalecimento da democracia promove o es-
clarecimento quando traz informações sobre candidatos ou até mesmo
sobre suas plataformas de governo, uma vez que a informação é um di-
reito de todos.
Inúmeras são as ações judiciais propostas e medidas coercitivas
proferidas pelos tribunais brasileiros, especialmente com decisões de-
mandando a remoção liminar de conteúdos durante o período eleitoral
por conta de incertezas que ainda prosperam quanto à forma como de-
vem ser tratados “ataques” e “agressões”, se pela justiça comum, ou pela
justiça eleitoral (ClE, 2014).
Contudo, segundo Fávere (2010), a Constituição também protege
as informações errôneas, desde que não haja negligência ou má-fé por
parte do informador, excetuando-se as transmitidas com total desres-
peito à verdade.
Assim, havendo o respeito à verdade, ainda que a informação seja
dada de forma errônea, o direito de se expressar deve ser assegurado,
uma vez que a Constituição Federal resguarda também as informações
equivocadamente difundidas, e, nesse sentido, não há espaço para abu-
sos, os quais devem ser reprimidos pela justiça eleitoral.

Considerações finais
É inegável que a sociedade evoluiu muito, sobretudo com o ad-
vento da internet, que propiciou uma aproximação dos mais distantes
tipos de pessoas por meio não só do compartilhamento de informa-
ções, como também a comunicação pessoal, o que caracteriza a socie-
dade da informação nos dias de hoje. Em outras palavras, a sociedade
de informação é a sociedade atenta a tudo que ocorre no mundo de
forma quase instantânea.
Não obstante a isso, o advento da internet também trouxe inú-
meras outras vantagens para os mais diversos segmentos da socieda-
de, inclusive para a classe da política que começou a se utilizar da rede
mundial de computadores para divulgar suas ideias visando alcançar o
maior número de possíveis eleitores ou simpatizantes para atingir o seu
objetivo, qual seja, ser eleito.
Ocorre que não só os políticos se valem da internet para difundir
suas ideias, mas também a sociedade se utiliza da rede para buscar in-
formações sobre os mais variados assuntos, inclusive sobre o histórico
de vida de políticos que almejam cargos públicos.
De posse dessas informações, muitas críticas são publicadas
na internet, seja em redes sociais, blogs ou sites e, em razão disso, o
Almeida

Tribunal Superior Eleitoral (TSE) edita resoluções para regular essas


manifestações, como é o caso da Resolução 23.475/2015.
de

Assim, o que se vê, na verdade, é a mitigação da liberdade de ex-


pressão frente à referida legislação, principalmente no que diz respeito
Alcione

ao parágrafo segundo do artigo 24, pois, por mera solicitação do ofen-


dido, determinadas publicações podem ser retiradas por ordem do TSE.
42
43
Uma democracia, especialmente no período eleitoral, não pode

Constitucionalismo Contemporâneo
sofrer restrição, sob pena de quebra do Estado Democrático de Direito,
pois o embate de ideias somente fortalece a soberania popular e, por-
tanto, não pode ser tolhida a liberdade de expressão de quem quer que
seja, ainda mais sem o devido processo legal e a observância da ampla
defesa e do contraditório.
Assim, não se demonstra razoável que referida Resolução deter-
mine que, por mera solicitação do ofendido, sejam retiradas publica-
ções que, supostamente, contenham ataque ou agressões a candidatos,
uma vez que a crítica faz parte do processo democrático.
Desse modo, a liberdade de expressão deveria ser limitada no caso
de comprovadamente haver excessos, uma vez que nenhum direito fun-
damental é absoluto, o que somente seria possível com uma análise apro-

e suas formas contemporâneas


fundada da publicação e não meramente com a solicitação do ofendido.

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de
Alcione

44
A DEMOCRACIA NA PERSPECTIVA DO
CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA

Alexandre Brandão Rodrigues


Bacharel em Ciências Militares pela Academia de Polícia
Militar do Estado do Rio Grande do Sul (1994). Bacharel
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Luterana
do Brasil (1999). Especialista em Direito Penal e Direito
Processual Penal pela UNIJUÍ (2008). Mestrando do Programa
de Pós-graduação stricto sensu em Direitos Sociais e Políticas
Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Defensor Público do Estado do Rio Grande do Sul. Defensor
Público do Estado do Rio Grande do Sul.
(abrandao@mx2unisc.br)

Daniélle Dornelles
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito –
Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul
– UNISC. Pós-graduada lato sensu (especialização) em Direito
Imobiliário, Urbanístico, Registral e Notarial pela Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC (2017). Pós-graduada lato
sensu (especialização) em Direito Notarial e Registral pela
Universidade Anhanguera – UNIDERP (2012). Pós-graduada
lato sensu (especialização) em Direito e Processo do Trabalho
pela Universidade Anhanguera – UNIDERP (2011). Graduada
em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC
(2007). Integrante do grupo de pesquisas “Intersecções
Jurídicas entre o Público e o Privado” do Programa de Pós-
-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado da Univer-
sidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, coordenado pelo profes-
sor Pós-Doutor Jorge Renato dos Reis. Registradora Substituta.
(d.dornelles@hotmail.com)

Introdução
Atualmente, no âmbito da teoria da democracia, existem duas
concepções de democracia: a procedimentalista e a constitucionalista.
O procedimentalismo trata-se de uma concepção de democracia que
tem por foco o procedimento democrático, ou seja, o que importa para
esta concepção é a forma de garantir que a vontade da maioria preva-
leça. Já, o constitucionalismo trata-se de uma perspectiva que não se
atenta somente na forma, mas, também, visa garantir a efetividade dos
direitos fundamentais.
Isto porque, após a Segunda Guerra Mundial, valores como a dig-
nidade da pessoa humana e os direitos fundamentais foram positivados
nas Constituições dos Estados na forma de princípios. Por isso, também
no âmbito da teoria da democracia surgem várias correntes teóricas
que entendem que o aspecto substancial (material) não pode ser sepa-
rado do seu aspecto formal.
Uma destas correntes trata-se do Constitucionalismo Garantista ou
Garantismo Jurídico, de Luigi Ferrajoli, certamente um dos mais influen-
tes jusfilósofos dos séculos XX/XXI. Detentor de uma vasta obra, na qual
se destacam “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal” e “Principia
Iuris”. Na primeira obra, Ferrajoli apresenta uma teoria do Estado consti-
tucional de direito que, grosso modo, estabelece uma visão normativa, teó-
rico-jurídica e jusfilosófica da relação do poder (público ou privado) com
Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

os direitos humanos e fundamentais. A ideia é que os direitos humanos e


fundamentais têm por função limitar o poder e justificá-lo somente quan-
do atuar para fins de garantir esses direitos. Para o Constitucionalismo
Garantista, os direitos humanos e fundamentais são vistos em um amplo
espectro, não só no aspecto negativo (liberdades), mas também no po-
sitivo (sociais e políticos). Em “Principia Iuris”, Ferrajoli aprimora a sua
teoria, em especial no que toca à teoria do direito e da democracia.
Pretende-se, portanto, investigar o que o Constitucionalismo
Garantista entende por Teoria da Democracia, tanto no seu aspecto for-
mal como no material. Para tanto, far-se-á uma análise da obra de Luigi
Ferrajoli e de seus interlocutores. O método utilizado será o dedutivo,
visto que, com base na obra de Ferrajoli, será verificado qual é o seu en-
tendimento de democracia, portanto, aplicar-se-á, como ensina Lakatos
(2003, p. 94), “a chamada ‘afirmação do antecedente’ (modus ponens) e
a denominada ‘negação do consequente’ (modus tollens)”.
Far-se-á, em suma, uma análise da concepção de democracia no
Constitucionalismo Garantista, dando ênfase na função dos direitos
humanos e fundamentais. Bem como, se analisará a relação do poder
46
47
(público ou privado) com os direitos humanos e fundamentais em um

Constitucionalismo Contemporâneo
Estado Democrático de Direito.

A relação entre democracia e legalidade


Existe uma relação entre democracia procedimental e jusposi-
tivismo, isso porque aquela tem como objetivo garantir o exercício da
democracia por meio de um procedimento democrático que garanta a
participação política, previsto no ordenamento jurídico, independen-
temente do resultado que este procedimento possa chegar. Para a de-
mocracia procedimentalista, os valores são alcançados por meio dos
poderes representativos do povo, no caso, pelo Executivo, Legislativo e
Judiciário (KOZICKI; BARBOSA, 2008).

e suas formas contemporâneas


O juspositivismo trata-se de teorias jurídicas que têm como tese
principal a separação do direito e da moral. O que interessa para o jus-
positivismo não é o valor ou a justiça do direito, mas sim a sua validade.
Deve ser levada em consideração muito mais a forma do que a substân-
cia das normas (DIMOULIS, 2006).
Fazendo esse paralelo, tem-se que a democracia não se confunde
com Estado de direito. A democracia trata-se de um critério de ava-
liação e escolha, quando muitos participam desta escolha (BOBBIO,
1988, apud CADERMATORI; CADERMATORI, 2006). Já no Estado
de direito o governo deve considerar duas situações: a primeira, é
o exercício do poder por meio da lei, e a segunda é o impacto que a
positivação dos direitos fundamentais exerceu nas Constituições, em
especial no pós-Segunda Guerra. Isso significa “não só subordinação
dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite
que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite
material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais consi-
derados constitucionalmente” (BOBBIO, 1988, apud CADERMATORI;
CADERMATORI, 2006, p. 18).
Então, o Estado de direito, em sentido forte, deve ter mecanis-
mos que permitam regulamentar e limitar o poder do Estado, de forma
que ele não degenere para um poder ilegítimo e arbitrário. Somente a
lei como forma de controle social não basta; é necessária a regulamen-
tação do controle do uso desta força. E esse controle se faz por meio
de normas.
As normas, segundo Kelsen, limitam e regulam o poder por meio
de um sistema jurídico, que é estruturado de maneira escalonada, de
forma que as normas superiores se relacionem e deem validade às nor-
mas inferiores (LUZ, 2003; BITENCOURT; CALATAYUD; RECK, 2014).
Esse sistema lógico e escalonado parte da Constituição.
Hart (1994), por sua vez, entende que um sistema jurídico pres-
supõe a aceitação de duas classes de regras: regras primárias (que im-
põem deveres/obrigações) e regras secundárias (que são todas aquelas
que servem para identificar e elucidar as regras primárias – conferem
poderes) (MACCORMICK, 2010).
Maccormick (2010) esclarece que essas normas primárias de
obrigação são, para Hart, os elementos básicos da ordem jurídica,
mas, para que o sistema jurídico seja diferenciado de outros sistemas
(como a moral, a religião etc.), é necessário que estas regras sejam
suplementadas pelas normas secundárias. A relação entre as normas
primárias e as normas secundárias, para Hart (1994), é a chave do sis-
tema jurídico. Nas palavras de Hart (1994, p. 122): “deve atribuir-se
um lugar central à união das regras primárias e secundárias na eluci-
dação do conceito de direito”.
Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

Para entender o sistema jurídico de Hart, deve-se partir da


existência de standards primários (regras primárias) que, como foi
visto, preveem, basicamente, violações de dever e violações de obri-
gação. Em uma sociedade, se existissem somente tais regras, haveria,
inevitavelmente, três defeitos, os quais Hart classifica como: defeito
de incerteza (de clareza sobre as regras, de definição sobre o seu li-
mite); defeitos de qualidade estática nas regras (quanto à alteração
deliberada das regras, em especial pelo decurso de tempo); e defei-
tos de ineficácia (referente ao cumprimento das regras impostas
pelo ordenamento jurídico) (MACCORMICK, 2010; BITENCOURT;
CALATAYUD; RECK, 2014).
A cura para estes problemas, dentro do sistema jurídico, se dá
pelo estabelecimento de três tipos de regras que são consideradas se-
cundárias: regra de reconhecimento, que resolve o problema da incer-
teza; a regra de alteração, que resolve o problema da qualidade estática
das regras, ao prever as possibilidades de alterações das regras; e re-
gras de julgamento, que resolve o problema da ineficácia, ao criar os ór-
48
49
gãos responsáveis, por dar eficácia às regras primárias (MACCORMICK,

Constitucionalismo Contemporâneo
2010; BITENCOURT; CALATAYUD; RECK, 2014).
Ressalta Hart (1994) que em um sistema jurídico complexo,
onde existe uma variedade de fontes, a regra de reconhecimento é mais
complexa, e pode envolver uma Constituição escrita, leis, precedentes
judiciais, entre outras normas. Tais critérios são ordenados de forma
hierárquica de subordinação e primazia relativas, em que se estabelece
uma noção de derivação. Esta complexa regra de reconhecimento, base-
ada em uma estrutura hierárquica de vários critérios, possibilita que se
identifiquem as regras válidas do sistema.
Dentro dessa perspectiva juspositivista, para Bobbio (1998, p. 18
e 19), a democracia trata-se de “um conjunto de regras (primárias ou
fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as de-

e suas formas contemporâneas


cisões coletivas e com quais procedimentos”. Fica claro, pois, que, para
Bobbio, a democracia está ligada com a legalidade, pois não há demo-
cracia legítima se o procedimento para a tomada de decisão não estiver
regulamentado na lei. Nas palavras de Bobbio: “a democracia é o gover-
no das leis por excelência” (BOBBIO, 1996, p. 170-171).
Mas, certamente, essa perspectiva da democracia como o gover-
no das leis é incompleta. Em especial, no pós-Segunda Guerra, com a
incorporação dos princípios, como o da dignidade da pessoa humana
e dos direitos fundamentais, passa a exigir um novo conceito de de-
mocracia. E, uma nova perspectiva foi apresentada pelo Garantismo
Jurídico de Ferrajoli.

O garantismo como o modelo normativo de


direito: a legalidade lato e stricto sensu
Ferrajoli (2006), nos moldes da tradição juspositivista, propõe
um modelo normativo de direito de “estrita legalidade”, que atua em
três planos distintos: no epistemológico, como um modelo cognitivo ou
de poder mínimo; no político, como técnica que pretende minimizar a
violência e a maximizar a liberdade; e no jurídico, a vincular o poder do
Estado em homenagem à garantia dos direitos dos cidadãos.
Mas se afasta e supera o juspositivismo tradicional, pois enten-
de que o Estado de direito não é simplesmente um “Estado legal”, ou
seja, regulado por leis (até porque um Estado autoritário ou totalitário
pode ser – e, geralmente é – regido por leis), mas caracteriza-se por ser
um Estado em que, no plano formal, zela pelo princípio da legalidade
e, no plano substancial, requer a “funcionalização de todos os poderes
do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio
da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos
correspondentes” (FERRAJOLI, 2006, p. 790).
Estas duas fontes de legitimação representam dois modelos de
legalidade: um formal, de mera legalidade, que se limita a exigir que o
exercício do poder tenha como fonte a lei; e outro substancial, de es-
trita legalidade, que exige a observância de determinados conteúdos
substanciais da lei (FERRAJOLI, 2006). A lei “não constitui a completa
institucionalização do paradigma ideal do Estado de direito, no qual o
ordenamento jurídico impõe aos poderes públicos o escopo de salva-
guardar os direitos subjetivos” (IPPOLITO, 2011, p. 39).
A distinção entre estas duas fontes de legitimação, segundo
Ferrajoli, estão no cerne do modelo de um Estado Democrático de Direito.
Isto porque, as condições formais, que tratam sobre as “regras sobre
quem pode e sobre como se deve decidir” (FERRAJOLI, 2006, p. 791), es-
tabelecem o caráter democrático do Estado; já as condições substanciais
de validade, que tratam das “regras sobre o que se deve ou não se deve
Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

decidir” (FERRAJOLI, 2006, p. 791), são as que garantem os direitos fun-


damentais dos cidadãos, pois criam vedações e obrigações aos poderes
do Estado e, assim, estabelecem o caráter de direito do sistema jurídico.
O equívoco, que faz parte da tradição juspositivista, para Ferrajoli
(2006), reside em uma concepção simplificada da validade, que identifica
a validade com a existência jurídica, como produto de um ato normativo
conforme as normas que regulam sua produção. Tal concepção, como vis-
to, é adequada para Estados elementares, não para os modernos Estados
constitucionais de direito. Desta forma, a validade das normas está liga-
da na sua correspondência formal e material com normas superiores do
sistema jurídico, em especial com a Constituição, que regulam não só a
forma, mas também o conteúdo do exercício do poder normativo.
Isso porque, na formação dos modernos Estados constitucionais,
o direito positivo tem incorporado valores, como os direitos de igualda-
de, os direitos civis e políticos, e quase todas as garantias penais e pro-
cessuais de liberdade e certeza. Todos estes princípios foram incorpora-
dos pelas Constituições como princípios normativos fundamentais, que
têm como destinatários o legislador e demais agentes públicos. Assim, o
50
51
fundamento político (externo) do moderno Estado de direito tem como

Constitucionalismo Contemporâneo
efeito a nulidade dos atos inválidos, que são os contrários à garantia dos
direitos fundamentais.
Para Ferrajoli (2006), o antigo conflito entre direito positivo e
direito natural ou entre juspositivismo e jusnaturalismo, perdeu seu
significado filosófico-político, pois o direito natural foi colocado como
fundamento do moderno Estado de direito. Assim os seus princípios
políticos (ou externos) passaram a ser também jurídicos ou internos.
Uma norma jurídica pode ser analisada no que tange à sua validade em
relação às normas de categorias superiores e à sua eficácia em relação
às normas de categoria inferior.
Fiel à tradição juspositivista, Ferrajoli (2006) entende que a
teoria da separação entre o direito e a moral não perdeu a sua im-

e suas formas contemporâneas


portância, somente houve a constitucionalização de princípios éticos
políticos (de justiça) no direito positivo, transformando-o em uma es-
trutura complexa, que compartilha tanto a dimensão do “ser” como a
do “dever ser”. A primeira dimensão refere-se aos juízos de fato acerca
da eficácia das normas em relação às atividades de categoria inferior a
elas; a segunda refere-se aos juízos acerca da sua validade em relação
às normas superiores a elas.
Ferrajoli (2006) denomina de “vigência” a validade formal das
normas, o que se dá com a análise das condições do ato normativo, se
ele é perfeito ou não, ou seja, se seguiu pelo menos alguns dos atos ju-
rídicos, normas de procedimento e de competência, necessários para
sua criação; enquanto os juízos de validade material (ou simplesmente,
validade), consistem na total regularidade tanto com as normas formais
de produção legislativa, como com valores substanciais (princípios fun-
damentais), previstos pelas normas que são a elas superiores (em espe-
cial a Constituição). A ausência desta regularidade produz antinomia,
ou seja, um conflito que torna as normas inferiores incompatíveis, nulas
(FERRAJOLI, 2011a, 2011b, 2011c).

“vigência” - validade formal regularidade do ato normativo

“validade” - validade material refere-se aos significados ou conteúdos normativos

Ressalta Ferrajoli (2006) que este é o ponto crucial do problema


da legitimação interna, visto que nos Estados absolutistas existe uma
confusão entre vigência e validade, imperando como princípio para
produção legislativa o da “mera legalidade”; já nos Estados de direito,
impera o princípio da estrita legalidade. E é nesse ponto que se esta-
belece a crítica de Ferrajoli com as teorias juspositivistas, em especial
de Kelsen, Hart e Bobbio, pela a confusão dos conceitos de “vigência”,
“validade” e “eficácia”.
Fica evidente que o juízo de validade tem dupla face: referente
aos requisitos formais e referente aos juízos de valor acerca dos con-
teúdos substanciais. A legitimação interna é uma questão de teoria do
direito, que trata de proposições teóricas referentes a normas jurídicas
positivas; já a legitimação externa é uma questão de filosofia do direito,
trata-se de opções políticas prescritivas (FERRAJOLI, 2006).

Legitimação interna (validade – formal e Teoria do direito –normas jurídicas positivas


material)

Justificação externa (justiça) Filosofia do direito - opções políticas (prescritivas)

Essa perspectiva normativa e teórico-jurídica do Garantismo


Jurídico de Ferrajoli, ou seja, a sua concepção de justiça interna (ou
Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

legal), é a correspondência entre vigência e validade no ordenamento;


e de justiça externa à correspondência entre a validade e justiça, que
se trata da adesão do ordenamento ao conjunto de valores políticos
externos que influencia, diretamente, na concepção garantista da teo-
ria da democracia.

As duas faces da democracia


no constitucionalismo garantista:
formal e substancial
O constitucionalismo difere da democracia procedimental,
pois, como visto, esta valoriza os procedimentos democráticos, des-
de que possibilitem a participação popular, independentemente dos
resultados. Já o “Constitucionalismo é a teoria que, baseada numa
Constituição rígida, busca resultados que venham garantir a prote-
ção dos direitos fundamentais, mesmo que isso importe limitação
dos poderes do Executivo e do Legislativo” (KOZICKI; BARBOSA,
2008, p. 156).
52
53
É essa a concepção constitucionalista defendida por Ferrajoli. O

Constitucionalismo Contemporâneo
modelo normativo garantista parte da concepção de direito de Hebert
Hart (1994) de normas primárias e normas secundárias, mas entende
Ferrajoli (2006) que as normas secundárias são as normas de direito
público que disciplinam a atividade do Estado e todas as demais são
normas primárias.
Entre as normas primárias estão as garantias próprias da tradi-
ção liberal, garantias liberais ou negativas, pois consistem em deveres
públicos negativos de não fazer. Ao lado destes tradicionais direitos de
liberdade (negativos), as Constituições têm reconhecido outros direitos
fundamentais, como o direito à subsistência, à alimentação, ao trabalho,
à saúde, à instrução, à habitação, à informação, entre outros. São direi-
tos “sociais” ou “materiais”, que correspondem a obrigações (ou deve-

e suas formas contemporâneas


res de fazer)2. Propõe Ferrajoli (2006) que a noção de Estado de direito
deva ser alargada para incluir no ordenamento constitucional, além de
vedações, ou seja, prestações negativas para garantia dos direitos de li-
berdade, também prestações (obrigações) positivas de direitos sociais.
A democracia garantista tem intenção de descrever e orientar
normativamente o Estado constitucional de direito. Entende o Estado
não como um Estado legal, do ponto de vista formal, por isso, enten-
de como insuficiente a tese procedimental da lei como expressão da
maioria. Nisso, pretende definir o conceito de “soberania popular”
como garantia de todos os direitos fundamentais. Isso faz com que seja
reinterpretado o pacto social de modo não somente a garantir os direi-
tos negativos, de não agressão (direitos individuais de liberdade), mas
também os direitos positivos (sociais, de mútua solidariedade) (SEGUÍ,
2012). Como Salienta Portinaro (2008), o Garantismo de Ferrajoli tenta


2
Nesse ponto, é importante trazer, de forma sucinta, os ensinamentos de Sarlet e Sarmento
quanto aos direitos fundamentais de primeira e segunda dimensão. Para esses autores,
os direitos fundamentais de primeira dimensão são os próprios da tradição liberal, de
inspiração jusnaturalista, que podem ser chamados também de negativos, pois exigem
que o Estado não intervenha na esfera de liberdade do cidadão. Visam tutelar a liberdade
e a igualdade formal (perante a lei) (SARLET, 2003; SARMENTO, 2004). São chamadas de
garantias liberais ou negativas, pois consistem nos deveres públicos negativos de não fa-
zer. Já os direitos fundamentais de segunda dimensão surgem com o Estado de Bem-Estar
Social, fruto de pressões do proletariado (a classe social operária) e da sua luta contra a
opressão e exploração burguesa (SARMENTO, 2004). Caracterizam-se por serem positivos,
ou seja, por exigirem uma ação ativa do Estado para sua implementação, visam garantir
uma igualdade material. Como exemplo têm-se os direitos econômicos, sociais e culturais
(SARLET, 2003; SARMENTO, 2004).
compatibilizar uma sociedade liberal com a visão de uma solidariedade
republicana, com ênfase ao multiculturalismo, com fim de acomodar a
diversidade sociocultural.
Assim, alarga-se o próprio conceito de democracia em um Estado
constitucional de direito, ao incluir-se o sentido substancial e social a este
conceito: mais do que a vontade da maioria, é essencial garantir “o inte-
resse e necessidades vitais de todos” (FERRAJOLI, 2006, p. 797). A demo-
cracia formal ou política, baseada no princípio da maioria, deve estar em
consonância com a democracia substancial, que são as efetivas garantias,
sejam liberais ou sociais. Desta forma, Ferrajoli (2006, p. 798) entende
como democracia substancial ou social como o Estado de direito com efe-
tivas garantias, tanto liberais como sociais; e como democracia formal ou
política a que se dá por meio de um Estado representativo, e esse princí-
pio representativo (da maioria) é a fonte da legalidade. Isso porque

Nenhuma maioria, se tem dito, pode decidir a condenação de um


inocente ou a privação ou a privação dos direitos fundamentais
de um sujeito ou de um grupo minoritário; nem mesmo pode não
decidir pelas medidas necessárias para que a um cidadão sejam
asseguradas a subsistência e a sobrevivência. O princípio da de-
mocracia política, relativo a quem decide, é, em suma, subordi-
Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

nado aos princípios da democracia social relativos ao que não é


lícito decidir e ao que não é lícito não decidir.

Em Principio Iuris, Ferrajoli (2006) defende uma proposta nor-


mativa com a intenção de estendê-la à sociedade internacional globa-
lizada. A fundamentalidade dos direitos vitais das pessoas diante dos
Estados equivale a subordinação jurídica do Estado às normas do di-
reito internacional e os tornam sujeitos a penalidades na violação de
tais direitos. O problema é o da não efetividade do direito internacional,
pois muitas vezes não conseguem tutelar os direitos das pessoas frente
aos seus Estados. Trata-se de uma das características mais frustrantes
do direito internacional.
Para Ferrajoli, a democracia garantista se funda em uma constru-
ção teórico-liberal de garantia dos direitos e da separação dos pode-
res, que se refere aos limites e vínculos que as Constituições impõem
aos poderes e tem duas faces: uma dimensão substancial da democra-
cia constitucional, sustentada pela instituição de garantias dos direitos
fundamentais, formada por instituições como o Poder Judiciário, bem
54
55
3
como pelas funções administrativas de garantias ; e por uma dimen-

Constitucionalismo Contemporâneo
são formal composta por instituições de governo (funções próprias do
Legislativo e do Executivo) que visam aos direitos gerais e se legitimam
na representação política (SEGUÍ, 2012).
Ferrajoli, tanto no “Direito e Razão” (2006), como no “Principia
Iuris” (2011a, 2011b, 2011c), defende uma “esfera de indecidibilidade”
como categoria estrutural do sistema constitucional: no sentido negativo
(sobre o que a maioria não pode decidir) e no sentido positivo (o que é
obrigatório decidir e resolver), que afeta os poderes públicos, privados e o
mercado (ATIENZA, 2013). Como assevera Gómez (2012), a complexida-
de estrutural que o garantismo propõe ao Estado constitucional determi-
na não só quem e como se manda, mas também o que pode se mandar, isto
visto a incorporação nas Constituições rígidas de normas substanciais (di-

e suas formas contemporâneas


reitos fundamentais), que condicionam o conteúdo da criação legislativa.
Propõe assim um modelo garantista de Estado em que, ao mesmo
tempo que é um Estado liberal mínimo, ou seja, na máxima efetividade
das garantias ou vedações negativas (direitos de 1ª geração, liberais), é
também Estado social máximo, visto a maximização dos direitos subs-
tanciais do cidadão e das obrigações públicas de satisfazê-los (direitos
de 2ª geração, sociais) (FERRAJOLI, 2006). Diante dessa estrutura, tan-
to formal como substancial do Estado democrático de direito, Ferrajoli
chama a atenção para sua estrutural ilegitimidade jurídica, frente às
promessas formuladas nos seus níveis normativos superiores, que não
são mantidas em seus níveis inferiores. Os direitos e interesses “não são
nunca realizados e garantidos inteiramente. É uma aporia insuprimí-
vel do Estado de direito, desconhecida do Estado absoluto, onde não há
promessas ou deveres que vinculam juridicamente os poderes públicos,
e onde validade e vigor coincidem” (FERRAJOLI, 2006, p. 799-800).
Com isso, houve a “transformação do súdito em cidadão”, “um su-
jeito titular de direito não exclusivamente ‘naturais’, mas ‘constitucionais’
em relação ao Estado” (FERRAJOLI, 2006, p. 793). Acontece que tais pres-
tações positivas por parte do Estado não foram acompanhadas pelas ga-
rantias sociais ou positivas, ou seja, de mecanismos de defesa que possibi-
litem serem ajuizadas. Isso devido a dificuldades objetivas para a sua im-
plementação como: o custo das garantias sociais, que exigem do Estado


3
No ordenamento jurídico brasileiro têm-se tais funções administrativas de garantias no
Ministério Público (art. 129 da CF) e na Defensoria Pública (art. 134 da CF).
prestações que têm custo econômico4. E essa violação “dá lugar a lacunas,
isto é, à falta de normas: e, se uma lacuna pode ser apenas colmatada por
meio de uma atividade normativa nem sempre facilmente coercitível ou
sub-rogável” (FERRAJOLI, 2006, p. 797). Nesse ponto, a Constituição da
República do Brasil prevê ambas as garantias (liberais e sociais) e tantas
outras mais. A dificuldade fica na questão da efetividade destas garantias,
como aponta José Afonso da Silva (1997, p. 8):

A função garantia não só foi preservada como até ampliada na


Constituição, não como mera garantia do existente ou como
simples garantia das liberdades negativas ou liberdades-limite.
Assumiu ela a característica de constituição-dirigente, enquanto
define fins e programa de ação futura, menos no sentido socialis-
ta do que no de uma orientação social, democrática, imperfeita,
reconheça-se. Por isso, não raro, foi minuciosa, e, no seu compro-
misso com a garantia das conquistas liberais e com um plano de
evolução política de conteúdo social, nem sempre mantém uma
linha de coerência doutrinária firme. Abre-se, porém, para trans-
formações futuras, tanto seja cumprida. E aí está o drama de toda
constituição dinâmica: ser cumprida.

Mas, ressalta-se, que previsão constitucional dos direitos sociais


Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

faz com que a ausência de normas infraconstitucionais de concretiza-


ção não possa “servir como justificativa para afastar a aplicabilidade
imediata dos direitos fundamentais” (GOME; JABONISKI, 2016, p. 126).
O Estado de direito, em um sentido substancial e social de ‘demo-
cracia’, não é somente a vontade da maioria, mas também o interesse e
a tutela das necessidades vitais de todos. E, nesse contexto, o garantis-
mo constitui-se em “técnica de limitação e disciplina dos poderes públi-
cos, voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir”
(FERRAJOLI, 2006, p. 797). Em uma conotação substancial da democracia,

As garantias, sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os di-


reitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado,
os direitos dos mais fracos, respectivamente aos interesses dos
mais fortes, a tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas


4
Como exemplo dessa problemática tem-se da PEC 241/55 (números da Câmara dos
deputados e do Senado Federal, respectivamente) que limitará, substancialmente, o
aporte de recursos públicos para áreas sociais como as de saúde e educação. O que,
certamente, terá como reflexo que direitos sociais fundamentais de milhões de pessoas
não serão efetivados pelo Estado.
56
57
em relação à maioria integralizada, as razões de baixo relativa-

Constitucionalismo Contemporâneo
mente às razões do alto.

O Estado garantista é um Estado liberal mínimo na esfera penal e


ao mesmo tempo um Estado social máximo “graças à maximização das
expectativas materiais dos cidadão se há correlativa expansão das obri-
gações públicas de satisfazê-las.” (FERRAJOLI, 2006, p. 799). Como res-
saltam Cademartori e Strapazzon 2012, p. 225):

A legitimidade da democracia constitucional brasileira atual de-


corre não só dos procedimentos eleitorais competitivos e inclusi-
vos e das suas regras eletivas. Advém, sobretudo, da responsivida-
de às expectativas normativas e representativas emanadas de um
ordenamento constitucional complexo e compromissório. Trata-

e suas formas contemporâneas


-se de um importante desdobramento da democracia constitucio-
nal brasileira. A atuação judicial que concretiza expectativas nor-
mativas fundamentais (garantias primárias), quando provocadas
por institutos jurídicos garantidores (garantias secundárias)
criados pelo sistema constitucional positivo, e desde que não ins-
titua soluções retrocessivas em matéria de direitos humanos, não
afronta a legitimidade do Estado Constitucional Democrático,
nem a representatividade do Poder Legislativo; bem ao contrário,
decorre dela e a fortalece na medida em que assegura responsivi-
dade a todo o sistema republicano.

O progresso da democracia substancial advém da expansão dos di-


reitos e das suas garantias e “do alargamento do Estado de direito ao maior
número de âmbitos da vida e de esfera de poder, onde também sejam
tutelados e satisfeitos os direitos fundamentais da pessoa.” (FERRAJOLI,
2006, p. 860). Por isso, entende Ferrajoli que qualquer reforma democrá-
tica deve, necessariamente, introduzir limites e “obrigações legais aos po-
derios privados, de outro modo absolutos, e da instituição de uma tutela
judiciária dos direitos fundamentais por eles defendidos.” (FERRAJOLI,
2006, p. 860). Isso requer maior articulação do Estado de direito, pois
tanto os poderes privados como os públicos estão sujeitos

[...] ao ônus da justificação e da legitimação, tanto formal quanto


substancial. E ainda a sua minimização equivale à maximização
da liberdade, e consequentemente da igualdade e do valor das
pessoas, primado axiológico sobre o qual se funda o ponto de vis-
ta externo. (FERRAJOLI, 2006, p. 861)
A legitimação externa (política) do Estado está na sua função de
tutela dos direitos fundamentais do cidadão, a começar pelo direito à
vida. A vida e a segurança dos cidadãos são colocadas em perigo pela
violência dos poderes selvagens dos particulares, e também por desvios
ou ilegalidades dos poderes públicos (FERRAJOLI, 2006).
Portanto, “a garantia política da ‘fidelidade’ dos poderes públi-
cos consiste no respeito por parte deste à legalidade constitucional e,
antes de tudo, aos diretos fundamentais” (FERRAJOLI, 2006, p. 868).
Mas, é necessária também a adoção do que Ferrajoli chama de “ponto
de vista externo”, que é o seu caráter heteropoiético, visto poder não
como um fim em si mesmo (autopoiético5), mas sim como um instru-
mento para a satisfação dos direitos fundamentais. Esta garantia so-
cial é uma condição de efetividade de todo o ordenamento. E trata-se
de uma condição de igualdade, bem como de solidariedade. Equivale,
“pelo seu caráter universal, igualitário e indivisível, ao sentimento dos
direitos fundamentais de outros, e por esta razão ao reconhecimento
do outro como pessoa, dotada do mesmo valor associado à própria
pessoa” (FERRAJOLI, 2006, p. 869).
Diante disso, para Ferrajoli (2006, p. 871), “A ‘democracia’ é o re-
Alexandre Brandão Rodrigues & Daniélle Dornelles

gime político que consente o desenvolvimento pacífico dos conflitos, e


por meio destes as transformações sociais e institucionais”. A democra-
cia garante a luta pelos direitos, por sua vez, a democracia “oferece às
outras os espaços e os instrumentos jurídicos, que são essencialmente
dos direitos de liberdade; as outras asseguram aos direitos e à demo-
cracia os instrumentos sociais de efetiva tutela e alimentam-lhe o de-
senvolvimento e a realização” (FERRAJOLI, 2006, p. 871). A intolerância
a todas as formas de conflito e a não efetividade dos direitos fundamen-
tais são características dos regimes totalitários.

Isto quer dizer que a democracia é fruto de uma constante tensão


entre poder político-representativo, que se identifica com o Estado,
e, poder social-direto, que se identifica com o exercício da liber-
dade em função de permanente alteridade e oposição. Entendidas


5
Niklas Luhmam, com a sua teoria dos sistemas, adotou a perspectiva autopoiética do
Direito (BARRETTO, 2009, p. 550). O termo “autopoiético” baseia-se nas definições dos
biológicos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade
dos seres vivos de produzirem a si próprios (FERRAJOLI, 2006).
58
59
neste sentido, ‘democracia representativa’ e ‘democracia direta’

Constitucionalismo Contemporâneo
não constituem dois modelos alternativos de democracia, mas são,
ao invés, uma o sustento da outra. (FERRAJOLI, 2006, p. 872)

Isso significa que a democracia é, por definição, imperfeita, mas,


deve ser buscada, principalmente pelos governos e pelas sociedades em
Estados democráticos de direito.

Considerações finais
Partindo de uma perspectiva puramente democrático-procedi-
mentalista, tem-se o regime democrático como aquele que pretende
possibilitar, de forma igualitária e representativa, a participação popu-

e suas formas contemporâneas


lar, sem, contudo, se preocupar com o resultado das deliberações. Nessa
perspectiva há uma diferença entre democracia e Estado de direito, vis-
to que a democracia visa regular a participação na tomada de decisões
e Estado de direito pressupõe que se estabeleçam mecanismos para o
controle do poder dentro do Estado. Certamente, nesta perspectiva pro-
cedimental, a democracia está ligada à ideia de legalidade lato sensu,
ou seja, a que se refere à correspondência do fato ao que está previsto
legalmente.
Acontece que, após a Segunda Guerra, essa perspectiva proce-
dimentalista (positivista) mudou, e valores como dignidade da pessoa
humana e direitos fundamentais foram positivados no direito interna-
cional e nas Constituições dos Estados na forma de princípios. E, assim,
não só a forma (procedimento), mas também os conteúdos começaram
a ter importância para a democracia. Desta forma, para o constituciona-
lismo não importa somente quem vai decidir, mas também o que se vai
decidir.
Essa perspectiva constitucionalista está presente no conceito de
democracia do Garantismo Jurídico de Luigi Ferrajoli. Primeiramente,
em um plano teórico jurídico, Ferrajoli desenvolve uma concepção de
legalidade em que a diferencia em dois planos: lato sensu e stricto sensu.
A legalidade vista de forma lata é “mera legalidade”, ou seja, a legalidade
formal. Já a vista de forma stricta, trata-se da legalidade substancial, que
se atém não só à letra da lei, mas também aos valores superiores que
foram positivados nas Constituições.
A concepção de democracia para o constitucionalismo garantista
visa garantir os direitos fundamentais, tanto os direitos negativos (de
liberdade), como os direitos positivos (de solidariedade, os direitos so-
ciais). Portanto, o constitucionalismo garantista tenta compatibilizar
uma sociedade liberal com a visão de uma solidariedade republicana. A
democracia é vista sob dois prismas: um, formal ou político, baseado no
princípio da maioria; e outro, substancial, que são as efetivas garantias,
liberais e sociais. Desta forma, os valores fundamentais estão incorpo-
rados no conceito de democracia substancial.
Com essa perspectiva de democracia, o constitucionalismo garan-
tista pretende garantir a limitação do poder em um Estado democrático
de direito e somente justificá-lo quando tiver como objetivo a defesa
dos direitos humanos e fundamentais.

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1997.

62
A MEDIAÇÃO SOB A ÓTICA DA
ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO EM
AMARTYA SEN

Charlise P. Colet Gimenez


Doutora em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul
– UNISC. Professora dos Cursos de Graduação e Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus Santo Ângelo/
RS. Coordenadora do Curso de Graduação em Direito da
URI, campus Santo Ângelo/RS. Coordenadora do Projeto de
Pesquisa “Gritos pela alteridade e sensibilidade do Direito:
o estudo da mediação como resposta ecológica ao conflito a
partir de Luis Alberto Warat”, vinculado ao PIIC/URI.
(charliseg@santoangelo.uri.br)

Giovana Krüger
Acadêmica do 3º semestre do Curso de Graduação em Direito
da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões, campus Santo Ângelo. Bolsista PIIC/URI do Projeto
de Pesquisa “Gritos pela alteridade e sensibilidade do Direito:
o estudo da mediação como resposta ecológica ao conflito a
partir de Luis Alberto Warat”.
(giovanapkruger@hotmail.com)

Considerações iniciais
A correlação entre Direito e Economia forma a chamada análise
econômica do Direito, a qual tem o objetivo de tornar os mercados
mais eficientes e melhorar a qualidade de vida da população. Dentro
do objeto de estudo da análise econômica do Direito está o paradigma
das necessidades ilimitadas versus recursos escassos. Este pode ser
ilustrado pela Crise do Judiciário, no qual as demandas processuais
são maiores do que a oferta de serviços judiciais, o que afasta o cida-
dão do alcance à justiça.
Em conformidade com Amartya Sen, o desenvolvimento econô-
mico está condicionado às liberdades dos indivíduos à justiça e ao bem-
-estar social. Entretanto, existem limitações a estas liberdades, como
a anteriormente citada Crise do Poder Judiciário. Dentre as limitações
existentes também é válido discorrer sobre a dogmática jurídica e a rea-
lidade social, uma vez que a primeira não é capaz de tutelar todas as
situações existentes, e muitas vezes não consegue sequer alcançá-las, o
que gera uma situação de marginalidade e exclusão, privando aqueles
que não são amparados pelas instituições e normas estatais de verem a
realização de suas liberdades.
Diante deste cenário, é necessária a busca por métodos que com-
plementem a prestação jurisdicional e garantam os fatores primordiais ao
desenvolvimento econômico, na visão de Amartya Sen, como a mediação.
Desse modo, o presente estudo tem como objetivo, a partir do
método de abordagem hipotético-dedutivo e método de procedimento
bibliográfico, apresentar a relação existente entre a análise econômi-
ca do Direito feita por Amartya Sen e a mediação, a qual se caracteriza
como resposta cidadã à crise do Poder Judiciário e como potencial me-
canismo de desenvolvimento econômico.

Inter-relação entre direito e economia:


a análise econômica do direito e a crise do
Charlise P. Colet Gimenez & Giovana Krüger

poder judiciário como reflexo do paradigma


necessidades ilimitadas versus recursos
escassos
A correlação entre Direito e Economia teve início nos Estados
Unidos da América. Uma nova disciplina, inclusa à grade curricular do
curso de Direito em algumas universidades, tinha por objetivo realizar
o estudo interdisciplinar do direito combinado às ciências econômicas,
verificando a convergência de seus fundamentos. Esta era chamada
Análise Econômica do Direito.

A nova corrente da teoria jurídica que combina as ciências eco-


nômica e jurídica, tendo como objetivo o estudo interdisciplinar
do direito denomina-se Análise Econômica do Direito (AED), ou
“law and economics” para os norte-americanos. (AGUIAR, 2013)

64
65
Direito e Economia diferem, em sua essência, eis que a preocu-

Constitucionalismo Contemporâneo
pação do Direito reside na conformidade das questões com a lei, en-
quanto que a Economia as analisa, ambicionando a eficiência e a eficá-
cia das normas. Por essa razão, Salama (2008, p. 49) sustenta que “na
sua essência o Direito é verbal, hermenêutico, almeja a justiça e analisa
questões sob o enfoque da legalidade. A Economia, por sua vez, embora
também verbal, é primordialmente matemática, almeja ser científica e
examina questões tendo em vista o custo”.
Mesmo havendo uma clara distinção no seu objeto, é inegável que
o Direito e a Economia trabalham juntos e coincidem em sua essência.
O Direito tem o papel de organizar a ordem social por meio das normas
jurídicas, regulando as relações humanas que existem na sociedade.
Dentro da ordem social está inserida a Economia, uma vez que

e suas formas contemporâneas


a sociedade é composta de indivíduos com vontades/necessidades
ilimitadas. Por serem as vontades humanas ilimitadas e os bens e re-
cursos usados para saciar essas vontades limitados, cabe à Economia
o papel de ditar como devem ser utilizados esses bens de maneira cor-
reta e racional.
Portanto, as normas jurídicas labutam com o objetivo de regu-
lar as atividades econômicas para tornar os mercados mais eficientes e
buscar melhorias na qualidade de vida da população. A principal ques-
tão à qual se dedica a Economia diz respeito à alocação de recursos,
uma vez que as necessidades humanas ilimitadas superam as quantida-
des de bens disponíveis para supri-las.
A situação descrita anteriormente pode ser ilustrada no âmbito
jurídico pela chamada Crise do Judiciário, onde a demanda processual
é maior do que a oferta de serviços judiciais, fenômeno denominado
“explosão de litigiosidade”.
Este descompasso existente entre oferta e procura de serviços
judiciais resulta em lentidão e pouca eficiência na prestação destes ser-
viços, o que leva à descrença por parte da sociedade na realização juris-
dicional e efetivação da justiça.

O que se tem assistido é o somatório de insatisfações e decepções


sentido pelos indivíduos, o que acaba por abalar e desgastar a
credibilidade de que o nosso sistema ainda dispõe. Este paulatino
descrédito vem firmando raízes a partir e conforme se eviden-
ciam as debilidades e impossibilidades de o mesmo atender a tão
complexa missão. (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 31)

Vive-se em um Estado Social, portanto este deve ser organizador


da Política e da Economia, responsabilizando-se pela promoção das ne-
cessidades básicas da população. Na Constituição Federal brasileira de
1988, encontram-se os princípios básicos da atuação do Estado na eco-
nomia, à sujeição do sistema econômico e, na forma da lei, as funções de
incentivo, fiscalização e planejamento. O Estado influencia fortemente
a Economia no que se refere à geração de renda, produção, empregos,
funcionalismo público, programas sociais, obras de infraestrutura, e, es-
sencialmente, nos impostos.
Diante disto, é dever do Estado a promoção de acesso à justiça
e pacificação social. Entretanto, frente à atual insuficiência do Poder
Judiciário, a reivindicação dos direitos do cidadão não é atendida de
forma plena, portanto não é garantida a ele a liberdade de acesso à jus-
tiça, o que gera a necessidade de buscá-la por meios complementares
de realização jurisdicional, como a mediação, a qual atua na realização
da justiça social.
Para Sales e Moreira (2008, p. 361),

[...] o Judiciário também não cumpre seu papel, pois o acesso à


justiça é limitado à pequena parcela da população, sendo várias
Charlise P. Colet Gimenez & Giovana Krüger

as razões, que vão do desconhecimento dos próprios direitos


pela população carente; passando pelo enfrentamento da pesada
burocracia (custos, inclusive emocionais); além do longo tempo
para a resolução dos conflitos; dificuldade para contratar advoga-
dos e escassez de defensores públicos; e sobrecarga do Judiciário
(número exorbitante de ações), o que explica o sentimento disse-
minado na população de que ela somente funciona para os ricos.

A análise das dificuldades do sistema de justiça contemporâneo e


a garantia de uma ordem jurídica justa requerem o estímulo e a imple-
mentação de práticas pautadas no desenvolvimento de uma sociedade
mais harmônica e cooperativa a partir da adoção de métodos comple-
mentares de tratamento de conflitos.

66
67
O mito da dogmática jurídica e

Constitucionalismo Contemporâneo
a realidade social de pasárgada:
uma comunidade à margem do direito
Percebe-se que a crise do Poder Judiciário consiste em uma li-
mitação constituída pelo paradigma das necessidades ilimitadas versus
recursos escassos, uma vez que este resulta em morosidade e pouca efe-
tividade no acesso à justiça.
Pasárgada, como se confirmará a seguir, se vê ainda mais dis-
tante da efetivação de seus direitos básicos, pois sequer possui aces-
so aos meios de ordenação e controle social. Warat traz em sua obra
“A Rua Grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e
Cartografia”, uma metáfora acerca da dogmática jurídica, descrevendo-

e suas formas contemporâneas


-a como uma biblioteca infinita, a qual contém em seus livros todas as
situações imagináveis, não sendo possível que haja qualquer situação
que não esteja prevista nas normas, sendo estas absolutamente su-
ficientes para realizar as práticas jurídicas e sociais (WARAT, 2010).
Nesse sentido, afirma o autor que “livros arquivados em infinitos
quartos [...], que tem a propriedade de conter todas as combinações
de palavras sem exceção, infinitas combinações, de modo que não se
possa imaginar uma combinação que a biblioteca não tenha previsto”
(WARAT, 2010, p. 5).
O autor opõe crítica ao que chama de “A cultura do litígio”, na qual
a única realidade que importa é a realidade processual, contida nos au-
tos do processo, nas infinitas páginas dos livros da biblioteca de Babel.

Em um primeiro momento fica clara em termos organizacionais,


a dificuldade do Poder Judiciário brasileiro, o qual foi estrutura-
do para atuar segundo os códigos, em responder às demandas
sociais atuais, visto que os prazos e ritos são incompatíveis com
a multiplicidade de lógicas, procedimentos decisórios, ritmos e
horizontes temporais de hoje. (SPENGLER, 2014, p. 17)

A oposição de Warat à “Cultura do Litígio” e o mito da dogmática


jurídica podem ser percebidos na análise da situação jurídico-social de
Pasárgada, uma comunidade que vive na ilegalidade coletiva à margem
do direito e da tutela dos mecanismos de ordenação e controle estatal.
Deriva da moradia ilegal dos residentes desta comunidade a ilegalidade
de Pasárgada, e por este motivo eles se veem privados de recorrer aos
meios de garantia de ordenação e controle social estatais.
Boaventura de Sousa Santos descreveu a realidade desta comu-
nidade em “Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada”, e uti-
lizou como instrumentos estatais de pacificação de conflitos, a polícia
e o judiciário.
Quanto à primeira, uma vez que os moradores da favela se encon-
travam em situação ilegal e que a polícia já havia realizado reiteradas
tentativas de expulsão antes de as terras tornarem-se de domínio pú-
blico, recorrer a este mecanismo parecia inviável. “Chamar a polícia au-
mentaria a visibilidade de Pasárgada como comunidade ilegal e poderia
eventualmente criar pretextos para remoção” (SANTOS, 1993).
A polícia também realizava operações no local, com vistas a en-
contrar “maus elementos”, entretanto acabava, na maioria das vezes,
por prender pessoas inocentes, as quais somente eram liberadas atra-
vés de suborno, o que amedrontava a população quanto à sua atuação
(SANTOS, 1993).
Os tribunais, da mesma forma, eram muito distantes da realidade
de Pasárgada, uma vez que, além da situação antijurídica da comunida-
de, a pobreza dos moradores fazia com que nenhum advogado tivesse
interesse em suas causas, visto não possuírem meios de pagamento, se-
Charlise P. Colet Gimenez & Giovana Krüger

quer algum patrimônio (SANTOS, 1993, p. 7).

Segundo a descrição de um dos moradores, “nós estávamos


brigando por barracos e pedaços de terra que, do ponto de vis-
ta dos advogados, não valiam nada. Além disso, quando você
contrata um advogado, você é duma classe mais baixa do que
a dele e ele fica muito a fim de fazer acordos com outros advo-
gados e com o juiz, que podem prejudicar os seus interesses.
Então ele vem a você com aquele jeito de falar de advogado e
tenta convencer que foi o melhor que ele podia fazer por você,
e que, afinal de contas, o acordo não é tão mal assim. E você
não pode fazer nada”.

Desse modo, “tudo se passa como se a legalidade da posse da


terra se repercutisse sobre todas as outras relações sociais, mesmo
sobre aquelas que nada têm a ver com a terra ou com a habitação”
(SANTOS, 1993, p. 8).
68
69
Pode-se observar que o garantismo da dogmática jurídica se des-

Constitucionalismo Contemporâneo
faz diante da realidade jurídica e social de Pasárgada, a qual o direito
inesgotável de Babel não é capaz de coordenar.

Desenvolvimento como liberdade:


uma análise sobre a crise do poder judiciário e
o mito da dogmática jurídica segundo a obra de
Amartya Sen
Amartya Sen percebe o desenvolvimento como um processo de
expansão de liberdades reais desfrutadas pela sociedade. O autor con-
sidera que mecanismos como o PIB, a renda individual, o avanço tecno-

e suas formas contemporâneas


lógico entre outros são meios para expandir as liberdades, e, portanto,
não encontram seu fim e si mesmos, uma vez que o desenvolvimento
deve estar ligado à maior qualidade de vida da população e à expansão
de suas liberdades. Entretanto, esta expansão depende ainda de fatores
relacionados às disposições sociais e econômicas, como “serviços de
educação e saúde, e aos direitos civis, como a liberdade política” (SEN
apud MARQUES, 2010).
O método de Amartya Sen destaca-se dos demais por não avaliar
o desenvolvimento social apenas pelos mecanismos tradicionais como
PIB, renda per capita, entre outros, mas por considerar estes recursos
como instrumentos para se chegar ao verdadeiro índice capaz de com-
provar o desenvolvimento, e também aos meios para realizá-lo: a ex-
pansão das liberdades e o bem-estar social.

O enfoque nas liberdades humanas contrasta com visões mais


restritas de desenvolvimento, como as que identificam desenvol-
vimento com crescimento do Produto Nacional Bruto, aumento
de renda das pessoas, industrialização, avanço tecnológico ou
modernização social. O crescimento do PNB ou das liberdades in-
dividuais obviamente pode ser muito importante como um meio
de expandir as liberdades desfrutadas pelos membros da socie-
dade. Mas as liberdades dependem também de outros determi-
nantes, como as disposições sociais e econômicas e os direitos
civis. (SEN, 2000, p. 17)

Para Sen, a riqueza é um bem que resulta em proveito de algo


que realmente se almeja. A riqueza não é um fim em si mesma, bus-
cá-la tem como objetivo auferir melhor qualidade de vida. Segundo
o autor, “a utilidade da riqueza está nas coisas que ela nos permite
fazer – as liberdades substantivas que ela nos ajuda a obter” (SEN,
2000, p. 28).
Amartya Sen preocupa-se com os fins almejados com o desen-
volvimento, medindo-o por seus frutos: aumento da qualidade de vida
e outras liberdades. Para tanto, o autor percebe que existem limita-
ções a estes fins, tais como a pobreza e a tirania, a carência de opor-
tunidades econômicas e a destituição social sistemática, a negligência
dos serviços públicos e a intolerância ou interferência excessiva de
Estados repressivos (SEN, 2000, p. 18). Por essa razão, “o desenvolvi-
mento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam
as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercerem pondera-
damente sua condição de agente. A eliminação de privações de liber-
dades substanciais, argumenta-se aqui, é constitutiva do desenvolvi-
mento” (SEN, 2000, p. 10).
Sen percebe que a ausência de liberdades se relaciona diretamen-
te com as suas limitações, as quais precisam ser removidas para darem
lugar ao desenvolvimento. A ideia de Amartya Sen sobre o desenvolvi-
mento econômico alia-se à análise econômica do Direito, na medida em
que o desenvolvimento referido pelo autor é medido por um fator de
justiça social, de evolução das liberdades e do bem-estar social.
Charlise P. Colet Gimenez & Giovana Krüger

A análise econômica do Direito atua de forma a orientar a ordem


social, regulando as relações humanas existentes na sociedade e adminis-
trando soluções para o paradigma das necessidades infinitas versus re-
cursos escassos. O autor, em seu livro “Desenvolvimento como Liberdade”,
preconiza que, para haver evolução econômica, é preciso proporcionar o
bem-estar aos indivíduos e, dessa forma, percebe-se uma relação entre
Economia e Direito onde um não pode prosperar sem o outro.
Observa-se que a crise do Poder Judiciário e a realidade jurídico
social de Pasárgada consistem, cada uma à sua maneira, em limitações
ao desenvolvimento econômico e social, segundo a visão de Amartya
Sen. Enquanto a primeira se constitui pela insuficiência na prestação de
serviços resultantes do paradigma das necessidades ilimitadas versus
recursos escassos, a segunda, por sua vez, sequer possui acesso aos ór-
gãos estatais de controle e ordenamento social e, portanto, se encontra
ainda mais distante da efetivação de seus direitos básicos.
70
71
Novas práticas de justiça devem ser realizadas a fim de retirar

Constitucionalismo Contemporâneo
das pessoas a sensação de alienação social operada pelos poderes do
Estado e, em especial, por seus representantes. Nessa ótica, verifica-se
que a revolução democrática da justiça deve superar primeiramente o
distanciamento da justiça das pessoas, estabelecendo um elo sólido e
permanente, atendendo à sua função social de garantir e concretizar
a cidadania de forma que cada um seja mais consciente de seu papel
na sociedade, bem como participe direta e efetivamente do desenvol-
vimento social, político, econômico e cultural do seu espaço, pois sem
direitos de cidadania efetivos, a democracia traduz-se em uma ditadura
mal disfarçada. O exercício concreto da cidadania requer o empodera-
mento das pessoas, para que sejam capazes de lidar com o seu próprio
conflito e de gerir sua própria vida, razão pela qual o estudo dos meios

e suas formas contemporâneas


complementares de tratamento de conflitos realiza esse objetivo. “O di-
reito somente pode ser emancipatório diante de uma revolução demo-
crática da justiça, a qual se fundamenta na valorização da diversidade
jurídica do mundo como mola propulsora do pensamento jurídico críti-
co” (SANTOS, 2011, p. 7).
Diante das situações anteriormente descritas, é preciso investir
em meios complementares de resolução de conflitos, para que atuem
em complemento à atividade judiciária. Os métodos autocompositivos
de resolução de conflitos também podem ser aplicados nas comunida-
des que se encontram à mercê do direito estatal, a fim de efetivarem a
realização da justiça através de mecanismos informais de resolução de
conflitos, que garantam a todos os cidadãos a pacificação social.

A mediação como realização da justiça social


e efetivação das liberdades: um mecanismo
capaz de realizar o desenvolvimento econômico
descrito por Amartya Sen
A mediação se apresenta como resposta cidadã à crise do Poder
Judiciário e como meio informal alternativo de controle social e pacifi-
cação dos conflitos, dado que atua como potencial redutora das desi-
gualdades existentes no paradigma “necessidades ilimitadas versus re-
cursos escassos”, atuando como complemento à realização jurisdicional
e promovendo a justiça social.
A técnica autocompositiva evita o processo de judicialização ex-
cessiva, pois preconiza que grande parte dos conflitos podem ser re-
solvidos fora do Judiciário, por meio da responsabilização das partes e
cooperação mútua, através do diálogo em prol da solução.
Ademais, realiza a justiça social, uma vez que é um método au-
tocompositivo que surge como instrumento alternativo na busca pela
justiça e que atua como complemento à prestação jurisdicional, pois
visa torná-la um mecanismo secundário, priorizando a autonomia e
alteridade das partes, tornando-as protagonistas no processo de re-
solução de suas contendas e incentivando o exercício da cidadania e
do diálogo.
A mediação pode atuar como um mecanismo paraestatal de reso-
lução das contentas, aplicando-se a casos como o de Pasárgada, tornan-
do a efetivação da justiça independente do Poder Judiciário, da polícia,
ou de outros instrumentos de manutenção da ordem e resolução de
conflitos, através do empoderamento da comunidade que poderá auto-
gerir suas contendas. Como exemplo, o estado brasileiro do Ceará criou
núcleos comunitários de mediação, onde os próprios moradores foram
capacitados para atuar nos conflitos, promovendo o diálogo e a pacifi-
cação da comunidade (CARNEIRO, 2012).
A mediação de conflitos se mostra como mecanismo capaz de
proporcionar a efetivação dos direitos humanos e promover a pacifi-
Charlise P. Colet Gimenez & Giovana Krüger

cação social, posto que realiza, através da autocomposição, a satisfação


total das partes, as quais buscam resolver o conflito em sua essência,
considerando seus aspectos secundários e individuais, os quais pode-
riam passar despercebidos pelo Judiciário, uma vez que o juiz analisa o
processo e prolata a sentença com base somente nos autos do processo
e no ordenamento jurídico.
A decisão unilateralmente imposta se mostra, na grande maioria
dos casos, ineficaz, pois não elimina o conflito em sua raiz, deixando
espaço para um novo conflito em potencial, pois alimenta o paradigma
ganhador/perdedor, enquanto que na mediação as partes constroem a
solução de seu conflito de forma consensual, fazendo com que ambas
saiam satisfeitas em um paradigma ganhador/ganhador.
Nesse sentido, é possível afirmar que:

72
73
[...] a mediação deve ser compreendida como ética da alteridade,

Constitucionalismo Contemporâneo
a qual reivindica a recuperação do respeito e o reconhecimento
da integridade e da totalidade de todos os espaços de privacidade
do outro, ou seja, um respeito absoluto pelo espaço do outro, e
uma ética que rechaça o mínimo de movimento invasor em rela-
ção ao outro. (COLET; SPENGLER, 2016, p. 122)

Assim, a mediação encerra com o conflito em suas mais variadas


dimensões, o qual não culminará em novas contendas entre as partes,
alicerce da pacificação social. Cabe ressaltar que a mediação também
proporciona o acesso à justiça na comunidade – através de centros de
mediação comunitária – aproximando a justiça de todos os cidadãos e
permitindo que este exerça a cidadania pelo alcance aos seus direitos.

e suas formas contemporâneas


A mediação é a melhor fórmula até agora encontrada para supe-
rar o imaginário do normativismo jurídico, esfumaçando a busca
pela segurança, previsibilidade e certezas jurídicas para cumprir
com objetivos inerentes à autonomia, à cidadania, à democracia
e aos direitos humanos. Portanto as práticas sociais de mediação
configuram-se em um instrumento de exercício da cidadania, na
medida que educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e a
realizar tomadas de decisões, sem a intervenção de terceiros que
decidem pelos afetados em um conflito. Falar de autonomia, de
democracia, de cidadania, é ocupar-se da capacidade das pessoas
para se auto-determinarem em relação a si próprias e com os ou-
tros; auto-determinarem-se na produção da diferença (produção
do tempo com o outro). A autonomia é uma forma de produzir
diferenças e tomar decisões em relação à conflitividade que se
determina e se configura em termos de identidade e cidadania;
um trabalho de reconstrução simbólica dos processos conflitivos
das diferenças que permite formar identidades culturais e inte-
grar-se no conflito com o outro, com um sentimento de pertinên-
cia comum. É uma forma de poder perceber a responsabilidade
que toca a cada um em um conflito, gerando devires reparadores
e transformadores. (RESTA, 2004, p. 66)

Amartya Sen percebe o desenvolvimento através do acesso às li-


berdades e à justiça social, e percebe que a ausência das liberdades está
relacionada a limitações, as quais precisam ser superadas e/ou dribla-
das para que possa haver desenvolvimento. A Crise do Judiciário consti-
tui uma limitação do acesso à justiça na medida em que a demanda por
serviços judiciais supera a oferta destes mesmos serviços.
Da mesma forma, a realidade jurídico-social de Pasárgada de-
monstra como as comunidades marginalizadas ficam à mercê do direito
estatal, tendo sua liberdade de acessar à justiça limitada por não haver
mecanismos que tutelem seus direitos.
Dessa forma, a mediação surge como alternativa ao paradigma
das necessidades ilimitadas versus recursos escassos, derrubando as
limitações impostas pela crise do acesso à justiça e promovendo a pa-
cificação do conflito por meio do incentivo à autonomia e respeito à al-
teridade, tornando as partes protagonistas de suas contendas, evitando
que estas cheguem ao Judiciário, pois elas serão capazes de promover
uma justiça paraestatal eficaz.
A mediação também se apresenta como alternativa à situação vi-
venciada pelos moradores de Pasárgada, pois pode proporcionar uma
justiça paraestatal na comunidade, que proporcione aos moradores a
possibilidade de resolverem seus conflitos, através da alteridade, do diá-
logo, independentemente da intervenção dos mecanismos pertencen-
tes ao Estado.
Assim, a mediação garante ao cidadão as liberdades e a justiça
social, preconizadas por Amartya Sen, permitindo, nesse aspecto, o de-
senvolvimento econômico.

Considerações finais
Charlise P. Colet Gimenez & Giovana Krüger

O presente estudo buscou analisar a relação entre Direito e


Economia segundo a proposta de desenvolvimento de Amartya Sen, o
qual pauta seu estudo nas liberdades como índice de avaliação do de-
senvolvimento econômico. Partindo desta perspectiva, buscou-se tra-
balhar a questão da liberdade de acesso à justiça, analisando dois ca-
sos em particular que levam à privação desta liberdade fundamental:
a crise do Poder Judiciário e a realidade jurídico-social de Pasárgada.
Para ambas as privações, encontrou-se uma solução comum, qual seja,
a mediação, capaz de promover o acesso à justiça e, consequentemente,
viabilizar o desenvolvimento econômico.
Insere-se ao estudo da análise econômica do Direito o paradigma
das necessidades ilimitadas versus recursos escassos. Este pode ser re-
lacionado à Crise do Judiciário, onde ocorre o fenômeno da “Explosão
de Litigiosidade”, o qual pode ser considerado como uma limitação às
74
75
liberdades, à justiça e ao bem-estar social. O desenvolvimento econômi-

Constitucionalismo Contemporâneo
co, segundo Sen, está ligado a estes pressupostos, sendo que a mediação
atua a fim de garantir um direito efetivo na resolução das contendas, e é
capaz de efetivar os fatores primordiais ao desenvolvimento econômico
na visão de Amartya Sen. Por sua vez, Pasárgada é uma comunidade ile-
gal, totalmente privada de sua liberdade de acesso à justiça, na medida
que não possui acesso ao Poder Judiciário, à Polícia ou a outros métodos
estatais de ordenação e pacificação social.
A mediação na comunidade de Pasárgada pode surgir como um
mecanismo independente dos órgãos estatais, com o objetivo de prote-
ger os direitos dos cidadãos da comunidade, aplicando uma justiça com
base no diálogo, alteridade e responsabilização das partes, que pode ser
mediada e aplicada pelos próprios moradores.

e suas formas contemporâneas


Portanto, segundo a análise anterior, a aposta em métodos al-
ternativos de resolução dos conflitos como a mediação pode consti-
tuir um mecanismo capaz de gerar potencial fator de desenvolvimen-
to econômico, na medida em que elimina as limitações e promove as
liberdades dos seres humanos, como a justiça social e a qualidade de
vida da comunidade.

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76
A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO
SOCIAL DA PROPRIEDADE FRENTE
À DESAPROPRIAÇÃO URBANA

Cíntia Jotz Vargas


Bacharela em Direito pela Universidade Feevale.
(cintiajotz@gmail.com)

Claudine Rodembusch Rocha


Doutora pela Universidade Federal de Burgos-Espanha
em Direito Público, Mestre em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul - UNISC, Pós-graduada em Demandas
Sociais e Políticas pela Universidade de Santa Cruz do Sul -
UNISC, Professora da Pós-Graduação Lato Sensu em Direito
da Faculdade Imed, polo Porto Alegre. Advogada.
(claudinerodembusch@yahoo.com.br)

Introdução
O presente trabalho está vinculado tanto ao direito administrati-
vo como ao direito constitucional. Está delimitado à desapropriação da
propriedade urbana frente ao cumprimento da função social. Os pro-
blemas de pesquisa baseiam-se no conceito de desapropriação, nas suas
características e na forma como se concretizam.
A desapropriação também é conhecida como expropriação e
ocorre quando o Poder Público, baseado em uma necessidade pública,
utilidade pública ou interesse social, desapossa alguém de um bem e
o transfere para si, ou seja, existe um interesse social superior ao in-
dividual. Uma das principais características da desapropriação é que
ela é forma originária de adquirir a propriedade, sendo realizada por
um procedimento administrativo, existindo primeiramente a etapa de-
claratória, na qual expõe-se todos os motivos: fatos para que ocorra a
expropriação – sendo necessário englobar todas as características in-
dispensáveis para se perpetuar a parte executória, sendo o expropriado
indenizado e transferido o bem ao ente público.
As desapropriações seguem as normas da Constituição Federal
e do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941. Este Decreto dispõe
sobre as expropriações nos casos de utilidade pública, sendo esta le-
gislação utilizada em todo o território nacional. Conforme positivado
no artigo 182, §§ 3º e 4º da Constituição Federal, a expropriação será
realizada com pagamento de justa e prévia indenização, em dinheiro
ou mediante títulos da dívida pública, pois trata-se de uma recompensa
pela perda do bem. Existem apenas as exceções previstas no artigo 243
da Constituição Federal, em que não é paga indenização, ou seja, quan-
do existem plantações psicotrópicas no terreno, ou quando há compro-
vação de trabalho escravo realizado na propriedade.
O artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, trata da garantia do direi-
to de propriedade, porém, logo no inciso XXIII, dispõe que a propriedade
deve atender à função social, e ambas as situações ressaltam que é preci-
so observar tanto os direitos quanto os deveres de cada cidadão, a respei-
to da propriedade, não podendo o proprietário do bem prejudicar a cole-
tividade em seu favor. Dessa forma, o princípio da função social tem por
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

finalidade garantir infraestrutura urbana e próspero desenvolvimento,


visando sempre o bem-estar coletivo. Conforme disposto no artigo 182,
§ 2º, a propriedade urbana cumpre a função social quando o proprietá-
rio estiver respeitando e agindo conforme previsto no Plano Diretor do
Município. Cada indivíduo tem uma função na vida em sociedade, sendo
seu dever fazer o melhor que puder para contribuir com sua parte, ou seja,
existe uma busca inconstante de impulsos para que se alcance o bem-
-estar, em prol da coletividade.

Aspectos e características gerais da


desapropriação no direito brasileiro
A desapropriação e a legislação brasileira
No Brasil, a legislação vigente nos casos de desapropriação por
utilidade pública é o Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941.
78
79
Este Decreto contém 43 artigos, os quais dispõem sobre as expropria-

Constitucionalismo Contemporâneo
ções por utilidade pública. Mesmo tratando-se de um decreto antigo,
ele continua sendo completo e atual para os dias de hoje. Entre os
artigos 1º e 10, constam disposições preliminares, como quais os bens
que podem ser desapropriados e quem pode desapropriá-los. Ressalta
a importância da declaração de utilidade pública e descreve que esta
deve ser realizada via decreto pela autoridade responsável, além de
elencar quais são os casos admitidos para ocorrer a desapropriação
por utilidade pública. Também relata o prazo permitido pela lei, ou
seja, inicia tão logo seja expedido o decreto que disponha sobre a ex-
propriação (HARADA, 2014).
Ao longo dos artigos 11 a 30 do Decreto nº 3.365/1941, há referên-
cia à forma como irá ocorrer o processo judicial, ou seja, como serão reali-

e suas formas contemporâneas


zados todos os trâmites legais para que a desapropriação seja feita de for-
ma lícita. É importante observar a competência, tanto do local que deve
ser proposta a ação como quem é o juiz competente para julgar o caso. É
de extrema importância observar os elementos que devem constar na pe-
tição inicial, para que esta esteja completa. Deve estar descrito na petição
como será realizada a avaliação do bem, sendo sempre realizada por um
perito. Contudo, ressalva-se que deve ser observado que a indenização
oferecida pelo bem deve estar de acordo com o valor correspondente no
mercado imobiliário. Também devem constar todas as questões referen-
tes a citações dos interessados, o que pode ser contestado, e de que forma
se dará a sentença e o pagamento ao expropriado (MEIRELLES, 2014).
Estão previstas as disposições finais referentes à desapropriação
por utilidade pública no Decreto nº 3.365/1941 entre os artigos 31 e 43,
demonstrando que a partir do momento que o bem for expropriado, o an-
tigo proprietário perde todos os direitos referentes a esta propriedade. O
pagamento da indenização será realizado de forma prévia e em dinheiro,
por meio de depósito em banco, e se existirem quaisquer dívidas fiscais
do imóvel, estas serão deduzidas do valor que será pago ao expropriado.
Todavia, o valor só poderá ser levantado após a prova da propriedade e
publicação do edital. Os proprietários que foram expropriados, que não
estiverem de acordo com o valor pago na indenização, têm a possibilidade
de procurar e exigir seus direitos em ação autônoma.
A Constituição Federal de 1988 positiva em alguns artigos do seu
texto sobre o tema propriedade, função social e expropriação. O primei-
ro que denota importância para este trabalho é o artigo 5º, pois, ao lon-
go de seus incisos, trata dos direitos do proprietário, bem como seus
deveres, e se este não cumprir o esperado será expropriado.
É de extrema importância citar o artigo 5º da Constituição Federal
(BRASIL, 1988):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá à sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, median-
te justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos
previstos nesta Constituição;
[...]

O artigo 170, III, da atual Constituição, dispõe que, para ter uma
vida digna, conforme prevê a justiça social, deve-se observar o princípio
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

da função social da propriedade. Para Harada (2014), estes dois artigos


(5º e 170 da CF) trabalham um assunto de extrema importância, que é
a propriedade e a necessidade de ela atender à função social, pois este é
um dos pressupostos para que não haja desapropriação, ou seja, a pro-
priedade deve atender ao desenvolvimento social e à justiça social.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do traba-


lho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observa-
dos os seguintes princípios:
[...]
III - função social da propriedade;
[...] (BRASIL, 1988).

Outra relevante lei que tratada deste assunto é a de nº 4.132, de


10 de setembro de 1962, que define os casos de desapropriação por
interesse social, e contém seis artigos em seu texto jurídico. Este tipo
de desapropriação será realizado para proporcionar uma divisão mais
80
81
justa da propriedade ou que seu uso propicie mais bem-estar social.

Constitucionalismo Contemporâneo
Descreve o que é considerado interesse social, aborda sobre o aprovei-
tamento de todo o bem e a possibilidade de realizar-se a construção
de loteamentos populares, para que a propriedade venha a realizar o
interesse social (ARAÚJO, 2010).
O Decreto-lei nº 1.075, de 22 de janeiro de 1970, regula a imissão
de posse, initio litis, em que a indenização deve ser em valor corres-
pondente, para que o expropriado possa comprar nova propriedade,
imissão esta que ocorre em imóveis residenciais urbanos. Tem em seu
diploma oito artigos, dispondo sobre a necessidade de urgência, bem
como sobre o prazo fixado para a oferta ao proprietário e para entrega
do laudo do perito. Este Decreto será aplicado somente nos casos de de-
sapropriação de prédio residencial urbano, habitado (HARADA, 2014).

e suas formas contemporâneas


O Estatuto da Cidade é a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001,
que propõe como forma de pagamento os títulos públicos e a não inde-
nização em dinheiro, como os outros decretos, em que a competência
é totalmente dos municípios, dependendo sempre, para que seja lícito,
constar no Plano Diretor do Município e ser aprovada por Lei. Também
é necessário cumprir alguns requisitos previstos no texto legal, como
averbar a notificação ao proprietário (DI PIETRO, 2013).
Ainda na Constituição Federal de 1988, o seu artigo 22, II, relata
que apenas a União tem competência para legislar sobre desapropriação.
No artigo 5º, XXIV, prevê que a lei irá dispor sobre a desapropriação, e
que ela ocorrerá quando existir necessidade, utilidade ou interesse social
para a propriedade. Ou seja, irá visar um bem maior à sociedade, sendo
realizada a expropriação com justa e prévia indenização em dinheiro.
Tratando de política urbana na Constituição Federal, o artigo 182
traz por finalidade o desenvolvimento e o bem-estar dos habitantes. No
parágrafo segundo, trata da função social da propriedade urbana, sendo
que esta deve atender ao disposto no plano diretor da cidade. No pará-
grafo terceiro, positiva sobre as desapropriações de imóveis urbanos e
que os proprietários serão previamente indenizados, em dinheiro. No
parágrafo quarto deste mesmo artigo, existe uma previsão que o dono
do imóvel deve fazer uso conforme previsão da lei. Caso não o faça, este
poderá ser desapropriado e a indenização ser paga em títulos da dívida
pública, com parcelas anuais, iguais e consecutivas, sendo necessário
para pagamento a aprovação no Senado Federal (MEIRELLES, 2014).
Artigo 182 da Constituição Federal:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo


Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em
lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das fun-
ções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigató-
rio para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumen-
to básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade ex-
pressas no plano diretor.
§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com
prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei especí-
fica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei
federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutiliza-
do ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana pro-
gressivo no tempo;
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida


pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal,
com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais
e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros
legais. (BRASIL, 1988)

Na desapropriação, a indenização está vinculada a uma ideia de


restituição, e por este motivo deve ser justa, sendo o valor uma forma de
compensar, ou seja, equivale a um equilíbrio pela perda da propriedade.
Como a expropriação não é algo simples de se realizar, deve-se obser-
var todos os requisitos previstos nas leis, pois se trata da transmissão
de uma propriedade particular para o Estado, ou para outro particular
(CRETELLA JÚNIOR, 1976).
A indenização pela expropriação direta deve ser realizada con-
forme o previsto na Constituição Federal nos artigos 5º, XXIV, e 182,
§ 3º, os quais relatam que esta deve ser justa, prévia e em dinheiro.
Existem, porém, situações que são permitidos os pagamentos em tí-
82
83
tulos. Um dos casos ocorre quando o imóvel urbano não estiver cum-

Constitucionalismo Contemporâneo
prindo sua função social, ou estiver em desacordo com o previsto no
Plano Diretor do Município, então a indenização pela desapropriação
é realizada em títulos da dívida pública, positivado no artigo 182, § 4º,
III, da Constituição Federal.
José Cretella Júnior (1976, p. 558), em sua obra, traz a ideia que:
“A justa indenização devida pelo Estado ao proprietário do bem expro-
priado tanto está presente na desapropriação por necessidade e utilida-
de pública quanto na desapropriação por interesse social.”.
As duas exceções previstas na Constituição que isentam o Estado
do pagamento de indenização encontram-se positivadas no artigo 243.
Uma, é quando há desapropriação por cultivo de plantas psicotrópicas
consideradas ilegais. A outra, ocorre quando é descoberto que a pro-

e suas formas contemporâneas


priedade utiliza mão de obra escrava. Nestes casos específicos, a desa-
propriação ocorre como um confisco, não sendo indenizado o proprie-
tário. Após o processo de desapropriação, a propriedade é destinada a
programas habitacionais ou à reforma agrária.

Desapropriação e função social da


propriedade urbana
O princípio da função social e seus conceitos
Na visão clássica, o dono do imóvel usa, goza e dispõe da forma
que melhor lhe convir. Todavia, em meados do século XX, passou-se a
falar sobre a função social da propriedade. As Constituições pioneiras
neste sentido foram as do México, em 1917, e de Weimar, Alemanha,
em 1919. No Brasil, os direitos sociais estiveram presentes desde a
Constituição de 1934, mas apenas em 1988 é que foi incorporado o
princípio da função social no texto constitucional, como uma tentativa
de equilíbrio entre os princípios sociais e econômicos (BORGES, 1999).
Nos países não socialistas, isto é, capitalistas, surgiu as primeiras
Constituições liberais, que tratavam da ordem econômica e social, visan-
do assim uma reforma na ordem social. Quem implementou e melhor
tratou a respeito da função social da propriedade foi o constitucionalista
francês, Leon Duguit. Ele deixou de tratar a propriedade como um direito
subjetivo, cessando, assim, o ato de atender às propensões individuais,
para atender ao bem da sociedade. Em seu livro, Função Ambiental da
Propriedade Rural, Roxana Cardoso Brasileiro Borges (1999, p. 74) men-
ciona Duguit: “Para ele, a propriedade não era mais um direito, mas uma
função social.” . Dessa forma, nascem os direitos, deveres e saem de cena
os direitos subjetivos, quando se tratar de propriedade. Isso adveio a par-
tir da evolução que ocorreu ao longo das décadas seguintes, sendo neces-
sário o uso de forma mais ampla e completa do bem.
O direito de propriedade é assegurado pela lei, porém, esta faz
uma ressalva a respeito da função social. Assim trata Giuliano Deboni
(2011, p. 116): “Em outras palavras, isso quer dizer que a liberdade in-
dividual é satisfeita somente se ao mesmo tempo são levadas em con-
sideração as liberdades sociais.”. Não se pode esquecer que o direito à
propriedade privada e a função social da propriedade estão previstos
não apenas no artigo 5º, incisos XXII e XXIII, mas também na parte que
trata da ordem econômica, como um dos princípios a serem observados
no artigo 170 da Constituição Federal de 1988.
Giuliano Deboni (2011, p. 117-118) descreve que

[...] a utilização da propriedade, no desenvolvimento de atividade


econômica, deverá, além de responder à necessidade privada do
proprietário, respeitar os interesses da sociedade e harmonizar-
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

-se com a preservação dos recursos naturais existentes nesta


mesma propriedade. Isto é, o direito à livre iniciativa e ao exercí-
cio da atividade econômica é limitada no interesse da coletivida-
de e na utilização racional dos recursos ambientais.

No artigo 5º, XXII, da Constituição Federal vigente, a questão


da propriedade está vinculada a um direito absoluto, porém, no inci-
so subsequente, demonstra a exceção, descrevendo que a propriedade
deve atender à função social. Neste sentido, Luís Portella Pereira (2003,
p. 15) traz em sua obra:

Em consequência, este direito à propriedade, textualizado pelo


legislador constitucional no inciso XXII, será pleno, geral e ir-
restrito, se a propriedade estiver cumprindo a sua função social,
condição esta incluída pelo legislador constituinte sob forma de
bom uso da propriedade privada, em prol da coletividade.

