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Organizadores:

Clarissa de Lourdes Sommer Alves


Enrique Serra Padrós

II Jornada de Estudos sobre


Ditaduras e Direitos Humanos
– há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai –
1ª Edição

Porto Alegre/RS
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
2013
GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Governador Tarso Genro

SECRETARIA DA ADMINISTRAÇÃO E DOS RECURSOS HUMANOS


Secretário Alessandro Barcellos

DEPARTAMENTO DE ARQUIVO PÚBLICO


Diretora Isabel Oliveira Perna Almeida

ORGANIZADORES:
Clarissa de Lourdes Sommer Alves, Historiadora, Técnica em Assuntos Culturais do
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

Enrique Serra Padrós, professor do Departamento de História e dos Programas de


Pós-Graduação em História e Relações Internacionais da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul

Capa
Clarissa de Lourdes Sommer Alves

Diagramação e Edição
Alexandre da Silva Ávila e Clarissa de Lourdes Sommer Alves

J28a II Jornada de estudos sobre a ditaduras e direitos humanos : há 40


anos dos golpes no Chile e no Uruguai ( 2 : 2013 : 24 a 27 abr.
: Porto Alegre, RS ).
Anais [recurso eletrônico]. – Porto Alegre : Companhia Rio-
grandense de Artes Gráficas (CORAG), 2013.
XX p.
ISBN: 978-85-64859-01-2
Disponível na internet: http://www.apers.rs.gov.br/

1. Diretos humanos. 2.Ditadura militar – América Latina. 3. América


Latina - História. I. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. II.
Alves, Clarissa Sommer. III. Padrós, Enrique Serra IV. t.

CDU 98(=4)”2013”

Catalogação elaborada pela Biblioteca da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos/SARH.


Bibliotecária responsável: Adriana Arruda Flores, CRB10-1285.
YO TE NOMBRO, LIBERTAD
Música e Letra: Giancarlo Pagliaro

Por el pájaro enjaulado Por los golpes recibidos


Por el pez en la pecera Por aquel que no resiste
Por mi amigo que esta preso Por aquellos que se esconden
Por que ha dicho lo que piensa Por el miedo que te tienen
Por las flores arrancadas Por tus pasos que vigilan
Por la hierba pisoteada Por la forma en que te atacan
Por los árboles podados Por los hijos que te matan
Por los cuerpos torturados Yo te nombro Libertad
Yo te nombro Libertad Por las tierras invadidas,
Por los dientes apretados Por los pueblos conquistados
Por la rabia contenida Por la gente sometida
Por el nudo en la garganta Por los hombres explotados
Por las bocas que no cantan Por los muertos en la hoguera
Por el beso clandestino Por el justo ajusticiado
Por el verso censurado Por el héroe asesinado
Por el joven exilado Por los fuegos apagados
Por los nombres prohibidos Yo te nombro Libertad
Yo te nombro Libertad Te nombro en nombre de todo
Te nombro en nombre de todos Por tu nombre verdadero
Por tu nombre verdadero Te nombre cuando oscurece
Te nombro y cuando oscurece cuando nadie me ve
cuando nadie me ve Escribo tu nombre
Escribo tu nombre en las paredes de mi ciudad
en las paredes de mi ciudad escribo tu nombre
Escribo tu nombre en las paredes de mi ciudad
en las paredes de mi ciudad Tu nombre verdadero
Tu nombre verdadero Tu nombre y otros nombres
Tu nombre y otros nombres Que no nombro por temor
que no nombro por temor Yo te nombro Libertad
Por la idea perseguida
Dedicado a todos os que lutaram
e lutam pela Liberdade!
Sumário

Apresentação............................................................................................................................................... 11
Introdução ................................................................................................................................................... 13

