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Mdaos Negras | Antropologia da arte negra | Celso Prudente Panorama Copyright © 2002 by PANORAMA COMUNICAGOES LTDA. Dircitos reservados. Proibida a reprodugio, mesmo parcial, e por qualquer Gelso Prudente proceso, sem autotizagio da Editora. 38 edigio: janeiro de 2003 Dadbos internacionais de Catalogagio na Pul gio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) M a O IS N e g ri a 1S Prudente, Celso ‘Méos negeis: antsopologia da arte negea / Celso Prudente, — Sao Paulo: Edicora Panorama, 2002. 1. Arte e antropologia 2. Aste negra T. Tieulo Tl. Tieulo: Antropologia da arte negra ISBN: 85-7567-003-4 02-3490 CDD-306.4708996 Indices para catilogo sistema 1. Arte nega: Antropologia cultuzal: Sociologia 306.4708996 Pens Bons Antropologia da arte negra propésito do ensaio antropolé- gico Mos Negras é analisar a obra de artistas negtos. No contexto das artes pldsticas, a arte negra representa uma tendéncia ainda emer- gente a medida que reflete uma arte de causa e afirmagio. E inevitdvel que o artista, sendo a antena da sociedade, capte o sentimento dos novos rumos que ela haveré de seguir. Em alguns Introducg casos, essa compreensio se configura dentro ntro ucao de um processo dramético, cuja trama sugere um bricolage, tal como um mosaico de mui- tas entradas, &s vezes, poucas saidas, um vai- vém demasiado. ceo prudente Pensar a milenar histéria africana perante a breve histéria secular brasileira, por exemplo, é um exercicio antropolégico de dificil realiza- go diante da conjugagio de realidades cultu- rais tao distintas, No Ambito das artes plasticas, somente a iconografia com seus signos poderia indi- car uma significagao propicia para indagar- Mos questoes da ciéncia da histéria, pois na arte tudo € possfvel, j4 que uma das formas de entendé-la é observé-la em sua esséncia de liberdade. A arte também pode representar um dig- logo substancial, de um tempo que busca exis- tir para que, nesse ato, a existéncia se revele ontologicamente de modo que o ser seja uma manifestagéo objetiva do subjetivo. O artista, espécie de bruxo, interpreta nos objetos a projegao de uma imagem onjiri- ca pura que busca se expressar para o mundo dele — imagem essa que ganha dimensio atemporal num tempo dado por relacées de- terminadas — cuja temporalidade nao permite 4 compreensio de sua infinitude em relacées de finitude. Observemos, entéo, Marilena mes negras Chaui'" quando indaga 0 que € criagao. Por que criagao? Porque entre a realidade dada como um fato, instituda, e a esséncia secreta que a sustenta por dentro, hd 0 momento instituin- te, no qual o ser vem a ser: para que o ser do vist- vel venha & visibilidade, solicita 0 trabatho do pintor; para que o ser da linguagem vena d ex- presto, pede 0 trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha it inteligibilidade, exige 0 trabalho do filésofo. Se esses trabalhos sao criado- 16s é justamente porque possuem um modelo que Jhes garante 0 acesso ao ser, pois é sua ago que se abre, e abre a via de acesso para 0 contato pelo qual pode haver experiéncia do ser. A colonizacio européia dispensou um tratamento violento ¢ marginalizante ao pen- samento religioso africano. Considerou seus cultos politefstas ¢ grosseiros, enfim, como uma heresia mistica, A parte mais dolorosa, entretanto, veio com a didspora negra. No Brasil, por exemplo, provavelmente parte da (1) Cutaut, Marilena, Merleau Ponty: obra de arte e filoso- fia, In Adauto Novaes (Org.) Artepensamento, p. 467. coho prudente literatura mitolégica africana trazida por alguns sdbios escravizados foi queimada por ser con- siderada bruxaria. Mais uma vez, portanto, os deuses africanos foram vistos e tratados como fantasmas por uma cultura que, impregnada de eurocenttismo, mostrou sua incapacidade de re- lacionar-se com a diferenga epistemoldgica. A violéncia do sistema escravista concorreu para desarticular a riqueza cultural dos africanos Como bem nota o professor Darcy Ribeiro: A diversidade lingiistica e eulbural dos contingen- tes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades rectprocas que eles traziam da Afri ca e a politica de evitar a concentragdo de escra- vos oviundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formagéo de micleos solidarios que re- tivessem 0 patriménio cultural afticano, Cabe in- dagar, para entendermos essa histéria, se tais fatos nao tivessem ocorrido, o que seria a plena contribuigao africana para a humanidade. (2) Ruvetro, Darcy. O povo brasileivo: evolugito e o sentido do Brasil, p. 115. nfs negras O trabalho livre é incipiente em relagio 20 escravismo em nosso pais. Antes de comple- tar 500 anos, o Brasil jd era marcado pela vio- léncia de 350 anos de trabalhos escravos. Se 0 capitalismo fere os anseios do trabalhador livre, © comportamento senhorial do periodo escra- vista, no Brasil, impregna as relagdes do traba- Iho livre, produzindo mecanismos que aviltam a natureza ontoldgica do homem. A inverséo de valores ocorrida na constru- 40 colonial negava o fazer em favor do pensar. Essa contradigao ideolégica configura-se como uma patologia visivel na estructura do pensa- mento colonial, pois pensa a histéria fora das relagdes econémicas, tal como um pensar sem 0 sentido histérico dado pelo fazer. Esse intrincado de densidades semanticas coloniais serve de alerta para que se faga uma teflexio que permita a compreensao da ausén- cia de dialética histérica nessa forma de domi- nagio, na qual o fazer nao foi a base do pensar. Nota-se, portanto, fortes contradigées, que sio verdadeitos tijolos da edificagao do pri- vilégio do direito, articulado no pesado fardo da fantasia autoritéria do direito do privilégio ceko prudente que impregna as relacdes crabalho-capital, nas quais a forca de produgéo resgara seu status hu- mano no longinquo universo da arte, O ensaio Maos Negras tem como objetivo contribuir para a elucidagao do universo oniri- co do negro brasileiro, traduzido na sua inquie- tante utopia artistica, em que tenta rectiar um mundo segundo os valores das etnias afticanas que vieram para c4. Na posstvel ontologia das divindades ne- gtas, a existéncia esté norteada pelo bindmio indis portanto, que todas as relagdes do ser nascem ¢ ‘ocidvel vida ¢ morte. E dessa maneira, se estabelecem no mundo vistvel do artista negro, Os artistas negros inspiram-se na forga das culturas africans s. Por isso, essa arte de resisténcia recria os fragmentos da vida mate- rial em harmonia com o invisfvel mundo dos dos, como na religiosidade afticana tradici- onal. Em outras palavras, a dindmica harmonia das dangas da orixalidade segue a ordem da maestria invisvel do ritmo dos deuses da mor- te, Enfim, a teleologia da morte encontra, na ja cosmogonia africana, 0 princfpio para a har- monia da vida visivel. nals negeas A contradigio das relagées de produgao, que impregna a nova forma de existéncia, de- corrente da revolusao recnolégica, infelizmente nao superou a velha heranga de dominagao que nos reduz a uma tristeza irrepardvel da espécie, que se traduz na exploraggo do homem pelo proprio homem. Daf pensarmos na vocacional dependén- cia do trabalho do outro, que escreve o “eu” da situagio estabelecida ~ colonial - colocando 0 outro numa esfera sem sentido, pois essa situa- do the furra a esséncia da vida. Em outras pal: vas, essa relagdo significa que o império da dominagao eurocéntrica se faz. num proceso de reificagao do outro € s6 © concebe numa rela- go de dominagao. A existéncia de quem domina s6 se fax através da subtragio essencial daquilo que o produtor de sentido constrdi. Assim, 0 domi- nado é 0 construtor de sentido, mas sem ter 0 direito de estar dentro desse sentido para o seu regozijo. Ora, diane de uma tal negagao do traba- Iho, como uma constante da perseguicéo da alma do negro, sé um lugar se constituiria em celso prudente terreno fértil para se plantar a semente da vida como possibilidade da comunhio de todos — a arte, na qual as pessoas se relacionam no plano da alma e do sentido, ou seja, no plano da in- tuigao, que Nietzsche jé percebia ser a mais in- teligente das inteligéncias. E sensato supor que, nessa perspectiva, a arte do negro na didspora represente fragmen- tos miméticos de tantas outras Africas, para que sua alma venha repousar, enquanto 0 seu corpo” ainda esta preso a relacées de domina- 40 eurocéntricas, 0 que pressupde a auséncia de respeito & diversidade que marcou os tilti- mos séculos no Brasil. (3) ASETT Associagio Eeumenica de Teslogos do Ter- eciro Mundo, Identidade negra ¢religito, p. 43 “F. inevitdvel que o artista, sendo a antena da sociedade, capte 0 sentimento dos novos rumos que cla haverd de seguir... O artista, espécie de bruxo, interpreta nos objetos a projecio de uma imagem onitica pura que busca se expressar para o mundo dele. Olimpo negro obra da artista plastica Malema — Maria Aparccida Lemos Martins — revela a opuléncia de importantes impérios africanos da época pré-colonial, sugerindo uma outra histéria do continente negro, isto é, a verdadeira historia negra do ponto de vista da africanidade. A histéria da Africa mais difundi- da reflete a visio da colonizago européia, na qual 0 continente afticano invadido perde a sua cor para ser apropriado em sua axiologia por M a lem a atores embranquecidos. me A pintura de Malema é de um ativismo (14/05/1943) litico que faz. do pincel uma arma poético-picts- ; rica, Sua iconografia ensaia distinguir-se por ann a celso prudente uma verticalidade afirmativa, que reescreve al- guns aspectos da histdria africana na perspecti- va afto-brasileira. A utopia da artista reconstréi uma Africa mie para resgatar a condigao de filho que € ne- gada aos afrodescendentes, o que configura na sua arte uma bandeira pictérica de autodeter- minacao, permitindo-the asfaltar um caminho préprio. A inquietude de sua obra ganha dimensio incomensurdvel ao indicar processos histéricos passados e, por isso, poderfamos certamente no- mear sua arte de regressiva. Esse cardter regressi- vo, contudo, confere a seu trabalho uma marca de profunda originalidade. ‘A sua consciéncia racial é uma estacio onfrica, um vefculo que a leva para o distante devaneio, tal como se entrasse num tunel do passado e encontrasse a mitologia iorubé na sua voltipia existencial ¢ viesse, entao, até nés, tal como uma forga de Exu, revelar 0 gemuino uni- verso dos deuses. A originalidade da galeria de orixés de Malema indica uma laboriosidade construti- vista, como o exercicio artesanal de maos que nos negra obedecem ao rigor intelectual de quem busca reconstruir com seus tragos a histéria de um ponto de vista africano, Sao tragos distintivos do artista afro-brasileiro em geral que, na sua esséncia, é um construtor de passados de mora- das onfricas, © que lhe permite residit num presente idealizado que satisfaga sua essénci humana enquanto ser. Pantedo dos Deuses Africanos procedimento da artista mostra a convivéncia do sagrado ¢ do profano, refletin- do sua devogao ao pantedo iorub4. A tendéncia sacra de sua produgo expressa a tentativa de resgate dos aspectos da axiologia africana ao es- tabelecer um novo Olimpo, em sua galeria dos orixds, com os mitos ¢ os deuses que foram pos- siveis recuperar nas trégicas condigées da dids- pora, para formar a mitologia afto-brasileira O exercicio de construgao de um tecido protofiloséfico iorubs, de um modo geral, levou o artista negro, signatério desse com- promisso, a desenvolver uma possivel exegese iconogréfica que dimensiona uma natureza Deralhe: Ogu (1989) ambivalente na arte negra: forgas interiores convivem com as tendéncias estéticas e a de- manda religiosa. O fato estético na arte afticana & completo. O artista, muitas veaes, usa a sua produgdo em cultos e rituais, onde se congregam diferentes sig- nificados religiosos, mégicos, com diferentes line guagens artisticas: expresso plastica, corporal, musical, danca, etc, de acordo com Regina Funari. Essa possibilidade de relagio entre 0 sa- grado c o profano € uma peculiaridade da arte negra. Obser intrar -se no artista afrodescendente © gente esforco de criagio idilica de um paradigma existencial de ordens invistveis con- gubstanciado no uso da mimese, notadamente de fins estéticos, na qual se projeta a arte afto- brasileira. (@ Fora, Regina Maria Lintz. Valorizagito da cultsera ne- an africana ro ensina da arte: andlse de curios des fax suldades de artes no Brasil em busca das ratzes eultunais africanas, vol. 1, p. 88. Decale: Ben ala Fertilidade (1989) anes neges Ena perspectiva artistica e de conjunto que a colegio de deuses do pantedo afto-iorubé deve ser vista. Pois nao se trata, do nosso ponto de vista, da produgio de um orixd, mas sim de ali méria popular, em forma de histéria existencial, que vai formando uma nova mitologia com base na mitologia ancestral. Como se o exercf- um universo de histérias cri adas na me- cio imaginario, que se forma no arquétipo de significagSes de ontem, ‘pudesse escrever, pin- tar, fotografar, filmar ¢ esculpir um existencial inatingivel, mas determinante na dinamica das relagdes das pessoas hoje. Dilma de Melo® ressalta que @ arte africana é uma arte conceitual, comunicando idéias, conceitos e simbolos. E: nessa perspectiva que a arte negra, como arte popular, se con- substancia num quadro de inter-relagdes, de possibilidades do concreto ¢ do subjetivo, cujo resultado revela uma erudigao singular do artis- ta negro. (5) Suva, Dilma de Melo. Arte afro-brasilein: origens ¢ desdobramentos, p. 90. ) nas negra A complexidade da arte negra sugere a possibilidade constante de reformulagéo dos cAnones estabelecidos da arte, mesmo que des- considerada por esses cinones. Esse possivel fe- némeno estético encontra em Malema, com “Panteao dos Deuses Africans”, talvez, seu principal icone. Situagdo que permite comparé- la a uma sacerdotisa que com suas maos cons- tri noves céus com senso Iitico de anjo rebelde, 0 que Ihe garante representatividade étnica no mundo artistico. Oxum (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra-e massa epéxi modelada & mao com pintura em latex éleo, 55 x 40 cm. Oxummaré (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra € massa epéxi modelada & mio com pintura em létex ¢ dleo, 50x 40cm. Obd (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra € massa epéxi modelada & mao com pintura em latex ¢ leo, 45x 35cm. Oxdssi (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra e massa epéxi modelada & mao com pineura em létex ¢ dleo, 58 x 40 cm. Bxu dos Caminhos (1989) Técnica: arame fixo em pedra e massa epdxi modelada & mao com pincura em litex ¢ dleo, 55 x 30cm. Xangé (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra ¢ massa epéxi modelada & mao com pintura em latex e éleo, 53x 40cm. Yemanja (1989) Tecnica: arame fixo em pedra ¢ massa epéxi modelada & mao com pintura em kicex e éleo, 50 x 30 cm. Oxalufi (1989) Técnica: arame fixo em pedra e massa epéxi modelada & mo com pintura em litex ¢ dleo, 60 x 64cm. "i Nand Buruku (1989) i Técnica: arame fixo em pedra e massa epéxi modelada 4 mio com pintura em latex e dleo, 40 x 35 cm. Exu da fertilidade (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra ¢ massa epéxi modelada A mao com pintura em létex ¢ dleo, 75x 78cm. Obaluaé (1989) Oxaguid (1989) Técnica: arame fixo em pedra e 7 Técnica: arame fixo em pedra massa epéxi modelada & mio massa epéxi modelada & mao com pintura em litex ¢ leo, com pintura cm latex ¢ éleo, 45 x 32cm. 41x 50cm. Osim (1989) Técnica: arame fixo em pedra e massa epéxi modelada & mao com pincura em létex e dleo, 36x 35 cm. Ossanha (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra € massa epéxi modelada 2 mao com pintura em latex e dleo, 60 x 30 cm. Xapand (1989) Técnica: arame fixo em pedra APE « massa epéxi modelada & mio com pintura em latex ¢ dleo, 40x 65 cm. Jansé (1989) ‘Técnica: arame fixo em pedra ¢ massa ep6xi modelada a mao com pintura em latex ¢ deo, 65x 50cm. UF Renta, Mereado Arabe (1998) ‘Técnica: dleo sobre tela, 100 x 60 cm. Mercado Arabe ‘sta tela a artista tenta uma ago afirmativa em favor da negritude, de tal sorte que seu trabalho revela a Africa num periodo pré- colonial ¢, ainda nessa instancia, rcafirma 0 vetor drabe como uma descendéncia negra, fato que a ideologia do embranquecimento tenta negar, E interessante notar que o tom discursivo de sua pintura tem como base tons pastel, com sombras mais fortes que as figuras, Provavel- mente a verticalizagio da imagem acrescenta densidade iconogréfico-semantica & sua pintu- ra ¢ desperta para a possi go das conquistas ¢ afirmagdes mouras como. parte do acervo cultural negro-africano. idade de recupera- ns negeas As perspectivas cortadas por tragos de tendéncias cubistas, por sua vez, promovem a tensao que dé a cor dos seus personagens um discurso racial. A tela revela a epistemologia africana com um passado original, apropriado por forgas estrangeiras que se valeram da essén- cia dos principios negros , depois, passaram a escamotear essa apropriagao cultural. A Preferida do Sultao (1996) Técnica; dleo sobre tela, 80 x 100 cm. A Preferida do Sultao tela sugere uma articula- ¢40 pictorica dramatica na qual os tracos narra- tivos subtraem as pessoas do primeiro plano e colocam um céu de cores diferentes, de tal sorte que o lilfs vai ganhando espaco entre o azul e 0 branco das nuvens para indicar que tudo é pos- sivel — as pessoas sé so pequenas pelo medo de se projetarem, Assim sendo, nas raz6es que se estabele- cem na dimensao da supremacia divina, a subor- dinagao das pessoas as forcas sagradas harmoniza as relagdes entre as pessoas no plano da existén- cia, tornando-as grandes na interpretagéo do outro e fazendo-as wanscender o sentido do nls negras supremo, Nessa perspectiva, “A Preferida do Sultao” projeta para a condigao de suijeito aque- la que se cornou objeto de duplo preconceito, isto é, a mulher negra discriminada por ser mu- Iher por ser negra. A presenga da mulher negra que se proje- ta para o alto, no sentido das relagdes césmicas, a impée como pessoa ¢ ganha, nesse contexto, todas as nuances que expressam a feminilidade, Esta tela sequer se configura com sensualidade, mas apresenta a mulher como elemento basilar de um povo que nao se deixa vencer pela domi- nagio eutocéntrica ¢ resiste, também, pela for- ga de ser e de se afirmar Malema faz, um ativismo racial de delgadas complexidades pictéricas. O vermelho que se agita nas mos da protagonista sugere que para 0 negro se tevelar belo € necessirio que lute, Ela transforma sua obra em espaco de luta em favor do ser contra as formas de preconceito. Sua arte indubitavelmente € arte engajada, Sua causa é a negritude. Assim, a artista busca enriquecer 0 senso de humanidade em favor da coexisténci solidatia e entiquecedora das diferengas. O Guerritheiva do Deserto (1996) Técnica: dleo sobre tela, 100 x 60 cm. 0 Guerrilheiro do Deserto ‘gistro testemunhal ¢ idili- co da capacidade de resisténcia africana frente 20 colonialismo sem medida, contra o dircito de ser continente, em meio & complexidade de Estados na Africa, “O Guerrilheiro do Deser- 0” insiste num compromisso histérico sem se comprometer historicamente ¢, assim, pode re- presentar todos os ideais de soberania dos esta- dos jovens, que se formaram num proceso desencadeado a partir da década de setenta do século XX. A postura do guerrilheiro inscreve-o numa circunstancia dramdtica que permite uma com- preensio teltirica transcendental da tela. Esse ns negnas fendmeno pictérico € observével no constante tom verde do deserto, provavelmente intencio- nal. A cor pastel do deserto dé 2 personagem, uma dimensio ontoldgica ¢ mitoldgica transdi- mensional, permitindo ao guerrilheiro ser ge- nuinamente afticano, portanto, representativo da resisténcia africana como um todo. A verticalizagao, no primeiro plano, leva o guerrilheizo a adentrar por entre as nuvens, a divinizar-se na postura humanista de defensor da paz ¢ da autodeterminagao. Hé um leve sor riso em seu rosto que lembra um trago postico sustentado no branco de Oxali, 0 que remete a uma oxalalidade que chama atengio para signos que espelham paz, A magia existencial do traco negro do € possivel entender a obra de Shirley de Queirds sem compreender 0 universo onirico do artista negro que manifesta consciéncia de afticanidade. E importante fazer um exercicio cartogréfico e trazer a imensidao do oceano para se pensar uma travessia. A cada contradigao vivida, nesse proceso, aumenta a distancia entre o negro ¢ a sua Aftica de além-mar. O tempo do artista dilata-se por esses mares revoltos; aqui, talvez, ele viva sem Sh L Hey de Ou eir6 S ’ lugar, sem diteito de viver sua personalidade impregnada de africanidade. (05/10/1943) O direito de ser 0 direito de livvemente agir conforme a sua personalidade, ou seja, 0 conjunto cclso prudent organizado de suas particularidades naturais, sua realidade biopsicossocial. Fses componentes da na- tureza humana dos quais resulta a personatidade passa a ser bens dai pessoa humana, alids bens md- ximos (vida, liberdade, corpo, honna, integridadle psiquica, cviagies artisticas, intelectuais, etc.), sem os quais as pessoas nito existiviam como tal, conforme ensina Eunice Prudente. Sem poder vivenciar plenamente sua per- sonalidade, o artista negro tenta abstrair a reali- dade material para construit no contratempo do tempo um espaso imagindtio. E uma luci- dez to profunda, de légicas subjetivas, em que as marcas do triste passado sao esséncias basila- res para a construgao do futuro alegre. Uma es- pécie de trabalho missionério iconoclasta que consttéi, para o amanha, mundos que acabam por fazer o alicerce de uma nova mitologia, de um possivel perfodo em que seremos sujeitos da histéria ©, no futuro, mero objeto de um t6ria remota passado histérico de uma his (© Paupente, Eunice Aparecida de Jesus. Persanalidade integral: cidadania plena, p.7 nes negra Max Weber” observa que os frutas de todas 4s tentativas econdmicas, sociais e politieas do pre- sente beneficiariio ndo as geracdes vives, mas as fu- turas, Se nosso trabalho tem sentido, ele sb pode ientar prover ao futuro, isto é, aos nossos sucessores. Nota-se, também, uma complexa nature- za gregitia na produgéo negra e miscigenada do artista brasileiro. Nesse contexto, é sensato su- por que a forca individual desses artistas € im- pregnada por uma dinamica emoldurada de um cardter inegavelmente coletivo. Em alguns casos, parece até que a orixali- dade do artista afro-brasileiro existe para harmo- nizar a relagao entre ele ¢ entes tio diferentes de sua natureza, numa concordancia consubstan- cial da razio de entender 0 outro como expres- so daquilo que se quer para si. Dai a responsabilidade de produzir 0 belo para todos a partir de uma beleza de todos, para existir belo como expressio do interior, tal como um existencial profundo que permite ver © outro como sua prépria extensao G7) Wener, Max. Ensaios de sociologia, HH. Gerth; C. ‘Wrigth Mills (Orgs.), p. 50. xk prudente Na obra de Shirley de Queirds, percebe-se a polissemia nos tragos que se destroem para construir 0 repouso de um “eu” que s6 se per- mite ser na complexidade de tantos outros “cus” que plasmam o sentido do individuo. O objetivo da Arte Africana sempre apresenta um lado enigndtico, abrindo expaco para o desco- nhecido, de acordo com Neyt e Vanderhaegere.® Esses autores também indicam a possibilidade de saidas subjetivas de natureza sagrada, Nese caso observamos que a artista se projeta numa relagdo de doacdo utdpica ¢ vislumbra a indivi duaggo como saida para o mundo que se fecha na auséncia dos deuses que se foram Dessa maneira, a emergéncia da afirmacao éinica no discurso da artista dar-se-ia numa pos- sivel volta a0 pasado do suposto primitivismo afticano. Assim como um retorno a projegio da africanidade enquanto esséncia da modernidade — que se coloca, talvez, como tinica aleernativa para o negro se salvar das patologias sociais, (8 Nast, Frangois; Vanbertarcere, Catherine. Arte das cortes da Africa negra no Brasil. In: Arte afvo-brasi- deine, p. 36. es negra Nessa perspectiva, a estrutura da produ- so iconografica de Shirley de Queirés parece se estabelecer como uma espécie de remédio que permite a resisténcia utdépica do negro frente ao virus do racismo que busca fragmen- tar a condigao ontoldgica do afro-brasileiro. Podemos dizer que sua obra é marcada pelo caréter de Obaluaé, que se estabelece como vetor indicative de cura para a melhoria do todo individualizado, que a orixalidade entende e re- flete como alternativa existencial. Para tanto, essa intervencdo cirtirgica ¢ pedagégica se faz através de uma consciéncia ambientalista, cuja subjacéncia se manifesta numa flora pontilhada de’folhas, que indicam a cura ¢ a morte, mas tudo numa imbricago de vida, num colorido lidico cuja consciéncia médica sociocultural de base énica restemunha o respeito ao outro € a compreensao do todo. Obaluaé discribui pipocas com pequenas fa- tias de coco para salvar a pessoa da alienagao. E preciso entender nesse gesto 0 bindmio indissocid- vel vida e morte, para que encontremos a harmonia da cosmoviséo afticana e vejamos nele o elemento primordial da estética utépica da afto-brasilidade. A Jangada Vai ao Mar (1999) Técnica: dleo sobre tela, 60 x 80 cm. A Jangada Vai ao Mar primeiro passo para o resgate do status humano, furtado na dura contradi s6cio-racial do afio-brasileiro, € uma recompo- sigdo geografica idilica, tal como 0 caminho do inferno para o paraiso, através das aguas encan- tadas que venceram os monstros de Camées para voltar de além-mar mae Africa, nas 4guas magicas de Iemanjé. ‘Tal fendmeno se percebe também na ico- nografia baiana dos pescadores devotos de Ie- manjd, que recebem da divindade o direito de existir na busca do sol no fundo do mar, garan- tindo a sobrevivéncia dos entes mais préximos na comunhao da mesa simples, mas farta de des negras amor dos pescadores afto-amerindios, conforme a abordagem de Barravento, filme de Glauber Rocha.” Tudo se passa acompanhado pela musica- lidade dos tambores sagrados. O uabalho de- voto de uma possivel socializagio artesanal, na qual os meios de produgao pertencem & comu- nidade, que s6 percebe a hierarquia na magia da divindade dos mares. Esse cenatio traduz a esséncia da pintura de Shitley de Queirds. Depois de seus antepassados terem deixa- do a Africa, cla também migrou da Bahia, por isso a sucessio de descerros caracteriza seu tra- 0, sugerindo o lugar que nunca teve com um devancio litico ¢ irénico, no qual mostra o que ndo tem, para indicar © que é direito de codos. (9) Prunente, Gelso. Barravento: 0 negra como possivel nefevencial estésico do cinema novo de Glareber Rocha, p. 51. Tenho uma Fazenda (2000) ‘Técnica: dleo sobre tela, 70 x 100 cm. Tenho uma Fazenda formacao de escritora da artista reflece-se nesta tela de modo claro, por meio de tragos discursivos que remerem aos sem-terra, Ao possuir uma fazenda imagi- dria, mostra, ironicamente, a realidade dos despossuidos. Tanto é verdade que a pintora, com o seu pincel querendo ser pena, pinta e meio que escreve 0 célebre livro Tenho uma Fa- zenda. O que para a maioria nao foi dado o direito de tet, para cla é reflexo da estratificagao social, na qual poucos tém muito € muitos nao cém nada, Esta tela tenta dar as pessoas 0 que elas nunca tiveram, 0 que parece indicar uma ros nega intetrogacao infinita na iconografia da artista, caracteristica de um ceticismo singular, Talvez, venha dai a origem do rom melancélico da sua pintura, na qual a tinica possibilidade de alegria est na tentativa de contestagao neo-realista contra o preconceito racial que esvazia ¢ isola ser das pessoas. Com 0 poder onirico de recriar a realidade, seu trago devolve, no plano artisti- co, 0 direito de posse aos despossuidos. E Domingo (1999) ‘Técnica: dleo sobre tela, 60 x 80 cm. E Domingo jornada dura ¢ desuma- na do perfodo escravista parece atordoar os dias da artista. No refiigio da noite, quando 0 corpo descansa, sua alma vai em busca de lugares onde o negro tenha direitos enquanto pessoa para, assim, realizar-se enquanto ser. Sua pintura ¢ a criagdo de um momento onirico, com tambores convidando as divinda- des africanas para que interfiram na realidade. A devogio artistica aos orixds solicita &s divindades que nao deixem a dura e violenta sobrevivencia fartar 0 universo existencial das pessoas, que ga- rantam ao individuo poder tragar o destino cole- tivo de uma existéncia harménica, nos sonhos ros nega da tarde comunal, de domingos que nunca tiveram. Ao elaborar uma dificil construe moné- tona, a artista mostra sua erudigao na leveza da combinagao de cores. As casas ocupam o lugar das pessoas, transformando-se em edificagses vazias, sem a graca dada pela presenca humana. Saudades (1999) Técnica: dleo sobre tela, 60 x 80 cm. artista utiliza tragos ver- ticais para retratar a dominagio que leva as pes- soas a se distanciarem do sentido teltirico do seu-lugar. Sua ficgéo pictérica mostra prédios que © pedreiro cimenta com seu sangue, mas nfo habita. O sentido da realizagio de morar deveria ter conexao com o fazer da construcio, por isso fica apenas uma saudade infinita para aqueles que dominam um vazio, no qual nada tem sentido, Pode-se dizer que, na sua pintura, a acumulagéo é um mero lugar abandonado. anul sobre as casas sugere uma tristeza na qual o azul no branco das nuvens vai se apagando para renascer, talvez, numa bacia gad) nos negra lacustre que se fecha. O componente irdnico de sua obra mostra uma profunda inquictagio com 0 que é dado; um didlogo constante entre 0 sobreviver ¢ 0 existir, de tal sorte que s6 resta a saudade™ que, para a autora, se traduz em saudades do futuro, na esperanga de que um dia os bens socialmente validos sejam acessiveis a todos, De novo a interrogagéo na pintura de Shirley de Queités, postura indagativa que faz dela uma celebridade. (10) Isso pode ser apreendido na aise-en-scbne dos ritos religiosos: candomblé ¢ macumba em Barntvento (..) ele jd €a demonscragio de um cliché inconsciente que se re- vela através de Aruan apontando para o infinito (Eis sua terra, Aruanda, de onde (..) de onde eu vim s6, deisei ki pai, deixci ld v6 (...) Viemos de I escravo, mas escravidéo jé acabou.). Gernen, Raquel. Glauber Rocha: wma obra pessoal, p. 31

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