84
85
Antigamente tratava-se apenas a propriedade de forma absoluta,

Constitucionalismo Contemporâneo
mas hoje leva-se em consideração também a questão da função social
da propriedade, proposta pelo renomado jurista francês, Léon Duguit,
no século XIX, que afirmava que o proprietário do bem, por possuí-lo,
deveria observar a função social, se não o fizesse, ou se o fizesse não da
forma que se esperava, o Estado deveria intervir. A partir deste enten-
dimento, a Constituição alemã do mesmo século, escrita por Weimar,
também trouxe a ideia de que o proprietário do bem teria obrigações
perante a sociedade, para se alcançar o desenvolvimento social por
meio do uso correto da propriedade (HUMBERT, 2009).
Segundo León Duguit, o proprietário é que deve cumprir a função
social da propriedade, pois é ele quem tem o subsídio para fazê-lo, ou
seja, tem a riqueza, sendo que hoje a proteção dos interesses da coletivi-

e suas formas contemporâneas


dade é mais importante que o direito subjetivo. Na Constituição alemã de
Weimar, de 1919, estava previsto, no artigo 153, que a propriedade gera
obrigações, cuja utilização deve trazer bem-estar geral. Hoje, mais do que
nunca, percebe-se que a propriedade está diretamente ligada à função so-
cial, sendo de extrema importância o equilíbrio entre o interesse pessoal
do proprietário e o interesse coletivo, usando a propriedade de forma útil
para a comunidade, gerando assim benefícios a todos (MALUF, 2005).
Não é somente nos direitos fundamentais que se encontra positi-
vada a questão da função social da propriedade (art. 5º da CF/88), mas
como um dos princípios que norteiam a ordem econômica (art. 170, III,
da CF/88) e ainda como uma forma de política urbana (art. 182, § 2º, da
CF/88). Neste sentido, percebe-se a importância do tema, pois, além de
ser um direito fundamental, é também um princípio (HUMBERT, 2009).
Para orientar da melhor e mais completa forma o ordenamento
jurídico, são necessários direitos fundamentais e princípios, pois são
eles que norteiam a vida em sociedade. Os princípios jurídicos podem
ser divididos em dois: um deles é aquele previsto na lei; o outro seria
nos casos que já foram julgados. Nota-se que são situações com aspectos
parecidos, porém, ainda não há previsão legal a respeito. Deste modo,
para julgar, o magistrado utiliza costumes e jurisprudências. Pode-se
resumir os princípios em três palavras: eficácia, aplicação e conteúdo
(MORAES, 1999).
Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 629-630) relata em
sua obra:
Violar princípio é muito mais grave que transgredir uma norma
qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a
um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucio-
nalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque repre-
senta insurgência contra todo sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra.

O conceito de princípio advém da palavra em latim principium,


que significa início, origem. Este conceito foi sendo modificado ao lon-
go dos anos, conforme ocorria a evolução jurídica. Neste sentido, trata
Paulo Bonavides (1999, p. 228-229): “Princípio de Direito é o pensa-
mento diretivo que domina e serve de base à formação das disposições
singulares de Direito de uma instituição, de um código ou de um direito
positivado.”. Sendo assim, os princípios são bases norteadoras.
Os princípios jurídicos são também conhecidos e chamados de
normas jurídicas, as quais tratam de questões de direito fundamental,
ou que estão internamente ligados a leis específicas, portanto agindo
em conjunto, em forma de um sistema (MORAES, 1999).
A primeira característica dos princípios é a generalidade, que re-
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

laciona como este encontra-se no sistema jurídico, podendo ser de vá-


rias formas ou pertencer a alguma específica. A segunda característica
é a gradualidade, na qual existem princípios que têm um maior valor e
destaque no sistema jurídico, formando-se assim uma questão hierár-
quica. A terceira característica é a da indeterminabilidade, os princípios
têm em sua natureza uma grande amplitude para poderem ser aplica-
dos com maior facilidade (MORAES, 1999).
Como o homem tem a natureza de viver em sociedade, a proprie-
dade é uma forma de satisfazer o que lhe é estritamente necessário.
Tanto a propriedade privada como a pública devem cumprir a função
social, levando em conta que as áreas urbanas sempre são utilizadas
conforme as necessidades, para a evolução da sociedade e o alcance do
bem-estar geral.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 630-631),

Numa primeira acepção, considerar-se-á que a função social da


propriedade consiste em que ela deve cumprir um destino econo-
86
87
micamente útil, produtivo, de maneira a satisfazer as necessida-

Constitucionalismo Contemporâneo
des sociais preenchíveis pela espécie tipológica do bem (ou pelo
menos não poderá ser utilizada de modo a contraditar estes inte-
resses), cumprindo, destarte, às completas, sua vocação natural,
de molde a canalizar as potencialidades residentes no bem em
proveito da coletividade (ou pelo menos não pode ser utilizada
de modo a adversá-las).

Ao longo dos anos, o Direito busca atender a um equilíbrio social,


porém, com as mudanças sociais, também se modificam as necessida-
des. Por este motivo, existe uma certa dificuldade em alcançar um bem-
-estar comum, uma propriedade que gere em sua totalidade a função
social. Desta forma, Luís Edson Fachin (1988, p. 17) relata a ideia de
função social: “A expressão função social corresponde a limitações, em

e suas formas contemporâneas


sentido largo, impostas ao conteúdo do direito de propriedade.”. Ainda
a respeito deste tema, o autor traz: “A função social relaciona-se como
uso da propriedade, alterando, por conseguinte, alguns aspectos per-
tinentes a essa relação externa que é o seu exercício.” (FACHIN, 1988,
p. 21). Neste sentido, a função social da propriedade está totalmente
interligada com a forma que se dá seu uso.
A Constituição, prevendo a função social da propriedade, está
querendo trazer um novo ponto de vista ao direito de propriedade,
não apenas como um direito individual e absoluto, e sim como um
princípio norteador que visa desenvolvimento e alcance da justiça
social. Muitas vezes, a busca da função social da propriedade que o
Estado quer alcançar (podendo ser realizada através da União, do es-
tado, ou até mesmo do município pelo plano diretor) não condiz com
os interesses do proprietário, porém, está em questão o bem da cole-
tividade e não o querer individual. Neste sentido, José Afonso da Silva
(1981, p. 96) aponta em sua obra:

Mas é certo que o princípio da função social não autoriza a su-


primir, por via legislativa, a instituição da propriedade privada.
Contudo, parece-nos que pode fundamentar a socialização de
algum tipo de propriedade, onde precisamente isso se torne ne-
cessário à realização do princípio, que se põe acima do interes-
se individual. Por outro lado, em concreto, também não autoriza
esvaziar a propriedade de seu conteúdo essencial mínimo, sem
indenização, porque este está assegurado pela norma de garantia
de direito de propriedade.
Kiyoshi Harada (2014, p. 10) dispõe em seu livro:

Do exposto, é possível concluir que a Constituição Federal ins-


creveu o princípio da função social para a propriedade em geral;
inscreveu a propriedade privada e sua função social como um dos
princípios da ordem econômica, fundada na valorização do traba-
lho e da livre iniciativa, com o fito de assegurar a todos a existên-
cia digna, conforme os ditames da justiça social, e definiu o con-
teúdo desse princípio em relação às propriedades urbana e rural.

Carlos Ari Sunfeld (1987, p. 5) explica o sentido da palavra fun-


ção, cujo conceito é relevante para obter-se um maior entendimento
a respeito do tema: “Função é conceito que se opõe ao de autonomia
da vontade, tal qual concebido no Direito Civil”. Desta forma, percebe-
-se que a função social da propriedade deve ser realizada mesmo que
não seja uma vontade do proprietário, uma vez que isso beneficiará o
coletivo. A partir da positivação, na Constituição Federal, do princípio
da função social da propriedade, iniciou-se uma relação entre o direito
privado e o direito público, fazendo com que a propriedade tenha um
propósito social.
Além de estabelecer uma obrigação, um dever, faz-se necessário
respeitar todos os dispositivos legais, tanto da Constituição Federal
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

como do Plano Diretor, para se alcançar a função social da proprieda-


de da melhor e mais correta forma. Quando estas não são aplicadas,
o proprietário sofre as sanções previstas na lei. Uma das penas é a ex-
propriação, não podendo esta ser questionada pelo simples fato de o
proprietário ter direito à propriedade, pois esta só se dará se não for
respeitado outro preceito, aquele que obriga a todos que tenham pro-
priedade cumprirem a função social, para que assim tenham uma vida
mais digna em sociedade.
José Afonso da Silva (1981, p. 78), tratando do assunto, diz que:

É em relação à propriedade urbana que a função social, como


preceito jurídico-constitucional plenamente eficaz, tem seu al-
cance mais intenso de atingir o regime de atribuição do direito
e o regime de seu exercício. Pelo primeiro, cumpre um objetivo
de legitimação, enquanto determina uma causa justificadora da
qualidade de proprietário. Pelo segundo, realiza um objetivo de
harmonização dos interesses sociais e dos privativos de seu titu-
lar, através da ordenação do conteúdo do direito.
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A propriedade prevista no artigo 170 da Constituição Federal tem

Constitucionalismo Contemporâneo
por objetivo a ordem econômica, na qual está especificamente em dis-
cussão a questão do desenvolvimento, sendo que este quer oportunizar
justiça e avanço sociais. Dessa forma, também faz relação com a distri-
buição mais paritária das riquezas.
Sabe-se que a propriedade urbana provém de algo construído pela
força do trabalho do homem. Por este motivo, a propriedade deve aten-
der à função social urbanística, que tem por objetivo a moradia, o lazer,
o trabalho e o livre movimento das pessoas. “A autonomia da vontade na
utilização da coisa é substituída pela sua função” (SUNFELD, 1987, p. 7).
Sendo assim, o princípio constitucional da função social da propriedade
nada mais é que uma tentativa de equiparar os interesses públicos aos
privados, porém, não raras vezes, estão em situações conflitantes.

e suas formas contemporâneas


As primeiras Constituições brasileiras tratavam da liberdade, dos
direitos humanos; para elas, o proprietário de imóveis detinha maior
importância na sociedade, ou seja, era uma forma de atingir maior sta-
tus. Depois surgiram as Constituições liberais, que fomentaram os di-
reitos individuais adquiridos por meio dos princípios instituídos pela
Revolução Francesa. A questão liberal tem fim apenas após a I Guerra
Mundial, com o início do socialismo. Nessa época, o Estado torna-se for-
te e intervém mais na sociedade. A Constituição dessa época tinha uma
aparente preocupação em assegurar direitos à família e ao trabalho.
Em 1988, a Constituição Federal estabelece a política de desen-
volvimento urbano (arts. 182 e 183), que em 2001 foi regulamentada
pela Lei 10.257 (Estatuto da Cidade), ditando as diretrizes gerais de
execução dessa política, ou seja, “normas de ordem pública e interesse
social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coleti-
vo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio
ambiental” (BRASIL, 2001, art. 1º, parágrafo único).
Segundo Kiyoshi Harada (2014, p. 8): “Hoje, o conceito de pro-
priedade está umbilicalmente ligado ao de justiça social, que, segundo
a doutrina social da Igreja, seria a força orientadora dos atos humanos
para o bem comum”. Sendo assim, a propriedade privada só lhe é de
direito enquanto cumprir a sua função social.

A Constituição possibilita flexibilizar a definição de função social


da propriedade urbana, que pode variar de um Município para ou-
tro, ou até mesmo de uma zona para outra do mesmo Município,
tudo dependendo dos problemas e necessidades de cada comuna
ou zona de uso, que irão influir na elaboração do respectivo Plano
Diretor, instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana. (HARADA, 2014, p. 10)

A função social da propriedade tem por principal objetivo o de-


senvolvimento do país, para que se alcancem melhores níveis de justiça
social e se obtenha o desenvolvimento, e assim expandi-la para atender
a um bem coletivo.
Carlos Ari Sunfeld (1987, p. 11) trata sobre o direito subjetivo da
propriedade:

Do que nunca se cogitou, porque incompatível com a propriedade


individualista, foi a imposição da obrigação de utilizar o imóvel,
isto é, obrigação de exercer o direito em benefício de um interes-
se social. E é justamente tal tipo de obrigação que se deve impor
com fundamento na função social.

Para complementar a questão de propriedade e de sua função so-


cial, segue-se a ideia de Roxana Cardoso Brasileiro Borges (1999, p. 75)
em sua obra:
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

Entretanto, quando o exercício do direito de propriedade pode ter


ampla repercussão no interesse de terceiros, inclusive grupos so-
ciais ou mesmo a sociedade difusamente considerada, como, por
exemplo, quando a propriedade é bem de produção, a lei pode es-
tabelecer deveres jurídicos de como o proprietário deve exercer
seu direito de propriedade, de modo a conciliar seus interesses
coletivos ou difusos, vinculando o direito subjetivo à função social.

Nas cidades com população acima de vinte mil habitantes, é ne-


cessário que se tenha projetos, os quais devem ser realizados e espe-
cificados no Plano Diretor. Este tem por objetivo dar nortes de como
se dará o desenvolvimento do município, sendo a função social da pro-
priedade uma das questões a serem debatidas, situação esta prevista
no artigo 182, § 2º, da Constituição Federal. O Plano Diretor prevê as
exigências em relação à propriedade urbana, pois quanto maior a ur-
banização, mais importante é a observância de cada etapa durante o
processo de evolução.
90
91
Com base no princípio da função social da propriedade, que já era

Constitucionalismo Contemporâneo
reconhecido na Constituição de 1967, em relação à ordem econômica,
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1967, p. 267) traz em sua obra:

O quarto dos princípios fundamentais da ordem econômica, se-


gundo a Constituição vigente, é o da função social da proprieda-
de. Com isso, condena ela a concepção absoluta da propriedade
segundo a qual esta é o direito de usar; gozar e tirar todo o pro-
veito de uma coisa de modo puramente egoísta, sem levar em
conta o interesse alheio e particularmente o da sociedade.

A função social é uma estrutura do direito de propriedade, sendo


que o direito individual do proprietário apenas vale se este bem está
gerando algo ao coletivo. Desta forma, cumprindo a função social da

e suas formas contemporâneas


propriedade, está se buscando um bem comum, realizando-se assim as
obrigações sociais positivadas e desta forma facilitando a vida em socie-
dade e seu desenvolvimento.

Considerações finais
Verificou-se que a desapropriação ocorre quando o Poder Público,
baseado em uma necessidade pública, utilidade pública ou interesse so-
cial, despossa alguém de seu bem, transferindo este mesmo bem para si
e todos os direitos pertinentes a esta propriedade. Uma das principais
características da expropriação é que é forma originária de o Estado
adquirir o bem. Para que ocorra a desapropriação, deve haver uma
declaração, na qual deverá constar se o motivo é necessidade, utilida-
de pública ou interesse social, dispondo nela todas as características
pertinentes para que esta se perpetue, bem como o motivo, citação do
proprietário. Após este estar ciente da situação, a expropriação pode
ocorrer de forma amigável ou judicial, sendo que em ambos os casos
deve ser pago ao proprietário uma indenização.
De acordo com o artigo 182, parágrafo terceiro, da Constituição
Federal, a desapropriação de imóveis urbanos será realizada de forma
prévia e em dinheiro, em regra, tendo ainda, como opção, o ente públi-
co realizar o pagamento mediante títulos da dívida pública, situação
disposta no inciso terceiro do parágrafo quarto do mesmo artigo. A
indenização será sempre realizada de forma justa, com o valor cor-
respondente do imóvel no mercado. Existem, porém, duas exceções
em que não haverá pagamento de indenização pela desapropriação,
as quais estão elencadas no artigo 243 da Constituição, que se refe-
rem a propriedades em que forem encontradas plantações de ervas
psicotrópicas ou que nelas seja utilizado trabalho escravo, pois estas
propriedades serão confiscadas pelo Estado, para lhes seja dada fun-
ção social adequada.
Constatou-se, que, além da Constituição Federal, também o
Decreto-lei nº 3.365/41 trata da desapropriação, tendo elencado em
seu artigo 5º todos os casos de expropriação por utilidade pública.
Apesar de antigo, este Decreto continua em vigor. Ao longo do seu texto,
positiva as questões pertinentes à expropriação por utilidade pública,
desde a declaração e a indenização, até os trâmites do processo judicial.
Conclui-se que cada indivíduo tem uma função na vida em socie-
dade, e todos devem fazer o seu melhor, contribuindo dessa forma para
a construção de uma sociedade cuja convivência seja pacífica e harmo-
niosa. Sendo assim, há uma busca constante de esforços para que se
alcance o bem-estar social, ou seja, em prol da coletividade, sendo esta
uma das formas que colabora para se alcançar tal fim, utilizando a pro-
priedade de maneira que cumpra com sua função social.
Cíntia Jotz Vargas & Claudine Rodembusch Rocha

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CIDADANIA TRIBUTÁRIA FRENTE AOS
PRINCÍPIOS REPUBLICANOS E DA
MORALIDADE TRIBUTÁRIA

Alex Silva Gonçalves


Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do
Sul – UNISC. Especialista em Direito Ambiental pelas
Faculdades Integradas de Patos – FIP. Especialista em
Direito Penal e Processual Penal Militar pela Faculdade
Unyleya – DF. Professor da Graduação de Direito Ambiental
e Consumidor da Faculdade Paraíso do Ceará – FAP.
Professor da Pós-Graduação da Faculdade Paraíso do
Ceará – FAP, Universidade Regional do Cariri – URCA e
Faculdades Integradas de Patos – FIP. Advogado.

Introdução
Há grande complexidade em debater o tema da cidadania tribu-
tária, vez que, para o seu exercício, pressupõem-se uma análise ante-
rior baseada em princípios, em especial os republicanos, e na morali-
dade tributária.
Este trabalho tem como objetivo analisar como os cidadãos po-
dem ter maior participação social, repartindo direitos e obrigações, car-
gas e reivindicações, agindo em busca do exercício da cidadania tribu-
tária. Assim, será traçado um paralelo entre os princípios republicano
e federativo, analisando, por conseguinte, os aspectos da moralidade
tributária da administração no que concerne ao gerenciamento da res
publica, com o intuito de se tentar minimizar os efeitos das crises en-
frentadas pela sociedade.
Detalhando mais ainda o objetivo do estudo em questão, po-
derá ser notado que o presente trabalho fará análise de três pontos
importantes, quais sejam: a dos princípios republicano, federativo e
constitucionais limitativos; a moralidade tributária; e o conceito de
cidadania tributária.
O princípio republicano será abordado sob a ótica da liberdade
e não como forma de antagonismo ao regime monárquico, explorando
as características que integram o seu conceito, de forma que os valores
intrínsecos ao republicanismo sejam absorvidos pela sociedade. Em re-
lação ao princípio federativo, verificar-se-á que não existe um único mo-
delo a ser aplicado em todos os países que se intitulam federação, contu-
do, a abordagem remete à análise de características comuns, focando no
federalismo cooperativo do Brasil. Em seguida, será feita uma abordagem
acerca dos princípios constitucionais decorrentes e limitativos, como le-
galidade, isonomia, capacidade contributiva e solidariedade social.
O segundo ponto a ser analisado neste estudo é a moralidade tri-
butária, buscando identificar o que é moralidade tributária e como ela
se desenvolve sob a ótica do Estado, desde a elaboração de normas até o
cuidado com a res publica, bem como a moralidade do contribuinte, que
muitas vezes se furta ao cumprimento da legislação tributária baseado
em vários pontos de vista.
Por fim, será identificado o conceito de cidadania tributária, e dis-
cutido sobre o dever que o contribuinte tem de pagar os tributos, mas
não ser simplesmente um sujeito passivo nesse processo, e sim, exercer
uma cidadania ativa para que o Estado tenha uma contraprestação so-
cial e responsável em relação aos recursos administrados visando sem-
pre o bem comum.

Princípios
Os princípios republicanos e a moralidade tributária devem ser
analisados sob a ótica valorativa em contradição ao pluralismo das so-
ciedades pós-modernas, direcionando proteção à res publica, com o in-
tuito de valorizar a participação social no exercício da cidadania.
Neste sentido, Agra (2005, p. 12) dispõe que “os princípio e valo-
res pertinentes ao republicanismo, atualizados por uma releitura que
Alex Silva Gonçalves

os torne adequados aos problemas enfrentados no cotidiano, configu-


ram-se como um instrumento de grande valia para se tentar minimizar
os efeitos perniciosos das crises apontadas”.
Dessa forma os princípios devem ser reanalisados dentro de seus
limites, de forma que sua utilização remeta a uma ideia de inclusão so-
cial com capacidade plena de trazer soluções aos problemas e crises
enfrentadas pela sociedade.
96
97
Tais princípios são especialmente necessários quando direitos e

Constitucionalismo Contemporâneo
obrigações, cargas e reivindicações devem ser repartidos entre membros
de uma comunidade. Repartição sem princípios é repartição arbitrária.
Isso é pacífico tanto na filosofia moral como na filosofia do direito.
Os princípios republicanos contribuem para o incremento do
nível de legitimidade porque torna a população partícipe atuante
na feitura das políticas públicas e, assim, as normas produzidas têm
sólido consentimento em razão da maior participação dos cidadãos
(AGRA, 2005, p. 112).
Por outro lado, a tributação é norteada por princípios com justi-
ça. Carga tributária é necessidade e não imposição. Assim, não se ob-
jetivando esgotar o assunto, mas proporcionando o debate para uma
maior participação ativa dos cidadãos, o estudo adiante busca analisar

e suas formas contemporâneas


os princípios republicanos e a moralidade tributária visando ao exercí-
cio da cidadania tributária.

Republicanismo
O republicanismo pode ser enxergado sob duas vertentes: teoria
de liberdade e teoria de forma de governo. Assim, Agra (2005, p. 12)
denota que

[...] ele representa uma forma de governo oposta ao regime mo-


nárquico, defendendo que os cidadãos têm obrigação de atuar
ativamente na vida política da polis com o objetivo de proteger
a res publica, considerada como valor fundamental para o desen-
volvimento harmonioso da vida social. Adotando-se aquela ver-
tente, ele representa uma teoria de liberdade que se contrapõe
aos vínculos de subjugação existentes, englobando da dominação
baseada no poder econômico até as que necessitam do apoio do
Estado para sua implantação.

Não se almeja explorar o republicanismo, no presente trabalho,


como forma de antagonismo ao regime monárquico e sim como forma
de garantir o direito de liberdade aos cidadãos, que devem atuar para
se desvencilharem da subjugação do Estado, mediante participação
política, exercendo uma virtude cívica, de forma que impeçam que os
interesses privados ou a vontade de um déspota possam privá-los de
seus direitos.
O artigo 1º da CF/88 afirma que o Brasil é uma república: “a
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos...”.
Para melhor compreensão do estudo, parte-se inicialmente da
conceituação de republicanismo, também conhecido como neorepubli-
canismo ou neoromanismo. Assim, tendo em vista que o republicanismo
está presente em diversos países e que se configura de forma particular
em cada um deles, é praticamente impossível formar um conceito que
traga uma dimensão global, contudo é perfeitamente possível elencar
suas principais características.
Assim, uma conceituação satisfatória de republicanismo remete-
-se ao tipo de governo; construção de uma democracia participativa; in-
centivo ao autogoverno dos cidadãos; igualdade formal através da não
permissividade de dominação humana; implementação de políticas pú-
blicas que atenuem a desigualdade social, através da efetivação da iso-
nomia substancial; defesa e difusão das virtudes cívicas; caráter eletivo;
representatividade; transitoriedade e responsabilidade.
Carrazza (2013, p. 66) define república como o “tipo de governo,
fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do po-
der político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra),
transitório e com responsabilidade”.
A eletividade é instrumento de representação que deve assegurar
periodicidade e fidelidade aos mandatos. Acrescente-se a responsabi-
lidade quanto ao penhor da idoneidade da representação popular sem
deixar de lado a igualdade formal das pessoas.
Os requisitos que definem o caráter republicano também foram
abordados por Kant (1988, p. 28): “fundamentação sobre princípios de
liberdade de seus membros; normas em conformidade com os princípios
da independência de todos em relação a uma única legislação comum;
Alex Silva Gonçalves

que o princípio da isonomia prepondere entre todos os cidadãos”.


A partir da enumeração de tais requisitos, vê-se que o republica-
nismo não é meramente uma oposição ao regime monárquico, mas que
alberga virtude cívica e moral de forma a trazer uma nova roupagem
quanto ao estabelecimento de relações sociais consolidadas, segundo
entendimento de Agra (2005, p. 17), “sob o parâmetro da liberdade, da
igualdade, do autogoverno e do respeito à res publica”.
98
99
O objetivo do republicanismo é, sem dúvida, proporcionar ao ci-

Constitucionalismo Contemporâneo
dadão toda liberdade possível de forma que busque alcançar excelência
quanto à satisfação de suas necessidades, com observância de todo um
emaranhado legislativo e respeito aos direitos de outrem, considerando
sempre o bem-estar coletivo em detrimento do particular.
Nessa linha, Agra (2005, p. 19) é enfático ao afirmar que “os ideais
republicanos são frontalmente contrários a qualquer tipo de tirania em
que haja a sujeição de um cidadão à vontade arbitrária de outro”.
A teoria republicana tem vários defensores, contudo, destaca-
-se Maquiavel (1977, p. 11), o qual afirma que “todos os Estados, os
domínios todos que existiram e existem sobre os homens, foram e
são repúblicas ou principados”, e tentava quebrar o paradigma de que
todos os resultados favoráveis ou desfavoráveis dentro da sociedade

e suas formas contemporâneas


estavam associados à divindade, tendo, portanto, a intervenção do ho-
mem. Dessa forma, Maquiavel (1977, p. 142) destaca: “[...] para que
o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a
sorte seja o árbitro de metade das nossas ações, mas que ainda nos
deixa governar a outra metade, ou quase”.
Assim, quanto ao modelo de sociedade, Agra (2005, p. 35) afirma
que “o fator teleológico de Machiavel era criar uma sociedade bem or-
denada – repubblica bene ordinata – isto é, um modelo de sociedade em
que seus cidadãos fossem livres e pudessem em conjunto decidir acerca
de seus destinos”.
O republicanismo é uma forma de governo, conforme relatado
por Agra (2005, p. 56): “[...] o modo pelo qual o poder se estrutura e
se organiza, definindo o status de sua situação jurídica, bem como deli-
neia as esferas nas quais os cidadãos se relacionam com as autoridades
públicas”. Apresenta valores diferentes da monarquia, que se pauta na
honra, e da aristocracia, que se alinha com a moderação, posto que tem
como valores o amor à pátria e a igualdade.
No republicanismo, pelo princípio da soberania popular, o povo é
titular do poder, motivo pelo qual o interesse público está acima do pri-
vado no sentido de proteger a res publica. Exatamente por esse motivo,
o povo inclina-se pelo republicanismo, o que pode ser confirmado nas
palavras de Ataliba (1998, p. 30):

Se, por outro lado, se perguntar ao povo se ele deseja estar dis-
tante do governo, impossibilitado de controlá-lo e fiscalizá-lo;
se apreciaria fosse-lhe negado o acesso a qualquer tipo de in-
formação sobre as funções de governo; se quer governantes que
não conhece e não escolheu e, ainda, ficar impossibilitado de
confirmá-los ou renová-los nas funções, evidentemente, a res-
posta seria negativa.

Dessa forma, todo poder, titularidade e exercício têm origem


no povo, razão pela qual os detentores do poder político o fazem em
nome do povo, não podendo agir de forma arbitrária e contra os inte-
resses sociais.
Associe-se a essa característica outra, qual seja, a representati-
vidade. Os mandatos eletivos se estendem em determinado lapso tem-
poral com o fito exclusivo de atuação em nome do povo para gerir a
coisa pública. São pessoas eleitas pelo povo para representar os seus
anseios.
Para essa representatividade, é imperioso que haja eletividade,
ocasião em que a população escolhe seus representantes pelo sufrágio
universal, para que atuem de forma a resguardar os interesses do povo,
que não pode ser lesado “por meio de uma tributação voltada apenas
para os interesses do Estado” (CARRAZZA, 2013, p. 70).
Igualmente, tais mandatos eletivos devem ser transitórios, de
forma que continuamente os cidadãos possam confirmar determina-
dos representantes ou expurgá-los da representatividade, evitando que
haja, por mera liberalidade, a perpetuação no exercício do poder.
Há, ainda, outra característica do republicanismo: o exercício da
função com responsabilidade, de maneira que a atuação fora dos limites
legais e morais possam ensejar maior responsabilização pelas decisões
políticas que contrariem os interesses sociais. É o caso dos crimes de
responsabilidade tipificados pela legislação penal.
Não resta dúvida de que o sentimento da população é igualda-
Alex Silva Gonçalves

de, participação, escolha e transparência em tudo o que diz respeito


à res publica.
Sob esse enfoque, é imperioso destacar que todos os homens são
iguais entre si pelo simples fato de serem humanos, desprovido de qual-
quer conotação social, política ou religiosa, razão pela qual o princípio
da isonomia é postulado obrigatório e fundamental para uma sociedade
mais justa e igualitária.
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Quanto ao princípio da igualdade, Agra (2005, p. 89) diz que “O ci-

Constitucionalismo Contemporâneo
dadão tem liberdade para escolher seu destino, mas essa assertiva, para
se tornar realidade, exige que a sociedade garanta condições básicas de
saúde, educação, emprego, cultura, e que ele possa efetivamente guiar
sua conduta na consecução de seus objetivos”.
Ao falar de igualdade formal das pessoas, Carrazza (2013, p. 67)
norteia o entendimento com um apanhado mais específico ao relatar que,

De fato, a noção de República não se coaduna com os privilégios


de nascimento e os foros de nobreza, nem, muito menos, aceita a
diversidade de leis aplicáveis a casos substancialmente iguais, as
jurisdições especiais, as isenções de tributos comuns, que benefi-
ciem grupos sociais ou indivíduos, sem aquela ‘correlação lógica
entre peculiaridade diferencial acolhida [...] e a desigualdade de

e suas formas contemporâneas


tratamento em função dela conferida’.

Por outro lado, o Estado deve atuar por meio de medidas de in-
tervenção social, política e econômica, de forma a buscar reduzir ou, no
mínimo, evitar que se alastre o nível de desigualdades existente entre
os cidadãos.
É inegável que toda sociedade tem seus problemas estruturais,
razão pela qual os republicanos buscam encontrar parâmetros que
deem solução a eles. Conforme assinala Agra (2005, p. 13-14), “através
do estímulo das virtudes cívicas e participação ativa da população nas
decisões políticas, do respeito à res publica e da percepção do cidadão
enquanto membro da coletividade, intrinsecamente atrelado a ela, rela-
cionando o conceito de individualismo”.
Os valores intrínsecos ao republicanismo devem ser absorvidos
pela sociedade, sob pena de desvirtuamento dos interesses da polis em
favor do individual ou de grupos específicos.

Federalismo
É certo que existem diversos tipos de federalismo no mundo, o
que demonstra não haver unicidade nessa seara. Igualmente, não há fe-
deralismo ideal, mas verifica-se que há algumas características gerais
que se assemelham.
Passa-se a analisar o federalismo no Brasil, não se objetivando
no presente estudo fazer uma abordagem histórica, mas observá-lo a
partir da Constituição de 1988, a qual estabelece, em seu artigo 1º, que
a forma do Estado brasileiro é o Estado Federal, sendo “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados,
Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:”.
O dispositivo constitucional foi inovador no que concerne à inclu-
são dos municípios como participantes da federação, os quais, a partir
de então, têm uma “Constituição” própria, intitulada pela Carta Magna
como Lei Orgânica do Município.
O Brasil apresenta característica de um federalismo cooperativo.
“A expressão federalismo cooperativo foi utilizada originalmente pelos
Estados Unidos da América, para qualificar o modelo de federalismo
contraposto ao existente na ordem federal daquele país (dual federa-
lism)” (REVERBEL, 2012, p. 115).
Debruçando-se um pouco mais sobre o normativo constitucional,
pode-se identificar que o artigo 23 estabelece o federalismo coopera-
tivo “É competência comum da União, Estados, Distrito Federal e dos
Municípios”, devidamente corroborados pelo parágrafo único do mes-
mo dispositivo, quando determina que “Leis complementares fixarão
normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do
bem-estar em âmbito nacional”.
Ocorre que tais leis complementares jamais foram elaboradas,
certamente porque não houve interesse da União em fixar tais normas,
talvez pela ameaça da perda ou limitação de competências.
Adiante será estudado o princípio limitativo da solidariedade,
contudo, para que o federalismo tenha funcionabilidade, é imprescin-
dível que a União transfira não somente competência, mas também
recursos para que os estados e municípios implementem as políticas
Alex Silva Gonçalves

necessárias.
Bercovici (2004, p. 58) explica que “A virtude da cooperação é a
de buscar resultados unitários e uniformizadores sem esvaziar os pode-
res e competências dos entes federados em relação à União, mas ressal-
tando a sua complementaridade”. Objetiva-se, assim, trazer equilíbrio e
harmonia em relação à descentralização federal.
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103
A cooperação pode ocorrer entre os diversos entes federados,

Constitucionalismo Contemporâneo
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, quando buscam imple-
mentar políticas públicas comuns em relação aos serviços públicos no
âmbito do território da federação. Todavia, Bercovici (2004, p. 63) afir-
ma que “É a falta de uma política nacional coordenada, e não a reparti-
ção de competências concorrentes e comuns, que faz com que determi-
nados programas e políticas públicas sejam realizados por mais de uma
esfera governamental e outros por nenhuma”.
Este é o mesmo entendimento de Reverbel (2012, p. 117), ao
assinalar que “A cooperação é um mecanismo existente no Estado
Federal que favorece o desenvolvimento das relações intergoverna-
mentais, abrangendo as formas e os meios de aproximação dos gover-
nos (central e locais).

e suas formas contemporâneas


Concluindo seu entendimento, o autor descreve que:

Há que se considerar, porém, que toda relação cooperativa supõe


uma vinculação recíproca entre os poderes que autonomamen-
te dispõem as partes. Assim, o estabelecimento de um regime de
competências baseado na interdependência só é possível quando
a Constituição delimita, ou reconhece um campo de independên-
cia. Assim, a cooperação voluntária não institucionalizada (coope-
ração livre) pode versar apenas sobre o modo de exercício dos
respectivos poderes e competências das partes, não podendo,
portanto, dispor sobre a titularidade das mesmas. Este é o limite
imposto à cooperação livre, qual seja, ficar restrito a manter inte-
grado os poderes e as competências conferidos pela Constituição.
(REVERBEL, 2012, p. 118)

Nesse caso, as políticas devem ser desenvolvidas de forma coor-


denada e cooperada entres os diversos entes da federação, almejando-
-se o bem comum.
Existem diferenças no que concerne às desigualdades regionais, o
que também é expresso no artigo 3º, III, e artigo 170, VII, da CF/88, con-
tudo, a União deve buscar meios de desenvolver políticas cooperadas
visando reduzir tais desigualdades, articulando com os demais entes
federados a criação de regiões administrativas, incentivos e ações de
organismos regionais.
No entendimento de Bercovici (2004, p. 63),
Contudo, é importante lembrar que uma federação não visa, ne-
cessariamente, à auto-sustentação financeira absoluta de todos os
seus entes federados; as transferências e trocas das mais diversas
naturezas são a essência do Estado federal. O que se deve procurar
minorar são, decerto, as heterogeneidades socioeconômicas atra-
vés de um processo de desenvolvimento econômico e social.

Visando alcançar esse desenvolvimento de política tão almeja-


do faz-se mister descentralizar políticas públicas paulatinamente, me-
diante programas sociais, objetivando o bem-estar social, até mesmo
porque, segundo Bercovici (2004, p. 70), “O Brasil, sob a Constituição
de 1988 é uma federação. Portanto, os entes federados são dotados de
autonomia, não sendo obrigados a aderir a nenhuma política federal
de descentralização de políticas sociais, salvo determinação constitu-
cional”. Entretanto, na prática, o Governo Federal toma medidas no sen-
tido de obrigar os entes federados a assumirem alguns encargos sociais,
porém sem a devida contrapartida financeira, o que onera mais ainda o
escasso orçamento do município.
O Brasil tem apresentado inúmeros problemas de ordem tri-
butária ou crises do federalismo que merecem uma atenção melhor.
Nesse sentido, Bercovici (2004, p. 72) relaciona “A guerra fiscal, a
questão do endividamento dos Estados, a ‘descentralização por au-
sências’ de políticas sociais e a reconcentração das receitas tributárias
na esfera federal”.
Objetivando ampliar o debate e apresentar soluções, Bercovici
(2004, p. 94) afirma que:

Somente com a efetiva implantação do Federalismo Cooperativo


podemos criar mecanismos de coordenação entre a União,
Estados e Municípios para concretizar o disposto no artigo 3º da
Constituição de 1988, que declara constituírem objetivos funda-
Alex Silva Gonçalves

mentais da República Federativa do Brasil, entre outros, a erradi-


cação da pobreza e da marginalização e a redução das desigual-
dades sociais e regionais para a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária.

A federação, e porque não dizer a reforma da federação, deve ser


avaliada no plano nacional formado por todos os Estados, desde que se

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pense em não privilegiar macro e microrregiões para cristas comuns de

Constitucionalismo Contemporâneo
desenvolvimento com incentivos fiscais direcionados a cada uma delas.
Para isso, precisa que haja harmonização tributária, a fim de evi-
tar a guerra fiscal entre os estados que produzem e os que adquirem a
produção, bem como propiciar um sistema que possa favorecer ao ple-
no emprego, melhoria da qualidade de vida, aumento do consumo e da
produção, que, por conseguinte, gera mais empregos e mais consumo
dentro da lógica do mercado.

Princípios constitucionais decorrentes


e limitativos
O princípio republicano e federativo não se esgota em si mesmos,

e suas formas contemporâneas


mas apresenta limitações em outros princípios constitucionais a seguir
elencados.

Legalidade tributária
A legalidade tributária se fundamenta constitucionalmente no ar-
tigo 5º, II, ao estabelecer que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
O Estado deve atuar dentro dos limites legais estabelecidos pela lei.
A competência para tributar é delineada pela Constituição Federal e deve
ser exercida em favor do povo. Carrazza (2013, p. 93) afirma que “seria
um contrassenso aceitar-se, de um lado, que o povo outorgou competên-
cia tributária às pessoas políticas e, de outro, que elas podem exercitá-la
em qualquer sentido, até mesmo em desfavor desse mesmo povo”.

Isonomia tributária
A Constituição Federal proíbe a concessão de vantagens tribu-
tárias fundadas em privilégios destinados a determinadas pessoas ou
categorias. É o princípio da isonomia tributária previsto no artigo 150,
II, in verbis:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao con-


tribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios: [...] II – instituir tratamento desigual entre con-
tribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida
qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função
por eles exercida, independentemente da denominação jurídica
dos rendimentos, títulos ou direitos.

Explicando melhor esse dispositivo, Carrazza (2013, p. 85) diz


que

Constitucionalmente, pois, um tributo não pode ter outro escopo


que o de instrumentar o Estado a alcançar o bem comum [...] A lei
que cria um tributo e que, nestes termos, exercita a competência
tributária deve, em tese, atentar somente para os interesses do
povo e para o bem-estar do País.

Assim, a generalização tributária esbarra no princípio da isono-


mia. A carga tributária, imposta e estendida a todos, ou a isenção tribu-
tária, não podem ser delineadas sem critérios específicos, sob pena de
arbitrariedade. Faz-se necessário que o critério adotado alcance pes-
soas em condições jurídico-econômicas iguais para que haja isonomia
e justiça.

Capacidade contributiva
O princípio da capacidade contributiva busca equidade na parti-
cipação tributária dos contribuintes, e está expresso no § 1º do artigo
145 da CF: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e
serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”.
Não se intenta discutir nesse sentido o equívoco do legislado no
que concerne a englobar em um mesmo dispositivo institutos diferen-
tes, como o imposto e capacidade contributiva, mas apenas firmar algu-
mas considerações sobre este último.
Alex Silva Gonçalves

A capacidade contributiva é extensão da isonomia tributária.


Carrazza (2013, p. 98) escreve que “Realmente, seria anti-isonômico,
além de irrazoável e atentatório ao direito de propriedade e à própria
garantia do mínimo existencial, que os pobres e os milionários supor-
tassem o mesmo peso econômico dos impostos, até porque aqueles não
têm capacidade contributiva”.
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Nessa linha de raciocínio, é justo e necessário que o contribuinte

Constitucionalismo Contemporâneo
que aufira mais rendimentos em decorrência de sua atividade remune-
rada também contribua mais com o sistema financeiro. Em outras pala-
vras, quem ganha mais deve verter maiores contribuições.
Contudo, deve-se ainda observar o aspecto da proporcionalidade
quanto ao fato gerador das contribuições.
Tratando da capacidade contributiva, Carrazza (2013, p. 98) en-
fatiza que “é ela que concretiza, no âmbito dos impostos, a igualdade
tributária e a Justiça Fiscal”. Justiça fiscal é princípio da capacidade con-
tributiva. A justiça do Estado Social de Direito apoia-se em três funda-
mentos: princípio da igualdade, princípio do Estado social e princípio
da liberdade.

e suas formas contemporâneas


Nas palavras de Tipke (2012, p. 20):

O princípio da capacidade contributiva é o único princípio fun-


damental, que é adequado a todos os direitos fundamentais de
Constituições de Estados de Direito Social. É também em geral
aceito como apropriado. Ninguém deseja ser onerado mais gra-
vosamente do que outros nas mesmas condições econômicas;
mas a mesma preocupação deve ele então também reconhecer
nos outros.

Dessa forma, a capacidade contributiva objetiva alcançar as pes-


soas que podem contribuir e qual a medida em que devem contribuir,
pois seria contraproducente tentar coletar algum valor de quem nada
dispõe economicamente.

Solidariedade social e tributação


O Estado social no Brasil não suplantou em face do atual modelo
de tributação, que é de suma importância para construção do Estado
Social. O princípio da capacidade contributiva está associado ao prin-
cípio da solidariedade previsto constitucionalmente no artigo 3º, I, da
CF, o qual declara expressa e sumariamente ser objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil, “constitui uma sociedade livre, justa
e solidária”.
Para tanto, o Estado deve desenhar um sistema financeiro de con-
tributividade, de forma que diminuam as desigualdades decorrentes do
sistema capitalista. Nesse viés, a solidariedade tem atuação bastante
ampla e imprescindível, vez que é instrumento de justiça fiscal e social
para o bem-estar e vida digna de todos.
Nesse sentido, Yamashita (2005, p. 59) diz que

Portanto, sob a ótica da solidariedade, o Estado Democrático de


Direito (art. 1º) consiste, basicamente, na persecução de: i) justi-
ça social (arts. 3º, I, 170, caput, e 193 da CF/88) que busca redis-
tribuição de renda e igualdade de chances a todos, ou seja, a ca-
pacidade existencial, econômica e cultural para viver e trabalhar,
num nível razoável; e ii) segurança social, ou seja, o a) bem-estar
social (arts. 186, VI, e 193 da CF/88), consubstanciado especial-
mente na proteção existencial, garantida pela prestação de servi-
ços públicos básicos (água, luz, transporte, educação, saúde etc.)
e nos seguros sociais (seguro-desemprego, seguro por invalidez
etc.) e a b) assistência social (auxílio mínimo existencial e auxílios
em catástrofes naturais, a fim de garantir um mínimo de dignida-
de humana ao cidadão).

A solidariedade tributária caminha em algumas direções. É o caso


das isenções tributárias, em que determinados grupos de pessoas ficam
isentas do pagamento de impostos, e de igual forma veem vertidas me-
lhorias sociais em parâmetro de igualdade com aqueles que contribuem.
Frise-se o exemplo das normas tributárias extrafiscais, as quais
têm uma finalidade social, como no caso do desestímulo ao tabagismo
ou alcoolismo, ou ainda incentivos fiscais, como os da Zona Franca de
Manaus.
Observa-se ainda o deslinde da progressividade dos impostos im-
plementado no sistema jurídico brasileiro, que atende não só ao prin-
cípio da capacidade contributiva, mas também confere um tratamento
desigual àqueles que estão em faixa de renda diferente. Nesse sentido,
Carrazza (2013, p. 101) diz que
Alex Silva Gonçalves

A progressividade das alíquotas tributárias, longe de atritar com


o sistema jurídico, é o melhor meio de se afastarem, no campo
dos impostos, as injustiças tributárias, vedadas pela Carta Magna.
Sem impostos progressivos não há como atingir-se a igualdade
tributária. Logo, o sistema de impostos, no Brasil, deve ser infor-
mado pelo critério da progressividade.

108
109
A progressividade, que não se confunde com a proporcionalidade,

Constitucionalismo Contemporâneo
é instrumento de política pública para eficácia de um sistema solidário
quando os impostos em maior ou menor grau de incidência são reverti-
dos de igual forma para toda a sociedade.
Pelo princípio da solidariedade também se observa que determi-
nados grupos ou categorias específicas devem arcar com seus próprios
custos e responsabilidades. Assim, Yamashita (2005, p. 64) diz que “não
seria justo cobrir as despesas com a garantia dos direitos sociais de
certos grupos através da arrecadação de impostos gerais. Cada grupo
social deve assumir a responsabilidade de prover as despesas com a
proteção estatal de que carece”.
Já Ávila (2005, p. 71) diz que “a tributação com base na solidarie-
dade social contraria, entre outras normas, as regras de competência e

e suas formas contemporâneas


o sobreprincípio da segurança jurídica e seus subelementos da legalida-
de, da irretroatividade e da anterioridade”.
Contudo, no entender de Godoi (2005, p. 148),

A postura menos exigente responde que a sociedade solidária é


uma sociedade que reconhece, valoriza e incentiva que seus cida-
dãos pratiquem atos solidários (atos de assistência, de fraterni-
dade, de união de esforços). Já a postura mais exigente responde
que a sociedade solidária é aquela que se ergue sobre pilares de
sustentação efetivamente solidários.

Somente adotando-se essa postura por parte da sociedade é que


o Estado não vai utilizar a tributação como instrumento de arrecadação,
e sim em atendimento aos objetivos constitucionais para atendimento
da justiça social e bem-estar comum.

Moralidade tributária
Conceito de Moralidade
O comportamento humano é influenciado por vários aspectos da
vida, como trabalho, família, religião, educação, tradição e o próprio co-
tidiano, o que repercute de forma positiva ou negativa na conduta das
pessoas, formando sua personalidade moral. Assim, surge o termo mo-
ral, que vem do latim “mores”, que significa costume.
É extremamente complexo tentar definir o termo moral, tendo em
vista que uma mesma conduta pode ser considerada moral ou imoral,
dependendo do lugar ou da época que tenha ocorrido. Envolve-se, nesse
caso, todo o aspecto social, político, ético e religioso. Entretanto, há de-
terminados tipos de comportamentos que são inaceitáveis em qualquer
lugar, e, portanto, imoral, como o caso da corrupção e dilapidação do
patrimônio público arrecadado.
A moral sempre existiu, posto que a consciência do homem dis-
tingue o bem e o mal dentro da realidade em que vive, motivo pelo qual
as condutas individuais são pautadas dentro da razão.
O Estado é a abstração dos representantes do povo, e, portanto,
suas ações devem estar nos limites da moralidade, já que suas condutas
e decisões repercutem na seara econômica dos contribuintes.
Não se propõe nesta abordagem discutir a ética tributária, toda-
via, já que apresenta relação direta com a moralidade, há necessidade
de que os princípios tributários sejam justos e alcancem os fins sociais
a que se destinam.

Moralidade do Estado
Existe uma ideia de pelo menos criação de condições para que
todos concorram em igualdade, e as leis tributárias devem ser orienta-
das nesse sentido. Quando o Estado não aplica uniformemente as leis
tributárias, age de forma imoral.
O legislador que observa a teoria do direito justo demonstra mo-
ral. O legislador que observa a teoria do direito tributário justo demons-
tra moral tributária ou age moralmente em matéria tributária.
Muitos doutrinadores compreendem que nossa legislação infra-
constitucional é distorcida e incompatível com a Constituição. E não é
por demais encontrar a origem desse problema, posto que, apesar de
Alex Silva Gonçalves

que a Constituição não confira todo poder aos elaboradores das nor-
mas, estes se acabam por elaborar uma legislação tributária arbitrária
a “toque de caixa”.
Os políticos, da base do governo e oposição, adotam um discurso
vazio e irracional, com a finalidade precípua de manipular a opinião do
contribuinte, utilizando-se de palavras “de efeito” com objetivo de al-
cançar sucesso no próximo pleito eleitoral.
110
111
Sobre a legislação tributária, Tipke (2012, p. 79) afirma que

Constitucionalismo Contemporâneo
A moral tributária não exige que as leis tributárias tenham uma
tradição, mas que elas se harmonizem com a Constituição atual
e com a Ética corporificada em seus direitos fundamentais. Se o
legislador aprova dolosa ou levianamente leis que são inconsti-
tucionais ou se ele não revoga ou modifica as leis que pela maio-
ria são consideradas por boas razões inconstitucionais, então ele
atua tributariamente de modo imoral.

Se uma legislação está em vigor, então ela deverá ser aplicada,


mesmo que seja imoral, isso porque o aspecto legal prevalece sobre o
aspecto imoral. A partir de então o Estado se investe de poder e, por
meio da aparelhagem de seus órgãos, exige a observância da lei.

e suas formas contemporâneas


Para Tipke (2002, p. 21), “uma moral tributária deficiente é refle-
xo de uma deficiente moral fiscal do Estado, pois um fenômeno é con-
sequência do outro”. E cita como exemplo que a irresponsabilidade nos
gastos públicos é desvio de moral fiscal por parte do Estado, bastante
comum no cenário brasileiro.
Dessa forma, ao esbanjar ou dilapidar os recursos tributários, o
Estado não atua dentro da moralidade. Assim, se a sonegação fiscal é
punível, a dilapidação dos recursos públicos deveria sê-lo.
O Estado cria tributos para atender a uma necessidade, e deve
fazê-lo de forma ética.
Ética é a teoria do comportamento justo, e como “moral” o com-
portamento ou o agir segundo essa teoria.
Muito se fala em reforma tributária, que de fato deve ocorrer,
contudo de forma que haja, no entender de Tipke (2012, p. 77),

[...] um realinhamento de todos os tributos pelo princípio da ca-


pacidade contributiva, na colmatação das lacunas nas bases de
cálculo e na decidida eliminação de todos os favorecimentos fis-
cais injustificáveis ou não mais justificados, assim como na redu-
ção das alíquotas fiscais para todos.

Dessa forma, havendo igualdade tributária e a imposição unifor-


me no pagamento dos tributos, a legislação tributária alcançará todas
as pessoas dentro de suas capacidades contributivas, repercutindo po-
sitivamente na redução da carga tributária e maior justiça fiscal.
Moralidade do contribuinte
Do ponto de vista do cidadão-contribuinte, muitos se furtam ao
cumprimento das leis tributárias porque as consideram injustas, ou
pela alta carga tributária, ou porque outros contribuintes não pagam,
ou porque consideram que o Estado não aplica os tributos no que é
necessário, ou em face dos elevados níveis de corrupção ou ainda não
compreendem as leis tributárias.
A moral é individual. Sonegar tributos não é ético. Cumprir as
leis tributária e pagar o tributo é um dever moral. O cidadão que paga
impostos segundo leis tributárias justas demonstra moral tributária ou
age moralmente em matéria tributária.
Não se justifica sonegar porque outro sonegou. Quem quer so-
negar o faz porque quer. Não se pode buscar a moral do outro para
justificar o que é errado. Não se pode sempre colocar a culpa em
quem sonega. Cada um tem livre arbítrio e age de acordo com seu
sentimento moral. Ninguém deveria fundamentar o que faz no que
o outro faz.
Existem outras formas de evitar a incidência, reduzir o montante
ou adiar o ônus tributário, por meios legais. Trata-se da elisão fiscal,
também chamada de planejamento tributário. Como se sabe, no Brasil
existe uma alta carga tributária que dificulta o crescimento econômi-
co das empresas O planejamento tributário surgiu para que, de forma
lícita, seja possível a economia tributária, pois existem brechas na le-
gislação que viabiliza a redução dessa onerosa carga tributária fiscal.
Portanto, não é imoral.
Tipke (2012, p. 106) referencia o elusor fiscal ao afirmar que

O tipo de elusor fiscal legalístico não se excita de um modo geral


diante de leis tributárias injustas. Ele não moraliza nada, mas sim
tenta organizar sua conduta – em regra com auxílio de assessores
Alex Silva Gonçalves

tributários – de tal modo que ele possa com aproveitamento de


lacunas, obscuridade da lei e favorecimento fiscais pagar o menos
possível tributos.

Por outro lado, existem aqueles que pensam simplesmente no as-


pecto da vantagem econômica. A esses, Tipke (2012, p. 103) denomina
de homo economicus, ao estabelecer que:
112
113
O homo economicus pensa em sua vantagem econômica e não

Constitucionalismo Contemporâneo
reconhece nenhum dever moral de conduta. Ele cultiva um in-
dividualismo racional-egoístico. Para ele, Direito é tudo o que o
beneficia. O valor do dinheiro é para ele o único parâmetro para
a qualidade de vida. Ele calcula, entretanto, o risco de ser desco-
berto, por que as penalidades também são prejudiciais do ponto
de vista econômico.

De outra forma, se o homo economicus pratica uma conduta ilícita


e imoral, mas mesmo assim lhe é favorável do ponto de vista financeiro,
irá, sem dúvida alguma, a continuar praticando tais condutas.
Por fim, o Estado deve buscar renovar moralmente o contribuin-
te. O contribuinte tem consciência que precisa do Estado, e este, por sua
vez, necessita do contribuinte, contudo, as leis tributárias devem ser re-

e suas formas contemporâneas


modeladas em prol de uma justiça fiscal e social, ocasião em que os con-
tribuintes possam ver a aplicação dos recursos coletados pelo Estado e
passem a verter suas contribuições de forma volitiva e consciente em
prol do bem comum, individual e coletivo.

Cidadania tributária
Cidadania
A cidadania tributária pode ser compreendida pela ótica do
exercício dos direitos e liberdades individuais, aliada às ações estatais.
Assim, é imprescindível que haja harmonia entre o poder público e o
cidadão na consecução do bem comum.

A cidadania consiste nas mais variadas formas de manifestação


dos direitos políticos individuais, que apenas podem ser desen-
volvidas de forma ampla em um Estado Democrático Social de
Direito, seja através dos mecanismos constitucionais de aferição
popular, seja por intermédio da participação da sociedade civil. A
cidadania ativa forma com o autogoverno uma relação bilateral,
ao mesmo tempo que o exercício da cidadania ativa é requisito
para o autogoverno, este desempenha função de propulsor para
aquele. (AGRA, 2005, p. 78-79)

Isso permite considerar que o cidadão tem que se relacionar com


o Estado e a sociedade, não sendo somente sujeito passivo nessa rela-
ção, sob pena de o Estado direcionar suas ações unilateralmente, o que,
certamente, causaria graves problemas de ordem social.
Dentre as características do republicanismo, pode-se destacar
o princípio democrático, que permite a participação social no debate
político, de forma que as decisões tomadas sejam direcionadas para a
própria sociedade.
Agra (2005, p. 12) dispõe que

Os ideais republicanos podem trazer novo alento à estrutura po-


lítica da sociedade, contribuindo para aprimorar o regime demo-
crático e incentivar a cidadania ativa por parte dos cidadãos. Ao
se dinamizar os procedimentos democráticos, buscam-se solu-
ções para as crises enfrentadas, de modo que a alternativa encon-
trada possa auferir respaldo na população.

É objetivo do republicanismo que a sociedade tenha participação


direta e efetiva. “Hodiernamente, com a evolução tecnológica e o apri-
moramento da Democracia, pode-se até pensar na construção de um
regime político que se aproxime de uma democracia direta, em que os
cidadãos possam participar verdadeiramente das decisões políticas”
(AGRA, 2005, p. 14).
A construção da cidadania está atrelada à virtude cívica. Nesse
sentido, Agra (2005, p. 60) entende que “elas são o substrato que ali-
cerçam a construção de uma cidadania ativa, em que cada cidadão,
além de ser parte integrante da comunidade, é também ator das deci-
sões políticas, e une seu destino e suas aspirações do interesse geral
da coletividade”.
Assim, cada vez mais que os cidadãos compreendem a importân-
cia da virtude cívica, assimilando-a, estarão possibilitando o exercício
de uma cidadania ativa para o bem comum da sociedade ante à partici-
pação política em que sejam observados os ditames da liberdade com
Alex Silva Gonçalves

respeito à res publica.


Nesse sentido, Agra (2005, p. 61) anui que

A res publica expressa que as decisões políticas devem ser to-


madas em benefício da população, e que os mandatários e os
gestores públicos têm obrigação de exercer suas funções de for-
ma a considerar o bem público como algo sacro, densificando
114
115
a eficiência dos órgãos estatais no atendimento das demandas

Constitucionalismo Contemporâneo
coletivas.

Não se pode deixar de mencionar que o amor à pátria é outra ca-


racterística importante para a concretização das virtudes civis, porque
é capaz de integrar a sociedade em torno de um bem comum e em be-
nefício da coletividade. Vê-se que o patriotismo, que é diferente de na-
cionalismo – sentimento arbitrário e instrumento de dominação –, é um
sentimento que aflora na sociedade de tempos em tempos, e em nome
desse patriotismo a sociedade relega a segundo plano os seus interes-
ses pessoais em detrimento do bem comum.
É oportuno destacar que o exercício da cidadania tem relação
com a liberdade no que se diz respeito ao contexto de participação lato

e suas formas contemporâneas


senso, incluindo o debate e a participação direta dentro da estrutura
normativa. Assim, Agra (2005, p. 64) afirma que

A liberdade é garantida pelos princípios virtù civile porque im-


pede a existência de relações estabelecidas por subordinação ao
colocar os interesses da polis acima dos outros interesses, além
de permitir a participação dos cidadãos no processo de formação
das leis, que se configuram no único instrumento lícito de restri-
ção às prerrogativas individuais.

Deve-se compreender que o cidadão só participará efetivamente


do autogoverno porque seu futuro será decidido por meio dos órgãos
públicos. Dessa forma, a ausência de participação social possibilita a
formação de leis que contrariem os interesses sociais, e, portanto, a li-
berdade republicana.
As decisões tomadas pela sociedade serão respeitadas pelo
Estado, pois qualquer arbitrariedade contraria o princípio da legalida-
de, que move a administração que representa o povo.
Igualmente, “o exercício do diálogo valoriza a pluralidade de opi-
niões e facilita a integração social, pois os cidadãos são considerados
partes componentes de um mesmo processo democrático, com os mes-
mos direitos e responsabilidades” (AGRA, 2005, p. 73).
Isso nos permite entender que a liberdade vivenciada pelos mem-
bros da sociedade, baseada na livre iniciativa e na propriedade privada,
possibilita a cada indivíduo a busca pelo progresso social e econômico,
sem, contudo, esquecer-se de que a riqueza individual não pode estar
acima do bem coletivo, não se podendo admitir que a ganância do ho-
mem se transforme em instrumento de exclusão social. Dessa forma,
os valores intrínsecos à cidadania ativa devem ser reestruturados em
busca de uma cidadania global.

O dever de pagar tributo:


contraponto à ação estatal
Hodiernamente, é praticamente impossível que o cidadão se furte
ao pagamento dos tributos ao Estado, seja por receio de punição ou por
acreditar que o Estado reverterá tais recursos em benefícios sociais.
Machado (2007, p. 59) é enfática ao relatar que

[...] o dever de pagar tributo, com esses exatos termos, porém, tal-
vez tenha trazido prejuízos não ao Estado, ante o desprezo a esse
dever, mas ao cidadão-contribuinte, porque, na prática, a grande
massa de contribuintes cumpre com seu dever de qualquer for-
ma, seja por receio de sanção, seja pela efetiva aplicação desta,
através da coação.

O Estado tem arrecadado recursos onerando drasticamente as fi-


nanças dos cidadãos, os quais não se esquivam do pagamento dos tri-
butos respectivos. Independentemente do motivo, é certo que o cidadão
paga seus tributos, quer o faça de forma consciente ou de forma incons-
ciente. É exatamente aqui que reside a questão da cidadania tributária.
Os contribuintes não podem esperar passivamente a ação estatal
no sentido de dizer como vai gerir e aplicar todos os recursos arrecada-
dos. Os cidadãos têm que buscar se integrar no cenário de discussão com
o Estado, o qual representa os interesses do povo, de forma que possa
Alex Silva Gonçalves

opinar e participar no gerenciamento da res publica, visando ao bem co-


mum e à justiça social, legitimando, por conseguinte, as decisões estatais.
Machado (2007, p. 60) afirma que

Uma teoria ordenada sobre o dever de pagar tributo deixaria os


cidadãos mais conscientes de seu cumprimento, e estes, então,
exigiriam com mais força a contraprestação estatal, exatamente
porque saberiam que a exigência decorreria não do paternalis-
116
117
mo estatal, mas como resposta do Estado ao cumprimento do

Constitucionalismo Contemporâneo
dever de contribuir.

Portanto, se é certo que o cidadão tem o dever de contribuir, tam-


bém é inquestionável que o Estado tem a obrigação de reverter tais con-
tribuições em benefícios e melhorias de serviços destinados à população.
É a contraprestação do Estado às contribuições dos cidadãos.
Contudo, verifica-se que o Estado não tem agido e empenhado es-
forços suficientes na exata medida da prestação tributária. A reação do
Estado é lenta e desordenada, quando não raras vezes, inerte. Some-se a
isso constantes desvios de recursos, fruto de patologias corruptivas que
assolam o Estado e instituições governamentais.

e suas formas contemporâneas


Nessa esteira, Machado (2007, p. 68) diz que

De fato, num país de políticos corruptos, em que a receita pública


escancaradamente não é revertida para a prestação de serviços
públicos de qualidade, é até uma afronta à razoabilidade dos ci-
dadãos – principalmente no âmbito de demandas individuais –
afirmar que o Fisco merece tratamento privilegiado, como meio
de garantir que, com o valor discutido, realize o interesse público
ou os fins do Estado social.

O descompromisso com a res publica, aumento nos gastos, senti-


mento de impunidade, para não falar de impunidade propriamente dita,
e a falta de cobrança por parte dos cidadãos criam um clima extrema-
mente favorável para que agentes estatais ajam ao arrepio da legalidade
em benefício próprio, de terceiros ou de categorias específicas, contra-
riando os anseios sociais do bem comum.
Machado (2007, p. 62) afirma que

[...] não se pode ignorar a relação contribuinte-Estado, desenvol-


vida com a finalidade de arrecadar valores para a realização de
diversas finalidades, entre as quais estão aquelas relacionadas à
efetivação e direitos sociais, não é estática. Com efeito, o contri-
buinte ao mesmo tempo em que tem o dever de contribuir com
o pagamento de tributos, tem o direito de que tais tributos sejam
utilizados para a boa prestação de serviços públicos.
Outro grave problema que se observa é que a arrecadação por
parte do Estado não segue um parâmetro de proporcionalidade em ra-
zão dos gastos públicos, o que fartamente desemboca em prejuízo aos
cidadãos, vez que o próprio Estado desenvolve políticas fiscais oneran-
do mais ainda a sociedade em detrimento da manutenção do falho e
frágil aparelhamento estatal.
Entretanto, o aumento da carga tributária só deve ocorrer coadu-
nando-se com o respeito aos direitos fundamentais em sua dimensão
individual e da forma menos gravosa possível à luz dos princípios da
razoabilidade e proporcionalidade, desde que haja de fato a destinação
dos recursos para investimento na área social.
Seja como for, quanto mais uma sociedade é desenvolvida, do
ponto de vista de consciência política e, por via de consequência, dos
limites do poder, mais fácil e possível é desencadear ações volitivas e ci-
dadãs no sentido de enfrentar o poder público estatal para consecução
de políticas públicas que priorizem o bem-estar coletivo.

Considerações finais
O presente texto procurou analisar a cidadania tributária, toman-
do como ponto de partida os princípios republicanos e os princípios
constitucionais decorrentes e limitativos em contraponto à moralidade
tributária do Estado como forma de inserir o contribuinte em um con-
texto de maior participação social de cidadania ativa.
Atualmente, o contribuinte se resume a mero espectador das
ações estatais. Assim, diante dessa conduta, assina uma procuração em
branco para que o Estado possa agir a seu bel-prazer, pois, sem cobran-
ça por parte da sociedade, age livremente desde o processo de elabora-
ção das leis, gerenciamento do aparelho estatal e aplicação dos recursos
Alex Silva Gonçalves

públicos da forma que melhor lhe convém.


Diante de tal cenário, as políticas adotadas pelo Estado têm tido
direcionamento com a finalidade de sobretaxar cada vez mais o contri-
buinte, permitindo o alastramento de patologias corruptivas no cenário
tributário e dilapidação dos recursos públicos, alastrando e agravando
os problemas que comprometem a pós-modernidade. Some-se a isso a
inércia estatal e ausência de participação da comunidade. Nessa esteira,
118
119
o republicanismo é, no mínimo, uma das alternativas que se apresenta

Constitucionalismo Contemporâneo
como solução possível e viável ao enfrentamento dos percalços sociais.
À medida que o cidadão-contribuinte se torna consciente de que
necessita ter participação mais ativa junto ao Estado, contribuindo voli-
tiva e conscientemente, torna-se titular de direitos e obrigações, fiscali-
zando de perto e cobrando do ente estatal uma postura moral condizen-
te com os princípios da boa administração em benefício da coletividade.
Isso permite que cada cidadão se torne parte do processo demo-
crático, assumindo e dividindo responsabilidades junto com o Estado
quanto às decisões escolhidas e implementadas na proteção da res pu-
blica. Nessa senda, não resta outra alternativa ao Estado que não abrir
espaço para o exercício da cidadania tributária, posto que é o povo que
legitima as ações estatais.

e suas formas contemporâneas


Consequentemente, espera-se que esta abordagem possa soar
como um grito de chamamento social ao exercício da cidadania tribu-
tária por parte do contribuinte, fundamental à liberdade e igualdade,
vinculando-o a uma perspectiva de cidadania mais consciente, e que o
Estado paute suas condutas dentro da moralidade administrativa, de
forma isonômica, solidária e menos excludente em um cenário demo-
crático visando ao bem comum.

Referências
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ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

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bro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui
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REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito.


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TIPKE, Klaus. Moral tributária do Estado e dos contribuintes. Porto Alegre: Sergio Antonio
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YAMASHITA, Douglas. Princípio da solidariedade em direito tributário. In: GRECO, Marco


Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (Coords.). Solidariedade Social e Tributação. São Paulo:
Dialética, 2005.
Alex Silva Gonçalves

120
DO CONSTITUCIONALISMO À
EMERSÃO DA SOCIEDADE DE RISCO
GLOBALIZADA: A NECESSÁRIA
PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Aline Michele Pedron Leves


Mestranda em Direitos Humanos e Bolsista Capes no Pro-
grama de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Univer-
sidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
– UNIJUÍ. (alineleves@hotmail.com)

Carolina Andrade Barriquello


Mestranda em Direitos Humanos e Bolsista Unijuí no Pro-
grama de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Univer-
sidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
– UNIJUÍ. Advogada.
(carolina_barriquello@hotmail.com)

Janaína Machado Sturza


Pós-doutora em Direito pela Unisinos. Doutora em Direito
pela Uniroma III. Mestre em Direito pela Unisc. Especialista
em Demandas Sociais e Políticas Públicas pela Unisc.
Graduada em Direito, também pela Unisc. Professora na
graduação em Direito e no Programa de Pós-Graduação em
Direitos Humanos – Mestrado, na Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI.
(janasturza@hotmail.com)

Considerações iniciais
A condição humana estabelecida no início do século XXI, em vir-
tude das transformações perpassadas pela sociedade contemporânea
por influência do fenômeno da globalização do mundo, caracteriza-se
pela presença de riscos incalculáveis e inseguranças que se instalaram de
forma generalizada em todo o mundo. As ameaças aos direitos humanos
geram consequências que escapam ao controle das ordens governamen-
tais e tornam-se assunto na ordem do dia. Isso significa que passamos a
compreender que vivemos, de fato, numa sociedade de risco global.
O resultado dos riscos e incertezas presentes no mundo globali-
zado é que nunca se teve tanto medo e, tampouco se assumiu uma di-
mensão tão onipresente. O certo é que, quando o medo pauta a razão
frente aos riscos da contemporaneidade, a noção da busca pela prote-
ção dos direitos humanos é, muitas vezes, esquecida pelo jogo político.
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

Portanto, este é o momento de reconhecer que a existência humana não


vai bem, aliás, nada bem.
Deste modo, os inúmeros acontecimentos em escala global, marca-
dos por crises, tragédias e catástrofes que se sucedem, inquietam e intri-
gam continuamente a vida dos indivíduos, causando um verdadeiro mal-
-estar cotidiano. O processo civilizatório secular da sociedade ocidental
demonstra que este mal-estar não é recente, mas resultado de uma conti-
nuidade de fatores e paradigmas em que a comunidade global inseriu-se
e criou ao longo dos séculos. Enfrentar esta problemática implica saber
trabalhar com a desilusão, ou seja, despir-se da ilusão de que os planos da
pós-modernidade, especialmente aqueles de reconhecimento igualitário
e de proteção dos direitos humanos, poderão não se concretizar da forma
como a agenda mundial os têm gerido nos últimos anos.
Neste ínterim, a proteção do direito à saúde não permanece ile-
sa frente aos processos de produção de perigos que impregnam a so-
ciedade global repleta de incertezas, trazendo à tona doenças que se
acreditava estarem controladas, novas moléstias e epidemias crônicas,
ou até mesmo incuráveis. Tais problemas de saúde vêm, cada vez mais,
desafiando a ótica dos processos sociopolíticos e de conhecimento, em
virtude da distribuição e do incremento massivo dos riscos globais.
Na atual sociedade contemporânea, as questões suscitadas re-
vestem-se de uma profunda relevância, isso porque os impasses que
ameaçam os direitos humanos e a saúde pública são globalizados, de
modo que interessam a todos os indivíduos e não apenas a grupos
isoladamente considerados da humanidade. Assim, a soma dos riscos
e das inseguranças, sua intensificação ou neutralização recíproca exi-
gem consciência universal de responsabilidades com vistas à proteção
da saúde pública no Estado de bem-estar social e, por conseguinte, da
própria vida humana na Terra.
122
123
São evidentes, portanto, as correlações existentes entre os riscos

Constitucionalismo Contemporâneo
oriundos da nova ordem mundial com as questões enfrentadas em prol
da proteção da saúde pública, o que justifica a análise realizada ao longo
deste estudo, a fim de que o direito humano fundamental à saúde não
permaneça à margem dos atuais processos de produção e multiplica-
ção dos riscos existentes. Assim, o presente artigo enfrenta a temática e
as hipóteses levantadas através do emprego do método de abordagem
hipotético-dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica e documen-
tal. Objetiva-se, desta forma, identificar a interferência da sociedade de
risco formulada por Ulrich Beck na proteção dos direitos humanos e,
em especial, compreender como o surgimento destes riscos mundiais
influenciam direta e/ou indiretamente na proteção do direito à saúde
frente à atual sociedade globalizada.

e suas formas contemporâneas


O fenômeno da globalização e a sociedade de risco
No cenário emprestado à sociedade contemporânea a partir da se-
gunda metade do século XX e do início do século XXI, que agora passa a
tomar forma de uma verdadeira aldeia global, as relações mundiais con-
traíram relevante complexidade, polaridade incerta e um evidente vín-
culo de cooperação e interdependência entre os povos. Tais mudanças
alicerçaram novas possibilidades e alternativas mundiais mais integra-
das, corroborando a construção de uma nova ordem mundial mais justa e
solidária, mas também repleta de riscos e contradições planetárias.
De fato, a própria dinâmica da evolução que impulsiona a traje-
tória da civilização faz com que os direitos humanos e os riscos globais
não percam a atualidade, tendo em vista os novos contextos da convi-
vência social e do ambiente mundial. Deste modo, o breve retorno secu-
lar às transformações histórico-sociais deixa claro que o fenômeno da
globalização se constituiu no mais relevante evento político, econômico
e social das últimas décadas. Ou seja, foi um verdadeiro marco simbó-
lico-referencial da emergência de uma nova era dotada de complexida-
des, caracterizando-se enquanto um acontecimento intenso e com di-
mensões bastante abrangentes.
Nesse contexto, a humanidade caminha

[...] à redução das distâncias, à aceleração do tempo, à quebra das


identidades nacionais, à ruptura das fronteiras e à conformação
de novas relações políticas. Com isto, é gerado um novo horizonte
de sentido para a vida na Terra e produzido um rompimento das
relações internacionais centradas apenas nos Estados soberanos
[...]. (BEDIN, 2011, p. 130)

Por conseguinte, não resta a menor dúvida de que a configuração


do planeta enquanto um sistema global consiste num dos mais expres-
sivos acontecimentos da história humana. O referido fenômeno da glo-
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

balização distingue-se por ser causa e efeito, simultaneamente, da uni-


ficação do planeta em todos os sentidos e com diversos graus de inten-
sidade. Portanto, faz-se coerente a afirmação de Milton Santos (1997,
p. 48) de que “a Terra torna-se um só e único ‘mundo’ e assiste-se a uma
refundição da totalidade-terra”, a qual adquire um novo status: de terri-
tório comum da humanidade.
Jesús Lima Torrado (2000, p. 47) entende a globalização como:

[...] aquel «proceso amplio, contradictorio, complejo, heterogéneo


y profundo de cambio en las relaciones entre sociedades, naciones
y culturas que ha generado una dinámica de interdependencia en
las esferas económica, política y cultural, en las que se desenvuelve
el actual proceso de mundialización y que hace posible que acon-
tecimientos, decisiones y actividades ocurridas en un determinado
lugar del planeta repercutan de forma muy significativa en otros
lugares, en otras sociedades y en otras personas.

Essas mudanças que influenciam as civilizações podem, de fato,


serem sentidas em toda parte do globo, isso porque, conforme Octavio
Ianni (1996, p. 169-170), através do fenômeno da globalização, o plane-
ta transformou-se

[...] em um território de todo o mundo. Tudo se desterritorializa e


reterritorializa. Não somente muda de lugar, desenraíza-se circu-
lando pelo espaço, atravessando montanhas e desertos, mares e
oceanos, línguas e religiões, culturas e civilizações. As fronteiras
são abolidas ou tornam-se irrelevantes ou inócuas, fragmentam-
se e mudam de figura, parecem, mas não são [...].

É notório, portanto, que os processos de globalização provaram


que o poder dos Estados nacionais, em relação aos inúmeros proble-
mas que sobrecarregam a agenda internacional – como os relaciona-
124
125
dos à tutela dos direitos humanos –, caracterizam-se como funcional-

Constitucionalismo Contemporâneo
mente desequilibrados e fora de escala. Isto posto, pode-se afirmar
que vivemos atualmente em um mundo que se caracteriza “pelo apa-
recimento de um conjunto de possibilidades concretas, que modifi-
cam equilíbrios preexistentes e procuram impor sua lei e suas deter-
minações” (SANTOS, 1997, p. 48).
Nesta esteira de pensamento, Wagner Menezes (2005, p. 107-
108) compreende que a aldeia global é

[...] constituída por um conjunto de coincidências históricas, tec-


nológicas, científicas, políticas, culturais, econômicas que, ao atua-
rem ao mesmo tempo no mesmo palco, formam a realidade da
sociedade mundial contemporânea. Por esse motivo não pode ser

e suas formas contemporâneas


vista de forma isolada, sob um único ponto de vista econômico
ou político, mas de forma multifacetada, contendo todos os ele-
mentos de uma sociedade contemporânea que está a se desenhar.

Além disso, o novo século traz à tona um intenso paradoxo jamais


vivido em âmbito mundial: por um lado, evidencia-se o extraordinário
avanço das renovadas e complexas tecnologias; por outro, destaca-se a
contradição existente na mundialização da vida humana, pela qual dois
opostos se atraem inevitavelmente – a homogeneização política, econô-
mica e cultural, e a desagregação dos centros de referência da sociedade
globalizada, cujas fronteiras são mais facilmente permeáveis e transponí-
veis. Neste sentido, Bedin (2001, p. 32) destaca que

[...] tanto quanto os últimos séculos da história humana foram do-


minados por problemas relacionados com o surgimento, a cons-
trução e a supremacia dos Estados-nação, o início do século XXI
está envolvido com o surgimento e a consolidação de fluxos que
não respeitam fronteiras. Em outras palavras, está preocupado
com os problemas oriundos da emergência e da estruturação do
domínio da política e da economia mundiais.

Isto posto, verifica-se que o clima de crises e incertezas acompa-


nham a história da civilização e, tornam o mundo cada vez mais inseguro
e ávido para abarcar novos paradigmas de cooperação planetária e de
ações coordenadas capazes de enfrentar, os inúmeros riscos de caráter
global. Portanto, a soma dos perigos e das inseguranças, sua intensifi-
cação ou neutralização recíproca, constitui a dinâmica social e política
da sociedade mundial repleta de riscos, na qual sucede uma consciência
universal de responsabilidades em prol dos direitos inerentes a todos os
seres humanos, dentro e fora das fronteiras nacionais.
Assim, a conhecida Sociedade de Risco, termo cunhado por Ulrich
Beck, pode ser percebida em face das inúmeras e constantes transfor-
mações perpassadas pela sociedade contemporânea globalizada. Em
termos de percepção, pode-se afirmar que a complexidade em que a
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

atualidade está arraigada é, de fato, imensurável. Como já dito, altera-


ram-se em larga escala as noções de tempo e espaço, de tal modo que as
relações se evidenciam cada vez mais confusas, como também os peri-
gos com os quais nos defrontamos.
Neste sentido, Zygmunt Bauman e Ezio Mauro (2016, p. 75) adver-
tem que, na sociedade de risco ou da insegurança, a “diferença dos pe-
rigos antiquados dos períodos anteriores, os riscos que assombram os
habitantes da modernidade tardia não são visíveis a olho nu”. Destarte,
os seres humanos vivem hoje em meio a uma constante ansiedade e à
ameaça de perigos que sondam a realidade, que podem, notoriamente,
se concretizar em qualquer lugar e a qualquer momento. Essas sensa-
ções permanentes e difusas, que permeiam um cenário de medo, cons-
tituem as principais características da sociedade de risco globalizada,
cada vez mais vinculada à crescente percepção de insegurança que ad-
vém do irrefreável avanço científico-tecnológico.
Fato é que, o presente modifica-se celeremente em face de um fu-
turo, através do qual pretendemos compreender o aumento considerá-
vel dos riscos em uma dimensão cada vez mais global e antecipada dian-
te do mundo transfronteiriço. A atual sociedade de risco diferencia-se,
portanto, pela potencialização dos riscos oriundos da modernização e
pelas ameaças e fragilidades que arquitetam um futuro incerto (BECK,
2010). Assim, pode-se afirmar que a sociedade contemporânea, a qual
se configura a partir do denso processo da globalização, acarreta um
constante sentimento de insegurança no que diz respeito à proteção
dos direitos humanos, em virtude do surgimento contínuo de novas for-
mas de riscos diante da imprevisibilidade das relações sociais.
Ademais, o nosso planeta encontra-se estreitamente envolto em
uma rede de interdependência humana, na qual nada do que os outros
façam nos deixa seguros da não afetação em relação às nossas espe-
126
127
ranças, chances ou sonhos (BAUMAN, 2008). Desta forma, o concei-

Constitucionalismo Contemporâneo
to de risco “apreende e transmite a verdadeira novidade inserida na
condição humana pela globalização”, representado de modo indireto e
reafirmando tacitamente “o pressuposto da regularidade essencial do
mundo” (BAUMAN, 2008, p. 129).
Por conseguinte, pode-se afirmar que

[...] a sociedade se vê, ao lidar com riscos, confrontada consigo


mesma. Riscos são um produto histórico, a imagem especular de
ações e omissões humanas, expressão de forças produtivas alta-
mente desenvolvidas. Nessa medida, com a sociedade de risco,
a autogeração das condições sociais de vida torna-se problema
e tema (de início, negativamente, na demanda pelo afastamento
dos perigos). Se os riscos chegam a inquietar as pessoas, a ori-

e suas formas contemporâneas


gem dos perigos já não se encontrará mais no exterior, no exótico,
no inumano, e sim na historicamente adquirida capacidade das
pessoas para autotransformação, para autoconfiguração e para
autodestruição das condições de reprodução de toda a vida neste
planeta. (BECK, 2010, p. 275)

Com o reconhecimento dos riscos como um produto histórico


da civilização, as questões comunitárias fundamentais como o Welfare
State (Estado de bem-estar social) e a proteção dos direitos humanos
ficam, de fato, ameaçadas. Isso porque, os perigos ou riscos que son-
dam o panorama da sociedade de risco globalizada não são alternativas
que possibilitam uma escolha ou rejeição no curso do debate político.
Ao contrário, o risco configura-se enquanto uma condição estrutural
do avanço da industrialização, na qual a produção dos perigos pode, de
fato, anular o estado de segurança instituído pela previsibilidade esta-
belecida no sistema de proteção e de seguridade social (BECK, 2008).
Além disso, ressalta-se que os riscos

[...] são sempre acontecimentos futuros, com os quais podemos vir


a ser confrontados, que nos ameaçam. Porém, como esta ameaça
permanente determina as nossas expectativas, ocupa as nossas
cabeças e orienta a nossa ação, transforma-se numa força política
que muda o mundo. (BECK, 2015, p. 32, grifo do autor)

Neste contexto, sublinha-se que o termo risco é bastante recente


e fundamentalmente contemporâneo, sendo o reflexo da reorientação
das relações existentes entre as pessoas com os possíveis eventos fu-
turos. Se anteriormente à contemporaneidade e à era da globalização o
perigo implicava inúmeras fatalidades, agora ele passa a ser ressignifi-
cado em controle possível, ou seja, o risco surge enquanto conceito no
momento em que o futuro passa a ser compreendido como um evento
passível de controle (BECK, 2008). Neste sentido, Olinda do Carmo Luiz
e Amélia Cohn (2006, p. 2.339, grifo das autoras) advertem:
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

A incorporação da noção de risco foi fruto de transformações so-


ciais e tecnológicas. Está articulada à laicização da sociedade e às
transformações nas relações econômicas do capitalismo comer-
cial, à abertura do comércio e ao concomitante desenvolvimento
de estruturas políticas inéditas, como a soberania sobre territó-
rios nacionais. É nesse contexto que emerge também a teoria da
probabilidade, outro fenômeno associado à noção de risco. “O
pensamento probabilístico favoreceu o terreno necessário para
pensar os riscos como passíveis de gerenciamento”. O cálculo de
risco está intimamente relacionado à conformação e valorização
da segurança.