I – Ditaduras na América Latina e no Cone Sul: debates há 40 anos dos golpes no Chile e
no Uruguai .............................................................................................................................. 17
Regime Pinochet (1973-1990): Ditadura e Terrorismo de Estado no Chile
Verónica Valdívia Ortiz de Zárate .............................................................................................................. 19
“Desde entonces la patria no es la misma”: impressões sobre o terror de estado no Chile
Cesar Augusto Barcellos Guazzelli ............................................................................................................ 24
La agenda pendiente del proceso de paz salvadoreño: Justicia Transicional, Ley de Amnistia y Comisión
de la Verdad
Aleksander Aguilar Antunes ....................................................................................................................... 31
A ditadura de Stroessner no Paraguai e o controle da oposição: os mecanismos usados pela ditadura
stronista visando ao controle da oposição
Miguel Dos Santos ..................................................................................................................................... 39
Terrorismo de Estado na Argentina e a Operação Condor: uma análise a partir de documentos de
denúncia
Marcos Vinicius Ribeiro .............................................................................................................................. 46
Como eleger um ditador: Bolívia 1971 e 1997
Luciano Barbian .......................................................................................................................................... 52
11 de setembro de 1973: o golpe militar no Chile através do Jornal do Brasil
Nicolas Mello .............................................................................................................................................. 58

II – Memórias e Ditaduras: aproximações do passado ........................................................ 67


A atuação política de oposição em um pequeno município do norte gaúcho durante o regime civil militar:
memórias de Arude Gritti
Fernanda Pomorski dos Santos e Gerson Wasen Fraga .......................................................................... 69
O golpe civil-militar e o mundo que se abria: notas e possibilidades do exílio na trajetória de Flávia
Schilling (Brasil – Uruguai 1964-1980)
Diego Scherer da Silva ............................................................................................................................... 76
É mais fácil comemorar tragédias do que reconhecer as barbáries da ditadura civil-militar brasileira:
memórias do período no Oeste Paranaense
Marcos Adriani Ferrari de Campos ............................................................................................................. 86
Índio Vargas e Jorge Fisher Nunes: os referenciais da resistência armada, durante o período da Ditadura
Militar, vistas a partir das memórias de dois militantes de esquerda que atuaram no Rio Grande do Sul
Nôva Brando ............................................................................................................................................... 94
A coleção “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história” e a narrativa positiva da
ditadura pelo exército
Eduardo dos Santos Chaves .................................................................................................................... 103
O discurso político ideológico militar em torno da guerrilha de 1965
Ronaldo Zatta ............................................................................................................................................ 112

III – Ditadura e Aparatos Repressivos ................................................................................. 123


Anos de chumbo: uma análise dos aparelhos de repressão na ditadura civil militar e suas influências no
Maranhão
Wilson Pinheiro Araújo Neto ..................................................................................................................... 125
Ângelo Cardoso da Silva: Herzog gaúcho
Graziane Ortiz Righi ................................................................................................................................. 132
Focos de ação comunistas no Maranhão e Doutrina de Segurança Nacional
Sarah Fernanda Moraes Gomes .............................................................................................................. 142
Operando Informações (1975-1977): Atuação Repressiva e Evolução das Violações de Direitos Humanos
no DOI/CODI/II Exército
Diego Oliveira de Souza ........................................................................................................................... 150
Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximação
Lívio Silva de Oliveira ............................................................................................................................... 160

IV – Ditaduras e Imprensa .................................................................................................... 169


Victor Civita e a Ditadura Civil-Militar Brasileira: a posição da revista Veja
Edina Rautenberg ..................................................................................................................................... 171
O Tratamento das Revistas Semanais À Abordagem Do PNDH-3 Sobre A Questão da Memória e da
Verdade
Diego Airoso da Motta .............................................................................................................................. 180
"O Arauto do Bem e da Verdade": o Jornal do Comércio (1964-1965) e o apoio à ditadura civil-militar em
Campo Grande
Sabrina Rodrigues Marques ..................................................................................................................... 188
O Jornal A Razão e o discurso anticomunista
Silvania Rubert ......................................................................................................................................... 193

V – Recursos discursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura ............................ 201


