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Robert Kurz
O Colapso da Modernização (Da
Derrocada do Socialismo de Caserna
à Crise da Economia Mundial), Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1992,244 pp.
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litude com o Estado racional burguês mente improdutivo e obsoleto no
de Fichte. E até mesmo com o mer- desenvolvimento tecnológico, o Leste
cantilismo... Mercado planejado, di- viu germinar, simultaneamente, uma
reito ao trabalho e monopólio estatal sociedade de escassez e desperdício.
do comércio exterior, presentes no Quando o Ocidente vivenciou, nas
"socialismo real", "foram pré-formu- décadas de 70 e 80, um significativo
lados pelo próprio capitalismo e por surto tecnológico, por meio da
seus ideólogos progressistas à beira da microeletrônica, a concorrência e a ló-
industrialização; não são estranhos, gica do sistema mundial produtor de
em sua essência, ao capital ou ao siste- mercadorias acabaram por levar ao
ma produtor de mercadorias, mas sim, colapso terminal do "socialismo real",
características estruturais do que "tinha que fracassar em sua pró-
nascimento histórico desses últimos" pria irracionalidade interna, na forma-
(p. 42). O culto do trabalho abstrato, mercadoria levada ao extremo do ab-
levado ao limite no Leste, mostra surdo e na relação insustentável com o
como a crítica marxiana do fetichismo exterior..." (p. 152). Desse modo, a
foi absolutamente desconsiderada, transição pós-89, vivenciada pela
"eliminada e empurrada para um além URSS e pelo Leste, assemelha-os não
teórico e histórico, difamada como com o Ocidente avançado, mas com
nebulosa, ou degradada a um uma realidade mais próxima do Ter-
fenômeno mental puramente ceiro Mundo. Este, na outra ponta da
subjetivo" (p. 48). crise global do sistema produtor de
Sem romper na interioridade com mercadorias, já se constitui naquilo
a lógica do sistema produtor de mer- que o autor chama de "sociedades
cadorias, a "crise da sociedade de tra- pós-catastróficas": " (...) o Terceiro
balho do socialismo real marca a crise Mundo ou já fracassou em sua tentati-
iminente da moderna sociedade do va de modernização (...) ou, no melhor
trabalho em geral, e isso precisamente dos casos, encontrou um status
porque os mecanismos de concorrên- precário, no papel de países ascenden-
cia tiveram tanto êxito e minaram e tes, que permanece exposto à espada
debilitaram de fato os fundamentos do de Dâmocles do mercado mundial e,
sistema produtor de mercadorias. Faz mesmo assim, já não permite um de-
parte da lógica desse sistema o fato de senvolvimento interno da sociedade
que os seus componentes mais fracos, inteira" (p. 176). As raríssimas exce-
no que se refere à produtividade e ao ções não fracassadas da "industriali-
entrelaçamento, são os primeiros a zação para a exportação", presenciada
cair no abismo de colapso do siste- em alguns países asiáticos como
ma..." (p. 90). Superadas as lacunas do Coréia, Hong Kong, Taiwan e Cinga-
texto da edição brasileira, que carece pura, permanecem numa "dependên-
de imediata e imprescindível revisão, cia precária dos países ocidentais" e
percebe-se nesta última citação que o não têm vivenciado, até agora, o de-
autor entende a crise da modernidade senvolvimento de um mercado interno
em sua dimensão globalizada. Sem o que dê fundamento a estes projetos
princípio da concorrência, absoluta-
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atingido ele próprio pela crise" (p. tica radical "teria de se emancipar
227). Apesar do enorme resgate que completamente de suas idéias anterio-
Kurz faz das formulações marxianas, res, já obsoletas" e para a qual a "es-
neste ponto aparece a sua única (e querda, com todos os seus matizes,
forte) crítica: "Sem dúvida, revela-se mostra-se completamente incapaz de
aqui um dilema até hoje insuperado no dar uma resposta à crise" (pp. 226-7).
centro da teoria de Marx. A afirmação
do movimento operário (...) é na Trata-se, como procuramos mos-
verdade inconciliável com a sua trar, nestas páginas em que perse-
própria crítica da economia política, guimos a imanência do texto, de um
que desmascara precisamente aquela ensaio ousado, rico, provocativo, con-
classe trabalhadora não como tundente, polêmico e problemático.