Portanto, é evidente que a humanidade vem enfrentando, cada


vez mais, inúmeros perigos de ordem mundial, os quais se encontram
articulados de forma irrestrita, na atual sociedade de risco globali-
zada, com os processos técnicos e científicos. Destarte, evidencia-se
que os riscos assumiram dimensões globais, entretanto, muitas vezes,
podem ter manifestações em âmbito local, com efeitos nocivos, impre-
visíveis e incalculáveis. Tais fatores fazem com que os mecanismos e
os instrumentos constituídos pela sociedade tornem-se insuficientes
para o processo de identificação e controle dos perigos que assolam
a realidade em que vivemos e agimos. Assim, é mais do que urgente
a elaboração de novas teorias e de novos instrumentos para controle
e avaliação dos riscos globais, de tal modo que os direitos humanos
sejam assegurados em busca da segurança perdida.

A proteção da saúde frente aos riscos globais


A saúde é um tema presente no dia a dia de toda a sociedade,
seja pela busca de mecanismos para sua manutenção, seja em busca
de tratamentos para cura de moléstias já adquiridas por variados fa-
tores. Apesar disso, falar em saúde não é tão simples, pois pressupõe
128
129
a existência de uma definição do que de fato é a saúde e do que é ser

Constitucionalismo Contemporâneo
saudável. Propriamente dita, costuma ser tratada como a ausência de
doenças, contudo, o tema abarca um conjunto muito maior de fatores.
A busca pela saúde remonta aos primórdios da humanidade, atingin-
do uma dimensão de preocupação por parte dos seres, exteriorizada
pelo medo da morte.
Refere Cury (2005, p. 30-31) que “A primeira atividade sanitária
encontrada ao longo da história foi a construção de sistemas de supri-
mento e drenagem de água no antigo Egito, na Índia, na civilização cre-
ta-micênica, em Tróia e na sociedade inca.”. Já o primeiro conceito de
saúde, segundo Schwartz (2001), advém dos gregos, pela máxima Mens
Sana in Corpore Sano, que significa o equilíbrio do corpo e da mente do
ser. Contudo, com a chegada da Idade Média, houve significativo retro-

e suas formas contemporâneas


cesso nas questões atinentes à saúde, como a ocorrência de pestes e
surtos epidêmicos, em que o doente era visto como um mal da socieda-
de e deveria ser afastado do convívio social, sendo levado a hospitais,
hospícios ou asilos, e nas palavras de Scliar (1987, p. 10), era considera-
do “vítima de demônios e espíritos malignos, mobilizado talvez por um
inimigo”, sendo, a doença, vista como castigo.
No século XVII, Descartes trouxe a primeira noção de saúde como
ausência de doenças, que continuou sendo marco no século XVIII, com
a Revolução Científica. Johann Peter Frank (apud CURY, 2005, p. 35), “o
primeiro a discursar sobre questões sanitárias numa visão internacio-
nal” aduziu que a causa principal de doenças era a pobreza da popula-
ção. Por outro lado, Rosen (apud CURY, 2005, p. 29) asseverava que os
problemas de saúde enfrentados pela humanidade eram decorrentes
justamente da vida em comunidade, provenientes da dificuldade de de-
senvolvimento da área da saúde pública.
No Renascimento, marcado pela busca do conhecimento, pelas
descobertas sobre o corpo humano e pesquisas de métodos científicos,
iniciou-se a restauração das políticas comunitárias de saúde, sendo uma
grande evolução que trouxe conceitos e métodos que hoje beneficiam as
sociedades contemporâneas (FIGUEIREDO, 2007, p. 79). Porém, “Apesar
de a criação de mecanismos voltados para a manutenção da saúde pú-
blica datar do início do século, a saúde pública moderna somente veio a
existir durante a Revolução Industrial do século XIX, na Europa.” (CURY,
2005, p. 35), momento em que se reforçou “a preocupação no trato cien-
tífico da questão sanitária, sendo que, em 1851, doze países assinaram
a Primeira Conferência Internacional Sanitária” (SCHWARTZ, 2001,
p. 34), e em 1864 foi criada a Cruz Vermelha Internacional.
A partir desse momento e com o início do Welfare State (Estado
de Bem-estar Social ou Estado-Providência), o Estado passou a preo-
cupar-se expressivamente com a proteção da saúde, e sendo apenas
instrumento do empresariado, passou a assumir a função de garante
da saúde pública. “No século XX, a proteção sanitária seria finalmente
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

tratada como saber social e política de governo [...] estabelecendo-se a


responsabilização do Estado pela saúde da população” (FIGUEIREDO,
2007, p. 79-80). Nessa direção, nasceu, com o capitalismo, uma noção
social de saúde, pois, conforme relata Cury (2005, p. 36), “durante as
décadas iniciais do capitalismo industrial, grande número de pessoas
era submetido a péssimas condições de trabalho”.
Com o trabalho em condições precárias, análogas a de escravos,
surgiram grandes epidemias, como a cólera, que assolou o mundo eu-
ropeu nos anos de 1830. Dessa forma, “diante do terrível quadro de
uma sociedade doente, os políticos se tornaram cônscios de que de-
veriam ser tomadas medidas de saúde pública a fim de se melhorar
as condições de vida dos trabalhadores” (CURY, 2005, p. 36). A partir
dessa problemática abordada em relação ao direito à saúde, depreen-
deu-se “a necessidade de intervenção estatal para assegurar as con-
dições mínimas de sobrevivência digna do homem”, o que culminou
com a criação dos direitos sociais, entre eles, o direito à saúde (CURY,
2005, p. 38).
Compreende-se, portanto, que a preocupação e o senso de res-
ponsabilidade no que tange ao direito à saúde pública existem desde
as antigas civilizações, dando início a políticas comunitárias de saúde,
o que trouxe melhorias no decorrer da história da humanidade. Nesse
ínterim, mister destacar que “o conceito de saúde perpassou por várias
hipóteses, basicamente a tese “curativa” (cura das doenças) e a “tese
preventiva” (mediante serviços básicos de atividade sanitária). Em ver-
dade, ambas as teses têm como base a visão de que a saúde é a ausência
de doenças (uma visão organicista)” (SCHWARTZ, 2001, p. 35). Diante
disso, o direito à saúde é visto como o direito da pessoa de ter a saú-
de garantida pelo Estado, e não só pelo viés de curar as doenças, como
também de assegurar meios para a sua prevenção.
130
131
Após a percepção do dever estatal de intervenção no direito à

Constitucionalismo Contemporâneo
saúde da população, esta passou a ser objeto de inúmeras conven-
ções internacionais na Europa e outras tantas na América. Foi a par-
tir daí que surgiu o que se conhece hoje por Organização Mundial da
Saúde (OMS ou WHO). Após a OMS, surgiram a OIT, a Unesco, a OUA,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Organização Pan-
Americana de Saúde (OPAS), entre outras. No texto da Constituição da
OMS, “a responsabilidade governamental pela saúde pública é explici-
tamente reconhecida e o direito à saúde é expressamente menciona-
do. A saúde é considerada o fator essencial na realização dos direitos
fundamentais e até mesmo para se alcançar a segurança individual e
dos Estados” (CURY, 2005, p. 44).
Foi justamente a Constituição da Organização Mundial de Saúde

e suas formas contemporâneas


(OMS) de 1946 que designou o primeiro conceito de saúde, como “es-
tado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a au-
sência de doenças”. A partir daí, criou-se a noção de que além de curar
os doentes, deveria haver cuidado com todos os seres humanos, a fim
de evitar o adoecimento, mas, ainda, de manter equilíbrio do homem,
entre seu corpo e sua mente, justamente o que preconizavam os gre-
gos. Esse conceito de saúde alvitrado pela Constituição da Organização
Mundial de Saúde (OMS), retoma a ideia de qualidade de vida.
Diante disso, Duarte (apud SCHWARTZ, 2001, p. 40) aduz que a
saúde remete à ideia de “qualidade de vida, porque as pessoas em bom
estado de saúde não são as que recebem bons cuidados médicos, mas
sim aquelas que moram em casas salubres, comem uma comida sadia,
em um meio que lhes permite dar à luz, crescer, trabalhar e morrer”.
Nesse sentido, Schwartz (2001, p. 39-40) assevera que saúde é “meta
a ser alcançada e que varia de acordo com sua própria evolução e com
o avanço dos demais sistemas com os quais se relaciona, em especial o
Estado e a própria sociedade”, sendo que a qualidade de vida também
é um processo sistêmico1, e que “o conceito de saúde age diretamente
sobre o conceito de qualidade de vida”.


1
Esse processo sistêmico advém da teoria sistêmica apresentada por Niklas Luhmann, um
método de observação social que se funda na ideia de que a organização de um siste-
ma é autorreferencial e autorreprodutiva. Através dos estudos de Luhmann, entende-se
o direito, em seu viés autopoiético, como uma ciência que se cria ou recria com base nos
seus próprios elementos. Sua autorreferência permite que o direito mude a sociedade e se
altere ao mesmo tempo movendo-se com base em seu código binário (direito/não direito),
permitindo a construção de um sistema jurídico dinâmico e adequado à sociedade atual.
Conforme Dallari (1988, p. 59 apud SCHWARTZ, 2001, p. 42-43)
“a saúde é antes de tudo um fim, um objetivo a ser alcançado. Uma ‘ima-
gem-horizonte’ da qual tentamos nos aproximar. É uma busca constante
do estado de bem-estar”, podendo ser conceituada como

[...] um processo sistêmico que objetiva a prevenção e a cura de


doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor qualidade de vida
possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada
indivíduo e é pressuposto de efetivação a possibilidade de esse
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu par-


ticular estado de bem-estar. (SCHWARTZ, 2001, p. 43)

Resta evidente, portanto, que a saúde é vista e estudada enquanto


qualidade de vida, garantida por meio da promoção, prevenção e cura
de doenças por um sistema que age em prol da sociedade e do cida-
dão. Além disso, a noção de proteção do direito à saúde pelo Estado “é
resultado de uma longa evolução na concepção não apenas do direito,
mas da própria ideia do que seja a saúde, em si mesma considerada”
(FIGUEIREDO, 2007, p. 77).
A saúde é direito humano, uma vez que é ligada diretamente à
dignidade da pessoa humana, enquanto proteção da pessoa, da sua per-
sonalidade e da qualidade de “ser humano”. Ainda, o é direito humano
inalienável, garantido principalmente pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, que a elencou como elemento da cidadania,
prevendo em seu artigo 25 que “toda pessoa tem direito a um padrão de
vida capaz de assegurar, a si e à sua família, saúde e bem-estar”.
Deve-se, portanto, avaliar a dignidade da pessoa individualmente
apreciada, não se desconsiderando a dimensão social que ela abrange.
Nesse ponto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, em
seu precedente Niños de la calle identifica o direito à vida com dignidade
como sendo “não apenas a obrigação negativa de não privar a ninguém
da vida arbitrariamente, senão também a obrigação positiva de tomar
as medidas necessárias para assegurar que não seja violado aquele di-
reito básico” (FIGUEIREDO, 2007, p. 55).
Diante do exposto até aqui, afere-se que a insegurança e a ameaça
sempre estiveram presentes enquanto condições da existência huma-
na, isso tanto no passado como no presente. Neste sentido, Beck (2015,
p. 22) ressalta que “a ameaça que as doenças e a morte representavam
para o indivíduo e sua família, bem como a fome e as epidemias para
132
133
as comunidades, eram maiores na Idade Média do que hoje em dia”.

Constitucionalismo Contemporâneo
Entretanto, os riscos que assombram os ideais e os trabalhos voltados
para a proteção da saúde, enquanto um direito humano fundamental,
são avassaladores em virtude da crescente importância atribuída aos
processos de modernização oriundos do fenômeno da globalização.
Ademais, Beck (2010) define a concepção do risco enquanto uma
forma sistemática de lidar com as incertezas e os perigos da atualidade,
introduzidos pelo processo de modernização em si. Deste modo, os ris-
cos constituem-se como consequências relacionadas à força ameaçado-
ra inserida na sociedade pelo fenômeno da globalização.
O referido autor estabelece cinco teses acerca da distribuição
do riscos como potenciais que autoameaçam a civilização: 1) os riscos
produzidos no estágio mais avançado do desenvolvimento das forças

e suas formas contemporâneas


produtivas da modernidade tardia, diferenciam-se evidentemente das
riquezas e são caracterizados em virtude da sua diversidade extrema
e, também, pela capacidade de escapar da percepção humana; 2) a dis-
tribuição e o incremento dos riscos são assimétricos, surgindo situa-
ções sociais de ameaça e variando conforme a posição de classe social;
3) a expansão e a comercialização dos riscos não rompem com a lógica
do capitalismo, elevando-a a um outro estágio, onde sempre existem
vencedores e perdedores no âmbito das definições de risco; 4) na so-
ciedade de risco, a consciência é fator determinante da existência, de
tal modo que o conhecimento adquire uma nova relevância e um sig-
nificado político; 5) a catástrofe oriunda dos riscos emerge enquanto
um potencial político, fato que implica a reorganização do poder e da
autoridade (BECK, 2010).
A radicalidade e o ritmo dos referidos processos da modernida-
de tardia e reflexiva trazem à tona os riscos enquanto uma antecipação
das catástrofes. Como já dito, “os riscos dizem respeito à possibilidade
de acontecimentos e desenvolvimentos futuros, e tornam presente um
estado do mundo que (ainda) não existe” (BECK, 2015, p. 31). Deste
modo, pode-se afirmar que essa categoria dos riscos se refere, por um
lado, à realidade controversa existente na possibilidade especulativa e,
por outro, da catástrofe incidida. Assim, “no momento em que os riscos
se tornam realidade [...] transformam-se em catástrofes” (2015, p. 31).
Nessa sociedade de risco catastrófica, o direito humano funda-
mental à saúde não permanece ileso ao processo industrial civilizató-
rio da modernidade. Pelo contrário, a saúde pública está totalmente
comprometida e enredada nessa trama dos riscos globais. Luiz e Cohn
(2006, p. 2.340) afirmam que, “no campo da saúde, o risco individuali-
za-se no [...] “autogerenciamento”: supõe-se que as pessoas, valendo-se
de informações suficientes, adaptem seus comportamentos, eliminando
todos os riscos e assim alcancem a saúde plena”.
Neste contexto, a análise dos riscos é compreendida por Maria
Ligia Rangel-S (2006, p. 1.376), referindo-se a Mollak,
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

[...] como um conjunto de conhecimentos (metodologia) que


avalia e deriva a probabilidade de acontecer um efeito adverso
por um agente (químico, físico, biológico e outros), processos in-
dustriais, tecnologia ou processo natural. No campo sanitário, os
efeitos adversos são quase sempre relacionados a algum dano à
saúde, a doenças e, até mesmo, à morte.

Ademais, pode-se afirmar que existe uma profunda relação entre


o fenômeno dos riscos à saúde na sociedade atual e a epidemiologia.
Sinteticamente, o “risco epidemiológico pode ser definido como a pro-
babilidade de ocorrência de um determinado evento relacionado à saú-
de, estimado a partir do que ocorreu no passado recente” (LUIZ; COHN,
2006, p. 2.342). Enquanto uma disciplina específica do campo da saúde
pública, a epidemiologia consegue ampliar a sua vasta atuação através
da conceituação de risco já estabelecido. Portanto, faz-se coerente a
afirmação de que é “a epidemiologia que informa sobre quais são os
fatores de risco: a comida gordurosa, as tentações ricas em colesterol, a
fumaça do cigarro” (2006, p. 2.347).
Por outro viés, Luhmann (2006, p. 65) considera que o rápido
avanço tecnológico é assunto relevante para a temática do risco nas polí-
ticas públicas, no presente caso, mais especificamente, na área da saúde,
motivo pelo qual trata da saúde e do conceito de risco afirmando que

[…] el concepto opuesto al riesgo, esto es, el concepto de seguridad


sigue siendo un concepto vacío, de manera similar al concepto de
salud en la distinción enfermo/sano. Es decir, funge exclusivamente
como un concepto de reflexión. O también como concepto-válvula-
de-escape para las exigencias sociales que, según sea el nivel varia-
ble de la exigencia, se abre paso en el cálculo de riesgos.

134
135
Um dos principais fatores que acomete a sociedade e obsta a garan-

Constitucionalismo Contemporâneo
tia da saúde é, como já mencionado anteriormente, a pobreza, pois cons-
titui um perigo à prosperidade dos cidadãos em âmbito geral. Além disso,
conforme exposto pela Declaração de Filadélfia, a paz para ser duradoura
e universal deve estar baseada na justiça social. Segundo Supiot (2014,
p. 41), a contribuição dessa Declaração “foi dar uma definição de alcance
universal da justiça social, e de fazer de sua realização um ‘objetivo funda-
mental’ ligando a política econômica de todos os Estados”. Nesse sentido,
numa análise à teoria dos riscos proposta por Ulrich Beck em relação à
saúde, Sippert e Thomé (2016, p. 86) mencionam que

Os riscos na saúde são constantes, pois toda prestação sanitária


é passível de sofrer a incidência desses fatores de riscos, que po-
dem e devem ser evitados ao máximo, porém, quando e se ocorre-

e suas formas contemporâneas


rem, deve ser responsabilizado eventual dano ocasionado, o que
nem sempre se torna possível em se tratando de vidas humanas.

Segundo Fortes e Ribeiro (2014, p. 369), citando Koplan et al.


(2009), ao tratarem de saúde internacional, dizem que retrocedemos
ao século XX, quando esta se origina, nas tentativas de colaboração in-
ternacional para controlar e prevenir as moléstias alastradas na via ma-
rítima, e aduzem que

O termo Saúde Internacional foi cunhado em 1913, pela Fundação


Rockefeller, nos Estados Unidos (EUA), e as ações desenvolvidas
nesse âmbito foram prioritariamente em prevenção e controle de
doenças infectocontagiosas, no combate à desnutrição, à morta-
lidade materna e infantil e em atividades de assistência técnica,
principalmente nos países denominados menos desenvolvidos
(KOPLAN e cols., 2009). É, portanto, um conceito do século XX.

Além disso, em 1978, durante a Conferência Internacional sobre


Cuidados Primários de Saúde, foi ratificada a Declaração de Alma Ata,
na qual estabeleceu-se que todos os governos, trabalhadores do setor
da saúde e desenvolvimento e a comunidade mundial deveriam propor
uma ação urgente para promover a saúde de todos os povos, além de
afirmar um alto nível de saúde como a meta social mundial mais im-
portante, que requer a ação conjunta de diversos outros setores sociais
e econômicos. Essa declaração representou um marco significativo na
busca da promoção da saúde (STURZA; MARTINI, 2016).
Entretanto, o conceito de saúde internacional resta ultrapassado,
pois tem sido mais correto e efetivo tratar a saúde enquanto saúde glo-
bal. Fortes e Ribeiro (2014, p. 370), a partir dos estudos de Beaglehole
e Bonita (2010), mencionam que
Uma das principais características da Saúde Global, e que a dife-
rencia das formas tradicionais da saúde internacional, é o reco-
nhecimento dos contextos regionais e locais, das diferenças polí-
ticas, econômicas, sociais e culturais entre os países e as internas,
Aline Michele Pedron Leves; Carolina Andrade Barriquello & Janaína Machado Sturza

em cada país, assim como as consequências e respostas diferen-


ciadas a eventos globais. Por exemplo, as condições de pobreza se
diferenciam internamente e entre os diversos países. Ou seja, a
Saúde Global pode tratar de problemas que transcendem as fron-
teiras nacionais, mesmo que os efeitos na saúde sejam sentidos
somente dentro de alguns países ou de regiões de países.

A saúde, até bem pouco tempo, era tema a ser tratado no âmbito
interno dos países. No entanto, com o alto desenvolvimento tecnológico
e a crescente globalização, os horizontes se ampliaram, e a sociedade
internacional passou a requerer soluções globais para seus problemas.
“Nesse sentido, o Direito Internacional [...] se legitima como instrumen-
to jurídico capaz de regular a sociedade que se desenha, assemelhando-
se a um ordenamento jurídico interno [...]” (MENEZES, 2005, p. 114),
tendente a elevar a garantia de saúde global a todos os povos.
Contudo, segundo Sarlet (1988, p. 21), “mesmo com os inegáveis
avanços no sentido da busca da máxima efetivação de direitos funda-
mentais – saúde –, [...] a verdade é que estamos muito distantes – e isso
no terceiro milênio – de ter solucionado a miríade de problemas e de-
safios que a matéria suscita”. Portanto, a importância desse trabalho,
uma vez que, embora busque-se a saúde plena, conforme assegurada
pelo OMS, esta ainda está longe de ser alcançada, devido aos riscos fre-
quentemente apresentados e avaliados em uma sociedade. Daí também
a necessidade de se cuidar da promoção da saúde em âmbito global, não
mais internacional, quanto menos, nacional, pois os riscos são generali-
zados e transcendem as fronteiras nacionais.

Considerações finais
Frente ao atual cenário global preestabelecido nas últimas déca-
das, evidencia-se a existência de um verdadeiro desafio pressuposto pela
136
137
discussão em estudo, com o intuito de conjugar o controle dos riscos e a

Constitucionalismo Contemporâneo
promoção da saúde pública. Desta forma, na contemporaneidade, deve-
mos levar em conta, em um primeiro momento, as lacunas oriundas da
civilização industrial que contribuem para a existência dos riscos e inse-
guranças globais. Em um segundo momento, torna-se necessário o apri-
moramento dos recursos teórico-metodológicos, científicos, econômicos
e políticos, de tal modo que seja eficaz a proteção do direito humano fun-
damental à saúde frente à atual sociedade de risco globalizada.
A preocupação e o senso de responsabilidade em relação à saú-
de, portanto, remontam dos primórdios da humanidade, juntamente
com os riscos que se faziam presentes naquele momento, e continuam
na atualidade, sendo que não há qualquer garantia de que algum dia
eles possam deixar de existir, pois inclusive a tecnologia tem sido um

e suas formas contemporâneas


evidente risco para a sociedade, por conta de seu desenvolvimento
acelerado. Isso se dá pelo fato de a saúde ser motivo de frequente preo-
cupação dos cidadãos, caracterizado pelo medo das doenças e, princi-
palmente, pelo medo da morte.
Certo é que, a direção para onde caminhamos torna-se uma incer-
teza. Entretanto, enquanto detentora de direitos e obrigações a serem se-
guidos por todos, a saúde deve visar garantir um certo patamar de igual-
dade de todos os cidadãos do mundo, não devendo os conflitos de poder
refletir nos direitos de igualdade dos povos. Além disso, deve-se evitar a
desigualdade baseada na economia e na gestão dos poderes e recursos
dos Estados, que precisam unir esforços para a efetivação de uma igual-
dade plena, para garantia da liberdade e da segurança mundial.
A saúde, como já dito, é entendida como um sistema baseado na
teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Portanto, daí a importância e
a conveniência de tratar o direito à saúde enquanto um Sistema Social
Global e, assim sendo, ser esse direito pensado e atingido como meio
de garantia da cidadania de todos do povo, devendo-se tentar reduzir
ou evitar os riscos existentes e vindouros neste século XXI, momento
de movimento constante, em virtude do fenômeno da globalização que
gera profundas inseguranças, medos e ameaças.
Vislumbra-se, portanto, a necessidade de se tratar a saúde em
âmbito global, por ser um meio garantidor inclusive da segurança dos
Estados, que devem assegurar, a seus cidadãos, a qualidade de bem-estar
conforme previsto no Preâmbulo da Constituição da OMS. Tendo em vis-
ta que os problemas que assolam continuamente a saúde pública atual-
mente transcendem as fronteiras nacionais, é imprescindível o acordo e
a cooperação de todos os países para a redução dos riscos – sejam eles
oriundos de catástrofes ambientais, distribuição desigual de riquezas,
desequilíbrios ecológicos, conflitos civilizatórios, crises migratórias,
dentre outros – e a promoção efetiva da saúde.

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SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E
REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA
SOCIAL: FISCALIZAÇÃO NO FACEBOOK
DE SEGURADOS QUE OBTIVERAM
CONCESSÕES DOS BENEFÍCIOS DE
AUXÍLIO-DOENÇA E APOSENTADORIA
POR INVALIDEZ

Jonas Faviero Trindade


Mestrando do PPGD – Mestrado e Doutorado em Direito
da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante
do grupo de pesquisa Observações Pragmático-Sistêmicas
dos Serviços Públicos, Coordenado pelo Professor Janriê
Rodrigues Reck. Auditor Público Externo, junto ao Tribunal
de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.
(jonas_1605@yahoo.com.br)

Notas introdutórias
A previdência social dos cidadãos brasileiros possui uma complexa
organização, que envolve a compreensão de diferentes regimes previden-
ciários, todos eles com a função de proteger o segurado de infortúnios
próprios da vida humana. No caso dos servidores públicos, titulares de
cargos efetivos, conforme se detalhará adiante, a Constituição Federal
lhes assegura a vinculação a um Regime Próprio de Previdência Social.
Pois bem. Partindo do pressuposto de que a previdência visa a
proteção contra contingências, não menos correta é a afirmação de que
a gestão previdenciária deve estar preparada e valer-se de mecanis-
mos que visem eliminar fraudes na concessão de benefícios, como, por
exemplo, a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez,
considerados benefícios por incapacidade física do segurado.
Recentemente foi noticiado que o Instituto Nacional do Seguro
Social está fiscalizando seus segurados em gozo dos benefícios previ-
denciários de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, por meio
da rede social Facebook (FOLHA DE S. PAULO, 2016).
Ainda que não tenham sido verificadas notícias acerca da utiliza-
ção desse meio de fiscalização no Regime Próprio de Previdência, é pos-
sível supor que venham a valer-se dessa forma de fiscalização também
para esta classe de segurados.
Nesse sentido, pretende-se responder ao seguinte problema: É
possível que os Regimes Próprios de Previdência fiscalizem a vida pes-
soal dos seus segurados, em gozo de auxílio-doença e aposentadoria por
invalidez, por meio do Facebook? E como deve ocorrer essa fiscalização,
levando-se em consideração os direitos e garantias fundamentais, sem
descurar das normas constitucionais afetas aos servidores públicos?
O problema proposto envolve o estudo dos direitos e garantias
fundamentais em face da denominada sociedade da informação, o que
enseja um estudo acerca das possibilidades de fiscalização estatal em
um ambiente permeado por novas tecnologias que podem ser utiliza-
das pelo Poder Público para prevenção de fraudes.
Em relação às diretrizes metodológicas, será utilizado o método
hipotético-dedutivo, por meio de pesquisas bibliográficas e jurispru-
denciais. Os métodos de pesquisa empregados envolvem pesquisas bi-
bliográficas e jurisprudenciais. Serão utilizados autores especializados
em direito previdenciário, assim como teóricos que tratam da socieda-
de informacional, com o fito de propiciar uma comunicação entre esses
ramos do conhecimento.
Na primeira parte do presente artigo será abordada a previdência
social no Brasil, com ênfase nos Regimes Próprios de Previdência Social,
a fim de ficar bem delimitado o seu caráter de jusfundamentalidade.
Pretende-se traçar, ainda, a evolução histórica da previdência dos ser-
vidores públicos, para facilitar a compreensão e a interpretação desse
Jonas Faviero Trindade

regime previdenciário.
No tópico seguinte, serão abordados aspectos e conceituações
relevantes acerca da sociedade de informação, a fim de verificar a cor-
relação entre as consequências dos aspectos tecnológicos dessa nova
configuração social em face de direitos e garantias fundamentais.
Na terceira parte, pretende-se responder ao problema desta
pesquisa, evidenciando de que forma o Estado poderia (ou não) valer-
142
143
-se de pesquisas sobre a vida pessoal dos segurados nas redes sociais,

Constitucionalismo Contemporâneo
como o Facebook.
Justifica-se a presente pesquisa, visto que a sociedade da informa-
ção está constantemente transformando e influenciando as relações ju-
rídicas, sendo pertinente abordar a temática e sua relação com o direito
previdenciário e outros direitos e garantias previstos na Constituição
da República.

Regimes próprios de previdência


social e jusfundamentalidade do
direito à previdência social

e suas formas contemporâneas


A previdência social encontra amparo no próprio texto da
Constituição Federal e possui a finalidade de garantir que o segurado
tenha sua vida pautada pela dignidade, em especial naqueles casos
em que o indivíduo se encontra em situação de doença, invalidez,
morte, acidente de trabalho, velhice, reclusão, manutenção de de-
pendentes, proteção à maternidade, em especial a gestante, proteção
ao segurado desempregado e pensão por morte do segurado, se mos-
trando como um conjunto de ações de inciativa do Poder Público que
privilegia um direito da pessoa humana indispensável (FIORILLO,
2015, p. 49).
A proteção previdenciária social se dá sob a forma securitária,
ou seja, exige uma contribuição dos segurados para o custeio do sis-
tema, de forma que estas contribuições são características inerentes à
existência da relação de seguro, sendo certo ainda que, além dos pro-
tegidos, empregadores e estados também contribuem para o sistema
(DIAS; MACÊDO, 2010).
No ordenamento jurídico pátrio identificam-se quatro regimes
de previdência, todos de matriz constitucional, a saber: Regime Geral
de Previdência Social – RGPS, Regimes Próprios de Previdência Social –
RPPS, Regimes de Previdência Social dos Militares –RGSM e Regimes
de Previdência Complementar – RPC (CAMPOS, 2013). O objeto des-
ta pesquisa é delimitado aos Regimes Próprios de Previdência Social,
destinado aos titulares de cargos efetivos, nos termos do artigo 40 da
Constituição da República (BRASIL, 1988). A previdência dos servido-
res públicos titulares de cargos efetivos é caracterizada, portanto, como
um sistema contributivo e solidário, que deve observar um equilíbrio
financeiro e atuarial, sendo que cada unidade federativa poderá insti-
tuir um regime previdenciários para seus servidores efetivos, sem des-
curar que a previdência social está prevista no rol dos direitos sociais
(BRASIL, 1988).
Cabe aqui uma sucinta digressão histórica para contextualizar a
previdência dos servidores públicos nesse sistema protetivo previsto
no ordenamento jurídico pátrio.
Em sua redação original, o texto constitucional previa a conces-
são de uma aposentadoria por tempo de serviço aos servidores públi-
cos, que não decorria de um sistema contributivo, de forma que essa
concessão não se caracterizava exatamente por conta da ausência de
contribuição, como um benefício previdenciário.
Assim sendo, a aposentadoria do servidor se caracterizava como
prêmio ao servidor público, em vista dos bons serviços prestados e do
adimplemento do requisito tempo de serviço, o que ainda ocasiona dis-
torções interpretativas (CASTRO; LAZZARI, 2012).
A Emenda Constitucional nº 3/1993 iniciou o processo de instau-
ração de um regime de previdência, ao dispor que as aposentadorias e
pensões dos servidores públicos federais seriam custeadas com recur-
sos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma
da lei. Todavia, foi a Emenda Constitucional nº 20/1998 que efetiva-
mente instituiu um regime de previdência de caráter contributivo, pau-
tado no equilíbrio econômico e atuarial, vedando a contagem de tempo
de contribuição ficto.
Assim sendo, essa Emenda criou um efetivo sistema previdenciário
para os servidores, de caráter contributivo obrigatório e extinguindo a
aposentadoria proporcional por tempo de serviço e criando a aposen-
tadoria por tempo de contribuição, vinculada a requisitos de tempo de
Jonas Faviero Trindade

contribuição e idade mínimos (DIAS; MACÊDO, 2010).


Outra significativa reforma previdenciária foi implementada pela
Emenda Constitucional nº 41/2003, dispondo sobre o caráter contribu-
tivo e solidário, mediante contribuição do Poder Público, dos servidores
ativos e inativos e dos pensionistas.
Assim sendo, é possível identificar que a previdência dos ser-
vidores públicos, por estar prevista dentro do sistema protetivo da
144
145
Constituição Federal, é um direito social fundamental. Nesse sentido,

Constitucionalismo Contemporâneo
a doutrina aponta que os direitos sociais estão submetidos ao regime
jurídico dos demais direitos fundamentais, inclusive dotados de aplica-
bilidade direta, devendo o jurista verificar sempre a aplicabilidade do
direito em harmonia com outros direitos fundamentais, sejam sociais
ou individuais, princípios e interesse público (SARLET; MITIDIERO;
MARINONI, 2016).
Nessa seara, cumpre observar que, sendo a previdência uma
política pública, positivada no rol dos direitos sociais do texto cons-
titucional, tal direito pode ser concebido como um direito de terceira
geração, até mesmo em função da solidariedade que é materializada
no sistema protetivo previdenciário atualmente, ainda que usual-
mente a doutrina o classifique como um direito de segunda geração

e suas formas contemporâneas


(MARTINS, 2014).
Ainda com objetivo de justificar a jusfundamentalidade da pre-
vidência, que junto com a saúde e a assistência social forma a tríade da
seguridade social, que possui como princípio basilar a solidariedade, é
possível verificar os seguintes argumentos: a dignidade da pessoa hu-
mana, que é ponto central da Constituição Federal, a garantia de um
mínimo existencial, assim como as normativas internacionais de direi-
tos humanos, que concebem os direitos previdenciários como direitos
humanos (SERAU JUNIOR, 2012).
Portanto, resta caracterizado que o direito à previdência é fun-
damental, o que abarca a previdência dos servidores públicos titulares
de cargos efetivos, amparados por um RPPS, de caráter contributivo, na
forma da Constituição da República.
Dentre os benefícios que um RPPS pode instituir para seus segu-
rados, encontram-se a aposentadoria por invalidez e o auxílio-doença
(BRASIL, 2009), sendo prudente que o Estado atue no sentido de coibir
e eliminar fraudes no pagamento dessas duas modalidades de conces-
sões previdenciárias.
A aposentadoria por invalidez será concedida ao servidor que so-
freu uma contingência que o impede de exercer permanentemente suas
atividades laborais, e o auxílio-doença é o benefício apropriado para o
segurado que, temporariamente, por falta de condições de saúde, apre-
senta incapacidade para o serviço (CAMPOS, 2013).
Breves considerações acerca da
sociedade da informação
A tecnologia da informação, em face de sua permanente evolu-
ção, apresenta como consequência uma comunicação que afeta toda a
sociedade, sendo que essas formas de comunicação digitais ocorrem
simultaneamente de maneira global e local, personalizada e genérica
(CASTELLS, 2013).
A informação, em nossa atual sociedade, possui valor central, de
sorte que há um inegável impacto nas relações jurídicas, a depender
do teor dos dados divulgados, podendo-se vislumbrar a existência de
um direito informacional, a partir da existência da sociedade da in-
formação. O conceito de sociedade da informação é muito amplo, vis-
to que a sociedade assim caracterizada é apta a adquirir, armazenar,
processar e distribuir as informações por meio de tecnologias como
rádio, televisão, computadores dentre outros mecanismos. A utiliza-
ção dessas tecnologias propicia a existência de novas estruturas so-
ciais, sendo possível, então, conceber que a sociedade da informação
é aquela que se distingue pelo fato de tratar a informação de forma
avançada e tecnológica (SIQUEIRA JR, 2013).
As redes são formadas por indivíduos conectados em um sistema
caracterizado pela abertura e dinamicidade, que de certa forma contri-
buem de forma instrumental para uma economia capitalista e globali-
zada (CASTELLS, 2002).
Nesta sociedade da informação, considerando o escopo desta
pesquisa, cumpre observar que a comunidade utiliza a informação, em
especial por meio de redes sociais, como é o caso do Facebook, para
compartilhamento de experiências e emoções, ou seja, a informação
não se restringe à utilização para questões práticas e cotidianas. Essa
conclusão é possível a partir da lição de Lemos (2008, p. 17), ao ex-
Jonas Faviero Trindade

plicar que há uma característica de onipresença na utilização das tec-


nologias em tela, as quais estão presentes em todas atividades práti-
cas contemporâneas, como as que envolvem a comunhão de emoções.
Desta forma, é possível a reflexão de que na sociedade informacional,
até mesmo postagens inocentes no Facebook, poderão ter reflexos na
relação jurídico-previdenciária de um indivíduo.
Esse novo paradigma tecnológico, fruto de uma evolução multidi-
mensional, permite, ainda que não seja condição única, a existência de
146
147
sociedades baseadas em redes, em todos ramos da atividade humana

Constitucionalismo Contemporâneo
(CASTELLS, 2005).
Na atual era do conhecimento, portanto, a informação é o vetor
central da produção econômica, sendo certo que as relações sociais e
jurídicas sofreram impactos com o nascimento dessa nova sociedade
baseada na informação, surgida posteriormente ao pós-modernismo
(SIQUEIRA JR, 2013).
O ciberespaço (rede), portanto, é o meio de comunicação mais di-
fundido na sociedade da informação, englobando uma infinidade de in-
formações, assim como indivíduos que alimentam esse espaço, em uma
perspectiva de comunicação interativa e comunitária (LEVY, 1999).
Cabe destacar ainda que a grande quantidade de informações

e suas formas contemporâneas


apresenta como dificuldade ao intérprete a falta de tempo para ama-
durecimento e questionamento para análise do teor da informação
(SIQUEIRA JR, 2013).
Os reflexos dessa nova formatação social, portanto, atingem o pró-
prio direito constitucional, de forma que o jurista deve estar atento a estas
transformações. Como o direito está inserido nessa sociedade informativa
e de risco, que se alia à técnica, o operador do direito deve se preocupar
com o espaço entre a técnica e o direito (CANOTILHO, 2003).
As conexões por meio da internet são permanentes, de forma
que dessas comunicações surgem as informações que são colocadas na
rede, sendo que essa ampliação do ciberespaço o torna mais universal,
colocando as pessoas em contato uma com as outras, transformando as
relações e condições sociais (LÉVY, 1999).
Segundo Limberger (2016), a teoria que estuda os direitos hu-
manos exige uma harmonização com a revolução tecnológica, a fim de
se atentar às demandas que surgem. Desta forma, a questão previden-
ciária, que se identifica com os direitos humanos e ao mesmo tempo é
um direito fundamental positivado em nosso ordenamento pátrio, exige
uma atuação estatal que esteja sintonizada com as tecnologias atual-
mente existentes.
Vive-se, hodiernamente, em uma sociedade informacional, visto
que a informação tem valor e deve ser interpretada como um fenômeno
que influi nas relações jurídicas, surgindo a necessidade de se estudar
essa sociedade no bojo da ciência jurídica (SIQUEIRA JR, 2013).
A fiscalização dos benefícios de auxílio-doença
e aposentadoria por invalidez no Facebook
Como já mencionado, os RPPS dos servidores titulares de cargos
efetivos poderão conceder benefícios como auxílio-doença e aposenta-
dorias por invalidez. Considerando a possibilidade de fraudes na conces-
são desses benefícios, o Estado poderá fiscalizar a regularidade das con-
cessões, sendo que atualmente está em voga a fiscalização por meio do
Facebook, conforme noticiado pelo Instituto Nacional do Seguro Social,
que já vem promovendo esse tipo de fiscalização no âmbito do RGPS. É
possível, portanto, que os RPPS também efetuem esse tipo de fiscalização.
A sociedade da informação e o direito, portanto, não podem se
furtar de enfrentar questões éticas, pois não pode se tornar sem va-
lor ou excessivamente tecnicista, compelindo o operador do direito
a abrir seus horizontes e compreender essa nova formatação social
(SIQUEIRA JR. 2015). Ou seja, o jurista deve atualizar seu modus ope-
randi a fim de enfrentar as problematizações das relações jurídicas,
lançando seu olhar crítico, a partir da assimilação dos conceitos ine-
rentes à sociedade informacional.
A primeira questão que poderia ser abordada, portanto, é uma
eventual violação à vida privada, positivada no artigo 5º, inciso X, da
Constituição Federal (BRASIL, 1988).
O direito à vida privada, inclusive o direito à intimidade, nem
sempre são expressamente previstos nos textos constitucionais, como
fez o constituinte brasileiro, sendo a intimidade mais restrita que a pri-
vacidade (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2016).
Há doutrina que aponta que a privacidade é um gênero, do qual a
vida privada, intimidade e honra são espécies, valendo-se da teoria das
esferas da publicidade, pessoal e da intimidade. A honra relaciona-se à
Jonas Faviero Trindade

reputação do indivíduo em seu meio social, e o direito à imagem é próprio


da pessoa retratada, restringido sua captação e divulgação sem consenti-
mento, salvo a existência de outros bens e princípios (NOVELINO, 2009).
Embora exista essa tentativa de diferenciação entre vida privada e
intimidade, na prática jurídica torna-se difícil essa distinção, haja vista a
comunicação entre as diversas esferas da vida, como a própria intimida-
de, de modo que é possível estudar o direito à vida privada de forma am-
pla, a contemplar inclusive a intimidade. Ademais, tratando novamente
148
149
da teoria das esferas, constata-se que a esfera íntima (núcleo intangível

Constitucionalismo Contemporâneo
da intimidade e privacidade), privada (que envolve questões não sigilosas
do indivíduo, que podem ser ponderadas com outros bens jurídicos) e
social (no qual se abarcam o direito à honra e à palavra, fora do âmbito
da intimidade e privacidade), ainda pode ser um referencial importante,
sendo certo que a violação à privacidade, em sentido amplo, deve ser ve-
rificada no caso concreto (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2016).
A justiça trabalhista, exemplificativamente, já decidiu no sentido
de que haveria justa causa na demissão de trabalhadora que se ausen-
tou do serviço sob o pretexto de estar doente, sendo comprovado, por
meio de divulgações no Facebook, que a empregada estava em uma reu-
nião festiva na mesma data (BRASIL, 2015a).

e suas formas contemporâneas


No Processo nº 0010599-39.2014.5.03.0053, também no âmbito
da justiça trabalhista mineira, o autor postulava que documentos extraí-
dos de seu Facebook fossem retirados do processo, visto que se relacio-
navam à sua vida privada. Não obstante, o órgão julgador compreendeu
que os dados, exatamente por estarem disponibilizados no Facebook, não
violariam intimidade, tampouco vida privada (BRASIL, 2015b).
Do exposto é possível concluir que a utilização de provas obtidas
por meio do Facebook, a depender da análise do caso concreto, não signi-
fica violação à vida privada do indivíduo, exatamente porque na condição
de usuário da rede social optou por dar publicidade àquelas informações1.
Todavia, ainda cabe uma ponderação acerca da consideração des-
sas provas obtidas por meio do Facebook. Uma foto, por exemplo, signi-
fica a captura de um momento, sendo que não necessariamente reflete
o que aparenta ser. Uma pessoa sorrindo em uma postagem em rede
social pode estar passando por um momento delicado da vida, sendo
difícil comprovar que aquele momento signifique a totalidade de sua
situação física e emocional.
Nesse sentido, como não poderia deixar de ser, o devido proces-
so legal, contraditório e ampla defesa devem ser respeitados, como em
qualquer outra forma de processo.


1
Ademais, cumpre observar que o Facebook oferece mecanismos de privacidade para
que apenas os contatos do usuários visualizem postagens e imagens, de sorte que, ao
torná-las pública para qualquer usuário, inegavelmente o usuário abriu mão de qualquer
privacidade acerca daquelas informações.
O princípio do devido processo legal assinala que a decisão não
deve ser apenas regular, mas a partir de uma concepção substancial, exi-
ge que exista um processo justo e adequado, atendendo a princípios de
justiça, de sorte que ele deve ser considerado em processos judiciais e ad-
ministrativos, sendo decorrente desses princípios o contraditório e a am-
pla defesa; o primeiro relacionado à ciência bilateral dos atos do processo
com a possibilidade de contrariá-los, ou seja, partindo de uma ideia de
informação e reação, e o segundo, o princípio da ampla defesa, decorren-
te do contraditório, significando que o indivíduo pode se valer de todos
meios legais e moralmente admitidos para sua defesa (NOVELINO, 2009).
O princípio do contraditório está relacionado ao próprio direito
de se manifestar acerca de documentos, fatos ou argumentos da parte
contrária, sendo que a ampla defesa permite que o segurado possa pro-
duzir provas para defender seu direito, a partir dos meios e recursos
inerentes (MAUSS; TRICHER, 2015).
Ademais, no âmbito do RGPS, a Instrução Normativa nº 77/2015
já determina que o Instituto Nacional do Seguro Social deve respeitar o
contraditório e a ampla defesa, quando houver cancelamento de bene-
fícios (BRASIL, 2015).
Superada a não violabilidade da vida privada, a depender da aná-
lise do caso concreto, assim como a necessária vinculação ao devido
processo legal e seus consectários lógicos do contraditório e da ampla
defesa, cabe analisar as normas constitucionais próprias dos servidores
públicos e da Administração Pública.
Conforme já visto neste artigo, a consagração de um regime de
previdência contributivo afastou o caráter de benesse dos benefícios
pagos aos servidores, ganhando esses benefícios o status de previden-
ciários, em face de suas contribuições vertidas ao sistema protetivo.
Dessa forma, existe uma bipartição na relação jurídica entre o
Jonas Faviero Trindade

Estado e seus servidores: uma relação estatutária, relacionada à grande


parte de seus direitos e deveres, e outra, previdenciária, em face da re-
lação de seguro do servidor-contribuinte com seu respectivo regime de
previdência (MARTINS, 2014).
O artigo 37, caput, da Constituição Federal consagrou os princí-
pios norteadores da Administração Pública (legalidade, impessoalida-
de, moralidade, publicidade e eficiência). O RPPS, exatamente por fazer
parte da estrutura estatal, não foge à obediência desses princípios.
150
151
A grande questão, portanto, é harmonizar a interpretação dos

Constitucionalismo Contemporâneo
dispositivos constitucionais no caso concreto, diferenciando a relação
estatutária (servidor e Estado) da relação securitária (contribuinte e
Estado). Portanto, se um contribuinte comete fraude para receber um
benefício previdenciário, a Administração Pública, sob o manto dos
princípios previstos no artigo 37 da Constituição Federal, poderá fis-
calizar e revogar a concessão, em vista da relação jurídica de seguro
existente e da verificação da inexistência de requisitos para concessão
do benefício. Inclusive poderá punir o servidor, agora já sob o aspecto
da relação funcional-estatutária. Contudo, direitos previdenciários já
incorporados ao patrimônio jurídico do segurado não podem ser supri-
midos em vista da relação securitária.
A partir da Emenda Constitucional nº 20/1998, os regimes de

e suas formas contemporâneas


previdência dos servidores assumiram a feição de uma poupança dos
servidores, de forma que a concessão de benefícios para os quais os ser-
vidores contribuíram e já preencheram os requisitos não dependem de
benesse estatal (MARTINS, 2014).
Exemplificando: um servidor em gozo de aposentadoria por invali-
dez com proventos integrais pode ter sua concessão revogada em virtude
da verificação de fraude à legislação previdenciária, comprovada e fisca-
lizada por meio de fotos divulgadas no Facebook, e, inclusive, ser punido
por isso. Não obstante, se esse mesmo servidor, em virtude de suas con-
tribuições, preencher os requisitos para uma aposentadoria proporcio-
nal, não poderá ter negado esse benefício, sob pena de enriquecimento
ilícito do Estado e da descaracterização da relação de seguro existente.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, já decidiu no
sentido de que a aposentadoria do servidor público não representa
mais um prêmio ao servidor, de forma que essa relação se caracteriza
como um contrato de seguro, de caráter retributivo, em consequência
do binômio custeio-benefício (SÃO PAULO, 2012).
Assim sendo, o servidor público que comete fraude à legislação
previdenciária, em virtude dos princípios que regem a Administração
Pública, em especial o princípio da moralidade, poderá perder seu
cargo, nos termos do artigo 41, § 1º, incisos I e II, da Constituição da
República, sendo prudente, contudo, verificar as implicações na relação
jurídica securitária entre o servidor-contribuinte e o regime de previ-
dência ao qual está vinculado.
Notas finais
Nesta pesquisa, o objetivo foi verificar a possibilidade de fiscali-
zação, por meio do Facebook, de segurados de RPPS em gozo de benefí-
cios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, a fim de identificar
possíveis provas a serem utilizadas em eventual cassação de benefício.
Essa análise, portanto, está estritamente relacionada com a socieda-
de da informação, que se intensifica no atual estágio de nossa sociedade.
Buscou-se, portanto, conjecturar uma fiscalização que se coadunasse
com disposições do texto constitucional de 1988.
Primeiramente, constatou-se que a previdência brasileira se qua-
lifica como um direito social fundamental, situação que exige, portanto,
um zelo por parte do Estado na gestão dos recursos que estão sob sua
confiança, o que, por si só, já exige a utilização de mecanismos de fiscali-
zação que se harmonizem com a sociedade informacional que demanda
respostas rápidas e tecnológicas.
No caso dos servidores públicos, a Constituição Federal prevê a
instituição de um regime próprio, sendo pertinente a compreensão da
evolução constitucional da previdência dos servidores públicos, em es-
pecial a partir da consagração de um regime efetivamente previdenciá-
rio e contributivo.
O indivíduo que posta informações sobre sua vida pessoal no
Facebook, como se demonstrou, a partir de uma análise do caso con-
creto, poderá ter essas informações utilizadas para verificação de con-
dutas que não se amoldam com o comportamento de um segurado pre-
videnciário que está em situação de risco com sua saúde, em gozo de
auxílio-doença ou de aposentadoria por invalidez. Essa publicização de
informações em redes sociais afasta, em tese, violações à privacidade.
Contudo, ressaltou-se a necessidade de obediência ao princípio
Jonas Faviero Trindade

do devido processo legal e, como necessária consequência, dos princí-


pios do contraditório e da ampla defesa. Isso, até mesmo ao se conside-
rar que uma foto ou postagem em redes sociais não necessariamente
representa uma situação efetivamente vivenciada pelo usuário.
Considerando que os segurados dos RPPS são servidores públi-
cos, titulares de cargo efetivo, verificou-se que os princípios constitu-
cionais referentes aos servidores públicos e à Administração Pública
não podem ser desconsiderados na análise do caso concreto. Contudo,
152
153
há de se analisar, em cada situação, que existe uma relação jurídico-es-

Constitucionalismo Contemporâneo
tatutária entre servidor público e Estado, e uma relação de seguro pre-
videnciário entre o segurado e o RPPS, sendo um desafio ao operador
do direito a identificação da relação jurídica que deve ser observada em
cada situação problemática.
A sociedade informacional, portanto, demanda que o Estado,
em sua atividade de gestão de benefícios previdenciários, esteja aten-
to às formas de fiscalização na concessão dos benefícios, sem descu-
rar de princípios e direitos constitucionais. O advento da sociedade da
informação exige, nesse sentido, uma nova compreensão das relações
jurídicas e uma constante interpretação dos direitos e garantias fun-
damentais, a fim de que a Administração Pública não fique vulnerável
a fraudes, quando existem mecanismos à disposição para identificação

e suas formas contemporâneas


de concessões indevidas.
De todo exposto, conclui-se que é possível que os RRPS fiscalizem
seus segurados por meio do Facebook, desde que respeitado o princípio
do devido processo legal, sem descurar das considerações já aventadas.

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O ATIVISMO JUDICIAL E A
PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL

Julia Gonçalves Quintana


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito –
Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do
Sul – UNISC. Graduada em Direito pela Universidade Católica
de Pelotas – UCPEL. Integrante do grupo de pesquisas
“Intersecções Jurídicas entre o Público e o Privado” coorde-
nado pelo professor Pós-Doutor Jorge Renato dos Reis, vin-
culado ao programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado
e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Advogada. (juliagq@hotmail.com)

Leopoldo Ayres de Vasconcelos Neto


Mestrando em Direitos Sociais e Políticas Públicas pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e
Doutorado) da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC
(Capes 5), com Bolsa Capes. Especialista em Direito Penal e
Processo Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. Membro
do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional Aberta:
uma proposta de discussão da legitimidade e dos limites
da jurisdição constitucional – instrumentos teóricos e prá-
ticos”, coordenado pela Professora Pós-Drª Mônia Clarissa
Hennig Leal, vinculado e financiado pelo CNPq, e à Academia
Brasileira de Direito Constitucional ABDConst, desenvol-
vido junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em
Políticas Públicas – CIEPPP (financiado pelo FINEP), ligado
ao PPGD da UNISC. Advogado. (lacvasconceloss@gmail.com)

Introdução
Os direitos sociais foram incluídos na Constituição de 1988 como
direitos fundamentais. Esse fato representou um avanço na busca
pela igualdade social, que constitui um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil.
No entanto, para que esses direitos sejam efetivamente con-
cretizados, faz-se necessário um esforço conjunto de vários setores
da sociedade, a fim de que haja um eficaz planejamento acerca da
conceituação desses direitos, suas prioridades, o orçamento neces-
sário para sua efetivação, bem como as melhores políticas públicas
capazes de atendê-los.
Atuação simultânea dos poderes públicos é essencial, haja vista
o caráter prestacional positivo desses direitos, que devem ser atendi-
dos pelo Estado, o qual deve fornecer bens e serviços para promoção
da saúde, educação, assistência aos desamparados, moradia, dentre
outros direitos.
Quando se fala em disponibilidade de recursos financeiros es-
tatais, alguns autores sustentam que poderia ser aplicada a teoria da
“reserva do possível”, segundo a qual a efetivação dos direitos sociais
estaria limitada às possibilidades orçamentárias do Estado. No entanto,
Vasconcelos Neto

existem fortes críticas à aplicação dessa teoria quando se fala em pres-


tações relacionadas ao “mínimo existencial”.
Nesse contexto, passaremos a analisar os conceitos de ativismo
judicial e judicialização da política para entender o papel desses ins-
titutos na efetivação dos direitos sociais por parte do Poder Judiciário
diante da inércia dos Poderes Executivo e Legislativo.
de
Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres

Direitos fundamentais
Diversos são os autores que tratam acerca da conceituação e
delimitação do termo direitos fundamentais. Assim, objetivando dar
início a este estudo, transcrevemos o entendimento de Sarlet (2012,
p. 85), para o qual os direitos em questão afiguram-se como posições
jurídicas relativas a todas as pessoas, sendo que, do ponto de vista do
direito constitucional positivo, devido ao seu conteúdo e importância,
os direitos fundamentais são aqueles que foram integrados junto ao
seio da Constituição.
Os direitos fundamentais constituem o alicerce de uma sociedade
mais justa. Isso porque, por meio deles, possibilita-se que as diferen-
ças entre os cidadãos não sejam tão alarmantes. Denominam-se funda-
mentais por serem essenciais a uma vida digna, essencialidade esta que
muda de acordo com a sociedade em que se encontram.
158
159
Assim, tem-se que “a ampliação e a transformação dos direitos

Constitucionalismo Contemporâneo
fundamentais do homem no evolver histórico dificulta definir-lhes um
conceito sintético e preciso” (SILVA, 2006, p. 175).
Nesse sentido, encontramos na frase do autor fundamentos para
afirmar que os direitos fundamentais não são estáticos. Tratam-se de
direitos relativos à pessoa humana e por isso se modificam de acordo
com seu momento histórico e sua condição.
Inúmeras são as expressões utilizadas ao longo da história e em
cada momento para designá-los. Assim, utilizaremos, para fins de con-
ceituação, a expressão direitos fundamentais do homem. Nesse sentido,
José Afonso da Silva (2006, p. 178) entende que:

Direitos fundamentais do homem constituem a expressão mais

e suas formas contemporâneas


adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios
que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia po-
lítica de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar,
no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições
que eles concretizam em garantia de uma convivência digna, li-
vre, e igual para todas as pessoas. No qualificativo fundamental
acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as
quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes,
nem mesmo sobrevive, fundamentais do homem no sentido que
a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconheci-
dos, mas concreto e materialmente efetivados.

Fica evidente que os direitos fundamentais são a base de uma so-


ciedade justa e civilizada, na medida em que uma sociedade onde todos
veem supridas suas necessidades básicas possibilita maior igualdade
entre seus cidadãos. Moraes (2008, p. 60) nos ensina que:

Na visão Ocidental de democracia, governo pelo povo e limitação


do poder estão indissoluvelmente combinados. O povo escolhe
seus representantes, que, agindo como mandatários, decidem os
destinos da nação. O poder delegado pelo povo a seus representan-
tes, porém, não é absoluto, conhecendo várias limitações, inclusive
com a previsão de direitos e garantias individuais e coletivas, do
cidadão relativamente aos demais cidadãos e ao próprio Estado.

Assim lembra-nos Moraes (2008, p. 60) sobre os dizeres de


Canotilho:
A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla pers-
pectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de
competência negativa para os poderes públicos, proibindo fun-
damentalmente a ingerência destes na esfera jurídica individual;
(2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer
positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de
exigir omissão dos poderes públicos de forma a evitar agressões
lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).

Pela leitura de ambas as definições de direitos fundamentais como


direitos de defesa, compreendemos ainda mais a sua essencialidade. São
eles os responsáveis por uma vida digna, por nossa estrutura básica, e
dessa forma é através deles que nos tornamos livres e aptos a exercer
nossa participação na democracia. É através da escolha consciente, pos-
sibilitada pelo maior discernimento e liberdade que uma vida digna pode
possibilitar, que poderemos ver satisfeito o ideal de um poder público
Vasconcelos Neto

que não extrapole seu poder em detrimento dos direitos fundamentais.


Sobre a natureza e a eficácia das normas sobre direitos funda-
mentais, Silva (2006, p. 179) nos ensina:

Desde que, no plano interno, assumiram o caráter concreto de


normas positivas constitucionais, não tem cabimento retomar a
velha disputa sobre seu valor jurídico, que sua previsão em decla-
de

rações ou em preâmbulos das Constituições francesas suscitava.


Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres

Sua natureza passara a ser constitucional, o que já era uma po-


sição expressa no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, a ponto de, segundo este, sua adoção ser
um dos elementos essenciais do próprio conceito de constituição.

Resta-nos claro que as normas que versam sobre direitos e ga-


rantias fundamentais não possuem mera natureza constitucional, mas
sim servem como fundamento essencial para a construção de nossa
Constituição, consoante assevera José Afonso da Silva (2006, p. 180):

A eficácia e a aplicabilidade das normas que contêm os direitos


fundamentais dependem muito de seu enunciado, pois se trata
de assunto que está em função do direito positivo. A Constituição
é expressa sobre o assunto, quando estatui que: as normas defi-
nidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação ime-
diata. Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque
a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior à apli-
160
161
cabilidade de algumas normas definidoras dos direitos sociais,

Constitucionalismo Contemporâneo
enquadrados dentre os fundamentais. Por regra, as normas que
consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e indivi-
duais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto
os que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo
também na Constituição vigente.

Nesse diapasão, nos termos do artigo 5º, § 1º, as normas defi-


nidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata,
sendo de suma importância observar que a referida regra comporta ex-
ceções trazidas pelo constituinte originário.

Os direitos fundamentais no

e suas formas contemporâneas


Estado Democrático de Direito
Após a II Guerra Mundial, diante de todas as atrocidades come-
tidas, é possível observar o fortalecimento da ideia dos direitos funda-
mentais e da proteção da dignidade humana. Para tanto, a Constituição
assume uma função eminentemente principiológica, e de textura aber-
ta, havendo uma mudança na concepção do papel da Constituição e dos
próprios direitos nela contidos.
Se, num primeiro momento, a implementação das políticas pú-
blicas ficava à mercê da boa vontade dos poderes públicos, de acordo
com o seu interesse e convencimento, no Estado Democrático de Direito
têm-se uma força normativa e vinculante da Constituição e dos direitos
nela previstos, que passam a ser exigíveis. Nesse sentido, assevera Leal
(2007, p. 31):

Pode-se se asseverar, nesse sentido, que a inovação que se


verifica com relação à Constituição neste período se dá espe-
cialmente no âmbito de sua extensão, uma vez que os direitos
clássicos de defesa somente atingiam uma parcela da ordem ju-
rídica. A qualificação material dos direitos fundamentais, como
normas objetivas, faz com que esses tenham efeito em todo o
domínio do direito, razão pela qual a Constituição se transforma
em ordem jurídica fundamental desse todo. Dito de outro modo,
toda a ordem jurídica passa a ser abarcada pela Constituição em
suas bases principiológicas.
Nesse contexto, é possível observar, através do estudo do direito
constitucional moderno, que vivemos um momento crucial do ponto de
vista das dinâmicas sociais, posto que nunca antes na história tinha-se
à disposição de todos os cidadãos uma gama tão ampla de direitos. Essa
ampliação a todos os cidadãos dos direitos e garantias fundamentais
possui um impacto direto nas Constituições contemporâneas, abran-
gendo conteúdos não apenas programáticos, como valores que per-
meiam todos os poderes do Estado.
O Poder Judiciário ganha espaço através do exercício do contro-
le de constitucionalidade das leis, uma vez que este novo formato de
Constituição conta com uma força normativa. Assim, a compreensão do
indivíduo passa a ter uma perspectiva solidária, ou seja, a sua condição
de sujeito vai além da esfera privada, bem diferente do sistema liberal
que priorizava o interesse individual. Desse modo, aspectos valorativos
e comunitários se revestem de um status jurídico, impositivo, transpor-
Vasconcelos Neto

tados para dentro das Constituições, que funcionam como diretrizes


para a vida em comum (LEAL, 2007).
Diante disso, os direitos sociais tiveram como principais mar-
cos de sua evolução a Constituição do México de 1917, a Revolução
da Rússia de 1918 e a Constituição de Weimar da Alemanha em 1919,
vindo a serem garantidos, aos cidadãos, os direitos sociais ou mínimos
existenciais, para que pudessem viver com dignidade.
de
Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres

A reserva do possível
A reserva do possível teve origem no julgamento do caso “nu-
merus clausus” pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha,
julgado em 1972. Discutia-se o acesso ao curso de medicina e a com-
patibilidade de certas regras legais estaduais que restringiam esse
acesso ao ensino superior (numerus clausus), com a Lei Fundamental,
que garantia a liberdade de escolha da profissão. O Tribunal decidiu
que a prestação exigida do Estado deve corresponder ao que o indi-
víduo pode razoavelmente exigir da sociedade, e entendeu que não
seria razoável impor ao Estado a obrigação de acesso a todos os que
pretendessem cursar medicina. A reserva do possível nesse caso,
portanto, relacionou-se à exigência de prestações dentro do limite
da razoabilidade, não da escassez de recursos, como ocorre no Brasil
(OLSEN, 2006).
162
163
Andreas J. Krell (2002) critica a importação da reserva do possí-

Constitucionalismo Contemporâneo
vel pelo sistema brasileiro, ressaltando a grande diferença socioeconô-
mica entre os dois países:

Devemos nos lembrar que os integrantes do sistema jurídico ale-


mão não desenvolveram seus posicionamentos para com os di-
reitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões
de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos paí-
ses centrais – não há um grande contingente de pessoas que não
acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não há
necessidade de organizar a produção e distribuição da alimenta-
ção básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou
morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola;
não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o
montante pecuniário de assistência social que recebem, etc.

e suas formas contemporâneas


Neste contexto, é possível afirmar que esta teoria foi recepciona-
da não só pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas por vários outros
países. Ocorre que no Brasil tal teoria vendo sendo utilizada como forma
de justificar a ineficiência do Estado. Desse modo, a reserva do possível,
que seria na sua essência um ponto de equilíbrio entre a efetivação dos
direitos fundamentais e a razoabilidade, passa a exercer um papel de
limitador da implementação desses direitos, condicionando a efetiva-
ção desses direitos à existência de receitas no orçamento público, miti-
gando, assim, esses direitos fundamentais prestacionais, chegando a ser
chamada também de reserva do financeiramente possível.

A relação da reserva do possível


com o mínimo existencial
No entendimento de diversos autores, a utilização da reserva do
possível deverá ser limitada quando se estiver diante de direitos rela-
cionados ao mínimo existencial. Nesse sentido, Ricardo Lobo Torres
(2008) afirma que a proteção do mínimo existencial não se sujeita à
reserva do possível, já que esses direitos se encontram nas garantias
institucionais de liberdade, na estrutura dos serviços públicos essen-
ciais e na organização de estabelecimentos públicos. Conforme o autor:

A proteção positiva do mínimo existencial não se encontra sob a


reserva do possível, pois sua fruição não depende do orçamento
nem de políticas públicas, ao contrário do que acontece com os
direitos sociais. Em outras palavras, o Judiciário pode determinar
a entrega das prestações positivas, eis que tais direitos fundamen-
tais não se encontram sob a discricionariedade da Administração
ou do Legislativo, mas se compreendem nas garantias institucio-
nais da liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e
na organização de estabelecimentos públicos (hospitais, clínicas,
escolas primárias, etc.). (TORRES, 2008, p. 81-82)

Ana Paula de Barcellos (2002) adota uma posição mais radical


ainda acerca do mínimo existencial. Para ela, o mínimo existencial cons-
titui o conteúdo mais essencial do princípio da dignidade da pessoa
humana, e, por esta razão, deve ser aplicado em sua integridade, não
devendo haver margem à ponderação. Em suas palavras:

[...] uma fração do princípio da dignidade da pessoa humana, seu


conteúdo mais essencial, está contida naquela esfera do consenso
Vasconcelos Neto

mínimo assegurada pela Constituição e transformada em matéria


jurídica. É precisamente aqui que reside a eficácia jurídica positiva
ou simétrica e o caráter de regra do princípio constitucional. Ou
seja: a não realização dos efeitos compreendidos nesse mínimo
constitui uma violação ao princípio constitucional, no tradicional
esquema do “tudo ou nada”, podendo-se exigir judicialmente a
prestação equivalente. Não é possível ponderar um princípio, es-
de

pecialmente o da dignidade da pessoa humana, de forma irrestri-


Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres

ta, a ponto de não sobrar coisa alguma que lhe confira substância;
também a ponderação tem limites. (BARCELLOS, 2002, p. 252)

Assim, Barcellos entende que a reserva do possível pode se re-


lacionar com o mínimo existencial, entretanto, devem ser atendidas
primeiramente as demandas relacionadas a esse mínimo, para que, em
seguida, seja possível a ponderação acerca da aplicação dos recursos
públicos remanescentes:

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988


em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção
do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar
as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da pro-
teção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de
existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignida-
de (o mínimo existencial) estar-se-ão estabelecendo exatamente
os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atin-
164
165
gi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos rema-

Constitucionalismo Contemporâneo
nescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo
existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de priori-
dades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a
reserva do possível. (BARCELLOS, 2002, p. 252)

Corroborando o entendimento acima citado, Ingo Sarlet e Mariana


Figueiredo (2008) entendem que, quando se trata de direitos relaciona-
dos ao mínimo existencial, a reserva do possível não deve, por si só, ser
fundamento para impedir a satisfação do direito, senão vejamos:

[...] em matéria de tutela do mínimo existencial [...] há que reco-


nhecer um direito subjetivo definitivo a prestações e uma cogen-
te tutela defensiva, de tal sorte que, em regra, razões vinculadas à

e suas formas contemporâneas


reserva do possível não devem prevalecer como argumento a, por
si só, afastar a satisfação do direitos e exigência do cumprimento
dos deveres, tanto conexos quanto autônomos, já que nem o prin-
cípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária nem o
da separação dos poderes assumem feições absolutas. (SARLET;
FIGUEIREDO, 2008, p. 42-43)

Contudo, os próprios autores ressaltam que não são irrelevantes


as questões relacionadas à reserva do possível, de forma que sempre
deve ser aferida no caso concreto, mediante produção de prova subme-
tida ao contraditório, a real necessidade da prestação pleiteada e sua
efetiva relação com o mínimo existencial.

Ativismo versus judicialização da política


A noção de ativismo judicial relaciona-se à maior participação do
Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, e possui
como consequência a interferência na esfera de competências dos ou-
tros Poderes. Nesse sentido, é comum a confusão entre os conceitos de
ativismo judicial e judicialização da política, sendo eles muitas vezes
utilizados como sinônimos, porém é importante entender que se tratam
de fenômenos absolutamente distintos, sendo indispensável suas cor-
retas definições para o melhor entendimento de suas consequências.
Tanto o ativismo quanto a judicialização estão relacionados a um
processo de ampliação do espaço decisório do Poder Judiciário em rela-
ção à esfera de competência exercida pelos demais poderes em virtude
de suas atuações insuficientes.
Luís Roberto Barroso (2008) menciona que o ativismo e a judi-
cialização “são primos”, ou seja, embora sejam fenômenos próximos,
são distintos um do outro, sendo que o primeiro expressa uma pos-
tura do interprete, “um modo proativo e expansivo de interpretar a
Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para
ir além do legislador ordinário.”. Já a judicialização deriva da vontade do
constituinte, porquanto, “decorre do modelo de Constituição analítica e
do sistema de controle de constitucionalidade abrangente adotados no
Brasil, que permitem que discussões de largo alcance político e moral
sejam trazidas sob a forma de ações judiciais.”.
Nesse diapasão, é possível afirmar que o ativismo judicial possui
como característica a interferência do Poder Judiciário nos demais pode-
res constituídos, no intuito de intensificar os valores e os objetivos cons-
Vasconcelos Neto

titucionais, revelando-se como ampliação da competência jurisdicional.


Luís Roberto Barroso (2008, online) elucida que o ativismo ju-
dicial “é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de
interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance [...],”
estando relacionado a uma atuação mais extensa e intensa do Poder
Judiciário na efetivação dos valores e fins constitucionais, com maior
de

ingerência no espaço de atuação dos Poderes Legislativos e Executivo.


Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres

Esclarece, ainda, que “normalmente ele se instala em situações de re-


tração do Poder Legislativo, de certo descolamento entre a classe po-
lítica e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam
atendidas de maneira efetiva.”. Acrescenta que o ativismo se manifesta
por diferentes condutas, tais como:

(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressa-


mente contempladas em seu texto e independentemente de ma-
nifestação do legislador ordinário;
(ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos
emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que
os de patente e ostensiva violação da Constituição;
(iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,
notadamente em matéria de políticas públicas.

166
167
Nota-se que ativismo não se trata simplesmente de uma interpre-

Constitucionalismo Contemporâneo
tação livre do magistrado ao julgar determinado caso concreto, mas sim
de uma postura não ortodoxa de aplicação do direito positivo, baseada
sobretudo na força normativa dos princípios constitucionais.
Já a judicialização da política é mais ampla, porquanto é contin-
gencial, decorrendo da omissão dos Poderes Executivo e Legislativo
na implementação dos direitos fundamentais sociais. Ainda sobre a
Judicialização da Política, Barroso (2008) leciona que “judicialização
significa que algumas questões de larga repercussão política ou social
estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário e não pelas ins-
tâncias políticas tradicionais [...]”. Esclarece também que a judicializa-
ção abrange uma transferência de poder para juízes e tribunais, com
alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de

e suas formas contemporâneas


participação da sociedade.
Para Luiz Flávio Gomes (2009), a “judicialização nada mais ex-
pressa que o acesso ao Judiciário, que é permitido a todos, contra qual-
quer tipo de lesão ou ameaça a um direito, sendo um fenômeno que
decorre do nosso modelo de Estado e de Direito.”.
Notadamente, há uma dificuldade hermenêutica de interpreta-
ção do termo ativismo judicial, principalmente para se verificar quando
uma decisão judicial pode ou não ser considerada como tal, pois se trata
de atividade cognitiva. A questão é complexa, já que a expressão “ativis-
mo judicial” é ampla e muito depende da hermenêutica jurídica.
Mônia Clarissa Hennig Leal (2007, p. 31-32), ao abordar o tema,
descreve a difícil tarefa de identificação de uma decisão ativista:

Ainda que se estabeleçam parâmetros a esta atuação (como, por


exemplo, que os Tribunais – Constitucionais e Internacionais,
respectivamente – não podem invadir as competências pró-
prias dos demais Poderes ou a soberania dos Estados), também
os limites e as competências de cada um dos Poderes, assim
como a noção de soberania, são conceitos abertos, carentes de
interpretação. Além disso, a extensão de até onde podem ir os
Tribunais depende e varia de acordo com a própria concepção
de interpretação adotada.
Apesar da complexidade, resta claro que o ativismo judicial e a ju-
dicialização da política não são sinônimos, de modo que não devem ser
confundidos um com outro, haja vista que o ativismo se mostra como
uma decisão política, tendo o juiz como protagonista; já a judicialização
da política parte do pressuposto que, quando o Poder Judiciário encontra
uma lacuna na atuação do Poder Legislativo, analisa, decide e julga, de
acordo com os critérios adotados pela própria Constituição.

O papel do poder judiciário na garantia


de efetividade aos direitos sociais
O Poder Legislativo possui como principal atribuição elaborar e
aprovar projetos de lei, possuindo, dessa forma, papel essencial na efeti-
vação dos direitos sociais. Por outro lado, o Poder Executivo possui o de-
ver de instituir políticas públicas que tenham como objeto, em linhas ge-
Vasconcelos Neto

rais, a efetivação dos direitos sociais instituídos na Constituição Federal.


Ocorre que, atualmente, a inércia de ambos os poderes estatais
mencionados acaba por impedir, por vezes, que os cidadãos possam ver
satisfeitos na sua plenitude os direitos sociais garantidos com o intuito
de possibilitar uma vida digna a eles.
É possível observar que é comum o descaso desses poderes quan-
de

do se fala em direitos sociais. O Legislativo frequentemente não produz


Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres

e tampouco aprova leis que visem concretizar tais direitos. Por outro
lado, o Executivo, além de descumprir o seu papel de instituição de po-
líticas públicas concretizadoras, se abstém alegando não possuir recur-
sos suficientes para atender à demanda.
Um exemplo disso é alegação de insuficiência de verbas para a
saúde, motivo pelo qual inúmeras pessoas morrem todos os anos devi-
do à falta de leitos em hospitais, remédios, atendimentos especializados
etc., não se podendo esquecer também de outros direitos sociais que
sofrem com inoperância e ineficiência do Estado, tais como moradia,
alimentação, etc.
Nesse contexto de falhas como as citadas acima é que surgem
diversas indagações e sugestões acerca da problemática que envolve a
concretização dos direitos sociais. Se, por um lado, existe um procedi-
mento previsto constitucionalmente, este não parece estar dando conta
sozinho de todas as necessidades dos cidadãos.
168
169
Nessa seara, a intervenção do Poder Judiciário é justificada no in-

Constitucionalismo Contemporâneo
tuito de garantir a efetividade dos direitos sociais, especialmente, o direi-
to à saúde, que constitui um bem essencial à vida e à integridade humana,
e, como tal, é objeto da tutela no seu aspecto de direito fundamental.
É certo que a saúde também é dever fundamental, nos termos do
artigo 196 da Constituição Federal, que preceitua a obrigação estatal
de proteção e promoção desse direito. Na esteira desse entendimento
Andreas J. Krell (2002, p. 17) destaca:

Constitui-se um paradoxo que o Brasil esteja entre os dez países


com a maior economia do mundo e possua uma Constituição ex-
tremamente avançada no que diz respeito aos direitos sociais, [...]
hoje, mais do que 75 milhões de pessoas não encontram um aten-
dimento de mínima qualidade nos serviços públicos de saúde, de

e suas formas contemporâneas


assistência social, vive em condições precárias de habitação, ali-
menta-se mal ou passa fome.

Embora tenhamos uma Constituição bem elaborada e que prevê


diversos direitos e garantias fundamentais, ainda é necessário que se
aprimorem seus mecanismos de concretização desses direitos.
Sobre isso, Airton Ribeiro da Silva e Fabrício Pinto Weiblen (2007,
p. 52) asseveram que,

Uma vez não efetivados os direitos fundamentais consagrados


na Carta Política pelos poderes ditos legitimados, quais sejam,
Poderes Executivo e Legislativo, cabe ao Judiciário intervir, a fim
de concretizar os ditames insculpidos na Constituição Federal,
através de prestações positivas. Assim, ao dispor sobre as pres-
tações estatais, o Judiciário apenas determina a realização prá-
tica da norma constitucional, não permitindo que esta se torne
mera diretriz abstrata e inaplicável, ato para o qual é competen-
te, uma vez que, no Estado de Direito, o Estado soberano deve
submeter-se à própria justiça que institui. Noutras palavras, não
é papel do Judiciário criar novas medidas referentes a direitos
sociais, o que consistiria em violação ao princípio da Separação
dos Poderes, mas sim trazer uma real efetividade às políticas
públicas já existentes, de modo a não permitir que um apego
excessivo a formalidades acabe por obstar a concretização das
metas principais do Estado Democrático de Direito.
Assim, não parece razoável que o Poder Judiciário, ao ser provo-
cado a decidir sobre a ineficácia dos outros poderes em relação aos di-
retos sociais, venha a se abster de sua incumbência, e apenas assista
aos descasos cometidos pelos Poderes Legislativo e Executivo. Nesse
sentido, a intervenção do Poder Judiciário na atuação desses poderes é
legitimada e se justifica pela necessidade de que sejam asseguradas as
garantias previstas no texto constitucional.
Assim sendo, não há que se falar em invasão da esfera de atuação dos
outros poderes, visto que o Judiciário estará apenas impondo ao Estado o
cumprimento dos direitos sociais previstos na Constituição Federal.
Nesse diapasão, Luiz Werneck Viana (apud LIMA, 2007, p. 230)
menciona: “Visa o STF efetivar os grandes princípios programáticos da
Constituição e não criar uma instância para solucionar pretensões das
diferentes corporações sobre questões de Direito Administrativo”.
Finalizando o presente estudo, cabe salientar o posicionamento
Vasconcelos Neto

do STF quanto à consagração dos direitos fundamentais sociais. Juliano


Ralo Monteiro (2010, p. 165) traz à baila o voto do Ministro Celso de
Mello na ADPF nº 45; in verbis:

Implementar políticas públicas não está entre as atribuições do


Supremo nem do Poder Judiciário como um todo. Mas é possível
atribuir essa incumbência aos ministros, desembargadores e ju-
de

ízes quando o Legislativo e o Executivo deixam de cumprir seus


Julia Gonçalves Quintana & Leopoldo Ayres

papéis, colocando em risco os direitos individuais e coletivos pre-


visto na Constituição Federal.

