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CANUDOS:

Samba dos sertões

comédia histórica de

Atilio Bari

Premiada no Concurso de Dramaturgia


da Secretaria de Estado da Cultura -
1997
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SINOPSE

A ação se passa no barracão da escola de samba Unidos do Baixadão, atulhado


de restos de alegorias e fantasias usados em desfiles de anos anteriores.

Os personagens se reunem para discutir o samba-enredo do próximo carnaval,


cujo tema é Canudos. Há uma preocupação com o aspecto histórico do enredo,
pois no carnaval anterior o samba-enredo da escola, apesar de ter sido
considerado o mais bonito, foi desclassificado porque continha graves erros
históricos.

Orientados pelo Professor, cada um recebeu a incumbencia de ler e pesquisar


sobre o tema. Entretanto, ninguém cumpriu totalmente a tarefa - leram alguma
coisinha, mas logo cansaram e desistiram.

A reunião começa a desmanchar, quando Tininha sugere que eles encenem os


acontecimentos de Canudos. Há uma resistencia inicial, que acaba sendo
vencida pela insistencia de Tininha, que conta com o apoio do Professor e de
Oliveira.

Assim, eles começam a encenar, e percebem que existem diferentes versões


para os fatos: enquanto o Professor mostra a visão que é relatada nos livros de
História, Benício objeta com o ponto de vista do jagunço e com as lendas e
narrativas populares.

Juntando essas diferentes visões, muitas vezes conflitantes, eles vão


apresentando cenas e compondo os personagens de Canudos, na ordem
cronológica dos acontecimentos. Discutem e interpretam Antonio Conselheiro,
a origem e a organização da comunidade, os conflitos com os latifundiários e
com a Igreja, a ação dos políticos e as batalhas com as quatro expedições
militares, até o seu massacre final.

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OS PERSONAGENS

1) BENÍCIO

Velho, natural de Uauá, vizinha de Canudos. Foi vaqueiro, plantador e


trabalhou na construção do Açude de Cocorobó, que alagou o lugar onde
Antonio Conselheiro instalara a sua comunidade. Quieto e arredio por natureza.
Conhece de cor todas as histórias, cantigas e relatos do povo sobre Canudos,
Conselheiro e mais uma porção de gente que habitava aqueles sertões. Veio
para o sul para 'tentar a vida'.

Benício é uma projeção para os tempos atuais de Manuel Benício, autor de


cordel que esteve presente em Canudos e escreveu O Rei dos Jagunços (1899,
Tipografia Jornal do Comércio)

2) JACARÉ

Carioca, 30 anos, negro, ex-milico, atualmente é cambista de jogo-de-bicho.


Alegre, gozador.

3) OLIVEIRA

Filho de portugueses, já fez de tudo na vida. Juntou umas economias e comprou


um taxi. Politizado, participa das reuniões do Sindicato. É sempre contra o
governo. Simpatiza com as causas populares (sem-terra, aposentados, etc.)

4) DELZUÍTA

Uns 30 anos, aparencia sofrida. Trabalhou como bóia-fria, lavadeira,


empregada diarista. Hoje é costureira por conta própria. Sempre que pode,
ajuda nos trabalhos e nas obras da igreja do bairro. Apesar da sua vida difícil,
está sempre alegre.

5) PROFESSOR
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Moço, paulista, vive com a mãe numa casa de fundos. Ninguém sabe o seu
nome - todos o chamam de Professor. Leciona História do Brasil numa escola
pública do bairro. É do tipo 'certinho', que vê sempre uma boa intenção em
tudo. Estudioso, bem informado, tímido, organizado. Fala um português todo
correto, e se irrita com o linguajar vulgar dos demais.

6) TININHA

Bem jovem, bonita. Vive fazendo testes para comerciais de TV. Quer ser atriz e
modelo. Frequenta oficinas culturais e já participou de grupos de teatro amador.
Enquanto batalha sua 'grande chance', faz trabalhos temporários como
demonstradora em supermercados, pesquisas de rua, etc.

Todos os personagens são integrantes do Grêmio Recreativo Escola de Samba


Unidos do Baixadão, e representarão, num segundo plano, as personalidades da
Guerra de Canudos.

Assim, sempre que a rubrica mencionar apenas o nome do personagem,


estamos no plano da reunião no barracão da escola de samba, e sempre que a
rubrica mencionar o nome do personagem seguido do nome de uma
personalidade da Guerra de Canudos, estamos no plano da encenação que
o grupo está fazendo sobre o assunto.

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PALCO VAZIO. UM FIO DE LUZ PENDE DO TETO, ILUMINANDO AS


TRALHAS AMONTOADAS NO GALPÃO DE ENSAIO DA ESCOLA DE
SAMBA. AO LONGE, O SOM DE UMA BATUCADA, QUE VAI
AUMENTANDO.

ENTRAM EM CENA BENÍCIO, JACARÉ, DELZUÍTA E TININHA,


SAMBANDO E CANTANDO:

Ô-ô, Ô-ô,
A Unidos do Baixadão
Ô-ô, Ô-ô,
Canta a liberdade da nação!

Com o apoio de Gonçalves Dias


O poeta da abolição,
Isabel, a grande princesa,
Decretou o fim da escravidão
Ô-ô-ô...

Viva! Viva! Viva!


Viva a Lei do Ventre Livre!
Viva! Viva! Viva!
Em liberdade agora o negro vive!

Ô-ô, ô-ô,
E o negro então se libertou!
Ô-ô, ô-ô,
E o negro então se libertou!

ENQUANTO ELES ESTÃO SAMBANDO, ENTRAM OLIVEIRA E O


PROFESSOR, TRAZENDO ALGUNS LIVROS, CADERNOS E PASTAS.
SENTAM-SE A UM CANTO E OBSERVAM.

JACARÉ - Cara, mas esse samba é demais!

TININHA - Só é, viu...

DELZUÍTA -Sabe que até hoje eu fico arrepiada! Cada vez que eu lembro
aquele povo todo cantando o nosso samba... Gente! Fico com os
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olhos cheios d'água! "Ô-ô, ô-ô, e o negro então se


libertou"...

JACARÉ - Quer saber? Eu acho que foi uma tremenda injustiça, tá legal? O
nosso samba era o melhor, o tema tava bem desenvolvido, a
harmonia, tudo!

DELZUÍTA-É mesmo, viu... Aqueles babacas da comissão julgadora! O povo


todo cantando o nosso samba, e eles tiveram coragem de
desclassificar a gente!

TININHA - Nessas coisas sempre tem marmelada!

PROFES - É, mas o samba estava errado...

JACARÉ - Aquí, ó! Tava errado... e daí? O Maneco da Cuíca é um tremendo


de um compositor! Se fosse um professorzinho qualquer o samba
ia ficar todo certinho, mas ia ser uma droga. Vai me dizer que o
Maneco da Cuíca agora tem que estudar pra fazer samba?

OLIVEIRA- Tem! Tem que estudar, sim senhor, pra não sair falando besteira!
Nós já discutimos isso, Jacaré!

JACARÉ - Ah, sei lá, viu, Oliveira... O povão não percebeu nada, a
Comissão Julgadora é que botou areia...

OLIVEIRA- Claro! Tinha que botar areia mesmo! Gonçalves Dias, o poeta da
abolição! Gonçalves Dias nunca escreveu uma linha sobre a
abolição!

PROFES - Indianista. Gonçalves Dias era indianista, defendia os índios na


poesia:

"Não chore, meu filho,


Que a vida
É luta renhida,
Viver é lutar.

O combate
Aos fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
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Só faz exaltar".

Canção do Tamoio...

DELZUITA -Legal, hein?

PROFES - O poeta da abolição era Castro Alves... O Navio Negreiro...

"Senhor Deus dos desgraçados,


Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura, se é verdade,
Tanto horror perante os céus.
Ó mar! por que não apagas
Com a esponja das tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! Noite! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!"

TININHA - Nossa! Estraçalhou, hein? O Professor hoje tá demais!

PROFES - Muito obrigado...

JACARÉ - É! Então faz o samba, quero ver como é que fica! Isto aquí é
uma escola, mas de samba, tá legal? O que interessa aquí é o
povão!

OLIVEIRA -Porisso mesmo, Jacaré! Tem que fazer as coisas direito! E tem
mais: "Viva a Lei do Ventre Livre, em liberdade agora o negro
vive". O que acabou de vez com a escravidão, o que a Princesa
Isabel assinou, foi a Lei Áurea! Eu quase morrí de vergonha...

JACARÉ - Ah, bom, mas aí sabe o que é? É a rima! O "ventre livre" rima
com "o negro vive"...

OLIVEIRA -Ora, o Mané da Cuíca que arranjasse outra rima! Sabe o que é o
carnaval, Jacaré? É uma manifestação da cultura popular!
Cultura popular, Jacaré. Ou você acha que só porque a gente é
pobre tem que ser ignorante também? Só porque é preto tem que
passar a vida batendo tambor? Índio só tem que tocar apito?
Baiano só tem que rachar côco? Ô, Jacaré, vê se evolui, cara...
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JACARÉ - Tá bom, tá certo, eu sei... do jeito que você fala, eu entendo...


mas é que eu não me conformo! Um samba tão bonito...

TININHA - Ô seu Benício: o senhor falou com o Mané da Cuíca pra ele vir
aquí hoje?

BENÍCIO - Falei, falei sim, com o Mané da Cuíca, falei sim...

TININHA - E ele vem?

BENÍCIO - Não, não, num vem não, ele disse que num vem não...

TININHA - O senhor perguntou por quê?

BENÍCIO - Perguntei, sim! Eu perguntei pro Mané da Cuíca: "por que você
num vem"?

TININHA - E ele? O que que ele falou?

BENÍCIO - Ele falou assim: "porque não". Eu acho que ele tava meio
vexado...

DELZUÍTA -Também! Todo mundo caiu de pau em cima dele! Coitado...

PROFES - Olha, gente, isso não pode. A culpa não é só dele. Se bem que eu
avisei que o samba estava errado...

OLIVEIRA -Bom, não interessa, tá? Depois a gente fala com ele. Agora é
bola pra frente. O enredo do ano que vem vai ser Antonio
Conselheiro, e a gente combinou de pesquisar, estudar, ler sobre
o assunto. O professor até deu uns livros aí. Todo mundo leu?
(SILÊNCIO) Todo mundo leu?

(NINGUÉM RESPONDE)

OLIVEIRA -Tá vendo? Ninguém leu, não é? Tá vendo, Jacaré? Tá vendo


como é que é? Todo mundo se compromete, mas ninguém tá
nem aí.

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JACARÉ - Olha, essa semana pra mim foi broca, viu? O movimento tá
fraco, a gente tem que sair atrás da clientela, senão... Com esse
negócio de bingo, sorteio pela televisão, o jogo do bicho num tá
mais com aquela bola toda, não...

DELZUÍTA -Ah, eu tô de serviço até aquí, ó. Vocês vão me desculpar, mas


eu tenho que aproveitar. Sabe que agora ninguém mais vai em
costureira. Todo mundo só compra roupa feita. O pessoal não
tem o que comer, mas compra roupa no Shopping. Depois, na
hora de apertar, trocar zíper, fazer barra, aí sim, lembram da
gente... Eu estou cheia de conserto pra fazer...

TININHA - Olha, eu ia ler, viu, ia mesmo... mas é que eu quero fazer um


book pra levar numas agencias, sabe? Porque aqueles testes que
eu fiz, as agencias dizem que não dá pra me pegar porque eu não
tenho book. Eu preciso fazer! Vale a pena porque se eu pego um
comercial legal dá a maior grana!

OLIVEIRA -E daí? Que que tem a ver o book com o livro?

TININHA - Tem a ver que o book é caro, né! Então pra fazer o book eu tive
que fazer um bico. Eu peguei um bico de demonstradora de
bicicleta ergométrica, no supermercado, pra levantar uma grana.

JACARÉ - Bicicleta o quê?

TININHA - Ergométrica, boçal. Aquelas bicicletas de ginástica, que a gente


pedala pedala pedala e ela não anda. Eu fico lá, pedalando o dia
todo... cansa, né?

JACARÉ - Mas pelo menos vais ficar com um pernão!

TININHA - Ah, não enche o saco!

JACARÉ - Pernuda!

OLIVEIRA -É, tá vendo, Professor? Todo mundo tem uma desculpa. E o seu
Benício, num vai falar nada? Leu o livro, seu Benício?

BENÍCIO - Ah, eu? Eu num lí não. Num lí o livro, não.

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OLIVEIRA - E por que, seu Benício?

BENÍCIO - É que eu num sei ler não.

OLIVEIRA - Ué, mas outro dia eu ví o senhor escrevendo umas coisas, aí!

BENÍCIO - Ah, escrever eu escrevo, sim. Ler é que eu num sei. Mas o meu
nome eu escrevo, direitinho direitinho...

OLIVEIRA -Então, gente, é o seguinte: acabou a reunião, tá legal? Já que


ninguém quer saber de nada, ninguém tá interessado, então
tcháu, tá? Agora, se no samba-enredo sair dizendo que o Antonio
Conselheiro era amante da Xica da Silva, ou que Canudos é uma
tribo de índios, vai ser outro vexame.

DELZUÍTA-Ah, ah, ah, ah... o Antonio Conselheiro amante da Xica da Silva!


Ah, ah,ah...

OLIVEIRA -Ah-ah-ah, é? Tá bom! Então me diga, dona Delzuíta: quem foi o


Antonio Conselheiro?

DELZUÍTA -Não, sabe o que é? É que amante da Xica da Silva eu sei que
não foi, porque ele não apareceu na novela, né? Só se foi amante
da outra aí, a... Dona Beja,... a Imperatriz Leopoldina, sei lá...

BENÍCIO - Lava a boca!

DELZUÍTA -O quê?

BENÍCIO - Lava a boca, menina, quando falar no Santinho. Nunca que num
houve naqueles sertão perdido de Deus um homem que nem que o
Santinho Antonio Conselheiro!

"Do céu veio uma luz


Que Jesus Cristo mandou:
Santo Antonio Aparecido
Dos castigos nos livrou.
Quem ouvir e não aprender
Quem souber e não ensinar
No dia do Juízo
Sua alma vai penar".
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TININHA - Espera aí! Gente! Eu tive uma idéia! A gente pode fazer o
seguinte: O Professor fez aí uma pesquisa disso tudo, não fez?
Você, Oliveira, eu sei que andou lendo umas coisas, também.
E tem o seu Benício aí, que sabe de ouvir falar um monte de
histórias sobre o tal do Conselheiro e esses Canudos, não tem?

JACARÉ - Ô Tininha, fala logo. O que é que você está querendo fazer?

TININHA - Tô querendo fazer o seguinte (é uma idéia, né?): a gente junta o


que o seu Benício sabe, mais o que o Professor pesquisou, mais
o que o Oliveira leu, e aí a gente encena tudo!

DELZUITA -A gente o quê?

TININHA - Encena! Faz um teatro! Eu tenho experiência nisso. Eu fiz um


curso de teatro lá com a turma da Sociedade Amigos do bairro.
Foi super legal! Você lembra, né, Jacaré?

JACARÉ - Lembro, sim. Eu até comecei a fazer, também, mas depois parei.
É que tinha um cara meio delicado, sabe como é, começou a dar
em cima de mim. Caí fora, meu...

PROFES - Olha, eu gostei da idéia. Acho a arte dramática um recurso muito


válido para...

DELZUÍTA -Ah, eu topo! Uma vez eu fiz uma peça lá na igreja, era sobre
drogas, aids, essas coisas... Foi super legal!

JACARÉ - Prostituta...

DELZUÍTA -O quê?

JACARÉ - Prostituta. Você fazia uma prostituta, não é?

DELZUÍTA (MEIO SEM GRAÇA) - É... você viu, é?...

JACARÉ - Você tem jeito para a coisa... quer dizer, trabalhou bem... Um dia
eu ainda vou te ver na capa da Amiga...

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OLIVEIRA -Bom, se todo mundo topa, eu também topo... Como é que a


gente começa?

TININHA - Bom, a gente pode começar com... com... com...

PROFES - Eu acho que devíamos começar com o sertanejo... pra gente poder
entender um pouco daquele povo que habitava a região onde
surgiu o povoado de Canudos...

TININHA - Isso! O sertanejo! Quem é que sabe alguma coisa do sertanejo?

PROFES - Eu fiz umas anotações aquí...