categoria ontológica, mas sim como Texto no qual a prioridade é do onto-
categoria social constituída, por sua lógico, e a apreensão da lógica do ob-
vez, pelo capital" (p. 71). O jeto - a crise contemporânea do sis-
movimento operário, segundo Kurz, tema produtor de mercadorias, do
conduziu à emancipação capitalista capitalismo - é perseguida em seus
dos trabalhadores, mas não é o sujeito nexos essenciais e totalizantes. Pode-
capaz de levá-lo à emancipação social. se dizer, sinteticamente, que suas for-
E, com outra tese provocativa e mulações acertam no essencial, no
ousada, finaliza seu ensaio: "O comu- diagnóstico da crise do capital dos
nismo, supostamente fracassado, que é nossos dias e falham nas visualiza-
confundido com as sociedades em ções, nas proposições, no modo de
colapso da modernização recupera- caminhar para além do capital. Talvez
dora, não é nem utopia nem um obje- seja demais, nos dias de hoje, exigir
tivo distante, jamais alcançável, muito tanto. Afinal, apontar o capitalismo
além da realidade, mas sim um como derrotado a partir da análise do
fenômeno já presente, o mais próximo desmoronamento do Leste Europeu
que encontramos na realidade, ainda não é pouco nem usual. E resgatar
que na forma errada e negativa, vigorosamente e sugestivamente a crí-
dentro do invólucro capitalista do sis- tica da economia política de Marx
tema mundial produtor de mercado- para demonstrá-lo, é ainda mais in-
rias, isto é, na forma de um comunis- comum. Um livro que provoca e nos
mo das coisas, como entrelaçamento faz refletir e repensar, pela esquerda,
global do conteúdo da reprodução hu- sobre tantos pontos "inquestionáveis",
mana" (p. 228). Na impossibilidade e também é outro forte mérito. Gostaria
inexistência de um sujeito coletivo ca- de concluir, entretanto, apontando al-
paz de superar a crise, no universo do guns dos problemas que sua leitura
mundo do trabalho, Kurz esboça sua suscita.
proposição: toma-se necessária a bus- Primeira crítica: na recuperação
ca de "uma razão sensível, que é exa- ontológica do objeto, Kurz suprimiu a
tamente o contrário da razão iluminis- dimensão, decisiva em Marx, da sub-
ta, abstrata, burguesa e vinculada à jetividade. Os seres e personagens do
forma-mercadoria" (p. 232). Esta crí-
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lidade de antagonizar-se ante o mental, e para a qual só uma esquerda
capital, de rebelar-se. Se a teoria do social, renovada, crítica e radical, de
valor-trabalho é validada, a luta de nítida inspiração marxiana, forjada
classes é conseqüência inevitável da- no interior do mundo do trabalho
quela. Esta foi, inclusive, uma das poderá, em nosso entendimento,
aquisições ontológicas centrais do implementar. A esquerda tradicional
Marx que, na Introdução à Crítica da (do "marxismo" da era staliniana e
Filosofia do Direito de Hegel (1844), stalinista) e a esquerda social-
concebia preliminarmente o proleta- democrática estão, ambas, im-
riado como a "classe com cadeias possibilitadas para esta empreitada.
radicais", e que posteriormente Segunda crítica: a assimilação
apreendeu o proletariado como a entre Leste e Ocidente, se é verdade
"mercadoria-força de trabalho que no que diz respeito a que ambos
cria valores" e que vi vencia por isso a inseriam-se no universo do sistema
possibilidade real da contradição produtor de mercadorias, não deve
perante o capital. O ponto essencial permitir uma identificação tão plena
remete a discussão para o universo entre o que ocorreu nos países pós-
das limitações subjetivas do mundo capitalistas e os capitalistas. No
do trabalho, campo temático que, debate presente neste número da
como vimos, Kurz recusa. Crítica Marxista, indicamos algo a
A sua crítica de que o movimento respeito desta discussão. Não é por
operário, neste século, esteve em acaso que Kurz fala em "socialismo
grande medida atado à luta no univer- de caserna", "socialismo real",
so da sociedade de mercadorias é rica "regime protocapitalista", "sociedades
e em boa medida verdadeira. Basta capitalistas", "regime transitório pré-
pensar nas enormes limitações da cha- burguês", "mercantilismo tardio",
mada esquerda tradicional. Mas não entre outras denominações.
deveria permitir a Kurz chegar onde Convenhamos, é muita imprecisão
chegou: na ausência absoluta de sujei- conceitual. Cremos que a Revolução
tos. Para Marx sempre foi muito claro Russa não foi burguesa em sua
que "o proletariado está obrigado a origem, como quer Kurz, mas pouco a
abolir-se a si mesmo", se de fato pre- pouco viu sua processualidade curvar-
tende a superação da sociedade do ca- se cada vez mais à lógica mundial do
pital (Marx, "A Sagrada Família"). capital. E aqui também Kurz auxilia, e
Desse modo, e se se quer ficar no es- muito, na reafirmação e demonstração
sencial da discussão que Kurz suscita, desta tese.
a classe-que-vive-do-trabalho não Terceira crítica: Kurz tem boa
esta objetivamente incapacitada para dose de razão ao atar o marxismo do
superar o capitalismo (como quer século XX à tragédia do Leste Euro-
Kurz), mas somente poderá vir a fazê- peu. Mas exagera, e por diversas ve-
Io se sua autoconsciência incorporar zes equivoca-se. Cito só dois exem-
como momento decisivo a auto- plos: dizer que "Trotski, em primeiro
abolição de si mesma como classe, o lugar, poderia ter-se tomado outro
momento do gênero-para-si. O que, Stalin" (p. 50) só é aceitável quando
reconhecemos, é uma tarefa monu-
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