Para o Ministro Celso de Mello (2008):

O Supremo não se curva a ninguém nem tolera a prepotência dos


governantes nem admite os excessos e abusos que emanam de
qualquer esfera dos três Poderes da República, desempenhando
as suas funções institucionais de modo compatível com os estri-
tos limites que lhe traçou a própria Constituição.

O ativismo judicial, portanto, pode ser considerado um importan-


te protagonista na luta contra as desigualdades sociais, à medida que
tende a solucionar diversos problemas sociais relacionados à problemá-
tica de aplicação dos direitos fundamentais, por meio da interpretação
da Constituição Federal em situações de omissão dos demais Poderes,
cumprindo, assim, a função da própria Constituição.
170
171
Conclusão

Constitucionalismo Contemporâneo
A efetivação dos direitos sociais na sociedade brasileira é um
tema delicado, mas necessita ser enfrentado e discutido devido à
sua essencialidade para que realmente o Brasil seja um País que zela
pela dignidade de seu povo. Para que se logre êxito na concretização
desses direitos, muitos são os obstáculos a serem superados. Dessa
forma, buscou-se trazer uma reflexão acerca do tema, no sentido das
alternativas disponíveis ante à ineficiência dos Poderes Executivo e
Legislativo.
Com relação ao mínimo existencial, observa-se que a doutrina
majoritária entende que o seu conteúdo não poderia ser, em nenhuma
hipótese, restringido. Outros, entretanto, admitem eventual restrição

e suas formas contemporâneas


quando se estiver diante da chamada “reserva do possível”, em hipóte-
ses restritas. Entretanto, o instituto da reserva do possível, por sua vez,
teve origem no Direito alemão, motivo pelo qual muitos autores criti-
cam a sua utilização no Direito brasileiro, haja vista a notória diferença
econômico-social entre os dois países.
Por fim, acerca do fenômeno do “ativismo judicial”, observa-se
que há inúmeros argumentos tanto contrários quanto favoráveis à atua-
ção judicial no âmbito dos direitos fundamentais sociais. Pela análise
dos argumentos de ambas as correntes doutrinárias, depreende-se que
o ativismo judicial tem desempenhado um importante papel na concre-
tização de direitos fundamentais, aclarando a Constituição e promoven-
do direitos, motivo pelo qual merece atenção e estudo, tendo em vista
a atuação frágil em termos da efetivação dos direitos sociais, tanto pelo
Poder Legislativo quanto pelo Executivo. Portanto, não se mostra ade-
quada a ideia de inércia por parte também do Judiciário, o qual não pre-
tende competir com os demais poderes, mais sim contribuir com a sua
atuação na construção de um Estado mais humano.
Por fim, com base nas ideias trazidas, propõe-se que a atuação
da jurisdição constitucional não seja vista sob a ótica da disputa, mas
sim sob a perspectiva da cooperação, entendendo-se que não preten-
de o Poder Judiciário esvaziar as atribuições dos Poderes Legislativo e
Executivo, mas, sim, colaborar para que as garantias e direitos assegu-
rados pela Constituição sejam concretizados em sua plenitude.
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172
TELETRABALHO TRANSNACIONAL EM
FOCO: ANÁLISE DOS CRITÉRIOS DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS EM FACE DA
EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS
LABORAIS

Natalia Berna
Bacharel em Direito pela Universidade de Passo Fundo.
Advogada.

Paulo Henrique Schneider


Mestre pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Especialista em Direito Processual Civil pela ULBRA.
Especialista em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela
UPF. Professor de Direito da UPF. Advogado.
(paulo@dss.adv.br)

Introdução
O teletrabalho transnacional é um tema atual no direito traba-
lhista brasileiro, trazendo consigo muitas dúvidas, polêmicas e dis-
cussões com relação ao conflito de normas espaciais, que ocorrem
pelo fato de o teletrabalhador executar o trabalho em local distante,
e muitas vezes até em país diferente ao do empregador, rompendo-se
assim barreiras geográficas, e colocando em conflito ordenamentos
jurídicos distintos, devendo-se assim decidir a norma de qual territó-
rio deverá ser aplicada ao caso concreto.
A globalização trouxe diversas mudanças em diferentes setores
do cenário social e jurídico brasileiro, fazendo surgir na rotina traba-
lhista novas modalidades de prestação de serviço a distância. Com o
avanço das tecnologias, o desenvolvimento da informática e das te-
lecomunicações e a praticidade da resolução de diversas situações
pelos meios eletrônicos, o teletrabalho transnacional se adapta muito
bem ao cenário contemporâneo, e transformando as tradicionais re-
lações laborais.
No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro carece de normas
que regulamentem de forma ampla e específica os direitos cabíveis ao
teletrabalhador, tendo em vista que essa nova modalidade de trabalho
acaba por ocasionar pontos obscuros e lacunosos, possibilitando várias
formas de interpretação, nos mais diversos aspectos, em especial com
relação ao teletrabalho transnacional, e o seu decorrente conflito com
normas espaciais.
Dentre essas modificações na seara trabalhista, os direitos hu-
manos do trabalhador não podem ser esquecidos, devendo existir uma
solução para esta problemática, que não busque apenas solucionar a
questão do conflito de normas, mas, sim, que traga, além de uma segu-
rança jurídica para esses teletrabalhadores, uma proteção integral de
seus direitos básicos e fundamentais.
No primeiro tópico deste artigo, objetiva-se a análise da regula-
mentação da relação de emprego no Brasil, preocupando-se em dis-
correr sobre seus aspectos históricos e característicos. Após, busca-se
um entendimento sobre a proteção internacional do trabalho. Por fim,
é feito um estudo do teletrabalho transnacional, investigando qual é o
melhor critério a ser utilizado para solucionar o conflito de normas tra-
balhistas no espaço dele decorrente.

A proteção internacional do trabalho


Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

As relações de trabalho não ficam adstritas somente ao território


de um único país, elas se alastram por diversos países, gerando situa-
ções que necessitam de um aparato jurídico não somente em âmbito
interno dos Estados, mas também em âmbito internacional, visto que
a tendência do trabalho é tomar ainda mais espaço com trocas de ser-
viços entre países distintos, fazendo com que o trabalhador se torne
ainda mais exposto a elementos que possam prejudicá-lo em relação ao
binômio capital e trabalho, carecendo de segurança jurídica internacio-
nal para evitar a ocorrência dessas situações.
A internacionalização do direito do trabalho pode ser entendida
sob dois aspectos diferentes. O primeiro, é a existência de uma legisla-
ção internacional desenvolvida lentamente no decorrer do século XIX e
que teve sua origem na insuficiência de legislação nacional para solucio-
nar questões trazidas pela modificação das relações de produção e de
174
175
participação dos trabalhadores. Outra situação é o estudo das relações

Constitucionalismo Contemporâneo
internacionais, visando solucionar os problemas quanto à lei aplicável,
no caso de conflito entre normas de dois ou mais países diferentes, em
uma relação de trabalho prestado fora do país de origem do trabalhador
(NASCIMENTO, 2011, p. 125).
O direito internacional do trabalho é o ramo do direito internacio-
nal público que cuida da proteção dos direitos dos trabalhadores, obje-
tivando universalizar os princípios que se destinam à proteção do tra-
balhador, buscando alcançar melhores condições de vida e de trabalho,
além de lutar pela tão sonhada simetria entre capital e trabalho (ABUD;
MARQUES, 2013, p. 167).
O meio utilizado pelo direito internacional do trabalho para al-
cançar seus objetivos é o tratado, sendo ele um acordo internacional

e suas formas contemporâneas


realizado entre Estados, que deve ser feito por meio escrito e ser ge-
renciado pelo direito internacional. Os tratados não são obrigatórios,
porém, após serem ratificados pelos Estados contratantes, o seu cum-
primento passa a ser indispensável (ABUD; MARQUES, 2013, p. 167).
Após o fim da 1ª Grande Guerra, foi assinado um acordo de paz
entre os países que dela participavam. Este acordo foi intitulado Tratado
de Versalhes, elaborado no dia 28 de junho de 1919, que representou
uma etapa muito importante com destino à institucionalização do di-
reito internacional. O Tratado de Versalhes reconhece que o modelo ca-
pitalista de produção que vinha se disseminando acabou por desprezar
as condições de trabalho, tornando ainda maior a diferença social entre
patrões e empregados (MOURA, 2014, p. 57).
Assim, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituída
pelo Tratado de Versalhes em 1919, possui sua sede na cidade de Genebra,
com seus fundamentos disciplinados na Parte XIII do referido Tratado.
Todos os países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU)
são, de forma automática, membros da OIT (GARCIA, 2013, p. 126).
A regulamentação da OIT deu-se em 1944, na Conferência Geral
da OIT realizada na Filadélfia, evento que marcou o início de sua regu-
lamentação na seara trabalhista, visto que, até então, essa regulamen-
tação era exclusiva dos próprios países (MOURA, 2014, p. 57). Todos os
anos, no mês de junho, a Conferência Internacional do Trabalho tem se
reunido para elaborar, aprovar ou revisar normas que se converterão
em convenções ou recomendações (LEITE, 2014a, p. 697).
Deste modo, entende-se que é por meio da OIT que temos garan-
tidas as proteções trabalhistas em âmbito internacional, além de sua
função ser de extrema importância para a criação e preservação do di-
reito do trabalho, trazendo um alicerce a mais para a segurança jurídica
que deve existir na relação de emprego.
A Conferência Internacional do Trabalho, de 1998, aprovou a
Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no
Trabalho. Essa declaração enfatiza que o desenvolvimento de cada na-
ção, do ponto de vista econômico, não pode ser efetivo sem que esteja
acompanhado pelos ideais de justiça social. A referida Declaração rea-
firma princípios já existentes em outras Convenções da OIT, elencando
os direitos fundamentais do trabalho cuja aplicação deverá ser assegu-
rada por todos os membros (ARAÚJO, 2009, p. 2).
Os princípios trazidos pela Declaração são os seguintes: a liberda-
de sindical e o direito de negociação coletiva; a supressão do trabalho
forçado e obrigatório; a extinção do trabalho infantil e o banimento de
qualquer discriminação em matéria de emprego e ocupação (GARCIA,
2013, p. 129). Esses princípios foram expressos e desenvolvidos por
meio de oito Convenções, as quais, pela importância, passaram a ser
consideradas como fundamentais (CARBONELLI, 2015, p. 27).
À vista disso, é inegável a importância da OIT na evolução do di-
reito do trabalho e dos direitos sociais em todo o mundo, sendo que
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

as normas internacionais produzidas, tanto por meio das Convenções


como das Recomendações, contribuíram de forma efetiva para a apro-
vação de leis e regulamentos nos ordenamentos jurídicos de todos os
países, inclusive no Brasil (SCABIN, 2015, p. 3).
Com o surgimento efetivo do direito internacional do trabalho,
aliado ao expansionismo da globalização e da economia sem fronteiras,
nasceram, nos Estados de diversas partes do mundo, a necessidade e a
possibilidade de uma constitucionalização de regras e princípios con-
cernentes à proteção aos direitos humanos dos trabalhadores em âmbi-
to internacional (AMORIN, 2014, p. 98).
Mostra-se necessário inicialmente, para um melhor e mais claro
entendimento, fazer um breve esclarecimento terminológico do que são
direitos humanos e direitos fundamentais. Cotidianamente, essas duas
expressões são utilizadas como sinônimos, tanto pela doutrina quan-
176
177
to pela jurisprudência. Contudo, existe uma diferença tênue, tendo em

Constitucionalismo Contemporâneo
vista que a expressão direitos humanos é utilizada para referir-se a di-
reitos consagrados em tratados internacionais; já a expressão direitos
fundamentais é empregada aos mesmos direitos, mas em escala cons-
titucional, direitos estes inseridos nas Constituições internas de cada
país (CASADO FILHO, 2012, p. 15).
Destarte, para este estudo, é importante que se traga a conceitua-
ção e o entendimento de direitos humanos.

Adota-se o conceito dos direitos humanos como o conjunto de fa-


culdades e instituições que, em cada momento histórico, buscam
concretizar as exigências da dignidade, da liberdade, da igualdade,
da fraternidade e da solidariedade humana. Estas devem ser reco-
nhecidas positivamente em todos os níveis, sendo que tais direi-

e suas formas contemporâneas


tos guardam relação com os documentos de Direito Internacional,
por se referirem àquelas posições jurídicas endereçadas à pessoa
humana como tal, independentemente de sua vinculação com de-
terminada ordem constitucional. Assim, os direitos humanos são
válidos para todos os povos e tempos, de modo a demonstrar um
inequívoco caráter cosmopolita. (AMORIN, 2014, p. 99)

Os direitos humanos são divididos em três principais dimensões,


sendo que a primeira trata dos direitos civis e políticos, a segunda, dos
direitos econômicos, sociais e culturais, e a terceira, protege o direito ao
meio ambiente sustentável, à paz e ao desenvolvimento (CASADO FILHO,
2012, p. 41). Alguns doutrinadores acrescentam uma quarta dimensão,
que tutela o biodireito, e uma quinta, que resguarda os direitos virtuais
(LEITE, 2014b, p. 83).
Dos princípios que regem os direitos humanos, cabe destacar o
princípio da dignidade humana, que é o mais importante dentre todos,
dada a sua abrangência, indeterminação e evolução. Ele atende a todos
os anseios dos que veem seus direitos sendo violados, assegurando as
necessidades vitais, mantendo as pessoas distantes da degradação, ins-
trumentalização e submissão humana (AMORIN, 2014, p. 100).
Tencionando pela busca da proteção internacional aos direi-
tos humanos, no dia 10 de dezembro de 1948, no âmbito do Conselho
Econômico e Social da ONU, foi criada a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em Paris, consistindo na mais valiosa vitória em campo inter-
nacional em matéria de direitos humanos (MALHEIRO, 2015, p. 109).
A Declaração de 1948 buscou modernizar a gramática dos direitos
humanos, inserindo-lhe uma concepção contemporânea, marcada pela
universalidade e indivisibilidade de direitos. A universalidade empenha-
-se pela amplificação universal dos direitos humanos, sob a égide de que
a condição de pessoa é o único requisito para possuir a titularidade de
direitos, considerando o ser humano um ser moral, dotado de unicidade
existencial e considerando a dignidade como valor intrínseco à condição
humana. Já a ideia de indivisibilidade de direitos humanos surgiu de uma
visão integral de direitos, sendo exemplo disso a garantia dos direitos ci-
vis e políticos ser condição para a existência dos direitos sociais, econô-
micos e culturais. Ou seja, quando um deles é infringido, todos os demais
também serão. Os direitos humanos estão inter-relacionados, compõem-
-se assim, de uma unidade indivisível (PIOVESAN, 2010, p. 6-7).
Com o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos
começa a ser desenvolvido o Direito Internacional dos Direitos Huma-
nos, com base na adoção de diversos instrumentos internacionais de
proteção. A universalização dos direitos humanos propiciou a formação
do sistema internacional de proteção desses direitos, sendo integrado
por tratados internacionais que demonstram a consciência ética e con-
temporânea compartilhada pelos Estados, buscando a salvaguarda dos
direitos humanos (PIOVESAN, 2015, p. 173).
Ao lado desse sistema normativo global, existem também estru-
turas normativas regionais de proteção aos direitos humanos, sendo,
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

que, atualmente destacam-se três sistemas: o sistema europeu, o ame-


ricano, que possuem como mote a Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o sistema africano
(SCHNEIDER, 2015, p. 52).
A grande virtude da Declaração Universal dos Direitos Humanos
foi definir de forma precisa o elenco de direitos humanos e de liberda-
des fundamentais a serem respeitados por todas as nações, marcando
o início da internacionalização dos direitos humanos. Todavia, por ser
uma resolução da ONU, não possui efeito jurídico vinculante, sendo in-
capaz de designar sanções e de gerar obrigações, possuindo efeitos me-
ramente recomendatórios. Desta maneira, não possui mecanismos de
controle e monitoramento (SCHNEIDER, 2015, p. 51).
Pela existência dessa problemática, ainda em 1948 iniciou-se
uma discussão para saber qual seria a melhor maneira de assegurar a
178
179
observância universal dos direitos previstos na Declaração Universal

Constitucionalismo Contemporâneo
dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2015, p. 176).
Longo caminho teve que ser percorrido para se chegar a este obje-
tivo. Somente em 1966 a Assembleia Geral da ONU adotou o Pacto sobre
Direitos Civis e Políticos e o Pacto sobre Direitos Sociais, Econômicos e
Culturais (AMARAL JÚNIOR, 2013, p. 510).
A união da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Interna-
cional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais forma a Carta
Internacional dos Direitos Humanos, que é o documento básico do sis-
tema global de Proteção Internacional dos Direitos Humanos da ONU
(MALHEIRO, 2015, p. 112).

e suas formas contemporâneas


O Pacto sobre Direitos Civis e Políticos engloba uma categoria
maior de direitos do que os previstos na Declaração Universal de Direitos
Humanos. As obrigações dos Estados-parte são tanto negativas quanto
podem ser também positivas expressas, respectivamente, quanto às obri-
gações de não torturar e de estabelecer um sistema legal para a punição
dos direitos porventura violados (AMARAL JÚNIOR, 2013, p. 511).
Por sua vez, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais foi adotado em 19 de dezembro de 1966, em conjun-
to com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no entanto,
entrou em vigor somente no ano de 1976. Ele é um marco, pois assegu-
rou a proteção aos direitos econômicos, sociais e culturais, vencendo a
resistência que existia por parte de alguns Estados e mesmo por parte
da doutrina, que consideravam os direitos sociais como sendo meras
recomendações (RAMOS, 2015, p. 155).
Com o reconhecimento da necessidade de proteção dos direitos
humanos dos trabalhadores, as mudanças relacionadas ao direito do tra-
balho foram surgindo com o passar do tempo, especialmente quanto à
forma como o trabalho é exercido e às condições laborais destinadas aos
empregados, cujos reflexos são sentidos no processo de globalização que
está ocorrendo em diversas partes do mundo.
Vale destacar que as modificações ocorridas com o desenrolar
dos anos no aspecto econômico, de produção e trabalho foram marca-
das por três modelos distintos de produção, sendo eles: o taylorismo, o
fordismo e o toyotismo.
O taylorismo foi marcado por verbalizar o modo capitalista de pro-
dução, tendo como principal objetivo controlar com eficácia a força de
trabalho, focalizando mais no desenvolvimento de técnicas de organiza-
ção de trabalho do que na tecnologia. Não obstante, em meados de 1914,
incorporou-se a lógica taylorista, trazendo novos princípios, visando à
produção em escala, especialmente no trabalho na linha de montagem.
Na base fordista evidenciou-se a mecanização da produção, a padroni-
zação dos produtos e o fluxo contínuo de materiais através de máquinas,
tudo, para aumentar a produção em massa (MACHADO, 2015, p. 2-3).
Posteriormente ao fordismo-taylorismo, iniciou-se o regime de
acumulação flexível, ocorrendo mudanças nas formas de organização
do trabalho. Neste contexto, surge o toyotismo que substituiu a rigidez
pela flexibilidade do processo produtivo aliado ao fortalecimento das
inovações tecnológicas (MACHADO, 2015, p. 3).
A conjuntura do panorama social, econômico e político do siste-
ma capitalista, desde o final do século XX, vem causando importantes
transformações no mundo do trabalho. É incontestável que os altos im-
pactos trazidos pelas inovações tecnológicas afetaram a estrutura e a
dinâmica do direito do trabalho. Com isso, surgiram novas formas de
estruturar os empreendimentos empresariais, com base em home-office
e pequenos estabelecimentos (GOMES; TEIXEIRA, 2015, p. 85).
São inúmeros os efeitos impulsionados pela globalização, e diver-
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

sos são os setores da área do direito que sofreram com seus reflexos. Com
relação ao direito do trabalho, foi observada uma diminuição geral quan-
to à quantidade de empregos disponibilizados, chamando atenção tam-
bém a transição da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial,
pela criação de novos setores de serviço advindos da alta modernidade
das tecnologias, pela descentralização da empresa e informatização do
trabalho da pessoa física, bem como pela a requalificação do trabalhador,
exigindo-se dele um grau determinado de ensino para adentrar como tra-
balhador (NASCIMENTO, 2011, p. 76-77).
A globalização pode ser dividida em três fases. A primeira, con-
siste na exploração do mundo e na descoberta de novas fronteiras; a
segunda fase caracteriza-se pela exploração máxima das potencialida-
des que os trabalhadores tinham a oferecer, nos parâmetros estudados
anteriormente, correspondendo essa fase ao período da Revolução
Industrial; a terceira, contudo, caracteriza-se pela união das duas fases
180
181
anteriores, harmonizando a existência de fronteiras com a exploração

Constitucionalismo Contemporâneo
dos trabalhadores, surgindo a possibilidade de buscar o melhor lugar
para aproveitar os investimentos com mão de obra, desfrutando ao má-
ximo o que o trabalhador tem a oferecer, ainda que isso afronte seus di-
reitos fundamentais (BERTAGNOLLI; RIZZOTO; TONIAL, 2010, p. 138).
Perceptível é a vasta influência da globalização no cenário traba-
lhista. Seus efeitos, com a chegada das tecnologias, por meio da internet,
propiciaram o fácil acesso aos meios de comunicação e de informação,
bem como trouxeram novas possibilidades quanto à forma de produção
utilizada pelas empresas, fazendo nascer algumas questões importan-
tes que necessitam de atenção, sendo elas: a automação, a flexibilização
das normas trabalhistas e o dumping social.

e suas formas contemporâneas


A automação consiste em uma técnica que, sendo utilizada em de-
terminado processo, tem como finalidade principal torná-lo mais produ-
tivo e eficiente, com a menor utilização de energia possível, e com maior
segurança, assim como com menor emissão de poluentes. De forma sin-
tética, a automação pode ser definida como sendo a substituição do ho-
mem pela máquina (DIAS; MARTIGNAGO, 2012, p. 1.656).
O rápido e intenso aprimoramento da tecnologia provocado pela
automação computadorizada agravou a situação de desemprego, o que,
com o passar do tempo, obedecendo à lei da oferta e da procura, vai
reconduzir ao trabalho o pouco valor que sempre teve. Nesta transição
de substituição do homem pela máquina, há uma desvalorização do tra-
balho, e em consequência, uma diminuição da importância obtida pelo
direito do trabalho, fazendo surgir as ideias de flexibilização do direito
do trabalho (PELEGRINI, 2014, p. 121-122).
Encontrar um equilíbrio para essa situação de crise social não
é algo muito fácil, e a tendência entre a maior parte da doutrina é a
flexibilização das leis trabalhistas. Essa flexibilização não pode gerar
abusos e deve ser feita de forma muito responsável, para não facilitar o
enriquecimento ilícito da empresa e nem pôr em risco os direitos con-
quistados pelos trabalhadores. Deve-se encontrar um limite razoável,
ponderando os princípios da valorização e da dignidade do trabalhador
com os princípios da preservação e saúde da empresa. O princípio da
proteção ao trabalhador é o limite da flexibilização, proibindo exageros,
aplicação errônea e desvios de finalidade (CASSAR, 2013, p. 31).
Simultaneamente à flexibilização dos direitos dos trabalhadores
e em compasso com o desemprego causado pela utilização das tecno-
logias nasce outro efeito, que aparece como consequência da evolução
tecnológica, denominado dumping social (BERTAGNOLLI; RIZZOTO;
TONIAL, 2010, p. 146).
O dumping social nada mais é do que uma concorrência desleal,
por meio da qual busca-se a eliminação da concorrência com a introdu-
ção, no mercado nacional, de produtos estrangeiros, cujos preços são
consideravelmente menores aos produtos similares de origem local,
pelo fato de serem fabricados em países onde a proteção laboral é pre-
cária (RODRIGUES JR, 2014, p. 17).
A propagação da globalização, com as alterações causadas na eco-
nomia, e o uso cada vez mais intenso das tecnologias de informática e
de comunicações foram as principais questões que intensificaram a ex-
pansão e a modificação do trabalho, trazendo consigo a necessidade de
promover maior segurança jurídica à relação de emprego.
Dito isto, é de grande importância que o direito do trabalho sai-
ba como lidar com essas situações, dando a elas um resultado efetivo,
fazendo com que os reflexos produzidos pela globalização consigam se
moldar à sociedade da melhor forma possível, afinal, avanços e modi-
ficações são necessários e fazem parte da transição que naturalmente
ocorre com o passar dos tempos. Com a invasão dos efeitos da globaliza-
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

ção no meio trabalhista, faz-se necessária a atuação do Direito não só no


âmbito interno de cada Estado, mas também em escala internacional,
para regulamentar e adequar-se à nova perspectiva de trabalho surgida
nessa seara.

Conflito de normas no espaço com relação


ao teletrabalho transnacional e a busca pela
efetivação dos direitos humanos laborais
O processo de produção e consequentemente as relações econô-
micas dele advindas, conforme supracitado, sofreram gradativas modi-
ficações em decorrência dos avanços tecnológicos ocorridos na socieda-
de contemporânea, as quais afetaram de forma fulminante as relações
de trabalho e emprego. O teletrabalho surge em meio a essa transição,
182
183
como uma nova alternativa de trabalho flexível, que vem ganhando es-

Constitucionalismo Contemporâneo
paço e relevância dentre as formas tradicionais de se obter mão de obra.
A mundialização da economia, facilitada pela globalização, trou-
xe consigo consequências igualmente sentidas com muita intensidade
no âmbito laboral. Cogita-se a flexibilização não só quanto às leis, mas
também quanto ao local da prestação dos serviços por parte dos traba-
lhadores, criando a possibilidade de utilização de recursos telemáticos
para a execução da atividade laboral, fazendo surgir uma descentrali-
zação produtiva em virtude do funcionamento em rede das empresas
(NOGUEIRA, 2006, p. 130).
Nesta linha, com maior destaque a partir da década de setenta,
com base em estudos mais avançados sobre a chamada sociedade da

e suas formas contemporâneas


informação, constata-se que o mundo entra na era da revolução tecno-
lógica, influenciando de forma decisiva o modo de agir, pensar e viver
de toda a sociedade. Essa revolução tecnológica tem como resultado o
acelerado avanço das tecnologias e da telecomunicação, modificando as
formas de relacionamentos sociais, pessoais, familiares e principalmen-
te laborais (DALLA VALLE, 2014, p. 38).
O marco mais notável da sociedade moderna é o surgimento da
internet e a consequente criação das comunicações móveis, abrindo es-
paço para novas formas de trabalho (ELSNER, 2014, p. 51). É inegável
que a internet facilitou de forma significativa as relações interpessoais
em todas as partes do mundo, ocasionando, assim, uma relativização do
espaço geográfico, com o aparecimento de múltiplas relações, podendo-
se citar, como exemplo, as operações entre as empresas sem a presença
física das pessoas (BITENCOURT, 2014, p. 61).
O trabalho prestado por meios telemáticos de comunicação é costu-
meiro em diversas relações de trabalho. O empregado que executa seu ser-
viço com a utilização de meios de comunicação e de telemática pode tanto
trabalhar dentro do estabelecimento da empresa como em qualquer outra
localidade que achar conveniente, inclusive fora do país em que está loca-
lizada a sede da empresa empregadora. Logo, comprova-se que a maior
manifestação advinda da tecnologia no mundo do direito do trabalho tem
sido, sem nenhuma dúvida, o teletrabalho (DALLA VALLE, 2014, p. 33).
Nessas circunstâncias, o teletrabalho, por ter intrínseco em sua
natureza a flexibilidade tanto com relação ao tempo quanto ao espaço,
e pela utilização de tecnologias de informação, possibilita um alcan-
ce extraterritorial, considerando-se, desta maneira, a forma de traba-
lho mais harmoniosa com as necessidades oriundas da globalização
(ESTRADA, 2002, p. 1-2).
Quanto à origem e definição da palavra teletrabalho, tem-se que:

Teletrabalho (tele vem do grego e significa “longe”, distância, e


trabalho significa “atividade profissional”). O termo é neologismo
que significa: o trabalho a distância, com a utilização dos recursos
tecnológicos das comunicações e informações, para substituir o
deslocamento diário ao lugar de trabalho, na sede da empresa.
(CALVO, 2014, p. 33)

Concernente à conceituação, destaca-se que “o avanço da tecno-


logia permite o labor preponderantemente fora do estabelecimento do
empregador [...], embora mantendo o contato com este por meio de re-
cursos eletrônicos e de informática, principalmente o computador e a
internet” (GARCIA, 2013, p. 231, grifo do autor).
É necessária, para a caracterização do teletrabalho, a presença in-
dispensável de três elementos. O primeiro, é a localização do trabalha-
dor para o exercício de suas funções, que deve ser distante do local onde
os resultados da atividade laboral foram esperados; o segundo, é que
o empregador, ou aquele que dá as ordens para o trabalho, não pode
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

controlar fisicamente o trabalhador; e o terceiro elemento é o controle


indireto, feito por meio dos resultados alcançados, ou seja, com base
na tecnologia empregada pelo trabalhador ao desenvolver seu trabalho
(NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2014, p. 192). E ainda que exista uma
correlação entre esses elementos e que eles ocorram simultaneamen-
te, somente assim estará configurado, de forma legítima, o teletrabalho
(ESTRADA, 2002, p. 2).
Para que exista o teletrabalho, é imprescindível a utilização de
meios informáticos e de telecomunicação, que sejam aptos a permitir
que o trabalhador consiga manter-se em contato com a empresa, o que
torna possível o controle e o exercício de poder de direção por parte do
empregador (NOGUEIRA, 2006, p. 132).
O teletrabalho é dividido em quatro espécies distintas, sendo
elas: teletrabalho em domicílio, o qual já foi claramente conceituado
184
185
acima; teletrabalho no centro-satélite de telesserviços, onde, por exem-

Constitucionalismo Contemporâneo
plo, o trabalho é realizado em um edifício de escritórios de inteira
propriedade da empresa, e que o teletrabalhador opta por trabalhar
naquele local por ser mais próximo à sua casa, sendo assim mais fácil
seu acesso; teletrabalho internacional, que é o trabalho realizado em
um país diferente do país sede da empresa, no qual o trabalho é reali-
zado com o uso de tecnologias e na residência do trabalhador, possibi-
litando maior flexibilidade de horário na realização das atividades por
parte do empregado; e ainda, teletrabalho para central de atendimento
de serviços (call-center), que é o trabalho realizado em local distinto
do local físico da empresa, cujo horário cumprido pelo trabalhador
deve ser o horário estabelecido pela empresa para tal cargo, ou seja,
o trabalhador tem um horário a ser cumprido (GOULART, 2009, p. 36-

e suas formas contemporâneas


37, grifo nosso).
No presente estudo, cabe destacar de forma mais detalhada o
teletrabalho internacional, conforme conceituação supracitada e, que
também pode ser denominado de teletrabalho transfronteiriço ou tele-
trabalho transnacional.
Essa modalidade de teletrabalho é aquela, em que o teletra-
balhador possui seu domicílio e labora em um determinado país,
porém, o seu trabalho é prestado para empresa localizada em país
diferente do seu. Com a facilitação das técnicas de informática e de
telecomunicação, o teletrabalho pode ser considerado como sendo
de natureza transregional, transnacional ou transcontinental, uma
vez que quebra barreiras geográficas e temporais (ESTRADA, 2002,
p. 7, grifo nosso).
O teletrabalho transnacional é impulsionado pela popularização
do acesso às tecnologias de comunicação, tornando as relações de tra-
balho internacionais mais frequentes e facilitadas. Um dos fatores de
trânsito de trabalhadores para outros países é a busca por espaços so-
ciopolíticos que melhor se adaptem ao momento econômico que se en-
contram, bem como pelas crises econômicas que atingem determinadas
regiões, motivando assim a criação de movimentos em busca de melho-
res condições de vida e de trabalho, propiciando a transnacionalização
das relações de emprego. Isto posto, é muito comum a contratação de
brasileiros por empresas transnacionais e de estrangeiros por empre-
sas nacionais (BITENCOURT; FINCATO, 2015, p. 2.238).
Assim, como o uso de meios telemáticos e informatizados no mer-
cado de trabalho é capaz de extinguir algumas profissões, permite, em
contrapartida, criar novas formas de trabalho, como ocorreu com o tele-
trabalho, que nasceu da utilização dessas tecnologias. A sua importân-
cia é tão significativa que a OIT passou a tratar este assunto por meio da
Convenção nº 177/1996 (MUNIZ; ROCHA, 2013, p. 103).
A Convenção nº 177 de 1996 dispõe do teletrabalho em domicílio,
porém esta Convenção ainda não foi ratificada pelo Brasil. Nos termos
dos incisos I a III do artigo 1º, a1, dessa norma internacional, o trabalho
em domicílio é aquele prestado por uma pessoa que labora em algum
lugar de sua escolha, desde que este lugar seja distinto do local de tra-
balho do empregador; em troca do trabalho realizado, que pode ser ela-
borar um produto ou prestar um serviço solicitado pelo empregador, e
isso deve ocorrer independentemente de quem fornece os equipamen-
tos e os materiais para a realização desse trabalho, a pessoa recebe uma
remuneração. Fica excetuado dessa condição aquele que tiver autono-
mia e independência suficiente para ser considerado trabalhador inde-
pendente (GARCIA, 2012b, p. 3).
Ainda, a referida Convenção, em seu artigo 4º, prevê que, na me-
dida do possível, deve-se promover a igualdade entre os trabalhadores
em domicílio e os demais trabalhadores que prestam serviços na sede
da empresa (MARTINS, 2014, p. 156).
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

Desta maneira, estando presentes os requisitos necessários para


a caracterização do vínculo de emprego, deve ser respeitada a igualda-
de de tratamento entre os trabalhadores a distância e os demais empre-
gados, e isso está devidamente fundamentado nos artigos 5º, caput2, e


1
Tradução livre da autora: “Artigo 1: Sobre os efeitos da presente Convenção: (a) a ex-
pressão trabalho em domicílio significa o trabalho que uma pessoa, designada como
trabalhador em domicílio, realiza: (i) em seu domicílio ou em outros locais que esco-
lha, distintos dos locais de trabalho do empregador; (ii) em troca de uma remuneração;
(iii) com o fim de elaborar um produto ou prestar um serviço conforme as especificações
do empregador, independentemente de quem proporcione o equipamento, os mate-
riais ou outros elementos utilizados para isso, a menos que essa pessoa possua auto-
nomia e independência econômica necessária para ser considerada como trabalhador
independente em virtude da legislação nacional e de decisões judiciais”.

2
Constituição Federal, Art. 5º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviola-
bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: [...]”.
186
187
7º, XXXII , da Constituição Federal, bem como nos artigos 6º e 83 da CLT
3

Constitucionalismo Contemporâneo
(GARCIA, 2013, p. 233).
Na esfera internacional, o teletrabalho, com a existência da
Convenção nº 177 da OIT, ganha importância e reconhecimento, afinal,
toda a sociedade mundial passou por fortes modificações no campo
das tecnologias, trazendo para o seio da sociedade as necessidades de
adaptações nas relações de emprego. No Brasil, o teletrabalho vem ga-
nhando um vasto espaço, fazendo com que estudiosos e legisladores da
área trabalhista busquem soluções para as questões que envolvem esse
modelo de trabalho, bem como discutam sobre seu enquadramento ju-
rídico na legislação brasileira.
No Brasil, não existe atualmente uma legislação específica sobre o
teletrabalho, que abranja todas as suas peculiaridades (PONTES, 2010,

e suas formas contemporâneas


p. 4). Em consequência dessa falta de legislação e pelas semelhanças
existentes entre o trabalho em domicílio e o teletrabalho, aplicam-se
a este último as normas que regulamentam o trabalho em domicílio
(GARCIA, 2012b, p. 3).
Para ter-se caracterizada a natureza jurídica do teletrabalho,
mostra-se necessária uma análise das condições concretas de execução
da prestação de serviços, devendo determinar se estão presentes os re-
quisitos necessários para a configuração da relação de emprego, que
deve ser prestado por pessoa física, de forma não eventual, com onero-
sidade, pessoalidade e subordinação (ESTRADA, 2014, p. 91).
A subordinação é o elemento diferenciador da relação de empre-
go. É sabido que existem várias formas de trabalho que não caracterizam
vínculo empregatício. Por este motivo, a relação de emprego somente
vai se configurar na medida em que for possível a identificação da su-
bordinação no âmbito laboral. É por meio da subordinação que nasce
para o empregador o poder empregatício, e para o empregado o dever
de obediência (ALVARENGA, 2014, p. 1).
Em decorrência do desenvolvimento tecnológico e das modifica-
ções ocorridas no modo de produção empresarial, como, por exemplo,
o teletrabalho e a especialização do conhecimento, propagando uma
maior liberdade na prestação dos serviços, sobrevém a relativização da


3
Constituição Federal, Art. 7º [...] “XXXII - proibição de distinção entre trabalho manual,
técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos; [...]”.
subordinação jurídica do empregado com relação às formas tradicio-
nais de trabalho (ALVARENGA, 2014, p. 3).
A forma de entendimento e aplicação da subordinação sofreu al-
terações significativas com a Lei nº 11.551, de 11 de dezembro de 2011,
a qual modificou a redação do artigo 6º da CLT, além de acrescentar um
parágrafo único a este artigo. Essas modificações incorporaram, de for-
ma implícita, os conceitos de subordinação objetiva e de subordinação
estrutural, igualando essas dimensões, para fim de reconhecimento de
relação de emprego, à subordinação clássica, em que a subordinação é
realizada por meio direto e pessoal de comando, controle e supervisão
do trabalho (DELGADO, 2014, p. 307).
A partir disso, passa a estar positivada a afirmação de que o con-
trole do trabalho pode ocorrer a distância e por meios informatizados
e telemáticos, equiparando-se, assim, aos meios pessoais e diretos de
comando (MENDES; SALES, 2013, p. 309).
A referida lei possibilita uma ampliação do artigo em questão,
aceitando que o trabalho a distância seja realizado tanto no domicílio
do empregador como em qualquer outro local que for escolhido pelo te-
letrabalhador. Porém, neste caso, trata-se de teletrabalho subordinado
e não de teletrabalho autônomo, e, como tal, o teletrabalho subordinado
faz jus a todos os direitos trabalhistas como a qualquer outro emprega-
do (ESTRADA, 2014, p. 91).
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

Com isso, pode-se depreender que, estando presente o vínculo de


emprego, com a comprovação da existência da subordinação, mesmo
sendo o teletrabalho uma forma diferenciada de exercício da atividade
laboral, estão garantidos todos os direitos trabalhistas assegurados aos
demais empregados. Contudo, no Brasil, por ainda não existir uma re-
gulamentação específica ao teletrabalho, que normatize todos os seus
aspectos, como direitos e deveres atinentes a ele, faz-se necessária a
aplicação de normas gerais que regulamentam a relação de emprego,
devendo-se interpretá-las de modo coerente a essa modalidade espe-
cial de vínculo laboral (GARCIA, 2013, p. 235).
Importa referir que não é um pequeno momento, em que o traba-
lhador faz contato com a empresa por meios eletrônicos que vai carac-
terizar a real existência do teletrabalho. Deve-se levar em consideração
que o teletrabalho é uma nova espécie de labor e que não irá se consubs-
188
189
tanciar em ínfimos momentos e contatos tecnológicos, mas sim, em uma

Constitucionalismo Contemporâneo
rotina de trabalho modificada pelo uso das tecnologias, na qual o trabalho
em local distante do ambiente da empresa tomadora do serviço e o exer-
cício e o controle deste serviço são feitos por meios eletrônicos.
O teletrabalho transnacional traz consigo um ponto nevrálgico,
colocando em conflito a lei de países distintos para a solução de pro-
blemas que surgem dessa relação laboral. Da mesma forma, a doutrina
traz posicionamentos antagônicos quanto às possibilidades de soluções
existentes para esses conflitos de leis trabalhistas no espaço; por seu
turno, a jurisprudência está mais pacífica quanto a isso.
Dentro do território de um Estado, existe sempre um complexo
de normas que impõem direitos e obrigações aos seus habitantes, e esse
sistema jurídico não é o mesmo para todos os países. O ordenamento

e suas formas contemporâneas


jurídico sofre variações de Estado para Estado, em face das caracterís-
ticas de cada um, levando em conta a cultura, os costumes de cada povo
e as diferenças existentes quanto à religião, tradição, raça e condições
econômicas (AMORIN; OLIVEIRA JÚNIOR, 2011, p. 4).
Um direito local colide com outro direito local, e entre eles está
o trabalhador, seja ele nacional ou estrangeiro, que possui um confron-
to de leis a ser resolvido. Cabe desta maneira, ao direito internacional
privado, encontrar a solução pertinente para solucionar o conflito de
leis no espaço. O direito internacional privado cria suas próprias regras,
que se transformam em soluções capazes de resolver essas questões
(STRENGER, 2005, p. 46).
Dentre as soluções trazidas pela doutrina e pela jurisprudência
para solucionar o conflito de leis no espaço decorrente do teletraba-
lho transnacional, assinala-se que, de acordo com a primeira corrente
doutrinária, “o critério mais aceito é o da lei de execução do contrato
de trabalho (lex loci laboris ou lex loci executionis). Importa, segundo
esse critério, o local em que o empregado efetivamente presta seus
serviços, sendo-lhe aplicável a respectiva lei daquele local” (MARTINS,
2014, p. 54, grifo do autor).
A Convenção Interamericana de Direito Internacional Privado,
também denominado Código de Bustamante ou Convenção de Havana,
prevê em seu artigo 1984, que é territorial a legislação da proteção so-


4
Artigo 198 do Código de Bustamante: “Também é territorial a legislação sobre acidentes
do trabalho e proteção social do trabalhador.”.
cial do trabalhador, regendo-se, assim, pela lei do local do trabalho, não
podendo prevalecer a autonomia da vontade (MARANHÃO, 2005, p.
172, grifo do autor). A Convenção de Roma, em seu artigo 6º, 2, letra
“a”5, também se manifesta neste sentido, estabelecendo que, para solu-
cionar o conflito de leis no espaço, aplica-se o critério da territorialida-
de (BITENCOURT; FINCATO, 2015, p. 2.243).
Esse entendimento foi por longo tempo aplicado e resguardado
pela Súmula 207 do TST6, porém, essa súmula foi cancelada no ano de
2012 (DELGADO, 2014, p. 245). No entanto, para a corrente doutrinária
adepta ao critério da territorialidade, mesmo com o cancelamento da
Súmula 207 do TST, mantém-se a aplicação do artigo 198 do Código de
Bustamante, no sentido de que a relação de emprego deve ser pautada
pela lei do local da prestação do serviço (GARCIA, 2012a, p. 5).
Da mesma forma, a esse propósito, é importante destacar que
existe entendimento jurisprudencial, o qual concorda que, mesmo com
o cancelamento da Súmula 207 do TST, continua prevalecendo o dispos-
to no Código de Bustamante, alegando que, o cancelamento da referida
súmula não cria entendimento contrário ao princípio da lex loci execu-
tionis. Para tanto segue trecho do recurso ordinário de nº. 0001210-
31.2011.5.01.0040, externado pela nona turma do Tribunal Regional do
Trabalho da 1ª Região:

O autor não prestou serviços no Brasil; apenas foi contratado


Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

aqui. Toda a execução do contrato de trabalho ocorreu em Angola.


É princípio do direito internacional que o direito do trabalho e
o previdenciário são regidos pela lei do local da prestação de
serviços. O Código de Bustamante é uma Convenção de Direito
Internacional Privado ratificada pelo Brasil por meio do Decreto
nº 18.871/29. O artigo 198 de tal Código dispõe que é territorial
a legislação do local de trabalho. O fato de a Súmula 207 do TST
ter sido cancelada não significa que prevaleceu o entendimento
contrário, até porque estamos tratando de princípio universal
(lex loci executonis). Ressalta-se que tal princípio é de proteção do


5
Artigo 6º da Convenção de Roma: “Contrato individual de trabalho [...] 2. Sem prejuízo
no disposto no artigo 4º e na falta de escolha feita nos termos do artigo 6º, o contrato
de trabalho é regulado: a) Pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do
contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado tem-
porariamente para outro país [...].”.

6
Súmula 207 do Tribunal Superior do Trabalho: “A relação jurídica trabalhista é regida pelas
leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação.”.
190
191
trabalhador, pois evita que se utilize o local da contratação como

Constitucionalismo Contemporâneo
forma para fugir a encargos trabalhistas. (Rio de Janeiro, Tribunal
Regional do Trabalho da 1ª Região, 2013, p. 6)

Em sentido de aceitação ao critério da lex loci executionis, asseve-


ra-se que

No tocante à lei a ser aplicada na solução da lide interespacial


trabalhista, o emprego da legislação do país no qual o trabalho é
prestado, a lex loci executionis, ganha espaço nos ordenamentos
jurídicos, tanto brasileiro como de outros países. Nessa tessitura,
determinava a Súmula n. 207 do Tribunal Superior do Trabalho:
“A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país
da prestação de serviço e não por aquelas do local da contrata-

e suas formas contemporâneas


ção” [...]. (DEL’OLMO, 2014, p. 258)

De acordo com esta corrente, deve-se aplicar sempre a lei do


país em que o teletrabalhador prestou o seu serviço. Mesmo que a lei
do seu país de origem, por exemplo, seja mais benéfica a ele, aplica-
se o critério da territorialidade, pautado na premissa de que todos as
pessoas que trabalham em um mesmo país devem possuir os mesmos
direitos e obrigações, idealizando a igualdade entre todos os trabalha-
dores que ali laboram.
Por outro lado, existe um entendimento oposto ao critério da lex
loci executionis. De acordo com essa segunda corrente, o conflito de leis
no espaço é dirimido pela aplicação do critério do local virtual da pres-
tação do serviço, isto é, do local sede da empresa, onde são recebidas as
informações do teletrabalho realizado. Defendendo esse critério, evi-
dencia-se a existência de

Uma outra interpretação do “lex loci laboris” no trabalho conec-


tado, ou também chamado de “interativo”, a lei a ser aplicada
não seria do lugar onde se encontrar fisicamente o teletraba-
lhador, senão a do país no qual está sendo recebida a prestação.
Deste ponto de vista, o direito aplicável seria do país estrangei-
ro, mesmo que o teletrabalhador não tivesse saído do lugar de
origem. (ESTRADA, 2002, p. 9)

Esta se torna uma questão muito sensível, pelo fato de ser difícil a
identificação do espaço virtual em que o teletrabalhador está inserido,
sendo necessário um conhecimento do que consiste ser o ciberespaço
para a compreensão do que seria o espaço virtual utilizado pelo teletra-
balhador para exercer o seu labor.
Por este ângulo, o referido critério, que é pautado pela solução do
conflito de leis com base na legislação do país em que está localizada a
sede da empresa, surge com o argumento de que o teletrabalho trans-
nacional é realizado no ciberespaço, e, para elucidar sua compreensão,
faz-se uma conceituação desse termo:

[...] ciberespaço será considerado como todo e qualquer espaço


informacional multidimensional que, dependente da interação
do usuário, permite a este o acesso, a manipulação, a transfor-
mação e o intercâmbio de seus fluxos codificados de informa-
ção. Assim sendo, o ciberespaço é o espaço que se abre quando
o usuário conecta-se com a rede. Por isso mesmo, esse espaço
também inclui os usuários dos aparelhos sem fio, na medida em
que esses aparelhos permitem a conexão e troca de informações.
Conclusão, ciberespaço é um espaço feito de circuitos informacio-
nais navegáveis [...]. (SANTAELLA, 2007, p. 45)

Ainda de acordo com esta percepção, quando o teletrabalhador


estiver conectado de forma online com seu local de trabalho, essa co-
nexão faz com que exista uma ligação com o local de trabalho, como
se ele estivesse realizando o seu trabalho no próprio ambiente da em-
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

presa em sua concepção clássica, de firma física e presencial, pois re-


cebe seu trabalho em ambiente virtual e este trabalho só é concluído
quando as informações chegam até a empresa. Por este fato, a lex loci
laboris atinente ao teletrabalhador é o local onde se encontra o esta-
belecimento empregatício, e, como não há regulamentação específica
em nível global quanto a isso, a lei aplicável neste caso seja a do local
de estabelecimento da empresa (CAIRO JUNIOR, apud BITENCOURT;
FINCATO, 2015, p. 2.245).
O entendimento desta corrente, em suma, considera o critério
da territorialidade superado, tendo em vista que o teletrabalho não é
realizado em local físico, mas sim em local virtual, sendo competente,
neste caso, a lei do país que recebe o seu trabalho, que recebe as in-
formações por ele emitidas, aplicando-se desta forma a lei do Estado
em que se encontra a sede da empresa para a qual o teletrabalhador
presta seus serviços.
192
193
No entanto, existe ainda outro posicionamento quanto a essa si-

Constitucionalismo Contemporâneo
tuação, que vai em desencontro ao critério de conexão da territoriali-
dade e do local de recebimento dos serviços. É valoroso acentuar que,
antes mesmo do cancelamento da Súmula 207 do TST, o critério da ter-
ritorialidade já vinha sendo atenuando, permitindo, dessa maneira, a
aplicação no direito do trabalho brasileiro, do critério do princípio da
norma mais favorável. Esse princípio foi sendo utilizado com base na
Lei nº 7.064/82 que tutelava as relações jurídicas do empregado que
fosse transferido para o exterior depois de já ter laborado no Brasil para
o mesmo empregador. Contudo, em abril de 2012, com o cancelamento
definitivo daquela lei, foi se firmando o entendimento pleno de que o
princípio da norma mais favorável seria a solução para este tema jurídi-
co (DELGADO, 2014, p. 245-246, grifo nosso).

e suas formas contemporâneas


Assim, a Lei nº 7.064/82 trouxe orientações diferentes daquelas
que estavam contidas na Súmula 207 do TST, pois, em seu artigo 3º,
inciso II7 está prevista a aplicação da lei brasileira de proteção ao traba-
lho, desde que não seja incompatível com o contido na lei, quando for
mais favorável do que a legislação territorial, com relação ao conjunto
de normas que constituem a matéria. Com a referida lei, a aplicação da
lei mais favorável ao trabalhador ganha sustentação, aplicando-se sem-
pre a lei mais favorável, em detrimento, quando for o caso, da lei do local
de prestação dos serviços (BELFORT, 2014, p. 88).
Corroborando o quanto exposto, o julgado da terceira turma do
TST tem comungado do mesmo entendimento ora mencionado, tra-
zendo a sustentação de que o princípio da norma mais favorável era
aplicado ainda antes do cancelamento da Súmula 207 do TST, isso se
conclui pela decisão ao Agravo de Instrumento nº 332042010503 0035,
do qual segue trecho abaixo:

De toda maneira, esclareça-se que a jurisprudência trabalhista,


sensível ao processo de globalização da economia e de avan-
ço das empresas brasileiras para novos mercados no exterior,
passou a perceber a insuficiência e inadequação do critério


7
Artigo 3º da Lei 7.064/82: “A empresa responsável pelo contrato de trabalho do em-
pregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legis-
lação do local da execução dos serviços: [...] II - a aplicação da legislação brasileira
de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei,
quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em
relação a cada matéria.”
normativo inserido na antiga Súmula 207 do TST (lex loci exe-
cutionis) para regulação dos fatos congêneres multiplicados
nas duas últimas décadas. Nesse contexto, já vinha ajustan-
do sua dinâmica interpretativa, de modo a atenuar o rigor da
velha Súmula 207/TST, restringido sua incidência, ao mesmo
tempo em que passou a alargar as hipóteses de aplicação das
regras da Lei n. 7.064/1982. Assim, vinha considerando que
o critério da lex loci executionis (Súmula 207) – até o advento
da Lei n. 11.962/2009 – somente prevalecia nos casos em que
foi o trabalhador contratado no Brasil para laborar especifi-
camente no exterior, fora do segmento empresarial referido
no texto primitivo da Lei n. 7.064/82 [...]. (BRASIL, Tribunal
Superior do Trabalho, 2016, p. 11)

Apoiando o disposto na decisão supracitadas, serve como exem-


plo o Código de Portugal que, em seu artigo 4º, item 3, preceitua que: “as
normas deste Código só podem ser afastadas por contrato de trabalho
quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e
se delas não resultar o contrário” (NASCIMENTO, 2011, p. 523).
Na CLT, a norma mais favorável está inserida no artigo 6208. Esse
dispositivo assegura a possibilidade de melhores condições aos traba-
lhadores, independentemente da posição hierárquica em que se encon-
tra a norma, existindo uma flexibilidade na sua hierarquia, buscando
atender às necessidades do hipossuficiente na relação de emprego
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

(FREITAS; SILVA, 2010, p. 5).


Não prevalece no direito do trabalho, necessariamente, a metodo-
logia hierárquica de aplicação das normas, ou seja, existindo a possibili-
dade de aplicação de duas ou mais normas a um mesmo caso concreto,
deve-se aplicar sempre a que for mais favorável ao empregado.
Quanto à Súmula 207 do TST, atualmente cancelada, pode-se dizer
que ela era apenas a regra geral, devendo sempre buscar a proteção dos
direitos sociais dos trabalhadores, mesmo que para isso fosse necessário
ir contra o critério da territorialidade (VECCHI, 2014, p. 358).
Em concordância com a aplicação da norma mais favorável ao
empregador,


8
Artigo 620, da Consolidação das Leis do Trabalho: “As condições estabelecidas em
Convenção, quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo.”
194
195
[...] tendo em vista o princípio constitucional da norma mais fa-

Constitucionalismo Contemporâneo
vorável, previsto no art. 7º, caput, da CF de 1988 [...] bem como
o art. 4º, incs. II e IX, da CF de 19889, esta interpretação deveria
ganhar em sustentação. De fato, independentemente de qualquer
lei regulando a matéria, o que realmente deveria prevalecer é o
princípio previsto expressamente no caput do art. 7º da CF de
1988 que, como se disse, é um princípio fundamental de inter-
pretação e, portanto, obrigatório não só para o juiz, mas também
para o legislador. (VECHI, 2014, p. 358, grifo do autor)

Constata-se que a aplicação da norma mais favorável ao traba-


lhador trata-se de um critério pacificador do conflito de leis no espaço,
afinal, está assentado em norma constitucional, consagrado no artigo
7º da Constituição Federal como direito fundamental aos trabalhadores

e suas formas contemporâneas


(BELFORT, 2014, p. 88).
Evidencia-se que, em se tratando de matéria trabalhista, a doutri-
na clássica, em sua maioria, aponta que o ápice da hierarquia das fontes
deve ser ocupado pela norma mais favorável ao empregado, tendo em
vista que o critério da territorialidade deve ser utilizado apenas como
regra geral, sendo que deve ser dirigida uma proteção mais firme ao hi-
possuficiente da relação de emprego, aplicando-se, assim, a norma mais
favorável, como forma de garantir a eficácia dos direitos humanos fun-
damentais dos trabalhadores nas prestações de serviços transnacionais
(BITENCOURT; FINCATO, 2015, p. 2.249).
Com efeito, observa-se que o teletrabalho veio definitivamente
para ficar, conquistando um amplo espaço dentro do ordenamento jurí-
dico brasileiro e internacional. No entanto, a solução de conflitos de leis
trabalhistas no espaço, que surge com essa nova forma de trabalho ain-
da não é totalmente pacífica, existindo três caminhos completamente
opostos para esta solução, porém, com um objetivo comum, de se che-
gar assim, à melhor solução quanto ao direito aplicável ao conflito de
leis no espaço e que proporcionem a efetivação dos direitos humanos
laborais. Entretanto, não é pretendido com esse trabalho se ver esgota-
da a discussão doutrinária com relação a esse assunto, busca-se apenas
chamar a atenção para a exibida temática, que tem muito ainda para ser
descoberta e debatida em âmbito trabalhista.


9
Artigo 4º, da Constituição Federal: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas
relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] II - prevalência dos direitos hu-
manos; [...] IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; [...].”
Conclusão
Com esse novo horizonte, de avanços tecnológicos e informacio-
nais, abre-se espaço para a inserção de novas modalidades de trabalho
que se utilizam dessas ferramentas para o seu desenvolvimento. O tele-
trabalho transnacional enquadra-se perfeitamente dentro dessas pos-
sibilidades, caracterizando-se por ser um conceito contemporâneo de
organização de trabalho, por meio do qual o teletrabalhador presta seus
serviços virtualmente, por meios telemáticos, cumprindo os objetivos
contratuais em local distante do local em que está situada a empresa, ou
seja, o trabalhador não se encontra fisicamente na sede de trabalho de
seu empregador. No entanto, esta nova espécie de trabalho traz consigo
um ponto crítico, ou seja, coloca em conflito a lei de países distintos
para a solução de problemas que surgem dessa relação laboral.
Dentre as soluções trazidas pela doutrina para solucionar o con-
flito de leis no espaço decorrente do teletrabalho transnacional, assi-
nala-se que, de acordo com a primeira corrente, aplica-se o critério da
territorialidade (lex loci laboris ou lex loci executionis), importando o
local em que o empregado efetivamente presta seus serviços, sendo-
-lhe aplicável a respectiva lei daquele local. Esta corrente esteve fun-
damentada, por muito tempo, pela Súmula 207 do Tribunal Superior
do Trabalho, porém ela foi cancelada no ano de 2012. Por outro lado,
uma segunda corrente defende que a solução do conflito de leis deve
Natalia Berna & Paulo Henrique Schneider

ser feita com base na legislação do país onde está localizada a sede
da empresa. Esse posicionamento baseia-se no argumento de que o
teletrabalho não é realizado em local físico, mas sim em local virtual,
sendo competente, neste caso, a lei do país que recebe o seu trabalho,
que recebe as informações por ele emitidas, aplicando-se assim, a lei
do Estado em que se encontra localizada a sede da empresa, para a
qual o teletrabalhador presta seus serviços.
Não obstante, a terceira e mais adequada corrente vai em desen-
contro com critério de conexão da territorialidade e do local de rece-
bimento dos serviços, aplicando-se, segundo este posicionamento, o
critério da norma mais favorável ao trabalhador, o que tomou ainda
mais força com o cancelamento definitivo da Súmula 207, firmando o
entendimento pleno de que o princípio da norma mais favorável seria a
solução para este tema jurídico.
196
197
À vista disso, pode-se dizer que, existindo conflito espacial de

Constitucionalismo Contemporâneo
normas trabalhistas, a aplicação do critério da norma mais favorável
mostra-se mais congruente e adequado para solucionar esta questão,
pelo fato de primar pela proteção ao hipossuficiente da relação labo-
ral, que, neste caso, é o trabalhador. E isso, justifica-se, por tudo o que
foi relatado no presente estudo, desde as humilhações e explorações
pelas quais os trabalhadores foram obrigados a suportar ao longo de
muitos anos, bem como pelo reconhecimento por todas as lutas e ma-
nifestações em que foram protagonistas, com o intuito de conseguir ver
reconhecida uma proteção quanto às condições de trabalho, de garantia
de seus direitos fundamentais e trabalhistas dentro da relação de em-
prego, bem como pelo respeito à sua dignidade e direitos fundamentais.
Diante do cenário social contemporâneo, que passa por constan-

e suas formas contemporâneas


tes modificações e evoluções, por ser o princípio da norma mais favorá-
vel um princípio considerado universal e substancial dentro do direito
do trabalho, deverá ele [espera-se] ser aplicado sempre que existir al-
gum conflito espacial de normas transnacionais, protegendo os direitos
fundamentais e a dignidade humana de todos os trabalhadores.

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202
A HERMENÊUTICA
CIVIL-CONSTITUCIONAL E OS
PRÉSTIMOS DA BOA-FÉ OBJETIVA
COMO FERRAMENTAS PARA O
RECONHECIMENTO DE NOVOS DIREITOS

Liane Tabarelli
Professora adjunta da Escola de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente
de cursos de pós-graduação e preparatórios para concur-
sos públicos. Doutora em Direito pela PUCRS. Ex-bolsista
da Capes de Estágio Doutoral (Doutorado Sanduíche) na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal.
Autora de obras e de diversos capítulos de livros e artigos ju-
rídicos. Advogada e parecerista.
(liane.tabarelli@pucrs.br)

Cristina Klose Parise de Souza


Doutora em Direito pela UMSA – Universidad Del Museo
Social Argentino – Argentina (2015), Mestre em Direitos
Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz
do Sul (2003), Especialista em Direito Público Municipal
(2002) e graduada em Direito pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões (2000).
(ckparise@bol.com.br)

Introdução
Na contemporaneidade, todos os ramos do Direito exigem uma
leitura constitucionalizada. Os princípios vetores constitucionais e, em
especial, os que se referem aos direitos fundamentais, demandam que
todos os Poderes da República reúnam esforços conjuntos para suas
concretizações. Desse modo, a tarefa da interpretação civil-constitucio-
nal adquire significativa importância para fins de cumprir esse compro-
misso nas relações intersubjetivas.
O presente trabalho visa refletir sobre a interpretação civil-cons-
titucional e a tutela da boa-fé nas relações negociais entre particulares.
Nessa linha, fundamental observar que a presente reflexão se pres-
ta a ratificar a necessária eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, tendo em vista que a tutela da boa-fé, em última instância, re-
presenta a concretização do princípio da dignidade humana.
Por fim, ainda como reflexo disso tudo, a temática do reconhe-
cimento de novos direitos na sociedade contemporânea é objeto de
enfrentamento, em especial acerca do surgimento de direitos que de-
rivam da imposição do cumprimento de deveres anexos nas relações
contratuais, como corolário da tutela da boa-fé objetiva no direito civil
brasileiro.

Hermenêutica constitucional
A palavra, o uso do vernáculo, é e sempre foi instrumento de traba-
lho do jurista. Seja ela escrita ou falada, aquele que opera o Direito sem-
pre se dedicou a compreender, delimitar, apreender, enfim, interpretar o
sentido que as palavras podem adquirir em um texto. Interpretar é esta-
belecer o alcance de uma proposição, revelar o seu sentido.
Não obstante as contribuições de Kelsen (1996) para a Ciência do
Direito, nos dias atuais o Direito é “contaminado” por inúmeros axiomas,
proposições valorativas, éticas, morais, entre outras, que, muitas vezes,
Souza

representam o momento histórico e as prioridades de determinada so-


ciedade. Ainda, partindo do contributo de Kelsen, que estabelece o sis-
tema jurídico com uma estrutura piramidal, onde a Lei das leis, isto é,
de

a Constituição Federal, situa-se no topo desse sistema, a interpretação


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

constitucional adquire significativa importância.


Nesse sentido, interpretar a Constituição significa, em última
instância, dar concretude aos direitos fundamentais ali insculpidos. O
Texto Maior prescreve os objetivos e os fundamentos da República, e
todo o ordenamento jurídico infraconstitucional deve ser interpretado
de modo a prestigiar os comandos constitucionais. Os direitos funda-
mentais ali prescritos devem ser prioridade absoluta de realização por
parte dos agentes de um Estado que se intitula Democrático de Direito.
É importante pontuar, nessa linha, a lição de Freitas (2000, p. 18,
grifo nosso), ao advertir que “jurista é aquele que, acima de tudo, sabe
eleger diretrizes supremas, notadamente as que compõem a tábua de
critérios interpretativos aptos a presidir todo e qualquer trabalho de
aplicação do Direito”.
204
205
Por outro lado, impera salientar, neste estudo, que, ao almejar-se

Constitucionalismo Contemporâneo
uma interpretação concretizante dos preceitos e da axiologia constitu-
cional presente, em particular nos seus fundamentos, urge conhecer os
vetores principiológicos contidos nela. O Direito atual, acompanhando
os ensinamentos de Alexy (2008), cuida de uma rede de princípios e
regras. Essa teia de mandamentos, de densidades e hierarquias distin-
tas, demanda intérpretes preparados para otimizar-lhes os comandos e
produzir a máxima eficácia possível.
Veja-se, por oportuno, as contribuições de Freitas (2000, p. 43-46)
acerca de preceitos propostos em estudo de interpretação constitucional:

a) todo juiz, no sistema brasileiro, é, de certo modo, juiz constitu-


cional e se afigura irrenunciável preservar, ao máximo, a coexis-

e suas formas contemporâneas


tência pacífica e harmoniosa entre os controles difuso e concen-
trado de constitucionalidade;
b) a interpretação constitucional é processo tópico-sistemático,
de maneira que resulta impositivo, no exame dos casos, alcançar
solução de equilíbrio entre o formalismo e o pragmatismo, evi-
tando-se soluções unilaterais e rígidas;
c) ao hierarquizarmos prudencialmente os princípios, as nor-
mas e os valores constitucionais, devemos fazer com que os
princípios ocupem o lugar de destaque, ao mesmo tempo situan-
do-os na base e no ápice do sistema, vale dizer, fundamento e
cúpula do mesmo;
d) o intérprete constitucional deve ser o guardião, por excelência,
de uma visão proporcional dos elementos constitutivos da Carta
Maior, não entendida a proporcionalidade apenas como adequa-
ção meio-fim. Proporcionalidade significa, sobremodo, que esta-
mos obrigados a sacrificar o mínimo para preservar o máximo de
direitos;
e) o intérprete constitucional precisa considerar, ampliativamen-
te, o inafastável poder-dever de prestar a tutela, de sorte a faci-
litar, ao máximo, o acesso legítimo do jurisdicionado. Em outras
palavras, trata-se de extrair os efeitos mais fundos da adoção, en-
tre nós, do intangível sistema de jurisdição única;
f) o intérprete constitucional deve guardar vínculo com a ex-
celência ou otimização máxima da efetividade do discurso nor-
mativo da Carta, no que esta possui de eticamente superior,
conferindo-lhe, assim, a devida coerência interna e a não menos
devida eficácia social;
g) o intérprete constitucional deve buscar uma fundamentação
racional e objetiva para as suas decisões sincrônicas com o sis-
tema, sem adotar soluções contra legem, em que pese exercer
atividade consciente e assumidamente positivadora e reconhe-
cendo que a técnica do pensamento tópico não difere essencial-
mente da técnica de formação sistemática, ambas facetas do
mesmo poder de hierarquizar e dar vida ao sistema, entre as
várias possibilidades de sentido;
h) o intérprete constitucional deve honrar a preservação simul-
tânea das características vitais de qualquer sistema democrático
digno do nome, vale dizer, a abertura e a unidade, que implica
dever de zelar pela permanência na e da mudança;
i) o intérprete constitucional deve acatar a soberania da vitalidade
do sistema constitucional no presente, adotando, quando necessá-
rio e com extrema parcimônia, a técnica da exegese corretiva;
j) o intérprete constitucional precisa ter clareza de que os direi-
tos fundamentais não devem ser apreendidos separada ou loca-
lizadamente, como se estivessem, todos, encartados no art. 5º da
Constituição;
k) o intérprete constitucional, sabedor de que os princípios
constitucionais jamais devem ser eliminados mutuamente, ain-
da quando em colisão ou contradição, cuida de conciliá-los, com
maior ênfase do que aquela dedicada às regras, que são decla-
Souza

radas inconstitucionais, em regra, com a pronúncia de nulidade;


l) o intérprete constitucional somente pode declarar a inconsti-
de

tucionalidade (material ou formal) quando frisante e manifesta-


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

mente configurada juridicamente. Dito de outro modo, deve con-


cretizar o Direito, preservando a unidade substancial e formal do
sistema em sua juridicidade.

Note-se, pois, que a atividade interpretativa envolve, inexoravel-


mente, uma ação hierarquizante diante de inúmeros princípios e regras
que são potencialmente aplicáveis no caso concreto, mas que, se assim
não o fossem, respostas absolutamente contraditórias e paradoxais daí
resultariam.
Freitas (2000, p. 21), ademais, endossa a noção de hierarquização
da atividade interpretativa ao afirmar que

Com efeito, uma vez que inexiste hipótese de dispensa da hie-


rarquização (interpretar é, sempre e sempre, hierarquizar), o
206
207
relevante consiste em perceber que a inafastabilidade da hierar-

Constitucionalismo Contemporâneo
quização converte o critério hierárquico axiológico numa diretriz
operacional superior em confronto com os demais critérios (cro-
nológico e da especialidade), sendo necessário, também, assumir
os consectários desta onipresença hierarquizante, especialmente
ao lidarmos com o fenômeno da colisão de princípios e, de resto,
com as denominadas antinomias de segundo grau.
[...]
Hierarquizar é, pois, a nota suprema da interpretação jurídica como
um todo. Hierarquizando os princípios e as regras constitucionais,
mais evidente transparece o papel concretizador do intérprete
(juiz ou o cidadão em geral) de ser o positivador, aquele que dá
vida ao ordenamento, sem convertê-lo propriamente em legisla-
dor. Ultrapassa-se, desse modo, a polêmica, sem sentido dialético,
entre objetivismo e subjetivismo. Mais intensa se mostra a valia da

e suas formas contemporâneas


preocupação tedesca com a ‘adequação funcional’. Preferível, por
isso mesmo, afirmar que o intérprete constitucional em geral (e,
de modo maiúsculo, o magistrado), de certo jeito, positiva o Direito
por derradeiro. Fora de dúvida, o intérprete (não o legislador) é
quem culmina o processo de positivação jurídica.

Destarte, registre-se que, diante da atividade precípua e hierar-


quizante da interpretação constitucional, a fim de prestigiar a concre-
tude dos direitos fundamentais, inúmeros princípios devem ser obser-
vados e aplicados para se obter a solução que mais se aproxime da re-
alidade e axiologia constitucional. Isso porque é flagrante que, nos dias
atuais, a crescente aplicação dos princípios tem relegado às regras atua-
ção secundária, e os operadores do Direito devem adquirir destreza e
habilidade para atuar com esse novo Direito: O Direito “por princípios”.
Germana de Oliveira Moraes (2004, p. 187), nesse passo, alerta
para o fato de que

A eficiência do Direito ‘por princípios’ depende fundamental-


mente da atuação do juiz constitucional durante o processo de
concretização do Direito para o qual é imprescindível sua capa-
cidade de percepção dos valores sociais. A sociedade, por sua
vez, já condicionada pelo modelo legalista que prometia sem-
pre uma solução previsível para com os conflitos, vê-se, hoje,
perplexa diante da possibilidade de concorrência de soluções
diferentes, ao abrigo do Direito, sem ter ainda a compreensão
de que esta multiplicidade advém de seu caráter encantadora-
mente livre, plural e mutante.
A melhor via que poderá eleger o juiz, nestes tempos de tran-
sição, para atender este desafio de reconstruir e ‘constituir’ o
Direito no caso concreto, ou seja, de dizer se determinada con-
duta é ou não compatível com os princípios constitucionais (=
valores), é a interação com a sociedade civil. Afinal, rigorosa-
mente, numa democracia quem dita o Direito é a sociedade,
reservando-se, agora, sob a égide do Direito ‘por princípios’,
também ao juiz, em especial, ao juiz constitucional, o papel de
decodificador dos valores (= princípios) que ela aceita em de-
terminado momento e em determinado local.

Ainda acerca da temática, Freitas (2000, p. 17) complementa:

[...] as normas estritas ou regras vêm perdendo, cada vez mais,


espaço e relevo para os princípios, despontando estes, por defi-
nição, como superiores àquelas, conquanto não se deva postular
um sistema constituído apenas de princípios, erro idêntico ao de
pretender um ordenamento operando como mera e desconecta-
da aglutinação de regras.
[...]
A cimentação da sistematicidade ocorre por força da amálgama
unicamente trazida pela natureza e pela atuação dos princípios
fundantes e fundados do ordenamento jurídico.
Souza

Constata-se, pois, a importância da tarefa interpretativa e sua com-


de

plexidade na contemporaneidade. Inúmeros interesses a serem atendi-


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

dos, compreensões divergentes, prioridades distintas dos mais diversos


intérpretes. De qualquer modo, frise-se que o vetor maior para a inter-
pretação constitucional que envolva direitos fundamentais deve ser, de
modo imperativo, o resultado que produza as menores limitações ou res-
trições de forma a prestigiar, o quanto possível, sua maior eficácia.
Assinale-se que

Assim, devem ser interpretadas restritivamente as limitações,


havendo, a rigor, regime unitário dos direitos fundamentais das
várias gerações, donde segue que, no âmago, todos os direitos
têm eficácia direta e imediata, reclamando crescente acatamento
encontrando-se peremptoriamente vedados os retrocessos. Com
efeito, uma vez reconhecido qualquer direito fundamental, a sua
ablação e a sua inviabilização de exercício mostram-se inconsti-
tucionais. Nessa ordem de considerações, todo aplicador precisa
208
209
assumir, especialmente ao lidar com os direitos fundamentais,

Constitucionalismo Contemporâneo
que a exegese deve servir como energético anteparo contra o des-
cumprimento de preceito fundamental, razão pela qual deve ser
evitado qualquer resultado interpretativo que reduza ou debilite,
sem justo motivo, a máxima eficácia possível dos direitos funda-
mentais. Em outras palavras, a interpretação deve ser de molde a
levar às últimas conseqüências a ‘fundamentalidade’ dos direitos,
afirmando a unidade do regime dos direitos das várias gerações,
bem como a presença de direitos fundamentais em qualquer rela-
ção jurídica. (FREITAS, 2002, p. 19)

Há que se salientar, também, que, não obstante vários sejam – ou


possam vir a ser – os intérpretes constitucionais, ainda mais em se tra-
tando de um Estado como o brasileiro, o qual admite o sistema difuso e

e suas formas contemporâneas


concentrado de controle de constitucionalidade, o Judiciário tem a atri-
buição por excelência de realizar essa insigne tarefa.
Marcelo Figueiredo (2007, p. 40) ressalta o papel do Judiciário,
por longa data, como garantidor dos direitos civis e da liberdade indi-
vidual, no Estado de modelagem liberal e no Estado Democrático e de
Direito, ao qual o Brasil se propõe a exigir do Judiciário a tutela dos
direitos sociais, sem que isso seja invasão da seara de competência dos
demais poderes.
Entenda-se, ademais, que o Poder Judiciário, além de ser o Poder
constitucionalmente consagrado para a interpretação constitucional, é
aquele que deve possuir imparcialidade ao realizar a prestação jurisdi-
cional. Embora não esteja ele comprometido com interesses como por-
ventura pode ocorrer com o Executivo e o Legislativo, deve, sim, haver
uma atuação afirmativa das Cortes de Justiça no sentido da promoção
dos direitos fundamentais quando de sua atuação. Nesse sentido, pois,
não há que se falar em imparcialidade dos juízes que, antes e acima de
tudo, devem ter compromisso constitucional.
Freitas (2000, p. 29-30; 2002, p. 4. Grifo nosso.) já se manifestava
nesse sentido em duas oportunidades distintas, asseverando que

Ora, em face de ser o juiz o detentor único da jurisdição, surge o


amplo e irrenunciável direito de amplo acesso à tutela jurisdicional
como uma contrapartida lógica a ser profundamente respeitada,
devendo ser proclamado este outro vetor decisivo no processo
de interpretação constitucional: na dúvida, prefira-se a exegese
que amplie o acesso ao Judiciário, por mais congestionado que este
se encontre, sem embargo de providências inteligentes para desa-
fogá-lo, sobretudo coibindo manobras recursais protelatórias e es-
tabelecendo que o Supremo Tribunal Federal deva desempenhar
exclusivamente as atribuições relacionadas à condição de Tribunal
Constitucional, sem distraí-lo com tarefas diversas destas, já sufi-
cientemente nevrálgicas para justificar a existência daquela Corte.
[...]
Almejo, finalmente, deixar consignado que se mostra indispen-
sável apostar no Poder Judiciário brasileiro, em sua capacidade
de dar vida aos preceitos ilustrativamente formulados e crer na
sua fundamentada sensibilidade para o justo, razão pela qual
insisto em proclamar que todos os juízes, sem exceção, preci-
sam, acima de tudo, ser respeitados, fazendo-se respeitar, como
juízes constitucionais.

Logo, diante das considerações aqui tecidas, vislumbra-se a im-


portância da interpretação constitucional como instrumento de reali-
zação dos direitos fundamentais.

Interpretação civil-constitucional e
tutela da boa-fé objetiva
Souza

O Código Civil de 2002, enriquecido na sua estrutura por princí-


pios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, revela a intenção le-
de

gislativa de se pretender um sistema aberto, suplantando o formalismo


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

jurídico da codificação civil de 1916. Isso em razão de que “o Código, en-


quanto sistema fechado, busca imunizar o sistema jurídico do ambiente,
‘trazendo condições ideais’ para aplicação da lei como concebida no seu
texto” (ARONNE, 2006, p. 29), mas essa imunização se mostra impos-
sível para uma ciência social como o Direito. Adequada, nesse ponto, a
seguinte transcrição:

Infere-se que a regra do Direito, em si mesma, se confronta com


uma crise de racionalidade, uma incapacidade crescente de dar
conta da realidade. O Direito não é mais um redutor do real, e ele
não mais o contém. Justifica-se a insistência em centrar e colocar
no palco da relação entre Direito e a sociedade o problema de assi-
metria, a relação de interdependência, exatamente para que fique
claro o fato de que é o Direito que está na sociedade e não vice-
210
211
versa. Já não é o Direito que dá conta das relações sociais. Embora

Constitucionalismo Contemporâneo
isso pareça uma flagrante obviedade, em um sistema dominado
por uma orientação monolítica e concentrada, o reconhecimento
dessa realidade se mostra relevante. (FACHIN, 2012, p. 247-248)

Assim, o legislador atual procura associar a seus enunciados ge-


néricos prescrições de conteúdo completamente diverso em relação
aos modelos tradicionalmente reservados às normas jurídicas. Cuida
das normas que não prescrevem uma certa conduta, mas, simplesmen-
te, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como
ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios
axiológicos e os limites para a aplicação das demais disposições norma-
tivas (TEPEDINO, 2003, p. XIX).

e suas formas contemporâneas


Nesse contexto, pode-se afirmar que “torna-se imprescindível
que o intérprete promova a conexão axiológica entre o corpo codificado
e a Constituição da República, que define os valores e os princípios fun-
dantes da ordem pública.” (TEPEDINO, 2003, p. XX).
Isso porque o ato interpretativo não é arbitrário, mas vinculado.
As cláusulas gerais inseridas no Código Civil de 2002 – tal como a boa-
-fé objetiva – que possuem liberdade de significados de conformação,
encontram limites nos princípios constitucionais. Elas promovem a
interpretação e aplicação do Direito através da ponderação de valores
presentes no caso concreto por parte do intérprete/juiz.
Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem
as cláusulas gerais dar resposta, previamente, a todos os problemas da
realidade, uma vez que estas respostas são progressivamente construí-
das pela jurisprudência (MARTINS-COSTA, 2000, p. 299).
Veja-se que

O Direito é um fenômeno profundamente social, o que revela a


impossibilidade de se estudar o Direito Civil sem que se conheça
a sociedade na qual ele se integra, bem como a imbricação entre
suas categorias e essa sociedade.
Nomeadamente o direito positivado é profundamente histórico
e contextualizado. Assim procedendo, ele opera a definição de
uma moldura que se assenta em um juízo de inclusão e de exclu-
são, segundo esses valores dominantes, por meio de categorias
jurídicas.
Tratar da configuração clássica do sujeito e das transformações
conceituais pelas quais o sujeito passou constitui uma tentativa
de localizar, nestes dois últimos séculos, o indivíduo abstrata-
mente considerado, elevado ao patamar da juridicidade no que
se designou como sujeito. Ao final do século XX, portanto, séculos
depois da vigência do estatuto moderno fundamental da apro-
priação dos bens, da titularidade e do sujeito – o Código Civil na-
poleônico – esboça-se uma tentativa de superação do sujeito abs-
trato, com a construção do sujeito concreto, agregando-se àquela
noção de cidadania. Eis aí o porvir do Direito Civil.
Sujeito concreto e cidadania não se assentam na razão de uma
compreensão exclusivamente abstrata do sujeito: passa a ter sen-
tido o plano do seu conteúdo, bem como suas projeções concretas.
Com isso, é possível afirmar que, quando a Constituição Brasileira
de 1988 tutela o direito à vida – e coloca em um primeiro grau o
direito de personalidade –, situando em um primeiro patamar o
sujeito, não está fazendo homenagem àquele sujeito abstrato do
sistema clássico. Refere-se a um novo sujeito, alguém que tenha
uma existência concreta, com certos direitos constitucionalmente
garantidos: vida, patrimônio mínimo (que compreende habitação)
e sobrevivência. (FACHIN, 2012, p. 206-207)

Nesse sentido, sendo o Direito um produto da cultura da sociedade


na qual ele vige, as cláusulas gerais insculpidas no diploma civil pátrio
Souza

de 2002, tal como a boa-fé objetiva, apresentam-se de forma que sua “es-
trutura tem maleabilidade suficiente para se adequar às transformações
de

sociais que estão por ocorrer” (BRANCO, 2009, p. 123).