O PROFESSOR PEGA UM CADERNO E FOLHEIA, PROCURANDO


ANOTAÇÕES. BENÍCIO CAMINHA LENTAMENTE ATÉ A FRENTE DO
PALCO, PROCURANDO ALGO NOS BOLSOS.

PROFES (LENDO) - "O sertanejo é antes de tudo, um forte. A sua aparência,


entretanto, ao primeiro lance de vista, mostra o contrário. É
desgracioso, desengonçado, torto. Tem o aspecto que é típico
dos fracos."

BENÍCIO ANDA A ESMO, DE UM LADO PARA O OUTRO, SEMPRE


REVIRANDO OS BOLSOS, DESATENTO. OS DEMAIS, AOS POUCOS,
COMEÇAM A VER NELE AS PALAVRAS DO PROFESSOR.

PROFES - "O andar sem firmeza, meio gingante, meio sinuoso, nunca traça
uma trajetória reta e firme. Parece sempre abatido, com um
aspecto de humildade deprimente. E quando pára, vai logo se
encostando... (BENÍCIO SE ENCOSTA NUMA MESA OU
NUMA PAREDE. TININHA SE APROXIMA DELE E O
OBSERVA)... ou caindo de cócoras, ficando um longo tempo
nessa posição... É o homem permanentemente fatigado. Reflete
uma preguiça invencível, na fala, no gesto, no andar, numa
tendência constante à imobilidade e à quietude..."

BENÍCIO (QUE ATENTARA PARA AS ÚLTIMAS PALAVRAS DO


PROFESSOR) - Ói, professor: é meio que assim... mas num é
sempre, não... quem nunca viu num sabe, quando num de repente
uma rês se alevanta... (FIXA OS OLHOS EM TININHA, QUE
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RECUA ALGUNS PASSOS) ... e envereda pela caatinga


garranchenta... num tem nada que impede o vaqueiro de encalçar
o garrote desgarrado... (SAI ATRÁS DE TININHA - ELA FOGE)
Ê-ô! Êêêêê-ôôôôôô... Crava as rosetas na ilharga da montaria, e
vai que vai! (PERSEGUE TININHA, PASSANDO PELO MEIO
DOS DEMAIS, PULANDO POR CIMA DE CADEIRAS,
MESAS, ETC.) Ê-ô! Ê-ô! É pedra, é coivara, é moita de
espinho, barranca de ribeirão! Por onde passa o boi passa o
vaqueiro com o seu cavalo! (BENÍCIO SOBE NUMA
CADEIRA) Ê-ô! Ê-ô! (TODOS SE ASSUSTAM E SE AJUNTAM
A UM CANTO) E se acontece que num movimento mais
abruscado a boiada inteira estoura, lá vai o vaqueiro! (BENÍCIO
CERCA OS DEMAIS, QUE CAMINHAM EM GRUPO, DE UM
LADO PARA O OUTRO) Rédeas soltas, agarrado nas crinas do
cavalo, estirado sobre o lombilho, ferrão em riste! Arremessa!
Arrodeia a boiada! Êta carreira doida! Cerca daquí! Comanda
de lá! Ê-ô! Ê-ô! Amansa, boi! Acalma, boiada... Até a hora que
o boiadão afrouxa... e vai parando, todo abombado... e aí é só
conduzir de volta... e pacificar os bichos com uma toada mansa...

Ê-cou mansão...
Ê-cou... ê cão...
Ê-cou mansão...
Ê-cou... ê cão...

TODOS SE ACALMAM E VOLTAM AOS SEUS LUGARES. BENÍCIO


VOLTA A ACOCORAR-SE A UM CANTO, DISPLICENTE.

TININHA - Gente! Que genial! Teatro puro! "Seu" Benício é um artista do


caramba!

TODOS APLAUDEM. "SEU" BENÍCIO FICA MEIO SEM GRAÇA.

BENÍCIO - Num fiz nada de mais, não. Só mostrei como é a coisa...

DELZUITA - Mas esse tal de Antonio Conselheiro aí, era vaqueiro?

OLIVEIRA - Não, ele não era. Mas pelo que eu lí, o pai dele era. E tinha uns
problemas de família, lá. A família dele, os Maciel vivia em
guerra com os Araújo.
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TININHA - Ôba! Conflitos de família, com tiro e tudo! Vamos fazer! Vamos
fazer! Jacaré: você e a Delzuita fazem a família dos Araújo, e eu
e o Oliveira fazemos os Maciel! Todo mundo de arma na mão!

JACARÉ - Serve pistola? Ah, ah, ah, ah... Onde é que tem arma aquí, gente?

TININHA - Pega cabo de vassoura, sei lá. Não sabe brincar, não, Jacaré?

COLOCAM-SE, DE UM LADO, JACARÉ E DELZUÍTA, E DE OUTRO


OLIVEIRA E TININHA, TODOS COM AS "ARMAS" NAS MÃOS.

JACARÉ/ARAÚJO (ENCARANDO OLIVEIRA / MACIEL) - Me disseram


que foi gente dos Maciel que andou pegando umas cria daquí da
nossa fazenda...

OLIVEIRA (PARA TININHA) - Ô, Tininha... o que é que eu faço? Fico aquí?


Falo alguma coisa...?

TININHA - Ai, Oliveira! Claro que você fala alguma coisa! O tal do Araujo aí
chega e te faz uma baita acusação! O que é que você faz?

OLIVEIRA - Quebro os dentes desse desgraçado!

TININHA - Não, não é assim, Oliveira. Fala alguma coisa. Se coloca no lugar
do personagem! Reclama, se defende, ameaça, sei lá. Cria um
clima, pô! Emoção! Drama! Tensão!

OLIVEIRA - Tá... (OLIVEIRA SE CONCENTRA E ASSUME O PAPEL DE


MACIEL) Nunca que ninguém sobreviveu a acusação sem
fundamento feita a um Maciel. E não vai ser um Araújo qualquer
que vai quebrar a tradição! (PARA TININHA) E aí?

TININHA - Jóia. Vamos em frente.

JACARÉ E DELZUÍTA DÃO UNS PASSOS À FRENTE, COMO QUE PARA


ENFRENTAR OS OUTROS DOIS, QUE SE COLOCAM EM POSIÇÃO DE
ATIRAR. CADA GRUPO MEDE O OUTRO, DEPOIS SE RETIRA, UM
GRUPO PARA CADA LADO.

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JACARÉ/ARAÚJO - (TRAMANDO COM A MULHER) - Vamo fazê o


seguinte: nós tamo armado, eles também tão. Vamo contratá
uma jagunçada pra dá conta do Recado. (PARA O PROFESSOR)
Ô jagunçada! Ô jagunçada!

PROFES - O quê? Eu?

JACARÉ - É, você mesmo, Professor. Você faz a jagunçada, tá?

PROFES - Não, não, eu num tenho muita experiência... eu prefiro só ficar


orientando, porque...

TININHA - Sem essa, né professor? A gente combinou de encenar, certo?


Precisa de ator, não precisa?

JACARÉ - É... num vai mijar pra trás, agora.

PROFES - Está bem, está bem. O que é que eu faço?

JACARÉ/ARAÚJO (PARA O PROFESSOR) - Vem cá, ô jagunçada! Vamo


cercá a casa desses Maciel lazarento!

PROFES/JAGUNÇO - Perfeitamente, senhor. Às suas ordens...

JACARÉ - Pera lá, pera lá! "Perfeitamente, senhor?" "Às suas ordens,
senhor"? Pô, professor! Você é um jagunço! Tá parecendo
camareira de hotel de luxo! "Sim, senhor, perfeitamente, senhor,
às suas ordens, senhor"...

PROFES - Está bem, está bem, é que sabe, eu... é o meu jeito...

JACARÉ - Vamos de novo. Capricha, hein, Professor! (ASSUME A POSE


DE ARAUJO) - Vem cá, ô jagunçada! Vamo cercá a casa desses
Maciel fedorento!

PROFES - Não era lazarento?

JACARÉ/ARAÚJO - Lazarento e fedorento!

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O PROFESSOR PEGA UMA 'ARMA', FAZ UM TREMENDO ESFORÇO,


ESTUFA O PEITO, FAZ CARA FEIA, PREPARA O JEITO DE FALAR.

PROFES/JAGUNÇO - Vamo!

JACARÉ, DELZUITA E O PROFESSOR CERCAM OLIVEIRA E TININHA.

JACARÉ/ARAÚJO (GRITANDO) - É mió os cês se entregá! A casa tá


cercada de jagunço!

PROFES/JAGUNÇO - É!

JACARÉ/ARAÚJO - Vamo discutí as nossa diferença na Delegacia!

PROFES/JAGUNÇO - É!

OLIVEIRA/MACIEL (PARA TININHA) - Num tem jeito. É mió a gente


se entregar, mesmo.

PROFES/JAGUNÇO - É!

OLIVEIRA/MACIEL E TININHA/MACIEL DEPÕEM AS ARMAS E SE


APROXIMAM DOS ARAÚJO, SE ENTREGANDO. JACARÉ/ARAÚJO
FAZ UM SINAL PARA O JAGUNÇO, QUE ATIRA EM OLIVEIRA: ELE
MORRE.

PROFES/JAGUNÇO - Pá!

TININHA/MACIEL PEGA UMA DAS ARMAS DO CHÃO E ATIRA NO


PROFES/JAGUNÇO E EM JACARÉ/ARAUJO: AMBOS MORREM.

TININHA/MACIEL - Pá! Pá!

DELZUÍTA/ARAÚJO ATIRA EM TININHA/MACIEL, ELA CAI AO CHÃO,


FERIDA.

DELZUÍTA/ARAÚJO - Pá! Morre, Maciel do cão!

TININHA/MACIEL - Morro satisfeito... porque tenho a chance de matar um


Araújo!

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TININHA/MACIEL ATIRA EM DELZUÍTA/ARAÚJO. AMBAS MORREM.

TININHA/MACIEL - Pá!

BENÍCIO, QUE A TUDO ASSISTIA, OLHA LONGAMENTE AQUELES


'CADÁVERES' TODOS, ESPALHADOS PELO CHÃO.

BENÍCIO - Óia aquí, gente. Achei tudo muito bão. Até me deu uns arrepio.
E a raiva que eu fiquei dos Araujo, sô. Quase que eu alevanto e
dou uns traquitana neles. Mas aí eu ví que era o Jacaré e a
Delzuíta... coisa engraçada... era eles mas num era eles...

TININHA - Foi legal! Foi super legal!

DELZUITA -Parecia filme de bangue-bangue!

OLIVEIRA - O Professor está até suado!

PROFES - É... é engraçado, porque no começo é difícil, né... mas depois


conforme a cena vai acontecendo, parece que uma coisa puxa a
outra... a ação de um provoca naturalmente uma reação no outro...

BENÍCIO - Só que tem uma coisa: se dependesse de ocês a história


terminava aquí, porque pelo jeito num tinha sobrado ninguém...

PROFES - É verdade, mas da família dos Maciel e dos Araujo, morreu


quase todo mundo, mesmo.

BENÍCIO - Óia, pelo que eu sempre que ouví falar, era tanta emboscada e
tanta escaramuça que mais morria gente do que nascia. Mas o
pai do Antonio Conselheiro nunca que participou dessas briga de
familia, não...

PROFES - Bom, na verdade não se sabe ao certo...

BENÍCIO - Era homem de caráter e de grande capacidade. Fazia negócio de


gado com as fazendaiada toda da região, e mesmo num sabendo
ler nem escrever contava e media que só ele. Até que abriu um
comércio em Quixeramobim. Foi lá que nasceu o Conselheiro.

PROFES - É verdade...
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TININHA - Legal! Vamos fazer essa cena!

OLIVEIRA - Eu faço o pai do Conselheiro. (COLOCA-SE ATRÁS DE UMA


MESA, COMO SE FOSSE UM BALCÃO. DELZUÍTA
INTERPRETA UMA FREGUESA)

JACARÉ - Êta sangue português! Falou em comércio ele já sai na frente.


Não é padaria não, viu, Oliveira?

DELZUÍTA / FREGUESA - Bom dia! O senhor tem iogurte?

TODOS EXPLODEM NUMA SONORA GARGALHADA.

DELZUITA-Ué... o que que foi...?

JACARÉ - Iogurte? Ela pensa que está num Shopping! A madame não vai
querer também um potinho de champignon? Ou então marron-
glacê, chantilly...?

DELZUÍTA -Ah, Jacaré, num enche o saco! É faz-de-conta!

TININHA - Não, Delzuíta... agora você pisou na bola... Iogurte, lá no meio


do sertão? É Quixeramobim, Delzuíta. Qui-xe-ra-mo-bim,
que-ri-da. O que é que devia ter lá pra vender...?

BENÍCIO - Farinha... prego... sal...

DELZUÍTA / FREGUESA - Ai, tá bom, vai! (PARA OLIVEIRA) O senhor me


vê aí um pacotinho de Sal Cisne? É verdade que o senhor é o pai
do Antonio Conselheiro?

OLIVEIRA / PAI DO CONSELHEIRO (FALANDO MECÂNICAMENTE E


SEM PAUSAS) Sim eu sou o pai de Antonio Vicente Mendes
Maciel que nasceu em 1828 ou 1830 não se sabe ao certo e que
mais tarde seria chamado de Antonio Conselheiro ele sempre foi
um menino muito tímido e retraído a mãe dele morreu quando
ele tinha seis anos ele era muito maltratado pela madrasta e o
pai dele o levou a um professor - quer dizer, eu o levei a um
professor...

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TININHA - Ficou meio esquisito esse bife, não?...

JACARÉ - O quê?

TININHA - Essa fala dele, ficou meio esquisita, não?...

JACARÉ - Só ficou, né...

OLIVEIRA -Mas tava tudo decoradinho, vocês viram, né...

TININHA - Decoradinho demais, Oliveira.

PROFES - É... Ficou meio... artificial, não sei... Mas não tem problema...
Vamos em frente. Quem faz o professor do Conselheiro?

BENÍCIO - Uai! Ocê num é professor? Então faz aí o professor do Santinho!

PROFES - Mas eu já fiz o jagunço!

TININHA - E daí? Ator que é ator tem que fazer de tudo!

JACARÉ - Vai lá! Mostra a sua versatilidade!

PROFES - Está bem, vai... (ASSUME UM AR DE PROFESSOR SEVERO


E FALA PARA JACARÉ) Vamos começar, menino!

JACARÉ SE ASSUSTA, MAS ASSUME O PAPEL DO CONSELHEIRO.

PROFES - Escreva aí o seu nome, menino, redondo e legível!

JACARÉ / CONSELHEIRO - An...to...nio... Vi...cen...te... Men...des... Ma-


ci-el...

PROFES- Agora leia aí a sua redação de francês.

JACARÉ / CONSELHEIRO - Jé... suí... un... enfant...

PROFES - E agora o trabalho de latim.

JACARÉ / CONSELHEIRO - Igui...no...ran...tia... legis... ne...mi...nem...


ex...cu...sat... Nossa! Barbarizei nessa, hein?
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TININHA - Pô, Jacaré, não desmonta o personagem!

JACARÉ - Ah, chega desse papo de escola...

DELZUÍTA - (FOLHEANDO O CADERNO DO PROFESSOR) -


Exatamente! Deve ter sido isso mesmo que o tal do Conselheiro
falou, porque ele abandonou as aulas e voltou lá pra vendinha do
pai...

JACARÉ/CONSELHEIRO - A bença, pai...

OLIVEIRA / PAI DO CONSELHEIRO (BÊBADO E COM UM BARALHO


NAS MÃOS) Deus te abençoe, meu filho...

OLIVEIRA/PAI DO CONSELHEIRO AGARRA BENÍCIO PELO BRAÇO E


O ARRASTA PARA O BALCÃO.

OLIVEIRA/PAI DO CONSELHEIRO - Mais uma! Vamos jogar mais uma!


Vamos lá, ô companheiro... (PEGA UMA GARRAFA E TOMA
NO GARGALO. DISTRIBUI AS CARTAS, RESMUNGA) Escuta
aquí: eu perdí essa partida também, foi?

BENÍCIO - O jogo é água-benta do Satanáz!

OLIVEIRA / PAI DO CONSELHEIRO - Eu acho que eu perdí as dezesseis


últimas partidas, não é mesmo? Meu dinheiro tá acabando...

BENÍCIO - Baralho e bebida é atraso de vida!