O discurso da Ditadura na obra de Elio Gaspari
*
Carla Luciana Silva .................................................................................................................................. 203
Entre Civis e Militares: Conceitos e Versões do Golpe e da Ditadura Pós-1964 no Brasil
Yuri Rosa de Carvalho e Diorge Alceno Konrad ...................................................................................... 208
Segurança Nacional: Uma Discussão Conceitual
Aline Aparecida Faé Inocenti .................................................................................................................... 216

VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura .............................................................................. 225


A Memória da Censura durante a Ditadura Civil Militar em Campo Grande/MS
Mariana Duenha Rodrigues...................................................................................................................... 227
Memórias da ditadura nos Cinemas Latino-americanos contemporâneos
Rosângela Fachel de Medeiros ................................................................................................................ 233
O malabarista, a farda e o nanquim: o governo Jango e golpe nas charges de Sampaulo publicadas no
jornal Diário de Notícias em março e abril de 1964
Dante Guimaraens Guazzelli ................................................................................................................... 241

VII – Ditaduras em arquivo: documentos da repressão e da resistência ......................... 251


Análise do Processo Descritivo Como Produção de Conhecimento Arquivístico: o caso das oitivas de
familiares de uruguaios desaparecidos na ditadura militar
Anna Luiza de Moura Saldanha ............................................................................................................... 253
O DOPS e os arquivos da repressão: as atribuições da Delegacia de Ordem Política e Social no
Maranhão
Manoel Afonso Ferreira Cunha ................................................................................................................ 261
Arquivos Repressivos da Polícia Política: o caso do Departamento de Ordem Política e Social do Rio
Grande do Sul
Ananda Simões Fernandes ...................................................................................................................... 269

VIII - Debates sobre ditaduras no campo jurídico .............................................................. 279


Uma luta inconclusa: reflexões sobre a Lei da Anistia (L. 6.683/79) e o processo de redemocratização no
Brasil
Débora Strieder Kreuz .............................................................................................................................. 281
Bourdieu e o campo jurídico: debate sobre a autonomia do Supremo Tribunal Federal durante a ditadura
militar brasileira (1964-1979)
Mateus Gamba Torres .............................................................................................................................. 288
As vozes da contemporaneidade e a questão da imprescritibilidade dos crimes de tortura perpetrados na
ditadura civil-militar no Brasil
Fabiano Negreiros ................................................................................................................................... 293
A atuação do Poder Judiciário na Argentina frente aos crimes de lesa humanidade perpetrados pela
Ditadura de Segurança Nacional (1976-1983)
Patrícia da Costa Machado ...................................................................................................................... 301
A Comissão Nacional da Verdade e a Ausência de Função Jurisdicional
Gabriela Goergen de Oliveira ................................................................................................................... 309

IX - Resistências e redes de solidariedade nas Ditaduras do Cone Sul ........................... 317


Los tortuosos caminos: a fuga dos argentinos para o Brasil, no marco temporal das ditaduras civis-
militares de Segurança Nacional
Jorge Christian Fernandez ....................................................................................................................... 319
Mortos e desaparecidos políticos no Brasil, no Chile e no Uruguai: notas sobre a atuação dos seus
familiares
Carlos Artur Gallo ..................................................................................................................................... 330
A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul e a formação de redes de solidariedade na
fronteira Brasil-Uruguai
Marla Barbosa Assumpção ...................................................................................................................... 339
Madres de Plaza de Mayo: o movimento que enfraqueceu o regime militar argentino (1976 – 1983) ... 347
Arianne Chiogna e Bruna Cardoso .......................................................................................................... 347
O Grupo Clamor e a atuação em redes na defesa dos Direitos Humanos frente as ditaduras do Cone Sul
Guilherme Barboza de Fraga ................................................................................................................... 354

X – Outras experiências de repressão e resistência à ditadura ........................................ 363