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

Especificamente no que se refere à cláusula contida no artigo 422,


CC/02, ela disciplina um padrão de conduta a ser observado nas con-
tratações entre particulares. Trata-se da imposição da observância de
deveres de lealdade, probidade e retidão por parte daqueles que ne-
gociam, seja no antes, durante ou depois da celebração da avença. É a
atribuição de valor jurídico à proteção da confiança, a qual se revela de
fundamental importância para as atividades negociais.
Nesse passo, diz-se que

O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de for-


ma correta não só durante as tratativas, como também durante
a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o
princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se
da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé,
212
213
devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega.

Constitucionalismo Contemporâneo
Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação con-
tratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao
contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja,
com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem
comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lu-
gar. (GONÇALVES, 2013, p. 54)

O conteúdo da cláusula geral da boa-fé objetiva determina, pois,


condutas honestas e leais entre os que participam de relações negociais,
impondo, inclusive, deveres anexos ou laterais às partes contratantes
não inicialmente (e expressamente) previstos no instrumento a fim de se
concretizar, de modo efetivo, práticas contratuais confiáveis e legítimas.
São exemplos de deveres anexos o dever de segurança, o dever de infor-

e suas formas contemporâneas


mação, o dever de sigilo, entre outros. É oportuno registrar, no presente
ponto do trabalho, que “pelo prisma do Código, há três funções nítidas
no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (art. 113); função
de controle dos limites do exercício de um direito (art. 187); e função de
integração do negócio jurídico (art. 422)” (VENOSA, 2013, p. 395).
Nessa esteira, havendo necessidade de interpretação do pacto
por parte do Judiciário ou de um mediador, o intérprete deve pautar
sua atividade interpretativa de forma a preencher o conteúdo da cláu-
sula geral da boa-fé objetiva, prestigiando a concretização da principio-
logia constitucional de 1988, em particular de um dos fundamentos da
República, qual seja, a dignidade humana (art. 1º, III, CF/88). Observe-
-se que a tutela da dignidade humana perpassa pela tutela da confiança
no âmbito negocial, já que “a fundamentação constitucional do princí-
pio da boa-fé assenta-se na cláusula geral de tutela da pessoa humana”
(NEGREIROS, 2006, p. 117).
Vê-se, nesse horizonte, que as “cláusulas gerais contidas na codi-
ficação civil, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato, serão
preenchidas, no caso concreto, conforme valores, regras e princípios
constitucionais” (HIRONAKA, 2007, p. 51-52).
Nesse diapasão, é interessante registrar também que

No Direito, os valores são capturados e desvendados pelas qua-


tro fontes de produção de normatividade jurídica, quais sejam,
a legislativa, a jurisprudencial, a costumeira e a negocial, sendo
operacionalizados pelos modelos jurídicos, [...]. Um modelo dog-
mático sintetizará, contudo, a totalidade dos valores: será o que
tem a pessoa humana como “valor fonte” do ordenamento [...].
(MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p. 176)

Destarte, a revalorização da confiança como valor preferencial-


mente tutelável no trânsito jurídico correspondente a uma alavanca
para repensar o direito civil brasileiro contemporâneo e suas categorias
fundamentais (FACHIN, 1998, p. 115).
A tutela da boa-fé objetiva aproxima-se, dessa forma, da teoria
da aparência, na medida em que ao intérprete incumbirá o controle
do exercício abusivo de poderes/direitos, por meio do qual enaltecerá
a honestidade de quem agiu com base nas aparências, garantindo a
devida proteção jurídica à confiança negocial em detrimento do abuso
de direito.
Para ilustrar tal situação, lembra-se a regra prevista no artigo
309, CC/02, a qual versa sobre a validade do pagamento feito ao credor
putativo. Observe-se que

Essa situação ingressa no sistema jurídico, que se abre para


compreender algo que ordinariamente não passa de um fato.
Souza

O Direito acaba “copiando” esse ato, oferecendo-lhe dignidade


jurídica em homenagem a determinado valor. A putatividade tu-
tela um juízo ético nesse comportamento do devedor. (FACHIN,
de

2012, p. 203)
Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

Assim é que, “em princípio, contratante algum ingressa em um


conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A má-fé inicial ou inter-
locutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico, e
como tal deve ser examinada e punida” (VENOSA, 2013, p. 395). Isso se
deve ao fato de que

Toda cláusula geral remete o intérprete para um padrão de con-


duta geralmente aceito no tempo e no espaço. Em cada caso, o
juiz deverá definir quais as situações nas quais os partícipes de
um contrato se desviaram da boa-fé. Na verdade, levando-se em
conta que o Direito gira em torno de tipificações ou descrições
legais de conduta, a cláusula geral traduz uma tipificação aber-
ta. (VENOSA, 2013, p. 395)

214
215
Logo, diz-se que “o vínculo obrigacional abriga, no seu seio, não

Constitucionalismo Contemporâneo
um simples dever de prestar, simétrico a uma prestação creditícia,
mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastan-
te para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta.”
(CORDEIRO, 2001, p. 586). Assim sendo, a boa-fé objetiva, ao proteger
a confiança negocial, exige que o intérprete/juiz, ao apreciar o compor-
tamento das partes contratantes, constate se houve ou não abuso de
direito e determine o alcance do conteúdo do pacto, por meio de sua
atividade interpretativa, de forma mais adequada a concretizar os dita-
mes constitucionais. Nessa linha:

O art. 422 do Código Civil é uma norma legal aberta. Com base
no princípio ético que ela acolhe, fundado na lealdade, confian-
ça e probidade, cabe ao juiz estabelecer a conduta que deveria

e suas formas contemporâneas


ter sido adotada pelo contratante, naquelas circunstâncias, le-
vando em conta ainda os usos e costumes. Estabelecido esse
modelo criado pelo juiz para a situação, cabe confrontá-lo com
o comportamento efetivamente realizado. Se houver contrarie-
dade, a conduta é ilícita porque violou a cláusula da boa-fé, as-
sim como veio a ser integrada pela atividade judicial naquela
hipótese. Somente depois dessa determinação, com o preenchi-
mento do vazio normativo, será possível precisar o conteúdo e o
limite dos direitos e deveres das partes. (AGUIAR JÚNIOR, 2003,
p. 248)

De igual modo, além de rechaçar o abuso de direito, o comando


da cláusula geral do artigo 422, CC/02, impõe a tutela da aparência,
conferindo efeitos jurídicos a situações em que se vislumbra um equí-
voco escusável, o qual acarretaria invalidade da relação contratual.
Isso garante proteção de expectativas legítimas da parte que, justifica-
damente, acreditou na conduta da outra parte do negócio e pautou o
seu comportamento em função desse depósito de confiança realizado.
Trata-se de cuidado com a lisura de atitudes dos contratantes e a leal-
dade negocial, prestigiando-se, assim, a dignidade da pessoa humana.
Veja-se:

[...] a boa-fé como baliza ou pauta para a aferição da licitude do


exercício jurídico, apanhando, portanto, o modo de exercício dos
poderes, direitos e situações contratuais. [...].
Nesta função, atua a boa-fé (como bem averbou o Superior
Tribunal de Justiça em outros julgados1) tanto negativamente, ao
opor ‘barreira à enganação’, ao ardil e à alegação da própria tor-
peza; quando positivamente, ao proteger expectativas legítimas
de quem crê e confia na conduta alheia, naquelas situações em
que é justificável, a um dos contratantes, depositar um ‘investi-
mento de confiança’, na regularidade ou no significado da condu-
ta da contraparte. (MARTINS-COSTA, 2011, p. 536-537)

Observe-se, por outro lado, que a segurança jurídica do ordena-


mento, diante de normas de tessitura aberta como as cláusulas gerais
no Código Civil de 2002, é preservada por meio de uma interpretação
civil-constitucional que prestigie os princípios vetores da Carta Maior.
No que tange a critérios para se obter segurança jurídica dian-
te de um sistema normativo aberto, consoante Martins-Costa, deve ser
“vista a lei não como limite, mas como ponto de partida para a criação
e o desenvolvimento do direito, manifesta-se a utilidade das cláusulas
gerais” (MARTINS-COSTA, 2000, p. 292).
Fato é que as escolhas interpretativas não devem se dar de modo
irrestrito e desarrazoado. Defende-se aqui que o limite da discriciona-
riedade judicial deve ter como fundamento último a supereficácia so-
Souza

cial dos direitos fundamentais nas relações intersubjetivas. Ou seja, a


justificação dessa atuação com discrição do juiz encontra ressonância
no fundamento do próprio sistema jurídico, isto é, o princípio da dig-
de

nidade da pessoa humana.


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

Ademais, adverte Martins-Costa (2002, p. 657-658) que

Toda e qualquer reconstrução dogmática está, em primeiro lu-


gar, atada aos valores e diretivas do ordenamento, que exige do
juiz não apenas ato de vontade, mas, fundamentalmente, ato de
conhecimento e de responsabilidade, razão pela qual a exigência
constitucional da motivação da sentença deve ser acrescida pela
mais completa explicitação dos elementos de fato e de direito que
ensejaram, na hipótese examinanda, a invocação da boa-fé.

Dessa forma, essa abertura semântica normativa das cláusulas


gerais do diploma civil pátrio de 2002, tal como a boa-fé objetiva, não


1
Vide REsp. 591.917/GO, 3ª T., j. 16.12.2004, Relª. Minª. Nancy Andrighi, DJ 01.02.2005.
216
217
obstante permita diversas interpretações por meio de conceitos discri-

Constitucionalismo Contemporâneo
cionários por parte do intérprete/juiz, não conduz à insegurança do sis-
tema, já que a tarefa interpretativa encontra limite na concretização da
principiologia constitucional de 1988.
Oportuno, nessa linha, invocar os ensinamentos de Gadamer
(1977) para quem a verdade de um texto não está na submissão in-
condicionada à opinião do autor, nem só nos preconceitos do intérpre-
te, senão na fusão dos horizontes de ambos, partindo do ponto atual
da história do intérprete que se dirige ao passado em que o autor se
expressou.
Assim, a real finalidade da hermenêutica jurídica é “encontrar o
Direito” (seu sentido) na aplicação “produtiva” da norma, pois a com-

e suas formas contemporâneas


preensão não é um simples ato reprodutivo do sentido original do texto,
senão, também, produtivo (GADAMER, 1977, p. 366). Daí a importância
da dimensão constitucional do direito civil.
Nesse sentido são as contribuições de Fachin (2012, p. 363), para
quem

[...] três perspectivas se presentificam em direção ao porvir:


de uma parte, considerando-se que um Código que não está na
ordem do dado, uma dimensão criativa é a que fará, sob as lu-
zes da jurisprudência, doutrina e legislação superveniente, a
concretude real e efetiva da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de
2002; de outra parte, uma teoria crítica, inclusive por coerên-
cia, deve estar no campo do inacabado, do refazimento perma-
nente, o que se alça como alavanca metodológica de análise e
não apenas como dissecção estável de seu objeto; e por der-
radeiro, a dimensão constitucional do Direito Civil brasileiro
contemporâneo abarca, ao lado dos horizontes formais e subs-
tanciais dessa base, a perspectiva de reconstrução incessante
do próprio Direito Civil para que, no limite, acerte o passo com
as demandas de seu tempo, e na possibilidade, contribua na
edificação da justiça.

Ratifica-se, pois, que teoria da aparência, mesmo não expressa-


mente contemplada no Código Civil brasileiro atual, inspira a cláusula
geral da boa-fé objetiva como um modelo de conduta a ser observado
entre os contratantes, a qual ordena uma interpretação civil-constitu-
cional construtiva que valorize a confiança negocial. Trata-se do reco-
nhecimento de novos direitos na sociedade contemporânea, em espe-
cial nas relações contratuais, os quais derivam da imposição do cum-
primento de deveres anexos às partes contratantes, como consequência
da observância da boa-fé objetiva no direito civil pátrio. É exatamente
sobre esta temática que o item a seguir irá versar.

Os préstimos da boa-fé objetiva, em um


contexto de interpretação civil-constitucional,
para o reconhecimento de novos direitos
De início, alerta-se para o fato de que a boa-fé pode se manifestar
tanto na sua acepção subjetiva quanto na objetiva. Assim, fundamental
serem elas diferenciadas, tendo em vista que ambas são objeto de prote-
ção no direito civil brasileiro.
Veja-se que a boa-fé subjetiva consiste na ignorância de um vício.
O agente desconhece o vício que macula, por exemplo, sua posse sobre
determinado objeto, o que lhe permite, desde que honre os demais re-
quisitos legais, adquirir a propriedade do bem via usucapião. A boa-fé
subjetiva se contrapõe à má-fé. Por outro lado, a ideia de boa-fé objetiva
Souza

representa, como mencionado em itens anteriores deste trabalho, um


mandamento de conduta imposta aos contratantes. Trata-se da imposi-
de

ção de um padrão de conduta contratual probo, honesto e leal. É imposi-


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

ção de agir com honestidade, confiabilidade e integridade entre as partes


contratantes. A boa-fé objetiva impõe, portanto, um padrão de conduta
tanto no momento da celebração do contrato como em sua execução.
Nesse sentido,

Quando a ação é imbuída da consciência de que a conduta é cor-


reta e proba, fala-se em boa-fé objetiva; quando o agente tem no-
ção de que está agindo de forma improba, acarretando prejuízo à
situação de outra parte na relação jurídica, fala-se em má-fé obje-
tiva [...]. (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2014, p. 853)

Nessa linha, pode-se observar o julgado a seguir, o qual abrange


a tutela tanto da boa-fé objetiva quanto da subjetiva no mesmo caso con-
creto:
218
219
APELAÇÃO CÍVEL. SEGUROS. FURTO DE VEÍCULO. NEGATIVA

Constitucionalismo Contemporâneo
DA SEGURADORA EM INDENIZAR. IRREGULARIDADE DA
SEGURADORA AO NEGAR O PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO.
VALORES DEVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. A prova oral produzi-
da comprovou que efetivamente ocorreu irregularidade por parte
da ré em negar o pagamento do valor da indenização relativa ao
seguro mantido pela autora. Em relação ao valor da indenização,
em se tratando de contratos de seguro, há que se presumir a boa-fé
subjetiva dos consumidores e se impor deveres de boa-fé objetiva
para os fornecedores. O valor pago pelo seguro deve ser aquele es-
pecificado na oferta, o qual despertou a confiança do consumidor
e sobre o qual a autora pagou suas contribuições O valor do prê-
mio é calculado de acordo com o valor projetado para a cobertura
ou indenização securitária. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível
nº 70038402533, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

e suas formas contemporâneas


Relator: Romeu Marques Ribeiro Filho, Julgado em 23/02/2011)

Desse modo, como consequência da observância da boa-fé obje-


tiva, surgem deveres anexos, os quais devem ser honrados pelos con-
tratantes que pautam suas ações no âmbito obrigacional com lealdade
e probidade. Esses deveres devem ser adimplidos, ao lado das obriga-
ções principais dos contratos, mesmo que implícitos sejam à avença
firmada entre as partes. Como consequência disso, por exemplo, veja-
se que, em uma avença securitária, a parte que deseja contratar uma
apólice de seguro de vida tem que informar a existência de doenças
preexistentes; em uma compra e venda deve o alienante informar ao
potencial adquirente se o preço pedido pelo veículo exibido com de-
terminados acessórios inclui-os ou não se o negócio se perfectibilizar.
Isso não deixar de ser também tutela legal contra o abuso de direito
previsto no artigo 187, CC/02.
Assim, tem-se, a partir da boa-fé objetiva, o reconhecimento de
deveres anexos, secundários ou conexos às relações contratuais. Ao lado
do reconhecimento desses deveres, surge também o reconhecimento de
novos direitos deles decorrentes. Nesse sentido, enaltece Michael Silva
(2009, p. 412):

[...] a boa-fé objetiva passa a integrar o negócio jurídico por meio


dos chamados deveres anexos de conduta (proteção, cooperação
e informação, dentre outros), os quais visam consagrar a sua fina-
lidade precípua, qual seja o adimplemento do contrato, devendo
ser observados na fase pré-contratual, de execução do contrato e
pós-contratual.

Nesse diapasão, os deveres devem ser compreendidos como po-


sitivos e negativos, os quais, através de sua inserção na relação jurídica,
relativizam a autonomia privada ao estabelecerem deveres de compor-
tamento, os quais nortearão a conduta dos contratantes, nas fases pré,
contratual e pós-contratual (MELLO, 2001, p. 316).
Destarte, como já mencionado, da exigência da observância e
adimplemento dos deveres secundários nas relações negociais surge
também o reconhecimento de novos direitos deles derivados. Para ilus-
trar tal situação, constate-se que a jurisprudência pátria já se pronunciou
sobre o reconhecimento de direito indenizatório em razão de violação
de deveres anexos ao contrato. Trata-se da chamada violação positiva do
contrato2. Cita-se, por exemplo, o caso dos tomates no Rio Grande do Sul
(Apelação Cível nº 591028295, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julgado em 06/06/1991) e
o caso Zeca Pagodinho (Apelação n. 9112793-79.2007.8.26.000, Quinta
Câmara de Direito Privado, Tribunal de Justiça de SP, Relator: Mônaco
da Silva, Julgado em 12/06/2013).
No mesmo sentido:
Souza

RESPONSABILIDADE CIVIL. SENTENÇA CITRA PETITA. VÍCIO.


de

POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO IMEDIATO. CAUSA MADURA.


Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

[...]. AUSÊNCIA DE CUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO.


RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROFISSIONAL MÉDICO. DEVER
ANEXO À RELAÇÃO. - Falta de prova de o doutor haver informa-
do à paciente os riscos da operação. Inexistência de consenti-
mento informado, impossibilitando à enferma, ciente dos riscos
e através da autonomia da vontade, optar por realizar ou não a
intervenção cirúrgica. Ausente alerta quanto à possibilidade de
perfuração de órgão através do procedimento aplicado – vide-
olaparoscopia. Responsabilidade civil do médico reconhecida.
- “É fora de qualquer dúvida que o médico incorre em respon-
sabilidade, no caso de o tratamento vir a ser ministrado sem o
consentimento livre e esclarecido do doente. Pode-se afirmar
que o consentimento é um pré-requisito essencial de todo trata-


2
Para aprofundamentos, consulte-se: SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A Boa-Fé e a Violação
Positiva do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
220
221
mento ou intervenção médica” – lição doutrinária. - Dano moral

Constitucionalismo Contemporâneo
ocorrente por presunção, in re ipsa. Morte de familiar dos auto-
res por infecção decorrente de rompimento de órgão. Violação
ao dever de consentimento informado. Precedentes desta Corte.
- Valor da indenização que deve considerar que o erro não
ocorreu na intervenção cirúrgica ou nos atos pós-operatórios,
mas decorreu da ausência do consentimento do procedimen-
to. Jurisprudência deste Tribunal quanto ao tópico. - Ausente
sistema tarifado, a fixação do quantum indenizatório ao dano
extrapatrimonial está adstrita ao prudente arbítrio do juiz.
Valor fixado em R$ 22.000,00 (vinte e dois mil reais) para cada
autor a ser arcado exclusivamente pelo médico réu. DERAM
PROVIMENTO EM PARTE À APELAÇÃO. UNÂNIME. (Apelação
Cível nº 70067906073, Décima Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado

e suas formas contemporâneas


em 02/06/2016).

Ainda, especificamente sobre o dever anexo de informar em um


contrato de prestação de serviços médicos e os direitos advindos da
inobservância de tal dever, ao se tecer comentários sobre o reconheci-
mento de direitos e a aplicação da boa-fé objetiva, veja-se:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO ESTÉTICO.


OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. DEVER ANEXO DO MÉDICO
DE INFORMAR OS RISCOS DE RESULTADO DIVERSO DO
PRETENDIDO. OBRIGAÇÃO NÃO ATENDIDA. DANO ESTÉTICO
VERIFICADO. JUROS MORATÓRIOS INCIDENTES A CONTAR DA
DATA DO ILÍCITO. I. A contratação de cirurgia plástica estética
configura espécie de obrigação de resultado, a qual comporta de-
veres anexos, primordialmente o dever de informar a parte de
eventuais riscos de resultado diverso do pretendido. II. Uma vez
demonstrado nos autos o descumprimento, pelo cirurgião médi-
co demandado, do dever de informar à autora acerca dos riscos
do serviço por aquele oferecido, e verificadas imperfeições de-
correntes da intervenção cirúrgica de lipoaspiração, concernen-
tes na assimetria das mamas e do abdômen, resta caracterizada
a violação positiva do contrato, por descumprimento do dever
anexo (Nebenpflichten) de informação, o qual, em se tratando de
relação de consumo, encontra previsão expressa no art. 30 do
CDC. Corolário lógico é o cabimento da indenização por prejuízo
extrapatrimonial da espécie dano estético. III. Os juros de mora,
neste caso, devem ser contados a partir do evento danoso a teor
do que dispõe a Súmula nº 54 do STJ, por se tratar de respon-
sabilidade extracontratual. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (Apelação
Cível nº 70029885506, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 02/09/2010)

Portanto, diante do sublinhado anteriormente, este estudo en-


frenta imprescindível reflexão que se presta a ratificar a necessária efi-
cácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, tendo em vista
a tutela da aparência e da boa-fé objetiva e o reconhecimento de novos
direitos na sociedade contemporânea dela decorrentes.

Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que a codificação civil na atualida-
de é recheada de normativas abertas, as quais permitem a atualização
do sistema por parte do próprio intérprete. O dogma da completude,
o qual foi notável durante o Positivismo Jurídico, cedeu diante da di-
namicidade da sociedade contemporânea. O Direito é alimentado pelos
fatos sociais e pela cultura da sociedade na qual ele vige. Assim, Direito
e sociedade são indissociáveis, e qualquer tentativa de “engessar” um
dos dois sistemas está fadada ao fracasso.
Dentre as cláusulas gerais disciplinadas na codificação civil de
Souza

2002, encontra-se a boa-fé objetiva positivada no artigo 422. Trata-se


da tutela da confiança nas relações entre os particulares. A boa-fé obje-
de

tiva é, como visto neste trabalho, incorporada no Código Civil brasileiro


de modo multifuncional. Uma de suas funções – com evidente conexão
Liane Tabarelli & Cristina Klose Parise

com as considerações aqui expostas – é proteger a legítima confiança do


contratante que, de boa-fé, imbuído pelas aparências, crê em determi-
nada conduta da outra parte do contrato ou, em dada situação de direito
posta, a qual não corresponde à realidade, e que, inexoravelmente, iria
levar à invalidação do negócio jurídico se não se protegesse a confiança
negocial como um valor jurídico.
A boa-fé objetiva é, portanto, cláusula geral que impõe um padrão
de conduta reto, probo, durante as fases pré e pós-contratual, possi-
bilitando que o intérprete/juiz, havendo discussão acerca da relação
contratual, tutele a aparência que legitimou o depósito de confiança de
um contratante, outorgando consequências jurídicas ao que, à primeira
vista, nada acarretaria ou seria invalidado. A teoria da aparência, pois,
embora não expressa no sistema civil pátrio, inspira a cláusula geral da
222
223
boa-fé objetiva como um modelo de conduta entre os contratantes a ser

Constitucionalismo Contemporâneo
observado, valorizando a confiança.
Nesse contexto, é fundamental mencionar a importância da ativi-
dade interpretativa, no âmbito de um direito civil com inspiração cons-
titucional e cuja leitura de seu texto jamais pode olvidar, por parte do
intérprete, a concretização dos direitos fundamentais nas relações hori-
zontais. Para fins deste artigo, importa uma interpretação civil-constitu-
cional concretizante dos direitos fundamentais, que, de modo especial,
prestigie e enalteça a dignidade humana, reconhecendo sua íntima rela-
ção com a tutela da confiança na seara das relações negociais, bem como,
como consequência disso, o reconhecimento de novos direitos decorren-
tes da observância da boa-fé objetiva no âmbito contratual.

e suas formas contemporâneas


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224
O ESTADO E SUAS CRISES:
CONTEMPORANEIDADE E
GLOBALIZAÇÃO

Robson Alves de Almeida Diniz


Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa
Cruz do Sul – UNISC. Pós-graduado em Processo Civil pela
Universidade Regional do Cariri – URCA e em Gestão Pública
pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Professor uni-
versitário, Procurador municipal e advogado.
(adv.robsonalmeida1@gmail.com)

O presente artigo científico tem como objetivo realizar uma aná-


lise das circunstâncias do surgimento do Estado liberal, bem como seu
desenvolvimento que resultou no Estado social, com uma mudança pa-
radigmática sobre a sua atuação e comportamento, tendo reflexos di-
retos na sociedade, fazendo um contraponto sobre as principais carac-
terísticas de ambos os modelos de atuação estatal. A problematização
refere-se em saber se esses momentos resultaram em crises e quais são
essas crises que afetam o Estado contemporâneo.

Do estado liberal ao estado social


Este tópico tem como objetivo tratar dos momentos e caracterís-
ticas que cercam o desenvolvimento do Estado. Todavia, para que se
apresente um diagnóstico que se esmere na realidade atual, é preciso
contextualizar o nascimento do Estado, analisando as causas desse
surgimento, sua evolução história, bem como o advento de uma nova
roupagem ideológica (social-democracia) que impulsiona todo o agir
estatal na contemporaneidade.
Quando se fala em Estado, é necessário que se entenda que este
conceito reflete uma evolução histórica que remonta, embora com leve
acentuação de suas características, às civitas romanas e pólis gregas.
As cidades da antiguidade clássica eram os Estados, centros de
irradiação do poder, das dominações, em que as associações políticas
eram formadas pelo conjunto de aldeias (famílias agrupadas), que se
reuniam para satisfazer as necessidades básicas e promover a vida boa
(ARISTÓTELES, 2015).
Assim, os primeiros rudimentos do fenômeno estatal residiam na
antiga cidade-estado, e esta seria o fim de toda a associação humana
com vistas a preservar e garantir uma existência que suprisse as neces-
sidades biológicas e políticas dos seres humanos.

E quando várias aldeias se unem em uma única e complexa comu-


nidade, a qual possui todos os meios para bastar-se a si mesma,
surge a Cidade (pólis), formada originalmente para atender às
necessidades da vida e, na sequência, para o fim de buscar viver
bem. Assim, se em sua forma inicial essa associação era conforme
a natureza, do mesmo modo o é a Cidade, pois esta é o fim daquela
primeira associação, e a natureza de uma coisa é justamente o seu
fim: dizemos que um ser é perfeito [que atingiu o seu completo
desenvolvimento] quando ele (seja um homem, um cavalo ou uma
família) está conforme a natureza. (ARISTÓTELES, 2015, p. 56)

Percebe-se então que já na antiguidade há a ideia de que a asso-


ciação humana para organização e preservação da vida dos cidadãos em
sociedade tendia para a realização de objetivos comuns e para a cons-
trução de uma entidade política que realizasse tal objetivo, ideia essa
Almeida Diniz

que acompanha os teóricos dos séculos XVII e XVIII que alicerçaram a


construção do Estado moderno liberal. Trazendo uma conclusão eluci-
dativa sobre a ideia de Cidade, como associação humana social e políti-
ca, ligada ao objetivo de unir as famílias e o indivíduo para a realização
do bem comum, Copetti Santos (2009, p. 64) assevera:
de

Fica assaz demonstrado, portanto, que na acepção de Aristóteles


Robson Alves

acerca da pólis, que o que forma a cidade não é o fato de os ho-


mens residirem num mesmo lugar, não causarem prejuízos uns
aos outros e manterem intercâmbio comercial – ainda que essas
condições sejam necessárias para a existência da cidade; porém,
por si apenas, elas não preenchem a características essencial da
226
227
cidade. A única associação que constitui uma cidade é a que pro-

Constitucionalismo Contemporâneo
move a participação das famílias e de seus descendentes na ven-
tura de uma existência independente, inteiramente ao abrigo da
miséria. Em outras palavras, o bem comum.

De todo modo, embora exista uma estreita relação entre a ideia


de cidade e alguns elementos do constitucionalismo contemporâneo,
no que tange ao surgimento de uma organização para a promoção da
virtude ou do valor do bem comum, o Estado moderno absolutista irá
nascer e se desenvolver no início do século XVI, ao cabo da Idade Média,
ao fim do feudalismo.
Como produto do acordo político entre a burguesia em ascensão e
a monarquia, o Estado nasce absoluto, após o colapso e declínio da Idade

e suas formas contemporâneas


Média, com sua organização feudal criada a partir da queda do Império
Romano. Durante todo esse período histórico, não havia o entendimento
do conceito de Estado como instituição concentrado do poder de coerção
com fins de ostentar a centralização do poder normativo.
A ideia central do Estado do absoluto, sem extreme de dúvidas, é
a soberania, doutrinada e reconhecida como um princípio inerente que
buscava legitimar o comportamento da monarquia, tendo como carac-
terísticas essenciais ser absoluta e indivisível, entendida como corolá-
rio imprescindível do poder público estatal.
Dessa forma, o período medievo não testemunhou uma centrali-
zação de poder, tendo em vista a vasta rede de poderes fragmentada de
reinos e feudos. A soberania como princípio unificador, criador e ine-
rente ao Estado, com a concentração nas mãos do monarca, somente se
impôs a partir do século XIV.
Vista como uma reação à sociedade medieval pluralista, em que
vigorava a pluralidade de fontes do direito e a descentralização do po-
der, características do feudalismo, a soberania é, historicamente, com-
preendida como um poder juridicamente incontrastável, “pelo qual se
tem a capacidade de definir e decidir acerca do conteúdo e aplicação de
normas, impondo-as coercitivamente dentro de um determinado espa-
ço geográfico, bem como fazer frente a eventuais injunções externas”
(BOLZAN DE MORAIS, 2005, p. 11).
O absolutismo foi objeto de legitimação político-filosófica por
parte de Hobbes (2003), que, em obra clássica, trouxe aportes teóri-
cos para justificar os poderes extremos dos monarcas, através de um
contrato hipotético entre os homens, para, com o intuito de saírem do
estado de barbárie (“estado da natureza”), conservarem a sociedade e
preservarem as suas vidas. Todavia, o aprofundamento deste estudo
acontecerá oportunamente em outro tópico deste artigo.
Aos poucos, as monarquias absolutistas começaram a apresen-
tar-se como ameaças aos interesses e ideais da burguesia emergente, de
forma que o poder absoluto era visto como uma barreira ao crescimen-
to econômico e expansão do capital da classe burguesa.

A Revolução Francesa não foi feita ou liderada por um partido


ou movimento organizado, no sentido moderno, nem por ho-
mens que estivessem tentando levar a cabo um programa es-
truturado. Nem mesmo chegou a ter “líderes” do tipo que as
revoluções do século XX nos têm apresentado, até o surgimen-
to da figura pós-revolucionária de Napoleão. Não obstante, um
surpreendente consenso de ideias gerais entre um grupo social
bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma uni-
dade efetiva. O grupo era a “burguesia”; suas ideias eram as do
liberalismo clássico, conforme formuladas pelos “filósofos” e
“economistas” e difundidas pela maçonaria e associações infor-
mais. (HOBSBAWM, 2009, p. 136)

Para que pudesse desenvolver as suas atividades financeiras e


econômicas, a burguesia necessitaria de garantias contra as investidas
arbitrárias do monarca em relação a alguns direitos necessários para a
evolução dessas atividades mercantis, como a propriedade privada, a
liberdade de contratar e a limitação de imposição de tributos.
Almeida Diniz

A classe burguesa, assim, assume o protagonismo das mudanças


que eclodiram a grande Revolução Francesa, marco teórico, intelectual
e prático que resultou no ocaso das monarquias absolutas na França e
depois em vários outros lugares.
As revoluções americana e francesa, nesse sentido, deram início
de

e formatação a uma nova forma Estado, agora, Estado liberal, que viria
Robson Alves

a garantir certas liberdades públicas e alguns direitos, passando a asse-


gurar uma certa segurança aos indivíduos em face do próprio ente esta-
tal, que seria, a partir desse momento, limitado e absenteísta. Conforme
ressalta Silveira Espindola (2005, p. 46).
228
229
Prevalece, portanto, a concepção de um poder estatal limitado,

Constitucionalismo Contemporâneo
controlado, com o dever de obediência a certas normas jurídicas,
cuja finalidade é impor limites ao poder e permitir, em conse-
quência, o controle do poder pelos seus destinatários. O poder
soberano não está mais exclusivamente nas mãos uma única pes-
soa (rei), mas antes nas mãos do povo (soberania popular).

Dessa forma, o Estado liberal mínimo apresenta-se como a pri-


meira forma de Estado de direito, cuja atuação e atividades estão vincu-
ladas à aplicação de regras jurídicas previamente estabelecidas. Visava,
portanto, estabelecer limites jurídicos à atuação do Estado na interven-
ção na vida privada dos indivíduos, ao passo que declarava uma gama
de direitos referentes às liberdades individuais clássicas (religiosa, ex-
pressão, propriedade privada, etc.).

e suas formas contemporâneas


Sustentava a burguesia a não intervenção do Estado nos negó-
cios privados da nova classe emergente, de maneira que a garantia da
liberdade e da propriedade privada revelariam uma nova racionalidade
societal que imporia uma nova ordem de regulação, fazendo prosperar
a sociedade e o Estado.
Como os meios de produção da nova realidade que se instaurava
após as revoluções estavam concentrados ao senhorio da burguesia,
que se beneficiava da nova ordem jurídica, cresciam as distorções so-
ciais, no sentido de que a riqueza e o capital em geral se acumulariam
sem que houvesse uma resposta estatal para equilibrar as forças da so-
ciedade.
Ao que se percebe, o aumento das desigualdades sociais geradas
pela racionalização da produção industrial, característica marcante do
Estado liberal, bem como apesar das conquistas adquiridas em relação
ao antigo Estado absolutista, o Estado mínimo não deu conta da função
de ordenar e organizar as relações sociais que surgiam.
As tensões advindas do movimento de operários e o capital da era
industrial exigiam uma nova postura do Estado, que até então somen-
te garantia a liberdade e a igualdade formal dos cidadãos, porém não
havia preocupação estatal para as crescentes contradições e diferenças
sociais que surgiam.
A ideia de Estado social data do início do século XX. Ela vem ex-
pressa institucionalmente na Constituição do México, em 1917, e na
Constituição de Weimar (Alemanha), em 1919. Todavia, o desenvolvi-
mento e o seu aperfeiçoamento não foram iguais em todos os países.
Por exemplo, e apenas para citar, Streck (1999, p. 22) entende que o
Brasil ainda não teria se tornado um Estado social.
Assim, o que caracteriza o Estado social é intervenção na econo-
mia e na sociedade como tentativa de proteção social, com garantia de
direitos de feições marcadamente coletivas para a satisfação das neces-
sidades da sociedade de uma forma geral (previdência, assistência, mo-
radia, transporte, educação e saúde), mas, principalmente, protegendo
aquelas classes menos favorecidas.

A democratização das relações sociais, paulatinamente conquis-


tada – mesmo ante todos os retrocessos experimentados no curto
século XX, com todos os seus desvios autoritários e totalitários –,
significou, por um lado, a abertura de canais que permitiriam a
quantificação e qualificação das demandas por parte da socie-
dade civil, em face, em especial da incorporação de novos atores
– movimentos sociais, particularmente os movimentos de traba-
lhadores ingressos no novo sistema fabril –, bem como diante das
questões novas trazidas pelos mesmos e que implicavam não ape-
nas a necessidade de respostas inéditas por seu conteúdo, como
também precursoras em razão dos mecanismos que se teve que
lançar mão para dar conta com suficiência e eficiência das mes-
mas, tais foram as novas políticas sociais vinculadas aos direitos
sociais de caráter prestacional, e.g. regulação das relações de tra-
balho, seguridade social, educação, saúde, infraestrutura urbana,
política energética, política de transportes, infraestrutura indus-
trial, câmbio, juros etc. (BOLZAN DE MORAIS, 2011, p. 38)
Almeida Diniz

Conforme ressalta Doglas Cesar Lucas (2005, p. 181), o “Estado as-


sume uma postura de promoção de políticas públicas coletivas, visando
melhorar as condições de vida da classe trabalhadora e, com isso, compen-
sando as diferenças sociais advindas do processo de produção industrial”.
Outrora entendido como garantidor distante das liberdades civis e
de

políticas, o Estado, nessa nova quadra histórica tem como missão precí-
Robson Alves

pua a garantia, não só dos direitos já conquistados no Estado liberal, mas


dos direitos sociais prestacionais como forma de justiça social.
Seja ele L’ Etat Providence (na França), seja Welfare State
(Inglaterra), ou simplesmente Estado social, embora com arranjos es-
230
231
peciais e diferenciados em cada país, tem como núcleos centrais a pro-

Constitucionalismo Contemporâneo
teção social, o aumento do poder regulatório e aumento da criação de
impostos para o custeio dos novos serviços estatais para a satisfação
coletiva. Conforme ressalta Bolzan de Morais (2011, p. 18):
Ou seja, o Welfare State seria aquele Estado no qual o cidadão,
independentemente da situação social, tem direito a ser protegi-
do por meio de mecanismos/prestações públicas estatais, contra
dependências e/ou ocorrências onde a questão da igualdade e do
bem-estar aparecem – ou deveriam aparecer – como fundamento
para a atitude interventiva do Estado.

Todavia, a história desse modelo estrutural de Estado, suas rela-


ções com a sociedade e mercado, bem como os arranjos institucionais

e suas formas contemporâneas


para a sua concretização não foram sempre com avanços sem recuos
ou críticas.
Na realidade, identificam-se crises no interior do Estado social,
principalmente pelo seu caráter oneroso em expandir as ações estatais
para a garantia e fruição dos direitos sociais.
A crise fiscal-financeira é o aspecto mais atacado pelo neolibera-
lismo, que acredita em um Estado mínimo que se adeque às condições
globalizantes do capitalismo mundial.
O neoliberalismo, como doutrina econômica, acredita que o
Estado do bem-estar social é o principal responsável pela crise, no que
tange um aumento expressivo dos gastos públicos. Conforme ressal-
ta Marciano Buffon (2005, p. 90), “esta interpretação considera que o
financiamento do gasto público em programas sociais gerou uma am-
pliação do déficit público, inflação, redução da poupança privada, que
acabaram desestimulando o trabalho e concorrência”.
Essa crise estrutural do Estado reflete contundentemente nas
suas funções estatais, readequando a tripartição de poderes na con-
temporaneidade, redefinindo as funções jurisdicionais, bem como
gera um aumento exponencial das demandas pelas novas classes li-
tigiosas (trabalhadores, mulheres, negros) na busca da concretização
dos direitos sociais.
Assim, o Estado democrático de direito surge como um aperfei-
çoamento do Estado social, e, ao mesmo tempo que garante um Estado
vinculado às leis, garante também uma postura intervencionista do pró-
prio ente estatal na concretização dos direitos fundamentais-sociais, o
qual se percebe um efeito absolutamente transformador da realidade
institucional da sociedade.

Globalização e crises do estado


Ao abordar o tema globalização e crise do Estado, é necessário
um esclarecimento prévio, no sentido de que são conceitos absoluta-
mente independentes, mas que, muito embora tenham campos especí-
ficos a serem explorados, é importante discutir a crise do Estado diante
da globalização.
Mas, antes de seguirmos ao âmago da relação entre globalização e
crise do Estado, é interessante ao presente estudo realizar uma reflexão
sobre o que se entendo por crise, palavra bastante utilizada na contem-
poraneidade, porém sem que haja certos entendimentos sobre seu real
conteúdo.
Certamente, quando se fala em crise, pensa-se em um momento
na história que se está diante de um aprofundamento de uma situação
desastrosa ou catastrófica, momento em que se está diante de uma mu-
dança decisiva para melhor ou pior. Nesses momentos de crise, sente-se
a incerteza e a insegurança do futuro próximo, de forma que não há
como precisar quais seriam as saídas ou alternativas viáveis para que
essa realidade tenha um fim.
Todavia, é preciso esclarecer que, na realidade, a palavra crise foi
designada, etimologicamente, como um momento de tomada de deci-
sões. O termo criterion, da qual deriva a palavra “crise”, registra o prin-
cípio que se utiliza para tomar a decisão correta.
Almeida Diniz

Bauman (2000), em que pese o comum entendimento de que a


crise se refere ao um estado em que “as coisas vão mal” e que os aconte-
cimentos desse momento decisivo e angustioso são absolutamente in-
controláveis, explica que, em verdade, por mais frequente que o termo
possa ser utilizado hoje em dia, o sentimento de desorientação sobre o
de

prosseguir na vida e no mundo é um “acompanhamento universal da


Robson Alves

experiência existencial humana”. Conforme destaca o autor:

Por mais frequente e disseminado que se tenha tornado o uso da


palavra “crise” em nossa época, o estado mental que ela designa
foi e é mais frequente ainda. A sensação de que as coisas “vão mal”,
232
233
de que não batem com o que era esperado, e a desorientação re-

Constitucionalismo Contemporâneo
sultante sobre a maneira de prosseguir são frequentes, comuns,
talvez, um acompanhamento universal da experiência existencial
humana. Todo ser-no-mundo humano é reflexivo, sempre implica
a recapitulação e análise, não pode durar muito sem autocrítica.
(BAUMAN, 2000, p. 146)

Infere-se assim, por esse argumento, que estamos a todo momen-


to refletindo sobre o atual estado das coisas, sobre como prosseguir,
tendo a consciência de que a escuridão do futuro é uma verdade que
gera incerteza, o que faz acreditar que se vive em um “estado de crise
permanente”.
Portanto, conclui o sociólogo, “a crise, na medida em que a noção

e suas formas contemporâneas


se refere à invalidação dos jeitos e maneiras costumeiros e à resultante
incerteza sobre como prosseguir, é o estado natural da sociedade hu-
mana.” (BAUMAN, 2000, p. 147). Assim, “não há nada crítico no fato de
a sociedade estar em crise” (p. 147).
Partindo do pressuposto de que se vive em estado natural, co-
mum e constante de crise, posto que a sociedade se transforma, se cons-
titui, se reproduz e se autorrenova permanentemente, é que se traçará
o paralelo entre a globalização como movimento primordialmente eco-
nômico-financeiro de abertura de mercado e diminuição das fronteiras,
e a crise do Estado contemporâneo, decorrente do fato da intensificação
desse movimento.
De fato, o processo de globalização, iniciado mais fortemente no
pós-guerra, como fenômeno mundial real, tem trazido inúmeras trans-
formações ao Estado, posto que as suas consequências interferem tam-
bém nas questões sociais, políticas e culturais, tendo como ideia central
em sua definição a ausência de fronteiras que cedem e causam um en-
fraquecimento do Estado no controle e fiscalização do fluxo de pessoas,
bens, capitais e ideias (SPENGLER, 2010).
A ideia de abertura da sociedade, antes entendida como um pres-
suposto da autodeterminação de uma sociedade livre, hoje é confronta-
da com os efeitos nefastos, não só nos aspectos econômicos, mas tam-
bém social, político e cultural, de uma globalização negativa, associada
a um destino incontrolável e imprevisível, absolutamente exposta aos
golpes de um futuro incerto.
Se a ideia de “sociedade aberta” era originalmente compatível
com a autodeterminação de uma sociedade livre que cultivava
essa abertura, ela agora traz à mente da maioria de nós a expe-
riência aterrorizante de uma população heterônoma, infeliz e vul-
nerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por forças que
não controla nem entende totalmente; uma população horroriza-
da por sua própria vulnerabilidade, obcecada com a firmeza de
suas fronteiras e com a segurança dos seus indivíduos que vivem
dentro delas – enquanto é justamente essa firmeza de fronteiras
e essa segurança de vida dentro delas que geram um domínio ilu-
sório e parecem ter a tendência de permanecer como ilusões en-
quanto o planeta for submetido unicamente a uma globalização
negativa. Num planeta negativamente globalizado, a segurança
não pode ser obtida, muito menos assegurada, dentro de um úni-
co país ou de um grupo selecionado de países – não apenas por
seus próprios meios nem independentemente do que acontece
no resto do mundo. (BAUMAN, 2007, p. 13)

Afastando a ideia de globalização como fábula, Milton Santos


(2002) afirma a ideia de que vivenciamos uma globalização perversa,
em que o aumento da exclusão social resulta da crescente falta de em-
prego, a fome torna-se um constante em todos os continentes, a dificul-
dade de acesso a uma educação de qualidade só se expande, etc. Tudo
isso, alicerçada em duas ideologias tirânicas, a do dinheiro e a da infor-
mação, que legitimam as ações dos entes privados e públicos, confor-
mando todo o comportamento da sociedade.
A emergência da globalização em seu aspecto principal, que é o
econômico, nasceu em função de uma nova divisão da produção através
das grandes corporações multinacionais com a finalidade de expandir
Almeida Diniz

os seus mercados em uma tentativa de constituir uma economia mun-


dial sem restrições ou barreiras, sustentadas por um capitalismo fi-
nanceiro perverso, utilizando-se de uma comunicação em “tempo real”
para difundir uma cultura do consumo global.
Bresser Pereira (2009, p. 115), ao explicar a globalização como
de

processo econômico histórico em que os mercados capitalistas torna-


Robson Alves

ram-se globais, legitimado por amplo e complexo sistema político que


criou diversas instituições internacionais, aduz que

A globalização está criando um novo sistema de relações inter-


nacionais baseado na competição entre as nações por meio de
234
235
suas empresas comerciais. Mais do que isso, está criando um sis-

Constitucionalismo Contemporâneo
tema global, um sistema político e econômico cujas instituições
centrais, além dos clássicos Estados-nação, são a Organização
das Nações Unidas e o sistema jurídico construído em torno dela.
Nesse sistema, poder e recursos continuam sendo distribuídos
de modo altamente desigual entre as nações e os indivíduos, o
conflito de interesse continua sendo a regra [...].

Dezalay e Trubek (2015) trazem uma série de pontos resumidos,


elencados como os mais importantes na tentativa de explicar os proces-
sos e as mudanças pelas quais está passando ou passa o cenário mun-
dial, que podem ser consideradas características atuais da globalização.
São eles, a mudança dos padrões de produção (escala global); a união de
mercados financeiros (criação de mercados de capital unidos globalmen-

e suas formas contemporâneas


te); aumento da importância das empresas multinacionais (expandem a
produção e se aproximam dos mercados); aumento da importância do
intercâmbio e crescimentos de blocos regionais de comércio (promoção
do livre comércio, diminuição das barreiras, livre circulação de produtos
e mercadorias); ajuste estrutural e privatização (ênfase ao desenvolvi-
mento das instituições, incluindo estruturas jurídicas); hegemonia de
conceitos neoliberais de relações econômicas (Consenso de Washington:
primazia dos mercados privados, desregulamentação da atividade eco-
nômica e redução do papel do governo); tendência mundial à democrati-
zação, proteção dos direitos humanos e renovado interesse nos “império
do direito” (esforço internacional para criação de políticas liberais, con-
trole, proteção dos direitos individuais e fortalecimento do Judiciário) e
o surgimento de protagonistas supranacionais e transnacionais promo-
vendo direitos humanos e democracia.
Esse movimento, fortemente alicerçado em uma ideologia ma-
ciça, que confunde felicidade e consumo, que afirma a integração dos
povos através de novas tecnologias, em que a informação é manipula-
da para atender aos interesses daqueles que a controlam, que apoia a
ideia de abertura de fronteira, golpeia contundentemente a noção de
soberania estatal, de regulação das relações sociopolíticas da socieda-
de, reduzindo a figura do Estado como ente responsável pela condução
e regramento da sociedade.
Isso é perceptível quando se observa que a globalização vem
impondo limitações ao Estado de regulação e formulação de políti-
cas econômicas e sociais, subordinando-o aos interesses econômicos
e financeiros das instituições privadas multinacionais e das agências
multilaterais como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e
Organização Mundial do Comércio.
Embora autores defendam que, na verdade, não houve um enfra-
quecimento do Estado, argumentando que ainda existe certa liberda-
de de tomada de decisão sobre questões relevantes nas áreas sociais
e econômicas, é importante afirmar que não há liberdade quando não
há outras possibilidades de decisões. Ou seja, as decisões dos Estados
nacionais ficam fragilizadas justamente pela ausência de opções que a
globalização (não) oferece, o que faz com que os governos nacionais op-
tem, por extrema necessidade, por políticas que se ajustem aos interes-
ses do capitalismo global.
Nessa linha de raciocínio, Fabiana Spengler (2010, p. 57) aduz que
essas rupturas do sistema “importam na perda da autonomia dos Estados
quanto à formulação de políticas internas, o que determina a diminuição
de seu poder de coação, gerando uma crise de legitimidade”.
Assim, esse processo inevitável do capitalismo financeiro tem
causado grandes transformações no Estado, mormente no que tange a
uma multiplicidade de loci de poder, não sendo mais considerada a úni-
ca e exclusiva entidade que concentraria o poder, flexibilizando o con-
ceito de soberania estatal.
Falar em soberania, nos dias que correm, como poder irrestrito,
parece mais um saudosismo do que uma avaliação lúcida dos vínculos
que a circunscrevem. Ao lado de tais circunscrições, pode-se apontar,
além dos vínculos criados pelo Estado moderno em apresentar-se tra-
dicionalmente como centro único e autônomo de poder, sujeito exclu-
Almeida Diniz

sivo da política, único protagonista da arena internacional e ator su-


premo no âmbito do espaço territorial de um determinado ente estatal
nacional (MORAIS, 2005, p. 12).
As comunidades supranacionais, na realidade, impuseram uma
de

nova lógica às relações internacionais, o que alterou sobremaneira o


Robson Alves

conceito de soberania como poder juridicamente incontrastável. Pensar


em Estado constituído de seus elementos essenciais como território,
povo e poder soberano e absoluto nos tempos de hoje tende a ser mais
um “olhar ao passado” que vai de encontro à realidade transformada
pela globalização.
236
237
Não se pode olvidar de referir a transformação do Estado, no sen-

Constitucionalismo Contemporâneo
tido da passagem do Estado clássico liberal para o Estado social. Essa
evolução representou também uma evolução no conceito de soberania,
outrora entendida como elemento essencial do Estado moderno, incon-
trastável, a soberania, agora mitigada pelos influxos globalizantes, não é
marca mais elementar do conceito de Estado. O Estado do Welfare State,
com sua função de suplantar as desigualdades sociais e referendar o
patrocínio da justiça social, forjou a ideia de solidariedade do poder es-
tatal, que, para muitos, substitui o atributo soberano para a promoção
do bem-estar social.
Mas não foi somente ao conceito de soberania que a globalização
acarretou consequência. Esta também teve papel decisivo, juntamen-
te com a crise fiscal e o movimento ideológico neoliberal, na crise do

e suas formas contemporâneas


Estado social. É importante assim demonstrar o desenvolvimento e as
tensões desse modelo de estrutural ideológica estatal, para que se pos-
sa entender a crise no que tange aos seus aspectos funcionais, que são
os que interessam a este trabalho.
A partir da crise estrutural e ideológica do Estado social, princi-
palmente por desequilíbrios nos orçamentos públicos estatais, seja pela
ampliação dos novos riscos sociais que deveriam ser cobertos, seja pela
insuficiência de recursos decorrentes do próprio sistema, as políticas
públicas responsáveis para a concretização dos direitos sociais foram
severamente comprometidas.
Como já ressaltado, o ideário neoliberal, ideologia que veio
acompanhada do amplo processo de integração global, pregou, como
resposta à crise, uma minimização da capacidade do Estado, a ponto
de surgirem outros loci de poder, seja pela desregulamentação do di-
reito, seja pelo pluralismo jurídico. Conforme explica Fabiana Spengler
(2010, p. 59):

Levando em conta que a “regulação jurídica” é a regulação so-


cial que passa pelo canal do Direito – aqui entendido como um
conjunto de regras positivas estabelecidas e controladas pelo
Estado, ou seja, o “Direito imposto” – é possível afirmar que ele
era um atributo da soberania estatal da modernidade, mas que
vem sendo alterado em função de perturbações na autonomia
dos Estado-nação comprometida pela interdependência que se
desenvolve no seio de uma economia globalizada.
Assim, podemos afirmar que a desregulamentação não é, na reali-
dade, uma ausência de normas, mas uma eliminação de deveres impos-
tos aos sujeitos empresariais da atividade econômica e o deslocamento
dessas obrigações a outros sujeitos, como o trabalhador, os cidadãos, os
consumidores, etc. Percebe-se assim como resultado uma incapacidade
do Estado de regulamentar, de normatizar, fazendo com que nasça um
papel importante desempenhado pelas corporações e pelos poderes
privados econômicos na construção de um direito mais negociável, ca-
racterizando o pluralismo jurídico.
Este pluralismo jurídico, reflexo também de uma crise funcional
do Estado, caracterizada pela incapacidade deste no protagonismo da
elaboração e produção da atividade legislativa, que gera, consequente e
paralelamente, um direito supraestatal.
Utilizando a noção de direito social de Gurvitch (2005), o pluralis-
mo jurídico reconhece que o Estado não é o único e exclusivo centro do
qual emanam as normas jurídicas, considerando que o Direito nasce da
sociedade e é por ela legitimado a ter sua normatividade reconhecida.
Essa crise funcional, como crise das funções estatais, repercute,
portanto, na própria execução dos serviços prestados pela entidade es-
tatal, seja no âmbito do Executivo, Legislativo ou Judiciário.

Considerações finais
Observa-se pela leitura deste trabalho em que circunstâncias o
aparecimento do Estado moderno, liberal, surgiu e suas principais ca-
racterísticas até o momento de transição ao Estado social do século XX,
transição essa que mudou o perfil de atuação da entidade estatal na
Almeida Diniz

persecução de seus fins.


A cada momento de ruptura/avanços/recuos de uma fase para
outra do fenômeno estatal, verifica-se uma crise que desperta um novo
paradigma de comportamento do Estado no que tange à concretização
de direitos.
de
Robson Alves

Além disso, foram analisadas as crises do Estado contemporâneo,


fomentadas pela globalização, em que restou demonstrada a mitigação
do conceito de soberania estatal e a incapacidade de o Estado respon-
der às demandas societais, posto que as suas funções estão marcadas
pela ineficiência.
238
239
Dessa forma, esse processo inevitável causou e ainda causa pro-

Constitucionalismo Contemporâneo
fundas transformações no Estado, mormente no que tange a uma multi-
plicidade de loci de poder, não sendo mais considerada a única e exclu-
siva entidade concentrada de poder, com uma expressiva mitigação do
conceito de soberania estatal.
Ainda assim, é necessário um aprofundamento sobre os temas re-
levantes trabalhados neste artigo pela relevância que o assunto possui,
a fim de identificar os progressos esperado na teoria política contempo-
rânea, de maneira prática.

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e suas formas contemporâneas


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Almeida Diniz
de
Robson Alves

240
O COMBATE À SEGREGAÇÃO RACIAL
NOS ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA EM PERSPECTIVA
JURÍDICO-CONSTITUCIONALISTA:
DA VIGÊNCIA DOS BLACK CODES NO
SUL À EDIÇÃO DAS LEIS JIM CROW1

Rodrigo Freitas Palma


Professor de História do Direito, Antropologia Jurídica na
Faculdade Processus, em Brasília-DF. Especialista em Relações
Internacionais. Especialista em Direito Militar. Especialista
em Docência no Ensino Superior. Docente-Pesquisador na
Faculdade Processus. Mestre em Ciências da Religião. Autor da
obra intitulada “História do Direito” (6. ed., São Paulo, Saraiva,
2017) e “Direito Militar Romano” (Curitiba, Juruá, 2011).
Organizador e coautor das coletâneas “O Direito e os Desafios
da Pós-modernidade” (Brasília, Processus, 2010), “Direito
e Religião: Uma Aproximação” (Brasília, Processus, 2012) e
“Direitos Humanos e Políticas Públicas” (Brasília, Processus,
2014). Coautor da obra “Direitos Humanos, Cidadania e
Violência no Brasil” (CRV, Curitiba, 2015). Advogado.
(rodfpalma@hotmail.com)

Ester de Lacerda Lucas


Aluna do Curso de Direito da Faculdade Processus. Membro
do Grupo de Estudos de “Direito Comparado e História das
Instituições Jurídicas”. Médica da Secretaria da Saúde do
Distrito Federal.

Carlos Eduardo Araujo Faiad


Aluno do Curso de Direito da Faculdade Processus. Membro
do Grupo de Estudos de “Direito Comparado e História das
Instituições Jurídicas”. Médico Clínico-Geral do Senado
Federal. Médico da Família e Comunidade do Hospital
Regional de Samambaia.


1
O Grupo de Estudos de “Direito Comparado e História das Instituições Jurídicas” apre-
sentou o resultado das pesquisas científicas realizadas sobre o objeto de estudo propos-
to numa das linhas propostas, in casu, “a Gênese do Moderno Constitucionalismo”,
nos encontros dos dias 12 e 13 dos meses de maio e agosto de 2016, por ocasião do I
Seminário de Pesquisa realizado no Campus II, Águas Claras, no Distrito Federal. O pre-
sente artigo, pois, é o resultado daqueles debates, encontros de pesquisa e ministrações
proferidas perante a comunidade acadêmica da Faculdade Processus.
A declaração de emancipação de
Abraham Lincoln: a pavimentação
do caminho para a liberdade formal
Logo no primeiro dia do mês de janeiro de 1863, Abraham
Lincoln (1809-1865) assinou aquele que seria considerado um dos
‘dez documentos legais de maior relevo em toda a história do Direito
dos Estados Unidos da América’. Trata-se da chamada “Proclamação
de Emancipação” (Emancipation Declaration) – a festejada medida
jurídica pela qual o presidente em questão concedia alforria aos es-
Lacerda Lucas & Carlos Eduardo Araujo Faiad

cravos de diversos estados do Sul, à exceção, in casu, para aqueles


que viviam no Tennessee. Os libertos, agora, poderiam, nesta nova
condição, vir a engrossar as fileiras das tropas do Norte que estavam
envolvidas no conflito fratricida, literalmente incentivados a fugir de
seus senhores. Contudo, por não ter concedido a liberdade aos afro-
descendentes de diversos outros estados2, Lincoln foi muito critica-
do por seus opositores. Em diversos círculos políticos da época, a
medida jurídica em tela foi vista como de teor casuístico e eivada de
interesses menos nobres, como o de enfraquecer definitivamente os
exércitos confederados.
De qualquer modo, a Proclamação de Emancipação não foi o ins-
trumento jurídico definitivo a abolir a escravidão em todo o país; en-
tretanto, ao menos através de sua vigência, pavimentou-se o caminho
para tanto. Ademais, o documento, é senso comum admitir, objetiva-
va evitar uma possível intervenção ou ingerência externa oriunda da
França ou Grã-Bretanha. Mas, sobretudo, o efeito simbólico resultante
de

da vigência da dita declaração no cenário político nacional é maior


Rodrigo Freitas Palma; Ester

que os resultados práticos que dela advieram, mesmo porque, sob


uma perspectiva jurídica, não se concedeu, por exemplo, a cidadania
aos recém-alforriados. Por isso mesmo, a iniciativa de Lincoln, ainda
que bem-vinda a diversos setores da sociedade, favoreceu especial-
mente os mais progressistas defensores do movimento abolicionista.
Do ponto de vista legal, sabe-se que a segregação continuaria a impe-
rar. Prova disso é a utilização da palavra “freedmen”.


2
No rol destes estados estavam, entre outros, o Kentucky, Maryland, Missouri e Delaware,
pelo simples fato de que eles não levantaram oposição à União.
242
243
As 13ª, 14ª e 15ª emendas constitucionais, as

Constitucionalismo Contemporâneo
tentativas de reconstrução nacionais iniciadas
por Abraham Lincoln e o surgimento dos Black
Codes – a legislação racista dos Estados do Sul
Nos Estados Unidos, a discriminação racial remontava ainda às
terríveis feridas deixadas abertas pelos trágicos anos em que perdurou
a sangrenta Guerra da Secessão (1861-1865). Assim, diversas leis tendo
por objeto ratificar a institucionalização do preconceito contra afro-ame-
ricanos foram editadas nos estados do Sul logo após o término do conflito
civil que dividiu o país. Estas regras que entraram em vigor no biênio
1865-1866 tinham por finalidade manter a supremacia branca no meio

e suas formas contemporâneas


social. Tais ordenamentos tornaram-se célebres pela designativa ‘Black
Codes’ (apesar de estes não serem propriamente “códigos”, mas, antes,
uma legislação composta para estabelecer que a alforria alcançada e re-
conhecida por meios legais não seria fator impeditivo para que alguns
fossem considerados “cidadãos de segunda classe”).
Assim, não obstante os títulos indicativos dos referidos estatutos
diferirem de lugar para lugar, a tônica continuava sendo sempre a mes-
ma: a de promover a segregação de parte da população. Se as Emendas
Constitucionais 13ª, 14ª e 15ª, após a abolição da escravidão, reconhece-
ram e garantiram aos negros certos direitos civis perante o direito cons-
titucional, os estatutos racistas adotados em alguns estados, por sua vez,
tornaram-nas inócuas e sem qualquer efetividade. Deste modo, impu-
nham-se aos negros uma série de limitações, restrições legais e escárnios.
A festejada aprovação da 13ª Emenda da Constituição Americana,
aos 18 de dezembro de 1865, que trata exclusivamente da completa abo-
lição da escravidão, traduz-se, certamente, numa grande conquista para
parcela considerável da população3, pois consolidava em definitivo no
plano formal, agora de modo mais abrangente, o escopo primeiro nor-
teador da Proclamação de Emancipação de Lincoln. Sabe-se que até en-
tão, cada estado possuía plena autonomia para determinar se, no âmbito
de suas próprias fronteiras, considerava a servidão possível e legal. Os
cidadãos (mesmo que forros), eventualmente e de acordo com os inte-


3
Estima-se, grosso modo, que eram cerca de quatro milhões de pessoas sujeitas a tal
situação.
resses nacionais, poderiam ser convocados a realizar algumas tarefas de
interesse da administração pública, como, por exemplo, a ‘construção de
estradas’, o ‘serviço nas forças armadas’ ou ‘participação em tribunais do
júri’. Entretanto, não tardaria a perceber-se com o decurso do tempo, que
a 13ª Emenda carecia da devida efetividade, pois, apesar de um antigo
anseio jurídico ter sido realmente alcançado por parcela significativa da
população do país, consubstanciado com a abolição do regime de escra-
vidão e, ainda, desta ter, a priori, contribuído para a libertação de aproxi-
madamente quatro milhões de pessoas sujeitas à infame condição de ser-
vidão, o referido diploma legal não foi, de fato, elemento suficiente para
Lacerda Lucas & Carlos Eduardo Araujo Faiad

alterar a realidade de que os negros norte-americanos eram, por muitos,


considerados política e socialmente “cidadãos de segunda classe”.
Ademais, sabe-se que os estados do Sul sofreram enormemente
com o fim da Guerra de Secessão, o que levou o exército da União a ocu-
par parte de seus territórios e, em muitos casos, assumir o controle po-
lítico local. Em Washington, o destino dos recém-alforriados traduzia-
-se ainda numa incógnita. Uma das iniciativas pioneiras nesse sentido,
que foram adotadas justamente para tratar da questão, resumiu-se na
instituição de uma comissão especial (a chamada “American Freedmen’s
Inquiry Comission”), responsável por analisar e sugerir, tempestivamen-
te, soluções e alternativas práticas visando ao enfrentamento da ques-
tão. Os objetivos eram bastante arrojados e otimistas para uma época
marcada pela segregação. Prova disso é que logo se recomendou que,
para a condução plena de todo os libertos, rumo às conquistas natu-
rais que viessem no campo dos direitos civis e políticos, havia a neces-
sidade, inclusive, de se tratar outra questão social bastante espinhosa
de

para opinião pública em geral, qual seja, a da redistribuição da terra. Em


Rodrigo Freitas Palma; Ester

março de 1865, o Congresso Americano, após acalorados debates, criou


um órgão temporário para cuidar de assuntos fundiários – o Bureau of
Refugees, Freedmen and Abandoned Lands4 – que tinha como propósito
principal assistir tanto negros como brancos em condições de absoluta
penúria. As situações emergenciais, nesse sentido, foram devidamen-
te atendidas com o fornecimento de abrigo, vestuário, alimentação e a
criação de escolas nas comunidades de libertos que continuamente se
formavam (WITTMAN, 2015, p. 10). Estas tantas iniciativas isonômicas,


4
Para saber mais, confira a obra de KOMAN, Rita G. The Freedmen’s Bureau: Catalyst for
Freedom? California: The Regents (University of California), 1988. p. 1-6.
244
245
no entanto, mostraram-se inócuas por vários motivos. O assassinato

Constitucionalismo Contemporâneo
de Abraham Lincoln, que assistia à apresentação de uma peça de tea-
tro quando foi atingido pelo disparo de John Wilkes Booth, aos 15 de
abril de 1865, modificou este cenário inicialmente favorável às políticas
públicas de inclusão que poderiam ter sido bastante promissoras no
que concerne ao reconhecimento dos direitos aos libertos. Na verda-
de, a proclamação do “Civil Rights Bill” (1866) pelo presidente Andrew
Johnson (encarregado do projeto de reconstrução nacional) garantia
status de cidadão americano a todas as pessoas nascidas nos Estados
Unidos, à exceção dos povos indígenas. Da mesma maneira, buscava es-
tender benefícios igualitários a todos, tendo por fulcro maior a garan-
tia da segurança pessoal e a proteção da propriedade privada destas
pessoas. Contudo, o grande vácuo legislativo e o clima de incerteza que

e suas formas contemporâneas


logo tomou conta da nação colaboraram para a edição nos estados do
Sul dos Black Codes, ou seja, aquele ordenamento jurídico que primava
pela continuidade do sistema de segregação racial que dominou o país
por séculos. Visando impedir que os negros tivessem acesso à terra,
ao voto, aos direitos e garantias básicas inerentes aos libertos, surgiu
a Ku Klux Klan. Esta organização fundada em 1865 no Tennessee, por
ex-confederados, instaurou um clima de terror que marcou por décadas
a fio a história da América, fazendo dos negros suas maiores vítimas.
Não obstante a ação desta facção e o incremento da violência, foi apro-
vada a 14ª Emenda, no ano de 1868, que definia os contornos legais
da cidadania5, regulamentando-a, e revestia o governo federal de todas
as prerrogativas para tentar forçar os estados a promoverem políticas
isonômicas. Por fim, a 15ª Emenda de 1870 concedia aos afro-ameri-
canos do sexo masculino o direito ao voto. Os estados não poderiam
mais, a partir de então, negar esta prerrogativa em razão de “raça”, “cor”
ou “prévio estado de servidão” (Seção Um). Com os distúrbios tornan-
do-se generalizados por praticamente todos os estados do Sul e a mais
completa desconsideração pelos direitos civis e políticos fizeram com
que o Congresso fosse chamado a agir. Assim, em 1871, os parlamen-
tares aprovaram o Ku Klux Klan Act, que concedia ao presidente Ulisses
S. Grant o poder para suspender quaisquer habeas corpus concedidos
àqueles indivíduos pertencentes aos grupos que pretendiam insuflar a


5
A 14ª Emenda fazia de todos os nascidos em solo americano ou naturalizados cidadãos
dos Estados Unidos da América.
nação arvorando a pretensa bandeira da “supremacia branca”. Alguns
membros da organização conseguiram fugir, outros tantos foram julga-
dos por jurados predominantemente negros e apenados com multa e
prisão. Em 1875, o Congresso aprovou o “Civil Rights Act” – lei federal
que passou a garantir, a todos no país, acesso igualitário aos locais e
instalações públicas, independentemente de raça ou cor. A legislação
em tela, todavia, não alcançou qualquer eficácia. Depois de diversos re-
cursos à Suprema Corte, em 1883, a ordenança foi considerada incons-
titucional. A partir desta histórica e surpreendente decisão, os estados
sulistas refizeram suas Constituições, revogando, para tanto, os direitos
Lacerda Lucas & Carlos Eduardo Araujo Faiad

civis e políticos que eventualmente, no passado, tivessem sido reconhe-


cidos à população negra de seus territórios. Deste modo, após uma pri-
meira etapa marcada pela edição dos Black Codes nos estados do Sul, a
discriminação racial agora assume novo formato jurídico com a edição
massiva de leis de natureza segregacionista, que receberam a alcunha
de “Leis Jim Crow”. Destas trataremos logo mais adiante.

A projeção do Code Noir sobre a


legislação discriminatória da Louisiana:
as primeiras leis racistas a surgir no sul
dos Estados Unidos da América
Pode-se dizer que o estado da Louisiana, graças à presença france-
sa naquele território, havia se antecipado em muito às demais colônias
norte-americanas, pois possuía, pelo menos desde 1724, uma legislação6
inspirada no célebre ‘Code Noir’ (1685). Este estatuto era uma espécie de
de

édito real composto por 60 artigos, emanado do cetro de Luís XIV (1638-
Rodrigo Freitas Palma; Ester

1715) para disciplinar o cotidiano dos escravos nas possessões france-


sas do Novo Mundo (a priori em São Domingos, na ilha de Martinica e
nas Antilhas). Seus autores foram Jean-Baptiste Colbert (1619-1683)
e, após sua morte, seu filho, Jean-Baptiste Antoine Colbert, o Marquês
de Seignelay (1651-1690). Como bem ensinou Vernon Palmer (1996,
p. 363), este diploma legal pode ser considerado “um dos mais impor-
tantes códigos na história da França”. É emblemático o fato de que a refe-


6
A legislação da Louisiana era um pouco mais resumida quando comparada ao Code Noir,
pois, apesar da inequívoca similaridade entre as duas, aquela possuía 54 artigos, portan-
to, seis disposições legais a menos.
246
247
rida legislação , fundada na mais absoluta intolerância religiosa, afetava
7

Constitucionalismo Contemporâneo
também outros grupos minoritários residentes naquelas possessões do
império, como os judeus, que, a partir de então, não poderiam mais resi-
dir nos domínios pertencentes à Coroa (art. 1) ou, ainda, os próprios pro-
testantes, impedidos de realizar seus cultos em lugares públicos (art. 3)8.
Somente aqueles casamentos celebrados por padres seriam tidos como
válidos (art. 8). Aos escravos, por sua vez, determinava-se o batismo se-
gundo os ritos tradicionais da Igreja Católica Apostólica Romana (art. 2).
O matrimônio somente poderia ser realizado depois de alcançada a de-
vida permissão dos seus senhores (arts. 10 e 11) e os eventuais filhos
advindos desta união (ou de outras relações não autorizadas pela letra
da lei, como a conjunção carnal entre um homem livre e uma escrava)
seriam igualmente escravos (arts. 12 e 13). Entre outras coisas, e para

e suas formas contemporâneas


evitar sublevações de toda ordem, proibia-se a reunião de escravos de
diferentes senhores (art. 16).
Vale notar que em algumas outras cidades da Louisiana, como no
caso de Opelousas, a legislação era ainda muito mais discriminatória,
severa e opressiva do que aquela inspirada no Code Noir, pois sequer
permitia-se que os negros ingressassem nos limites municipais, a não
ser que possuíssem uma autorização expressa por parte de seu em-
pregador nesse sentido (LANE, 2008, p. 82). Não obstante já o controle
espanhol ter se iniciado em 1762, por força de acordos, sabe-se que a
presente legislação esteve oficialmente em vigor no referido estado até
o ano de 1803.
Já na parte francesa do Canadá, o escravismo acabou não obtendo
a mesma proporção que nos Estados Unidos da América, sem embargo
ao fato de que algumas leis discriminatórias também estiveram em vi-
gor e chegaram até mesmo a ser aplicadas em alguns casos específicos e
pontuais no país9. Entre muitos, havia certo sentimento de inconformis-
mo com o fim da escravidão. Outros, mesmo após a edição das emen-
das, conservavam a firme expectativa na reintrodução do antigo regime


7
O “Code Noir”, na íntegra, pode ser lido na obra de MARYLANDER, A. The Law of Slavery
in the State of Louisiana. Washington, DC: The National Era, 1847 (African American
Newspapers).

8
De semelhante modo, enveredou a Constituição Brasileira de 1824 nesta mesma trilha.

9
Nesse sentido veja RIDDELL, Renwick. Le Code Noir. The Journal of Negro History. v. 10,
n. 3. jul., 1925, p. 321.
servil. Os escravos, pois, durante todo o período em que esteve em vigor
o regime, eram vistos como propriedade, uma matéria circunscrita ao
“direito das coisas”. Tanto é verdade que em um curioso documento de
partilha de bens datado do ano de 1829, na própria Louisiana, mais es-
pecificamente na cidade de West Feliciana, cuidou-se de registrar num
interessante caso em que à esposa, em função da separação, caberiam
“640 acres” de terra, além, dos escravos que assim foram, na ocasião,
nomeados (DURANTE JR.; KNOTTERUS, 1999, p. 198).
Ora, o presente contexto demonstra claramente o vil desiderato
dos particulares envolvidos em tais transações, os quais eram possui-
Lacerda Lucas & Carlos Eduardo Araujo Faiad

dores de latifúndios e o alto valor pecuniário agregado ao escravo, cuja


presença no labor diário nas plantations era considerada pela cultura
de subjugação dominante naqueles dias como algo absolutamente “nor-
mal”. Assim, é de se imaginar que os Black Codes se tornaram a alter-
nativa legal encontrada para aqueles que não queriam abrir mão tão
facilmente dos lucros advindos do universo escravagista que se mos-
trava crucial para a produção agrícola, que envolvia elevadas quantias a
movimentar os estados do Sul.
Entretanto, é possível imaginar que o célebre Code Noir (1685),
aquele conjunto de regras racistas de origem francesa que lançou seu
espectro sombrio sobre a Louisiana de 1724, não seja a primeira legis-
lação de caráter tipicamente segregacionista a exercer sua influência na
América. A esse respeito, Jonathan Bush (1993) defende a ideia de que
o chamado ‘Barbados Act’ de (1661), além de ter se projetado sobre as
leis da Jamaica (1664) e da Antigua (1702), deixou sua marca também
na legislação produzida na Carolina do Sul (1696).
de
Rodrigo Freitas Palma; Ester

Os Black Codes nos Estados do Sul:


aspectos gerais
Talvez os Black Codes mais rígidos que já estiveram em vigor nos
estados do Sul fossem aqueles originários do estado do Texas e, conco-
mitantemente, do Mississipi. Assim, não raro, também o direito penal
se tornava altamente discricionário ao prever penas bem mais severas
para os delitos praticados por afro-americanos, especialmente na even-
tualidade de a vítima ter a cútis branca.
248
249
Nesse sentido, jurisdições especiais chegaram até mesmo a ser

Constitucionalismo Contemporâneo
constituídas no Texas a partir do ano de 1866 (CROUCH, 2007, p. 149).
Não se deve olvidar que, no contexto em questão, a condenação à morte
era um veredicto bastante recorrente. Relações conjugais entre pessoas
brancas e negras eram grandemente desencorajadas no meio social e
consideradas inaceitáveis em muitos destes lugares.
Outro grande dilema enfrentado pelos recém-alforriados consistia
na difícil tarefa de inserção destes no mercado de trabalho. Apenas servi-
ços braçais dos mais árduos eram a eles reservados, delimitando-se, as-
sim, os contornos de um sistema fundado numa profunda exclusão social.
No Mississipi, vale notar, foram estabelecidos diversos impedimentos
legais para que os negros pudessem vir a adquirir propriedades rurais
(FORTE, 1998, p. 601). Some-se a isso o fato de que a “vadiagem”10 foi

e suas formas contemporâneas


tipificada em diversos estados sulistas (como, a título ilustrativo, verifi-
cava-se no mesmo Mississipi, além de outros mais, como no Tennessee,
em Kentucky, na Florida e, mais uma vez, na Louisiana) o que tornou para
muitos libertos a situação mais ainda insustentável. Como bem previne
Lawrence Friedman, notório historiador do direito norte-americano, ha-
via casos em que apenas o ato de oferecer emprego a um negro já caracte-
rizava o cometimento de um grave delito. O acesso ao conhecimento tam-
bém se tornou quase uma quimera, pois, legalmente, a eles vedava-se até
mesmo o aprendizado da escrita ou leitura (FRIEDMAN, 2004, p. 69-71).
Em 1865, uma vez finda a extenuante guerra travada entre as re-
giões Norte e Sul, irrompe uma intensa mobilização política no sentido
de impedir que a população negra do país, agora alforriada, conseguis-
se ter acesso às armas de fogo. Após os longos anos de opressão dis-
seminada pelo sistema escravagista, temiam as oligarquias rurais que
houvesse uma espécie de rebelião negra como forma de revanchismo
pelos maus-tratos a eles impostos (como foi aquela ocorrida no mês
de agosto de 1831, no condado de Southampton, na Virgínia, episódio
que ficaria conhecido como a “Rebelião de Nat Turner”11 – ocasião em
que foram mortas 57 pessoas brancas). Ou, como bem observa David
Babat (2009, p. 1), a edição dos Black Codes servia como um oportuno
mecanismo utilizado pelos estados com a finalidade de impedir que os

São as chamadas “vagrancy laws”.


10

Em alusão ao nome do líder do levante escravo ocorrido na Virginia.