OLIVEIRA / PAI DO CONSELHEIRO - Ô moleque... vê se toma conta aí do


negócio porque eu tenho outros assuntos pra cuidar... (PARA
BENÍCIO) Vamo lá! Vamo lá pro fundo pra gente conversar
mais sossegado... Ôpa! Já ia esquecendo o baralho... e a
garrafa!...

OLIVEIRA E BENÍCIO VÃO PARA UM CANTO, DEIXANDO JACARÉ /


CONSELHEIRO SÓZINHO NO BALCÃO. ÊSTE PEGA ALGUNS PAPÉIS E
EXAMINA.

JACARÉ / CONSELHEIRO - Quantas dívidas!


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BENÍCIO (PARA O PROFESSOR) - Ô, Professor... Nunca que eu num ouví


dizer dessas coisa: que o pai do Santinho era bebum, e nem que
o Santinho tomava conta de venda... Prá mim ele já tinha nascido
meio santo, falando latino e tudo... Santo já num nasce falando
latino...?

PROFES - O Conselheiro estudou um pouco, seu Benício. Depois, ele ficou


tomando conta daquele comércio um bocado de tempo. Mas não
servia para o negócio, não. O pai bebia e jogava, mas era bom
comerciante. Ele não. Não tinha tino para comércio. Quando o
pai morreu... (OLIVEIRA / PAI DO CONSELHEIRO "MORRE";
BENÍCIO FAZ UM SINAL DA CRUZ) ...ele ficou sózinho com a
venda, e aí a situação piorou.

JACARÉ / CONSELHEIRO JOGA UMA PORÇÃO DE PAPÉIS PARA O AR


E PÕE AS MÃOS NA CABEÇA.

TININHA - Escuta aquí, Professor: não teve mulher na vida desse Antonio
Conselheiro, não? Já tô achando esse cara meio esquisito...

BENÍCIO - Lava a boca...!

PROFES - Ah, teve, sim, e não foi uma só!

TININHA (TODA INTERESSADA) - É mesmo? Ele era mulherengo, é?

PROFES - Foram duas...

TININHA - Duas? Só duas? A vida inteira, só duas mulheres?

JACARÉ - Ô Tininha, você pensa que o cara tinha o meu charme, é?

PROFES (FOLHEANDO O SEU CADERNO) - Deixa eu ver... ah, está aquí:


Brasilina Laurentina de Lima!

DELZUÍTA -Ah, eu faço ela. Com licença, que agora eu sou a mulher do
Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro.

PROFES - Eles se casaram quando o Conselheiro já tinha 27 anos...

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JACARÉ - Ôpa! Vai ter cena de lua de mel...?

DELZUÍTA FAZ UMA CARETA DE DESPREZO.

OLIVEIRA - 27 anos? Espera lá: há dois minutos atrás ele era moleque,
agora já está com 27 anos? A gente pulou um pedação, não
pulou? O que é que ele fez nesses anos todos?

JACARÉ - Montou uma equipe de beisebol, organizou o rally de Canudos


e praticava bungee-jump, aquele que você pula lá de cima
amarrado num elástico e fica balançando, assim, ó...

DELZUÍTA -Ai, Credo...

JACARÉ - O que é que você queria que ele fizesse, tomando conta de uma
venda em Quixeramobim? Até parece que o cara vivia em
Miami, em Nova Iorque...

PROFES - É, parece que ele não fez nada de mais, mesmo... ficou lá,
cuidando do negócio do pai...

DELZUÍTA -Ai, deixa esse papo pra lá. O que interessa é que ele casou com
a Brasilina. (ENLAÇA O BRAÇO COM BENÍCIO, EM POSE
DE CASAMENTO)

BENÍCIO - Que isso, menina? O teu marido é aquele alí... (APONTA PARA
O JACARÉ)

DELZUÍTA -Ah, seu Benício... eu não quero ser mulher do Conselheiro do


Jacaré, não. Ele está muito saidinho pro meu gosto. Bem que o
senhor podia interpretar o Conselheiro pra ser meu marido...

BENÍCIO - Estrepretar o quê?

DELZUÍTA -Fazer o Conselheiro, seu Benício! Ah, faz o Conselheiro, vai!


Faz! Faz!

BENÍCIO - Um pecador como eu?

DELZUÍTA -Não tem nada a ver, seu Benício! O Jacaré não fez? Então... e o
Jacaré não é santo! É teatro, seu Benício! Ah, faz, vai...
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TODOS INSISTEM COM BENÍCIO: Vamos lá, seu Benício! Faz aí, vai! Ô,
seu Benício!

BENÍCIO - Tá certo! Vá lá que seja...

TODOS (APLAUDINDO) - Aí, seu Benício! Boa!

DELZUÍTA -Então, vamos. Diz aí, Professor. Quando ele tinha 27 anos,
casou com a Brasilina aquí. E aí? O que aconteceu?

PROFES - Bem, ele estava endividado até as orelhas...

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Ô... como é que é o nome dela, mesmo?

DELZUÍTA -Brasilina...

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Ô Brasilina, minha muié, nós vamos ter que


passar a casa nos cobres pra pagar as dívida da venda...

DELZUÍTA / BRASILINA - Chi! É mesmo, é? Bom, pelo menos resolve o


problema, né...

PROFES - É... mas não resolveu...

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Ô Brasilina, minha muié, a coisa tá feia...


Acho que nós vamos ter que fechar o negócio...

DELZUÍTA / BRASILINA - Chi! É mesmo, é? Bom, pelo menos agora


resolve de vez o problema, né?

PROFES - É, mas ainda não resolveu...

DELZUÍTA -Ô, Professor... Você quer acabar com a Brasilina, hein?

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Ô Brasilina, minha muié, já vendemo a casa e


já fechamo o comércio, mas ainda sobrou dívida pra mais de
metro...

DELZUÍTA / BRASILINA - Chi! É mesmo, é? E agora?

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BENÍCIO / CONSELHEIRO - Vamo embora pra outro lugar... Eu tenho


algum estudo, acho que eu posso dar umas aula em alguma
fazenda por aí...

DELZUÍTA SEPARA-SE DE BENÍCIO, E JUNTO COM TODOS OS


DEMAIS, FORMAM UMA SALA DE AULAS, SENTANDO-SE NO CHÃO
OU EM BANQUINHOS. BENÍCIO / CONSELHEIRO FICA DE COSTAS,
COMO SE ESCREVESSE NUM QUADRO NEGRO. OS ALUNOS FAZEM
UMA GRANDE BAGUNÇA (PRINCIPALMENTE O PROFESSOR).

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Isto é um B...

PROFES - É! B de babaca! Ah, ah, ah, ah, ah....

A CLASSE TODA CAI NA GARGALHADA.

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Isto é um É...

PROFES - É de énergúmeno... Ah, ah, ah, ah, ah....

TODOS RIEM. O PROFESSOR JOGA BOLINHAS DE PAPEL E OUTRAS


COISAS EM BENÍCIO. O PROFESSOR ESTÁ FORA DE SI, FAZENDO A
MAIOR BAGUNÇA.

BENÍCIO - Professor! Professor!

O PROFESSOR, HISTÉRICO, BATE OS PÉS NO CHÃO, BATUCA, JOGA


COISAS, RÍ.

BENÍCIO (GRITA) - Professor!

O PROFESSOR PÁRA REPENTINAMENTE. VÊ QUE TODOS ESTÃO


OLHANDO PARA ELE, ASSUSTADOS, E FICA ENVERGONHADO.

BENÍCIO - Professor! Muito me admira! Justamente o senhor!

PROFES - Nossa, gente! Não sei o que me deu... sabe o que é... eu... eu...
passo o dia todo aguentando aqueles monstrinhos, aquelas pestes
delinquentes, aqueles terroristas baderneiros... aqueles... aqueles...
Não sei o que me aconteceu!...

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DELZUITA-Eu, hein!

OLIVEIRA -Isso é paranóia, gente! É stress! Eu sei o que é a gente ficar


assim! Tem dia que eu pego o meu carro às seis da manhã e
rodo atrás de passageiro até de noite, aguentando trânsito, calor,
barulheira, gente mal-educada! As vezes eu tenho vontade de
sair dando trombada em todos os domingueiros que encontrar
pela frente! Cá-brum! Cá-brum! Esse bando de barbeiros! E sair
dando tiro em tudo quanto é semáforo! E passar por cima de
tudo quanto é motoqueiro folgado, ou então pegar uma
metralhadora e... ra-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá...

DELZUÍTA-Chega! Pára, né, Oliveira... Que coisa! Parece que ficou louco!
Todo mundo tem problema, ué... Pensa que é fácil ficar aturando
as freguesas, também? Ai, ficou muito curto! Ai, ficou apertado!
Ai, num sei o quê! Ai, num sei o que lá! A gente passa a noite
costurando, remendando... (IMITANDO AS FREGUESAS) Não tá
pronto, ainda? Ai, não ficou como eu queria! Nossa, que caro!...

TININHA - E eu, que fico pedalando aquela m... porcaria de bicicleta


ergométrica o dia todo naquela b... porcaria de supermercado...
Gente, no primeiro dia meu pai foi me buscar com o caminhão,
porque eu não conseguia andar... não conseguia firmar as
pernas... A mulherada chega, quer saber como funciona,
pergunta um monte de coisa idiota, quer saber o preço... depois
vai embora. Não compra. Não compra! E os carinhas, então ?
Ficam lá fazendo piadinha imbecil... Pô, eu só quero ganhar o
meu dinheiro, caramba! Será que ninguém entende...?

JACARÉ - É... pra mim também não é fácil, não... Comigo a coisa é mais na
lábia, sabe como é? Papear os caras pra fazer um joguinho aquí,
uma fézinha alí... Parece fácil! Mas eu ando quilometros por dia,
cara. Quilometros! E tenho que ficar ouvindo as histórias, sabe
como é? O sonho que o cara teve, o número da placa do carro
que atropelou um cachorro, essas baboseiras todas! Tem hora
que eu fico... aí vem os caras na televisão... disque num-sei-o-
quê e ganha um carrão, disque o cacete e ganhe não sei o que
lá... e eu camelando atrás da velharada pra jogar no bicho! É,
porque agora é só velho que joga no bicho, né?...

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DELZUITA- Xiiiii!... Parece que o único que não tem grilos aquí é o seu
Benício...

BENÍCIO - Menina, quem passou o que eu passei... Ocê num sabe o que é
ocê estar encocorado na porta do mocambo e ver, um dia, um
bando de ave tresvoando no céu... é o prenúncio da tragédia...
É quando vai chegando dezembro... dia 12... dia 12 de dezembro
a gente arruma seis pedrinha de sal no relento, de noite... uma do
ladinho da outra... (ABAIXA-SE E FAZ O GESTO DE DISPOR
AS PEDRINHAS - OS OUTROS O SEGUEM) Cada pedrinha é
um dos mes que vem em seguida: janeiro, fevereiro... No dia
seguinte, 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, ocê corre lá pra vê
as pedrinha: se elas desmancharam é porque vai tê chuva. Se tão
inteira, é porque vem sêca. Aí ocê óia... e elas tão inteira...

TININHA - Ai, meu Deus!

BENÍCIO - Tudo começa a mudá... tudo começa a secá... aquela vaquinha,


no mais das veiz a única do currá, que ocê viu nascer, agora ocê
vê morrê... alí, na sua frente, de pouquinho em pouquinho...
Quem num viu num sabe... ela raspa o chão com o casco pra
vê se acha uma terrinha úmida... no começo acha, depois num
acha mais... o mugido vira choroso... muúúúú'... múúúúú... a
gente pega a enxada e cava, cava, cava... pra encontrá um
pouquinho de água aquí... um pouquinho alí... que já já seca...
então derruba o mandacarú, talha tudo em pedacinho e mastiga
o sumo... depois as folha do juazeiro, depois as raíz dos
umbuzeiro.. até que chega uma hora que num tem mais nada... é
só gado morto, folha seca e filho magro...

Aí... um dia... passa por alí o primêro bando de retirante...


(TININHA SE LEVANTA E COMEÇA A ANDAR PELO
PALCO. UM A UM, OS DEMAIS A SEGUEM) No outro dia,
outro bando... e outro... e outro... então, uma hora ocê também se
amatula num bando desse... (BENÍCIO SE JUNTA AO GRUPO)
e lá se vai... comendo nuvem de poeira... arrastando as ossadas
pelo caminho...

"Bom Jesus,
Olhai por nós,
Jesus Cristo
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Escutai a nossa voz.

Bom Jesus,
Abençoai-nos,
Jesus Cristo
Escutai a nossa voz..."

O PROFESSOR DESTACA-SE DO GRUPO E LEVANTA OS BRAÇOS


PARA O CÉU. AOS POUCOS, TODOS SE AJOELHAM, OLHANDO PARA
ELE.

PROFES - "Os dias do homem se desvanecem como a sombra; ele seca


como as ervas. Mas vós, Senhor, permaneceis eternamente.
Quantos que hoje pisam as sepulturas dos seus pais e com
poucos dias as suas serão pisadas pelos seus filhos... Essa
verdade não precisa de prova. A natureza humana se horroriza
dessa verdade, que se realiza tanto para o rei coroado e vestido
de púrpuras e diadema, como para o mais humilde pobre abatido
na indigência. Que é a vida do homem neste mundo? Não é mais
que mera peregrinação, uma peregrinação para a eternidade...
Não há no homem firmeza, nem estabilidade que por muito
tempo dure..."

LONGO E RESPEITOSO SILENCIO. AOS POUCOS, AS PESSOAS


VÃO SE LEVANTANDO, MEDITATIVAS.

BENÍCIO - Professor, se bem me recordo, essas palavra é do Santinho


Conselheiro...

PROFES - Sim... é um trecho de um sermão dele...

DELZUÍTA -O que aconteceu com a Brasilina? E as aulas?

PROFES - Não deu certo... nada deu certo... Nessa época, lá por 1850, a
seca foi terrível. Oliveira, fala da pesquisa que você fez...

OLIVEIRA (PEGANDO UM CADERNO) - É, eu dei uma olhada lá na


Biblioteca... Mais de 50.000 pessoas morreram, no Ceará.
Não havia mais gado nem plantações, nem nada. Quem não
morria de seca morria de varíola e de cólera. O pessoal comia
até erva daninha. Muitos tentavam vir para o Sul ou ir para a
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Amazônia, pra trabalhar nos seringais. Mas a maioria não


conseguia chegar...

PROFES - O sertão esvaziou. Não tinha mais gente para o Conselheiro dar
aulas. Ele ainda tentou trabalhar em outras coisas: auxiliar num
cartório, ajudante no comércio... até conseguiu juntar algum
patrimoniozinho, mas as dívidas ele não conseguia pagar. Um
dia, apareceram lá um oficial de justiça e um soldado.

JACARÉ - Ôpa! Soldado é comigo mesmo. Deixa que eu desempenho


essa...

TININHA - Eu sou o Oficial de Justiça!

JACARÉ E TININHA PERFILAM-SE, LADO A LADO, E DÃO ALGUNS


PASSOS PELO PALCO. DE REPENTE, ESTACAM. TININHA / OFICIAL
DE JUSTIÇA DESENROLA UM PAPEL E LÊ.

TININHA / OFICIAL DE JUSTIÇA - Por ordem da Justiça do Estado do


Ceará, estão penhorados os bens do Sr. Antonio Vicente Mendes
Maciel, a saber: duas éguas, um novilho, um bezerro, um relógio
de prata, um correntinha de ouro, um colete, um chapéu e um
paletó. Os referidos bens irão a leilão para quitação de dívidas no
montante de 168 contos de réis. Cumpra-se!

DELZUÍTA-Xiiii! Ficou no miserê! E a Brasilina?

PROFES - Foi-se embora com o soldado.

JACARÉ / SOLDADO, COM AR VITORIOSO, ESTENDE O BRAÇO PARA


DELZUÍTA / BRASILINA. ESTA, MEIO A CONTRAGOSTO,
ACEITA A OFERTA.

DELZUÍTA / BRASILINA - Tu é daonde?

JACARÉ / SOLDADO - Sobral. Tô aquí só pra cumprir esse mandado de


penhora. Cumé? Tu vem comigo?

DELZUÍTA / BRASILINA - É... vou... Fazer o quê aquí?... Quem sabe em


Sobral eu tenha mais sorte...

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OS DOIS CAMINHAM ALGUNS PASSOS, DE BRAÇOS DADOS.


PROFES - É... ela foi... mas sorte não teve, não. Dias depois o soldado a
largou, e ela, pra sobreviver, virou...

DELZUÍTA - Virou o quê?...

PROFES - Prostituta...

JACARÉ EXPLODE NUMA GARGALHADA INCONTROLÁVEL.


DELZUÍTA FICA FURIOSA.

JACARÉ - De novo? Tu só encarna prostituta, mina!

DELZUITA-Ah, sai pra lá! Que mancada, hein, Professor?

BENÍCIO - Óia, o que eu sempre que ouví é que o sucedido foi diferente.
Diz que a tar de Brasilina, a muié dele, não se enquadrava com a
mãe do Santinho Conselheiro...

OLIVEIRA- A mãe do Conselheiro? E quem era a mãe do Conselheiro? Até


agora ninguém falou dela!

PROFES - É porque não existem muitas informações, mesmo. Parece que


ela se chamava Maria Joaquina. Mas o Conselheiro foi filho
bastardo.

BENÍCIO - Lava a boca, Professor!

PROFES - Mas parece que é verdade, seu Benício. O pais dele não eram
casados quando ele nasceu. Só se casaram quando a mãe, a
Maria Joaquina, estava morrendo.

BENÍCIO - Discurpe, mas discreio. O que se diz é que a mãe e a muié vivia
em turra. A mãe dizia que a muié num prestava e tinha rabicho
com outros homem. Nesse então se deu uma tragédia.

TININHA - Ai, eu adoro cenas trágicas! (ASSUME O PAPEL DA MÃE E


DIRIGE-SE A BENÍCIO) Filho! Tua muié num presta! Ouve o
que eu te digo!

BENÍCIO / CONSELHEIRO SAI DE LADO.


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TININHA / MÃE - Filho! Tua muié num presta!

BENÍCIO / CONSELHEIRO FOGE PARA OUTRO LADO.

TININHA / MÃE - Filho! Tua muié num presta! Quer uma prova? Faz o
seguinte: ocê sai de casa hoje, diz que só vai vortá amanhã. Mas
vorta de noitinha. Cê vai ver que tem outro homem na cama.

BENÍCIO / CONSELHEIRO OLHA FIXAMENTE PARA TININHA / MÃE,


DEPOIS BALANÇA A CABEÇA, CONCORDANDO. VAI PARA UM
CANTO DO PALCO, PEGA UMA 'ARMA' E ESPERA, NERVOSO.

TININHA / MÃE VESTE UMA CALÇA E UM PALETÓ DE HOMEM E


COLOCA UMA CADEIRA NO CENTRO DO PALCO.

BENÍCIO / CONSELHEIRO DÁ ALGUNS PASSOS EM DIREÇÃO À


CADEIRA. TININHA / MÃE O VÊ, SOBE NA CADEIRA E PULA PARA O
OUTRO LADO, COMO SE SALTASSE UMA JANELA.

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Miseráve! Então é verdade! Um homem


entrando na minha casa!

BENÍCIO / CONSELHEIRO SE APROXIMA DA CADEIRA, E A RODEIA,


COMO QUE ENTRANDO NA CASA. CHEGA PERTO DE TININHA /
HOMEM E APONTA A ARMA.

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Miseráve!

DESCARREGA A ARMA EM TININHA / HOMEM, QUE CAI, MORTO.


BENÍCIO / CONSELHEIRO VIRA O CORPO E SE ASSUSTA.

BENÍCIO / CONSELHEIRO - Mãe? Mãe? Porque ocê tá com essas roupa,


mãe? Mãe! (ABRAÇA O CORPO E GRITA, DESESPERADO)
Mãe! Mãe!

DELZUITA-Gente! Que tragédia mais trágica! Ele matou a mãe pensando


que era um homem?

JACARÉ - Bem feito pra ela. Se vestiu de homem pra ferrar com a nora!

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BENÍCIO - É o que se diz. O povo todo conta esse causo... E diz que foi aí
que a muié se engraçou com um sordado que veio investigar o
acontecido...

PROFES - O povo conta, seu Benício. Mas nos livros diz que a mãe do
Conselheiro morreu quando ele tinha só seis anos... Bom, mas de
qualquer forma, o Conselheiro, que tinha ficado sózinho e sem
nada, sumiu no mundo.

TININHA - E a outra mulher? Ele não teve duas?

BENÍCIO - Joana Imaginária! Nome luminoso...

PROFES - Artesã...

BENÍCIO - Fazedora de santo... de madeira, de barro...

PROFES - Uma mulher mística...

TININHA - Joana Imaginária!... Eu quero fazer esse papel!

DELZUITA- Cuidado... ela não vira prostituta, depois?

PROFES - Não vai dar, Tininha, sabe por quê? É que não se sabe quase
nada dela, ou nada mesmo. Só se sabe que ficaram juntos
muito pouco tempo.

BENÍCIO - Só o bastante pra ela fazer o seu melhor santo: o Santinho


Conselheiro... De barro ela fazia santo, de barro foi feito o
homem, do homem ela fez o santo... Foi com a Joana Imaginária
que o Conselheiro começou a aparecer naquele home sofrido...

OLIVEIRA -Dizem até que ele teve filhos, mas não se sabe nem os nomes,
nem que fim levaram...

TININHA - Gente, que falta de informação! Vocês pesquisaram direito?

PROFES - O fato é que o nosso Antonio Vicente Mendes Maciel sumiu no


mundo, por vários anos. Ninguém sabe direito por onde andou.

TININHA - Pra variar!


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PROFES - Só se vai ter notícias dele em... (FOLHEIA O CADERNO)


... 1874, num jornal do Sergipe, chamado 'O Rabudo'...

JACARÉ - O quê?

PROFES - É... 'O Rabudo'... acho que é no sentido de diabo, sei lá...

OLIVEIRA PEGA UM JORNAL E LÊ.

OLIVEIRA -"Um certo Antonio dos Mares tem andado pelos sertões,
procedente do Ceará, trajando camisolão azul, com cabelos
longos que se misturam à barba descuidada que desce até a
cintura, e pés descalços. Está organizando com alguns adeptos,
que o chamam de Santo Antonio Aparecido, a restauração da
igreja da Rainha dos Anjos, em Itapicuru de Cima, e a
construção de um cemitério. De pouco falar, sabe-se apenas
que já vagou pelo Ceará, Bahia e Sergipe, tendo passado por
Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho, Cumbe, Mucambo,
Maçacará, Pombal, Monte Santo, Tucano e outras vilas."

BENÍCIO PEGA UM MARTELO E PREGOS E COMEÇA A PREGAR


NUMA MADEIRA.

BENÍCIO - Sei de ver por mim mesmo, que fui lá conferir: em tudo lugar
que passava, o Santinho deixava obra: um cemitério de muro
caído que ele reconstruía, uma igreja consertada, uma capelinha
erguida. Quase tudo tá lá, ainda... Se num fosse ele, acho que
num tinha mais nada, porque o governo já naquele tempo sempre
só diz que num tem dinheiro pra essas coisa...

AO TERMINAR DE BATER OS PREGOS, BENÍCIO TERÁ FEITO UMA


CRUZ DE MADEIRA. VESTE UMA TÚNICA VELHA.

PROFES - A multidão começou a seguir o Conselheiro... (DELZUITA SE


AJOELHA DIANTE DE BENÍCIO, QUE SEGURA A CRUZ)
Oravam com ele... ouviam suas pregações...

BENÍCIO / CONSELHEIRO - “Em 1896 há de rebanhos mil correr do mar


para o sertão, e então sertão vai virar e o mar vai virar sertão.

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Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto. Em 1898 haverá


muitos chapéus e poucas cabeças. Em 1899 ficarão as águas
em sangue. Há de chover uma chuva de estrelas e aí será o fim
do mundo. Em 1900 as luzes se apagarão. Deus disse no
Evangelho: é preciso que o rebanho se reúna, porque há um só
pastor e um só rebanho...”

ENQUANTO BENÍCIO / CONSELHEIRO FALA, OS DEMAIS VÃO SE


AJOELHANDO, UM A UM.

JACARÉ/FIEL (FALANDO PARA OS DEMAIS) - É o fim do mundo que bate


à porta!

DELZUITA/FIEL - A gente precisa abandonar os nossos haveres! Santo


Antonio Aparecido diz que possuir coisa é vaidade!

PROFES/FIEL - A vida do homem deve ser um purgatório duro; só assim ele


se limpa dos pecados e das tentações.

TININHA/FIEL - O juízo final se aproxima!

OLIVEIRA LEVANTA-SE SOLENEMENTE, VESTE UM PARAMENTO


QUALQUER, TOMA UMA PENA E ESCREVE. TODOS LEVANTAM-SE
PARA OUVÍ-LO, MENOS BENÍCIO.
OLIVEIRA / ARCEBISPO - "Tendo chegado ao nosso conhecimento que
pelas freguesias deste arcebispado anda um indivíduo de nome
Antonio Conselheiro, ou Antonio Aparecido, pregando ao povo,
que se reúne para ouví-lo, perturbando as consciências e
enfraquecendo não pouco a autoridade dos párocos desses
lugares, faço saber aos nossos paroquianos que lhes proibimos
absolutamente de ouvir tal pregação, visto que compete apenas
aos ministros da igreja a santa missão de doutrinar os povos."

BENÍCIO / CONSELHEIRO ABRE OS BRAÇOS. TODOS SE AJOELHAM


NOVAMENTE, VOLTADOS PARA ELE. OLIVEIRA / ARCEBISPO SE
ENFURECE.

BENÍCIO / CONSELHEIRO - “A vida que se preza deve ser vivida em


penitência. Hoje vou subir ao Monte Santo, em tres quilometros
de orações. Os que querem purificação virão comigo.”
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COMEÇAM A ANDAR DE JOELHOS PELO PALCO, BATENDO


ÀS COSTAS COM AS MÃOS, COMO EM PENITÊNCIA, E ORANDO.
BENÍCIO / CONSELHEIRO OS LIDERA. PÁRAM DE FRENTE PARA
A PLATÉIA.

BENÍCIO / CONSELHEIRO ESTACA, CABEÇA BAIXA, HUMILDE,


ARFANDO DE CANSAÇO. AOS POUCOS ERGUE A CABEÇA E
FIXA O OLHAR NUM PONTO ELEVADO.

OS DEMAIS ESTREMECEM, ASSOMBRADOS.

DELZUÍTA/FIEL -Óia lá, no altar! A imagem da Virgem Santíssima!

JACARÉ/FIEL - Tá chorando!

TININHA/FIEL - É sangue! Ela tá chorando sangue!

PROFES/FIEL - Lágrimas de sangue! É milagre! É milagre!

TODOS - Deus seja louvado! É milagre! Milagre! Louvado seja Nosso


Senhor Jesus Cristo! Milagre! Milagre!

LEVANTAM-SE E GRITAM PARA TODOS OS LADOS, COMO QUE A


COMUNICAR AO POVO O ACONTECIDO.

TODOS - É milagre! Milagre do Conselheiro! A Virgem santíssima chorou!


Milagre! Chorou sangue! Lágrimas de sangue! Milagre! A
Virgem chorou sangue! Milagre!

DELZUITA-Nossa, gente... sabe que agora quem se arrepiou fui eu?

JACARÉ - É porque você estava perto de mim, garota...

DELZUITA-Ah, Jacaré, fala a verdade: não te deu uma coisa assim... sei lá,
um nó na garganta...?

JACARÉ - É, pra dizer a verdade, até que deu sim... Seu Benício é mesmo
um ator e tanto!

BENÍCIO (EMOCIONADO) - É as palavra do Santinho que faz efeito...


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TININHA - Sabe o que é? É fé cênica! O seu Benício interpreta o


Conselheiro com tanta fé que parece verdade.

PROFES - É mesmo...

OLIVEIRA - Eu ouví falar de um outro milagre do Conselheiro...

DELZUITA -É? Então conta!

TODOS SE REÚNEM EM TORNO DA MESA. OLIVEIRA PEGA UM


PEDAÇO DE TÁBUA.

OLIVEIRA - Dizem que uma vez ele estava construindo uma igreja, e tinha
uns dez cabras daqueles bem fortões tentando erguer um
madeirame pesado.

CADA UM PEGA DE UM LADO DA TÁBUA E SE ESFORÇAM,


SIMULANDO TENTAR ERGUÊ-LA.

OLIVEIRA - A toda hora chegava mais gente pra ajudar, mas não
conseguiam. O troço nem se mexia... Aí o Conselheiro chegou
e viu aquele esforço todo. Então ele subiu naquelas tábuas
(COLOCA A CABEÇA EM CIMA DA TÁBUA) e aí ordenou a
dois homens que levantassem agora. E pra surpresa de todos, o
que um bando de homens não tinha conseguido, aqueles dois
conseguiram: (TININHA E DELZUÍTA PEGAM NAS PONTAS
DA TÁBUA) levantaram o madeirame com o Conselheiro em
cima, sem o menor esforço. (ERGUEM A TÁBUA, COM A
CABEÇA DO OLIVEIRA EM CIMA)

DELZUITA-Só isso? Ô Oliveira, que milagrezinho mais mixuruco...

OLIVEIRA- Bom, mas foi milagre, né... dizem que ele fez outros, mas eu não
sei...

TININHA - Olha, eu não sei não. Esse negócio de milagre é meio... sei lá...

BENÍCIO - Quem crê é créu, quem num crê é incréu!

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TININHA - Que que é, seu Benício?

BENÍCIO - Quem crê é créu, quem num crê é incréu!

PROFES - Acho que o seu Benício quer dizer que nessa coisa de milagre,
quem acredita, acredita, e quem não acredita não acredita...

BENÍCIO - Justamente, Professor. Treis coisa num serve pra discussão: fé,
futebor e inleição.

JACARÉ - Mas e aí? Com esse negócio do povo ir atrás do Conselheiro,


e essa história de milagre, os padres devem ter ficado umas
araras!

OLIVEIRA - Claro! Ninguém mais ia nas missas deles, ninguém mais


acreditava neles. Só iam atrás do Conselheiro! E invés de
pagarem dízimo pras igrejas, davam dinheiro pro Conselheiro.

BENÍCIO - Que nunca num ficou com um tostão no bolso! Passava logo pra
um ajudante. Comprava material pra alguma obra, comida pros
mais necessitados. Dizem que nunca uma moeda dormiu uma
noite no bolso do Conselheiro. E é verdade...

PROFES - E tem mais um problema que começou a acontecer: o povo


largava tudo pra trás pra acompanhar o Conselheiro. Preferiam
trabalhar nas obras do Conselheiro, mesmo o trabalho sendo
mais duro e sem pagamento nenhum, do que trabalhar pros
coronéis das fazendas. Até que chegou uma hora que não tinha
mais mão-de-obra nas cidades! Estavam todos atrás do
Conselheiro!

DELZUÍTA COLOCA UM CHAPÉU NA CABEÇA E PEGA UMA


BENGALA, E JACARÉ PEGA UM PAPEL E CANETA.

DELZUÍTA-Escreva aí: "eu, o Barão de Geremoabo, quero alertar que com a


abolição da escravatura, neste ano de 1889, o problema da falta
de trabalhadores servís se agrava pela falta de braços livres para
o trabalho. A população vive em estado de delírio atrás desse
inculcado enviado de Deus. Cabe ao poder público acabar com
essa vagabundagem, mostrando que é pelo trabalho que se deve

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6
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cooperar para a grandeza da nossa Pátria." Encaminhe com


urgência ao Delegado de Polícia.

JACARÉ DOBRA O PAPEL E O ENTREGA AO PROFESSOR.

PROFES / DELEGADO (LENDO) - Hum-hum... hum-hum... hum-hum...


Soldado!

TININHA PEGA UM CHAPÉU E UMA 'ARMA' E SE PERFILA AO LADO


DO PROFES / DELEGADO.

PROFES / DELEGADO - Soldado! Prenda Antonio Vicente Mendes Maciel.

TININHA/SOLDADO - Sim senhor! (AFASTA-SE)

PROFES / DELEGADO (ESCREVE) - "No intuito de manter a ordem e o


respeito às autoridades, comunico ter sido aprisionado o
indivíduo Antonio Vicente Mendes Maciel, que ora estou
conduzindo para essa Comarca de Fortaleza, a fim de que se
façam diligências no sentido de apurar ser ele criminoso de
morte no Ceará, visto circularem rumores de que ele tenha
sido autor de matricídio...

DELZUÍTA - De quê?

PROFES / DELEGADO - Matricídio. Assassinato de mãe!

JACARÉ - Ih! É aquela história lá do seu Benício...!

PROFES / DELEGADO - Deve ser. (CONTINUA A ESCREVER) "Peço a


Vossa Senhoria que não perca vistas de sobre ele, para que não
volte a esta Provincia da Bahia, pela exaltação em que ficaram os
fanáticos com a sua prisão."

O PROFESSOR / DELEGADO DOBRA O PAPEL E O ENTREGA PARA


JACARÉ.

JACARÉ / DELEGADO (LÊ) - Hum-hum... hum-hum... hum-hum...

JACARÉ / DELEGADO PEGA UM PAPEL E ESCREVE - "Excelentíssimo


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Senhor Doutor Delegado de Quixeramobim. Feitas as devidas


investigações sobre os antecedentes do preso Antonio Vicente
Mendes Maciel, e tendo ele se recusado a responder aos
interrogatórios, não tendo proferido uma palavra sequer, faço
conduzir o referido prisioneiro a essa Comarca, de onde é
oriundo, e onde se supõe tenha praticado crime de morte".

JACARÉ / DELEGADO DOBRA O PAPEL E O ENTREGA PARA


TININHA.
TININHA / DELEGADO DESDOBRA O PAPEL E LÊ - Hum-hum...
Hum-hum... hum-hum...

TININHA / DELEGADO PEGA UM PAPEL E ESCREVE: "Excelentíssimo


Senhor Doutor Delegado de Salvador. Nada havendo de
concreto que desabone a conduta do preso Antonio Vicente
Mendes Maciel, e não dispondo esta humilde delegacia de
condições materiais para mantê-lo encarcerado, comunico que
fiz pôr em liberdade o referido, que, pelos rumores correntes
deve ter retornado aos sertões da Bahia."

OLIVEIRA VESTE NOVAMENTE O PARAMENTO DE ARCEBISPO,


PEGA UMA PENA E ESCREVE.

OLIVEIRA / ARCEBISPO - "Senhor Presidente da Província da Bahia.


Tendo o perigoso agitador de nome Antonio Vicente Mendes
Maciel retornado a esta província, onde vem insistentemente
pregando doutrinas subversivas entre as populações, colocando
em risco a Igreja e o Estado, em constante ameaça à ordem e à
tranquilidade pública, solicito a Vossa Senhoria faça internar o
referido em estabelecimento de recuperação de saúde mental,
para prolongado tratamento".

OLIVEIRA / ARCEBISPO DOBRA O PAPEL E O ENTREGA PARA


DELZUÍTA.

DELZUÍTA VESTE UM PALETÓ E UM CHAPÉU, DESDOBRA O PAPEL


E LÊ.

DELZUÍTA / PRESIDENTE DA PROVÍNCIA - Hum-hum... hum-hum...


hum-hum... (PEGA UM PAPEL E ESCREVE) "Ao
Excelentíssimo Senhor Doutor Ministro dos Negócios do Império,
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Barão de Mamoré. Sendo o caso em epígrafe de interesse da


população da Bahia, ordenei a prisão imediata de Antonio Vicente
Mendes Maciel, e solicito a interferência de V.Sa. no sentido de
que o referido seja internado no Hospício D. Pedro II, no Rio de
Janeiro, visto ser de bom alvitre que o preso seja levado para
lugar distante desta Província."

DELZUÍTA / PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DOBRA O PAPEL E O


ENTREGA PARA O PROFESSOR.

O PROFESSOR COLOCA UM ÓCULOS, SENTA-SE E PÕE OS PÉS


SOBRE A MESA. DESDOBRA O PAPEL E LÊ.

PROFES / MINISTRO - Hum-hum... hum-hum... hum-hum... (PEGA UM


PAPEL E ESCREVE) - "Ao Excelentíssimo Senhor Doutor
Presidente da Província do Rio de Janeiro. Encaminho o pedido
em anexo, para suas providências".

PROFES / MINISTRO SE LEVANTA E ENTREGA O PAPEL PARA


BENÍCIO, QUE O LEVA PARA OLIVEIRA.

OLIVEIRA ABRE UM GUARDA-SOL, PEGA UMA GARRAFA DE


CERVEJA E UM COPO E SENTA-SE, COMO SE ESTIVESSE NUMA
PRAIA. DESDOBRA O PAPEL E LÊ.

OLIVEIRA / PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO - Hã-


hã... hã-hã... hã-hã... Mas qual é? Já não chega os loucos daquí
do Rio de Janeiro, ainda vou ter que cuidar de louco da Bahia?
Sem essa! (VIRA O PAPEL DO OUTRO LADO E ESCREVE)
"Não-há-va-ga!" (ESTALA OS DEDOS PARA JACARÉ)
Ô garoto! Leva esse troço pro Correio.

JACARÉ / GAROTO PEGA O PAPEL - Sim, senhor...

ESTENDE A MÃO E AGUARDA. OLIVEIRA / PRESIDENTE OLHA


LONGAMENTE, PEGA UMA MOEDA E COLOCA NA MÃO ESTENDIDA.

JACARÉ / GAROTO - Falô, majestade!

BENÍCIO - Quanto sofrimento para o Santinho! Mas, Professor, me


explique: nesse prende e solta o Conselheiro, como é que ficava
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o povo que acompanhava ele?

PROFES - O povo esperava, sempre confiando que ele ia voltar.


O Conselheiro dizia aos seus seguidores que não se revoltassem
nem reagissem a provocações, e que apenas esperassem, que ele
ia voltar. O povo confiava e esperava. E como ele sempre
voltava, mesmo, a fama dele só ia aumentando.

OLIVEIRA- Foi por causa dessas confusões todas que ele foi pra Canudos...

PROFES - É possível que sim... Ele já tinha passado por lá algumas vezes,
quando peregrinava pelo sertão. Era uma fazenda abandonada.
Tinha lá uns poucos casebres de pau-a-pique, e uma igreja
pequena e caindo aos pedaços.

TININHA - E por quê esse nome? Canudos...

BENÍCIO - Menina da cidade não deve conhecer canudo-de-pito... É uma


prantinha de beira de estrada que dá uns tubinho cumpriiiido...
Tinha muito por lá... O povo pegava esses canudo pra fazer
cachimbinho... a panela do cachimbo fazia de barro, sabe como
é? Mas nem bem que o Santinho Conselheiro arranchou por
lá com o seu povo, ele mudou o nome de Canudos pra Belo
Monte.

OLIVEIRA -E aí, já viu, né? O lugar, que era quase um vilarejo fantasma,
começou a crescer sem parar. Diz que teve época que se faziam
dez, quinze casas por dia, tudo em mutirão. Vinha gente de todo
lado...

PROFES - Tanto que algumas cidades quase que desapareceram... os


habitantes todos iam para Canudos.... Belo Monte. Chegavam
com suas tralhinhas... e entregavam tudo para o Conselheiro.
Aliás, para a comunidade, porque alí ninguém era dono de nada.

TODOS SE LEVANTAM E CANTAM.


"Vamo simbora
Todos pra Canudos
Lá tem rios de leite,
Barrancas de cuscuz"
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DELZUÍTA - Rios de leite? Barrancas de cuscuz?

BENÍCIO - O quase nada que tinha lá já era muito pra quem num tinha nada.
Pra quem tá com fome, minhoca é filé minhão. Lá, o que cada um
prantava, prantava pra todos. O que cada um criava, criava pra
todos. Era assim mesmo... Todo mundo era igual, nenhum era
mais que o outro. E quando sobrava alguma coisa, o povo ia pras
cidades vizinhas, pra vender ou pra trocar por outros bem... A
vida alí era trabaiá e rezá...

PROFES - Pois é... Belo Monte cresceu tanto que num certo momento
chegou a ser a segunda cidade da Bahia, em população.
(FOLHEIA O CADERNO) Em 1889, quando foi proclamada a
República, Belo Monte tinha 25 mil habitantes! Salvador, que era
a capital, tinha 70 mil! Um dia, num final de tarde, na hora em
que todos os fiéis se reuniam para as orações, o Conselheiro
falou...

DELZUÍTA (VESTINDO UM MANTO VELHO E SUJO) -Ah, deixa que eu


faço o Conselheiro, agora.

BENÍCIO - Uai! E pode? Conselheiro mulher?

JACARÉ - É, ela quer progredir: de costureira a conselheira!

DELZUÍTA- Ih, o que é que tem? Eu já não fiz delegado, soldado, sei lá o
que mais? Deixa comigo...

DELZUÍTA TOMA O CENTRO DO PALCO, COM AR SOLENE.

DELZUITA / CONSELHEIRO - "Hoje, tenho de falar-vos de um assunto que


tem sido o assombro e o abalo dos fiéis, tamanha a incredulidade
perante os acontecimentos: a república,que é inconstestávelmente
um grande mal para o Brasil, que era outrora tão bela a sua
estrela. Hoje, porém, foge toda a segurança, porque um novo
governo acaba de ter o seu invento, e lança mão dele para
exterminar a religião.”

ENQUANTO DELZUÍTA / CONSELHEIRO FALA, OS DEMAIS SE


AJOELHAM, ATENTOS.

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DELZUITA / CONSELHEIRO - “Com esse invento quer o governo separar a


Igreja do Estado! Quer fazer casamento civil, fora da igreja!

TODOS - Heresia! Pecado!

DELZUITA / CONSELHEIRO - “E quer cobrar mais impostos do povo que


trabalha. Tudo isso é o mal, porque vai de encontro à vontade de
Deus, com grande ofensa de sua lei divina..."

JACARÉ - Pô! Então o tal do Conselheiro não aceitava a República?

PROFES - Não, não aceitava. Ele achava que a República, separando a


Igreja do Estado, era coisa do demonio, e ainda por cima iria
explorar o pobre, porque ia taxar as vendas de mercadorias,
cobrar impostos sobre as propriedades, e outras coisas mais.
E isso ele não ia permitir em Belo Monte.

ALGUÉM PEGA UM PANDEIRO, E FORMA-SE UMA RODA. JACARÉ


E DELZUITA FICAM NO CENTRO.

JACARÉ / CANTADOR - "Saiu D. Pedro Segundo


Para o reino de Lisboa
Acabou-se a monarquia
E o Brasil ficou à toa.

DELZUÍTA / CANTADOR - Garantidos pela lei


Aqueles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Eles tem a lei do cão.

JACARÉ / CANTADOR - Casamento vão fazendo


Para o povo iludir
Vão casar o povo todo
No casamento civil.

DELZUITA / CANTADOR - A República chegou


Para o Brasil governar
Mas nós temos o Conselheiro
Para dela nos livrar".

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JACARÉ - Boa, Delzuíta!

DELZUÍTA- Valeu, Jacaré!

TODOS APLAUDEM E GRITAM CUMPRIMENTOS.

OLIVEIRA- Então, em Belo Monte ninguém pagava imposto...

PROFES - Não, ninguém pagava. E os casamentos eram feitos pelo


Conselheiro, ou por algum padre que passasse por alí, o que era
muito raro... E aí começaram os problemas...

ARMA-SE A BARULHEIRA TÍPICA DAS FEIRAS: TODOS COMEÇAM A


APREGOAR SUAS MERCADORIAS - MENOS O PROFESSOR E
JACARÉ, QUE SERÃO OS FISCAIS. TININHA SERÁ A TIA BENTA, UMA
VENDEDORA DE ESTEIRAS.

FEIRANTES - Olha a macaxeira! Olha a carne de sol! Olha a esteira! Quem


vai querer? ...

OS FISCAIS SE APROXIMAM DE TIA BENTA.

PROFES / FISCAL 1 - E aí, tia? Já pagou a taxa de licença?

TININHA / TIA BENTA - Taxa de licença ? E pra quê?

JACARÉ / FISCAL 2 - Vai dizer que num sabe, é? Tem que pagar a taxa de
licença se quer vender mercadoria na feira. São cem mil réis.

TININHA / TIA BENTA - Cem mil réis? Mas se juntar todas as esteiras que
eu tenho pra vender num dá nem oitenta mil réis! Quer saber?
Vá cobrar do Conselheiro! Se ele não paga, eu também não!

OS FISCAIS SE AFASTAM E SE DIRIGEM A OLIVEIRA.

OLIVEIRA / COMERCIANTE - Olha, é o seguinte: aquí em Uauá ninguém


vai pagar imposto nenhum, não. Vá cobrar do Conselheiro!

OS FISCAIS SE DIRIGEM A DELZUITA.

DELZUITA / COMERCIANTE - É isso mesmo! Se em Canudos num tem


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imposto, aquí em Cumbe também num vai ter.

TODOS OS COMERCIANTES COMEÇAM A GRITAR, AVANÇANDO


SOBRE OS FISCAIS.

COMERCIANTES - Fora! Fora! Vai cobrar imposto em Canudos! Fora!


Vai cobrar do Conselheiro! Fora daquí! Fora! Fora!

OS FISCAIS, ASSUSTADOS, SE AFASTAM E OS COMERCIANTES


VOLTAM A APREGOAR AS SUAS MERCADORIAS.

O PROFESSOR PEGA UM CHAPÉU E UMA PENA E ESCREVE:

PROFES / JUIZ DE DIREITO - "Ao Digníssimo Senhor Doutor Rodrigues


Lima, governador do Estado da Bahia. Venho pela presente
requerer de V.Sa. faça haver intervenção policial no sentido conter
a ação subversiva do líder religioso Antonio Vicente Mendes
Maciel, que vem insuflando o povo a não recolher os impostos
municipais, estaduais e federais, causando enorme quebra de
receita nas arrecadações. Assinado: Doutor Arlindo Leone, Juiz
de Direito."

BENÍCIO - Polícia, de novo?

DELZUITA - Pelo jeito, vai ter muita polícia nessa história...

PROFES - E teve mesmo. Mas nem vale a pena falar muito sobre isso.
Polícia nenhuma conseguia pegar o Conselheiro, a maioria
era de meia dúzia de homens, que ou nem conseguiam chegar até
Canudos ou então davam meia volta quando viam a quantidade
de gente que estava do lado do Conselheiro...

DELZUITA-Mas o Conselheiro tinha segurança, exército, essas coisas?

PROFES - Olha, quando o Conselheiro percebeu que as hostilidades


estavam aumentando, ele criou uma espécie de Polícia em
Canudos. Tinha até um comandante, de nome João Abade, que
tinha sido cangaceiro, antes. E tinha também um tal de Pajeú,
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que havia sido soldado e um tal de Pedrão, tido como um


sujeito muito valente. Esses eram os líderes, que nunca tinham
liderado ninguém antes.

OLIVEIRA- A primeira vez que eles comandaram um ataque foi no episódio


da madeira, se não me engano.

TININHA - Episódio da madeira? O que é isso?

PROFES - Ah, foi o começo da desgraça...

BENÍCIO COLOCA UM CHAPÉU VELHO E UMA BOLSA PENDURADA


A TIRACOLO, E JACARÉ PEGA UM BLOCO DE PAPEL E UM LÁPIS.

BENÍCIO / ENVIADO DO CONSELHEIRO - Pois então é isso, sim senhor.


A gente lá de Canudos tamo pricisando de uma partida de
madêra da boa.

JACARÉ / COMERCIANTE (TOMANDO NOTA) - Sim, sim, madeira...


É para a igreja nova?

BENÍCIO / ENVIADO DO CONSELHEIRO - É, sim sinhô. Pra mode fazê


o teiado. Tá ficando uma belezura... O Conselheiro mandô pagá
adiantado, como das ôtra veiz...

JACARÉ / COMERCIANTE - Está bem... são um conto e duzentos mil réis...

BENÍCIO / ENVIADO DO CONSELHEIRO (TIRANDO O DINHEIRO DA


SACOLA) - Tá aquí. Quando a madêra chegá, o sinhô por favor
mande aviso, que vem um povo arretirá aquí em Juazeiro...
Fique com Deus. (SAI DA CENA - JACARÉ PERMANECE,
ANOTANDO COISAS)

O PROFESSOR COLOCA O CHAPÉU DE JUIZ DE DIREITO E SE DIRIGE


A JACARÉ / COMERCIANTE.

PROFES / JUIZ DE DIREITO - Boas...

JACARÉ / COMERCIANTE - Dr. Arlindo Leoni? Boas! A que devo a honra


de receber um ilustre Juiz de Direito em minha loja?

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PROFES / JUIZ DE DIREITO - Caso de menor importância. Sei que o


senhor, pessoa de reputação ilibada, republicano, preocupado
com os rumos da nossa pátria, vai colaborar com a manutenção
da lei e da ordem...

JACARÉ / COMERCIANTE - Ôxa! O que acontece?

PROFES / JUIZ DE DIREITO - O que acontece é que o senhor há de


compreender que não deve mais fornecer qualquer tipo de
material pra jagunçada de Canudos.

JACARÉ / COMERCIANTE - E posso saber por quê? Tenho clientes em


Canudos como em qualquer outro lugar... Pagam direitinho...
Adiantado!

PROFES / JUIZ DE DIREITO - Pois então o senhor pode ficar com os


clientes de qualquer outro lugar, porque os de Canudos o senhor
não vai atender mais. Caso contrário pode aparecer aquí um
bando de fiscais, e aí, sabe como é... fuça daquí, fuça de lá,
sempre acaba achando alguma coisa errada na contabilidade...
Podem até fechar a sua loja! (SAI DA CENA, DEIXANDO
JACARÉ / COMERCIANTE APREENSIVO)

TININHA VESTE UMA MANTA VELHA E VAI FALAR COM BENÍCIO /


ENVIADO DE CONSELHEIRO.

TININHA / MULHER DE CANUDOS - Escuta, a madêra já num tinha que tê


chegado?

BENÍCIO / ENVIADO DE CONSELHEIRO - Já...

TININHA / MULHER DE CANUDOS - E pro quê num chegô? Um mes já...

BENÍCIO / ENVIADO DE CONSELHEIRO - Sei não...

TININHA / MULHER DE CANUDOS SE AFASTA. PASSA O MANTO


PARA DELZUITA, QUE SE APROXIMA DE BENÍCIO / ENVIADO DE
CONSELHEIRO.

DELZUITA/MULHER DE CANUDOS -As obra tá parada. Só farta o teto.


Dois meis e a tár da madêra, nada...
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BENÍCIO / ENVIADO DE CONSELHEIRO - É... vô falá com João Abade...

BENÍCIO / ENVIADO DE CONSELHEIRO SE DIRIGE A OLIVEIRA /


JOÃO ABADE, QUE ESTÁ ALISANDO UMA PEIXEIRA.

OLIVEIRA / JOÃO ABADE - Já tô sabendo. Tem coisa aí, porque gente


nossa já viu a madeira lá em Juazeiro. Mas quando perguntado
a informação foi que num tinha chegado...

BENÍCIO / ENVIADO DO CONSELHEIRO - Nóis já pagamo! E agora?

OLIVEIRA / JOÃO ABADE - Vamos reunir uns homens e vamos lá buscar!

O PROFESSOR / JUIZ DE DIREITO DITA UM TELEGRAMA PARA


TININHA, QUE O TRANSMITE USANDO UM VELHO GRAMPEADOR.

PROFES / JUIZ DE DIREITO - "Notícias positivas confirmam vinda do


perverso Antonio Conselheiro e numerosa quadrilha. População
receosa. Cidade sem garantias. Requisito senhor governador
enérgicas providencias".

JACARÉ E OLIVEIRA PEGAM QUEPES E 'ARMAS'.


JACARÉ / SOLDADO - Sim senhor, posso arrelatar todo o sucedido,
sim senhor... Eu mais meu colega de farda aquí, sim senhor...

OLIVEIRA / SOLDADO - A nossa tropa tinha oitenta e poucos praças e 3


oficiais, sim senhor. Seguimos de trem de Salvador até Juazeiro,
onde o termina a linha. Alí quedamos uns dias esperando a
chegada do Conselheiro, né não?

JACARÉ / SOLDADO - Pois é sim... esperamos um dia, dois, três... Cinco


dias e nada do Conselheiro...

OLIVEIRA / SOLDADO - Tenente Ferreira, que comandava a tropa, decidiu


que a gente num devia esperar mais, e resolveu partir pra
Canudos e atacar o Conselheiro lá, né não?

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JACARÉ / SOLDADO - Pois se num é...Nesse então, eu já sentí que alguma


coisa estranha tinha, porque várias gentes do lugar pediu pra tropa
não ir em frente... Mas fomos.

OLIVEIRA / SOLDADO - Saímos no dia 12, pra num sair a 13, que é dia de
azar. Mantimento e água era pouca. Foi duzentos quilometro de
martírio, foi não?

JACARÉ / SOLDADO - Pois se foi... As vila onde a gente passava era só


deserto. Num sei se por medo da tropa ou por causa da seca.

OLIVEIRA / SOLDADO - A 19 chegamo em Uauá, quase morrendo...

JACARÉ / SOLDADO - A chegada foi um sucesso. O povo nunca tinha visto


tropa daquele tamanho...

OLIVEIRA / SOLDADO - É... mas só a chegada, porque assucedeu que de


noite a população inteira debandou... Uauá ficou deserta, só
restou a tropa... foi não?

JACARÉ / SOLDADO - Foi. A gente só atinou quando no amanhecer. A


gente acordamos com um coro bonito, vindo lá de longe... parecia
coisa de anjo... era umas reza, uns canto... que nem procissão...

OLIVEIRA / SOLDADO - Mas num era não... quando chegaram perto é que
vimos: era um bando de mais de mil! Tinha uns que tinha rosário
na mão, tinha uns outros com bandeira do Divino. Tinha até um
carregando um cruzeiro que num tinha tamanho.

JACARÉ / SOLDADO - De começo a gente riu, estranhou, teve soldado que


até ajoelhou e rezou, pensando que era procissão de penitença.
Mas aí, quando a gente olhou direito é que viu uns facão, umas
foice, umas espingarda velha nas mãos dos pessoal... Da nossa
tropa toda só um e outro tinha acordado, a maioria tava ainda no
sono.

OLIVEIRA / SOLDADO - Aí foi um rebosteio que eu nunca ví. Aqueles


cabra caíram em cima da tropa gritando e cantando e rezando...

JACARÉ / SOLDADO - "E viva o Bom Jesus" e chlép facão na tropa!


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OLIVEIRA / SOLDADO - "E viva o Conselheiro" e dá-lhe foiçada!

JACARÉ / SOLDADO - A tropa endoideceu! Foi que nem sortá rojão no


meio de boiada... A sordadesca ainda de olho remelento num
entendia o que se passava e corria pra todo lado, sem saber o
que fazer.

OLIVEIRA / SOLDADO - Nunca ví fúria que nem aquela! Eles ia e vinha...


com bandeira, cruzeiro e tudo! Numa dessas ida é que deu pra
gente começar a reagir... Mas já tinha tanto sordado ferido e até
uns morto...

JACARÉ / SOLDADO - O médico da tropa chorava e se urinava... Num era


de menos... Sangue pra todo lado, as casa pegando fogo, e o
pior: a gente nunca sabia de onde é que podia vir os jagunço.
Eles parece que entrava pelas frestas das táuba!

OLIVEIRA / SOLDADO - No final foi isso: eles foram embora. Num sei se
fugiram ou só foram embora. Nós ganhamo a batalha. Cento e
cinquenta jagunço morto, disse o Comandante, mas num sei...
num ví tudo isso, não... Sei que de nós foi pelo menos dez, e
uns vinte ferido... foi pouco, até, foi não?

JACARÉ / SOLDADO - Foi pouco...Só sei que demoramos uma semana pra
chegá em Uauá, mas fizemos o caminho de volta em três dias.
Sêbo nas botinas, num foi?

OLIVEIRA/SOLDADO- Ô se foi!

TININHA - Ué! Não entendí! Quem ganhou a batalha, afinal? Os homens do


Conselheiro fugiram, e a tropa do exército também...

PROFES - É, na verdade ninguém ganhou... mas a tropa do exército perdeu


mais, vamos dizer assim. Tropa sem treinamento, muitos
soldados eram recrutados à força. Não conheciam a região,
o fardamento e os calçados não aguentavam a vegetação da
caatinga, e pior: sem nenhuma estratégia militar.

BENÍCIO - Pensavam que ia ser mole combater Canudos! O que se diz é


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que a batalha correu fama pelos sertão. Nunca que uma tropa do
exército tinha sido derrotada. Daí pra frente num parou mais de
chegar gente em Canudos! Cada dia chegava mais e mais e mais!

PROFES - O governador da Bahia, assim que soube do desastre da tropa


imediatamente ordenou que se organizasse outra expedição, da
polícia estadual. E pediu ao Governo federal que também
enviasse uma tropa, para atacarem juntas o arraial de Canudos.
Quem comandou a polícia estadual foi o major Febrônio de
Brito... (TININHA VESTE UM JAQUETÃO E UM TIPO DE
QUÉPE - TODOS OLHAM PARA ELA )... mas quem arranjou
as tropas federais foi o general Sólon Sampaio Ribeiro...
(DELZUITA TAMBÉM VESTE UM JAQUETÃO E UM QUÉPE -
AMBAS SE COLOCAM EM POSIÇÃO DE SENTIDO)

JACARÉ - Ué! Pode-se saber onde é que as Irmãs Galvão vão cantar?

TININHA - Mais respeito, cidadão. Eu sou o major Febrônio de Brito!

DELZUITA - E eu o general Sólon... Sólon do quê?

PROFES - Sampaio Ribeiro...

DELZUITA -General Sólon Sampaio Ribeiro!

JACARÉ - Mas vem cá: era polícia feminina que tinha lá naquelas bandas?

DELZUITA-Cala a boca, reles civil. Vai, Tininha. Capricha...

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Conforme as ordens do governador, a


expedição deverá partir com 400 a 500 homens.

DELZUITA / GENERAL SÓLON - Exatamente. Quantos homens a polícia


estadual fornecerá?

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Cem.


DELZUITA / GENERAL SÓLON - Bem, não tendo conseguido os 300 ou
400 que faltam, posso fornecer apenas mais cem homens. E a
muito custo, devo dizer. Tive que pegar até funcionário público
de repartição, além de alguns dos meus serviçais particulares...
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TININHA / MAJOR FEBRONIO - É uma dificuldade...

DELZUITA / GENERAL SÓLON - Mas em compensação, ofereço três


médicos, dois canhões Krupp, três metralhadoras, duzentas
granadas, 45 mil cartuchos para metralhadoras, 500 mil cartuchos
para carabinas Mannulicher e 500 mil cartuchos para mosquetões.

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Poxa!... Bem, parto ainda hoje com a


minha tropa. (FAZ UM SINAL PARA OLIVEIRA, QUE
COLOCA UM CAPACETE E PERFILA ATRÁS DELA) Tropa!
Marchar! Direção: Canudos! Um, dois, um, dois...

DELZUITA / GENERAL SOLON - Vai, majorengo...

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO E OLIVEIRA / TROPA MARCHAM PELO


PALCO, SEM PARAR.

DELZUITA / GENERAL SOLON - Telegrama!

JACARÉ - Ôpa! O telegrama eu faço. Gostei desse negócio... (PEGA O


GRAMPEADOR E TELEGRAFA AS PALAVRAS DO
GENERAL)

DELZUITA / GENERAL - "Ordeno ao Major Febronio de Brito retornar


imediatamente e aguardar organização de uma segunda coluna sob
o comando do Coronel Pedro Tamarindo."

TININHA / MAJOR FEBRONIO E OLIVEIRA / TROPA ESTACAM.

OLIVEIRA / TROPA (CANSADO) - Onde estamos, major?

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Cansanção. A 25 quilometros de


Canudos. Voltar? Jamais!

OLIVEIRA / TROPA - Ainda bem...

TININHA / MAJOR FEBRONIO - O que ele quer? Mandar na operação?


Colocar um coroneleco em cima de mim, é?

DELZUITA / GENERAL SOLON - Telegrama! (JACARÉ TELEGRAFA)


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"Insisto que retornem. A tropa não possui víveres e água


suficientes. Ataque a Canudos nessas condições é imprudente."

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Não adianta, que eu não volto e pronto!


Telegrama! (JACARÉ SE COLOCA AO LADO DE TININHA
E TELEGRAFA) "Senhor Governador: tropa entusiasmada.
(OLIVEIRA FAZ UM SINAL DE POSITIVO, DESANIMADO)
Demora é prejudicial. Favor enviar mais homens para que o
ataque seja definitivo. Sólon atrapalha".

DELZUITA / GENERAL SOLON (COMO SE ESTIVESSE RECEBENDO


ORDENS) Sim, senhor governador. Sim, sim... Entendí, sim,
senhor. Devo me afastar da operação a Canudos. Perfeitamente,
senhor. E devo ordenar que se envie para lá mais 400 homens.
Entendido, senhor.

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO (FAZ UM SINAL PARA JACARÉ) - Ôpa!


Está chegando mais tropa? Ótimo!

JACARÉ, A CONTRAGOSTO, SE JUNTA A OLIVEIRA / TROPA.

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO - Telegrama!

JACARÉ PEGA O GRAMPEADOR E SE COLOCA AO LADO DE


TININHA.

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO - Saia daí! Eu quero passar um telegrama


para o governador!

JACARÉ - Pois é, eu sou o telegramista...

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Não, não é mais. Agora você é tropa!


(APONTA PARA BENÍCIO) Você! O governo requisita os seus
serviços!

BENÍCIO OLHA PARA TODOS, ASSUSTADO.

BENÍCIO - Quem? Eu? Ah, não... eu num sei nada desses negócio de
tevêgrama...

TININHA / MAJOR FEBRONIO (APONTA PARA JACARÉ) - Você! Instrua


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o voluntário!

JACARÉ PEGA O GRAMPEADOR E MOSTRA PARA BENÍCIO COMO


FUNCIONA.

TININHA / MAJOR FEBRONIO - "Senhor governador. Tudo pronto para o


ataque a Canudos. Entretanto, o soldo dos soldados está atrasado.
Impossível partir sem regularizar a situação".

TININHA, JACARÉ E OLIVEIRA DEITAM-SE NO CHÃO, COMO SE


ESTIVESSEM TOMANDO SOL.

TININHA / MAJOR FEBRONIO ESPREGUIÇA, BOCEJA.

JACARÉ / TROPA - Rapaz, se eu soubesse que o inzército era assim, já tinha


me alistado antes...

OLIVEIRA / TROPA - Ê vidão! 17 dias de papo pro ar!

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO SE LEVANTA, PREGUIÇOSAMENTE,


E DIRIGE-SE À TROPA.

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO - Bravos soldados! O governo pagou os


soldos atrasados. Nada mais nos detém. Em marcha!

OLIVEIRA E JACARÉ SE LEVANTAM, COM PREGUIÇA.

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO - Vamos destruir Canudos!

OLIVEIRA E JACARÉ - Vamos! Vamos! Êêêêêêê...

SOBEM NA MESA.

TININHA / MAJOR FEBRÔNIO - Carregar armas! Canhões por este lado!


Fuzileiros à frente! Atacar!

PULAM PARA O OUTRO LADO DA MESA, FAZENDO BARULHOS DE


TIROS DE ESPINGARDA, METRALHADORA, CANHÕES, GRITOS,
ETC.

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AOS POUCOS ESSA BARULHEIRA TODA VAI SE TRANSFORMANDO


EM GRITOS E GEMIDOS, E ELES VOLTAM, PASSANDO POR BAIXO
DA MESA.

TININHA / MAJOR FEBRONIO SE LEVANTA, COM DIFICULDADE.

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Eu... eu... eu... quero... me servir das


páginas... desse jornal... para dizer que... eram muitos...

OLIVEIRA / TROPA - Mais de mil...

JACARÉ / TROPA - Mais de dois mil...

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Mais de tres mil sertanejos... fortemente


armados...

OLIVEIRA / TROPA - Foices, facões, forquilhas...

JACARÉ / TROPA - E as carabinas deles, você viu? Deviam ser do tempo do


Cabral!

OLIVEIRA / TROPA - É verdade! E em vez de bala usavam ponta de prego,


pedrinha... ah, ah, ah, ah... agora, depois que passou, é
engraçado...

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Cala a boca, recruta! A nossa munição...


o nosso armamento... era escasso...

JACARÉ / TROPA - É... só 500 mil cartuchos de carabina... 45 mil de


metralhadora... dois canhões... ah, ah, ah, ah....

TININHA / MAJOR FEBRONIO - Cala a boca, recruta! Por entre


intempéries, num sertão disforme, desprezivamente estratificado,
cardos na esterilidade, tem-se coleado a expedição de Canudos,
ereta no amesquinhamento de compressões na senilidade de
consciências rochiferadas na razão da pentápolis que dilui no
galvanismo...

OLIVEIRA e JACARÉ - Cala a boca, majorengo!

BENÍCIO - Ah, ah, ah... essa foi das boa! Quer dizer que o majorengo partiu
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cheio de bofes e voltou com os bofe pela boca! Sabe o que é que
o João Abade fazia? Reunia seus sertanejo e esperava a tropa do
exército num corredor de caatinga, e aí caía em cima e destroçava
o que dava pra destroçar. Aí, de repente sumia. Depois aparecia
de novo. Depois sumia. Depois aparecia... e ia assim. Diz que
deixava a sordadaiada louca! Ah, ah, ah, ah...

PROFES - Essa derrota das tropas federais pegou mal... No Rio de Janeiro
e no resto do país todo, já se começava a falar de Canudos, que
lá se lutava contra a República, e coisa e tal. O governador da
Bahia ficou desmoralizado, e o caso foi parar na Presidencia da
República. O presidente era Prudente de Morais, mas ele estava
de licença médica, e então o vice-presidente, Manuel Vitorino,
é quem mandou organizar uma nova expedição contra Canudos.
É aí que entra em cena um nome terrível: o do coronel Moreira
César!

TININHA, A UM CANTO, BATE FORTEMENTE NUM BUMBO.


TODOS SE ASSUSTAM. BENÍCIO SE BENZE E FAZ UMA PORÇÃO DE
SINAIS DA CRUZ.

BENÍCIO - Virge Maria! Esse é aliado do cão. Ou é o próprio cão! Moreira


César! O treme-terra! O corta-cabeça! O maldito!

DELZUITA-Nossa, seu Benício! O homem era assim tão perigoso, mesmo?

PROFES - Era, sim, Delzuita. O homem era terrível. Só pra ter uma idéia:
no trajeto entre o Rio de Janeiro e a Bahia, ele desconfiou do
comandante do navio e mandou amarrar o homem naquela
prancha que fica na amurada do navio, sabe? Só soltou quando
chegou na Bahia. Em Salvador, mandou que as pessoas que
estavam no porto carregassem as suas bagagens e as de todos os
soldados que estavam com ele. Quem reclamava levava
pranchadas.

JACARÉ - E ainda por cima o cara era um degolador. Ele tinha estado
numa revolução lá no Sul, e neguinho quando caía nas mãos
dêle, êle ó... (PASSA A MÃO NO PESCOÇO)

TININHA - Ô lôco!

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JACARÉ - O cara era mau, meu. Quando eu serví o Exército eu ví uns livros
lá sobre ele...

DELZUÍTA -Num dá pra imaginar você servindo o Exército, Jacaré...

JACARÉ - Ué! Serví, sim, qual é? Tá certo que a minha metralhadora era
a máquina de escrever, né? Eu era o único do batalhão que sabia
datilografia. Dei a maior sorte, só ficava lá, no ar-condicionado...

PROFES - Pois é. O tal do Moreira César chegou em Salvador num dia e no


dia seguinte já seguiu para o vilarejo de Queimadas, perto de
Canudos. Não queria perder tempo. Lá em Queimadas ele reuniu
a tropa, arranjou armamento e munições. Tinha mil e trezentos
homens, 6 canhões, engenheiros militares, um comboio de
munições e de mantimentos, tudo! E ordenou a partida imediata
para Canudos. Estava com sede de acabar com o Conselheiro...
mas...

TININHA - Mas o quê?

PROFES - O homem tinha um problema, Tininha. Era epiléptico.

DELZUITA -Era o quê?

PROFES - Ele tinha ataques de epilepsia.

TININHA - O que é isso?

BENÍCIO - Doença de tremedeira! O sujeito se joga no chão tremendo e


babando que nem um demente... Coisa do cão. Bem feito pra ele!

JACARÉ - Mas esse negócio aí de epiléptico não é coisa de bebum? Coisa


de gente que toma todas?

PROFES - Não, não é... epilepsia é uma doença dos nervos. O sujeito tem
convulsões, distúrbios de consciência. Tem ataques súbitos.

BENÍCIO - Eu conheço isso aí com outros nome: mal-da terra... porque a


doença joga o sujeito no chão... ou então mal-caduco, por causa
da tremedeira que dá, assim, ó...
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JACARÉ VESTE UM JAQUETÃO E UM QUÉPE E COLOCA-SE NA


FRENTE DO PALCO EM POSE DE COMANDO. DELZUITA COLOCA
UM CAPACETE E PEGA UMA ARMA.

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - Temos que partir rápidamente, antes que


o tal do Conselheiro fuja! Cabo Roque! Reuna a tropa e... e...
(COMEÇA A TREMER E JOGA-SE NO CHÃO, BABANDO)

TININHA / CABO ROQUE - Êta, que lá vem estrebucho... Pelo jeito vai uns
quatro dias...

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR AOS POUCOS PÁRA DE TREMER E


LEVANTA-SE, SOB O OLHAR TEMEROSO DE TININHA / CABO
ROQUE.

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - Cabo Roque: tá olhando o quê? Reúna


a tropa e vamos em frente, imbecil!

TININHA / CABO ROQUE - Sim, senhor...

MARCHAM PELO PALCO: JACARÉ / MOREIRA CÉSAR À FRENTE,


MARCANDO OS PASSOS.

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR (APONTANDO PARA A MESA) - Daquí do


alto do morro da Favela avistaremos Canudos! Cabo Roque, seu
idiota, mande posicionar os canhões para... para... para...
(NOVAMENTE COMEÇA A TREMER E A BABAR, E JOGA-SE
NO CHÃO)

TININHA / CABO ROQUE - Ôxe... de novo? Quantos dias, agora?

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR PÁRA DE TREMER E LEVANTA-SE


REPENTINAMENTE.

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - Cabo Roque, seu imbecil! Mandou


posicionar os canhões?

TININHA / CABO ROQUE - Sim, sim senhor...

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AMBOS SOBEM NA MESA.

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - Amanhã vamos almoçar em Canudos!


Batalhão! Preparar! Apontar! Fogo!

TININHA / CABO ROQUE COMEÇA A FAZER BARULHOS DE TIROS


DE METRALHADORA E DE CANHÃO, ENQUANTO JACARÉ /
MOREIRA CÉSAR RÍ SEM PARAR.

TININHA / CABO ROQUE - Bum! Bum! Rá-tá-tá-tá-tá-tá! Bum! Bum!

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - Ah, ah, ah, ah, ah... Fogo! Fogo! Vamos
almoçar em Canudos! Fogo! Fogo!

DE REPENTE, O RESTO DO ELENCO COMEÇA A BATER EM


TAMBORINS, CAIXAS, ETC., ENCOBRINDO A VOZ DE TININHA E DO
JACARÉ.

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - O que é isso? Estão reagindo? Fogo neles!


Viva a República! Viva a República! Avançar! Avançar!

A BARULHEIRA PÁRA - OUVE-SE UM TIRO. JACARÉ / MOREIRA


CÉSAR SE DOBRA - FOI ATINGIDO. O BARULHO DOS TAMBORINS
E DAS CAIXAS RECOMEÇA, AGORA MAIS FORTE.

TININHA / CABO ROQUE - Coronel! Coronel! Eles estão avançando!


Coronel! Tão caindo em cima da gente! Coronel! Coronel!

JACARÉ E TININHA DESCEM DA MESA.

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - Chame o Coronel Pedro Tamarindo! Rápido!


Ele que assuma o comando da tropa para a vitória final!

JACARÉ / MOREIRA CÉSAR ABAIXA-SE LENTAMENTE E MORRE.

TININHA / CABO ROQUE SE DIRIGE AO PROFESSOR, QUE ESTÁ COM


UMA “ARMA” NA MÃO.

TININHA / CABO ROQUE - E agora, Coronel Tamarindo? Os conselheiristas


tão vindo com tudo!

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PROFES / TAMARINDO - Ai, meu saco!

TODOS PARAM, E OLHAM ADMIRADOS PARA O PROFESSOR.

PROFES - Ô... desculpa, hein, gente...

TININHA - Não, nada a ver... é que a gente estranhou, né... o Professor


falando assim, né? “Ai, meu saco”...?

PROFES - Não fui eu... foi o Coronel Tamarindo! Eu acho que me


empolguei com o personagem...

TININHA - Legal! Então vamos em frente. Retomando!

O PROFESSOR E TININHA REASSUMEM SEUS PERSONAGENS.

PROFES / CORONEL TAMARINDO-Eu sabia que essa meleca ia sobrar


pra mim. Recuar! Recuar!

TININHA E O PROFESSOR CAMINHAM PARA TRÁS, ENQUANTO O


BARULHO PROSSEGUE.

TININHA/CABO ROQUE - Tão vindo em cima!

PROFES / TAMARINDO - Eu, hein? Agora que já tô quase aposentando!


Recuar de novo! Recuar de novo!

ANDAM PARA TRÁS MAIS ALGUNS PASSOS.

TININHA/CABO ROQUE - Tão avançando! Que que a gente faz, Coronel


Tamarindo?

PROFES / TAMARINDO - Recuar mais! Recuar mais! Ô Cabo Roque!


Quer saber de uma coisa? Em tempo de murici, cada um cuida de
sí. Tcháu mesmo!

COMEÇA A FUGIR, NO MEIO DO TIROTEIO, DEIXANDO TININHA /


CABO ROQUE SÓZINHA.

DE REPENTE, O BARULHO PÁRA, E OUVE-SE UM TIRO. TAMARINDO


CAI, MORTO.
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TININHA / CABO ROQUE - Êta, que agora danou-se! Debandar! Debandar!


Sebo nas canelas, macacada!
“Escapa, escapa, soldado!
Quem tiver pernas que corra.
Quem quiser ficar que fique,
Quem quiser morrer, que morra...”

TININHA / CABO ROQUE FOGE. OS DEMAIS APLAUDEM E


FESTEJAM.

TININHA ABRAÇA O PROFESSOR.

TININHA - Boa essa cena, hein?

PROFES - É... eu acho que tomei gosto pela coisa...

TININHA (BEIJANDO-O) - Você estava ótimo...!

OLIVEIRA - Os conselheiristas botaram os 1.300 homens do epiléptico pra


correr?

PROFES - Botaram... e a debandada foi tão desordenada, tão desesperada,


que a tropa largou por lá as armas, os canhões e caixas e caixas
de munição. O povo de Canudos, de repente, ficou armado até os
dentes! E com essa derrota do exército, não havia outro assunto
no Brasil inteiro...

CADA UM PEGA UM JORNAL E LÊ.

DELZUITA -"Os inimigos da República estão entrincheirados no sertão da


Bahia. Esse foco de ladrões e assassinos precisa ser debelado".

JACARÉ - "A luta é contra a República. A normalidade desapareceu. O


governo precisa agir com violência"

OLIVEIRA - "A rua do Ouvidor terá a sua denominação mudada para Rua
Cabo Roque, em homenagem ao herói que morreu protegendo
o cadáver do Coronel Moreira César."

TININHA - Ué! Mas o Cabo Roque não fugiu?


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PROFES - Fugiu e desapareceu. Todo mundo achava que ele tinha morrido
protegendo o Coronel Moreira César. Aí deram o nome de Cabo
Roque a um monte de ruas e praças, no Brasil inteiro. Fizeram
estátua pra ele e tudo o mais. Um dia ele apareceu, vivinho da
silva, e confessou que tinha fugido do combate.

BENÍCIO - Deve ter sido um vexame. Toca a desmontar a estáuta e trocar os


nome das ruas outra veiz...

PROFES - É... a rua Cabo Roque, no Rio de Janeiro, voltou a se chamar rua
do Ouvidor... até hoje...

VOLTAM A LER OS JORNAIS.

TININHA - "O monstro, nas profundezas do sertão, escancara as guelras


insaciáveis, pedindo mais gente, mais pasto de corações
republicanos para ele devorar, até que um dia, num assomo de
raiva, ele desgrenhe a juba e com sua pata monstruosa esmague
a pátria, em luto pela morte de seus filhos mais amados..."

TODOS - Nossa!

OLIVEIRA - E aí, Professor. O que aconteceu?

PROFES - Aconteceu que o presidente Prudente de Morais mandou


organizar mais uma expedição contra Canudos.

OLIVEIRA - Mais uma!

PROFES - É, e essa era mais pesada: tropas chegavam de vários estados,


navios de guerra aportavam em Salvador. Era artilharia,
infantaria, cavalaria, e um bando de generais: General Artur
Oscar, General Savaget, General Silva Barbosa...

BENÍCIO - Inté o Ministro da Guerra teve que entrar no rolo! Como era o
nome dele, mesmo?

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PROFES - General Bittencourt. Mas o problema é que estava difícil


arregimentar soldados! Ninguém queria ir para Canudos... A
solução era recrutar à força.

OLIVEIRA/SOLDADO - Cê era o quê?

BENÍCIO/SOLDADO - Sártante. E o cê?

OLIVEIRA/SOLDADO - Sassíno. Mas isso foi no antes, que no hoje eu sô


sordado! Me enfiaro numa farda e me mandaro pra cá!

BENÍCIO/SOLDADO - Vixe! Eu tumém! Eu tava em cana, agora tô em


Canudo!

OLIVEIRA/SOLDADO - É... mas deixa essa generalada bobiá que aí, ó...

OS DOIS - Nóis foge! Ah, ah, ah, ah, ah....

PROFES - Nas escolas militares, qualquer indisciplina já era motivo pra


mandar o estudante pra Canudos...

JACARÉ/ESTUDANTE - "Eu ando desconfiado,


Olhar baixo, lábios mudos,
Com medo de ser pegado
Pro açougue de Canudos"...

BENÍCIO - Agora, o que eu sei memo, que o povo até hoje nunca num se
esquece, é que essa sordadaiada bandida por onde passava
arregaçava tudo... saqueava as loja, arrombava as casa, fazia
fogueira com as porta e as janela... bulia com a mulherada...

DELZUITA - Monstros!

PROFES - Tinha de tudo lá: juntaram quase cinco mil homens: bandidos,
roceiros, negros que tinham sido escravos... Era uma bagunça.
Não havia como controlar uma tropa como essa. A confusão era
tanta que eles chegaram no vilarejo de Queimadas e ficaram por
alí tres meses, antes de irem mesmo para Canudos.

BENICIO - É verdade... num tinha jeito de organizar essa gente... Muito


sordado arranjou muié, e aí num queria mais ir pra Canudos... As
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moça da vida, então, num saía mais do acampamento. Era uma


badernagem...

PROFES - E enquanto isso, em Canudos cada dia chegava mais gente.


O povo ia chegando de tudo quanto é lugar, e já traziam seus
bacamartes, suas espingardas de caça, seus facões, o que
tivessem, para defender Canudos e o Conselheiro.

OLIVEIRA - Enquanto o governo federal já estava impaciente com a demora,


Canudos e o Conselheiro não saíam dos jornais.

TININHA (LENDO) - "Mapas de Canudos, nítidamente litografados. Vejam


as posições das colunas e a localização dos Conselheiristas.
Preço: apenas mil réis. Remete-se para o interior".

DELZUITA - "Chapéus de feltro Moreira César, para o homem elegante, só


na Casa Monumento"...

JACARÉ - "Um grupo de valentes soldados expulsou a pontapés um bando


de conselheiristas, tal a confiança nos calçados que usava, que
foram comprados na Casa Liberdade"...

OLIVEIRA - "Informações chegadas de Buenos Aires dão conta de que as


tropas conselheiristas, comandadas pelo General João Abade,
dispõem de quase vinte mil homens equipados com armamento
sofisticado, e estão sendo treinados por oficiais europeus".

PROFES - "De Paris chega um comunicado de que Conselheiro recebeu


armas, munições e orientações para continuar a resistência contra
a República. Diversos oficiais austríacos, italianos e franceses
estão dirigindo as operações, com nomes falsos".

BENÍCIO - Uai! Mas cada história mais bessurda!

PROFES - Pois é, mas é o que se publicava nos jornais da época. Só se


falava de Canudos e do Conselheiro. Até nos poeminhas de
amor...

"O que há nesses olhos traiçoeiros


Que basta olhá-los a gente
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Para cair prisioneiro


E até morrer de repente?

Da barranca da janela
Explode, alto e certeiro,
Um tiro em cada olhadela,
Em cada riso um morteiro.

A matar-me te dispunhas
Dizem bem claros sinais:
Trazes dez lanças nas unhas,
Nos dentes trinta punhais..."

TININHA - Ai, que bonitinho, Professor... Depois deixa eu copiar?

PROFES - Gostou? Eu copio pra você...

JACARÉ - Mas diz aí: teve batalha ou não teve, afinal?

PROFES - Muitas. Muitas batalhas. João Abade orientou os conselheiristas


para não darem folga à tropa federal. Atacavam dia e noite, sem
parar. Resultado: os soldados do exército estavam fatigados,
exaustos, porque não podiam dormir. Do lado do Conselheiro, era
todo mundo no combate: mulheres, crianças, tudo!

OLIVEIRA/SOLDADO, COM UMA ‘ARMA’ NAS MÃOS, AGARRA


TININHA/MOLEQUE PELO BRAÇO E JOGA-A NO MEIO DO PALCO, À
FRENTE DE JACARÉ/GENERAL.

OLIVEIRA/SOLDADO - General! Tá aquí o ladrão de mantimento!

JACARÉ/GENERAL - Ora, mas é uma criança! Quantos anos você tem,


filho?

TININHA/MOLEQUE - Nove, sim sinhô. (OLHANDO PARA A ARMA DE


JACARÉ) Êta! Cês tão usando essa armica aí, é?

JACARÉ/GENERAL - Sim. É uma carabina Comblain, francesa!

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TININHA/MOLEQUE - Óia, essa comblé é coisa à toa! Faz um zoadão


danado, mas num tem força. Isso aí é xixilada! Tribuzana véia!
Eu gosto mais daquela outra, a... comé que chama?
JACARÉ/GENERAL - Aquela alemã? A Mannulicher?

TININHA/MOLEQUE- Ih! Essa mêma! A manulixa! Essa sim que é um


clavinote de talento! Comigo é só manulixa! É mirá e acertá!
(MIRA E ATIRA COM OS DEDOS) Pá-pá-pá-pá!

JACARÉ/GENERAL E OLIVEIRA/SOLDADO GRITAM E PULAM, DE


SUSTO.

PROFES - Depois de uns meses de batalhas, começou a faltar água,


faltar comida, faltar remédio, faltar tudo. Centenas de soldados
fugiram, desertaram. Mas o General Artur Oscar, que comandava
a operação, não queria dar o braço a torcer. Mandou vir um
fotógrafo para mostrar para o Brasil que as condições da tropa
eram excelentes...

DELZUITA / FOTÓGRAFO - Vamos lá, vamos lá. Pose para a fotografia!

OS DEMAIS SE ARRASTAM, MANCANDO E GEMENDO, E FORMAM


UM GRUPINHO PARA A FOTO.

DELZUITA / FOTÓGRAFO - Sorrindo, pessoal. Quem não sorrir entra na


chibata!

TODOS SORRIEM, SEM GRAÇA. O FOTÓGRAFO BATE A CHAPA.

DELZUÍTA / FOTÓGRAFO - Muito bem... Agora o churrasco. O pedaço de


carne está aquí, ó... (MOSTRA UM ESPETO) Mas é só para a
fotografia, hein? Vamos lá! Pose de churrasco!

OS SOLDADOS PEGAM O ESPETO E FAZEM UMA POSE BEM SEM


GRAÇA, TODOS COM CARA DE SOFREDORES.

DELZUITA / FOTÓGRAFO - Assim não, né gente... Todo mundo sorrindo!


Cara de quem está de barriga cheia, que isso vai sair nos jornais
do Brasil inteiro!

OS SOLDADOS FAZEM UMAS CARAS ALEGRES, BEM FALSAS.


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O FOTÓGRAFO BATE A CHAPA.

DELZUITA / FOTÓGRAFO - Agora, vamos fazer uma dos médicos cuidando


de um soldado...
JACARÉ / SOLDADO - Médico? Mas num tem mais nenhum... Os que não
bateram as botas sumiram no mundo...

DELZUITA / FOTÓGRAFO - Não tem importância. Faz de conta que você é


um médico, e você (APONTA PARA OLIVEIRA) é o ferido. Deita
aí! Façam a pose! O médico é bom que esteja sério, inspira mais
confiança. E o ferido, sorrindo...

OS SOLDADOS OBEDECEM, SEM VONTADE. OLIVEIRA / SOLDADO


FERIDO, FAZ UM SORRISO BEM IDIOTA. O FOTÓGRAFO BATE A
CHAPA.

DELZUITA / FOTÓGRAFO - Ótimo! Ótimo! Ótimo! Podem ficar à vontade!

OLIVEIRA / SOLDADO - Nunca ví nada que nem aquilo... Eu e mais tudo


os soldados já tavam desesperados de fome e de sêde. A única
água que tinha era de um poço barrento, mas aí os conselheiristas
jogaram uns cadáveres dentro, pra gente não ter mais água... Mas
a gente bebia assim mesmo, tamanho o desespero! Cada noite um
bando de soldado fugia. Muitos eu ví atirarem na própria mão, pra
poder voltar pra casa... Ninguém mais cumpria ordem nenhuma.
Era um salve-se quem puder. Soldado morria que nem fruta podre
caindo de árvore... Jagunço do Conselheiro, parece que quanto
mais morriam, mais e mais apareciam... brotavam da terra,
milhares e milhares... os cadáveres ficavam tudo no sol, fedendo.
Não dava tempo pra enterrar.

BENÍCIO / CONSELHEIRISTA - Aquí do lado do Conselheiro a coisa


também é feia... Munição não falta, porque a gente assalta os
comboios do exército e pega tudo. Mas comida não tem. A
comida que os comboios do exército trazem, o Conselheiro não
quer que se coma. É pra jogar no mato. É melhor passar fome do
que comer comida dos infiéis.

PROFES - As batalhas se arrastaram em combates diários durante quase


tres meses. Tres meses, gente! E duraria mais, se não acontecesse

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uma série de fatalidades: João Abade morreu em combate... Pajeú


também morreu... e finalmente, Antonio Conselheiro...

JACARÉ CAMINHA ATÉ O PROSCENIO, LENTAMENTE, ERGUE OS


BRAÇOS E OLHA PARA A PLATÉIA, COMO SE DESPEDINDO DE CADA
UM, COM O OLHAR.

JACARÉ / ANTONIO CONSELHEIRO - “Antes de fazer-vos minha


despedida, peço-vos perdão se nos conselhos vos tenha ofendido.
Conquanto às vezes proferisse palavras excessivamente rígidas,
repreendendo os vícios e movendo o coração ao santo temor e
amor de Deus, todavia não pensem que eu nutrisse o desejo de vos
magoar. Pelo contrário, o desejo que tenho da vossa salvação me
forçou a proceder dessa maneira. Se achais porém que fui por
demais rude, peço-vos que me perdoeis pelo amor de Deus. É
chegado o momento de me despedir de vós. Que pena!... Que
sentimento tão forte ocasiona esta despedida em minha alma... à
vista do modo benévolo, generoso e caridoso com que sempre me
tendes tratado... Adeus, povo, adeus aves, adeus árvores, adeus
campos. Aceitai a minha despedida. As gratas recordações que
levo de vós jamais se apagarão da lembrança deste peregrino...”

DELZUÍTA (CHORANDO) - Jacaré! Que lindo isso... tão triste...!

JACARÉ A ABRAÇA, COM CARINHO.

BENÍCIO COMEÇA A CHORAR; AOS POUCOS O CHORO DE BENÍCIO


SE ESPALHA AOS DEMAIS.

BENÍCIO - Morreu delicado, como um passarinho... acho que nem morrer ele
morreu... só... se ausentou... Como quem vai até alí e já volta...
Foi enterrado numa cova rasa, cavada de apressado no meio das
batalha...

TININHA/ANTONIO BEATINHO, AO FUNDO, AGITA UM PANO


BRANCO.

DELZUÍTA / SOLDADO - General! Uma bandeira branca!

OLIVEIRA / GENERAL OLHA LONGAMENTE PARA TININHA /


ANTONIO BEATINHO.
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OLIVEIRA/GENERAL- Quem é você?

TININHA/ANTONIO BEATINHO (COM OS OLHOS POSTOS NO CHÃO)


Saiba o seu Doutô General que meu nome é Antonio Beatinho, e
vim por meu próprio pé me entregá porque a gente não tem mais
opinião, e num aguenta mais... Nosso bom Conselheiro tá no
céu...

OLIVEIRA/GENERAL (CONTENTE COM A NOTÍCIA) - Ah, é? Morreu de


quê?

TININHA/ANTONIO BEATINHO - Foi caminheira, sim sinhô...

OLIVEIRA/GENERAL - De quê?...

TININHA/ANTONIO BEATINHO - Disintiria...

OLIVEIRA/GENERAL RÍ.

OLIVEIRA/GENERAL - Pois volte lá e diga aos seus homens que se


entreguem. Garanto-lhes a vida. Serão entregues ao governo da
República, e o governo da República é bom para todos. Diga a
eles que se entreguem.

BENÍCIO - Beatinho foi, e voltou, depois de uma hora... Vieram com ele
umas trezentas pessoas, prá se entregá. Mas era só muié e criança,
e uns véio que nem num conseguia andar... Ardiloso, o Beatinho.
Ao mesmo tempo que se livrava daquela carga inútil, dava uma
úrtima chance pra aquela gente... Foi uma boa tentativa, mas num
deu certo...

OLIVEIRA/GENERAL - Não temos comida nem para os soldados. Nem


remédios, nem água, e nem pessoal suficiente para cuidar dos
prisioneiros. Porisso, já sabem o que deve ser feito...

BENÍCIO - No dia seguinte nenhum tava vivo...

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PROFES - Mesmo com a morte do Conselheiro os combates ainda


prosseguiram. Até que chegaram reforços das tropas federais...
cercaram Canudos... os jagunços lutavam até a útima gôta...

BENÍCIO - No fim, só sobrô quatro... dentro duma trinchêra...

BENÍCIO, JACARÉ, DELZUITA E TININHA SE ALINHAM, DE JOELHOS,


COM OS OLHOS FIXOS NO HORIZONTE.

BENÍCIO - Ninguém sabe quem eles eram, só se sabe que eram um velho, um
caboclo, um negro e uma criança. Quase cinco mil sordado urrava
de ódio na frente deles...

O PROFESSOR SE COLOCA NA FRENTE DOS QUATRO, COM UM


PEDAÇO DE PAU NAS MÃOS, E SOLTA UM URRO PROLONGADO.

BENÍCIO - Foram degolados...

O PROFESSOR MOVIMENTA O PEDAÇO DE PAU, NUM GESTO


RÁPIDO, COM SE FOSSE UM FACÃO. OS QUATRO PENDEM A
CABEÇA.

OLIVEIRA/GENERAL - Fogo em tudo! Destruam tudo! A República venceu!

TODOS COMEMORAM, AOS GRITOS E APLAUSOS, JOGAM COISAS


NO CHÃO, VIRAM CADEIRAS E ATEIAM FOGO NUMA FOLHA DE
JORNAL.

BENÍCIO OBSERVA.

BENÍCIO - O corpo do Santinho foi tirado da cova. Cortaram a cabeça e


levaram pra Salvador... (TININHA EXIBE A CABEÇA DE
CONSELHEIRO, ENTRE GRITOS E APLAUSOS) Nenhum
corpo foi enterrado... alguns jogaram no rio Vaza-Barrís... os
outros ficaram lá... Destruíram tudo: mais de cinco mil casas... se
via o fogaréu de longe...

O ELENCO DESFILA PELO PALCO, EM FESTA.

OLIVEIRA - No Brasil inteiro foi uma festa!

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PROFES - As aulas foram suspensas, os funcionários públicos dispensados


do trabalho!

DELZUÍTA -Havia desfiles pelas ruas, comícios, bandas de música... Nas


igrejas os sinos tocavam sem parar.

JACARÉ - Os soldados que voltavam eram recebidos como heróis...

TININHA - Condecorados com medalhas...

TODOS PÁRAM. O PROFESSOR SOBE NUMA CADEIRA.

PROFES (EM TOM DE DISCURSO) - E como prêmio pela valorosa vitória


frente ao monstro dos sertões que colocava em perigo a nossa
república, o governo brasileiro promete construir aquí no Rio de
Janeiro, neste morro a cujo pé nos encontramos, uma casa para
cada soldado que participou das sangrentas batalhas.

APLAUSOS E GRITOS DE VIVA!

DELZUÍTA/SOLDADO - Ôxe! Nós vamo ganhar casa! Aquí nesse morro?

TININHA/SOLDADO - Êta coisa boa! Engraçado é que esse morro aquí


parece o morro da Favela, lá de Canudos, num parece?

DELZUÍTA/SOLDADO - A gente faz o seguinte: a gente já fica aquí no


morro, constrói uns barraco de madeira e espera o governo fazê
as casa, e pronto! Tamo feito na vida! Viva o morro da Favela!

JACARÉ - É... mas quer saber? Promessa de govêrno é promessa de


madrasta... Essa história de Favela aí eu ouví lá no exército, lá no
Rio. Os recos se instalaram lá, e o tal do morro crescendo,
crescendo, crescendo, ficou cheio de barraco...

DELZUÍTA- E as casas?

JACARÉ - Pois é: nunca foram construídas...

DELZUÍTA -Pô... que sacanagem, hein, Jacaré?

JACARÉ - Só, viu, Delzú...


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LONGO SILÊNCIO. CADA UM SE ACOMODA A UM CANTO, TRISTE


E PENSATIVO.

TININHA - Professor, Canudos ainda existe?

PROFES - Não, aquela Canudos não existe mais. O que existe é uma Nova
Canudos, alí perto, um vilarejo miserável...

BENÍCIO - Por mais de trinta anos ninguém se arriscava a passar por alí.
Dizem que a terra gemia e as árvore se retrocia de sofrimento.
Bem depois, a Canudos velha foi inundada... Fizeram lá o açude
de Cocorobó.

OLIVEIRA / ENGENHEIRO - Eu, como engenheiro responsável pela


construção do açude de Cocorobó, quero dizer que esta obra
trará abundância e prosperidade para toda esta região. Esse
negócio de tradição é conversa de poeta. A tradição é muito
bonita mas não mata sêde, não mata fome. Cocorobó será o maior
açude da Bahia! Mais de dois milhões de litros de água! É o
progresso chegando no sertão.

BENÍCIO - Cobriram de água as lembrança e os resto da igreja e das casa...


o Santinho Conselheiro já tinha dito que o sertão ia virar mar...
acho que era pra fazer o povo esquecer de vez... mas num deu
certo, porque a gente sabe que Canudos tá lá... na mesma vida
miserável que num mudô nada... Canudos tá lá, debaixo das água
do açude, e quando a seca chega, seca o açude e tudo volta a
aparecer. Canudos tá lá... ela num deixa que a gente esqueça...

LONGO SILÊNCIO. TODOS ESTÃO MEDITATIVOS. TININHA SENTE


UM ARREPIO.

JACARÉ COMEÇA A CANTAR:

Lá no fundo do açude de Cocorobó


No meio da caatinga castigada pelo sol
Repousa o resto de uma gente
Forte, lutadora e valente

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Que tudo o que queria era ser feliz


Entre orações e palavras gentís
E nesse sonho de felicidade
Alcançou a eternidade.

Ô, ô, Canudos,
Antes uma terra abandonada
Transformou-se em Belo Monte
E o que era nada virou tudo!

Antonio Conselheiro
Deixou as marcas das suas mãos
Em muita igreja e cemitério
Daquele sertão inteiro

E nos corações dos sertanejos


Plantou um sentimento maior
O de que cada um tinha o seu valor
E de que o mundo podia ser melhor

Canudos não morreu, não morreu


Canudos não se rendeu,
Foi vitoriosa na derrota
E quem ganhou foi quem perdeu.

AOS POUCOS TODOS COMEÇAM A CANTAR O SAMBA-ENREDO


JUNTO COM JACARÉ.

TININHA AJUDA O PROFESSOR A RECOLHER OS CADERNOS,


LIVROS E ANOTAÇÕES, E EM SEGUIDA O ABRAÇA.
ELE, SEM JEITO, RETRIBUI.

DELZUÍTA PEGA NAS MÃOS DE JACARÉ.

BENÍCIO E OLIVEIRA TAMBÉM SE ABRAÇAM, AFETUOSAMENTE.

A LUZ VAI BAIXANDO, ENQUANTO ELES, SEMPRE CANTANDO,


VÃO DEIXANDO O CENÁRIO.

À MEDIDA QUE SUAS VOZES VÃO DESAPARECENDO, VAI


SURGINDO O SOM DE UMA FORTE BATUCADA, JUNTAMENTE
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COM O ALARIDO DE UMA GALERA DELIRANTE.

É O FINAL...

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