Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Eje 4.- Cuerpo y vida: el castigo en los discursos filosóficos, jurídicos y políticos en
nuestro presente.
1
“os conhecimentos firmes que podemos colher mostram o caráter religioso do Direito punitivo inicial.”
(BRUNO, 2003, p. 39)
2
“As prisões brasileiras – que já foram descritas pelo Ministro da Justiça, sem nenhum exagero, como
“masmorras medievais” – são, em geral, verdadeiros infernos dantescos, com celas superlotadas, imundas
e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta
de água potável e de produtos higiênicos básicos. Homicídios, espancamentos, tortura e violência sexual
contra os presos são frequentes, praticadas por outros detentos ou por agentes do próprio Estado”
(SARMENTO, 2015).
Nessa perspectiva, em primeiro lugar procede-se um breve histórico sobre o
cárcere objetivando evidenciar na sua gênese que a constituição das prisões nasce com o
intuito de separar, de neutralizar aquele que não deveria fazer parte da sociedade, marcado
pela desculturação do sujeito, que perde o sentido de realidade e de autonomia diária,
mutilando seu eu pela separação do indivíduo de todos os elementos que o identificavam
no convívio social, perdendo seu status social.3
Uma criada de Cambrai, que matara sua senhora, é condenada a ser levada ao
lugar do suplício numa carroça ‘usada para retirar as imundícies em todas as
encruzilhadas; lá haverá uma forca a cujo pé será colocada a mesma poltrona
onde estava sentada a senhora Laleu, sua patroa, quando foi assassinada; e sendo
colocada lá, o executor da alta justiça lhe cortará a mão direita e em sua presença
a jogará ao fogo e lhe dará imediatamente depois quatro facadas com a faca
utilizada por ela para assassinar a senhora Laleu, a primeira e a segunda na
cabeça, a terceira no antebraço esquerdo, e a quarta no peito; feito o que, será
pendurada e estrangulada na dita forca até a morte; e depois de duas horas seu
cadáver será retirado, e a cabeça separada ao pé da dita forca sobre o dito
cadafalso, com a mesma faca que ela utilizou para assassinar sua senhora, e a
cabeça exposta sobre uma figura de vinte pés fora da porta da dita Cambrai, junto
3
“Assim, o que se implementa não é apenas um controle ético-jurídico, um controle estatizado em favor
de uma classe, é algo como o elemento do coercitivo. Estamos lidando com uma coerção diferente da sanção
penal, e que é cotidiana, incide sobre as maneiras de ser e procura obter certa correção dos indivíduos, A
coerção é aquilo que estabelece um nexo entre moral e penalidade. É aquilo que tem por alvo não apenas
as infrações do indivíduo, mas a natureza e o caráter deles. É aquilo que deve ter como instrumento uma
vigilância permanente e fundamental.” (FOUCAULT, 2015, p. 103).
4
“Ora, a identificação do inimigo – o que Schmitt significa a construção tanto do próprio eu quanto da
dimensão problemática do outro – é crucial para a normalização das relações sociais, finalidade almejada
pela exceção e que apenas se realiza com violência.” (MATOS, 2012, p. 303).
ao caminho que leva a Douai, e o resto do corpo posto num saco, e enterrado
perto do dito poste, a dez pés de profundidade. (FOUCAULT, 2005, p. 40.)
A leitura de tal suplício pode soar torturante e indigna em tempos atuais. Porém,
à época, medidas como a citada eram comuns, muitas vezes ainda mais horrendas e eram
justificadas com uma lógica própria. Tratava-se de uma verdadeira liturgia penal, visando
ao fechamento do ciclo: “da tortura à execução, o corpo [do supliciado] produziu e
reproduziu a verdade do crime” (FOUCAULT, 2005, p. 41). O espetáculo sancionador
que se produzia era marcado por um código jurídico da dor e de sofrimento. O suplício
“não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras
detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia
na fogueira ou na roda [...], tipo de mutilação a impor” (FOUCAULT, 2005, p. 31).
Entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, a lógica dos suplícios vinha
rapidamente sendo questionada por diversos movimentos reformistas. Já se associava,
como visto em Beccaria, a barbárie dos suplícios ao próprio crime que se tentava punir,
considerando que aqueles, por vezes, ultrapassavam o delito em selvageria. Buscavam,
então, a supressão do espetáculo punitivo e da liturgia penal calculada dos suplícios,
substituindo tais condutas por uma execução autônoma e burocrática das penas, tirando
das mãos dos magistrados o vil ofício de castigadores. A tese do domínio próprio sobre o
corpo, ainda, ensejava a busca pela anulação da dor e do sofrimento como elementos
constitutivos da pena.
Contudo, não apenas pelas reformas penais foi marcado este período histórico.
Fábio Konder Comparato (2013), indica o surgimento de uma crise da consciência
européia no século XVII, proporcionando impactos nos paradigmas até então adotados
nos campos da ciência, da arte e da literatura e também da política.5 Não se pode dizer,
porém, que os efeitos nefastos da violência e marginalização verificáveis no sistema
prisional estão deixados à obscuridade. Desde há muito a doutrina vem criticando os
graves problemas e falhas do sistema e os malefícios sociais decorrentes.
5Segundo o autor, neste período a Inglaterra viveu uma série de movimentos contra a Monarquia, que
fizeram renascer as ideias republicanas e democráticas, como a rebelião dos Levellers e a Revolta capitulada
por Oliver Cromwell, direcionando ao Parlamento a garantia das liberdades civis e a limitação do poder
monárquico.
própria extinção” (ALVES, 2013, p. 13). Nesse mesmo sentido, Ferrajoli sustenta que a
pena privativa de liberdade não é o meio adequado para lidar com o infrator de uma
norma, que culmina na potencialização dos estigmas do recluso (FERRAJOLI, 2014,
p.167).
Existe uma simbiose, fomentada pelo próprio Estado de Direito, para a exceção e
a normalidade, esses não estão contraditórios no tempo e no espaço, configurando uma
alternância entre tais forma. Pelo contrário, se encontram misturadas, resultando e
condicionando a identificação do inimigo e o uso de violência contra ele.
6
“Para Schmitt, o poder político soberano determina a indistinção entre criação e aplicação do direito e,
em situações de emergência, exerce competências extraordinárias, ou seja, exceptivas, que se baseiam no
uso discricionário do poder, na presunção absoluta de legitimidade dos atos praticados com a finalidade de
restaurar a normalidade jurídica e, por fim, na exequibilidade imediata desses atos cujas metas se justificam
em uma finalidade superior a se alcançar. A decretação de uma estado de exceção se trata, portanto, de uma
decisão política tomada por um sujeito autônomo e superior em face dos mecanismos jurídicos, uma vez
que a decisão do soberano não se fundamenta juridicamente.” (SOUZA, 2019, p. 173).
7
“Com efeito, embora os teóricos do século XVIII extraiam de um discurso teórico-político coerente essa
definição do criminoso como alguém que prejudica a sociedade, já desde a Idade Média vinha nascendo,
através das instituições, uma prática que de certo modo antecipava esse tema teórico: ação pública (...).
Assim, na prática penal, fazia muito tempo que o soberano sibstituia o adversário singular do criminoso e
vinha colocar-se diante deste. E, em nome da ordem e da paz que ele supostamente deve fazer reinar, vem
declarar que o criminoso o atingiu pelo simples fato de ter-se posto num estado de guerra “selvagem” com
um indivíduo, atacando-o independente das lei.” (FOUCAULT, 2015, p. 32).
se a exceção se tornou permanente, a decisão política constitutiva do inimigo
precisa atuar indefinidamente no tempo, com o que se instaura uma situação –
real ou potencial – de guerra sem fim, de perseguição ilimitada e de decisionismo
absoluto e, por isso mesmo, vazio, eis que não delimitado pela possibilidade de
retorno à normalidade. (MATOS, 2012, p. 328-329)
8
“O final do século XX e o início do século XXI são períodos que se caracterizam pela emergência, quando
o excepcional se torna usual e o estado de exceção passa a ser regra, ainda que nem sempre seja formalmente
declarado pela autoridade competente.” (MATOS, 2012, p. 295)
9
“quem vê na sanção jurídica – a típica estrutura do direito, entendendo a sanção jurídica – aqui
compreendida em sentido estrito enquanto sinônimo de castigo – como uma inclusão da violência –
justamente a realidade que o direito pretenderia negar – na composição específica do direito O paradoxo é
surpreendente: para desincluir a violência da vivência social, ele precisa incluí-la como exceção soberana
no próprio corpo do direito.” (MATOS, 2012, p. 297)
10
“Nova tática, pois, apesar das aparências, a prisão não é um castigo velhíssimo cujo sucesso nunca teria
deixado de crescer ao longo dos séculos. Isso porque, até o fim do século XVIII, ela nunca foi realmente
um castigo dentro do sistema penal.” (FOUCAULT, 2015, p. 59)
ordem, no todo ou em parte. Nesse sentido, “o soberano se coloca fora da ordem jurídica
normalmente vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre
se a constituição pode ser suspensa in toto” (SCHMITT, 2006, p. 8), de tal modo que “a
competência para revogar a lei vigente – seja de modo geral ou num caso isolado – é o
que realmente caracteriza a soberania” (SCHMITT, 2006, p. 10). A legalidade não é
intocável, depende das circunstâncias que se colocam na realidade11.
3. Considerações finais
Nesse ensaio buscou-se demonstrar que o estado de exceção não se faz presente
somente em governos totalitários, sendo que se encontra em governos que dizem ter bases
democráticas. Passando pela análise do encarceramento a privação de liberdade se mostra
como a imposição deliberada de dor, e por essa razão deve-se pensar em respostas penais
integradas e preocupadas com a igualdade, cuja a norma se coloque como resultado de
um acordo profundo com seus distintos integrantes.
Referências
11
“Na verdade, a legalidade convive – ou melhor, concorre – com a exceção, dado que aquela se fundaria
no princípio de relatividade de poderes, o qual é posto em xeque quando a ordem pública é ameaçada. Daí
decorre a vulnerabilidade dos direitos fundamentais em tempos de crise, eis que, sem tal possibilidade, a
ordem jurídica liberal se autodestruiria.” (MATOS, 2012, p. 290).
ALVES, Paula Pereira Gonçalves. Da Inclusão Perversa à Seletividade Secundária do
Controle Penal: o processo de exclusão social e seus efeitos na identidade do preso.
2013. Disponível em
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=1a26a28c4beba1bd>. Acesso em 16 de
setembro de 2019.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, 1965.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 8 ed. São
Paulo: Saraiva, 2013.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer
Sica et. Al. 4. Ed. São Paulo: RT, 2014.
FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973);
tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
____________________Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. 30 ed.
Petrópolis: Vozes, 2005.
HAMMERSCHMIDT, Denise; GIACOIA, Gilberto. A Realidade Carcerária. 2013.
Disponível em
http://www.publicadireito.com.br/publicacao/unicuritiba/livro.php?gt=15. Acesso em 16
de setembro de 2019.
MATOS, Andityas S. M. C. NÓMOS PANTOKRÁTOR? Apocalipse, exceção, violência.
Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 105, jul./dez., 2012.
NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho penal. Buenos Aires, Gedis: 2007.
SARMENTO, Daniel. As masmorras medievais e o Supremo. 2015. Disponível em:
<http://www.jota.info/constituicao-e-sociedade-masmorras-medievais-e-o-supremo>.
Acesso em 16 de setembro de 2019.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey,
2006.
SOUZA, Joyce Karine de Sá. Desalienar o poder, viver o jogo: uma crítica situacionista
ao direito. Orientador: Andityas Soares de Moura Costa Matos, Tese (doutorado) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, 2019.