11
afro-americanos lutassem pelos direitos civis consagrados no corpo de
sua própria Constituição, sem embargo, obviamente, o escopo alcança-
do pela via da legalidade de mantê-los a todo tempo subordinados e
incapazes de se defender.
Por fim, pode-se dizer que os Black Codes, utilizando-se do pre-
tenso espectro da legalidade, sedimentaram o contínuo processo de
segregação racial que se arrastou nas décadas seguintes por diversas
regiões do país. A influência para a composição da legislação em ques-
tão, como vimos, pautou-se, ao menos inicialmente, nas experiências
jurídicas extraídas da França do século XVII, as quais objetivavam re-
Lacerda Lucas & Carlos Eduardo Araujo Faiad

gulamentar a escravidão nas colônias ultramarinas que lhes estavam


sujeitas, e que, em grande parte, tiveram lugar nas produtivas terras da
Louisiana. Com o passar do tempo, porém, tais ordenamentos assumi-
ram forma e conteúdo próprio (apesar de serem semelhantes em es-
sência). Estes estatutos profundamente discriminatórios objetivavam,
sobretudo, reafirmar todo este estado de coisas, sempre que possível fa-
zendo uso do império das normas. Ora, leis desta mesma natureza, que
foram concebidas no decorrer de todo o século XX nos Estados Unidos
da América, receberiam, posteriormente, a pejorativa e satírica alcunha
de “Jim Crow”, assunto o qual trataremos logo em sequência. Com isso,
oficializou-se, uma vez mais no âmbito do Direito, a completa descon-
sideração pelo universal ‘princípio da isonomia’, reconhecendo-se, pois,
no plano da legalidade, a existência de ‘cidadãos de segunda classe’ que
se encontravam, pelos motivos expostos alhures, impedidos do acesso
ao pleno gozo da cidadania.
de

Segregação à sombra da justiça no século XX:


Rodrigo Freitas Palma; Ester

as Leis Jim Crow


No decurso do século XX, com o passar do tempo, este conjunto
de leis racistas foi adaptado às novas circunstâncias ditadas pelo co-
tidiano de opressão na vida de milhares de pessoas. A segregação en-
tão alcançou um nível bastante sofisticado no ambiente da legalidade
dos centros urbanos, projetando-se principalmente sobre as regras re-
lativas à utilização do transporte público, à frequência às escolas e às
condições gerais no trabalho. Ao longo período em questão, marcado
por um direito iníquo, deu-se o nome de “Era Jim Crow” (1876-1965)
250
251
– um termo pejorativo criado para ridicularizar os negros. Assim, se os

Constitucionalismo Contemporâneo
chamados Black Codes editados logo após o fim da Guerra de Secessão
constituíram-se nas primeiras manifestações jurídicas de teor racista
produzidas no terreno da legalidade nos diversos estados do Sul, as leis
Jim Crow representavam a continuidade de toda a forma de discrimina-
ção social imposta às pessoas recém-alforriadas, mesmo após o advento
da abolição da escravidão.
Ocorre que, de forma sistemática, os ordenamentos jurídicos
de diversas unidades da federação continuaram a perpetuar tal situa-
ção de exclusão social mesmo, no decorrer de todo o século XX. Este
conjunto de regras chamadas de Jim Crow vigorou até o ano de 1964,
quando, finalmente, foi promulgado o Civil Rights Act de 1964, ver-
dadeiro marco jurídico no combate à intolerância racial nos Estados

e suas formas contemporâneas


Unidos da América. Como dissemos anteriormente, o termo utilizado
para nomear o aparato legislativo dos estados do Sul originou-se a
partir de uma alusão caricata e pouco lisonjeira utilizada com a cria-
ção de um fictício personagem negro presente numa canção sertaneja
de 1828, e que se intitulava “Jump Jim Crow”, de autoria de Thomas
Darthmouth Rice (1808-1860), um ator de teatro de pouca expres-
são12. A música em questão logo se disseminaria por todo o território
nacional, popularizando-se sobremaneira, e, tornando-se assim, uma
conhecida forma de zombaria endereçada aos afrodescendentes nos
Estados Unidos da América. Muito mais do que estabelecer no pla-
no formal e, portanto, legal, a subjugação e a opressão a uma imensa
parcela da população do país, a “Era Jim Crow” definia uma série de
etiquetas sociais13 a qual os afrodescendentes deveriam forçosamente
observar no trato diário para com os brancos. Não obstante, as Leis Jim
Crow incentivavam uma espécie de “estilo de vida”, como diria Leslie
Vincent Tischauser (2012, p. 35), marcado pela segregação, opressão
e pelo racismo. À semelhança dos antigos Black Codes, este novo orde-
namento jurídico fundava-se da “cultura” de separação entre brancos
e negros, existente desde os tempos da escravidão, mas agora retoma-
da e redefinida em perspectiva legal. Sabe-se que o regime em questão

12
Para saber mais sobre as origens do termo “Jim Crow” confira a obra de PACKARD,
Jerrold M. American Nightmare: The History of Jim Crow. St. Martin’s Press, 2003.
13
Veja a esse respeito THOMPSON-MILLER, Ruth; FEAGIN, Joe R. “The Reality and Impact of
Legal Segregation in the United States”. In: VERA, Hernan; FEAGIN, Joe R. Handbook of the
Sociology of Racial and Ethnic Relations. New York City: Springer Science, 2007, p. 455.
permeava o cotidiano das pessoas e se projetava em regras de convi-
vência para utilização do transporte público, das escolas, bibliotecas,
cinemas, teatros, prisões, bebedouros, hotéis, restaurantes, parques,
alojamentos e outros mais. Oportunamente, lembra Tischauser (2012,
p. 35), que existiam até mesmo Bíblias separadas para que negros e
brancos repousassem suas mãos nos tribunais (por ocasião do célebre
juramento exigidos naquelas cortes). Até o ano de 1950, 42 estados da
Federação, dentre o total de 50 – incluindo-se neste âmbito o próprio
Distrito Federal, ainda possuíam leis segregatórias em seus ordena-
mentos jurídicos.
Lacerda Lucas & Carlos Eduardo Araujo Faiad

Este contexto que atravessou décadas começa, progressivamente,


a tomar novos contornos, especialmente quando um pastor batista
nascido na Geórgia chamado Martin Luther King Jr. (1929-1968) pas-
sa a denunciar com muita coragem e intrepidez as arbitrariedades
cometidas cotidianamente contra muitos cidadãos norte-americanos.
Seu discurso inflamado e eloquente arrastou multidões para um pro-
cesso irreversível, de permanente discussão sobre a necessidade da
efetivação dos direitos civis numa América verdadeiramente livre,
compromissada com a paz e a igualdade entre todos os seus súditos.
Por fim, as sementes do ativismo político do mais famoso orador de
Atlanta continuaram a render frutos, mesmo após sua morte prema-
tura. O assassinato de Martin Luther King aos 4 de abril do ano de
1968, em Memphis, no Tennessee, não foi capaz de calar a força de sua
voz. Seus seguidores passaram a exigir mais incisivamente do gover-
no uma postura diante dos transtornos causados pela negligência das
autoridades no enfrentamento de tais questões. Entretanto, ele passa-
ria à história dos Estados Unidos como um dos maiores responsáveis
de

pelo sepultamento de quaisquer ordenanças jurídicas comprometidas


Rodrigo Freitas Palma; Ester

com o racismo. Com a promulgação do festejado Civil Rights Act de


02 de julho de 1964, também se decreta fim à Era Jim Crow. Sabe-se
que a resistência política no âmbito do Congresso Nacional foi muito
grande para que a segregação continuasse a seguir seu fluxo se pres-
tando ao atendimento dos interesses escusos envolvidos, e, servindo-
se para tanto, do próprio império da Lei. Acima de tudo, após discurso
proferido pelo presidente Lyndon Johnson, fecha-se um longo ciclo
no rico universo jurídico do direito público norte-americano, período
iniciado um século antes com a Emancipation Declaration (1863) de
Abraham Lincoln.
252
253
Referências

Constitucionalismo Contemporâneo
BABAT, David. The Discriminatory History of Gun Control. University of Rhode Island (Program
at University of Rhode Island, Senior Honors Project). Paper 140, 2009, p. 1-32.

BUSH, Jonathan A. Free to Enslave: the Foundations of Colonial American Slave Law. Yale
Journal of Law & the Humanities, v. 5, issue 2, article 7, p. 417-470, 1993.

CROUCH, Barry A. The Dance of Freedom: Texas African Americans During the Reconstruction.
Austin: University of Texas Press (Jack and Doris Smoothers Series in Texas History, Life and
Culture (Book 19), 2007.

DURANTE JR., Thomas; KNOTTERUS, David. Plantation Society and Race Relations. Westport,
Connecticut: Praeger Publishers, 1999.

FORTE, David. Spiritual Equality, the Black Codes, and the Americanization of the Freedmen.

e suas formas contemporâneas


43 Loyola Law Review, 569 (1998). (Articles and Essays).

FRIEDMAN, Lawrence M. Law in America. New York: Modern Library, 2004. (Modern Library
Chronicles)

KOMAN, Rita G. The Freedmen’s Bureau: Catalyst for Freedom? California: The Regents
(University of California), 1988.

LANE, Ambrose. For Whites Only? How and Why America Became a Racist Nation. 2. ed.
Bloomington: Authorhouse, 2008.

MARYLANDER, A. The Law of Slavery in the State of Louisiana. Washington, DC: The National
Era, 1847. (African American Newspapers)

PACKARD, Jerrold M. American Nightmare: The History of Jim Crow. St. Martin’s Press, 2003.

PALMER, Vernon Valentine. The Origins and Authors of the Code Noir. Louisiana Law Review,
v. 56, n. 2 (The Romanist Tradition in Louisiana: Legislation, Jurisprudence, Jurisprudence
and Doctrine: A Symposium) Winter, 1996, p. 363-408.

RIDDELL, Renwick. Le Code Noir. The Journal of Negro History, v. 10, n. 3, jul. 1925.

THOMPSON-MILLER, Ruth; FEAGIN, Joe R. The Reality and Impact of Legal Segregation in
the United States. In: VERA, Hernan; FEAGIN, Joe R. Handbook of the Sociology of Racial and
Ethnic Relations. New York City: Springer Science, 2007.

TISCHAUSER, Leslie Vincent. Jim Crow Laws. Santa Barbara, California: Greenwood, 2012.
(Landmarks of the American Mosaic)

WITTMAN, Susan S. Reconstruction: Outcomes of the Civil War. North Mankato, Minnesota:
Capstone Press, 2015.
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO:
MOVIMENTOS SOCIAIS EM REDE
NO COMBATE À CORRUPÇÃO E
PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Rogério Gesta Leal


Doutor em Direito pela UFSC e UBA. Professor Titular da
UNISC e da FMP. Desembargador do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul, titular da Quarta Câmara
Criminal, que julga crimes praticados por prefeitos e verea-
dores e crimes contra a administração pública.
(gestaleal@gmail.com)

Carla Luana da Silva


Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC), com bolsa PROSUP/CAPES, modalidade Taxa,
na linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo.
Pós-graduanda em Direito Administrativo e Constitucional
pela Escola Paulista de Direito (EPD). Integrante dos Grupos
de Pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade”,
coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, na linha de
Patologias Corruptivas. Advogada.
(carlaluanaschulz@hotmail.com)

Introdução
Não há dúvidas de que a corrupção está como uma das maiores
preocupações da sociedade, tanto em nível nacional como internacio-
nal. Isso porque seus efeitos acabam por gerar consequências até mes-
mo de nível global, atingindo diversas esferas da sociedade, que teriam
seus direitos fundamentais diretamente afetados.
Tendo em vista essas razões, o objetivo é buscar esforços contí-
nuos entre cidadãos, sociedades, ou mesmo países, procurando formas
de enfrentamento desse entrave com efeitos nefastos. Por esse fato,
propõe-se diretamente pensar sua ligação com a sociedade da informa-
ção que confortaria todas as áreas de conhecimento em escala mundial.
Desse modo, a ideia é de que a própria sociedade da informação,
por meio dos movimentos sociais em rede na internet, possibilita apor-
tes necessários para o combate da corrupção e preservação dos direitos
fundamentais. Assim, o estudo aqui apresentado tem como problema a
seguinte indagação: os movimentos sociais em rede, no uso da internet
na sociedade da informação, podem contribuir para combater a corrup-
ção e preservar os direitos fundamentais?
Com o intuito de responder ao problema apresentado, primeira-
mente faz-se a análise do que constitui o fenômeno da corrupção, suas
características e efeitos nos diretos fundamentais para estar se tratan-
do do assunto. Posteriormente, no segundo tópico, busca-se a perspec-
tiva do que seria a sociedade da informação, a sociedade em rede, sua
propagação com a internet e os direitos fundamentais nela envoltos. E,
num terceiro momento, tendo a pretensão de chegar ao objetivo geral,
trata-se dos movimentos sociais em rede na era da internet, por meio
da perspectiva de Manuel Castells, verificando-se a possibilidade de seu
combate à corrupção e preservação dos direitos fundamentais.
Para formar essas ligações, utiliza-se o método dedutivo, partin-
do da premissa geral da sociedade da informação, tratando a particular
por meio dos movimentos sociais na internet. Como técnica de pesquisa
Silva

utiliza-se a documentação indireta, especialmente em referência à obra


de Manuel Castells.
da
Rogério Gesta Leal & Carla Luana

A corrupção e os seus efeitos


nos direitos fundamentais
Tendo em vista a grande preocupação com a corrupção, há neces-
sidade de se buscar formas e mecanismos ao seu combate. Como a pro-
posta do presente estudo é analisar se os movimentos sociais em rede
podem realmente contribuir para erradicar a corrupção e preservar os
direitos fundamentais, torna-se relevante averiguar o que seria a cor-
rupção e a propagação de seus efeitos para estar se tratando do assunto.
De fato, a corrupção se constitui como um complexo fenômeno
social, político e econômico. Tendo em vista este e outros aspectos, sua

256
257
característica primordial seria possuir um conceito amplo. Na verdade,

Constitucionalismo Contemporâneo
o termo corrupção tem sua origem no latim corruptione, significando a
ideia de corromper, no sentido de decomposição, putrefação, desmora-
lização, suborno (LEAL, 2013).
A ideia de corrupção, historicamente, sempre esteve associada à
participação do Estado e à atuação criminosa dos agentes públicos ou a
condutas descritas nos tipos penais dos crimes contra a Administração
Pública (FURTADO, 2015). Contudo, essa visão acaba por se modificar.
Pode-se se dizer que, em um pensamento mais atual, não há consenso do
que venha a ser a definição do conceito de corrupção.
Observa-se que as condutas envolvendo a corrupção são enten-
didas como extremamente complexas. Seu envolvimento abrange agen-

e suas formas contemporâneas


tes públicos e privados, pessoas físicas e pessoas jurídicas. Por esse
fato, é difícil encontrar uma definição ou até mesmo um único concei-
to que contemple todas as possibilidades que o vocabulário encerra
(PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014).
Leal (2013) também observa que não se encontra no pensamen-
to político ocidental consenso do que venha a ser corrupção. Desse
modo, não se pode referir a uma teoria política da corrupção, visto que
há diferentes abordagens sobre o tema. Nesse contexto, a corrupção se
concretiza como um fenômeno de múltiplos fundamentos e nexos cau-
sais, sendo deste modo tratada por diversos campos do conhecimento
(LEAL, 2013). Nessa seara, muitos autores apontam para um caráter
multifacetado da corrupção.

Características e classificações da
corrupção: complexidade que enseja
um pensar em suas consequências
Furtado (2015) aponta características de identificação da cor-
rupção ou do que venha ser um ato corrupto. Refere, primeiramente, a
característica do ato corrupto importar abuso de posição e transgres-
são das regras de conduta acerca do exercício de uma função ou cargo;
em segundo, a característica de requerer a violação de dever previsto
em um sistema normativo que sirva de referência; em terceiro, o fato
de os atos corruptos estarem sempre vinculados à expectativa de ob-
tenção de benefício de natureza política, sexual, profissional ou, até
mesmo, promessa futura; e, por quarto, a característica da corrupção
estar revestida de sigilo, por isso se insurge como medida preventiva
a questão da transparência.
Tendo em vista as características apontadas para tentar estrutu-
rar os tipos de corrupção existentes, pode-se utilizar como parâmetro
os apontamentos de Nascimento (2014) que, contribuindo ao tema, traz
a corrupção sistêmica, a corrupção esporádica, a corrupção política e a
corrupção burocrática.
Por corrupção sistêmica entende-se aquela que ocorre como
aspecto integrado e essencial do sistema econômico, social e político.
Nesse sentido, a maioria das instituições e processos do Estado está ro-
tineiramente dominada e utilizada por indivíduos e/ou grupos que não
possuem outra alternativa a não ser lidar com a corrupção, que já faz
parte do plano estrutural (NASCIMENTO, 2014).
Por corrupção esporádica ou individual, configura-se o conceito
oposto da corrupção sistêmica, ocorrendo de forma irregular. Por ela,
numa drenagem de recursos, os campos da moral pública e da econo-
mia estão diretamente afetados (NASCIMENTO, 2014).
Já a corrupção política ou macrocorrupção, é aquela que engloba
qualquer transação entre os agentes dos setores públicos e privados em
Silva

que os bens, serviços, interesses e/ou poderes estão comprometidos


com sua conversão em vantagens privadas e ilegais. Assim, esse tipo
da

de corrupção acontece com frequência sempre que leis e regulamen-


Rogério Gesta Leal & Carla Luana

tos vão sendo ignorados por autoridades públicas, colocadas de lado ou


ainda interpretadas segundo seus próprios interesses e de seus parcei-
ros de campo privado, atingindo a política e destruindo a democracia
(NASCIMENTO, 2014).
Agora, a corrupção burocrática ou microcorrupção caracteriza-
se como aquela que, em pequena escala e cotidiana, ocorre nos locais
ou espaços de implementação das políticas públicas, quando os agentes
públicos estão muito próximos dos agentes dos setores privados ou do
cidadão comum (NASCIMENTO, 2014).
Analisando essas bases conceituais de definições e classificações,
fica clara a complexidade envolvendo a corrupção, e essa percepção se
258
259
dá, como referido, devido aos efeitos nefastos que ocasiona a todas as

Constitucionalismo Contemporâneo
esferas da sociedade. Isso é o que se passa a analisar.

Custos e efeitos da corrupção sobre


os direitos fundamentais: um passo para
pensar na sociedade em rede
Pensando na corrupção com conceito amplo, certo é afirmar que
ela se constitui sempre como um aspecto negativo em qualquer socieda-
de. Leal (2013) refere que o que dá ensejo e fomento a comportamentos
corruptivos, tanto em nível de relações pessoais e institucionais quanto
públicas e privadas, é o cenário de fragilidade econômica e de opulên-

e suas formas contemporâneas


cia. Isso, somado ao fato de essas demandas e interesses individuais,
corporativos e sociais estarem em maior exposição nos últimos tempos.
Na década de 1990, observaram-se significativos reflexos nos
comportamentos corruptivos devido a crises financeiras e políticas in-
ternacionais e nacionais (LEAL, 2013). Pode-se dizer que, a partir des-
se cenário, o fenômeno da corrupção deixou de ser uma preocupação
somente nacional para tornar-se transnacional, principalmente com a
globalização da corrupção (FURTADO, 2015).
Não obstante, a corrupção é o maior obstáculo ao desenvolvimento
econômico e social de todo o mundo, principalmente falando em relações
institucionais públicas. A cada ano se paga em torno de um bilhão de dó-
lares em suborno, e se calcula um roubo de 2,6 bilhões de dólares anuais
em face da corrupção, quantidade equivalente a 5% do produto interno
bruto mundial (www.anticorruptionday.org). A estimativa é de que os
países em desenvolvimento são os que mais perdem com a corrupção,
havendo um enfraquecendo dos governos e com isso um agravamento
dos problemas (www.anticorruptionday.org).
A Transparência Internacional (www.transparency.org) refere
que o custo da corrupção pode ser discorrido em quatro categorias
principais: político, econômico, social e ambiental. Na esfera política,
a corrupção é um obstáculo para a democracia e o Estado de direito.
Na economia, ela acaba por esgotar as riquezas nacionais dentre ou-
tras consequências devastadoras. Na esfera social, gera relevante des-
confiança das pessoas que são diretamente prejudicadas. E, no meio
ambiental, passa por cima da preservação dos sistemas ecológicos e
recursos naturais com suas crescentes explorações desregradas (www.
transparency.org).
No que toca a seus efeitos, a corrupção, em diferentes contextos,
prejudica as instituições democráticas, freia o desenvolvimento econô-
mico e contribui para a instabilidade política (www.unodc.org). Ou seja,
pode-se dizer que a corrupção compromete a democracia, a governan-
ça e principalmente os direitos, enfraquecendo as instituições públicas
que são a base de uma sociedade justa e equitativa. Talvez a maior amea-
ça a um regime democrático seja a corrupção, no sentido de representar
uma indevida apropriação individual daquilo que deveria ser da coleti-
vidade (www.transparency.org).
De uma forma ou de outra, a corrupção gera efeitos imediatos so-
bre os vários setores da vida civil. Notadamente ela implica menos res-
peito aos direitos fundamentais, afetando-os consideravelmente. Leal
(2013) explana que, quando a corrupção já está dispersa na estrutura
política da sociedade ou mesmo tolerada por ela, haveria efeitos nefas-
tos sobre direitos fundamentais, em especial, atingindo os direitos dos
mais necessitados.
Tem-se que os poderes políticos instituídos não atendem aos
interesses públicos vitais existentes, onde, por exemplo, hospitais
públicos deixam de prestar atendimento a pacientes na forma devida
Silva

porque são desviados recursos da saúde para outras rubricas orça-


mentárias mais fáceis de serem manipuladas e desviadas como prá-
da

tica de suborno e defraudação; famílias em situação de pobreza e hi-


Rogério Gesta Leal & Carla Luana

possuficiência material não podem se alimentar porque os recursos


de programas sociais são desviados para setores corruptos do Estado
e da Sociedade Civil; as escolas públicas não têm recursos orçamentá-
rios à aquisição de material escolar em face dos desvios desses para
outros fins, e os alunos ficam sem condições de formação minimamen-
te adequadas (LEAL, 2013).
Note-se que há, por parte do poder público, um desvio quanto à sua
finalidade de trabalhar em prol do interesse público, e, nesse contexto,
envolvido por práticas de atos corrutos que ensejam esse desvio, há a
constituição de reflexos imediatos sobre os direitos como saúde, educa-
ção, à vida, dentre muitos outros. Leal (2013) refere que não há dúvidas
de que a corrupção se encontra diretamente conectada à violação de dire-
260
261
tos fundamentais, especialmente quando os atos corruptivos são utiliza-

Constitucionalismo Contemporâneo
dos como forma de violação do sistema jurídico como um todo.
Vê-se, nesse sentido, que a corrupção impede que a pessoa hu-
mana tenha seus direitos respeitados em todos os âmbitos, assim como,
sua inserção social (PILAY, 2013). A corrupção é um enorme obstáculo
à realização de todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais, bem como o direito ao desenvolvimento, e, nesse contexto,
viola os princípios fundamentais de transparência, responsabilização,
não discriminação e participação significativa em todos os aspectos da
vida da comunidade.
É interessante observar que no índice de percepção da corrupção rea-
lizado pela Transparência Internacional em 2015, considerando 168
países do mundo, o Brasil em comparação à percepção de 2014 foi

e suas formas contemporâneas


quem teve a maior queda, perdendo cinco pontos e descendo sete posi-
ções, indo para o 76º lugar. Os países que registaram maiores melhorias
foram a Áustria, a República Checa, a Jordânia e o Kuwait. Os que regis-
taram descidas mais acentuadas foram o Brasil, a Guatemala e o Lesoto
(www.transparency.org).
Todo esse cenário, considerando os efeitos da corrupção princi-
palmente nos direitos fundamentais, enseja consequente preocupação,
e, como dito, uma busca contínua de formas e mecanismos de erradi-
cação. No intuito de prevenir e combater à corrupção, a ideia é sempre
caminhar no sentido de dar um enfoque integral a esse assunto. Nesse
sentido, os governos e o setor privado, os meios de comunicação, as or-
ganizações da sociedade civil e o público em geral devem trabalhar jun-
tos com o propósito de pôr um freio a este delito.
Leciona Leal (2013) que a corrupção tem evidenciado capacidade
de expansão infinita na rede de relações sociais e institucionais, públi-
cas e privadas, ganhado mais notoriedade em face da midiática tradi-
cional e alternativa. Nesse contexto, assim como meio de notoriedade, é
que se vê a possibilidade de os meios de comunicação, nitidamente da
sociedade em rede por meio da internet, servirem também na erradica-
ção de práticas corruptivas por meio dos movimentos sociais, prezando
pela preservação dos direitos fundamentais.
Mas, no sentido de construir tal entendimento, torna-se impor-
tante analisar o que é considerado como sociedade em rede e sua eclo-
são com a internet que permitem essa leitura. Para isso, analisa-se a
sociedade da informação e os direitos fundamentais nela envoltos.
Direitos fundamentais na sociedade da
informação: a construção da sociedade em rede
Pode-se dizer que, no constitucionalismo contemporâneo, a Cons-
tituição torna-se guia para a vida em sociedade. Caracterizada como
Constituição política e jurídica, reflete seu caráter principiológico e sua
força normativa por toda ordem social, onde os direitos fundamentais
ganham papel de destaque, direitos fundamentais esses, que estariam
diretamente afetadas pela corrupção.
Os direitos fundamentais têm passado por diversas transforma-
ções, tanto com relação ao seu conteúdo como quanto à sua titularida-
de, eficácia e efetivação (SARLET, 2012). Por esse fato, costuma-se falar
na existência de gerações de direitos, ou melhor adequando o termo,
dimensões de direitos (SARLET, 2012).
Gorczevski (2009) ensina que essas dimensões são o resultado de
um longo processo histórico ocorrido de forma lenta e gradual, passando
por várias fases e eventualmente retrocessos. Como primeira dimensão
de direitos, compreendem-se os direitos de cunho individual e negativo
que exigem uma abstenção do Estado, e nela estão presentes os direi-
tos de liberdade, direitos civis e políticos. Tratando-se dos direitos de
segunda dimensão, têm-se os direitos de caráter coletivo, ou de coletivi-
dades, vinculados ao princípio da igualdade. São direitos sociais, econô-
micos e culturais de cunho positivo, que exigem uma prestação positiva
Silva

do Estado (GORCZEVSKI, 2009).


da

Quanto aos direitos de terceira dimensão, têm-se aqueles que refle-


Rogério Gesta Leal & Carla Luana

tem a ideia de fraternidade, que possuem como destinatário o gênero hu-


mano, compreendendo direitos coletivos e difusos (GORCZEVSKY, 2009).
Eles se concretizaram no fim da II Guerra Mundial, dando início a um cons-
titucionalismo de novas roupagens, tendo em vista o forte movimento de
resgate e fortalecimento da noção de democracia e da própria noção de
direitos humanos, que passa a ocupar lugar de destaque nas Constituições,
juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana (LEAL, 2007).
Tendo em vista a globalização, a evolução cultural e o progresso
científico e tecnológico, haveria também direitos de quarta dimensão,
referentes aos efeitos das pesquisas biológicas, que permitiram mani-
pulações no patrimônio genético de cada indivíduo. Para algumas cor-
rentes, os direitos dessa dimensão são direitos à democracia, o direito
262
263
à informação e o direito ao pluralismo ideológico, político, cultural, ar-

Constitucionalismo Contemporâneo
tístico, religioso, associado ao respeito à diversidade e ao direito das
minorias (GORCKZEVSKY, 2009).
Ainda, como direito de quinta dimensão, observam-se aqueles
reflexos da sociedade virtual, seriam os direitos à informática ou da
era digital (GORCZEVSKY, 2009). Isso porque, no fim do século XX e no
início do novo milênio, marcou-se a passagem da sociedade industrial
para a sociedade virtual, quando há o desenvolvimento da cibernética,
das redes de computadores, do comércio eletrônico, da inteligência ar-
tificial, da realidade virtual, da massificação da internet. Esses direitos
de quinta dimensão são resultantes do desenvolvimento da sociedade
da informação com os meios tecnológicos.
Todos esses direitos são profundamente afetados pela corrupção,

e suas formas contemporâneas


razão pela qual a ideia é que a sociedade da informação pode ajudar a
preservá-los.

Da sociedade da informação à sociedade em rede


Nos últimos tempos, tem havido grande discussão em torno da
sociedade da informação. Adolfo (2012) relata que a utilização em gran-
de escala da tecnologia modifica substancialmente as ações do ser hu-
mano em todas as esferas. A sociedade da informação é um fenômeno
de escala global com capacidade de transformar as atividades sociais e
econômicas, uma vez que elas estão sendo diretamente afetadas pelas
informações disponíveis.
A informação é algo que existe no mundo antes mesmo de o ser
humano habitar a terra, concretizando-se à medida que foram ocor-
rendo interações e contatos entre a coletividade humana (PINTO,
2010). Com o desenvolvimento de formas mais complexas de organi-
zação, foram surgindo também novos formatos de comunicação, ten-
do aí o surgimento da tecnologia que implica novas formas de relações
sociais e práticas culturais, iniciando-se pela escrita (PINTO, 2010).
Nesse cenário, consolidava-se a literatura e a imprensa, popularizan-
do as informações (PINTO, 2010).
No intuito de controle e acesso às informações, aliados a um con-
texto histórico, posteriormente surgiram invenções de novas tecnolo-
gias, como cinema, rádio, televisão (PINTO, 2010). Elas impactaram a
informação sobre o aspecto de quantidade e difusão, possibilitando
a interação dos usuários com os conteúdos vinculados. Mas, sobretudo,
o computador foi o que causou a mudança mais radical. A computação
e as telecomunicações implicaram posteriormente novas tecnologias de
comunicação que têm como base a comunicação de computadores via
satélite. Fala-se em uma adaptação das formas tradicionais de comuni-
cação a eletrônica, nos mais variados formatos (PINTO, 2010).
Pires e Reis (2010) também relacionam que a emergência, o de-
senvolvimento e a difusão de novas tecnologias da informação e comu-
nicação são a base de um novo tipo de relações sociais e econômicas,
configurando um novo tipo de Sociedade da Informação. Nessa, a infor-
mação e o conhecimento passam a ser bens de valor imensurável, indis-
pensáveis para o desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural da
sociedade (PIRES; REIS, 2010).
Castells (2005) explica que as transformações estruturais das úl-
timas décadas, associadas a um novo paradigma tecnológico baseado
nas tecnologias de comunicação e informação, se dão pelo fato de a so-
ciedade dar forma à tecnologia de acordo com as necessidades, valores
e interesses das pessoas que as utilizam. O Livro Verde do Ministério da
Ciência e Tecnologia atribui as transformações na sociedade a três moti-
vos: primeiro, a convergência da base tecnológica, ou seja, possibilidade
de se processar as informações da forma digital; segundo, a dinâmica da
indústria, possibilitando a popularização dos computadores por meio
Silva

da redução de preços; e terceiro, o crescimento da internet e sua disse-


minação em todo o mundo (BRASIL, 2000).
da
Rogério Gesta Leal & Carla Luana

A expressão Sociedade da Informação abarca o entendimento de


abranger diversas áreas do conhecimento mundo afora (ADOLFO, 2012),
razão pela qual também é chamada de Sociedade do Conhecimento.
Restringindo a nomenclatura sociedade da informação, delimitar-se-ia a
sociedade em rede como refere Castells (2005). Nessa, a tecnologia seria a
condição necessária1 para a emergência de uma nova forma de organização
social baseada em redes, ou seja, na difusão de redes em todos os aspectos
da atividade na base dessa comunicação digital (CASTELLS, 2005).
Segundo Castells (2005), a sociedade em rede, em termos simples,
é uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de co-


1
Refere Castells que é necessária, mas não suficiente.
264
265
municação e informação fundamentadas na microeletrônica e em redes

Constitucionalismo Contemporâneo
digitais de computadores que geram, processam e distribuem informa-
ção a partir de conhecimento acumulado nos nós dessas redes, as quais
são estruturas abertas que evoluem, acrescentando ou removendo nós
de acordo com as mudanças necessárias dos programas que conseguem
atingir os objetivos de performance para a rede (CASTELLS, 2005).
Na concepção de Castells (2005), a estrutura de uma sociedade
em rede resulta da interação entre o paradigma da nova tecnologia e
a organização social num plano geral. Ela se manifesta de diversas for-
mas, conforme a cultura, as instituições e a trajetória histórica de cada
sociedade. Levy (2000) explana que há uma possibilidade de expressão
pública, de interconexão sem fronteiras e de acesso à informação sem
precedente na história humana.

e suas formas contemporâneas


A comunicação em rede transcende fronteiras, constituindo-se
como uma rede global, baseada em redes globais. Então, a sua lógica che-
ga a países de todo o planeta e difunde-se por meio do poder integrado
nas redes globais de capital, bens, serviços, comunicação, informação,
ciência e tecnologia (CASTELLS, 2005). Castells (2005) salienta que toda
a humanidade é afetada pela lógica da sociedade em rede, e pelas rela-
ções de poder que interagem nas redes globais da organização social.

Da sociedade em rede à utilização da internet


Atualmente, as redes ganharam uma nova vida ao converterem-
se em rede de informação impulsionadas pela internet. Diz-se que ao
longo da história as tecnologias da informação e comunicação dão ori-
gem a um grande número de inovações, dentre as quais a internet é a
mais desenvolvida (BRASIL, 2000).
A internet é o meio que permite a comunicação de muitos para
muitos em tempo escolhido e a uma escala global. Nesse sentido, pode-
-se dizer que as principais atividades econômicas, sociais, políticas e cul-
turais de todo o planeta se estruturam por meio dela (CASTELLS, 2004).
Castells (2004) refere que a internet é um meio essencial de co-
municação e organização em todos os âmbitos de atividade. Pinheiro
(2007) diz que a internet é um meio de comunicação eletrônica forma-
da não apenas por uma rede mundial de computadores, mas sim de in-
divíduos, que abrangeria tanto uma individualização das pessoas físicas
como de empresas, instituições e governos.
Segundo Levy (2000), a internet tem se expandido mais rapida-
mente do que qualquer outro sistema de comunicação. Pensando do co-
meço do ano de 1990 e uma geração depois, o percentual da população
mundialmente conectada passou de 1% a 40%. Em pesquisa divulgada
pela União Internacional das Telecomunicações em 2015, órgão vincula-
do à Organização das Nações Unidas, o número de internautas no mundo
é de 3,2 bilhões, sendo que há 15 anos o número de internautas foi de
400 milhões somente. O Brasil, considerando o ano de 2014, tem média
global de acesso de 43,6% (ARTIGO 19, 2015).
Tamanha a relevância da internet às sociedades, que a Organização
das Nações Unidas (ONU) afirmou que considera o direito irrestrito
de acesso à internet um direito humano, pelo fato de a internet ter se
transformado em um mecanismo-chave para que indivíduos possam
exercitar seu direito à liberdade de expressão. No Brasil, tem-se a re-
gulação desse instituto pelo conhecido Marco Civil da Internet, de abril
de 2014, lei que regula técnica e civilmente o uso da rede no País, tendo
sido apelidado de Constituição da Internet no Brasil (ARTIGO 19, 2015).
É interessante notar que um dos objetivos encontrados na cha-
mada “Constituição da Internet” é a promoção do direito de acesso à in-
ternet, garantindo maior participação do cidadão nas decisões públicas,
fator importante dentro do contexto de liberdade de expressão (ARTIGO
19, 2015). Sob esta visão, a lei discorre sobre a necessidade de estabele-
cer mecanismos de governança democrática, colaborativa e transparente
Silva

com a presença de todos os setores da sociedade (ARTIGO 19, 2015).


Torna-se relevante para o estudo que no que toca à acessibilida-
da

de, o Marco dispõe que a internet é essencial para que cada cidadão pos-
Rogério Gesta Leal & Carla Luana

sa exercer sua cidadania de forma plena (ARTIGO 19, 2015). Pensando


em acesso à informação, a lei promove a publicidade e a disseminação
dos dados e informações públicas, fazendo clara menção aos sistemas de
portais de transparência e de acesso à informação, que vêm sendo imple-
mentados em todos os âmbitos federativos, e, o fomento de aplicações de
internet que favorecem a participação social nas políticas públicas, como
plataformas de discussão de projetos de lei e ferramentas que coloquem
o cidadão em contato mais direto com os gestores públicos (ARTIGO 19,
2015). Ferramentas importantes no combate à corrupção.
De tudo, refere-se que a internet promove o desenvolvimento da
sociedade informacional que tem seu fundamento baseado no conhe-
cimento, na pesquisa, na fácil acessibilidade e utilização da informação
266
267
(PIRES, REIS, 2010). Tendo em vista o desenvolvimento da sociedade da

Constitucionalismo Contemporâneo
informação com os meios tecnológicos e a ideia da internet como propul-
sora, propõe-se então, a análise dos movimentos sociais em rede na era
da internet, a partir da perspectiva do autor Manuel Castells, no combate
às práticas corruptivas e preservação dos direitos fundamentais.

Movimentos sociais na sociedade em rede


no combate à corrupção
Na obra Redes de indignação e esperança: Movimentos sociais na
era da internet2, Castels faz um amplo balanço sobre os novos movimen-
tos de contestação social do início dos anos 2010, percorrendo ao longo
de sete capítulos as revoluções na Islândia e no Egito, bem como movi-

e suas formas contemporâneas


mentos sociais na Espanha e nos EUA (MANIERI, 2014).
Castells (2013) observa sobre a união dos indivíduos nas redes
sociais de internet depois de períodos complicados na sociedade é um
tipo de ação coletiva direcionada para a transformação dos valores e
das instituições sociais, manifestando-se na e através da internet. Para
essa análise, Castells toma como base a ideia de que as redes sociais da
internet propiciam uma nova forma de mobilização, denominada por
ele como conectividade (MANIERI, 2014).
Os movimentos de insatisfação com as injustiças acabam por
se espalhar por contágio num mundo ligado pela internet sem fio e
caracterizado pela difusão rápida, viral, de imagens e ideias. Eles ig-
noram partidos políticos, desconfiam da mídia, não reconhecem ne-
nhuma liderança e rejeitam toda organização formal, sustentando-se
na internet e em assembleias locais para o debate coletivo e a tomada
de decisões (CASTELLS, 2013).
Tendo por base os aspectos apontados, Castells (2013), então, de-
senvolve sua análise específica nos movimentos sociais da sociedade
em rede. Para esse desenvolvimento, sugere algumas hipóteses basea-
das na observação sobre a natureza e as perspectivas dos movimentos
sociais em rede com a esperança de identificar os novos rumos da mu-
dança social.


2
Cabe salientar que o presente estudo tem por base as descrições desenvolvidas no
prefácio da obra de Castells.
A análise de Castells (2013) tem por base uma teoria fundamen-
tada do poder, que fornece substrato para a compreensão dos movi-
mentos sociais.
Na teoria citada, Castells (2013) parte da premissa de que as re-
lações de poder são constitutivas da sociedade, porque os que o detêm
constroem as instituições segundo seus valores e interesses. O poder
é exercido por meio da coerção e/ou pela construção de significado na
mente das pessoas, mediante mecanismos de manipulação simbólica,
que se encontram embutidos nas instituições da sociedade, em especial
no Estado. Relata também, a existência de um contrapoder, que é a capa-
cidade dos atores de desafiarem o poder, reivindicando a representação
de seus próprios valores e interesses. Diz que existe dependência dessa
constante interação de poder e contrapoder.
Para a vontade dos que controlam o poder, são elementos essen-
ciais a coerção e a intimidação, mas, além disso, a construção de signifi-
cado na mente das pessoas e uma fonte de poder mais decisiva e estável.
O modo como as pessoas pensam determina o destino das instituições,
normas e valores sobre os quais a sociedade é organizada, e por isso
pode-se dizer que a luta pelo poder é a batalha pela construção de sig-
nificados na mente das pessoas (CASTELLS, 2013).
Refere Castells (2013) que os seres humanos criam significados
interagindo com seu ambiente natural e social, conectando suas redes
Silva

neurais com as redes da natureza e com as redes sociais. A constituição


dessas redes é operada pelo ato da comunicação, ou seja, na troca de
da

informações. Para a sociedade em geral, a principal fonte da produção


Rogério Gesta Leal & Carla Luana

social de significado é o processo da comunicação socializada. Nesse


contexto, a tecnologia da comunicação na era digital amplia o alcance
dos meios de comunicação para todos os domínios da vida social, numa
rede que é simultaneamente global e local, genérica e personalizada,
num padrão em constante mudança (CASTELLS, 2013).

Movimentos sociais na era da internet


Diz Castells (2013) que, nos últimos anos, a mudança fundamen-
tal no domínio da comunicação foi com o uso da internet e das redes
sem fio, como plataformas de comunicação digital. Na sociedade em
rede, o poder é multidimensional e se organiza em torno de redes pro-
268
269
gramadas em cada domínio da atividade humana, de acordo com os in-

Constitucionalismo Contemporâneo
teresses e valores de atores habilitados. Assim, as redes de comunica-
ção são fontes decisivas de construção do poder3.
Nesse desenrolar, Castells (2013) explana que, quem detém o
poder na sociedade em rede são os programadores, com a capacidade
de elaborar cada uma das principais redes de que depende a vida das
pessoas, e os comutadores, que operam as conexões entre diferentes
redes. E já o contrapoder vem com a tentativa deliberada de alterar as
relações de poder e as redes em torno de outros interesses e valores,
e/ou rompendo as alternâncias predominantes, ao mesmo tempo em
que se modificam as redes de resistência e mudança social.
Segue Castells (2013) referindo que, ao longo da história, os mo-
vimentos sociais são produtores de novos valores e objetivos. Em torno

e suas formas contemporâneas


deles, as instituições da sociedade se transformam a fim de representá-
-los, criando novas normas para organizar a vida social.
Os movimentos sociais exerceriam a função de contra poder cons-
truindo-se, em primeiro lugar, mediante um processo de comunicação
autônoma, livre do controle dos que detém o poder institucional. Como
os meios de comunicação em massa são amplamente controlados por go-
vernos e empresas de mídia, na sociedade em rede a autonomia de comu-
nicação é basicamente construída nas redes da internet e nas plataformas
de comunicação sem fio. A esse espaço deve-se somar um espaço público,
criando comunidades livres no espaço urbano (CASTELLS, 2013).
Os movimentos sociais têm suas raízes na injustiça fundamen-
tal de todas as sociedades contadas pelas aspirações humanas de jus-
tiça. Eles agora, e provavelmente ao longo da história, são constituí-
dos de indivíduos. Esses indivíduos formam uma rede, conectando-se
mentalmente com outros indivíduos, num processo de ação coletiva
(CASTELLS, 2013).
No plano individual, os movimentos sociais são emocionais. E ob-
servando esse aspecto, vê-se que um movimento social começa quando a
emoção se transforma em ação. Para que se forme um movimento social,
a ativação emocional dos indivíduos deve conectar-se a outros indivíduos.


3
Cabe salientar, que é por meio do Estado que diferentes formas de exercício do poder,
em distintas esferas sociais, relacionam-se ao monopólio da violência como a capacida-
de de, em última instância, impor o poder. Assim, enquanto as redes de comunicação
processam a construção de significado em que se baseia o poder, o Estado constitui a
rede-padrão para o funcionamento adequado de todas as outras redes de poder.
Isso exige um processo de comunicação de uma experiência individual
para outras. Ainda, para que o processo de comunicação opere há duas
exigências: a consonância cognitiva entre emissores e receptores da men-
sagem, e um canal de comunicação eficaz (CASTELLS, 2013).
Na atualidade, demonstram-se como eficazes as redes digitais, mul-
timodais, de comunicação horizontal, que são os veículos mais rápidos e
mais autônomos, interativos, reprogramáveis e amplificadores de toda a
história. É por isso que os movimentos sociais em rede da era digital re-
presentam uma nova espécie em seu gênero (CASTELLS, 2013).
Para que as redes de contrapoder prevaleçam sobre as redes de
poder embutidas na organização da sociedade, elas precisam reprogra-
mar a organização política, a economia, a cultura ou qualquer dimensão
que pretendam mudar, introduzindo nos programas das instituições,
assim como em suas próprias vidas, outras instruções, incluindo a re-
gra de não criar regras sobre coisa alguma. Além disso, devem acionar
a conexão entre diferentes redes de mudança social (CASTELLS, 2013).
Observando os movimentos sociais, existiria um tema predominan-
te, um grito de pressão, um sonho revolucionário, e o apelo a novas formas
de deliberação, representação e tomadas de decisão políticas. Isso porque
a governança democrática eficaz é um pré-requisito para a concretização
de todos os projetos e demandas (CASTELLS, 2013).
Esses movimentos sociais em rede são novos tipos de movimen-
tos democráticos que estão reconstruindo a esfera pública no espaço de
Silva

autonomia constituído em torno da interação entre localidades e redes


da internet, fazendo experiências com as tomadas de decisão com base
da

em assembleias e reconstituindo a confiança como alicerce da interação


Rogério Gesta Leal & Carla Luana

humana (CASTELLS, 2013).

Movimentos sociais em rede no combate à


corrupção e na preservação dos direitos
fundamentais
Castells (2015), em entrevista ao Correio da Bahia em 2015, fala
de suas impressões sobre o Brasil e os últimos movimentos sociais no
País. Refere que os movimentos sociais em rede são de um novo tipo,
e se formam a partir de ideologias e motivações diversas. Na verdade,
considera que são um sintoma da crise da democracia representativa
270
271
atual, dominada por partidos a serviço deles mesmos e não dos cida-

Constitucionalismo Contemporâneo
dãos, por eleições controladas por dinheiro e meios de comunicação,
por corrupção sistêmica de todos os partidos políticos e em quase todos
os países (CASTELLS, 2015).
Sob esse cenário, refere que a comunicação em rede oferece mui-
tas possibilidades de incrementar a participação cidadã, no sentido de
revitalizar a democracia por meio da crítica aos partidos burocratiza-
dos e aos políticos corruptos. As novas mídias concedem ao cidadão,
além de um novo espaço de troca e busca de informações, a possibi-
lidade de alterar o comportamento por poder ter uma postura ativa e
independentemente dos meios tradicionais (CASTELLS, 2015).
Para se pensar no combate à corrupção, tem-se que a comunica-
ção permite que ela seja feita de muitos para muitos em tempo escolhi-

e suas formas contemporâneas


do e a uma escala global, e essa é uma característica importante para
seu enfrentamento. Por meio dos movimentos sociais em rede, há a pro-
pagação da insatisfação com as injustiças e ferimentos a direitos funda-
mentais, que acabam por se espalhar por contágio num mundo ligado
pela internet e caracterizado pela difusão rápida de imagens e ideias.
Além do mais, os movimentos sociais exercendo um contrapoder
por meio da internet, têm um processo de comunicação autônomo, livre
do controle dos que detêm o poder institucional. Sua característica pri-
mordial é mobilizar os indivíduos a uma ação coletiva, e por esse fato é
uma ferramenta efetiva de combate à corrupção.
Tendo em vista todas as benesses advindas da sociedade em rede,
por meio das tecnologias e o uso da internet vê-se que sua utilização
contribui para o combate à corrupção. Como referido nas análises ini-
ciais, a corrupção atinge todas as esferas da sociedade, por ora causando
efeitos nefastos aos direitos fundamentais. Nesse sentido, condiciona a
necessidade da utilização de esforços contínuos entre cidadãos, socie-
dades, ou mesmo países, procurando formas de enfrentamento desse
entrave com efeitos nefastos.
Dessa forma, por meio dos movimentos sociais em rede, mais
mentes vão estar conectadas pensando na mudança das organizações.
Seriam mais mentes fiscalizando e vendo a possibilidade de esse fato
surtir efeitos de pressão nos órgãos de poder. Seriam mais mentes en-
tendendo a afetação dos direitos fundamentais pela corrupção, e pen-
sando coletivamente, em preservar esses direitos.
Assim, através dos movimentos sociais em rede, existe a possibili-
dade de repressão e combate à corrupção. Não obstante, já há no Brasil
diversos movimentos sociais contra a corrupção. Em 2015, por exemplo,
25 movimentos sociais assinaram uma carta cobrando mudanças no atual
sistema político nacional, dentre eles o movimento “Vem Pra Rua”, “Basta
Brasil”, “Movimento Brasil Contra a Corrupção”, “Chega de Impostos”, en-
tre outros, afirmando que o Brasil vive um quadro assustador de corrup-
ção no seio dos poderes constituídos (congressoemfoco.uol.com.br).
O movimento “Vem pra Rua”, por exemplo, juntamente com ou-
tros movimentos da sociedade civil, levou mais de 2 milhões de pessoas
às ruas de todo o Brasil em quatro grandes manifestações contra a cor-
rupção e o desgoverno (congressoemfoco.uol.com.br).
Esses movimentos, por meio da propagação massiva pela inter-
net, foi um meio efetivo de combate à corrupção, e de preservação dos
diretos fundamentais.

Conclusão
O problema norteador da pesquisa foi analisar se os movimen-
tos sociais em rede, com o uso da internet na sociedade da informação,
poderiam contribuir para combater a corrupção e preservar os direitos
fundamentais. Ao longo da pesquisa, viu-se que a ideia para se tratar
o tema foi devido à elevada preocupação com a corrupção e os efeitos
Silva

nefastos que vêm ocasionando à sociedade, necessitando, desse modo,


a busca de formas e mecanismos a seu combate.
da
Rogério Gesta Leal & Carla Luana

Observou-se que a corrupção é entendida com um conceito am-


plo, e tem por base suas características e classificações, podendo-se di-
zer que seus custos e efeitos à sociedade são de tamanha proporção que
atingem diretamente os direitos fundamentais. Por essa razão, entende-
se que essa é também uma preocupação que gravita na sociedade da
informação que abrange diversas áreas do conhecimento mundo afora.
A sociedade da informação é um fenômeno de escala global,
com capacidade de transformar as atividades sociais e econômicas.
Delimitando à sociedade em rede, como refere Castells, essa é uma es-
trutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comuni-
cação e informação. Tendo a internet como propulsora da sociedade
informacional, surge aí uma nova percepção aos movimentos sociais, os
272
273
movimentos sociais em rede na era da internet, analisados sob a pers-

Constitucionalismo Contemporâneo
pectiva de Manuel Castells.
Devido à possibilidade da comunicação de muitos para muitos em
tempo escolhido e a uma escala global, devido à propagação da insatisfa-
ção com as injustiças e ferimentos a direitos fundamentais que acabam
por se espalhar por contágio num mundo ligado pela internet, e devido
ao fato de os movimentos sociais exercerem um contrapoder por meio da
internet que é de difícil controle, e ainda devido à característica primor-
dial de mobilizar os indivíduos a uma ação coletiva, entre outros motivos,
entendeu-se que os movimentos sociais em rede na era da internet con-
tribuem sim no combate à corrupção, e, somam formas e mecanismos à
sua erradicação, além da preservação dos direitos fundamentais.

e suas formas contemporâneas


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274
O TRABALHO INFANTIL NO MEIO
ARTÍSTICO E A VIOLAÇÃO DA PROTEÇÃO
CONSTITUCIONAL

Suzéte da Silva Reis


Doutora em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC. Professora Convidada do Programa de Pós-Graduação
em Direito e do Curso de Direito da mesma Universidade.
(sreis@unisc.br)

Paula Cunha
Graduanda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul
– UNISC. (paulacunha.94@gmail.com)

Introdução
Ainda que o ordenamento jurídico brasileiro assegure a prote-
ção integral a crianças e adolescentes, sabe-se que a exploração do
trabalho infantil ainda é uma realidade. A luta contra a exploração
da mão de obra de crianças e adolescentes não é recente, e as orga-
nizações e órgãos competentes permanecem há vários anos na busca
pela sua erradicação. Todavia, atualmente, a presente questão vem
ganhando maior destaque, tendo em vista que cada vez mais crianças
são introduzidas no cenário midiático, seja na forma de atores(as)
mirins, cantores(as), apresentadores(as), entre outros, e, em razão
de suas peculiaridades, esta forma de trabalho sequer é reconhecida
como tal.
O presente trabalho aborda o tema trabalho infantil artístico, bem
como se propõe a investigar de que maneira o trabalho artístico pode
ser desvirtuado, gerando uma relação de emprego, e que, por inúmeras
razões, abarca condições aparentemente lícitas para a sociedade.
Neste sentido, questiona-se: tendo em vista que a Constituição
Federal proíbe qualquer espécie de trabalho infantil no Brasil, a explo-
ração de crianças e adolescentes no ramo artístico não afronta os pre-
ceitos constitucionais? Para responder a referida pergunta, é necessário
que se faça uma análise dos aspectos jurídicos e históricos que abrangem
o trabalho infantil, sem deixar de observar o crescimento da exploração
de mão de obra em ramos da mídia em geral, uma vez que, em razão da
maneira como é repassada a informação, o senso comum não contempla
ilicitude na atuação de crianças e adolescentes nos cenários midiáticos.
Entretanto, é importante evidenciar que estas crianças e adoles-
centes não estão ali por lazer, mas, sim, pela prestação de um serviço,
tendo em vista que há a caracterização da situação de trabalho, uma vez
que estão presentes todos os requisitos que configuram a relação de
emprego. Ademais, ao tratar do tema em questão, também é relevante
abordar as possíveis consequências e prejuízos que a exploração preco-
ce no trabalho pode ocasionar, pois os referidos danos não carecem ne-
cessariamente da atividade braçal para ocorrer, podendo, muitas vezes,
levar as crianças à exaustão e ocasionar um dano severo às suas con-
dições psicológicas. 
Para a realização da presente pesquisa, utilizou-
se o método hipotético dedutivo, visando oferecer uma solução para o
problema estabelecido, fazendo observações ativas e seletivas acerca
do assunto, partindo do princípio de que o conhecimento não tem início
com a exação de dados ou fatos, mas sim de um problema de grande
repercussão. Como técnica de pesquisa, foi adotada a bibliográfica.

Identificando o trabalho infantil artístico


Silva Reis & Paula Cunha

O trabalho infantil acompanha o desenvolvimento econômico do


país. Ainda que sofra alterações, de acordo com os períodos históricos
e econômicos, a persistência da exploração do trabalho de crianças e
adolescentes decorre de inúmeros fatores, alguns deles fortemente ar-
raigados nas sociedades contemporâneas1.
Conforme preceitua Custódio (2006), não havia distinção entre
crianças e adultos no sentido de habitar os mesmos locais sociais, se-
da

Considera-se trabalho infantil aquele realizado por crianças e adolescentes abaixo da


Suzéte

idade mínima legal. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, inciso XXXIII,
proíbe a realização de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição
de aprendiz, a partir de quatorze anos.
276
277
jam estes públicos ou privados, nos primeiros ciclos do Brasil Colônia,

Constitucionalismo Contemporâneo
isto é, as crianças compartilhavam das mesmas vivências, partilhavam
trabalhos e jogos, de modo que padeciam com tal infortúnio, sem poder
contar com outra alternativa, haja vista as condições de extrema pobre-
za que acometia a população.
No mesmo sentido, corrobora Rizzini (1996), que na Inglaterra,
durante a Era Vitoriana, considerava-se revigorante que crianças, em
sua grande maioria menos favorecidas economicamente, trabalhassem
desde os oito anos, de forma que a sociedade da época acreditava que a
prática pudesse combater à criminalidade.
No Brasil, nesse mesmo período, em meados do século XIX, o pen-
samento do trabalho como sendo “causa celeste” da organização social,
associa-se à fase de alteração do trabalho escravo para as atividades rea-

e suas formas contemporâneas


lizadas de forma livre. Rizzini (1996) destaca que a envoltura antecipada
das crianças no ramo do trabalho era comum no século XIX, sob as alega-
ções de que era necessário delinear prematuramente a personalidade e o
caráter da criança. Contudo, a percepção da época de que a criança deve-
ria acostumar-se com o “suor dignificante” que, segundo estes, somente o
trabalho era capaz de proporcionar, um número significativo de crianças
abandonou sua infância e seu futuro, dando lugar às minas, fábricas e usi-
nas do País. Diante desse entendimento, os “valores” do trabalho foram
arraigados em nosso meio social, chegando a tornar-se uma valia inques-
tionável, ainda que exercido em condições desprezíveis e indignas, prin-
cipalmente aos mais pobres, quando o labor tinha início ainda mais cedo,
sendo justificado como um recurso orientador e educativo. Não foram
poucos os abusos cometidos em desfavor das crianças, que laboravam
até chegar à exaustão, cumprindo jornadas de trabalho equivalentes às
dos adultos (RIZZINI, 1996).
Passado mais de um século, algumas práticas de exploração do
trabalho infantil se mantêm, enquanto outras formas vão surgindo.
Dentre elas, o trabalho infantil artístico.
De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, é estritamente
proibido, qualquer que seja a atividade, o labor de adolescentes com
menos de quatorze anos. Entre quatorze e dezesseis anos só pode ocor-
rer na condição de aprendiz.
Em que pese a Constituição Federal proibir expressamente
qualquer forma de trabalho, a interpretação equivocada da Convenção
n. 158 da Organização Internacional do Trabalho e a fundamenta-
ção do artigo 406 da Consolidação das Leis do Trabalho, revogado
com a promulgação da Constituição Federal de 1988, faz com que o
Judiciário brasileiro conceda autorizações para o trabalho artístico. E
essas liberações abrem caminho para muitas fraudes ligadas ao tra-
balho infantil.
Conforme bem fundamenta Fidunio (2014), não é incomum con-
templar crianças e adolescentes, ainda que com 14 incompletos, par-
ticipando de propagandas, programas infantis, novelas, entre outros.
Contudo, em razão da forma como esses atrativos são passados aos
espectadores, tem-se a falsa ideia de que tais atividades não represen-
tam ilicitude, todavia, nada mais são do que o próprio trabalho infantil,
e, assim como os demais, também necessita de regulamentação. Antes
de mais nada, é necessário que se faça um esclarecimento quanto ao
conceito de criança trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
e pela Organização Nacional do Trabalho, em sua Convenção 182.
Enquanto o primeiro trata como crianças aquelas pessoas com até
doze anos incompletos, o parágrafo único do artigo 2º da Convenção
182 da Organização Internacional do Trabalho designa como criança
toda pessoa com menos de 18 anos.
Enquanto a Organização Internacional do Trabalho busca prote-
ger as crianças de qualquer forma de exploração que possa dificultar ou
prejudicar a sua escolaridade, o Estatuto da Criança e do Adolescente
pende para o lado dos direitos fundamentais, visando sempre possibi-
litar um desenvolvimento saudável e digno. Contudo, tal diferenciação
Silva Reis & Paula Cunha

não significa que ambas não andam lado a lado no quesito proteção.
Neste sentido, causa espanto que cotidianamente crianças e ado-
lescentes trabalhem, em meios tão ostensivos quanto os de comunica-
ção, e que esta situação seja ignorada, porque pressupõe-se que seja uma
atividade lícita. Sejam atores, cantores, apresentadores ou jogadores de
futebol, não se pode ignorar o fato de que essas crianças estão ali não por
mero divertimento, mas sim em razão da prestação de um serviço.
O trabalho infantil artístico, nesta perspectiva, demonstra uma
da

contradição, e se configura numa evidente fraude à legislação trabalhis-


Suzéte

ta, pois um adulto que realiza as mesmas atividades realiza um trabalho;


já a criança ou adolescente está participando de uma atividade artística.
278
279
Ora, desde que presentes os requisitos estabelecidos nos artigos 2º e 3º

Constitucionalismo Contemporâneo
da Consolidação das Leis do Trabalho, tem-se uma relação de emprego.
No caso do trabalho infantil artístico, resta evidente a presença
do requisito da pessoalidade, na medida em que não há a possibilidade
daquele ator simplesmente ser substituído por outro no curso de uma
novela, por exemplo. Resta caracterizado também o requisito da não
eventualidade, vindicando uma continuidade do empregado no servi-
ço ao qual está realizando as suas atividades. Por este ângulo, levando-
-se em consideração que o núcleo de atores de uma novela é invariável,
bem como que ela é exibida diariamente, pressupõe-se que as grava-
ções também sejam diárias. Além disso, está caracterizada a obrigação
dos atores em gravar em horários determinados, muitas vezes por ho-
ras a fio ou gravações noturnas. A onerosidade está diretamente ligada

e suas formas contemporâneas


à remuneração auferida pelo empregado, pois, ao realizar a prestação
de seus serviços, é direito do trabalhador receber seu pagamento como
contrapartida. É sabido que os atores adultos recebem a contrapresta-
ção pelos trabalhos realizados, porém, quando o trabalho é realizado
por crianças e adolescentes, em razão da idade, há outros problemas.
A forma de pagamento causa maior indagação quando se trata de
crianças, ou daqueles que ainda não atingiram os 14 anos de idade, cujo
labor sequer é permitido na condição de aprendiz. Em que pese não se
tenha uma certeza sobre a maneira como as remunerações são feitas a
estes atores mirins, o fato é que elas existem, e inclusive se sobrepõem
ao salário da maioria dos adultos que fazem parte da classe operária.
Neste sentido, há um conflito de informações, pois, quem aufere salário
são os trabalhadores, e se o trabalho infantil é defeso no Brasil, como
é possível que esses trabalhadores recebam salário, se não fosse uma
típica relação de emprego?2


2
Corroborando o assunto, destaca-se a matéria feita pelo site de entretenimento Portal
Guimalari (2013, http://portalguimalari.blogspot.com.br), cujas fontes foram retiradas
da Revista Caras, a qual afirmou que a média de idade entre os atores da novela infantil
“Carrossel” é de 11 (onze) anos, e que, apesar da pouca idade, eles possuem responsabil-
idades semelhantes às de um adulto, pois, além das atividades rotineiras que demandam
muita responsabilidade, os atores ainda necessitam aprender a encarar o salário que
recebem. O site ainda afirma que o salário pago aos atores os permitiram realizar alguns
sonhos, pelo que se ressalta do depoimento da atriz mirim Larissa Manoela, que afirmou
(2013, http://portalguimalari.blogspot.com.br): “Salário é uma necessidade, mas a gente
não depende só daquilo. Eu gosto de fazer o que eu faço, isso é mais importante.”.
Outrossim, conforme assevera Cavalcante (2011), existe um ter-
ceiro que irá se beneficiar financeiramente daquela atividade que está
sendo prestada, destacando que, nestes casos, não é necessário que
haja o pagamento direto ao artista mirim para que seja caracterizado o
trabalho infantil. Tal prática (beneficiar-se da mão de obra infantil sem
a devida contraprestação em valor) são inclusive frequentes, princi-
palmente nos trabalhos que envolvem desfiles ou fotos para catálogos,
quando os empregados infantojuvenis recebem somente roupas pelos
serviços prestados.
Por fim, resta presente o requisito da subordinação, que diz respei-
to à relação de hierarquia existente entre o empregado e seu empregador,
onde o primeiro está subordinado às determinações do segundo. A su-
bordinação, portanto, decorre do poder de comando do empregador, que
dirige e fiscaliza a prestação dos serviços (CASSAR, 2015).
Presentes os requisitos da relação empregatícia, tem-se configu-
rada a relação de emprego entre o ator mirim e a emissora que o está
contratando ou utilizando os seus serviços. Trata-se, portanto, de traba-
lho e não de atividade lúdica e artística.

É clara a diferença entre apresentações artísticas e trabalho ar-


tístico. A apresentação não contém todos os requisitos da cha-
mada ‘relação de emprego’, que estão previstos no artigo 3º da
CLT, quais sejam, pessoa física, o trabalho não pode ser exercido
por uma pessoa jurídica; pessoalidade, aquele que exerce uma
atividade direta não podendo delegar para outrem; não eventua-
lidade, que é a aquele trabalho prestado de caráter contínuo, du-
radouro e permanente; subordinação, implicância em obedecer
Silva Reis & Paula Cunha

às normas impostas pelo empregador, e, por fim, a onerosidade,


que é o que o trabalhador recebe em contraprestação dos seus
serviços. (DROSGHIC, 2013, [s.p.])

Por fim, vale dizer que as mesmas atividades que exigiam tama-
nho esforço físico e o uso da força além do permitido, bem como as ati-
vidades domésticas executadas por meninas em “casas de família”, as
quais há menos de um século eram extremante comuns, hoje já são vis-
tas com olhar de reprovação pela grande maioria da sociedade brasilei-
ra. Todavia, esses mesmos olhares de reprovação mudam seu ponto de
da

vista e veem com apreço e aprovação as crianças que realizam ativida-


Suzéte

des artísticas, fazendo parte de espetáculos, ou participando de alguma


novela de alto índice de audiência (CAVALCANTE, 2011).
280
281
Vila Nova (2005), citado por Cavalcante (2011, p. 48), faz uma

Constitucionalismo Contemporâneo
observação importante referente ao assunto: o trabalho artístico é
abordado como trabalho infantil das classes superiores, porque conduz
considerável fatia da classe média. Além de ser um trabalho melhor re-
munerado do que o “clássico” trabalho infantil, o trabalho artístico tem
motivações que não são apenas financeiras, como a vaidade dos pais e
a ideia de que “se dar bem na vida” é conseguir sucesso e fama. Assim,
não obstante o pensamento das pessoas tenha evoluído em relação à
gravidade do trabalho infantil, ainda será necessário muito tempo de
aprendizado para que se consolidem as diversas formas de exploração
da mão de obra de crianças e adolescentes e proibição absoluta, ainda
que repassada de forma mascarada.
É preciso deixar claro que as atividades que visam à formação

e suas formas contemporâneas


artística, bem como aquelas que visam à preservação da cultura local,
não se inserem na categoria trabalho. O direito ao desenvolvimento e
a formação plena, incluindo o desenvolvimento das habilidade e po-
tencialidades artísticas, não se confundem com o trabalho artístico3. A
exploração do trabalho infantil na televisão não estimula o progresso
e o desenvolvimento das crianças, não se tratando, portanto, de uma
atividade cultural, mas sim de um trabalho custoso, que demanda muito
esforço, dedicação e comprometimento (CAVALCANTE, 2011).
Outro fator a ser considerado é a falta de amparo às crianças e
adolescentes que trabalham nos meios artísticos. Para Reis (2015), a si-
tuação das crianças sob a ótica do labor infantil artístico vai muito além
da caracterização do trabalho pelo cumprimento dos requisitos elenca-
dos pelo artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, uma vez que
crianças e adolescentes que se encontram em uma relação de emprego
regida pelos meios de comunicação sequer estão filiadas à Previdência
Social, não possuindo qualquer abrigo perante o instituto previdenciá-
rio, seja na condição de segurados facultativos ou empregados, possuin-
do apenas a proteção de seus pais ou tutores.


3
Ao fazer uma análise em um site destinado a recrutamento de atores mirins, confir-
mou-se a efetiva existência de um contrato a ser firmado, embora não se tenha aces-
so ao documento próprio. Ademais, além do extenso rol de atores(as) disponíveis no
referido site, também chama atenção a descrição de cada criança/adolescente, a ex-
emplo da atriz “Gabi Lopes”, a qual relata, além das características físicas, uma vasta
experiência no meio artístico: A atriz Gabi Lopes nasceu em 23/07/1994 e possui 12
anos de carreira como atriz e apresentadora. Passou por cursos e workshops na área de
interpretação para TV, teatro e cinema em escolas como Recriarte, Fátima Toledo e Wolf
Maya. Iniciou carreira de atriz na publicidade, realizando comerciais e campanhas para
diversas marcas. (Disponível em www.fivecasting.com.br)
A possibilidade de inscrição previdenciária inicia-se aos 14 anos
para aqueles que exercem atividades na condição de aprendiz, bem
como aos 16 anos, nos termos das disposições normativas. Assim, res-
tam evidenciados os danos decorrentes da falta de filiação ao regime
da Previdência Social, tanto do ponto de vista laboral como previden-
ciário, pois a falta de reconhecimento do trabalho executado por essas
crianças ou adolescentes impossibilita-os de se socorrerem à tutela do
sistema trabalhista e/ou previdenciário (REIS, 2015).
Conforme Medeiros Neto e Marques (2013), o trabalho infantil
artístico pode ser caracterizado como toda e qualquer relação de traba-
lho cuja prestação de serviços ocorra por meio de expressões artísticas
variadas, por exemplo, no campo do teatro, da televisão, do cinema, do
circo e do rádio.
Isto posto, tem-se como necessário diferenciar a participação da
criança em atividades artísticas, tais como teatro, música, dança, dentre
outras, a fim de que se possa evidenciar o caráter educativo e pedagógi-
co dessas realizações. Diferentemente do trabalho infantil, as atividades
artísticas não possuem um fim lucrativo imediato, sem objetivo econô-
mico. O trabalho artístico é resultado de uma composição artística, que
tem como objetivo agregar valor e gerar lucro.

As consequências do trabalho infantil artístico


Tornar-se adulto é um sonho para muitos adolescentes e, inclusive,
crianças. Observar com esmero os adultos que seus pais se tornaram, ad-
quirir a tão esperada “liberdade”, trabalhar, ter seu próprio dinheiro, en-
Silva Reis & Paula Cunha

tre tantos outros motivos que se tem quando a maturidade ainda não foi
atingida. No caso dos atores mirins, tão jovens e já conquistando uma le-
gião de fãs, a vida de artista é tida como glamorosa, invejada pelos colegas
da escola que apenas sonham em um dia também poder cantar, atuar etc.
Mas, e quando esse glamour se torna um martírio na vida desse jovem?
E quando fazer o que até então parecia uma brincadeira se torna um sa-
crifício? Quando se descobre que ser adulto acarreta responsabilidades
muito maiores que aquelas que se imaginava ter, principalmente quando
se trata de alguém que atingiu a fama e tem seu rosto e sua vida pessoal
da

expostos em todos os meios de comunicação?


Suzéte

O aparente glamour e encanto da atividade artística, e que é


transmitido pela mídia, esconde uma realidade perversa. O trabalho
282
283
infantil artístico exige muita disciplina e sacrifícios. As crianças, na

Constitucionalismo Contemporâneo
maioria das vezes, necessitam abrir mão de coisas que são típicas da
sua faixa etária, coisas simples, como uma brincadeira saudável de pe-
ga-pega, pois correr pode levar a quedas, e quedas a ferimentos, e,
tendo em vista que a imagem dessa criança vai ser reproduzida em
vários sites e manchetes, preservar sua integridade física é essencial.
Para uma menina que sonha em ser modelo, tomar um sorvete com
as amigas já não é mais possível, pois agora as restrições alimentares
fazem parte de seu cotidiano.
Drosghic (2013, [s.p.]) enfatiza que

[...] a criança que trabalha na mídia televisiva tem uma rotina ex-
tremamente exaustiva, se assemelhando a de um adulto, são mui-

e suas formas contemporâneas


tas horas de gravações, entrevistas, tendo muitas vezes que viajar
para gravar cenas em outros locais, cidades ou até mesmos países.
Essa rotina prejudica e muito o desenvolvimento daquela criança,
diminuindo o seu tempo para brincar e estudar, sendo muito difícil
conciliar todas estas coisas, deixando sempre alguma de lado.

No mesmo sentido, Cavalcante (2011) assegura que, para as


crianças trabalhadoras, principalmente aquelas que exercem atividade
no meio artístico, o desgaste emocional é maior em razão de toda essa
dedicação, pois trata-se de sujeitos frágeis, mais vulneráveis aos cansa-
ço e irritação. A convivência das crianças com o universo dos adultos,
de modo que a subjugação às moderações particulares do ambiente de
trabalho carrega inúmeras influências à sua infância, a exemplo do ama-
durecimento precoce.
Outra questão importante a ser considerada, de acordo com
Sucupira (2012) é que

[...] as crianças também participam de gravações com elencos adul-


tos, em cenas que não são apropriadas para elas, que incluem situa-
ções de agressividade e violência. A convivência com o processo
dramático, isto é, a vivência das crianças de suas personagens, pode
levar a sérios danos para o desenvolvimento, já que muitas vezes
elas ainda não diferenciam o que é fantasia do que é realidade.

A questão de as crianças ingressarem cada vez mais cedo no


meio artístico acarreta preocupações muito maiores daquelas elen-
cadas acima. Dentre elas, a mais preocupante é a questão da chamada
sexualização precoce4.
O risco da adultização precoce é uma decorrência do exercício da
atividade artística, pois a participação em cenas com conflitos familia-
res, por exemplo, pode acarretar transtornos para as crianças (MENDES,
[s.d.]). Ocorre que a criança ainda não possui maturidade para compre-
ender que a trama da qual faz parte é fictícia. Muitas vezes, a interpreta-
ção de determinados papéis confunde-se com a realidade.
Quando se trata de meninas, essa adultização precoce preocupa
ainda mais. Apesar da pouca idade, as meninas que trabalham no meio
artístico já são vistas como símbolos sexuais. A própria mídia estimu-
la essa concessão. A título exemplificativo, recentemente, a Rede Globo
apresentou a novela “Verdades Secretas”, cujo enredo compreendia uma
jovem de dezesseis anos que sonhava em se tornar uma modelo. Em ra-
zão disso, ela acaba se prostituindo e se envolvendo com um homem
vinte e quatro anos mais velho que ela, que, para conseguir manter o re-
lacionamento e poder controlar a menina, se casa com a mãe da jovem.
Não obstante se tratar de um relacionamento excessivamente abusivo,
a relação entre eles era romantizada pela televisão, no intuito de obter
o maior número de expectadores.
Outro exemplo de como os meios de comunicação influenciam a
formação de concepções deturpadas e extremamente nocivas foi uma
campanha publicitária, lançada em 2008 para a marca Lilica Ripilica,
que é uma marca exclusivamente de roupas e calçados infantis, a qual
trazia uma menina de aproximadamente quatro anos de idade, deita-
Silva Reis & Paula Cunha

da em uma posição sensual, carregando um doce. Ao lado da imagem,


4
Gustavo Foster esboçou o tema em uma matéria para o jornal gaúcho Zero Hora, tratan-
do do assunto com o seguinte questionamento: “Funkeiros mirins: sexualização precoce
ou reflexo do cotidiano?”. O referido tema foi abordado em razão de um videoclipe gra-
vado pelos Mc’s mirins Brinquedo e Pikachu. Neste, os jovens cantores expostos como
celebridade, junto aos Mc’s Bin Laden e 2k, causam histeria na legião de fãs que os
aguarda em frente a uma residência, cantando as suas músicas. Todavia, o que mais cha-
ma atenção é o conteúdo mostrado dentro do automóvel que os transporta: porquanto
os dois cantores adultos possuem ao seu dispor garrafas de vodka, os funkeiros mirins
bebem suco e toddynho, em razão de sua pouca idade, sendo que Mc Pikachu possui
da

15 anos e Brinquedo apenas 13. A matéria ainda adverte sobre as letras que compõem
as músicas apresentadas por esses funkeiros mirins, cujo contexto nada tem de infan-
Suzéte

til, indicando como exemplo uma cantora ainda mais jovem: Mc Melody, detentora da
música chamada “Eu não quero mais”, que apresenta frases como (FOSTER, 2015): “E te
confesso que um beijo já me desperta o desejo”.
284
285
surgia a seguinte frase “use e se lambuze”. O apelo erótico da imagem

Constitucionalismo Contemporâneo
revela que a preocupação não é, efetivamente, com o desenvolvimento
da capacidade e das habilidades artística. Ao contrário, a utilização de
crianças revela-se um atrativo muito grande e contribui para o desen-
volvimento do consumismo.
Além destes, inúmeros outros danos decorrem do trabalho infan-
til. O guia jornalístico elaborado pela Agência de Notícias dos Direitos
da Infância em parceria com a Organização Internacional do Trabalho
(ANDI, 2007) traz alguns aspectos importantes a serem observados
quando do desenvolvimento das crianças que trabalham. Além dos da-
nos físicos e que envolvem a saúde dos atores mirins, é preciso conside-
rar os danos emocionais. Nas crianças que têm sua imagem e intelecto
explorados, como é o caso dos atores mirins, as consequências podem

e suas formas contemporâneas


ser notadas a longo prazo, tais como embaraços para constituir vínculos
afetivos, o que ocorre inclusive pela questão da incerteza de diferencia-
ção da vida de criança e da vida de trabalhadora.
No âmbito social, pelo fato de terem que se tornar “adultas” tão
cedo, no sentido de amadurecer precocemente, tendo que desempe-
nhar tarefas que necessitam da maturidade de um adulto, as crianças
sofrem por afastarem-se do seu convívio com as pessoas da sua idade
(ANDI, 2007).
Do ponto de vista educacional, já restou comprovado que o
número de crianças que reprovam é maior para aquelas que traba-
lham, bem como não é difícil ver estes jovens abandonando a escola
(FUNDAÇÃO TELEFÔNICA, [s.d.], online). O labor precoce intervém
de forma negativa na formação escolar das crianças, ainda mais para
aquelas com dificuldades financeiras, de modo que as crianças origi-
nárias de famílias pobres têm tendência a trabalhar mais, e, por co-
rolário lógico, estudar menos, o que compromete diretamente a sua
formação e respectiva dignidade.
Quando se trata de trabalho infantil artístico, as consequências
são igualmente graves. Drosghic (2013, online) refere que

[...] toda criança deve ter tempo para brincar, estudar e se diver-
tir. A sociedade rejeita todos os tipos de trabalho infantil, com
exceção ao trabalho na mídia televisiva, contudo, este trabalho
deve ser tratado de igual forma, pois ele é tão prejudicial como
todos os outros.

Ainda segundo Drosghic (2013, online), a criança que presta seus


serviços para a televisão possui uma rotina intensamente desgastante,
possuindo obrigações e responsabilidades equivalente às de um adulto.
Além das numerosas horas de gravação, esta criança ainda tem de dar
entrevistas, fazer viagens para realizar as gravações em locais diversos,
o que abrange não só outras cidades, mas também estados e, algumas
vezes, outros países.
As atribuições de uma criança submetida a esse tipo de rotina são
extremamente prejudiciais para o seu desenvolvimento, eis que reduz
seu tempo livre que antes era utilizado para brincar e estudar, tornan-
do-se muito penoso conciliar todos esses compromissos, obrigando-a
abrir mão de algum deles (DROSGHIC, 2013, online).
Por outro lado, Sucupira (2012) alerta que o glamour apresenta-
do pelo trabalho artístico, bem como o enaltecimento das pessoas pela
fama, algumas vezes impossibilita que os prejuízos causados pelas ati-
vidades laborais artísticas sequer sejam reconhecidos.
O fato é que o trabalho infantil existe e precisa ser combatido, inde-
pendentemente da maneira como ele é repassado para a sociedade. Toda
a criança trabalhadora vai sofrer as consequências de uma infância detur-
pada, e essas consequências provocam danos irreparáveis, tanto no que
se refere aos aspectos físicos quanto aos psicológicos (REIS, 2015).
O enfrentamento de situações vexatórias, humilhantes ou mesmo
Silva Reis & Paula Cunha

apenas embaraçosas podem causar prejuízos imensuráveis na forma-


ção de uma criança. E essas situações não são raras nos meios de comu-
nicação, provocando um dano psicológico muito grande5.
Os reflexos negativos em relação à saúde emocional dessas crian-
ças não ficam restritos aos palcos, porque, a partir do momento em que
uma criança se torna uma celebridade, ela passa a sofrer assédios que


5
Exemplo disso foi o que ocorreu com a menina Maísa, em maio de 2012, no programa
apresentado por Silvio Santos. Maísa era uma estrela mirim conhecida hoje por todo o
da

País, na época com apenas 10 anos de idade. Ao sofrer humilhações pelo apresentador,
deixou o palco aos prantos. No momento em que se retirava, a menina colidiu com uma
Suzéte

câmera e passou a ser chamada de medrosa pelo público do auditório. Não bastasse
toda a situação vexatória, sua mãe a empurrou de volta para o palco, pois ela precisava
cumprir o contrato que firmara com o programa e a emissora.
286
287
não coadunam com a sua idade e estado emocional. Situações como

Constitucionalismo Contemporâneo
brincar com os amigos nas praças ou parques se tornam conturbadas,
de modo que a criança já não pode mais exercer seu livre-arbítrio de
forma plena, sem que seja sitiada por pessoas que admiram sua fama
(REIS, 2015). Desta forma, a criança deixa de apreciar um período fun-
damental de sua vida e sua formação, sendo tolhida de conviver livre-
mente com crianças da mesma fixa etária.

A ilegalidade do trabalho infantil artístico e as


autorizações judiciais para o trabalho
A exploração da mão de obra infantil nos meios de comunicação
é ilegal, porque afronta os preceitos constitucionais, diferenciando-se,

e suas formas contemporâneas


portanto, da atividade artística, e configurando-se como uma clássica
relação de emprego. Entretanto, ainda que viole as disposições cons-
titucionais e estatutárias, o trabalho infantil artístico persiste, com a
anuência do Poder Judiciário, que sistematicamente tem concedido
autorizações judiciais para o trabalho, contrariando todas as disposi-
ções que protegem crianças e adolescentes da exploração do trabalho
antes da idade mínima legal. A erradicação do trabalho infantil requer
muito mais que anseio pela sua concretização, reclama a adoção de
ações conjuntas de todos os órgãos que integram o sistema de garan-
tias, incluindo o Poder Judiciário.