A democracia brasileira não foi doada: a resistência na ditadura civil militar brasileira
*
Diorge Alceno Konrad .............................................................................................................................. 365
Mulheres vítimas da Ditadura Militar: luta e afirmação de gênero e os Direitos Humanos
Giselda Siqueira da Silva Schneider ........................................................................................................ 379
Uma Visão sobre a Ação Popular (AP): do Socialismo Humanista ao Maoísmo
Cleverton Luis Freitas de Oliveira ............................................................................................................ 386
A mudança de posicionamento da Igreja na Ditadura e a Repressão a Padres em São Luís- MA
Marcos Paulo Teixeira .............................................................................................................................. 393
De Ditadura em Ditadura: o jogo duro das elites dominantes sobre o cidadão comum (1930-1964)
Adriana Picheco Rolim ............................................................................................................................. 401
XI – Políticas de memória e Justiça de Transição.............................................................. 409
Direito de memória e perpetração da violência: o papel da identificação e ressignificação dos espaços de
tortura e resistência na justiça de transição
Christine Rondon Teixeira ......................................................................................................................... 411
Inicio de la Política Reparatoria como Política Pública
María Teresa Piñero ................................................................................................................................. 420
Memória política ou políticas da memória? Memória, verdade e justiça a trinta anos do fim da ditadura na
Argentina (1983-2013)
Nicholas Rauschenberg ........................................................................................................................... 428
Apresentação

A II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos realizada no


Arquivo Público do Estado entre os dias 24 e 27 de abril foi um evento em que, mais
uma vez, a Instituição reiterou o seu comprometimento com uma sociedade latino-
americana mais democrática, tendo em vista que este tema integra a agenda de
trabalhos desta Casa desde o ano 2006. Comprometimento efetivado por meio da
sólida parceria com o Departamento de História e o PPG em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, especialmente a partir da pessoa do professor Enrique
Serra Padrós.
Neste encontro foram debatidos estudos referentes às ditaduras militares
brasileira, argentina, paraguaia, uruguaia, salvadorenha e chilena. Entre os inúmeros
vieses pelos quais estas ditaduras foram examinadas, ressalto as pesquisas que
abordaram as suas conexões e práticas repressivas assim como estudos que
trouxeram as denúncias, as lutas e as resistências realizadas pelos familiares dos
mortos e desaparecidos, além de pesquisas examinando a atuação dos exilados
políticos, mencionando seus embates, redes de solidariedade e dificuldades de
sobrevivência.
Entre os diferentes trabalhos apresentados sobre a ditadura brasileira, destaco
aqueles que examinaram o papel da mídia tanto na sustentação do golpe e do regime
quanto se opondo e resistindo a ele. Nesse contexto, o posicionamento político de
algumas instituições também foi analisado, entre elas, o Supremo Tribunal Federal e a
Igreja Católica.
Em consonância com os debates que estão sendo realizados nacionalmente,
provenientes dos trabalhos das Comissões Nacional e Estaduais da Verdade, a II
Jornada também trouxe para análise e reflexões, as incoerências jurídicas e políticas
da Lei de Anistia Nacional de 1979, sobretudo, no que tange aos direitos humanos,
uma vez que a tortura é considerada crime de lesa humanidade pela ONU e pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Crime que a Lei de Anistia brasileira anistiou.
Em síntese, a II Jornada foi um momento em que a comunidade presente
discutiu e apresentou as pesquisas mais recentes sobre a temática das ditaduras e
direitos humanos, e nela tivemos a oportunidade de comparar os limites e
ambiguidades da Justiça Transicional brasileira onde o direito a Memória, a Verdade e
a Justiça precisam ser realmente efetivados.
A partir dessa publicação com certeza será possível ampliar o alcance da
produção intelectual e dos debates travados ao longo do evento. Parabéns a todas e
todos que se envolveram nessa construção!

Isabel Oliveira Perna Almeida


Diretora do Arquivo Público

11
12
Introdução

Lembrar, pesquisar e refletir: resgatando a história e a memória do Cone Sul da


Segurança Nacional

A presente obra é o resultado da II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos


Humanos, evento bianual organizado conjuntamente pelo Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul (APERS) e pelo Departamento de História e Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O sucesso da
Jornada confirmou a certeza da necessidade de abrir espaços acadêmicos para a
publicização e socialização de uma crescente produção de estudos e pesquisas sobre a
temática do passado ditatorial recente da região.
Dando sequência a experiência iniciada em 2011, a Jornada deste ano recebeu como
complemento da sua marca de identidade o subtítulo “Há 40 anos dos golpes no Chile e no
Uruguai”. Dessa forma, marcamos o ano em que se reflete sobre as quatro décadas do
ocorrido nos dois países, e mantemos uma das suas características essenciais: a de
perceber as experiências traumáticas de segurança nacional do Cone Sul em perspectiva
regional, fator que se relaciona com uma forma peculiar de olhar esse fenômeno histórico
desde o Rio Grande do Sul.
Em concomitância com abordagens que se desenvolvem em outros países da
região, as histórias nacionais em questão, não ficam reduzidas as suas fronteiras, mas se
projetam através dos efeitos produzidos pelos golpes de Estado que implementam ditaduras
que possuem especificidades mais que, inegavelmente, se aproximam, se assemelham em
certos aspectos e interagem intensamente quando definem determinados objetivos
estratégicos comuns.
Nesse sentido, como vasos capilares irradiadores de múltiplas formas de interação,
complementação ou confronto, os exílios, as ações de resistência e solidariedade bem
como as formas de atuação da conexão repressiva produzem um emaranhado de
complexas relações que acabam conformando o mapa da segurança nacional regional das
décadas de 1960 a 1980.
Nesse ano de 2013 foram intensas as rememorações dos golpes de Estado do
Uruguai e do Chile, seus impactos e significados na América Latina em meio à Guerra Fria,
e sobretudo o significado do fim da experiência socialista da Unidade Popular. Mas também
foi o ano em que rememoramos os 30 anos da redemocratização argentina, e com certeza,
é o momento em que o Brasil – além do impacto de alguns avanços e grandes recuos da
Comissão Nacional da Verdade, das comissões estaduais, bem como dos comitês regionais
vinculados à sociedade civil (com poucas exceções) – vive a expectativa pelos “50 anos do
golpe de 1964”, algo que será motivo de debates em todo o país e nos países vizinhos no
transcurso de 2014.
Em função dessas demandas, o encontro, realizado entre os dias 24 e 27 de abril de
2013, contou com uma programação variada: uma conferência de abertura, cinco mesas
redondas, doze sessões de comunicações e uma atividade cultural-musical de
encerramento. A conferência de abertura foi ministrada pela historiadora chilena Verónica
Valdivia (Universidad Diego Portales/Chile), com o título Regime Pinochet (1993-1990):
ditadura e terrorismo de Estado no Chile, e com comentários do professor Cesar Guazzelli,
da UFRGS.
As mesas redondas foram as seguintes: A imprensa como trincheira: denúncia e
resistência, com a participação do jornalista Elmar Bonés e do cartunista Santiago; Brasil:
mídias e ditadura, com os professores Carla Luciana Silva (UNIOESTE) e Nilo Piana de
Castro (UFRGS); O mundo dos Exílios: repressão, resistência e sobrevivência, com os

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historiadores Melisa Slatman (UBA/Argentina) e Jorge Fernández (UFMS); 40 anos do
golpe no Uruguai: ditadura e terrorismo de Estado, com o depoimento de Cláudio Gutiérrez
e os pesquisadores Ananda Simões Fernandes e Enrique Serra Padrós; e, finalmente,
Brasil nos ‘Anos de Chumbo’: estratégias de resistência e sobrevivência, com os
historiadores Janaína Teles (USP), Diorge Konrad (UFSM) e Caroline Silveira Bauer
(UFPEL) e o depoimento de Suzana Keniger Lisbôa (Familiares dos Mortos e
Desaparecidos Políticos). A atividade encerrou com a participação musical do cantor e
compositor Raul Ellwanger.
Cinquenta e um trabalhos foram aprovados para apresentação no evento, e foram
distribuídos nos seguintes doze painéis: “Ditaduras no Cone Sul”; “Memórias e Ditaduras:
aproximações do passado”; “Ditaduras e Imprensa”; “Ditaduras: Arte, Cultura e Censura”;
“Resistências e redes de solidariedade nas Ditaduras do Cone Sul”; “Outras experiências de
repressão e resistência à ditadura”; “Memórias militares sobre a Ditadura”; “Recursos
discursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura”; “Ditaduras em Arquivo: documentos
da repressão e da resistência”; “Políticas de memória e Justiça de Transição”; “Ditadura e
Aparatos Repressivos”; e “Debates sobre Ditaduras no campo jurídico”. A abrangência das
temáticas e a diversidade de origens dos campos de pesquisa confirmam a explosão das
pesquisas sobre a história recente das experiências ditatoriais de segurança nacional. Cabe
mencionar, ainda, a participação de pesquisadores de diversos estados do país (Maranhão,
Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São
Paulo) e do exterior (Argentina, Chile e Uruguai).
O livro digital que ora apresentamos se transformou em uma grande publicação, que
garante ampla difusão à produção intelectual que foi apresentada, debatida, compartilhada
e sentida ao longo dos quatro dias de evento em abril desse ano. Essa obra apresenta os
quarenta e cinco artigos que foram efetivamente comunicados na Jornada, além de
contribuições escritas de três palestrantes (Cesar Guazzelli, Diorge Konrad e Jorge
Fernández), e da transcrição da conferência de Verónica Valdívia. Os textos foram
organizados em onze sessões que identificam eixos temáticos aglutinadores, respeitando
quase que integralmente a organização proposta para as sessões do evento: I – Ditaduras
na América Latina e no Cone Sul: debates há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai; II –
Memórias e Ditaduras: aproximações do passado; III – Ditaduras e Aparatos Repressivos;
IV – Ditaduras e Imprensa; V – Recursos discursivos e discussão conceitual acerca da
Ditadura; VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura; VII – Ditaduras em Arquivo: documentos
da repressão e da resistência; VIII – Debates sobre Ditaduras no campo jurídico; IX –
Resistência e redes de solidariedade nas ditaduras do Cone Sul; X – Outras experiências
de repressão e resistência à Ditadura; XI – Políticas de memória e Justiça de Transição.
Com a publicação dos textos os promotores e organizadores da II Jornada de
Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos garantem mais uma contribuição à série de
debates das mais diversas tonalidades, matizes e perspectivas que vêm sendo travados no
Cone Sul em torno dessa área temática, embora exista pretensão de maior incidência no
que diz respeito à realidade brasileira. Acreditamos que assim contribuímos para aprofundar
o circuito Ensino-Pesquisa-Extensão, fazendo com que as reflexões e a produção do
conhecimento extrapolem cada vez mais os muros da academia, alcançando espaços mais
amplos, de forma particular as salas de aula, mas também, de forma geral, todos os
espaços societários onde se estabelece o debate e o contraditório, seja através da crônica
jornalística, da produção artística, das ações de movimentos e organizações sociais que
lutam por justiça e direitos humanos.
Cabe registrar que, parte importante dos expositores, como do público presente na
Jornada, se constitui de professores e futuros professores da rede de ensino. Sendo assim,
há uma ênfase na origem da proposta tanto do evento quanto da circulação do material
apresentado, de que se semeie o conhecimento produzido ou em fase de aferição no
campo estratégico e mais universal da rede escolar, através da intermediação das novas
gerações de docentes comprometidos com uma postura de resgate da Memória e da
História, para que estas dimensões da identidade social sejam constitutivas de uma

14
perspectiva de cidadania e de dignidade política, que permita relacionar a violência e a
impunidade do nosso tempo com a ausência de atuação da Justiça diante dos crimes de
lesa humanidade produzidos pelas ditaduras de segurança nacional e reconhecidos
historicamente como tais.
Por fim, encerramos agradecendo a todos aqueles que possibilitaram tanto a
realização do evento quanto dessa publicação, em que registramos seus resultados. Em
especial, um agradecimento aos funcionários do APERS e aos expositores e convidados
que se deslocaram desde os mais distantes pontos cardeais para abrilhantar e valorizar
esta II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos.
Boa leitura e até a III Jornada!

Clarissa de Lourdes Sommer Alves


Enrique Serra Padrós
Organizadores

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I – