Sunteți pe pagina 1din 9

1

Viagem a Andara: proposta fantástica e literatura fantasma


Heloísa Helena Siqueira CORREIA

Começamos pela diferença entre Viagem à Andara: livro invisível e livros de


Andara, livros visíveis, todos frutos do invisível e que para ele apontam. Os livros
visíveis são 17, todos dialogam com o outro livro, o invisível. A proposta força a
memória a voltar a Pierre Menard, seu catálogo de obras visíveis e sua obra invisível:
Quixote, e às resenhas borgeanas de livros que não existem, mas que tem história, autor,
personagens, narrador e críticos, como “Aproximação a Almotásim” e o volume 46 da
Enciclopédia que atesta a existência de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius (BORGES, 1994). E
há ainda os intertextos explícitos com Eckhart, Cortázar, o hino do Rigveda, os
Evangelhos e Hölderlin, o que, no entanto, por ora não será explorado.
Neste texto trataremos apenas dos três primeiros livros de Andara: A asa e a
serpente (1988, p.11-57), Os animais da terra (1988, p.59-108) e Os jardins e a noite
(1988, p.109-176).
A cada livro visível um tempo é percorrido, o próprio texto nos diz: - “[...] sem
um texto não há tempo” (1988, p.112), e não se define Andara, ela ora se aproxima, ora
está dentro, em nós, ora é nada e lugar distante, passado, esquecido ou em ruínas, ao
lado da floresta, entre o rio e a floresta, ora é a África que está em nós, e uma vez chega
a ser o Andara, personagem que impõe medo porque carrega pessoas para a morte
(1988, p. 164). A cada vez que se respira ou se sente o sopro do vento na face é Andara
que surge, as coisas que mudam de lugar aludem a Andara, lugar em que nada fica no
lugar (CECIM, 1988, p. 31). Nas palavras do texto: “Viagem a Andara/ “O não-livro.
Não existe, não existe/Literatura fantasma/Não foi escrito./Enquanto texto, tudo o que
teremos dele é um título.” (CECIM,1988, p. 12).
Andara é o lugar onde uma criança é comprada, e é o lugar aonde Santa Maria
do Grão (nome antigo da cidade de Belém) já vai avançando para a floresta, como
lemos em Os animais da terra (1988, p. 89), e nesse sentido é um tipo de entrelugar, o
que se confirma na explicação de que, nela, natureza e civilização se abraçam e se
contrapõem, como se pode ler em Os jardins e a noite, texto que a ela se refere também
como “labirantro”. Nas palavras desse livro, encontra-se a afirmação de que “Andara é a
viagem fora de si e deverá continuar sendo isso, um gesto sem gesto, estará em outra
parte.” (CECIM, 1988, p. 111). O texto é recorrente em chama-la de ilusão, mas antes
2

será alusão, lampejo de memória que ora brilha ora some, fazendo alusões a isso e
aquilo ao mesmo tempo. Trata-se, algumas vezes, de um local que suscita medo, afinal
basta sair de casa e dá-se de cara com a floresta, em que se é rondado por dentes e olhos
(1988, p. 162). Também “Andara foi onde Santa Maria do Grão começou. No
emaranhado.” (1988, p. 162). E para surpresa do leitor o emaranhado concede o
conceito de região:
Este [o emaranhado] não tem fim, seus rios que não existem e estas
árvores ausentes ao redor se estendem a perder de vista. Isto vai até onde
um homem puder ir. E vai mais longe ainda. Esta é a região” (1988, p.
162).
E o emaranhado não deixa de ser também o conceito do todo “(...) E
Andara é mais: Andara é o emaranhado inteiro (1988, p.163).

Os textos são prosa e poesia, contam histórias, criam imagens e sons e dão à luz
aforismos densos, que fazem calar os leitores mais eloquentes. Aforismos podem estar
localizados em qualquer ponto dos textos e por vezes se repetem. Vejamos alguns: “É
preciso amar os mortos como se ama os vivos” (1988, p. 30), “Um homem racional está
perdido. Ele não pode dizer que não compreende aquilo que acaba de compreender”
(1988, p. 35), “Andara é a África que temos dentro de nós” (1988, p.132), “A infância.
Ela é bem esse tempo de espantos por toda parte. E ela não acaba nunca, eu sei.” (1988,
p. 164), “Embora a ave mais bela seja aquele que se recusa a voar” (1988, p. 59), ou
ainda: “E dito isso, então dizer: muletas./E: sozinho se descobre as coisas melhor./ Aí
começam as chances de alguém se tornar centopeia.” (1988, p. 60), e: “A fome vem na
ora inicial da vida, quando é manhã e os olhos se abrem./Está então dizendo uma outra
voz./E é só?/Então, nada mais irá acontecer além dessas vozes? Não?/Ainda não
sabemos. Inquietos, os viciados da continuidade.” (1988, p. 137). Os dois últimos
nitidamente cheios de presença do estilo do aforismo nietzschiano, que pensa, reflete,
sugere e mistura poesia e narrativa.
Golpe de maestria de invenção: Cecim criara o que não há, algo invisível, algo
que nos escapa, e se nos escapa é porque inevitavelmente o percebemos presente no
fundo, no raso, cheio de mistérios, animais e acontecimentos, e reflexos no vidro que
possibilitam a miragem da visão de um outro, quando o que se vê é ainda a si mesmo.
Sua literatura, ele a chama “literatura fantasma” e a alimenta com muitas escrituras e
entrevistas que potencializam o mistério que é Andara.
3

Em entrevista ao Portal ORM de Belém, Cecim multiplica os sentidos de


Andara. Leiamos suas considerações:
Andara é a Amazônia. Nasceu a partir da natureza amazônica, mas uma
Amazônia sonhada, transfigurada em uma dimensão que simboliza toda a
vida. Quero dizer, desde o que vemos, as coisas ao nosso redor, até o que
não vemos, mas pressentimos. Os livros que escrevo, os chamados ‘livros
visíveis de Andara’, são sempre convites a viajar além, até o invisível.
(CECIM, 2015)

Uma Amazônia transfigurada sem dúvida, tornada evanescente, mítica, mística e


também sustentada por lances históricos que se pode ler nas entrelinhas ou
explicitamente em alguns momentos. Como quando faz menção à vinda dos
portugueses, coisa que nem todos acreditam que ocorreu (1988, p. 36), ou quando faz
equivaler Andara e África (1988, p.132), o que abre um leque imenso de analogias.
A viagem que não se pode definir precisamente tem ares de um mistério que
frequentemente é tangenciado pelas alusões e adjetivos, e não exatamente por
substantivos, e os leitores partilham o silêncio desse mistério; muitas vezes são
provocados a pensar que sabem do que se trata, e de que é preciso silenciar a respeito. E
quanto às personagens, há aquelas que, intertextuais e com nomes antigos viajam por
várias escrituras, como Nazareno e Jerus, Ismael e Jacinto. Mas também nomes novos
como Oniá, Caminá, Sumiro e Bu.
Nos três livros que por ora tratamos o narrador, ao início dos textos, anuncia
ao leitor o que virá. Isso faz de modo elíptico, incompleto e também sugerindo coisas
que o leitor não encontrará, o que parece servir aos propósitos de condução das
narrativas. Ao longo das narrativas, os lances metalinguísticos surgem periodicamente
Vejamos primeiramente como se inicia o texto A asa e a serpente:
Bem no começo da viagem, é preciso dizer o que contém este primeiro
livro. Ele é o relato da aparição de uma assombração militar em Santa
Maria do Grão. (1988, p. 14)
(...)
Mais tarde, virão os esquecimentos, e nasce um dia na vida do homem
sem memória.
Arte mecânica e revolta. Isso anuncia dois finais. Falsos. Para escolher

E bem no finzinho, cairá a chuva. Mas essa, irmãozinhos, é uma outra, e


rara, chuva (1988, p.15)

Eles ainda entregarão outras crianças às águas, arrastados pelo desejo de


tocar o fundo
4

Por que estas palavras, e não outras, para contar pela primeira vez a
vocês a história?

Agora passo a narrar, sem fôlego,


às vezes alegre, às vezes triste,
todo o conteúdo de um dos meus sonos.
Um dos mais reais (1988, p. 16)

Pela leitura do trecho acima percebemos que se trata da narrativa de um sono, o


que imprime já o ritmo da linguagem e a natureza evanescente de seu conteúdo; o leitor
pode pensar que lerá uma história de fantasma, não lerá, pode pensar que acaba de se
encontrar com um narrador preocupado com seu leitor, e que questiona a si mesmo
sobre as palavras escolhidas para contar a história, mas não é exatamente isso que
encontra1.
O narrador indica o marco de início de sua história; para isso refere-se ao
“último homem” (1988, p. 16) e explica a seu leitor:
O morto voltou numa tarde, então começo por esta tarde. Também
retornam os guinchos e os animais que fazem uma careta cômica para a
origem do bem e do mal. E esta é a mesma história. Como verão. Eu falo
do tecido fino onde a vida dá sentido à vida. (1988, p. 16)

Animais que tripudiam a origem do bem e do mal fazem o leitor relembrar os


animais nietzschianos de Assim falou Zaratustra (NIETZSCHE, 1989); nas palavras do
narrador, o leitor encontrará a mesma história, será mesmo? Se é assim, quem será o
além do homem? Esse, pela leitura, sabemos que não virá, ainda que se assemelhe ao
homem anunciado pelo Sargento Nazareno durante a narrativa. Nazareno anuncia que
aquele que virá é o mesmo que não entenderá.
A suposta preocupação do narrador, a todo o momento, com o uso das palavras,
divide a possibilidade de o leitor escolher um dos finais falsos. Falso também é o
anúncio de que o leitor encontraria um “[...] capítulo metafísico com dentes de cachorro
[...]” (1988, p.15), e mais à frente, a afirmação do narrador de que não mente e, ainda, a
declaração de que está dizendo tudo o que viu em seu sono sem pudor. O narrador deixa
claro que narra um passado inventado, o que em nada lhe retira a qualidade de ser o que
há para se narrar.

1
Em perspectiva diversa, para aproximar-se de uma abordagem da face hermética,
mística e metafísica da obra de Cecim, consultar JUCÁ (2010) e CAMÊLO (2010).
5

Este narrador também declara ao leitor que seu relato é suspeito, como a passar
ares de sinceridade, como se nada escondesse de seu leitor, e divide a narrativa com o
vento e com certas vozes, de modo que esses outros narradores fortaleçam seu relato,
afinal as palavras estão no vento, não teriam sido propriamente inventadas. E o leitor
que não se engane: o narrador é hábil em dar elementos para o leitor que ele não saberá
onde colocar. Aproveita-se de seu não-saber e dos pontos cegos que cria para criar uma
atmosfera de acaso, como se não estivesse em seu controle as passagens lacônicas, as
elipses, os brancos, as frases inconclusas, o vento e a terra que de repente passam a
narrar. E o leitor nisso tudo percebe algo semelhante à vida e aceita, cúmplice do não-
saber da vida, dos subentendidos, do não dito, das intuições eloquentes que não usam
palavras. O texto, a despeito do que se possa pensar, é cheio de enigmas, enigmas da
ordem semântica e linguística. É o que se pode perceber no trecho em que há repetição
de parte do texto, repetição e variação, trata-se dos dois finais falsos sobre os quais o
narrador avisara o leitor; o narrador matara sargento Nazareno uma vez, matará
novamente?
Em Os animais da terra, por sua vez, o narrador divide sua voz com a terra. É
ela que anuncia ao leitor a história que será contada:
As vozes da terra não cessam.
São tantas.
Falam várias línguas.
Sobre homens condenados ao trabalho escravo numa plantação de
urtigas. Sobre insetos, peixes e aves na grande orgia da vida fecundando
a mulher do opressor. O cruel cego Dias. O nascimento luminoso do deus
vermelho.
É uma delas que dá início, agora, para dizer:
Este texto poderia ter duas epígrafes: (1988, p. 59)

O leitor está intrigado com o que virá: a exploração do trabalho dos homens, mas
se pergunta sobre a fecundação da mulher do opressor, não há, ainda, compreensão que
se possa adiantar, e quem será o deus vermelho? Trata-se de um início de relato que não
esclarece mas atrai por tudo que não explica.
Ainda no início, o narrador observa que o texto não deve ser decifrado pela
leitura:
Não serão os textos da inquietação, e este quer ser um deles, aqueles que
fornecerão fórmulas. Estes textos não são textos práticos, não querem ser
isso. Sempre teremos um segredo. E para negar a farsa das aparências,
sem necessariamente se aliar ao mito da profundidade, nada mais
6

didático que o espetáculo de uma voz onírica devorando a fala prosaica.


Este é o sentido do outro texto contido neste texto (1988, p. 60).

O leitor que, por sua vez, já percorrera o livro anterior, suspeita do que se trata: a
inquietação não surge apenas dos acontecimentos insólitos plurais que há nos livros, o
que será tratado mais adiante, mas da linguagem em ritmo irregular, do não saber que
possui lugar cativo nas frases e do falso acaso que se intromete na condução das ações e
palavras.
Aqui a palavra dada pelo narrador no início do relato se cumpre, mas o leitor
está estupefato por ter percebido como a narrativa mescla a história da realidade dos
trabalhadores da plantação, explorados por Dias a mando de Sombra, e a história de sua
libertação que ocorre na outra história, a que é narrada febrilmente pelo doidinho,
personagem que provoca a libertação pela fecundação da esposa do opressor, o cego
Nunes, de modo que todos os seres vivos sejam os pais da mudança e do novo mundo
que acontece.
Em um misto de vozes telúrica e onírica, aquelas que dividem a narração com o
protagonista narrador, e na mescla de ações dos seres da terra, da água e do ar, o ritual
da fecundação acontece para que o novo tome seu lugar e a realidade dos homens se
transforme. O ritual evoca o mito da fecundidade e da criação, neste caso apenas
possível pela mentira do narrador, que tece seu ardil em torno do cego, em nome da
possível transformação das condições em que vivem os homens a ele submetidos.
Em Os jardins e a noite, por sua vez, o narrador é Jacinto, um cego que se
posiciona em uma janela em Santa Maria do Grão, de onde narra histórias que lhe são
contadas pelas vozes do vento e da terra. Entre as primeiras páginas do relato encontra-
se o seguinte excerto: “Eis o que temos. Um homem numa janela. Não há como evitá-
lo. E há vozes. Então é só entregar-se, esta viagem fala da vida e não vai parar antes do
fim.” (1988, p.115). Primeiramente, Jacinto conta histórias a um homem que vem até
ele, mais tarde contará para o filho desse homem. Algumas vezes, ainda, o narrador tem
o papel de ventríloquo do vento, mesmo quando o vento faz retornar apenas os pedaços
de alguma história.
Tantas peripécias dos narradores fazem o conteúdo dos relatos evanescer,
preparando, desse modo, o surgimento da literatura fantasma e as ocorrências insólitas,
como a volta do Sargento Nazareno da morte e sua segunda vida em A asa e a serpente,
7

como a mencionada fecundação de Caminá, mulher do opressor em Os animais da terra


e como as histórias que Jacinto escuta do vento e da terra em Os jardins e a noite.

Histórias insólitas....
O personagem Nazareno de A asa e a serpente, após caminhar carregando seu
caixão, é um morto e um fantasma adormecido que se posiciona na praça de Santa
Maria do Grão, exatamente no lugar em que fora morto pelo narrador movido pela
traição, sobre a qual o leitor não encontra maiores explicações. Está claro no texto que o
Sargento, antes de morrer, fora alguém cruel, que humilhava e agredia a todos. E ainda
que a mão esquerda do morto seja uma mão morta, a direita guarda a crueldade em toda
sua força. É ela que agarra o cachorro e o solta morto, prestes a se transformar em terra
ao tocar no chão (1988, p. 22).
Pela narrativa do sonho de duas mulheres, sabe-se que Nazareno era esfaqueador
de aves e incendiário de florestas. O morto na praça, temido por todos os habitantes, ora
abre o olho, ora adormece e ora volta para a morte, isso acontece todas as vezes em que
sua cabeça cai no peito em perspectiva abissal. Suas falas são inusitadas, como por
exemplo: “- Venham beijar a minha mão esquerda, a que não mata”.
Além do fato de um morto voltar à vida e ir se tornando homem outra vez, esse
morto conta a história de um outro; o sargento veio antes para anunciar sua vinda.
Acompanhemos uma parte de seu relato:
Este que virá coçara a cabeça, extrairá dela um inseto, que estala entre os
dedos, de tanto andar sob as árvores eles já aprenderam a viver no seu
corpo, e não entenderá. Não entenderá isso, que eu repito. É preciso amar
os mortos como se ama os vivos.
Ele virá a Santa Maria do Grão para entender e não entenderá. E de Santa
Maria do Grão ira até Andara. E não entenderá Andara, onde Santa Maria
do Grão vai para a floresta.
(...)
E irá entrando devagar em Andara, como faz um estranho que chega e
ninguém aparecerá.
E verá que vem pela rua alguma coisa, rolando. Parece água amarga, ele
dirá então. E depois já estará diante dele um velho, e não sabe o que lhe
aconteceu. E esse velho vai dizer a ele nada fica no seu lugar em Andara.
Foi sorte que saiu do caminho e escondeu-se numa nesga de porta
enquanto aquilo passava para afundar lá no fim da rua, no rio. (1988, p.
30-31)
8

O morto continua a contar a história; nela, ele mesmo e o outro se encontrarão, e


ele poderá lhe dar as boas vindas. Em seguida o outro será mandado embora, andará
pelas ruas e continuará sem entender. O Sargento pára de contar essa história quando cai
no sono outra vez. E o narrador anterior retorna e afirma “O outro, o da história que o
fantasma contou, não entendeu. Mas eu entendo o que essa história significa. Que ele
prepara com ela os seus dias entre nós. Que veio para ficar” (1988, p. 33).
Em Os animais da terra, vale a pena lembrar que o narrador-personagem, ao
espiar frequentemente a mulher do cego Nunes, Caminá, por um buraco da parede da
casa, olho mágico ao inverso e que ele divide com um animal que também espia,
algumas vezes é descoberto pelo cego que tenta espetar seus olhos com a bengala
através do buraco ou envia seus duplos para o expulsarem. Vejamos como isso
acontece:
[o cego] Vem contra mim.
Ele tem um espelho.
Tira do bolso o espelho, e é nele que vivem os outros cegos Dias, os seus
duplos, e deixa que eles saiam aqui para fora, e a noite se enche de pulos
e cercos dos duplos do cego Dias ao meu redor.
Empurro-o quando quer me agarrar.
Primeiro ri como se se tratasse de uma perseguição que se brinca, nada
sério, nada sério menino, e no espelho há um outro cego Dias, um dos
duplos que não veio aqui para fora, que apenas olha tudo, depois isto é
sério o bastante para que comecem a gritar, todos, e o que não saiu do
espelho também, que eu vá embora. (1988, p. 68-69)

Os duplos do cego aparecem várias vezes para auxiliar o cego na


responsabilidade pelos homens da plantação, sobre Caminá, sobre os pássaros que ele
golpeia com a bengala de modo tão certeiro. Multiplicam o reflexo, a visão e o poder
que o cego tem à sua maneira, até o momento em que o cego perde o espelho que ”[...]
cai na noite que está por trás” (1988, p. 103).
O narrador personagem de Os jardins e a noite, por sua vez, é Jacinto e também
é cego. Ele anuncia a volta de Curau, uma ave que fura os olhos dos adultos para que,
enfim, eles possam enxergar. Reiteradas vezes Jacinto explica que enquanto se tem
olhos apenas se pode tropeçar e não exatamente ver, os olhos apenas “Olham para fora
da vida” (1988, p.120). Por isso defende que todos devem pedir pela volta da ave, ainda
que tenham medo e gritem.
Percebe-se, aí, uma crítica à ocularidade, ao valor que nossa cultura empresta ao
olhar em detrimento dos outros sentidos. Não à toa, nas narrativas míticas o sábio
9

frequentemente é um homem cego que pode ver tudo, inclusive o futuro. Nesse sentido,
Jacinto é aquele que foi avisado antes, em sonho, sobre a vinda de Curau, ele encontrou
a ave, dela cuidou, deu-lhe um nome e teve seus olhos furados por ela. O narrador não
apenas defende como anuncia o retorno da ave, única forma de todos livrarem-se das
coisas que não mudam (1988, p.119).
O relato a seguir será Terra da sombra e do não. Nele a história do livro
invisível começa outra vez (1988, p. 179). Começos/recomeços incessantes que
corporificam o invisível, o não-livro, a literatura fantasma tornando o visível
fantasmático, rarefeito, frágil, inacreditável mesmo, quase fora do mundo dos possíveis,
e que só está ali para, de modo insólito, apontar para lá: Andara, que não fica nunca no
mesmo lugar e que a cada momento exige novas conotações e sentidos.
A obra de Vicente Franz Cecim realiza o sonho da escritura pós-moderna, pós-
sujeito e pós-mítica: segundo as reflexões metalinguísticas dos narradores, os sentidos
se dão na superfície da linguagem e da leitura, não supõem a busca da profundidade que
se esconde à espera do olhar decifrador; personagem e narrador já não são, ou melhor,
vivem ocultos pelo invisível, vivem a vida de fantasmas. Esta a proposta que se pode
vislumbrar explicitamente nas reflexões metalinguísticas dos narradores ao longo da
obra. Entretanto, cabe ao leitor a leitura que suspeita, afinal, não é um dos mesmos
narradores que afirma que “[...] a floresta em torno de Andara também fala.”(1988,
p.168) ?.
Sobretudo a partir da perspectiva da dúvida sobre a palavra dos narradores, as
narrativas ressuscitam personagens mortos e mitos, reabilitam os silêncios portadores de
um tipo de eloquência esquecida, que cala na intuição do leitor, e oferecem linguagem
cifrada, simbólica e metafórica, tudo aquilo que, supostamente, as narrativas não
pretendem já que, segundo palavras do próprio texto, não se aliam ao mito da
profundidade; cabe ao leitor decidir se dará credibilidade aos não enigmas anunciados
ou aos enigmas com os quais bate de encontro, e se perguntar: não serão os não-
enigmas apenas artifícios que distraem o leitor? para que não perceba a construção da
face insólita de uma linguagem, que, no fundo, supõe a origem, a essência, o significado
e o desvendamento das coisas deste e outros mundos, o que claramente a integraria, sim,
ao mito da profundidade?

S-ar putea să vă placă și