Como já reiterado, não existe uma exceção para proibição do tra-


balho do adolescente com menos de dezesseis anos, fora a condi-
ção de aprendiz. Nesta senda, ressalta-se que a previsão da exce-
ção para o artista mirim não encontra previsão na Constituição
Federal. As referidas autorizações utilizam como fundamento a
Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho, que
dispõe, no seu artigo 8º:
1. A autoridade competente, após con-
sulta às organizações de empregadores e de trabalhadores con-
cernentes, se as houver, poderá, mediante licenças concedidas em
casos individuais, permitir exceções para a proibição de emprego
ou trabalho provida no artigo 2º desta Convenção, para finalida-
des como a participação em representações artísticas.
2. Licenças dessa natureza limitarão o número de horas de du-
ração do emprego ou trabalho e estabelecerão as condições em
que é permitido.
Entretanto, a interpretação do artigo supra não condiz com os
preceitos constitucionais, que asseguram a proteção integral a crianças
e adolescentes e vedam qualquer forma de trabalho àqueles com idade
inferior a dezesseis anos.
Ocorre que, mesmo que a Convenção n. 138 tenha sido recepcio-
nada pela Constituição Federal de 1988, e, com isso, tenha adquirido
status de emenda constitucional, por se tratar de direitos fundamentais,
deve-se respeitar a norma que mais protege. No caso, é a Constituição
Federal. Este também é o entendimento de Piovesan (2000), citada
por Allemão (2011), ao trazer o ensinamento de que, quando houver
conflito entre a lei interna e o tratado internacional, o critério de hie-
rarquia encontra solução na norma que vier a favorecer a pessoa que
está sujeita a essa. Tal entendimento encontra respaldo no princípio da
dignidade da pessoa humana, priorizando a norma que mais razoavel-
mente preserve os direitos da pessoa humana, ignorando-se o critério
cronológico.
No mesmo sentido se posiciona Drosghic (2013, online), afirman-
do que

[...] qualquer ordenamento que contrarie a Constituição Federal


em relação à idade mínima para o ingresso no mercado de traba-
lho não deve ser observado, devendo este ser considerado in-
constitucional pelo fato de a nossa Constituição Federal ser
hierarquicamente superior a todas as outras normas. Sendo
assim, nenhuma norma infraconstitucional pode prever fato con-
trário ao que determina a Carta Magna. (Grifos próprios)
Silva Reis & Paula Cunha

Mesmo que uma interpretação ampliada da Convenção n. 138 ti-


vesse o condão de fundamentar as autorizações judiciais para o trabalho,
o texto constitucional faz uma vedação expressa. Como a Constituição é
hierarquicamente superior aos demais dispositivos legais, tem-se que as
referidas autorizações para o trabalho artístico são inconstitucionais.
Tal conclusão resulta de uma série de irregularidades, observa-
das quando são analisadas as autorizações judiciais para o trabalho
artístico. Por se tratar de trabalho, obrigatoriamente deveria ocorrer
da

a contratação da criança ou adolescente. Como há uma vedação legal, o


Suzéte

trabalhador infantil sequer pode emitir a Carteira de Trabalho. Assim,


não há um contrato de trabalho firmado.
288
289
Seguindo esta mesma linha, Medeiros Neto e Marques (2013) esta-

Constitucionalismo Contemporâneo
belecem que alguns requisitos para a efetiva concessão dos alvarás men-
cionados devam ser observados, dentre eles a excepcionalidade, isto é,
casos em que a atividade artística em questão não possa ser suprida pelo
maior de dezesseis anos, sendo imprescindível a contratação do trabalha-
dor infantil. Entretanto, as autorizações, até onde se sabe, não fazem qual-
quer limitação, sendo que há vários exemplos de atores e atrizes mirins
que trabalham por longos períodos de tempo para a mesma emissora.
Outro aspecto que merece atenção é quanto à remuneração. A
criança ou o adolescente trabalha, porém, o valor da remuneração é
administrado pelos pais. Ou seja, inverte-se a obrigatoriedade de as-
segurar a proteção integral que deverá ser garantida pela família, pela
sociedade e pelo Estado: no caso, a criança ou o adolescente é que

e suas formas contemporâneas


passa a ser o responsável pelo sustento da família, com a tutela do
Poder Judiciário e com a conivência da sociedade. Tudo isso em nome
da necessidade de contratação de crianças e de adolescentes para de-
sempenhar determinados papéis em novelas, seriados, campanhas
publicitárias, entre outras.
Analisando esta percepção, automaticamente surge o questiona-
mento a respeito dessa imprescindibilidade. Quer dizer, é possível que
uma norma contrarie o direito à infância? Afinal, sobrepor as vontades
dos adultos, ora empregadores, ao direito das crianças e adolescentes
de ter uma infância livre e saudável é atingir diretamente suas garantias
como sujeitos de direito. Não é porque se trata de trabalho artístico que
as consequências serão menos graves. O trabalho, seja ele qual for, traz
prejuízos imensuráveis, sendo o principal deles a perda da infância.
Nos meios de comunicação não é diferente. O ramo artístico não é
considerado uma profissão recente, muito menos a exploração de crian-
ças nesta seara, entretanto, sua regulamentação ocorreu somente na
década de 1970, pelo então presidente da República, Ernesto Geisel. Em
24 de maio de 1978, mais especificadamente, foi criada a Lei nº 6.533,
que tratava sobre a regulamentação das profissões de artistas e de téc-
nico em espetáculos de diversões. Não obstante a legislação supracitada
traga certos requisitos para que se possa efetivar o labor artístico, como,
por exemplo, o registro na Delegacia Regional do Trabalho, bem como
estabelece os limites dos direitos e deveres envolvidos nesta atividade,
ela não faz qualquer menção a crianças e adolescentes.
Por outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispôs, no
inciso II, do artigo 149, sobre a viabilidade da participação de crianças
e adolescentes em atividades artísticas, assim como esclareceu que é
competência da autoridade judiciária o controle de autorização ou proi-
bição destas atividades. Todavia, em momento algum, o Estatuto dispõe
sobre o trabalho artístico.
A Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho,
no artigo 8º, dispôs sobre a regulamentação de autorizações individuais
para que possa ocorrer a participação, embora não determine a idade
mínima para tanto, somente fixando as condições destas ocupações e
seu tempo de duração.
Embora não exista um regramento específico que verse sobre o
labor infantil no âmbito midiático, a interpretação equivocada dos dis-
positivos acima mencionados provoca consequências graves. Uma de-
las decorre da confusão entre atividade artística e trabalho artístico. A
primeira é contemplada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. No
entanto, o trabalho infantil artístico não possui nenhum regramento,
visto que é vedado pelo ordenamento jurídico.
Os alvarás que autorizam a participação nas atividades artís-
ticas são expedidos pelos magistrados dos Juizados da Infância e da
Juventude, e não pelo Juiz do Trabalho, ou seja, as emissões são feitas
sem fundamentos específicos, contradizendo as estipulações legais.
Nesse sentido, destaca-se o depoimento da Procuradora do Ministério
Público do Trabalho, Margaret Matos de Carvalho, transcrito por
Fidunio (2014):
Silva Reis & Paula Cunha

[...] até agora ainda os alvarás têm sido emitidos pelo juizado
da infância e adolescente e não pelo juiz do trabalho, é por isso
que nós insistimos que a competência seja do juiz do trabalho.
O juiz da infância e adolescência tem contato com a criança e
o adolescente quando eles já são infratores, quando eles pra-
ticam algum ato que seja contrário à legislação, e eles têm que
ir lá para receber medidas socioeducativas. Ou vai ter que ficar
num educandário, vai passar um outro tipo de medida educati-
va, como passar por um programa que o juiz indicar; o contato
da

maior do juiz da infância e adolescência é com essa realidade,


de crianças e adolescentes que cometem delitos. Então quando
Suzéte

eles veem a possibilidade de trabalho eles acham que isso é uma


forma de proteção, como se isso fosse solução, criança que está
290
291
trabalhando não vai delinquir; é mais ou menos esse raciocí-

Constitucionalismo Contemporâneo
nio que eles fazem. E não percebem que a criança tem direito a
um não trabalho, que quando se estabelece uma idade mínima é
justamente para isso, proteger o desenvolvimento físico e men-
tal dessas crianças. Então esses juízes quando eles estabelecem
quais são os requisitos que o empregador deve atender nos ca-
sos de trabalho infantil artístico, pouco se observa da legislação,
como o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição
Federal.

O depoimento revela dois grandes equívocos na concessão das


autorizações para o trabalho: o primeiro diz respeito à competência e
o segundo diz respeito ao mito de que o trabalho é a solução para os
problemas de comportamento ou de conduta. Entende-se equivocada

e suas formas contemporâneas


a competência para a emissão dos respectivos alvarás, pois o magis-
trado responsável pelas varas da infância e juventude tem contato di-
reto com crianças/adolescentes que cometeram algum tipo de delito;
desta forma, ainda que de maneira involuntária, é plenamente possí-
vel que os juízes permitam a participação deles nas atividades artísti-
cas como um meio de evitar infrações.
Ademais, tendo em vista que as relações de trabalho são de com-
petência da Justiça do Trabalho, ilógico que a autorização judicial deva
ser concedida por uma justiça que não será competente para julgar fu-
turamente as questões relativas a este contrato. Sabe-se que todas as
relações de trabalho são apreciadas pela Justiça do Trabalho, não po-
dendo ser diferente com as crianças, tendo em vista o caráter emprega-
tício dessas relações.
Apesar da controvérsia a respeito de quem teria competência
para autorizar o trabalho infantil artístico, entende-se que não se trata
de discutir competência, pois, diante da vedação constitucional, não há
possibilidade alguma de trabalho abaixo da idade mínima legal. Para
Oliva (2010), uma possível solução para que a controvérsia fosse redu-
zida, seria uma previsão expressa quanto ao labor infantil nas ativida-
des artísticas, na própria Constituição Federal.
Contudo, é imperioso salientar que prevalece a negativa quanto
às autorizações para o trabalho artístico infantil prevista no artigo 8º da
Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho, pois enten-
de-se ser uma afronta direta aos preceitos constitucionais que proíbem
o labor daqueles com idade inferior aos dezesseis anos, salvo na condi-
ção de aprendiz. A negativa decorre dos fatores já expostos e que são
imensamente prejudiciais para o desenvolvimento de crianças e ado-
lescentes que são submetidas a uma relação de emprego, adquirindo
responsabilidades muito maiores das que são capazes de suportar, e,
consequentemente, amadurecendo de forma precoce e desequilibrada.
Ademais, se o plano é erradicar o trabalho infantil, não é coerente que
se estabeleça a referida ressalva.
A discussão encontra-se atualmente em análise no Supremo
Tribunal Federal, sob a égide da Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 5.326, que questiona a competência da Justiça do Trabalho para
fornecer os alvarás que permitem a atuação dos artistas mirins. A
referida ação foi elaborada pela Associação Brasileira de Emissoras
de Rádio e Televisão, em 2015, e impugna a competência material da
Justiça do Trabalho para fornecer essa autorização. Ainda que não
tenha legitimidade para propositura da referida ação6, o propósito
parece claro: o receio de não mais conseguir explorar a mão de obra
infantil.
A discussão está em andamento, todavia resta claro que as ati-
vidades artísticas se configuram como legítimas relações de emprego.
Nesse sentido, a questão das autorizações vai além do caráter proteti-
vo, construindo em sua essência uma relação de trabalho que deve ser
ministrada pela jurisdição à qual compete legislar por suas regras: a
Justiça do Trabalho.
Silva Reis & Paula Cunha

6
Em que pese a grande questão estar relacionada com o teor da ação Direta de
Inconstitucionalidade 5.326, o primeiro questionamento que deve ser feito é a respeito
da legitimidade da Associação para interpor a referida ação junto ao Supremo Tribunal
Federal, eis que se trata de uma associação civil.
Para Feliciano (2015), é entendimento pacífico da doutrina e do próprio Supremo
Tribunal Federal que as entidades de âmbito nacional referidas pelo artigo 103, VIII,
da Constituição Federal, são assim consideradas aquelas que, de fato, possuam cunho
nacional, com representação irrestrita e que tenham membros espalhados em um terço
dos estados da Federação, pelo menos.
Desta forma, não se vislumbra legitimidade ativa a qualquer associação civil com vo-
da

cação estatutária para representações supostamente nacionais, como é o presente


caso. O segundo questionamento diz respeito ao motivo para que uma associação de
Suzéte

rádio e televisão impetre uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para que a Justiça
do Trabalho não seja considerada competente para definir se crianças e adolescentes
poderão ou não trabalhar nos espetáculos artísticos e estabelecer suas condições.
292
293
Conclusão

Constitucionalismo Contemporâneo
Ao final, pode-se chegar à solução da pergunta que deu origem ao
presente trabalho: Tendo em vista que a Constituição Federal proíbe qual-
quer espécie de trabalho infantil no Brasil, questiona-se: a introdução de
crianças e adolescentes no ramo artístico não afronta a legislação? Embora
existam algumas contrariedades, é possível afirmar com convicção que
sim, o trabalho de crianças e adolescentes no ramo artístico afronta di-
retamente a legislação brasileira. Tal resposta deriva, especialmente, da
análise dos requisitos da relação de emprego, elencados pelo artigo 3º da
Consolidação das Leis do Trabalho, tendo em vista que eles estão presen-
tes nas relações entre os atores mirins e as empresas do ramo artístico.
Apesar de ser recorrente a ideia de que somente questões finan-
ceiras são relevantes para o ingresso no mundo do trabalho, no caso do

e suas formas contemporâneas


trabalho artístico, a visão desfigurada passada pela mídia a respeito do
labor infantil nos meios televisivos é a grande responsável não só pela
vontade dos jovens de adentrar nesse ramo artístico, mas também do
incentivo dos pais e responsáveis.
Assim, como todos os demais trabalhos, o trabalho infantil artísti-
co também acarreta muitas consequências físicas e psicológicas, dentre
elas a adultização precoce é um dos principais resquícios deixados pelo
labor extemporâneo, de modo que crianças/adolescentes são obrigados
a assumir responsabilidades muito além das que seu estado emocional
é capaz de suportar com essa idade. Ademais, elas precisam abrir de
mão de etapas imprescindíveis para seu desenvolvimento, como brinca-
deiras com os amigos da mesma idade, ou até mesmo tempo para fazer
os deveres escolares. No caso das artistas mirins, constatou-se um risco
ainda maior quanto à maturidade precoce, no sentido da sexualização.
Muito embora a ratificação da Convenção n. 138 da Organização
Internacional do Trabalho tenha lhe conferido o status de emenda consti-
tucional, ela não pode se sobrepor à norma constitucional, que assegura
a proteção integral e veda o trabalho àqueles que têm idade inferior a
dezesseis anos. Não obstante os critérios hierárquicos temporais presen-
tes em nosso ordenamento jurídico, por se tratar de proteção de direitos
fundamentais, deve prevalecer a norma mais protetiva.
Por fim, a discussão sobre a competência para as autorizações
judiciais para o trabalho, que está em julgamento no Superior Tribunal
Federal, traz uma nova perspectiva de análise acerca do tema. Afinal,
se o objetivo é a erradicação do trabalho infantil, é incoerente que o
Poder Judiciário autorize o trabalho infantil artístico. E, a partir desse
viés, pouco importa se a competência é da Justiça do Trabalho ou da
Infância e Juventude, pois tanto uma quanto outra não pode se sobre-
por às disposições constitucionais que estabelecem a idade mínima
para o trabalho.

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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO
JURÍDICA E A ORDEM DEMOCRÁTICA:
RACIONALIDADE DA DECISÃO DAS
SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS
NA AÇÃO POPULAR NO CASO DA
DEMARCAÇÃO DE TERRAS DA RESERVA
INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL

Carla Luana da Silva


Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC), com bolsa Prosup/Capes, modalidade Taxa,
na linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo.
Pós-graduanda em Direito Administrativo e Constitucional
pela Escola Paulista de Direito (EPD). Bacharel em Direito
pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Integrante
dos Grupos de Pesquisa “Estado, Administração Pública e
Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal,
na linha de Patologias Corruptivas, e “Constitucionalismo
Contemporâneo”, na linha Teoria do Direito, coordenado pela
Profª. Drª. Caroline Müller Bitencourt, ambos vinculados ao
PPGD da UNISC. Advogada.
(carlaluanaschulz@hotmail.com)

Tatiane de Fátima da Silva Pessôa


Mestranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC). Graduanda em Letras – Licenciatura – habili-
tação Português e Literatura Língua Portuguesa (UFSM).
Membro do Grupo de Direitos Fundamentais na Sociedade da
Informação, vinculado ao PPGD da UNISC.
(tatianefpessoa@gmail.com)

Introdução
Toda vez que se pensa em decisão judicial, o que parece vir à tona
é a necessidade de discutir seus limites considerando a Constituição e
o Estado Democrático de Direito, principalmente em termos de cria-
ção judicial. Entendendo a importância de discutir o problema de de-
cidibilidade, delineou-se como objetivo ao trabalho realizar a análise
de uma decisão judicial, que se entende por incorreta, sob a ótica da
teoria do discurso de Alexy.
O problema que embasa o trabalho tem como pressuposto a seguin-
te indagação: sob a ótica do modelo discursivo, da Teoria de Argumentação
Jurídica de Robert Alexy, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal no caso da Ação Popular, na resolução de demarcação de terras
indígenas da Reserva Raposa Serra do Sol, no que tange às salvaguardas
institucionais ali dispostas, obteve obediência às regras do discurso ju-
rídico preservando uma ordem democrática? Assim, tem-se como tema
central a análise da legitimidade das salvaguardas institucionais na deci-
são do caso da demarcação de terras indígenas na Reserva Raposa Serra
do Sol sob a ótica da teoria da argumentação jurídica.
Com o intuito de resolver a indagação levantada, o objetivo é pri-
meiramente fazer um estudo quanto ao problema de decidibilidade
contemporâneo, voltando-se para a figura do ativismo judicial (junta-
mente com o velho debate em seu entorno), e, com isso, o estudo da
teoria do direito que teria por preocupação o estudo dessas questões
Silva Pessôa

envolvendo a aplicação do direito. Nessa resolução, caminha-se para a


análise das matrizes teóricas das decisões judiciais sob a ótica do autor
Robert Alexy que propõe o modelo discursivo como solução. Em um se-
gundo momento, seguindo a ideia de análise da matriz teórica discursi-
da

va de Alexy, desenvolve-se especificamente o que contribui a Teoria da


Fátima

Argumentação Jurídica, do referido autor, analisando-se a tese do caso


especial, as regras específicas do discurso jurídico de fundamentação
interna e externa, e, ao final, a análise de quais seriam os limites e a
de

necessidade de um discurso jurídico.


Silva & Tatiane

Indo ao encontro de resolver o problema apresentado, observa-se


especificamente a decisão do caso de demarcação de terras no caso da
Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, demonstrando-se as disposições
das chamadas salvaguardas institucionais, que, no caso, configurariam
uma decisão defeituosa. Isso a ser analisado sob a perspectiva da matriz
da

teórica discursiva, da Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy,


Carla Luana

tendo em vista as regras de justificação interna e externa que concreti-


zam a racionalidade de uma decisão que preservaria os ideais de uma
ordem democrática. Para isso se utilizou do método hipotético-deduti-
vo, com procedimento analítico e posteriormente com estudo de caso,
298
299
tendo como técnica a documentação indireta e a análise de jurisprudên-

Constitucionalismo Contemporâneo
cia do Supremo Tribunal Federal.

O problema das decisões judiciais sob a


perspectiva da teoria do direito: o modelo
discursivo como solução
Observando a tendência contemporânea brasileira (seguindo
uma tendência mundial) de aposta nos órgãos judiciais, o que pare-
ce vir à tona é a necessidade de discutir seus limites considerando a
Constituição e o Estado Democrático de Direito, principalmente quando
se trata de criação judicial. Miozzo (2014) explica que a criação judi-

e suas formas contemporâneas


cial do direito tem recebido crescente atenção na doutrina brasileira,
especialmente no que tange ao fenômeno designado como ativismo ou
protagonismo judicial.
Nesse contexto, como guardião da Constituição Federal e cúpula
do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal se depara cada vez
mais com a responsabilidade de resolver questões de maior relevân-
cia para sociedade e, por ora, entrando em questões que, por exemplo,
pouco tempo eram denominadas pelos tribunais como questões polí-
ticas, de competência dos demais poderes, como o caso da demarca-
ção de terras indígenas (MIOZZO, 2014), tema a ser desenvolvido no
decorrer deste trabalho.
Leal (2012) explica que nos Estados constitucionais, frente à
Constituição e aos direitos fundamentais, os tribunais têm essa caracte-
rística de exercer relevante papel. No entanto, no exercício dos seus po-
deres acabam criticados e questionados sobre os limites e legitimidade
de sua atuação. Surge nesse contexto expressões como judicialização e
ativismo judicial (LEAL, 2012). “A judicialização e o ativismo são traços
marcantes na paisagem jurídica brasileira dos últimos anos. Embora
próximos, são fenômenos distintos.” (BARROSO, 2008).
Na distinção de judicialização e ativismo, judicialização é o resul-
tado de um processo histórico típico do constitucionalismo democráti-
co, tendo por base múltiplos fatores. Sua principal característica reside
em um protagonismo do Poder Judiciário, o qual tem a responsabilidade
de decisões estratégicas sobre temas fundamentais da sociedade, fazen-
do, desta forma, que o direito se converta cada vez mais em um direito
judicial, construído no caso concreto pelos magistrados (LEAL, 2012).
Barroso (2008) é pontual em dizer que no Brasil a judicialização não
decorre da vontade do Judiciário, mas sim da vontade do constituinte.
Leal (2012) trabalha duas perspectivas para a judicialização: a da
política e a do direito. A judicialização considerando a política é a rela-
ção que o Poder Judiciário tem com os demais poderes, em termos de
intervenção nas competências do Executivo (no controle jurisdicional
de políticas públicas), e Legislativo (como, por exemplo, criando leis,
definindo normas). Já a judicialização considerando o direito, é ver a
tendência de ele se tornar cada vez mais jurisprudencial.
Agora, o ativismo judicial assume feições diferentes. Ele está re-
lacionado a uma perspectiva interna, ligada ao desempenho do Poder
Judiciário no exercício de suas competências, sendo identificado, na
maioria das vezes, como uma postura proativa dos julgadores (LEAL,
2012). Esta, “expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e
expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e al-
cance de suas normas, para ir além do legislador ordinário” (BARROSO,
Silva Pessôa

2008). É por este aspecto que a atuação dos magistrados é frequente-


mente questionada e criticada, sob o argumento de que, em nome da
concretização dos direitos fundamentais, são extrapolados os limites
das competências fixadas pela Constituição (LEAL, 2012).
Pode-se dizer que esse é um velho debate pelos estudiosos, e cabe
da

aqui extrair como importante o fato de se discutir externamente os limi-


Fátima

tes da discricionariedade judicial na interpretação do direito.


de

O ativismo colocando em jogo a democracia:


Silva & Tatiane

um problema de decidibilidade a ser discutido


e o papel das teorias do direito nesse meio
Leal (2012) aponta que o ativismo judicial, associado à postura
ativa e intervencionista dos tribunais constitucionais na concretização
da

dos direitos fundamentais e da Constituição, tem gerado muitas con-


Carla Luana

trovérsias e discussões na teoria constitucional contemporânea, prin-


cipalmente no que diz respeito à sua legitimidade democrática frente
a uma suposta violação do princípio da separação de poderes. A esta
percepção se tem trabalhado que o Poder Judiciário estaria invadindo
300
301
a esfera reservada aos poderes representativos ao ter sua atuação de

Constitucionalismo Contemporâneo
forma positiva e não negativa, como deveria acontecer, pondo em risco,
desse modo, o próprio sistema democrático.
Miozzo (2014) explica que o protagonismo judicial envolve discus-
são profunda em dois dos alicerces do Estado de direito, a separação fun-
cional de poderes e o princípio democrático, ambos relacionados como
princípios fundamentais. “Um dos pontos nevrálgicos desta delicada re-
lação diz respeito ao limite e intervenção do Judiciário no controle e no
impulso da atuação dos demais poderes” (MIOZZO, 2014, p. 22).
Streck (2002) aufere que, mesmo com todos esses impasses, a ex-
periência aponta para o fato de que o Estado Democrático de Direito não
pode mais funcionar sem a justiça constitucional. Com isso, para Leal

e suas formas contemporâneas


(2007, p. 95), a questão central é de como se deve dar o controle e os
fundamentos para essa atuação, ou seja, como seria possível “construir e
dar sentido ao texto constitucional a partir de uma perspectiva e de um
exercício democráticos”. E esse é o ponto que se leva a afirmar que “dis-
cutir as condições de possibilidades da decisão jurídica é, antes de tudo,
uma questão de democracia” (STRECK, 2010, p. 87).
Já se pode prever, então, o problema ou a questão central que
os operadores do direito devem se pôr a investigar, ou seja, os limites
de interpretação/aplicação pelo aplicador do direito, tendo em vista a
preservação de uma ordem democrática, e esse seria um problema de
decidibilidade. O problema da decibilidade é o que algumas teorias do
direito buscam estudar.
No intuito de trabalhar o problema de decibilidade nas decisões
judiciais, a proposta é observar e avaliá-las sob a ótica da teoria do direito
ou, sob a ótica da teoria da decisão judicial, como utilizam alguns autores.
Põe-se aí a ver que a teoria do direito realiza um estudo crítico e interdis-
ciplinar de conceitos jurídicos, “mediante a comparação de vários ramos
do direito e sistemas jurídicos, no intuito de elaborar uma teoria da estru-
tura do fenômeno jurídico, refletindo, principalmente, sobre a definição e
os métodos de aplicação do direito” (DIMOULIS, 2006, p. 40).
Pondo-se a observar a importância da teoria do direito nesse estu-
do, aponta-se para sua frequente utilização na prática, fato que, não ra-
ramente, mas sempre, os operadores do direito recorrem a argumentos
e análises dela no intuito de sustentar sua opinião. Principalmente nos
casos difíceis, há um uso inadequado da teoria do direito por uma solu-
ção que só pode, muitas vezes, ser obtida após reflexão sobre finalidades
do direito, métodos de interpretação, relação entre direito e justiça, que
levaria também a considerações sobre a estrutura do ordenamento jurí-
dico, como natureza dos princípios, relação de eficácia jurídica e social ou
a forma de aplicabilidade das normas (DIMOULIS, 2006).
Mas não é só nesses casos instrumentais que se pode fundamentar
a utilização da teoria do direito. A utilidade dela se torna clara se fosse
pensado que “todas as formas de discurso e argumentação na área jurídi-
ca pressupõe a aceitação de uma teoria do direito que possibilite o uso do
próprio termo direito coerente” (DIMOULIS, 2006, p. 42).
Sobre essa observação, Dimoulis (2006) ensina que a teoria do
direito se constitui sobre um saber onipresente na prática, mesmo que
aqueles operadores que a usam não estejam conscientes disso. Ela se
torna fundamental no sentido de analisar os fundamentos de um sis-
tema jurídico, oferecendo a base para sua compreensão. Compreensão
essa que engloba principalmente o problema da decidibilidade. Assim,
pode-se notar que tipo de relação a teoria do direito tem com a questão
Silva Pessôa

da decidibilidade, com a tamanha responsabilidade de discutir seu en-


torno e suas bases. No que tange à questão de decisão pelo órgão julga-
dor, podem-se extrair cinco matrizes de teorias do direito.

Matrizes teóricas das decisões judiciais:


da

o modelo discursivo como escolha a tratar


Fátima

do problema de decidibilidade
de

Tendo em vista a análise da aplicação e interpretação do direito


Silva & Tatiane

nas decisões judiciais, Alexy (2010) explica que se pode obter cinco
tipos de matrizes teóricas1, ou seja, as matrizes de teorias do direito
que ele desenvolveu em seus estudos no campo da decidibilidade.
Primeiro, o autor desenvolve a Matriz Deducionista, ou seja,
aquela que se utiliza da técnica do inducionismo, de acordo com a ló-
gica de que qualquer caso jurídico decorre evidentemente de normas
da

válidas, o que é a ideia de um positivismo exegético. “O verdadeiro mo-


Carla Luana

delo deducionista diz que a decisão de qualquer caso jurídico decorre


1
Essa percepção de matrizes teóricas relacionadas no artigo é própria de Robert Alexy,
existindo outras classificações, por outros autores, que aqui não foram abordadas.
302
303
logicamente de normas válidas, juntamente com definições de concei-

Constitucionalismo Contemporâneo
tos jurídicos, os quais eram pressupostos como certos, e de sentenças
empíricas” (ALEXY, 2010, p. 2).
Conforme o mesmo autor, essa matriz sofreu críticas quanto a
questões como a imprecisão da linguagem das normas, a possibilida-
de de conflitos ou colisões entre elas, o fato de que possa não haver
uma norma para a decisão de um determinado caso e a possibilidade de
um desenvolvimento do Direito contrário à formulação literal de uma
norma. Nesse mesmo ponto de crítica, entende-se que a lei escrita não
cumpre a tarefa de resolução dos problemas aquém, onde a decisão ju-
dicial completa certa brecha de acordo com padrões da razão prática e
conceitos e justiça fundados na comunidade.
Uma segunda matriz de decisão judicial é a Decisionista, que sain-

e suas formas contemporâneas


do da premissa de que uma resposta não estaria dada pelo sistema, en-
tenderia que o juiz, quando fundado em boas razões (dentro de argu-
mentos), teria um espaço para decidir de acordo com bases normativas
ou extranormativas (ALEXY, 2010). Nesse caso, o critério de decisão,
nos chamados casos difíceis, seria o de autoridade. Tal modelo Alexy
(2010) atribui aos pensamentos de autores como Hans Kelsen.
Essa matriz sofreu críticas daqueles autores que entenderam ha-
ver respostas corretas para os referidos casos. Refere Alexy (2010) que a
visão desse modelo é contrariada pela autocompreensão e pelo ponto de
vista interno de formação da decisão judicial, no sentido de que, mesmo
em casos difíceis, os juízes tentam decidir em atenção a motivos jurídicos
legais e suficientes a dar explicações racionais, concretizando uma deci-
são que, embora não seja a única correta, ainda assim é correta.
Uma terceira matriz citada por Alexy (2010) é a Hermenêutica,
desenvolvida principalmente por autores como Gadamer e Betti. Nela
existe uma estrutura de interpretação e compreensão em toda a apli-
cação da norma jurídica, sendo que o seu conceito é a chave do círculo
hermenêutico. Embora tenha trazido grandes contribuições ao direito,
sofreu críticas pelo fato de que não conseguiu sair do seu próprio ema-
ranhado, pois dá início em um ponto e finaliza no mesmo ponto, segun-
do a ideia de compreensão e pré-compreensão. Outra crítica relevante
foi a de que esta matriz faz sempre sua interpretação a partir da norma.
Ela estaria contribuindo para pensar a interpretativamente, mas não re-
solveria os problemas.
Outro modelo de matriz de decisão judicial constitui-se no mo-
delo Coerencial, que entende que as decisões devem se dar por uma ra-
cionalidade sistemática ou argumentativa em que se associa a ideia de
integridade e de coerência interna ao direito (ALEXY, 2010). Nessa, in-
cluem-se autores como Savigny e Ronald Dworkin. A crítica a esse mo-
delo é que o juiz está tomado pelos seus pré-juízos ao decidir os casos,
ideia de holismo jurídico.
E, uma quinta matriz de decisão judicial, é o modelo do discurso
oferecido pela teoria discursiva, das regras de argumentação jurídica.
Na opinião de certos autores, é o modelo que mais avançou pela não
pretensão de entrar no modelo subjetivista, pois, quando há a decisão,
precisa expor argumentos que são criticados pela esfera pública e esse
é um argumento válido no contexto da universalidade. No mesmo sen-
tido que as outras matrizes, essa sofre críticas pelo fato de as regras do
discurso serem trabalhadas sob a ótica de um ideal.
Mas, conforme Alexy (2010), o modelo discursivo de argumenta-
ção jurídica é uma forma de reação às deficiências de todos os modelos
aqui apontados. Nas suas palavras, e analisando os outros quatro mo-
Silva Pessôa

delos, vê-se que “a teoria da argumentação jurídica desejável é a que


resolve o problema da interpretação correta ou, pelo menos, ajuda a
trazer a solução” (ALEXY, 2010, p. 6).
Para Toledo (2005, p. 48), a teoria da argumentação jurídica se
da

relaciona diretamente com a teoria do discurso, que visa “questionar


Fátima

e demonstrar a possibilidade e a validade de uma fundamentação ra-


cional do discurso especificadamente jurídico, estipulando-lhe algumas
de

regras e formas”. Essa está formulada no contexto da Filosofia do século


Silva & Tatiane

XX, pós-reviravolta linguística pragmática, na qual, dentre os autores


que buscaram o tratamento do discurso jurídico, está Alexy, com a ela-
boração de uma Teoria da Argumentação Jurídica (TOLEDO, 2005).
Gesta Leal (2014) leciona que a teoria da argumentação jurídica
trabalha sob a ótica de que a lógica formal e tradicional de interpretação
da

e aplicação do direito não atende situações como a imprecisão da lingua-


Carla Luana

gem do Direito (que dificulta a interpretação/aplicação), o conflito entre


normas, a inexistência de normas jurídicas que se amoldam a casos de
alta complexidade temática, bem como a casos especiais que demandam
decisões que contrariem textualmente estatutos normativos.
304
305
Vê-se que, se deparando com essas questões, as decisões judiciais,

Constitucionalismo Contemporâneo
quando na análise de um caso concreto, teriam uma carga de discriciona-
riedade e subjetivismo aumentadas. No controle desta, a argumentação
jurídica tem relevância no sentido de demarcar parâmetros e ferramen-
tas de interpretação/aplicação pelo aplicador do Direito, tendo em vista a
preservação de uma ordem democrática, ou seja, contribuindo para a ra-
cionalidade do processo de decisão. Desse modo, o problema inicial aqui
levantado quanto à decidibilidade estaria por ser minimizado.
Admitindo que o modelo discursivo é uma reação às deficiências de
todos os modelos postos anteriormente, e que seria, segundo Alexy, uma
proposta de solução à decidibilidade, caminha-se agora para avaliação do
que engloba a Teoria da Argumentação Jurídica proposta pelo autor, ana-
lisando notadamente sua obra Teoria da Argumentação Jurídica, especifi-

e suas formas contemporâneas


camente a Parte III, sobre Uma Teoria da Argumentação Jurídica.

Teoria da argumentação jurídica e a


preservação de um estado democrático
Observando uma debilidade das decisões judiciais de encontrar
uma forma de fundamentação jurídica que traga determinada segurança
no sentido de reduzir a discricionariedade e a subjetividade do aplicador,
muitas teorias procuram saídas para resolver esse embate. Nesse senti-
do, na teoria da Argumentação Jurídica de Alexy (2001) se encontra um
discurso jurídico a essas decisões, capaz de compreender uma argumen-
tação jurídica com um procedimento que limita seu campo da maneira
mais racional possível.
A Teoria da Argumentação Jurídica tem sido possível tendo em
vista a contribuição de várias teorias do discurso prático desenvolvidas
anteriormente2. “Por outro lado, para a criação desta, imprescindível se
fez o estudo sobre uma Teoria do Discurso Prático Racional Geral, sendo
o discurso jurídico um caso especial da generalidade do discurso práti-
co” (TOLEDO, 2005, p. 49, grifos originais). Embora existam variações
de autor para autor, as regras do discurso prático são “as regras fun-
damentais, de razão, de carga de argumentação, de fundamentação, de


2
Segundo Toledo (2005), seria desde Ética Analítica (de Stevenson), Regras do Discurso
(analisadas por Wittgenstein, Austin, Hare, Toumin e Baier) e a Teoria da Argumentação
(por Perelman), até a teoria consensual da verdade, de Habermas.
transição, além de delinear as formas de argumentos do discurso práti-
co” (TOLEDO, 2005, p. 49).
Alexy (2010) esclarece que a teoria do discurso gira em torno da
ideia de que qualquer um pode racionalmente discutir sobre questões
práticas numa pretensão de correção. Os discursos práticos gerais3,
explicação que se verá mais adiante, são racionais quando preen-
chem condições da argumentação racional prática, tornando-se cor-
retos. Assim, uma teoria do discurso é “uma teoria procedimental da
correção prática” (ALEXY, 2010, p. 7). Essas condições de racionali-
dade podem ser resumidas em um sistema de regras do discurso que,
quando utilizadas, têm a capacidade de proporcionar a resolução de
questões práticas.
As regras do discurso podem se referir à estrutura dos argu-
mentos4 ou, diretamente, ao procedimento do discurso5. Essas possi-
bilitam a participação, bem como asseguram liberdade e igualdade de
participação, demonstrando o caráter universalista da teoria do dis-
curso. Pode-se dizer que “elas correspondem aos princípios básicos
do Estado Democrático constitucional, que são a liberdade e a igual-
Silva Pessôa

dade” (ALEXY, 2010, p. 9).


Contudo, destaca Alexy (2010) que as regras da teoria do discurso
oferecem alguns problemas, como, em resumo, o não fornecimento de
decisões determinadas. Esse fato conduz “à necessidade de sua incor-
da

poração em uma teoria do Estado e do Direito”. Em face da especifici-


Fátima

dade, caminha-se para o discurso jurídico propriamente dito, ao qual,


de
Silva & Tatiane


3
Segundo Alexy, esses discursos não são argumentos institucionalizados sobre o que é
obrigatório, proibido ou permitido ou sobre o que é bom ou ruim, mas sim aqueles que,
pela compreensão de Habermas, são argumentos morais, éticos e pragmáticos.

4
A esse grupo pertencem, segundo Alexy, as demandas pela liberação da contradição,
pela possibilidade de universalização, pela adaptação linguística e clareza conceitual,
pela verdade das premissas empíricas aplicadas, por uma integralidade dedutiva dos ar-
gumentos, pela consideração em relação às consequências, pelo balanceamento entre
os argumentos, pela hipótese de troca de papéis e por uma análise a convicções morais.
da


5
Com o objetivo de garantir a imparcialidade da argumentação concreta, esse grupo,
Carla Luana

segundo Alexy, seria das regras específicas do discurso, onde as mais importantes são:
(1) qualquer pessoa poderá tomar parte do discurso; (2) (2.1) qualquer um pode ques-
tionar qualquer afirmação; (2.2) qualquer um pode introduzir qualquer afirmação no
discurso; (2.3) qualquer um pode expressar atitudes, desejos e necessidades; (3) nen-
hum interlocutor será proibido de exercer os direitos postos nos itens 2.1 e 2.2 por sorte
de coerção interna ou externa ao discurso (2.3).
306
307
além de regras práticas gerais, faz-se necessária a formulação de outras

Constitucionalismo Contemporâneo
que lhe são próprias.

A tese do caso especial: teoria do discurso


jurídico na racionalidade das decisões
Alexy (2001) considera o discurso jurídico como um caso especial
do discurso prático geral, aquele já relacionado no tópico anterior. Em
linhas gerais, “a teoria do discurso jurídico racional é criada pela incor-
poração da teoria do discurso prático geral à teoria do sistema jurídico”
(ALEXY, 2010, p. 7). Essa peculiaridade se dá por três motivos. Primeiro,
Alexy (2001) cita a referência das discussões jurídicas a questões prá-
ticas; segundo, a referência à pretensão de correção envolvida nessas

e suas formas contemporâneas


questões6; e terceiro, o fato de a discussão jurídica se dar sob limitações.
Em exposição mais clara, Toledo (2005, p. 54, grifos originais) ex-
plica que:

[...] o discurso jurídico é prático, por se constituir de enunciados


normativos. É racional, por se submeter à pretensão de correção
discursivamente obtida. É especial, por se subordinar a condições
limitadoras ausentes no discurso prático geral, a saber – a lei, a
dogmática e os precedentes. Essas condições institucionalizam
o discurso jurídico, reduzem consideravelmente seu campo do
discursivamente possível, na medida em que delimitam mais pre-
cisamente de quais premissas devem partir os participantes do
discurso, fixando ainda as etapas da argumentação jurídica, me-
diante formas e regras de argumentos jurídicos.

Para Alexy (2001), a teoria do discurso se mostra necessária para


a compreensão teórica da argumentação, pressupondo que nas discus-
sões jurídicas os debates ocorrem em torno da pretensão de correção.


6
O discurso jurídico não é uma sentença só racional, mas racionalmente fundamentada
no contexto de um ordenamento jurídico vigente. Nesse sentido, a exigência de fun-
damentação e a pretensão de correção ligada a ela podem fundamentar-se mediante
o direito positivo, falando em decisões judiciais. Diz-se que os juízes, na maior parte,
precisam fundamentar suas decisões, por isso a decisão judicial, observado o direito
positivo, é submetida à pretensão de correção. A falta de pretensão de correção de
uma decisão não retira seu caráter de validade, mas a torna defeituosa. A pretensão de
correção também é um elemento que estabelece a conexão com a moral.
O núcleo da tese do caso especial está em sustentar que a pretensão de
correção também se formula no discurso jurídico, contudo, essa preten-
são não se refere à racionalidade das proposições normativas, mas do
ordenamento jurídico vigente.
O autor refere que nos discursos jurídicos tratar-se da justifica-
ção de um caso especial de proposições normativas, ou seja, as decisões
judiciais. Essa justificação pode ser interna, onde se verifica se a decisão
segue logicamente as premissas de fundamentação, e, externa, que é a
correção dessas premissas. “Não obstante, em face da especificidade do
discurso jurídico, além das regras práticas gerais, faz-se necessária a
formulação de outras que lhes são próprias. São elas, as formas e regras
de justificação interna e de justificação externa do discurso jurídico”
(TOLEDO, 2005, p. 55, grifos originais).

Justificação interna na teoria do discurso


As regras de justificação interna, segundo a lógica do discurso,
são aquelas que “verificam se a decisão é deduzida logicamente das as-
Silva Pessôa

sertivas expostas na fundamentação” (TOLEDO, 2005, p. 5).


Segundo Alexy (2001), os problemas quanto à justificação interna
são aqueles de silogismo lógico, em que o princípio formal de avaliar a
decorrência lógica de uma regra serve-se do princípio da universalida-
da

de, por justificação a regras universais. Para formular concretamente o


Fátima

princípio da universalidade, utiliza-se a seguinte regra: para a funda-


mentação de uma decisão jurídica, deve-se apresentar pelo menos uma
norma universal, e a regra da decisão jurídica deve seguir logicamente
de

uma dessas normas universais, junto a outras proposições. Ambas as


Silva & Tatiane

regras valeriam nos casos de fundamentação com base no direito po-


sitivo e nos casos em que ele não exista, onde haveria uma construção.
Diz Alexy (2001) que o esquema de fundamentação é insuficiente
em casos complicados. Assim, uma terceira regra de justificação interna é
a de que, sempre que houver dúvidas, deve-se apresentar regras que de-
da

cidam a questão, bem como que uma quarta e quinta regra seriam neces-
Carla Luana

sárias como etapas de desenvolvimento, que permitam formular expres-


sões cuja aplicação no caso em questão não seja discutível, e que deve ser
articulado o maior número possível de etapas de desenvolvimento.

308
309
Todas essas regras se referem à estrutura formal da fundamenta-

Constitucionalismo Contemporâneo
ção jurídica, que não dizem respeito somente à dedução a normas pre-
estabelecidas, como também a premissas não extraídas diretamente do
direito positivo; nesse caso, fundamentar essas premissas é uma tarefa
da justificação externa, que busca a profundidade tanto nas especificida-
des dos fatos como nas particularidades das normas (com possibilidade
de todos os argumentos admissíveis no discurso) (ALEXY, 2001). Ainda
refere que, na justificação interna, há de ficar claro quais premissas de-
vem ser justificadas externamente.

Justificação externa na teoria do discurso


Sob a ótica descrita no tópico anterior, a ideia é de que acrescentar

e suas formas contemporâneas


ou apresentar regras universais facilita a consistência de uma decisão e
contribui para a justiça e para a segurança jurídica, pois tais procedimen-
tos asseguram, em certa medida, a racionalidade dessas premissas. Assim,
Alexy (2001) leciona que o juízo sobre a racionalidade de uma decisão
pertence ao campo de uma justificação externa.
Alexy (2001) descreve que o objeto da justificação externa é a
fundamentação de premissas na justificação interna. Essas premissas
podem ser diversas, desde regras do direito positivo, até enunciados
empíricos, ou mesmo premissas que não são nem um, nem outro. Cada
uma possui distintos métodos de fundamentação; regras têm funda-
mentação no direito positivo, mostrando sua validade com o ordena-
mento; premissas empíricas têm fundamentação desde métodos da
ciência empírica, passando por máximas de presunção racional, até re-
gras de ônus de prova no processo; e o terceiro tipo, que não é nem um
nem outro, aplica o que se designa como argumentação jurídica.
As regras de justificação externa e as formas de argumentos são
classificadas por Alexy (2001) em seis grupos: regras e formas de inter-
pretação (lei), da argumentação da ciência do direito (dogmática – ciên-
cia do direito), do uso de precedentes, da argumentação da prática geral
(razão), da argumentação empírica (empiria), bem como das chamadas
formas especiais de argumentos jurídicos.
Quanto às regras e formas de interpretação, em linhas gerais, aduz-
-se que é precisamente a utilização dos cânones hermenêuticos, “que se
apresentam sob diversas formas de argumento, proporcionando as inter-
pretações gramatical (semântica), autêntica (genética), teleológica, his-
tórica, comparada e sistemática” (TOLEDO, 2005, p. 56, grifos originais).
Uma das tarefas mais importantes dos cânones é na fundamentação das
interpretações, como também a fundamentação de normas não positi-
vas e outros enunciados jurídicos. Esses cânones, podem então se mol-
dar nesses seis grupos. Nesse sentido, a hermenêutica jurídica tem papel
fundamental, lembrando, contudo, de se utilizar, juntamente com ela, as
regras de argumentação pragmáticas desenvolvidas para esse fim, como
nos casos de determinação de peso dos argumentos de diferentes formas
que devem ocorrer segundo as regras de ponderação (TOLEDO, 2005).
Alexy (2001) relaciona os cânones de interpretação para delimi-
tar seu papel no discurso. Com o intuito de esclarecer isso, considera a
distinção de pontos como: o campo da aplicabilidade (novos contextos,
compreendidos, em particular, como o conflito de normas, a restrição
do campo de aplicação das normas e a fundamentação de normas que
não se pode deduzir da lei), seu status lógico (os cânones são simples
pontos de vista ou linhas de investigação), o requisito de saturação
(ideia de que um argumento de uma forma só é completo se comportar
todas as premissas pertencentes a essa forma), as diversas funções das
Silva Pessôa

várias formas, o problema de sua hierarquia (relação entre argumentos


de formas diferentes) e a resolução do problema da hierarquia na teo-
ria do discurso (pode contribuir para mostrar como se deve utilizar as
diferentes formas de argumentos)7.
Quanto às regras de argumentação dogmática, elas têm a tarefa
da

de analisar a legitimidade e os limites da argumentação sistemática –


Fátima

conceitual da Ciência do Direito8 (TOLEDO, 2005). Observando as fun-


ções da dogmática para a argumentação prática geral, vê-se positiva-
de

mente que pode ser considerada a função estabilizadora (onde fixam e


Silva & Tatiane

se fazem reproduzíveis determinando soluções), a função de progresso


(onde oferecem comprovações e enunciados numa medida considera-
velmente maior), a função de descarga (fato de não ser necessária uma
nova comprovação em termos), a função técnica (sentido de capacidade
de transmissão), função de controle, e a função heurística (ideia de uma
da
Carla Luana


7
São, segundo Alexy, características vantajosas da teoria do discurso a dimensão prag-
mática da fundamentação e a ideia de critérios que aumentem a probabilidade de uma
decisão correta, ou racional.

8
Por uma dimensão empírico-descritiva (descrição do direito vigente), analítico-lógica
(análise sistemática e conceitual) e prático-normativa (elaboração de propostas para a
solução de questões jurídicas).
310
311
série de modelos de soluções que não apareceriam se tivesse que come-

Constitucionalismo Contemporâneo
çar novamente) (ALEXY, 2001).
Todo esse desenvolvimento da dogmática leva Alexy (2001) a ex-
plicar que isso traz uma visão instrumentalizada da dogmática, e que
essa argumentação é racional na medida em que remonta a argumenta-
ção prática geral. Assim, vê que o uso de argumentos dogmáticos não é
contra os princípios da teoria do discurso, mas um tipo de argumenta-
ção exigido por esse (ALEXY, 2001).
Quanto ao uso dos precedentes, vê-se que eles também trazem
aspectos essenciais à teoria da argumentação jurídica. Observa-se, nes-
se sentido, que o fundamento do uso dos precedentes é constituído pelo
uso do princípio da universalidade. Quando faz uso da regra da carga de
argumentação (ideia de que a decisão somente pode ser mudada quan-

e suas formas contemporâneas


do apresentar razões suficientes) está se fundamentando como regra
do discurso. Assim, Alexy (2001) sintetiza que o uso dos precedentes se
mostra como procedimento de argumentação exigido por razões práti-
cas gerais (princípio da universalização/regra da carga de argumenta-
ção), sendo, portanto, racional.
Quanto às regras da argumentação prático-geral, que integram o
discurso jurídico, são “as já mencionadas regras fundamentais, de razão,
de carga de argumentação, de fundamentação, de transição, além das
formas de argumento do discurso prático-geral” (TOLEDO, 2005, p. 56,
grifos originais). Quanto à argumentação empírica, Toledo (2005, p. 56,
grifos originais) diz ser aquela que “verifica a correção do que deve ser
considerado como fato na fundamentação jurídica, a partir do enuncia-
do empírico”.
E quanto às formas especiais de argumentos jurídicos, Alexy
(2001) delimita que eles usam a analogia, o argumentum a contrario,
o argumentum a fortiori e o argumentum ab absurdum, considerados
como forma de inferência logicamente válida. São também casos espe-
ciais do discurso jurídico prático geral por exigência do princípio da
universalidade, que pode ser designado como racional quando saturado.
Toledo (2005, p. 57, grifos originais) defende que, com as regras e
formas de justificação interna e externa do discurso jurídico, “satisfaz-
-se a exigência de consistência da decisão jurídica, promovendo, cada
vez mais, sua controlabilidade, quesito indispensável para a promoção
da legalidade e legitimidade em um Estado Democrático de Direito”.
Limites e necessidade da
teoria do discurso jurídico
Alexy (2001) relaciona, então, os limites e a necessidade da teo-
ria do discurso jurídico racional, referindo que a constituição do cará-
ter racional da Ciência do Direito é pelo cumprimento de uma série de
condições, critérios ou regras de forma sistemática à argumentação
jurídica racional. Assim, essa aplicação não traz segurança no resulta-
do, mas o cumprimento de condições, critérios e regras constituem-se
o caráter racional da argumentação jurídica, pressuposto para a com-
preensão teórica (ALEXY, 2001).
A explicação do conceito de argumentação jurídica racional se
concretiza na observância da descrição de uma série de regras e de
formas a serem seguidas, no intuito de satisfazer a pretensão que se
formula daí. Além do mais, as regras e as formas do discurso jurídico
consistem num critério de correção para as decisões judiciais (ALEXY,
2001). Assim, detalha que a teoria do discurso oferece um critério em si-
tuações específicas para a racionalidade de processos de decisão e para
Silva Pessôa

a racionalidade das decisões produzidas nesse âmbito (ALEXY, 2001).


Ter como realizar uma justificação racional do discurso jurídico
é uma questão importante para a cientificidade do Direito, e impres-
cindível para um Estado Democrático de Direito. O que institucionaliza
o discurso jurídico é a existência de um ordenamento organizado pelo
da

Estado Democrático, delimitando a discussão em seu objeto, nos parti-


Fátima

cipantes e na situação espaço-temporal (TOLEDO, 2005).


Staffen (2015, p. 20) diz que
de
Silva & Tatiane

[...] defender a justificação significa autorizar a antecipação do pro-


duto final, independentemente dos critérios colecionados, o que
importa é que estes justifiquem as opções particulares do julgador.
Por sua vez, fundamentar vincula-se à necessidade – no caso bra-
sileiro, dever constitucional – de se fundir fatos com fundamentos
jurídicos de modo a se obter um produto final indissociável dos
da

argumentos. Portanto, cerceia juízos de solipsismo judicial.


Carla Luana

O discurso jurídico por meio da racionalidade e universalidade


proporciona a legitimidade da legislação e a controlabilidade das deci-
sões judiciais, o que decorre também da ideia de imparcialidade nesse
312
313
discurso. “Todos esses são requisitos indispensáveis para a democracia

Constitucionalismo Contemporâneo
e para a solidez do Estado de Direito” (TOLEDO, 2005, p. 55).
Sob a ótica da Teoria da Argumentação Jurídica, que, por meio
do discurso jurídico, preserva os ideais de um Estado Democrático de
Direito, passa-se a analisar a consistência da decisão proferida pelo
Supremo Tribunal Federal na Petição 3388, Ação Popular que decidiu
sobre a demarcação de terras indígenas no caso da Reserva Raposa
Serra do Sol. Nessa análise, dá-se atenção específica às salvaguardas
institucionais presentes, utilizadas como fonte para os argumentos aqui
construídos na averiguação de sua racionalidade, tendo em vista uma
postura ativista dos aplicadores, em contraponto com a preservação de
uma ordem democrática.

e suas formas contemporâneas


O caso da reserva indígena raposa serra
do sol: legitimidade da disposição das
salvaguardas institucionais
Falando no problema de decidibilidade para a preservação da
ordem democrática, vem à tona o deslinde do julgamento em 2009 do
caso Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal. Pela Petição
3388, Ação Popular ajuizada por Augusto Alfonso Botelho Neto (sena-
dor da República na época) com assistência de Francisco Mozarildo de
Melo Cavalcanti (também senador), contra a União, em maio de 2005, o
Supremo Tribunal se deparou a resolver o caso de demarcação de terras
indígenas (PET 3388, 2009).
Segundo o relator do processo, Ministro Carlos Ayres Britto, a inicial
impugnava o modelo contínuo de demarcação da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol, situada no estado de Roraima. Junto, teria o pedido de sus-
pensão liminar dos efeitos da Portaria nº 534/2005, do Ministro de Estado
da Justiça, bem como do Decreto homologatório de 15.04.2005, este do
Presidente da República, que demarcava as terras indígenas na área referi-
da. No mérito, pedia-se a nulidade da portaria (PET 3388, 2009).
Alegavam-se vícios da portaria9, bem como o argumento de que
a reserva de áreas contínuas teria consequências desastrosas para o


9
Sustentou o autor, em síntese, que a Portaria em questão possuía os mesmos vícios
da Portaria 820/98, que a antecedeu, em razão da não observância das normas dos
estado roraimense10. “Tudo a prejudicar legítimos interesses dos ‘não-
-índios’, pessoas que habitam a região há muitos anos, tornando-a pro-
dutiva no curso de muitas gerações” (PET 3388, 2009, p. 246, grifos ori-
ginais). Ainda sustentavam o ferimento do princípio da razoabilidade,
privilegiando a tutela do índio em detrimento da livre-iniciativa por ha-
ver desequilíbrio da Federação, já que a área demarcada, ao passar para
o domínio da União, estaria suprimindo parte significativa do território
roraimense (PET 3388, 2009).
Na oportunidade, a União arguiu defesa rebatendo cada um dos
argumentos11. Em 2008, a Procuradoria Geral da República deu seu pa-
recer pela improcedência da ação. Ainda no mesmo ano, encerrada a
instrução do processo, compareceu a Funai requerendo seu ingresso
como parte interessada, e o estado de Roraima na condição de autor,
pela defesa de seu patrimônio12. Abriu-se vista ao Ministério Público
Federal, que atacou os fundamentos dos requerentes e reconheceu seu
interesse jurídico na causa (PET 3388, 2009).
Com decisão publicada em 2009, o julgamento estabeleceu no-
vos parâmetros para a demarcação de terras indígenas, disciplinando
Silva Pessôa

a questão. Nessa, constatou-se a inexistência de vícios no processo


administrativo-demarcatório como alegado na inicial. Deu-se obser-
vância aos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, bem como da Lei
nº 6.001/73 e seus decretos regulamentares. Decidiu-se pela cons-
titucionalidade e legalidade da Portaria nº 534/2005, do Ministro da
da

Justiça, assim como do decreto presidencial homologatório, questiona-


Fátima

dos pelo autor (PET 3388, 2009).


Ainda, decidiu-se sobre o reconhecimento da condição de indígena
de

na área demarcada determinando-se o modelo contínuo de demarcação,


Silva & Tatiane

Decretos 22/91 e 1.775/96, por não terem sido ouvidas todas as pessoas e entidades
afetadas pela controvérsia, e o laudo antropológico sobre a área em discussão teria sido
assinado por apenas um profissional, o que seria prova de presumida parcialidade.
10
Tanto os aspectos comercial, econômico e social no estado quanto os interesses do País,
por comprometer a segurança e a soberania nacionais.
11
Dispôs que “a) não há lesão ao patrimônio público; b) o autor não comprovou a ocor-
da

rência dos vícios apontados na inicial; c) a diferença de 68.664 hectares, detectada entre
Carla Luana

a área da Portaria nº 820/98 e a da Portaria nº 534/2005, ‘é perfeitamente comum e


previsível nas demarcações.
12
Suscitada a questão de ordem pelo relator, preliminarmente foi admitido o ingresso na lide
de pessoas físicas e do estado de Roraima, na condição de assistentes simples do autor, e
da FUNAI - Fundação Nacional do Índio e de diversas comunidades indígenas, na condição
de assistentes simples da ré, recebendo o processo no estado em que se encontra.
314
315
tendo em vista o regime constitucional de demarcação de terras indíge-

Constitucionalismo Contemporâneo
nas, considerando ser um capítulo avançado do constitucionalismo, com a
inclusão comunitária por via da identidade étnica (PET 3388, 2009).
Agregou-se à decisão “salvaguardas institucionais ditadas pela su-
perlativa importância histórico cultural da causa [...] ampliadas a partir de
voto-vista do Ministro Menezes Direito e deslocadas para a parte disposi-
tiva da decisão” (PET 3388, 2009, p. 230). Seriam dezenove medidas su-
geridas para que se implementasse a decisão do órgão, ou seja, uma série
de condições para a execução da decisão, que seria supervisionada pelo
Supremo com apoio do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Em 2013, foram interpostos embargos de declaração opostos pelo
autor, por assistentes, pelo Ministério Público, pelas comunidades indíge-
nas, pelo estado de Roraima e por terceiros, pedindo esclarecimentos e

e suas formas contemporâneas


até mesmo mudanças na decisão, contudo esses foram inadmitidos, des-
providos, ou parcialmente providos para fins de mero esclarecimento,
sem efeitos modificativos (PET 3388 ED/RR, 2013). Decidiu-se que com
o trânsito em julgado do acórdão todos os processos relacionados à Terra
Indígena Raposa Serra do Sol deveriam adotar as seguintes premissas:

(i) são válidos a Portaria/MJ nº 534/2005 e o Decreto Presidencial


de 15.04.2005, [...]; e (ii) a caracterização da área como terra in-
dígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231, da Constituição torna
insubsistentes eventuais pretensões possessórias ou dominiais de
particulares, salvo no tocante à indenização por benfeitorias deri-
vadas da ocupação de boa-fé (CF/88, art. 231, § 6º).

Ainda, por terem sido questionadas nos embargos, constatou-se


que as salvaguardas existentes na decisão seriam pressupostos para o
reconhecimento da validade da demarcação por decorrerem da essên-
cia da própria Constituição e pela necessidade de explicitar diretrizes
básicas no caso do usufruto dos indígenas com o intuito de solucionar
controvérsias envolvendo a região (PET 3388, ED/RR, 2013). Com isso,
esclareceu-se que “as condições integram o objeto do que foi decidido
e fazem coisa julgada material. Isso significa que a sua incidência na
Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questiona-
mento em eventuais novos processos” (PET 3388 ED/RR, 2013, p. 2).
Cabe destaque aqui, a disposição das 19 salvaguardas propostas
na decisão judicial.
Disposição das 19 salvaguardas pelo Poder
Judiciário ao Poder Executivo e aos direitos
dos indígenas
No voto do Ministro Menezes Direito, ocupando sessenta páginas,
das seiscentas e cinquenta e três compondo a decisão da Petição 3388,
na resolução do conflito na Reserva Raposa Serra do Sol, as últimas pá-
ginas merecem destaque pela descrição de dezoito salvaguardas que se-
riam pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação.
No referido voto, o Ministro alude que,

[...] a partir da apreciação deste caso pude perceber que os argu-


mentos deduzidos pelas partes são também extensíveis e aplicá-
veis a outros conflitos que envolvam terras indígenas. A decisão
adotada neste caso certamente vai consolidar o entendimento da
Suprema Corte sobre o procedimento demarcatório com reper-
cussão também para o futuro. Daí a necessidade de o dispositivo
explicitar a natureza do usufruto constitucional e seu alcance.
Destarte, julgo parcialmente procedente a presente ação popular
para que sejam observadas as seguintes condições impostas pela
Silva Pessôa

disciplina constitucional ao usufruto dos índios sobre suas ter-


ras13 [...]. (PET 3388, 2009, p. 416)

A partir dessa constatação, o Ministro Menezes Direito teria


transformado os fundamentos de seu voto e transplantado para a parte
da

dispositiva da decisão, traçando diretivas para a execução da decisão


Fátima

por parte da União. Segundo o Ministro Brito, essa seria uma técnica
inovadora, e que, embora não usual do ponto de vista operacional, não
de

resultaria extremamente proveitosa (PET 3388 ED/RR, 2013).


Silva & Tatiane

Além das salvaguardas propostas pelo Ministro Menezes, agregou-se


uma 19º salvaguarda proposta pelo Ministro Gilmar Mendes. Segundo o
Tribunal, essa seria uma “técnica de decidibilidade que se adota para con-
ferir maior teor de operacionalidade ao acórdão” (PET 3388, 2009, p. 239).
A Procuradoria-Geral da República questionou, através dos em-
da

bargos de declaração já mencionados, a fixação dessas salvaguardas ou


Carla Luana

condições em abstrato da Corte, considerando, em especial, os limites


impostos pelos princípios do Estado de direito, da separação de Poderes

Ver salvaguardas em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&


13

docID=630133>.
316
317
e do devido processo legal, uma vez que as condições indicadas não te-

Constitucionalismo Contemporâneo
riam sido objeto de contraditório (PET 3388 ED/RR, 2013). Para a PGR,
não caberia ao STF traçar parâmetros abstratos de conduta, devido es-
ses temas não terem sido sequer objeto de discussão no processo, e por
não terem permitido o direito ao contraditório. Para a Procuradoria, a
Corte teria extrapolado os limites da causa.
Na própria discussão da Petição 3388 já existia a suscitação en-
tre os Ministros quanto à legitimidade da estipulação das salvaguar-
das. Isso porque nada disso teria sido pedido na ação popular. Na Ação
somente foi pedido a nulidade de todo o processo de demarcação e,
sobretudo, a descaracterização do formato demarcatório contínuo
(PET 3388 ED/RR, 2013).
Na decisão quanto aos embargos de declaração e a suscitação da

e suas formas contemporâneas


PGR sobre as salvaguardas, a explicação foi de que as condicionantes
representariam, na verdade, os fundamentos jurídicos adotados como
pressupostos para a conclusão (PET 3388 ED/RR, 2013). Essas con-
dicionantes seriam abrangentes e abstratas, ensejando com isso uma
postura criativa por parte dos magistrados. O próprio Ministro Marco
Aurélio enfatizou tal feito em seu voto.
No esclarecimento para aderir as condicionantes, foi referido que
a adoção dessas era pelo fato de que se o Tribunal não tivesse feito do
modo como fez e se limitasse a determinar a decisão como improce-
dente e procedente, a execução do julgado não poderia ser concretiza-
da. Expressamente referiu-se que o Tribunal foi ousado e que esta seria
uma decisão atípica. O Ministro Marco Aurélio ainda acresce dizendo
que “atuamos como se estivéssemos julgando, na Justiça do Trabalho,
um dissídio coletivo de natureza econômica: criando normas” (PET
3388, ED/RR, 2013, p. 90).
Em contraponto, na mesma decisão dos embargos, o voto do
Ministro Barbosa deu-se de forma contrária, expressando sua intole-
rância a fazer o Tribunal atuar de forma tão larga como legislador po-
sitivo, sendo que a possibilidade existente para atuação seria como le-
gislador negativo. Dispôs que as salvaguardas são normas que somente
poderiam vir à baila mediante a atuação dos deputados federais e dos
senadores da República (PET 3388 ED/RR, 2013).
O Ministro Barbosa ainda refere que salvaguardas são normas
abstratas autônomas, e que essas dezenove salvaguardas chegariam a
ponto de disciplinar questão tributária, questão de usufruto, questão
de atuação das Forças Armadas e da Política Federal, questões essas não
colocadas no processo e não compreendendo, portanto, o pedido do au-
tor. Assim, expressa novamente que “o Tribunal extrapolou, o Tribunal
traçou parâmetros excessivamente abstratos e completamente alheios
ao que foi proposto na ação originariamente. O Tribunal agiu como um
verdadeiro legislador” (PET 3388 ED/RR, 2013, p. 88).
Assim, a legitimidade dessa postura é que seria questionada frente
aos ideais do Estado Democrático, ideais esses que seriam preservados
quando em utilização a Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy.

O modelo discursivo em análise à racionalidade


das salvaguardas da decisão no caso da
Reserva Indígena Raposa Serra do Sol:
preservação da ordem democrática?
Observando a disposição das salvaguardas institucionais da de-
cisão referida nos tópicos anteriores, sob a ótica da teoria do direito,
disciplina que, como referido, se disponibiliza a analisar a questão de
Silva Pessôa

decidibilidade, tem-se que ela é uma decisão atípica e que não reflete
nenhuma matriz teórica daquelas dispostas por Alexy. Pondo-se a ana-
lisar a decisão referida sob a ótica específica da matriz discursiva, sob a
perspectiva da Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy, concretiza-se
a avaliação de que essa decisão não reflete os princípios de um Estado
da

Democrático. Isso devido aos motivos adiante desenvolvidos.


Fátima

A ideia já desenvolvida nos tópicos anteriores é de que a obediên-


cia às regras do discurso privilegia a preservação de uma ordem demo-
de

crática. As regras do discurso jurídico, em específico, demandam a uti-


Silva & Tatiane

lização das regras de justificação internas e externas (somadas a regras


do discurso prático geral) que têm o condão primordial de legitimar e
evitar decisões arbitrárias.
A postura revelada pelo Tribunal estaria por configurar o problema
contemporâneo apontado inicialmente, ou seja, um problema de decidibi-
da

lidade. A decisão demonstra uma postura criativa por parte dos magistra-
Carla Luana

dos, apontada expressamente em seus votos. Postura essa que não teria
apresentado racionalidade para sua consistência, mostrando-se defeituosa.
Quando se examina a justificação interna da decisão de eviden-
ciar todas as premissas sob as quais a decisão se fundou e inferir lo-
318
319
gicamente delas a decisão, para após investigar sua legitimidade, em

Constitucionalismo Contemporâneo
primeira análise vê-se que a disposição de salvaguardas sequer estava
presente nos pedidos do processo.
Não bastasse isso, a determinação de tais salvaguardas estaria in-
vadindo a esfera dos outros poderes. Diz expressamente a Constituição
que cabe à União14 questões relacionadas à demarcação de terras indí-
genas, sendo que medidas impostas ao Poder Executivo estaria usur-
pando a função daquele Poder, e que quem deve legislar sobre a questão
é o Congresso Nacional. Logo, a atuação do Supremo como legislador
positivo não seria uma inferência possível.
Vê-se expressamente que, quando da aplicação das regras do dis-
curso jurídico, perseguem-se os requisitos indispensáveis à democracia

e suas formas contemporâneas


e à solidez do Estado de direito. Assim, diante de uma postura dita como
ativista, o discurso jurídico, respeitando os princípios da racionalidade
e da universalidade, proporciona a legitimidade da legislação e a con-
trolabilidade de uma decisão.
A ideia é de que, “em um Estado de direito, republicano e demo-
crático as decisões judiciais devem vincular-se ao sistema jurídico da
forma mais racional e consistente possível, e o processo de escolhas
que conduz a essa vinculação deve ser explicitamente demonstrado”
(BARCELOS, 2005, p. 48).
Fundamentar as premissas da justificação interna é uma tarefa da
justificação externa que busca a profundidade tanto nas especificidades
dos fatos como nas particularidades das normas. Prevendo que todas
as premissas devem ser fundamentadas no campo da justificação exter-
na, com o uso da interpretação, da dogmática, dos precedentes e outros
meios já apontados, vê-se que a decisão adotada não explicita as razões
pelas quais foi tomada em detrimento de outras que seriam possíveis,
refletindo a ordem constitucional.

Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete
14

instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras in-


dígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da
República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91
da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fron-
teira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem
densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e
o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal.
Dessa forma, reitera-se que, como resultado da não evidência da
obediência a regras do discurso, concretiza-se a avaliação de que essa
decisão não reflete os princípios de um Estado Democrático. Beber e
Bitencourt (2014, p. 2) referem que “as regras da argumentação racio-
nal permitem o maior exercício da dialética no meio jurídico, sendo a
prática ideal para garantir a estruturação e a consolidação dos Estados
Democráticos”; e, seguindo as regras da argumentação consegue-se
chegar a uma decisão mais correta ou racional, portanto, mais justa.

Conclusão
O problema norteador da pesquisa foi analisar sob a ótica do mo-
delo discursivo, da Teoria de Argumentação Jurídica de Robert Alexy,
se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso da Ação
Popular, na resolução de demarcação de terras indígenas da Reserva
Raposa Serra do Sol, no que tange às salvaguardas institucionais ali dis-
postas, obteve obediência às regras do discurso jurídico, preservando a
ordem democrática.
Silva Pessôa

Ao longo da pesquisa, viu-se que a ideia para se tratar do tema foi


devido à importância de refletir sobre questões de aplicação/interpre-
tação do direito, ou melhor, questões de decidibilidade.
Observou-se que há na sociedade contemporânea grande preo-
cupação com questões de criação judicial, questões de decidibilidade,
da

que estariam colocando em risco a ordem democrática. Essas questões


Fátima

há muito têm sido temas de estudo das teorias do direito, que oferecem
base para sua compreensão. Sob a ótica da matriz discursiva, optou-se
de

por parametrizar a análise utilizando a teoria da argumentação jurídi-


Silva & Tatiane

ca, de Alexy, que traz a ideia de resolução quanto ao problema da inter-


pretação correta ou, pelo menos, de trazer a solução.
Tomando como base a Teoria da Argumentação Jurídica proposta
por Alexy, viu-se que o desenvolvimento e a obediência às regras do
discurso, em especial do discurso jurídico através da racionalidade e da
da

universalidade, proporcionam a legitimidade da legislação e a contro-


Carla Luana

labilidade das decisões judiciais, preservando a democracia e a solidez


do Estado.
Tendo em vista que por meio do discurso jurídico preservam-
-se os ideais de um Estado Democrático de Direito, analisou-se então a
320
321
consistência das salvaguardas institucionais da decisão proferida pelo

Constitucionalismo Contemporâneo
Supremo Tribunal Federal na Petição 3388. Respondendo à indagação
levantada para o presente estudo, constatou-se que a decisão referida
não ensejou a adequação a nenhuma matriz teórica de decisão, sendo
relacionada como atípica. Assim, a postura revelada pelo Tribunal não
teria apresentado racionalidade para sua consistência, mostrando-se
defeituosa. Desse modo, a decisão, no que tange às salvaguardas, não
evidenciou a obediência às regras do discurso e, ao mesmo tempo, não
refletiu os princípios de um Estado Democrático.

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e suas formas contemporâneas


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Acesso em: 14 nov. 2016.
da
Fátima
de
Silva & Tatiane
da
Carla Luana

322
UM OLHAR CONSTITUCIONAL SOBRE
AS LICITAÇÕES PÚBLICAS: O SISTEMA
DE REGISTRO DE PREÇOS À LUZ DO
PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA

Vinícius Oliveira Braz Deprá


Mestre em Direito (UNISC), Especialista em Direito Tributário
(Anhanguera). Bacharel em Direito (UNIFRA) e Bacharel em
Ciências Militares – Área de Defesa Social (Brigada Militar).
Capitão QOEM da Brigada Militar.
(depra@mx2.unisc.br)

Cláudio Ricardo Pereira


Especialista MBA in Company em Gestão Pública (FEEVALE).
Especialista em Prevenção e Controle de Sinistros (UFRGS).
Bacharel em Direito (UNISC). Bacharel em Ciências Militares –
Área Defesa Social (Brigada Militar). Major QOEM da Brigada
Militar. Comandante do 4º Batalhão de Bombeiro Militar com
sede em Santa Maria – RS.

Introdução
A presente pesquisa tem como objetivo geral apresentar um olhar
constitucional sobre as licitações públicas, investigando o sistema de re-
gistro de preços, tendo como parâmetro o princípio da eficiência.
Para o desenvolvimento deste tema, surge a seguinte problemá-
tica: muito embora o princípio da eficiência não esteja apresentado ex-
pressamente na lei geral de licitações (Lei 8.666/93), é possível identi-
ficá-lo como corolário do sistema de registro de preços?
A hipótese está associada com a identificação da eficiência do
sistema de registro de preços enquanto mecanismo que atende de ma-
neira mais adequada à eficiência administrativa na condução de com-
pras públicas.
No que diz respeito à metodologia, do ponto de vista dos seus
objetivos, a pesquisa é exploratória, e será desenvolvida a partir de le-
vantamento bibliográfico e da jurisprudência de tribunais. Outrossim,
a pesquisa é qualitativa, adotando-se como método de procedimento o
hipotético-dedutivo.
Os objetivos específicos, desse modo, são: contextualizar os prin-
cípios constitucionais da administração pública e verificar a reforma
administrativa que culminou com a inclusão do princípio da eficiência
como princípio constitucional; destacar considerações gerais quanto às
licitações públicas; e, finalmente, abordar o sistema de registro de pre-
ços sob o olhar constitucional da eficiência.
Registra-se, ainda, que o tema apresentado está inserido no âm-
bito de estudos e pesquisas realizados na seara do constitucionalismo
contemporâneo, por integrar o direito público aplicado em decorrência
dos ramos do direito constitucional e administrativo.

Princípios constitucionais da administração


pública: a reforma administrativa e a inclusão
da eficiência enquanto princípio constitucional
Vinícius Oliveira Braz Deprá & Cláudio Ricardo Pereira

Conforme é cediço, a compreensão acerca dos princípios consti-


tucionais da administração pública passa necessariamente pela com-
preensão dos princípios em si, os quais representam juízos fundamen-
tais, que “servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de
juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos à dada porção
da realidade” (REALE, 1986, p. 60).
Nesse contexto, portanto, entende-se por princípios “todo pon-
to de referência de uma série de preposições, corolários da primei-
ra proposição, premissa primeira do sistema” (CRETELLA JUNIOR,
2003, p. 3).
No âmbito da administração pública brasileira, o artigo 37 da
Constituição Federal trazia originariamente os seguintes princípios
norteadores: legalidade, impessoalidade e publicidade.
De outra banda, impulsionada pela necessidade de reforma ad-
ministrativa, a Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998,
trouxe importantes alterações no texto constitucional, tendo inclusive
incluído o princípio da eficiência no caput do mencionado artigo 37.
324
325
Com efeito, “o princípio da eficiência proveio, em nosso ordena-

Constitucionalismo Contemporâneo
mento constitucional, da EC n. 19/98, que o incorporou ao texto primiti-
vo da Constituição de 1988 (art. 37, caput)” (BULOS, 2014, p. 1).
Ao se somar aos princípios constitucionais da administração públi-
ca, a eficiência estabelece que “toda ação administrava deve ser orientada
para concretização material e efetiva da finalidade posta pela lei, segundo
os cânones jurídico-administrativo” (FRANÇA, 2000, p. 128).
Observam-se, ainda, as seguintes características básicas do prin-
cípio da eficiência: “Direcionamento da atividade e dos serviços públicos
à efetividade do bem comum, imparcialidade, neutralidade, transpa-
rência, participação e aproximação dos serviços públicos da população,
desburocratização e busca da qualidade.” (MORAES, 2008, p. 328).

e suas formas contemporâneas


Ocorre que, muito embora o princípio da eficiência conste atual-
mente de modo expresso no caput do artigo 37 da Constituição Federal,
numa primeira análise, a Emenda Constitucional nº 19/1998 não foi
determinante para a sua imposição diante das licitações públicas, tendo
em vista até hoje não ter sido incluído no rol dos princípios basilares
contemplados no artigo 3º na Lei 8.666/93.
Para um melhor exame sobre o tema, apresentam-se considera-
ções acerca do contexto das licitações públicas, conforme se verá a seguir.

Licitações públicas no brasil: aspectos gerais


O presente tópico buscará apresentar, em linhas gerais, as prin-
cipais características das licitações públicas. Nesse sentido, entende-
se por licitação “um procedimento administrativo por meio do qual a
Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o con-
trato que melhor atenda ao interesse público” (CUNHA JÚNIOR, 2012,
p. 435). Trata-se, portanto, de uma seleção pública que é instrumentali-
zada a partir de um procedimento administrativo e que visa atender ao
interesse público em face das aquisições públicas.
Ainda, conforme redação dada pela Emenda Constitucional nº
19/1998, o artigo 21, XXVI, da Constituição Federal, previu ser de in-
cumbência privativa da União legislar sobre “normas gerais de licita-
ção e contratação, em todas as modalidades, para as administrações
públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios” (BRASIL, 1998).
A propósito, a Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu artigo
37, XXI, dispõe expressamente sobre a necessidade da licitação pública,
a qual deve assegurar uma igualdade de condições a todos os concor-
rentes. Veja-se:

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,


serviços, compras e alienações serão contratados mediante pro-
cesso de licitação pública que assegure igualdade de condições
a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obriga-
ções de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta,
nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qua-
lificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cum-
primento das obrigações.

Assim, visando regulamentar o mencionado artigo 37, XXI, da


Constituição Federal, foi editada a Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, a
qual estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administra-
tivos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras,
alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios.
Vinícius Oliveira Braz Deprá & Cláudio Ricardo Pereira

Nesse contexto, deve-se registrar que o Supremo Tribunal Federal


(BRASIL, 2007) já definiu inclusive que a licitação busca alcançar um
duplo objetivo, proporcionando a realização do negócio mais vantajoso
e assegurando a concorrência à contratação pretendida:

A licitação é um procedimento que visa à satisfação do interesse


público, pautando-se pelo princípio da isonomia. Está voltada a
um duplo objetivo: o de proporcionar à administração a possibi-
lidade de realizar o negócio mais vantajoso – o melhor negócio – e
o de assegurar aos administrados a oportunidade de concorre-
rem, em igualdade de condições, à contratação pretendida pela
administração. [...] Procedimento que visa à satisfação do interes-
se público, pautando-se pelo princípio da isonomia, a função da
licitação é a de viabilizar, através da mais ampla disputa, envol-
vendo o maior número possível de agentes econômicos capacita-
dos, a satisfação do interesse público.

De todo modo, para que seja realizada a licitação pública, deve-se


adotar uma das modalidades para a aquisição de bens ou serviços, as
quais estão previamente delineadas no artigo 22 da Lei 8.666/93. Fala-
-se, inclusive, que “no ordenamento brasileiro, a licitação é o gênero,
que se subdivide em modalidades” (MEDAUAR, 2012, p. 197).
326
327
As modalidades das licitações, destarte, estão previstas no artigo

Constitucionalismo Contemporâneo
22 da Lei 8.666/93, cujas características podem ser sintetizadas da se-
guinte forma:

Quadro 1 – Modalidades de licitação

Modalidade de Objeto a ser Limite de valores


licitação contemplado

Concorrência Compras, Pode ser utilizada em qualquer caso,


alienações, serviços sendo obrigatória para: obras e
e obras serviços de engenharia acima de 1
milhão e 500 mil reais; outros contratos
acima de 650 mil reais.

Tomada de Preços Compras, Obras e serviços de engenharia até

e suas formas contemporâneas


alienações, serviços 1 milhão e 500 mil reais. Outros
e obras contratos até 650 mil reais.

Convite Compras, Obras e serviços de engenharia até 150


alienações, serviços mil reais. Outros contratos até 80 mil
e obras reais.

Pregão Bens e serviços Não há limite de valores.


comuns

Fonte: Lei 8.666/2003.

Afora isso, entende-se até mesmo que a licitação representa um


princípio no âmbito do direito constitucional, tratando-se na verdade
de “princípio instrumental de realização dos princípios da moralidade
administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes
com o Poder Público” (SILVA, 1997, p. 618).
Ocorre que, muitas vezes, “a forma como vêm sendo realizadas as
contratações no âmbito da Administração Pública constitui [...] um com-
plicador para o bom desenvolvimento das atividades administrativas”
(FERNANDES, 2009, p. 27).
Consoante dispõe o artigo 3º da Lei 8.666/93, a licitação deve
observar os seguintes princípios básicos: da legalidade, da impessoali-
dade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade admi-
nistrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento
objetivo e dos que lhes são correlatos.
Veja-se que o princípio da eficiência não se apresenta expressa-
mente no rol. Apesar disso, “o caput do art. 37 da CF consagra princípios
aplicáveis uniformemente a todas as manifestações de atividade admi-
nistrativa do Estado, seja no âmbito da Administração direta, seja no
tocante à indireta” (JUSTEN FILHO, 2014, p. 21).
No âmbito da compreensão da eficiência, o princípio está relacio-
nado com o modo de agir da Administração, visando à produção de resul-
tados a fim de satisfazer adequadamente às necessidades da população.
O princípio da eficiência determina que a Administração deve
agir, de modo rápido e preciso, para produzir resultados que satis-
façam às necessidades da população. Desse modo, “eficiência contra-
põe-se à lentidão, ao descaso, à negligência, à omissão – caracterís-
ticas habituais da Administração Pública brasileira, com raras exce-
ções” (MEDAUAR, 2012, p. 141-142).

O sistema de registro de preços sob o olhar


da eficiência constitucional
Apesar de não estar previsto expressamente na Lei 8.666/93,
existem características associadas à eficiência que podem ser empre-
Vinícius Oliveira Braz Deprá & Cláudio Ricardo Pereira

endidas a partir de algumas circunstâncias, dentre elas a natureza e a


finalidade do sistema de registro de preços.
Com efeito, conforme dispõe o artigo 15, II, da Lei 8.666/93, as
aquisições públicas, sempre que possível, deverão ser processadas por
meio de sistema de registro de preços. Muito embora a referida legis-
lação não conceitue o registro de preços, ele pode ser entendido en-
quanto sistema de compras a interessados em fornecer bens ou servi-
ços “ao poder público que concordam em manter os valores registrados
no órgão competente, corrigidos ou não, por um determinado período
e fornecer as quantidades solicitadas pela Administração no prazo pre-
viamente estabelecido” (MEIRELLES, 2006, p. 67).
No mesmo sentido, entende-se que o sistema de registro de pre-
ços é um “contrato normativo, constituído como um cadastro de produ-
tos e fornecedores, selecionados mediante licitação, para contratações
sucessivas de bens e serviços, respeitados lotes mínimos e outras con-
dições previstas no edital” (JUSTEN FILHO, 2014, p. 255).
Visando regulamentar o sistema de registro de preços, foi editado
o Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, o qual, em seu artigo 2º, I,
328
329
define o sistema como sendo “conjunto de procedimentos para registro

Constitucionalismo Contemporâneo
formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens,
para contratações futuras”.
Deve ser observado, ainda, que o sistema de registro de preços
não se trata de uma modalidade da licitação, e tampouco um tipo de
processo licitatório. Representa, isso sim, um conjunto de procedi-
mentos visando agilizar a sistemática de compras. Essa sistemática
deve ser adotada nas hipóteses estabelecidas no artigo 3º do Decreto
7.892/2013. Veja-se:

Art. 3º O Sistema de Registro de Preços poderá ser adotado nas


seguintes hipóteses:
I - quando, pelas características do bem ou serviço, houver neces-
sidade de contratações frequentes;

e suas formas contemporâneas


II - quando for conveniente a aquisição de bens com previsão de
entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por
unidade de medida ou em regime de tarefa;
III - quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação
de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou
a programas de governo; ou
IV - quando, pela natureza do objeto, não for possível definir pre-
viamente o quantitativo a ser demandado pela Administração.

Observa-se, ainda, que a Lei 8.666/93 dispõe expressamente que


a concorrência deve ser a modalidade a ser utilizada pelo sistema de
registro de preços (art. 15, § 3º, I). No entanto, a concorrência é a moda-
lidade mais complexa e abrangente de todas. Atenta a essa circunstân-
cia, que poderia inclusive vergastar o espírito do sistema que visa justa-
mente ser um “procedimento único, mais ágil e racional, que possibilita
gastos coerentes e equilibrados” (LEÃO, 2001, p. 30), foi editada a Lei
10.520, de 17 de julho de 2002, a qual instituiu a modalidade de licita-
ção denominada pregão, para a aquisição de bens e serviços comuns.
A mencionada Lei 10.520/2002 incluiu o pregão presencial como
modalidade de licitação – modalidade essa não prevista originariamen-
te na Lei 8.666/93. A propósito, o artigo 11 da Lei 10.520/2002 permi-
tiu a adoção do pregão para as aquisições feitas pelo sistema de registro
de preços. Observe-se:

Art. 11. As compras e contratações de bens e serviços comuns, no


âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
quando efetuadas pelo sistema de registro de preços previsto no
art. 15 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, poderão adotar a
modalidade de pregão, conforme regulamento específico.

Lembra-se, ainda, que, com o advento do Decreto nº 5.450, de


31 de maio de 2005, foi regulamentado o pregão na forma eletrônica,
também destinado à aquisição de bens e serviços comuns, o qual tam-
bém é aplicável ao sistema de registro de preços, conforme disposto
no seu artigo 17, § 6º.
Deve-se observar, ainda, que “a existência de preços registrados
não obriga a Administração a contratar somente com as empresas ou
profissionais respectivos, sendo a estes assegurada preferência em
igualdade de condições” (MEDAUAR, 2012, p. 204).
Com isso, destacam-se as vantagens do sistema de registro de
preços:

Sua utilização agiliza incrivelmente as aquisições na área pública,


permitindo que estas sejam efetuadas sem grandes entraves buro-
cráticos. Além disso, constitui ele um método eficaz para a adap-
Vinícius Oliveira Braz Deprá & Cláudio Ricardo Pereira

tação, às contingências da vida moderna, dos princípios constitu-


cionais e legais norteadores das atividades da Administração, con-
tribuindo para tanto com a eliminação de uma série de medidas
supérfluas e desnecessárias. (LEÃO, 2001, p. 15)

Nesse contexto, deve-se enfatizar a figura do “carona”, consistindo


em um procedimento “por meio do qual um órgão ou entidade que não
tenha participado da licitação que deu origem à ata de registro de preços
aderente a ela e vale-se dela como se sua fosse” (NIEBUHR, 2012).
No âmbito do Decreto nº 7.892/13, “carona” pode ser definido
como sendo o órgão não participante, ou seja, “órgão ou entidade da ad-
ministração pública que, não tendo participado dos procedimentos ini-
ciais da licitação, atendidos os requisitos desta norma, faz adesão à ata de
registro de preços” (art. 2º, V, do Decreto nº 7.892/13). Trata-se, portanto,
de órgão que se utiliza do registro de preços realizado por outro órgão,
visando à aquisição do bem ou serviço com preço registrado.
Sobre a figura do “carona” e a consagração do princípio da eficiên-
cia, veja-se: “o carona no Sistema de Registro de Preços apresenta-se
330
331
como uma relevante ferramenta […] consistindo na desnecessidade de

Constitucionalismo Contemporâneo
repetição de um processo oneroso, lento e desgastante quando já alcan-
çada a proposta mais vantajosa” (FERNANDES, 2009, p. 676).
Ainda sobre as vantagens da figura do “carona”:
A possibilidade de uso de uma ata por várias unidades orçamen-
tárias constitui um dos aspectos mais interessantes e dinâmicos
do sistema de registro de preços, sendo de extrema importância
em termos de mecanismo administrativo, já que possibilita uma
grande agilização das providências do Poder Público relativas às
aquisições, modernizando, na prática, o ritmo moroso e burocrá-
tico a esta sempre atribuído e possibilitando assim que suas ati-
vidades se aproximem um pouco mais daquelas praticadas pela
iniciativa privada na realidade atual. (LEÃO, 2001, p. 158)

e suas formas contemporâneas


Apesar de a eficiência estar associada ao sistema de registro de
preços, deve-se lembrar que o Tribunal de Contas da União (2007), num
primeiro momento, repudiou o sistema, conforme pode ser observado
na recomendação do acórdão a seguir:

9.2.2. Adote providências com vistas à reavaliação das regras atual-


mente estabelecidas para o registro de preços no Decreto n.º
3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros
de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preser-
var os princípios da competição, da igualdade de condições entre
os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração
Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável
situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as fina-
lidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencio-
nada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão.

Essa recomendação, contudo, restou revogada:


9.3 Tornar insubsistente, de ofício, o item 9.2.2 do Acórdão
1.487/2007 – TCU – Plenário; 9.4 Recomendar ao Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão que empreenda estudos
para aprimorar a sistemática do Sistema de Registro de Preços,
objetivando capturar ganhos de escala nas quantidades adicio-
nais decorrentes de adesões previamente planejadas e registra-
das de outros órgãos e entidades que possam participar do cer-
tame, cujos limites de quantitativos deverão estar em confor-
midade com o entendimento firmado pelo Acórdão 1.233/2012
– Plenário. (TCU, 2010)
A jurisprudência parece acompanhar essa ideia de fomentar a
utilização do registro de preço enquanto corolário da eficiência, sobre-
tudo diante da possibilidade de adesão a outros órgãos, conforme se
dessume de decisão do Tribunal de Contas do Distrito Federal (2010):

Ata de Registro de Preços. Utilização de Ata de outro ente fe-


derativo. Possibilidade. O Tribunal, por unanimidade, de acor-
do com o voto do Relator, tendo em conta, em parte, a instrução e
o parecer do Ministério Público, decidiu: I - tomar conhecimento,
em caráter excepcional, da consulta em apreço; II - informar ao
órgão consulente que há possibilidade de os órgãos e entidades
do complexo administrativo do Distrito Federal utilizarem-se da
Ata de Registro de Preços de outro ente federativo, desde que ex-
presse pesquisa de mercado promovida no Distrito Federal, con-
forme dispõe o § 1º do art. 4º da Lei nº 938/1995, e atenda aos
requisitos que a norma de regência estipula para tal hipótese; [...]

No mesmo sentido, o Tribunal de Contas do Mato Grosso (2009):

Câmara Municipal de Cuiabá. Consulta. Licitação. Registro de


Preço. Adesão à ata pelo “carona”. Possibilidade desde que obser-
Vinícius Oliveira Braz Deprá & Cláudio Ricardo Pereira

vados os limites legais. Responder ao consulente que: 1) admi-


te-se a contratação por órgãos e entidades que não participaram
da licitação resultante no registro de preço, nos limites fixados
no decreto regulamentador, a ser editado pelos entes (estadual
e municipais mato-grossenses), nos termos do disposto no art.
15, § 3º, da Lei nº 8.666/93, desde que motivada pela economi-
cidade e eficiência para a administração pública; 2) em caso de
silêncio na norma específica, mostra-se razoável limitar a adesão
à ata de registro de preço em até 25% do quantitativo; 3) afron-
ta os princípios da competição e da igualdade de condições en-
tre os licitantes a adesão ilimitada à ata de registro de preço; e,
4) observa o princípio da eficiência apenas às contratações em
que o objeto contratado atende qualitativamente às necessidades
do órgão ou entidade “carona”.

Muito embora não tenha sido localizada decisão específica sobre


o tema no Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, observa-
-se que no RS o sistema de registro de preços foi regulamentado a partir
do Decreto nº 45.375, de 04 de dezembro de 2007, o qual regula a ade-
são ao sistema de registro de preços por parte dos órgãos e entidades
da administração estadual:
332
333
Art. 1º A adesão ao sistema de registro de preços mantidos por

Constitucionalismo Contemporâneo
outros Órgãos e Entidades da União, dos Estados ou Municípios
de que trata o artigo 15 da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de
1993, será feita de acordo com o disposto neste Decreto.
Art. 2º Os Órgão e Entidades da Administração Pública Estadual
que não tiverem participado do certame licitatório realizado por
Órgãos e Entidades da União, Estados ou Municípios, poderão
aderir à Ata de Registro de Preços vigente, mediante prévia con-
sulta ao respectivo órgão gerenciador, desde que demonstrada a
vantagem econômica, observadas todas as condições estabeleci-
das na respectiva Ata.

Assim, uma vez demonstrada a vantajosidade econômica, o que


geralmente é aferida pela consulta de mercado, e obedecidas as con-

e suas formas contemporâneas


dições estabelecidas na ata, será possível a adesão de órgão estadual
junto ao órgão gestor.
A adesão, portanto, irá propiciar uma maior eficiência na reali-
zação da aquisição pública. Isso porque, o procedimento do registro de
preço irá dispensar que o aderente realize ao menos duas etapas com-
plexas da licitação, que dizem respeito aos atos internos do procedi-
mento licitatório (especialmente a elaboração do edital) e com os atos
externos do procedimento licitatório (especialmente a formalização de
contrato administrativo).
Assim, a adesão à ata pressupõe o aproveitamento de um percur-
so já desenvolvido pelo órgão gestor, culminando com a redução de cus-
tos e prestigiando a eficiência administrativa, na medida em que “não
basta ao administrador atuar de forma legal e neutra, é fundamental
que atue com eficiência, com rendimento, maximizando recursos e pro-
duzindo resultados satisfatórios” (MEIRELLES, 1996, p. 90).

Considerações finais
A pesquisa permitiu concluir que, apesar de o princípio da eficiên-
cia não estar apresentado de maneira explícita na Lei 8.666/93, é perfei-
tamente possível identificá-lo no sistema de registro de preços, na medida
em que esse sistema atende de maneira adequada a eficiência administra-
tiva para a aquisição pública de obras e serviços públicos.
Com efeito, partiu-se inicialmente de uma contextualização dos
princípios constitucionais, lembrando que o princípio da eficiência foi
inserido no caput do artigo 37 da Constituição Federal a partir da re-
forma administrativa delineada pela Emenda Constitucional nº 19/98.
A eficiência, portanto, está relacionada com a produção de resul-
tados de uma maneira mais adequada, visando à concretização da fina-
lidade legal, observadas as medidas administrativas que assegurem a
economicidade na tomada de decisões.
Essa economicidade, no âmbito das licitações, está relacionada
inclusive aos procedimentos adotados para a aquisição pública.
Nesse passo, observa-se que o sistema de registro de preço pro-
picia uma maior eficiência na realização da aquisição pública, tendo em
vista a possibilidade de serem reduzidas ao menos duas etapas comple-
xas da licitação, quais seja, a elaboração de edital e a formalização de
contrato administrativo.

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-administrativo/264754-o-novo-perfil-da-adesao-a-ata-de-registro-de-precos-conforme-a
cordao-12332012-do-tribunal-de-contas-da-uniao>. Acesso em: 10 abr. 2017.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1986.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14. ed. São Paulo: Malheiros,
1997.
Vinícius Oliveira Braz Deprá & Cláudio Ricardo Pereira

336
TRANSPARÊNCIA PÚBLICA NA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO:
A EDIÇÃO DA LEI DE ACESSO À
INFORMAÇÃO EM UM CONTEXTO DE
CIBERDEMOCRACIA

Ana Helena Scalco Corazza


Mestranda do PPGD – Mestrado e Doutorado em Direito da
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Auditora pública
externa, junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande
do Sul. (ahelenacorazza@gmail.com)

Roberta de Moura Ertel


Acadêmica de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul -
UNISC, bolsista de iniciação científica PUIC.
(roberta.ertel@gmail.com)

Considerações iniciais
A Sociedade da Informação ou Sociedade em Rede1 é a denomi-
nação que se atribui à sociedade contemporânea, por se constituir, no
século XXI, em uma comunidade globalizada, calcada na utilização e di-
vulgação aberta de informações e conhecimentos. Essa sociedade tem
sua gênese na revolução tecnológica, e tem implicado, ao longo das úl-
timas décadas, profundas alterações nas relações sociais, econômicas,
políticas e governamentais dos Estados, exigindo dos mecanismos de
regulação social, como o Direito, novas perspectivas de atuação, seja no
âmbito da produção legislativa, ou através da exigência de concreção
dos novos direitos advindos desse paradigma.
Nessa seara, o marco legal da transparência e do acesso à infor-
mação pública no Brasil, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011
(Lei de Acesso à Informação – LAI), que entrou em vigor em maio de
2012, visou regulamentar o artigo 5º da Constituição Federal, dispon-


1
Conceito usado por Manuel Castells em sua obra A sociedade em rede (1999).
do acerca da possibilidade de obtenção de informações públicas, por
pessoa física ou jurídica, sem motivação, em qualquer esfera de Poder
e também em face das entidades privadas sem fins lucrativos, no que
tange à destinação de recursos públicos por elas recebidos.
A edição da LAI, ainda que recente, significou um relevante
avanço na consolidação do regime democrático (ou ciberdemocráti-
co) no Brasil, ao robustecer os mecanismos de controle externo da
Administração e, nesse escopo, ter ampliado e aperfeiçoado os meios
de atuação do controle social. O próprio paradigma administrativo,
quanto à disponibilização de dados, foi alterado por meio dessa legis-
lação, já que o sigilo da informação pública é hoje medida excepcional
que só se justifica em casos legalmente previstos ou quando se trata
de informação de caráter pessoal.
Dessa forma, dado esse contexto, o Estado deve ter seus fluxos e
decisões cada vez mais abertos à sociedade, já que a transparência na
gestão pública, na Sociedade da Informação, é uma das bases das de-
mocracias dos países ocidentais, constituindo-se, também, numa peça
fundamental à construção de uma ciberdemocracia. E essa nova propos-
ta de democracia, isso é, de “nova dimensão da vida na pólis” (LEMOS;
Moura Ertel

LÉVY, 2010, p. 29), não se propõe a apresentar uma solução que satisfa-
ça as lacunas deixadas pela democracia representativa no ocidente, mas
sim, auxiliá-la e complementá-la, de forma determinante, no aprimora-
mento da cidadania.
de

Assim, o presente trabalho justifica-se no intuito de demonstrar


Ana Helena Scalco Corazza & Roberta

que uma nova concepção de Estado – aberto às transformações advin-


das da Sociedade em Rede e à comunicação com os indivíduos e com a
coletividade –, se coaduna com a proposta de uma ciberdemocracia, já
que este paradigma de democracia impulsiona a participação do cida-
dão, justamente pelo incentivo à introjeção de uma cultura de transpa-
rência e de acesso à informação.

Definindo a ciberdemocracia
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) causaram
uma verdadeira transformação, nas últimas décadas, no modus ope-
randi das sociedades democráticas pós-modernas. Tal cenário trouxe
reflexos também às relações entre cidadãos e Estado. Assim, a ciber-
democracia, ou democracia digital, se constitui em uma via de criação
338
339
de processos e mecanismos de interação e deliberação entre indivíduos

Constitucionalismo Contemporâneo
(ou sociedade civil) e Estado, para acompanhamento das tomadas de
decisões deste último, e para que os primeiros possam acompanhar os
fluxos e alcances da Administração Pública.
Ademais, esse ambiente complexo gerado pela expansão da tecno-
logia e da internet fomenta o crescimento da cultura política, isso porque
“sempre que podemos emitir livremente e nos conectar com os outros,
cria-se uma potência política, social e cultural: a potência da reconfigu-
ração e da transformação” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 27). Destarte, quanto
mais informações são produzidas, distribuídas e compartilhadas em uma
dada sociedade, mais consciente politicamente esta tende a ficar.
Segundo Lemos e Lévy (2010), de todas as mutações que advêm
do crescimento da internet, aquelas que concernem à vida política e à

e suas formas contemporâneas


democracia serão as mais surpreendentes. Nessa linha, os autores dis-
correm que palavra ciberespaço, neologismo dos anos 1980, faz refe-
rência à cibernética, corrente científica transdisciplinar dos anos 1940
e 1950 que consagrou as noções de informação e de comunicação do
mundo científico. Para eles, a cibernética designa a ciência do comando
e do controle, ou seja, a ciência do governo.
Na sequência, Lemos e Levy (2010, p. 52) pontuam que “A gover-
nança das sociedades passa por um ‘ciberespaço’, num sentido amplo,
isto é, pelo universo da linguagem humana tal qual ela é estruturada
por certa ecologia da comunicação, em um dado momento”. Isso quer
dizer que as técnicas de comunicação, ao aumentarem a potência da
linguagem humana, desempenham um papel central na evolução da go-
vernança política.
A extensão do ciberespaço (decorrente da expansão da rede de te-
lefonia mundial, da televisão por satélite e da interconexão mundial de
computadores) faz florescer, portanto, um novo espaço público. E este
novo locus de atuação estatal “redefine radicalmente as condições de go-
vernança e vai, provavelmente, engendrar novas formas políticas, ainda
dificilmente previsíveis” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 52). E nesse contexto é
que “a eclosão do ciberespaço persegue um movimento plurissecular de
aumento de visibilidade e da transparência” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 61).
Destarte, Lemos e Lévy (2010) apontam que as instituições políti-
cas mais potentes do mundo “como aquelas do Congresso e do governo
americanos, por exemplo, são também as mais transparentes da web”.
Isso porque a potência passa a estar associada à transparência, como o
poder é associado à opacidade, já que esta (a opacidade) “deixa o campo
livre aos comportamentos não éticos, abusivos ou mesmo ilegais, que
não favoreçam certamente o espírito de cooperação, de serviço mútuo
e de compartilhamento do saber que está na base da eficácia e da inteli-
gência coletiva” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 66).
Ou seja, tanto em âmbito internacional como em âmbito de Brasil,
certo é, conforme leciona Freitas (2014), que a Administração Pública
transparente evita a opacidade, destacando o direito dos indivíduos à
obtenção de informações inteligíveis, inclusive sobre a execução do or-
çamento, e sobre o processo de tomada de decisões administrativas que
afetam seus direitos. A transparência, para o autor (2014), constitui-se
em um dos pilares de uma boa administração pública, eficiente e eficaz,
ao lado de requisitos como motivação, moralidade, participação social,
dentre outros, sendo uma das bases de uma gestão democrática.
Nesse mesmo sentido é que Lemos e Lévy (2010, p. 66) registram
que “a transparência passa a ser uma exigência moral”, já que ela é si-
Moura Ertel

nônimo de “luta contra a corrupção”. Nessa seara, os mesmos autores


aduzem que os escândalos financeiros que atingem o mundo político
há muitos anos, em todos os países democráticos, não significam tanto
uma falha moral das elites políticas, mas sim o crescimento da vontade
e da prática da transparência democrática.
de

Destarte, o papel social da comunicação e dos cidadãos na


Ana Helena Scalco Corazza & Roberta

Sociedade da Informação é “monitorar a atividade política para o corre-


to uso da coisa pública. A busca desse ideal é indissociável da liberdade
de imprensa e da independência da justiça” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 67).
Nesse sentido, a transparência total que os instrumentos do ciberespaço
permitem é, para Lévy e Lemos (2010), um dos fatores determinantes
para a mutação da democracia moderna em ciberdemocracia e para a
queda das ditaduras à moda antiga.
Em suma, esse novo locus de atuação democrática da Adminis-
tração Pública, o ciberespaço, em plena harmonia com os primados do
Estado Democrático de Direito materializado na Constituição Federal
de 1988, “avança na promoção de uma atuação conjunta com os parti-
culares, de maneira a promover a inserção deles na contextura da atua-
ção estatal” (LIMA, 2013, p. 100).
340
341
Transparência e acesso à informação

Constitucionalismo Contemporâneo
pública como direitos fundamentais:
a edição da Lei nº 12.527/2011
Conforme acima exposto, a ciberdemocracia se constitui em uma
nova forma de pensar o Estado, em sinergia com os preceitos de uma
governança conectada aos ciberespaços de organização civil cidadã e
com os ideais de transparência dos fluxos e da tomada de decisões dos
entes governamentais.

O Acesso à Informação Pública


como Direito Humano
Freitas (2008) sustenta a convergência do Estado brasileiro

e suas formas contemporâneas


com os artigos 41 e 42 da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, aprovada no Conselho Europeu de Nice, em 07 de dezembro
de 2000 (conhecida como Carta de Nice), a qual expressa o direito à boa
administração pública, nesses termos:
1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tra-
tados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma
imparcial, equitativa e num prazo razoável, 2. Este direito com-
preende, nomeadamente: c) A obrigação, por parte da adminis-
tração, de fundamentar as suas decisões. [...] 4. Todas as pessoas
têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa
das línguas dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma
língua. [...] Direito de acesso aos documentos. [...] Qualquer cida-
dão da União, bem como qualquer pessoa singular ou coletiva
com residência ou sede social num Estado-Membro, tem direito
de acesso aos documentos das instituições, órgãos e organismos
da União, seja qual for o suporte desses documentos.

Salienta-se que não é apenas a Carta de Direitos Fundamentais


da União Europeia que consigna o direito ao acesso às informações,
dados e processos junto à Administração Pública, pelo contrário.
Distintos documentos de direitos humanos em âmbito internacional re-
ferem-se ao postulado, a saber: o artigo 19 da Declaração Universal dos
Direitos Humanos2, o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos


2
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liber-
dade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações
e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)3, o item 4 da Declaração
Interamericana de Princípios de Liberdade de Expressão (o qual bem
explicita o direito ao acesso à informação em poder do Estado)4, bem
como o artigo 10 da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção
– enfática quanto à necessidade de medidas tendentes a aumentar a
transparência da Administração Pública.
Esta última, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 5.687,
de 31 de janeiro de 2006, na parte referente ao direito de acesso à
informação pública traz inequívoco amparo ao direito humano ora es-
tudado. Leia-se:

Artigo 10. Informação pública [...] Tendo em conta a necessidade


de combater a corrupção, cada Estado Parte, em conformidade
com os princípios fundamentais de sua legislação interna, adota-
rá medidas que sejam necessárias para aumentar a transparência
em sua administração pública, inclusive no relativo à sua organi-
zação, funcionamento e processos de adoção de decisões, quan-
do proceder. Essas medidas poderão incluir, entre outras coisas:
a) A instauração de procedimentos ou regulamentações que per-
mitam ao público em geral obter, quando proceder, informação
Moura Ertel

sobre a organização, o funcionamento e os processos de adoção


de decisões de sua administração pública, com o devido respeito
à proteção da intimidade e dos documentos pessoais, sobre as
decisões e atos jurídicos que incumbam ao público; b) A simpli-
ficação dos procedimentos administrativos, quando proceder, a
fim de facilitar o acesso do público às autoridades encarregadas
de

da adoção de decisões; e c) A publicação de informação, o que


Ana Helena Scalco Corazza & Roberta

poderá incluir informes periódicos sobre os riscos de corrupção


na administração pública.

Como se vê, o direito de acesso às informações públicas constitui-


se em um direito humano universal, positivado em diversos e relevan-

3
Liberdade de pensamento e de expressão: 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade
de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e
difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras,
verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio
de sua escolha. [...].
4
O acesso à informação em poder do Estado é um direito fundamental do indivíduo.
Os Estados estão obrigados a garantir o exercício desse direito. Este princípio só ad-
mite limitações excepcionais que devem estar previamente estabelecidas em lei para
o caso de existência de perigo real e iminente que ameace a segurança nacional em
sociedades democráticas. [...].
342
343
tes documentos de direito internacional. Assim, a informação produ-

Constitucionalismo Contemporâneo
zida, gerenciada ou guardada pelo Estado, em nome da sociedade, se
constitui em bem público e o seu acesso é direito de todos os cidadãos.

A Transparência e o Acesso à Informação


Pública como Direitos Fundamentais
Considerando o acima exposto, diga-se que a jusfundamentalidade
do direito à transparência e ao acesso à informação pública no orde-
namento jurídico brasileiro reside expressamente no texto dos incisos
XIV e XXXIII do artigo 5º da Constituição de 1988, que dispõem que “é
assegurado a todos o acesso à informação [...]” e “todos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou
de interesse coletivo ou geral [...], ressalvadas aquelas cujo sigilo seja

e suas formas contemporâneas


imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
Também o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº
3.741-2, se manifestou acerca desses postulados, ficando consagrado
na respectiva ementa o “direito à informação livre e plural como va-
lor indissociável da ideia de democracia” (BRASIL, 2006). No voto, o
Ministro Ricardo Lewandowski dispôs que “a liberdade de informação,
como corolário da liberdade de expressão, vem sendo protegida des-
de os primórdios da Era Moderna, encontrando abrigo já na célebre
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789” e que, desde
então, “passou a constar de praticamente todos os textos constitucio-
nais das nações civilizadas, bem como das declarações e pactos interna-
cionais de proteção dos direitos humanos” (BRASIL, 2006).
Assim, a Constituição brasileira de 1988, nos incisos acima men-
cionados, não apenas garante a liberdade de expressão, como também
assegura o acesso à informação, direitos estes tão alinhavados com o
conceito de transparência e cidadania que, inclusive, poderão ser sus-
pensos em caso de vigência de estado de sítio, conforme o artigo 139,
inciso III, também do texto constitucional.
Nessa linha, a edição da Lei Federal nº 12.527, de 18 de novem-
bro de 2011, permitiu que o livre acesso aos dados públicos se tornasse
uma regra, de forma que qualquer sigilo de informação passou a ser ato
excepcional, legalmente estabelecido5.


5
A LAI prevê como exceções à regra geral de acesso amplo de dados, as informações que
consignem dados pessoais (que terão seu acesso restrito aos próprios indivíduos e a ter-
A LAI foi originariamente arquitetada pelo Conselho de Trans-
parência e Combate à Corrupção6, órgão vinculado à Controladoria-
Geral da União, que, dentre as suas competências, sugere e debate me-
didas de aperfeiçoamento dos métodos de controle e incremento da
transparência na gestão da Administração Pública. Por meio dessa lei,
a Administração Pública cumpre seu papel quando promove a divulga-
ção proativa de suas ações e serviços, independentemente de requeri-
mento, consagrando a denominada transparência ativa (vide art. 8º) e,
também, quando recebe demandas específicas e divulga informações
em atendimento às solicitações da sociedade, realizando a denominada
transparência passiva (vide art. 10).
Pontua-se que um dos principais focos de ação do marco regu-
latório é a mudança de paradigmas no tocante à disponibilização das
informações públicas. Isto é, busca-se fomentar uma cultura de acesso,
a partir da qual os órgãos, entidades e agentes públicos têm consciência
de que a informação pública pertence originariamente ao cidadão e que
cabe ao Estado, por meio de cada um dos entes federativos, provê-la
tempestiva e compreensivelmente. Nesse sentido, na própria explana-
ção das diretrizes da lei “fica evidente que a cultura da transparência na
Moura Ertel

gestão pública tem como intuito o fomento do controle social, ou seja,


é poder/dever do gestor público criar ambiente propício para a efetiva
existência da participação e controle, atendendo aos deveres de uma
boa administração pública” (MÜLLER; RECK, 2016, p. 108).
de

Assim, a partir da edição da LAI, os requerimentos por informa-


Ana Helena Scalco Corazza & Roberta

ções públicas (individuais e coletivos) passaram a ser legítimos e tor-


nou-se obrigação dos entes a disponibilização, em local de fácil acesso,
das informações de interesse coletivo e geral por eles produzidas ou
custodiadas (vide arts. 8º e 10). Dessa forma, os canais de dialogicidade
entre governo e população são ampliados, inclusive porque o fluxo e a
transparência de informações geram a inclusão da vontade do cidadão
na tomada de decisão por parte da Administração. Ademais, conforme
apontam Müller e Reck (2016, p. 105), “a transparência está associa-

ceiros, em casos excepcionais previstos em lei), as informações classificadas como sigilosas


(que podem colocar em risco a segurança da sociedade ou do Estado. Essas informações
serão classificadas pela autoridade competente, podendo ser classificadas em reservada,
secreta e ultrassecreta), bem como as informações sigilosas com base em outras leis.

6
Mais informações sobre o Conselho da Transparência podem ser encontradas em:
<http://www.cgu.gov.br/assuntos/transparencia-publica/conselho-da-transparencia>.
344
345
da à divulgação de informações que permitam que sejam averiguadas

Constitucionalismo Contemporâneo
as ações dos gestores e a consequente responsabilização por seus atos.
Logo, não há que se falar em controle, sem o devido cumprimento dos
deveres de transparência pública”.
Também, segundo Stahlhöfer e Souza (2015, p. 140), espera-
-se que a ampliação dos processos de interação pelas novas mídias (a
exemplo dos portais de transparência, e dos portais na internet de insti-
tuições públicas, como o e-democracia) efetivamente culminem no im-
plemento das deliberações públicas, e espera-se que por meio delas as
minorias tenham seus intentos ouvidos.
Registra-se que, inobstante exista um cenário no Brasil que se
alinhe com a construção de um ciberespaço estatal, há aspectos que po-

e suas formas contemporâneas


dem culminar na inefetividade do regulamento trazido pela LAI. Dentre
eles, cita-se a linguagem a ser adotada na informação pública prestada.
Ou seja, o ente governamental, ao possibilitar virtualmente o acesso à
transparência ativa e passiva, deve atentar para o possível excesso de
tecnicidade presente nas informações, que torna de difícil compreensão
os dados disponibilizados7. Ademais, as informações prestadas espon-
taneamente em sites governamentais devem estar dispostas de maneira
organizada e autointuitiva8. Destaca-se que mesmo os termos técnicos
devem ser transpostos para o vocabulário comum da população, porque
a informação só é acessível se o cidadão puder compreendê-la.
Considerando que muitos entes podem se valer de eventuais difi-
culdades (operacionais e tecnológicas) para deixar de cumprir os regra-
mentos trazidos pela Lei nº 12.527/2011, mostra-se essencial a fiscali-
zação exercida pelos órgãos de Controle Externo, como os Tribunais de
Contas – a exemplo da Corte de Contas gaúcha, que regulamentou a LAI
por meio da Resolução nº 1.046/2015, exercendo um rigoroso acompa-
nhamento do atendimento à referida lei pelos municípios que compõe a
sua esfera de jurisdição9.


7
Segundo a Controladoria-Geral da União, um exemplo de linguagem cidadã é a utiliza-
ção da nomenclatura: Transferência de Renda Diretamente às Famílias em Condição de
Pobreza e Extrema Pobreza, para o programa Bolsa Família.

8
As informações públicas devem ser acessíveis a todos, inclusive às pessoas portadoras
de deficiências.

9
Mais informações e dados relativos às informações disponibilizadas podem ser verificados em:
<http://www1.tce.rs.gov.br/portal/page/portal/tcers/institucional/acesso_a_informacao>.
Entretanto, insubstituível é o controle externo titularizado pela
sociedade, controle social, já que, conforme pontuam Müller e Reck
(2016, p. 98) “o controle social ocorre [...] com intuito de verificar se as
decisões tomadas seguiram seu curso e foram concretizadas pela admi-
nistração pública da forma estabelecida em lei”.
Portanto, é certo que os avanços em termos de ampliação do aces-
so da sociedade aos fluxos da Administração Pública, trazidos pela Lei
de Acesso à Informação, são louváveis, além de demonstrarem o ama-
durecimento do Estado de direito brasileiro. Entretanto, é inequívoco
que continuidade dessa evolução e o aprimoramento das práticas de
transparência só ocorrerão mediante a união de esforços, tanto da so-
ciedade (se interessando e exigindo dos Poderes Públicos a máxima
efetividade da LAI), como da esfera governamental – a quem compete
profissionalizar e facilitar os mecanismos de divulgação de informações
públicas (seja ativa ou passivamente).
Por fim, como bem apontado por Lemos e Lévy (2010, p. 182),
o verdadeiro Estado, aquele que é ciberdemocrático universal e trans-
parente, ainda não existe e está por ser construído. Para os autores, o
Moura Ertel

modelo de democracia por eles exposto se constitui também em uma


reflexão para o futuro, dada a emergência ainda recente da socieda-
de da informação. Portanto, a construção da total transparência em
âmbito de processos e decisões dos entes governamentais é um dos
de

passos da Sociedade da Informação, rumo à consecução de um Estado


Ana Helena Scalco Corazza & Roberta

ciberdemocrático.

Acesso à informação, cidadania e


ciberdemocracia
Para Stahlhöfer e Souza (2015, p. 137), a cidadania depende da
qualificação da democracia e não da sua quantificação, de forma que as
novas mídias de transposição de informação e conhecimento se apre-
sentam como recentes formas de expressão da população, enriquecen-
do as deliberações e apontando para novos caminhos a serem seguidos
pela Administração Pública.
Destarte, as mesmas autoras (2015, p. 138) ponderam que a ce-
leridade com que as informações são compartilhadas, discutidas e so-
346
347
lucionadas por meio da rede revela uma inovadora maneira de partici-

Constitucionalismo Contemporâneo
pação política, verdadeiramente ativa e sem lastro histórico. Segundo
as autoras, esse processo “constitui-se em um verdadeiro embrião de
uma futura democracia em rede mais qualitativa e que efetivamente sa-
tisfaça os interesses dos cidadãos. Ou seja, as novas mídias facilitam o
engajamento entre Estado e sociedade civil”.
Acerca do conceito de democracia, cabe sinalar que este não se
restringe ao seu viés formal, ou seja, “um processo de legitimação de
aquisição e exercício do poder estatal com base na noção de sobera-
nia popular”, inobstante “tal dimensão siga sendo imprescindível e seja
mesmo constitutiva da democracia” (SARLET, 2016, p. 695-696). Isso
porque o postulado também tem um viés material, haja vista que em um
Estado Democrático não haverá democracia “sem o reconhecimento,

e suas formas contemporâneas


respeito, proteção e promoção de determinados princípios (e valores)
e direitos fundamentais, pois, do contrário, o governo do povo e pelo
povo poderá eventualmente não ser um governo para o povo” (SARLET,
2016, p. 696). Dessa forma, a democracia constitucional, para prosperar
efetivamente, deverá ser substancial, isso é “deve se (re)legitimar per-
manentemente” (SARLET, 2016, p. 696).
Essa (re)legitimação democrática é possível por meio da cidada-
nia, que, juntamente com os direitos fundamentais que lhe são afetos,
está alinhada com o status activus do indivíduo, ou seja, “com os seus
direitos (competência) de participação ativa na formação da vontade
política (estatal) e, nesse sentido, do processo democrático decisório”
(SARLET, 2016, p. 695).
Dessa forma, segundo Sarlet (2016), é mediante o exercício dos
direitos de participação política (ativos ou passivos) que o ser humano
não será reduzido à condição de mero objeto da vontade estatal (mero
súdito), passando a assegurar a sua condição de sujeito do processo de
decisão sobre a sua própria vida e a da comunidade que integra.
Nesse contexto, os direitos fundamentais correlatos à partici-
pação cidadã, dentre os quais o direito fundamental ao acesso à infor-
mação pública, são elementos garantidores da própria democracia no
Estado constitucional. E, a partir da edição da LAI, a sociedade brasilei-
ra passa a estar mais apta a conhecer e questionar a forma de funciona-
mento dos seus governos, contexto que não justifica hoje uma participa-
ção social restrita ao exercício do sufrágio.
Conforme Lemos e Lévy (2010, p. 182), com a explosão do ciberes-
paço novas formas de governo e Estado deverão ser inventadas, e consi-
derando os novos avanços da emancipação humana é que devemos pen-
sar não no fim do Estado, mas na criação de um novo Estado, que esteja
inteiramente a serviço da nova sociedade que emerge. Entende-se que
os mecanismos legislativos e os procedimentos hoje assegurados pela
LAI aos cidadãos podem ser um indício de que esse novo Estado está
emergindo, já que, para os autores, “Podemos apostar que o Estado, que
já teve várias formas [...] continuará no futuro a se metamorfosear”. Para
os autores (2010, p. 185), a partir da ciberdemocracia, seria fornecido
à sociedade um metanível de reflexão, de regulação e de governança,
que serviria como uma espécie de espelho que permitiria aos atores
reconhecer os efeitos dos seus atos, de aprender continuamente e ver
mais amplamente.
Destarte, depura-se do exposto que os mecanismos que aumen-
tam a transparência, por meio virtual, da Administração Pública, a exem-
plo da LAI, são impulsionadores das práticas cidadãs e da construção de
uma ciberdemocracia. Ou seja, a possibilidade de acesso a quaisquer in-
formações públicas (mesmo que estas não sejam do interesse particular
Moura Ertel

do consulente), sem necessária justificativa, vedadas exigências quanto


aos motivos da solicitação, traduzem um progresso normativo que esti-
mula a politização da sociedade brasileira, e demonstram a sinergia do
País com a emersão da Sociedade da Informação.
de
Ana Helena Scalco Corazza & Roberta

Considerações finais
Dado o problema proposto, entende-se, por fim, que a edição da
Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) insere, efetivamente,
a esfera governamental, ao menos num primeiro momento, no paradig-
ma de uma ciberdemocracia. Isso porque, como visto, um Estado efeti-
vamente transparente espelha os processos de funcionamento da socie-
dade e permite uma atuação efetivamente cidadã dos seus integrantes,
haja vista que ninguém pode pleitear por algo que desconhece.
Inclusive, conforme o referencial teórico de Lemos e Lévy utiliza-
do neste trabalho, o futuro do Estado transparente caminha no senti-
do da criação de ciberespaços virtuais (locais, nacionais, continentais e
mundiais), aptos a estimular um debate democrático aberto, por parte
de todos os cidadãos interessados. Nesse sentido, também a importân-
348
349
cia de que sejam mantidas e criadas as comunidades virtuais especial-

Constitucionalismo Contemporâneo
mente concebidas para o diálogo e deliberação política.
Nesse escopo, a edição da LAI insere-se nesta mudança de cenário
estatal, no tocante à disponibilização da informação pública, que tem am-
plitude mundial10, especialmente propiciada pela interação multiforme
oferecida pela rede mundial de computadores (world wide web). Através
desta interação, é possível a difusão da expressão democrática, haja vista
a facilidade de manifestação de opiniões e de demonstração da pluralida-
de cultural por meio da rede, além da possibilidade de construção de es-
paços públicos virtuais e da criação de procedimentos online de atuação
cidadã, a exemplo, no Brasil, do portal e-democracia, que incentiva a par-
ticipação popular, de maneira virtual, junto à Câmara dos Deputados11.

e suas formas contemporâneas


Pontua-se ser inquestionável que o marco regulatório ainda con-
sagra desafios a serem enfrentados quanto a sua implementação, de na-
tureza pessoal, operacional, tecnológica, dentre muitas outras. Porém, o
principal desafio enfrentado, e a ser gradativamente superado (tanto no
âmbito governamental como no contexto da sociedade civil), é a cultura
do sigilo das práticas e decisões administrativas. Cultura essa, aponta-se,
que em nada se coaduna com o viés democrático adotado pelo Estado
brasileiro e com o advento e consolidação de uma ciberdemocracia.

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Senado Federal, 1988.

______. Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Promulga a Convenção das Nações Unidas
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inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição
Federal; altera a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei 11.111, de 5 de maio
de 2005, e dispositivos da Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
Publicado em de 18.11.2011, Edição extra.

10
Sinala-se que, segundo informação trazida pela Controladoria-Geral da União, no site
<http://www.acessoainformacao.gov.br/>, mais de 90 países já editaram leis seme-
lhantes à LAI.
11
Disponível em: <http://edemocracia.camara.gov.br/>.
______. Supremo Tribunal Federal. ADI 3741/DF, Pleno. Rel. Min. Ricardo Lewandowski.
Brasília, 06 de agosto de 2006. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pagina
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350
DE HERÓI A CRIMINOSO:
RECATEGORIZAÇÃO DO PERSONAGEM
ROBIN HOOD ANTE AS CONCEPÇÕES
DE JUSTIÇA

Selma Pereira de Santana


Doutora em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra (2006). Mestre em
Ciências Jurídico-Criminais por esta última Faculdade (2002).
Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia
(1984). Especialista em Direito Penal e Direito Processual
Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público
da Bahia, FESMIP. Especialista em Direito Administrativo pela
Fundação Faculdade de Direito - FFD. Especialista em Processo
pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia -
UFBA. Possui curso de Aperfeiçoamento em Ciências Criminais
e Dogmática Penal Alemã pela Georg-August Universität
Göttingen, GAUG - Alemanha. Promotora do Ministério
Público Militar da União. Professora Adjunta de Direito Penal
da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
(Graduação e Pós-Graduação). Coordenadora do Grupo
de Pesquisas Justiça Restaurativa (cadastrado pelo CNPq).
(selmadeesantana@gmail.com)

Fernando Oliveira Piedade


Doutorando em Direito Público pela Universidade Federal
da Bahia. Mestre em Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul (UNISC), com Bolsa Capes. Integrante do gru-
po de pesquisa em Justiça Restaurativa na Universidade
Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Estácio/
Faculdade São Luís. Licenciado em Letras Português/
Espanhol com Bolsa Integral Prouni pela Faculdade Santa Fé.
Possui Especialização em Linguística e Língua Portuguesa
pela Faculdade Evangélica do Meio Norte e Metodologia
do Ensino da Língua Espanhola pela Faculdade Santa Fé.
(nandooliver27@hotmail.com)

Introdução
Para a realização desta pesquisa, utilizou-se o método indutivo,
visto que ele se caracteriza como um processo mental em que se parte
de dados particulares, suficientemente constatados, para que se pos-
sa chegar a uma conclusão geral ou universal. Segundo Mattar Neto
(2002), o método indutivo parte do particular, por meio da observação
criteriosa dos fenômenos concretos da realidade e das relações existen-
tes entre eles, para se chegar à generalização. Esse método baseia-se
na experiência empirista, desconsiderando verdades pré-concebidas.
Partiremos, então, da observação dos dados da realidade representada
por meio da narrativa que compõe a lenda em estudo.
A justificativa pelo referido método tem como fundamento o fato
de que, embora se possa demonstrar a certeza dos fatos e, com isso, afir-
mar que a conduta de Robin é ilícita de acordo com os moldes do siste-
ma penal vigente, por outro lado, acredita-se que toda generalização de
verdade, nesse caso específico, carece de observações feitas não apenas
sob a ótica do Direito, enquanto sistema de normas punitivo, mas, a par-
tir da análise dos fatos em sua essência, baseado em uma concepção de
justiça em sua totalidade, isto é, de todos os atos, independentemente
da sua natureza, que incidem para que ela realize o seu bem.
Adotou-se, ainda, para auxiliar na realização desta pesquisa, o
método histórico, que tem como premissa básica a “crença na História
Santana & Fernando Oliveira Piedade

como ciência e disciplina capaz de explicar estruturas e acontecimen-


tos, notadamente os de foro político, econômico e sociais” (MATTAR
NETO, 2000, p. 3). O fenômeno histórico, nessa perspectiva, apresenta-
se em um contexto, onde se torna essencial analisar as relações sociais
e históricas da sociedade da época para que consigamos compreender
as atitudes do personagem da lenda, Robin, bem como a maneira como
ele poderia ser julgado.
É importante registar que se pretende levar o leitor da reflexão à
ação, visto que a justiça é o objeto central das instituições sociais, muito
embora, por vezes, não consigamos separar a noção de justiça do con-
ceito de direito.

Direito e gênero textual


de
Selma Pereira

Para Kelsen (1999), o direito é um ordenamento coativo, pouco


importando qual a função social deste ordenamento coativo. Categorias
como paz, ordem e segurança coletiva, mesmo nas relações internacio-
nais, são perseguidas, conquistadas e alcançadas por meio do instru-
mento particular, o Direito.
352
353
Então poderíamos questionar: a corrente ideológica do direito

Constitucionalismo Contemporâneo
positivo realiza a justiça que efetivamente idealizamos?
Diversos gêneros de textos, como contos populares, lendas, mitos,
que trazem histórias da cultura popular e já se incutiram no imaginá-
rio coletivo da sociedade, são importantes fontes de inspiração para a
Literatura e suas diversas vertentes. Encontramos nesses textos mui-
tas histórias nas quais estão diluídas diferentes concepções de justiça,
o que possibilita que elas sejam relacionadas com o direito, permitindo
uma compreensão prazerosa e criativa de muitos dos aspectos dessa
instância.
Assim, conforme Ferraz Júnior (2003, p. 16), “o direito é um dos
fenômenos mais notáveis na vida humana. Compreendê-lo é compreen-
der uma parte de nós mesmos. É saber em parte por que obedecemos,

e suas formas contemporâneas


por que mandamos, por que nos indignamos [...]”. Dessa forma, por meio
dos gêneros textuais em sua infinidade de variedades, é possível fazer
uma conexão entre cultura popular e direito, já que gêneros textuais são
as estruturas com que se compõem os textos, sejam eles orais ou escritos,
e a temática aqui abordada baseia-se na documentação e memorização
das ações humanas registradas na lenda, para que possamos explicar
os domínios sociodiscursivos e compreendermos o contexto histórico e
social segundo o direito.
Nessa ótica, o Direito posto dentro da sociedade deveria ter como
escrutínio o fato de ser um fenômeno dinâmico, promocional de uma
humanidade melhor, sendo este destinado ao bem comum e à realiza-
ção individual promovida pelo Estado bonificador, e não sancionador e
repressor.

Breves apontamentos sobre a


história de Robin Hood
Em notas breves, apontaremos a história de Robin Hood, co-
nhecido como o príncipe dos ladrões, que roubava dos ricos para dar
aos pobres. A lenda do herói fora da lei data do final do século XII,
na Era Medieval, e faz parte do imaginário coletivo das pessoas, con-
fundindo realidade e criação fictícia. Assim, de acordo com o enredo
da narrativa, podemos considerar esse personagem como herói ou
criminoso?
Dentro da discussão aqui empreendida, percebemos a recatego-
rização sofrida pelo personagem Robin Hood. Conforme colocam Silva
e Custódio Filho (2013, p. 61), “os objetos de discurso, como entidades
construídas ao longo da interação discursiva, podem sofrer modifica-
ções” – que resultam no processo de recategorização. São, dessa for-
ma, duas diferentes avaliações que temos aqui sobre Robin Hood, em
que ora o personagem é recategorizado como herói, ora como bandido,
dadas as suas ações ao longo do enredo. Essas duas recategorizações
nos proporcionam fazer reflexões sociodiscursivas sobre o personagem
medieval perante diferentes concepções de justiça, como veremos mais
adiante.
A lenda de Robin Hood foi uma narrativa de caráter oral, poste-
riormente transmitida por meio da literatura, do teatro, do cinema, dos
filmes e da TV, através de animações, adaptações em séries, entre ou-
tros, permanecendo viva na cultura contemporânea. Conforme corro-
bora Massaud Moisés (1974), lenda é, pois, toda narrativa na qual um
fato histórico é aumentado e modificado pela imaginação popular e, na
maioria das vezes, a veracidade é perdida com o decorrer do tempo,
sobrevivendo apenas a versão folclórica dos acontecimentos. Sob essa
Santana & Fernando Oliveira Piedade

definição de lenda permeia a história de Robin Hood, que integra reali-


dade e ficção.
O enredo de “Robin Hood” conta a história de um herói mítico
medieval da Inglaterra, cidade de Nottingham, que roubava dos ricos
para dar aos pobres, durante o governo do Rei Ricardo Coração de Leão.
Tinha prática no manuseio de arco e flecha e vivia escondido na flores-
ta de Sherwood. Apreciava passear pela floresta e tinha muito apreço
também pela liberdade. Contava sempre com a ajuda de um grupo de
amigos que o auxiliava em suas empreitadas e, devido a isso, ficou co-
nhecido como o príncipe dos ladrões.
Segundo conta a lenda, Robin de Locksley era filho do Barão
Locksley, um cavaleiro das cruzadas que viajava com o rei Ricardo
de

Coração de Leão para catequizar os hereges. Numa dessas batalhas


Selma Pereira

fora feito prisioneiro, mas consegue fugir e voltar à Inglaterra. Todavia,


ao chegar, verifica que muitas mudanças aconteceram, pois o príncipe
John, que era o segundo herdeiro direto do trono da Inglaterra, assume
o reinado em virtude da ausência do rei Ricardo, mata o pai de Robin e
destrói seu castelo, e aumenta, ainda, o valor dos impostos cobrados da
354
355
população. Já não tendo mais onde morar, Robin foge para a floresta,

Constitucionalismo Contemporâneo
onde passa a viver com um grupo de homens que também não tinha
onde morar, e a partir de então torna-se líder do grupo numa batalha
contra o novo rei. Sua intenção era reaver seus bens e ajudar aos pobres,
todos submetidos aos desmandos do rei John, e por isso organizava as
emboscadas na floresta; entretanto, os produtos dos roubos eram dis-
tribuídos aos que tinham necessidades. Robin, agora chamado Robin
Hood devido a um apelido que recebera, ficou conhecido como um dos
maiores ladrões da história da Inglaterra.
Aclamado pelos pobres em virtude da generosidade de suas
ações, já que Robin posicionava-se e agia contra o governo para obter,
por “meios ilícitos”, os bens e os recursos que dava aos carentes, fora
indicado como exemplo de um ideal de justiça social. Tomando como

e suas formas contemporâneas


base a ideia de justiça social como igualdade de direitos e solidariedade
entre os indivíduos numa comunidade, Robin Hood procurava propor-
cionar a essas pessoas a justiça em relação à distribuição de bens ne-
cessários à sobrevivência, visto que recaía sobre o terceiro estado, isto
é, sobre os pobres, toda a carga tributária. Suas funções eram inúmeras,
tais como: alimentar, vestir e calçar os outros grupos sociais, isto é, o
primeiro e segundo estado representado respectivamente pela nobreza
e clero, e a eles próprios. Era um grupo não privilegiado que pagava im-
postos, alimentava os outros por meio de seus trabalhos e não tinham
poder político.
Conforme comentamos no parágrafo anterior, o herói medieval
era apresentado como um exemplo de justiça social, isto é, se conside-
rarmos essa concepção como promovedora de igualdade de direitos e
solidariedade entre os indivíduos numa comunidade. Outro aspecto re-
levante é que ele procurava proporcionar a essas pessoas a distribuição
de bens necessários à sobrevivência (mínimo existencial).

Robin Wood: análise de sua justiça numa


perspectiva diacrônica
Para melhor esclarecimento dessa temática, far-se-á um recorte
diacrônico sobre as definições e o conteúdo do vocábulo justiça. Vale
assinalar que a palavra justiça tem significado e conteúdo abrangentes,
sendo que, para sua definição mais objetiva e concreta, é importante
analisar seu conceito em cada momento histórico, bem como suas di-
versas modalidades existentes. São elas: i) justiça distributiva, que se
relaciona à repartição dos benefícios entre os membros da socieda-
de; ii) justiça comutativa, que governa as relações entre particulares;
iii) justiça legal, que disciplina o dever das partes para com o todo e
fundamenta a justiça distributiva; e, por fim, iv) justiça social, que se
relaciona à correção das distorções sociais (BITTAR, 2001).
Para esclarecimento da concepção de justiça na Idade Antiga, far-
-se-á um recorte sincrônico das ideias de Platão e Aristóteles. Aquele
apresenta uma ideia de justiça, a princípio, separando a justiça divina
da humana, em que, a primeira seria absoluta e universal, não atingida
pelos homens, e a segunda, ineficaz e relativa. Segundo Bittar (2001,
p. 56), “a primeira não desmerece a segunda, ao contrário, aquela é o
fundamento para a obediência desta”. Desse modo, a ordem prevista na
constituição deveria ser cumprida integralmente, ou seja, obedecida
como transcendência da justiça absoluta, sendo, então, as leis justifi-
cadas metafisicamente, devendo-lhes o cidadão obediência absoluta,
mesmo que fossem iníquas (BITTAR, 2001).
Santana & Fernando Oliveira Piedade

Já para Aristóteles, que destaca a concepção de justiça no capítulo


V da “Ética a Nicômaco” (1979), verifica-se a importância de ressaltar
sua análise sob diversas possibilidades de sentido. Bittar (2001, p. 59)
afirma que uma das distinções conceituais mais relevantes na perspec-
tiva de Aristóteles é a justiça universal e a particular.

A primeira, também chamada de total ou integral, é o gênero do


qual a segunda é a espécie. A justiça universal relaciona-se à lega-
lidade. Enquanto a justiça universal fixa seu conteúdo na legali-
dade, a justiça particular tem seu parâmetro na igualdade. Assim,
a justiça particular é menos abrangente do que a primeira, pois
tudo que é desigual é ilegal, mas nem tudo que é ilegal é desigual.
(BITTAR, 2001, p. 59)
de

Um aspecto interessante em Aristóteles (apud BITTAR, 2001, p. 62)


Selma Pereira

são as espécies de justiça que ele apresenta, indicando as subespécies da


justiça particular em justiça distributiva e a corretiva. “A primeira se ma-
nifesta nas distribuições das honras, de dinheiro ou das outras coisas que
são divididas entre aqueles que têm parte na constituição, enquanto a
segunda desempenha papel corretivo nas transações entre indivíduos”.
356
357
Para Ribas (2001, p. 3),

Constitucionalismo Contemporâneo
A justiça distributiva tem lugar numa relação público-privado
em que há relação de subordinação entre governantes e gover-
nados. Pois, deve ser ao mesmo tempo “intermediária, igual e
relativa”. Intermediária porque deve encontrar-se entre certas
coisas. Igual porque envolve duas coisas. E, finalmente, relativa,
ou seja, para certos destinatários. A justiça distributiva é aquela
que se estabelece nas relações de subordinação público-privado,
em que a divisão de ônus e benesses deve ser feita de acordo com
a proporcionalidade ensejada pelo critério de mérito escolhido
pela constituição de dada comunidade. Prosseguindo no texto,
Aristóteles passa à definição da justiça corretiva. Diferentemente
da justiça distributiva, que se estabelece em relações de subor-
dinação, a justiça corretiva é estabelecida entre indivíduos que

e suas formas contemporâneas


se encontram em condições de coordenação, ou seja, tem lugar
entre iguais.

A partir do conteúdo acima, pode-se entender que a aplicabili-


dade, seja da justiça distributiva ou da corretiva, era feita tão somente
àqueles que se encontravam em condições de igualdade. E essas moda-
lidades de justiça não poderiam ser aplicadas à época do herói medie-
val, visto que o conceito de justiça naquele momento histórico era um
fator justificador de benefícios e privilégios do primeiro e do segundo
estado, e de pobreza e miséria para o terceiro estado, onde a noção de
justiça baseava-se em Deus para justificar um período em que não havia
mobilidade social.
A concepção de justiça na Idade Média representa o momento
social e histórico da narrativa de Robin Hood. Sendo assim, faz-se
necessário ressaltar as ideias de Santo Agostinho sobre este assunto.
Para ele, a concepção de justiça está ligada ao pecado original. Ou seja,
uma condição humana real, sujeita aos vícios e às dificuldades tempo-
rais. O retorno à condição primeira de felicidade vivida pelo homem, se-
gundo Santo Agostinho, só é possível por intermédio da justiça. Em seu
estado inicial, o homem partilhava diretamente da justiça absoluta, isto
é, divina e imutável, e após o pecado original a justiça humana passou a
ser relativa, temporal e mutável (PESSOA, 2011).
Segundo Pessoa (2011, p. 4), “para Santo Agostinho, todos os ho-
mens são iguais porque todos são filhos de Deus. Mas eles serão trata-
dos desigualmente, de acordo com seu mérito, que consiste na obser-
vância da lei divina, da lei natural e, depois, da lei dos homens”.

Assim sendo, ato de justiça do homem será a submissão à lei de


Deus. A igualdade absoluta e, portanto, a justiça perfeita, só existe
na Cidade de Deus. A Cidade dos Homens tem que se submeter à
Cidade de Deus. Para o autor deve ser observada a hierarquia da
ordem natural criada por Deus: o corpo deve submeter-se à alma,
a alma a Deus, e as paixões à razão. Tomás de Aquino, por seu tur-
no, é outro grande nome da filosofia cristã na Idade Média, sendo
o maior expoente da escolástica. Entre suas obras mais relevan-
tes destacam-se a Suma Teológica e a Suma contra os Gentios. Em
relação à justiça, destaque-se que Tomás de Aquino também con-
sidera que o homem deve se aperfeiçoar para se aproximar cada
vez mais de Deus, seu fim último. O autor distingue a alteridade
e a igualdade como os dois elementos da justiça: o homem deve
realizar sua procura por Deus, com os outros, que, igualmente,
almejam a perfeição. (PESSOA, 2011, p. 6)

A ideia de que “todos os homens são iguais segundo o amor di-


vino” apresenta um grande óbice, ou seja, um problema e uma solução
num mesmo elemento, Deus, uma vez que este, ao mesmo tempo em
Santana & Fernando Oliveira Piedade

que amava a todos, os tratava como desiguais de acordo com seu mérito
(mérito no sentido de riqueza), visto que não havia mobilidade social
nessa época.
Dessa forma, pode-se afirmar que na Idade Média a concepção de
justiça era baseada na meritocracia, ensejando a desigualdade social, pois
“quem era pobre, morria pobre”, havendo a justificativa de que era essa a
vontade de Deus. Assim, sobre o terceiro estado recaíam todos os impos-
tos e a consequência era miséria e escravidão, pois muitos à época não
tinham condições mínimas de dignidade para sua existência social.
Segundo Cotrim (2012, p. 79), as principais obrigações impostas
aos pobres eram: 1) Corveia: trabalho compulsório. Ou seja, trabalho
gratuito nas terras do senhor durante três ou mais dias na semana;
de

2) Talha: parte da produção do servo deveria ser entregue ao nobre.


Selma Pereira

Tributo que era pago pelos vassalos para o custeio da defesa do feudo.
Consistia de parte da produção realizada na unidade agrícola (feudo).
Era a porcentagem da produção obtida do trabalho no manso servil que
era para o Senhor Feudal; 3) Banalidade: tributo cobrado pelo uso de
instrumentos ou bens do feudo, como o moinho, o forno, o celeiro, as
358
359
pontes; 4) Capitação: imposto pago por cada membro da família (por

Constitucionalismo Contemporâneo
cabeça); 5) Tostão de Pedro ou dízimo: 10% da produção do servo era
pago à Igreja, utilizado para a manutenção da capela local; 6) Censo:
tributo que os vilões (pessoas livres, vila) deviam pagar em dinheiro à
nobreza; 7) Taxa de Justiça: os servos e os vilões deviam pagar para
serem julgados no tribunal do nobre. Essa taxa o servo ou o vilão pa-
gavam ao senhor feudal para que se fizesse justiça dentro do feudo.
Quando o servo cometia uma infração, o senhor cobrava a taxa para
que o julgamento acontecesse em um tribunal presidido pelo senhor ou
seu representante; 8) Formariage: quando o nobre resolvia se casar,
todo servo era obrigado a pagar uma taxa para ajudar no casamento;
era também válida para quando um parente do nobre iria casar; 9) Mão
Morta: era o pagamento de uma taxa para permanecer no feudo da fa-

e suas formas contemporâneas


mília servil, em caso de falecimento do pai da família; 10) Anúduva: era
um imposto direto e consistia na obrigação de trabalhar na construção
e reparação de castelos, de casas, torres, muros e outras obras afins ne-
cessárias à defesa da terra, assim como nos paços ali edificados para a
estadia do rei ou dos alcaides. Estavam sujeitos a este tributo obrigató-
rio, que, com o correr do tempo, passou a poder ser resgatado por meio
de uma quantia em dinheiro, os peões e outros pequenos proprietários;
11) Fossadeira: de início, era a multa que tinham de pagar os que fal-
tavam ao fossado, todavia, com o passar do tempo, transformou-se num
tributo, em gêneros ou dinheiro, que remia a prestação desse dever mi-
litar; 12) Mãos-mortas: era o nome que recebiam os bens das igrejas e
comunidades religiosas que estavam sob proteção especial do monarca.
Os bispos e frades não podiam vendê-los, em todo caso solicitavam o
consentimento do conselho municipal. Se não fizessem assim, as digni-
dades eclesiásticas que tivessem procedido incorretamente poderiam
ser afastadas de seus ofícios e excomungadas. Além disso, quem adqui-
risse esses bens os perderia sem direito de reclamar contra quem os
vendeu, e em caso algum contra a Igreja.
Na Idade Média, a concepção de Estado torna-se ausente, eis que
surge a noção de feudos, capitaneados pelos senhores feudais, os quais
exigiam dos camponeses a melhor parte de suas colheitas, a título de
tributos, além da própria exigência feita pela Igreja. Essa época é mar-
cada por grandes injustiças tributárias, pois o que sobrava não era sufi-
ciente para o sustento da família, além de não existir mobilidade social.
Isso, fundamentado na conhecida expressão “quem nasce pobre, morre
pobre – Eis a vontade de Deus”. Em virtude disso, “a vida das pessoas
voltou-se a atender às vontades e necessidades dos senhores feudais.
O povo vivia miseravelmente. Quem não pagasse o tributo devido po-
dia ser preso. Novamente, qualquer semelhança é mera coincidência”
(COTRIM, 2012, p. 82).
Embora a aplicação de enormes tributos na Idade Média
represente uma falha registrada à época, pretende-se ressaltar que,
hodiernamente, não podemos negar o significado social do tributo.
Atualmente, apesar da alta carga tributária paga pelos brasileiros, por
exemplo, verifica-se que o problema não incide necessariamente na exi-
gência do excesso tributário, mas na má aplicação do valor recolhido,
pois é sabido que países como a Suécia, que apresenta uma carga tribu-
tária maior que a brasileira, não convive com tanta insatisfação social,
pois lá o recolhimento de tributos é totalmente revertido em prestações
de serviço à sociedade, sobretudo nas áreas da saúde e da educação.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a concepção de justiça ligada
à cobrança de tributos só é justificada quando estes são totalmente re-
Santana & Fernando Oliveira Piedade

vertidos em favor da sociedade, e não para suprir privilégios da Igreja e


da nobreza à época de Robin, e do Estado, na contemporaneidade.
Em síntese apertada, a noção de justiça na Idade Moderna apre-
senta-se nos escritos de Hobbes, Rousseau e Kant com mais ênfase, em-
bora se possa destacar a importância de outros autores à época.
De acordo com Pessoa (2011, p. 5), a noção de justiça, para
Hobbes, “é desprovida de sentido, caso não seja considerada à luz da
soberania. Prevalece, assim, o Estado, em relação ao Direito Natural.
Sendo assim, os nomes justo e injusto, quando atribuídos aos homens,
significam uma coisa, e quando atribuídos às ações, significam outra”.
Dessa forma, extrai-se que, quando atribuída aos homens, a noção de
justiça significa a conformidade ou não em relação aos costumes, ao
passo que, quando relativo às ações, significa a conformidade ou não
de

com a razão de ações individuais.


Selma Pereira

Radbruch (2004) comenta que, para Hobbes, os nomes que ca-


bem aos homens na primeira acepção seriam honesto e desonesto, en-
quanto o nome que cabe pela justiça de suas ações é de inocente, e o
cabível pela injustiça de suas ações é o de culpado.
360
361
Para Rousseau, a justiça não pode ser tratada como instrumento

Constitucionalismo Contemporâneo
pelo qual se garante a estabilidade das instituições, mas a prioridade
de um critério normativo independente, que permite analisar a justiça
de uma ordem social dada em cotejo com a justiça ideal. Assim, a “de-
sigualdade, sendo quase nula no estado natural, tira a própria força e
o próprio incremento do desenvolvimento das nossas faculdades e do
progresso do espírito humano, tornando-se, por fim, estável e legítima
para a instituição da propriedade e das leis” (PESSOA, 2011, p. 34).
Na obra “Doutrina do Direito” (1993), Kant questiona sobre o con-
ceito de direito, afirmando ser este um conjunto de condições através
do qual o livre-arbítrio pode harmonizar-se entre os homens, de acordo
com uma universalização da palavra liberdade. A concepção de justo em
Kant relaciona-se ao ideal de liberdade. Tem-se por justa a ação, quan-

e suas formas contemporâneas


do ela não ofende a liberdade do outro, segundo as leis universais, e
injusta, a ação que viola a liberdade de uma pessoa. Afirma ainda que a
moral exige, de cada um, que adote suas ações em conformidade com o
Direito.
Em relação à equidade, reconhece Kant (1993) que o direito es-
trito é uma injustiça. Contudo, ressalta que essa injustiça não pode ser
corrigida por meio do direito, por mais que se refira a uma questão de
direito, “porque a reclamação que se funda na equidade somente tem
força no tribunal da consciência, ao passo que a questão de direito é
discutida no tribunal civil” (KANT, 1993, p. 17).
Retomando a história da narrativa aqui tomada para estudo,
diante do ideal de justiça esboçada nos dois autores, pode-se inferir que
Robin Hood não agia segundo a concepção de justiça prevista nas lições
de Hobbes, pois este apresenta a justiça segundo o campo dos costu-
mes e das ações, ficando claro que, no plano dos costumes, Robin agia
desonestamente, e no plano das ações, com culpa, ou seja, segundo a
ideia de Hobbes, o “ladrão dos ricos” agia desonestamente. Se levado a
julgamento pelo direito na atualidade, segundo a concepção de Hobbes,
ele seria considerado culpado.
Em Kant (1993), vê-se o contrário, uma vez que ele garante ao
homem o exercício do livre-arbítrio. A concepção de justo em Kant
relaciona-se ao ideal de liberdade, de acordo com o qual toda ação é
justa, desde que não ofenda a liberdade do outro, ainda que as leis uni-
versais sejam injustas. Kant reconhece ainda que o direito provocava
grandes injustiças. Vale registrar que a época de Robin foi marcada
por profundas desigualdades sociais e injustiças, pois a Igreja podia
confiscar bens e terras sob as mais diversas justificativas, e toda inci-
dência tributária era obrigatória tão somente ao terceiro estado, sem
falar que os pobres não tinham quem os defendessem, pois o direito
não era um instrumento disponível aos pobres, salvo raríssimas exce-
ções, e para serem julgados nos tribunais do clero pagavam a chamada
“taxa da justiça”. Sendo assim, acreditamos que se Robin fosse julgado
segundo as ideias kantianas, ele não seria condenado, pois era o pró-
prio direito que violava a liberdade humana, logo, ao roubar comida
dos ricos para alimentar aos pobres, Robin não estaria violando a li-
berdade, mas garantindo a dignidade.

A história de Robin Hood e a justiça em Rawls


Na contemporaneidade, temos a concepção de justiça na visão de
Rawls (2000, p. 43), que afirma que “a justiça é a primeira virtude das
instituições sociais, assim como a verdade é a primeira virtude dos sis-
temas de pensamento”. Nessa perspectiva, Rawls (2000) pretendia ve-
Santana & Fernando Oliveira Piedade

rificar se as mesmas (verdades) são válidas e, em caso positivo, de que


modo pode-se tentar uma reconstrução racional a partir das relações
sociais entre verdade e justiça.
Segundo Pessoa (2011), Rawls não cuida de justiça pessoal, mas
de justiça política, social e institucional. O objeto da teoria de justiça
para esse autor compreende a estrutura básica da sociedade, isto é, o
conjunto das instituições encarregadas da distribuição de direitos e
deveres fundamentais e da divisão dos benefícios oriundos do esforço
coletivo. O que seria, então, uma sociedade justa? Rawls menciona em
suas lições que o objetivo de uma teoria é a busca pela verdade, en-
tão toda sociedade deve promover a realização da justiça. A justiça é
a virtude cardeal de toda e qualquer instituição política, social ou eco-
de

nômica. Pessoa (2011) diz que Rawls sustenta o conceito de justiça no


sentido de um equilíbrio apropriado entre exigências em contraste e as
Selma Pereira

concepções sobre a justiça, como conjunto de princípios correlatos que


identificam as condições relevantes para determinar esse equilíbrio,
pois, na busca de uma sociedade justa, ele concebe um procedimento
ideal formado por duas etapas.
362
363
Na primeira etapa, ocorre a “posição original”, estratégia neo-

Constitucionalismo Contemporâneo
contratualista que, associada ao “véu de ignorância” em que se
encontram os indivíduos, leva à escolha de dois princípios funda-
mentais: o da liberdade e o da distribuição, este último subdividi-
do nos princípios da diferença (toda e qualquer desigualdade so-
mente se justifica se beneficiar os menos afortunados) e da igual-
dade de oportunidades. Na segunda etapa, os indivíduos, embora
desconheçam ainda a sua posição econômica ou social, estão
cientes dos princípios de justiça e do modelo econômico-cultural
da sociedade que pretendem organizar através de normas cons-
titucionais. A posição original é uma ficção teórica que permite
operar com a ideia de justiça como equidade, na medida em que
os indivíduos hipotéticos que deliberarão sobre os princípios de
justiça encontram-se em pé de igualdade, igualdade que seria ini-
maginável se considerássemos os indivíduos enquanto inseridos

e suas formas contemporâneas


em posições reais. Além disso, o véu de ignorância funciona como
um expediente epistemológico que garante a imparcialidade do
procedimento. (RAWLS, 2000, p. 73)

Quanto ao conteúdo da concepção de justiça acordada na posição


original, esclarece que se trata de dois princípios fundamentais:

a) igual liberdade para todos (máxima liberdade); b) as desigual-


dades econômicas e sociais somente serão toleradas (princípio
da distribuição) se beneficiarem os menos favorecidos (princí-
pio da diferença) ou estiverem vinculadas a cargos e posições
de acesso universal (princípio das oportunidades equitativas).
(RAWLS, 2000, p. 75)

Dessa forma, depreende-se das lições de Rawls que, aqueles que


estivessem em posição de necessidade poderiam esperar a cooperação
voluntária daqueles em posição privilegiada, pois as produções das
desigualdades sociais e econômicas estariam ligadas às concepções
de igualdade e liberdade. Assim, pode-se afirmar que a concepção de
justiça procura conduzir a um posicionamento ante as diversas forças
que atuam na sociedade, e, da mesma forma, posicionar-se em relação
aos efeitos que produzem as injustiças. Nesse aspecto, percebe-se que a
teoria da justiça de Rawls propõe uma concepção de justiça alternativa
à dominante.
Acredita-se, assim, que a teoria de Rawls (2000) apresenta-se
como um divisor de águas no momento em que nos possibilite um novo
modo de pensar o conceito de justiça a partir das problemáticas sociais
existentes. Dessa forma, pensa-se que o herói medieval na contempora-
neidade representaria um retrato da cooperação de todos em favor de
benefícios para a coletividade, rumo a uma justiça que beneficie sobre-
tudo os menos favorecidos em direção à (re)construção de uma socie-
dade justa.
Outro ponto que merece atenção é a problemática do acesso à jus-
tiça, pois esse acesso era, como ainda é nos dias atuais, restrito a pou-
cos. E como enfatiza Moralles (2006, p. 75), “a barreira social de acesso
à Justiça é percebida sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade”.
Tendo em vista, então, que as pessoas das comunidades que Robin pres-
tava auxílio não tinham possibilidades de lutar por seus direitos e nem
tinham quem o fizesse por elas, o herói assumiu esse papel, adotando,
todavia, meios pessoais para tal.
Na modernidade, apesar de vários óbices de acesso à justiça, ve-
rificam-se grandes mudanças, haja vista o acesso à justiça ser hoje uma
garantia constitucional. Sendo assim, esse acesso deve apresentar um
sistema que seja igualmente acessível a todos, e depois que esse mesmo
sistema possa produzir resultados individualmente e socialmente jus-
Santana & Fernando Oliveira Piedade

tos. É de extrema relevância enfatizar que o acesso à justiça significa o


acesso a uma ordem jurídica justa e igualitária.
Retomando o contexto histórico da Idade Média, os nobres e go-
vernantes ingleses, detentores do poder aquisitivo, temiam os ataques
do bando comandado por Robin Hood, tendo em vista que, ao menor
sinal, poderiam ser assaltados, seus bens levados, e não tinham ou não
viam qualquer possibilidade de reaver esses bens. Recorriam à justiça,
mas era em vão, pois Robin nunca era pego. Mas, afinal, temos um herói
ou um vilão? Ou temos os dois em um?

Robin Hood e a contemporaneidade


Trazendo o caso de Robin Hood para a contemporaneidade, se-
de

gundo o ordenamento jurídico vigente, como condenar Robin Hood le-


Selma Pereira

vando em consideração a pseudoconcepção de justiça da época atual?


É possível condená-lo por vários crimes, como assalto à mão armada e
formação de quadrilha, já que manuseava o arco e a flecha durante as
emboscadas, e para isso, contava com um grupo liderado por ele, com o
qual arquitetava cada empreitada.
364
365
Mas um impasse nos acomete quando pensamos nos objetivos

Constitucionalismo Contemporâneo
que moviam o “herói medieval”, isto é, deveria ser aplicada a ele pena de
igual valor àquela que fosse aplicada a um indivíduo que tivesse como
motivação dos roubos lograr benefício próprio? Ferreira (2003) ressal-
ta que a culpabilidade é a medida da pena, e quanto maior a culpabili-
dade do indivíduo, maior será sua pena. Por exemplo, quando um crime
de maior potencial ofensivo em que o réu atinja a vítima pelas costas ou
surpreenda-a com arma impossibilitando sua defesa, como é o caso de
Robin Hood, sua pena deverá ser maior do que a de quem comete um
simples furto. Porém, enfatiza-se novamente as motivações de seus cri-
mes que eram configuradas por seu ideal de justiça social.
Robin agia no intuito de fazer justiça (com as próprias mãos) aos
pobres, que não possuíam renda para se manterem em condições míni-

e suas formas contemporâneas


mas de dignidade, enquanto os ricos (nobres e governantes) a tinham
em abundância, sem contar que grande parte desse dinheiro era prove-
niente dos impostos arrecadados no reino onde viviam. Esse critério foi
um dos que motivou o “herói fora da lei”, uma vez que os ricos possuíam
muito mais do que aquilo que realmente necessitavam, enquanto os po-
bres nada tinham. Rousseau (2000, p. 141) comenta que,

[...] se vemos um punhado de poderosos e de ricos no auge da


grandeza e da fortuna, ao passo que a multidão rasteja na obscu-
ridade e na miséria, é porque os primeiros só estimam as coisas
de que gozam na medida em que os outros delas carecem e, sem
mudar de estado, cessariam de ser felizes se o povo deixasse de
ser miserável.

Com base nesse preceito, é possível ver como justificável algumas


atitudes de Robin, uma vez que os nobres e governantes detinham o po-
der e assim o pretendiam continuar, mantendo a classe baixa em estado
de submissão e subordinação, sem nenhuma possibilidade de ascensão.
E quanto ao princípio da culpabilidade, que é um dos princípios
basilares que norteiam a lei penal e dá ao Estado o suporte para exercer
seu poder punitivo, como deveria ser aplicado nesta situação específica
de Robin, em que este não detinha para si os produtos dos roubos aos
quais liderava, mas os entregava aos mais necessitados, que viviam em
condições de extrema pobreza, pagavam impostos exorbitantes tendo
em vista suas baixas condições financeiras?
Nessa perspectiva, acredita-se que se Estado optasse em punir
Robin Hood, estaria se eximindo de suas funções, representaria uma
arbitrariedade, pois, se pode o Estado punir qualquer cidadão severa-
mente mesmo não garantindo o previsto constitucionalmente, ou seja,
condições mínimas de sobrevivência, quando isso é sua responsabilida-
de, poderia também Robin Hood roubar dos ricos para dar aos pobres,
haja vista a situação de injustiça, pobreza, marginalização, diferenças
sociais e preconceito.

Considerações finais
Quem é mais criminoso, o Estado, em sua omissão, ou Robin,
em sua ação? Que fique claro, só se pode falar em política meritocrá-
tica se houver efetivamente condições de igualdade para os cidadãos.
Igualdade, não em seu aspecto teórico, mas, na prática, pois, segundo as
atuais condições, direitos iguais ocasionam desigualdades.
É possivelmente cabível considerar que o herói medieval – fora
da lei – lutasse contra a desigualdade social e a má distribuição de ren-
da, e a favor do bem comum, embora, para lutar por sua causa, por seu
Santana & Fernando Oliveira Piedade

trabalho social, tenha optado pelos meios ilícitos, por não haver alter-
nativa possível para ajudar as comunidades carentes de seu país. Quais
são, então, seus verdadeiros crimes? Como deveria ser seu julgamento?
Deveria ele ser julgado, de fato, culpado, ou deveria ser extinta a sua
punibilidade? E qual a medida de sua culpa, caso seja julgado culpado?
Até que ponto Robin deve ser julgado como um criminoso, da-
das às motivações que o levavam a praticar tais ações? Deixaremos as
perguntas para que o leitor possa refletir, discutir e conceber sobre a
conduta de Robin Hood, tomando por base as diversas concepções de
justiças aqui apresentadas, sobretudo a ideia de justiça que predomina-
va na Idade Média.

Referências
de
Selma Pereira

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Referenciação: teoria e prática. São Paulo: Cortez, 2013.
Constitucionalismo
Contemporâneo
e suas formas contemporâneas

ORGANIZADORES

CLOVIS GORCZEVSKI

Pós-Doutor pela Universidad de La Laguna em 2011 e Universidad de Sevilla em


2007. Doutor em Direito pela Universidad de Burgos. Especialista em Ciências Polí-
ticas pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Graduado em Ciências Jurídicas
e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente
é professor da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. Sua atuação na pesqui-
sa e ensino tem ênfase principalmente nos seguintes temas: direitos humanos,
cidadania, direitos fundamentais, constitucionalismo contemporâneo e políticas
públicas. Possui larga experiência em gestão acadêmica, tendo sido chefe de de-
partamento, coordenador de curso de graduação e especialização e pró-diretor.

MÔNIA C. HENNIG LEAL

Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado


da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, onde leciona as disciplinas de Ju-
risdição Constitucional e de Controle Jurisdicional de Políticas Públicas, respecti-
vamente. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional aberta”,
vinculado e financiado pelo CNPq. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
Pós-Doutora em Direito pela Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, Alemanha.
Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, com
pesquisa realizada junto à Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, na Alemanha.
A linha de pesquisa é, nos dizeres de Niklas Luhmann, uma fórmula
da unidade. Com base em um núcleo de ideias centrais, uma determinada
estrutura de um sistema (no caso o educacional) é capaz de se ligar a di-
versas outras, formatando uma certa unidade. Significa dizer que em torno
do conteúdo de constitucionalismo contemporâneo é possível que orbitem
diversas temáticas – todas elas, contudo, unificadas em torno da linha.
E em que consiste este núcleo do Constitucionalismo Contemporâneo?
Muito embora ainda hoje exista discussão doutrinária, trata-se da noção
de Constituição principiológica, ética, dirigente, aberta à comunidade e aos
tratados de direitos humanos, dirigente e voltada à realização dos direitos
fundamentais.
A variada gama de artigos aqui apresentados está enlaçada entre si
por meio do constitucionalismo contemporâneo, o que permite realizar
uma importante atualização do debate de quem vive a Constituição.

Janriê Rodrigues Reck


Doutor em Direito e Procurador Federal

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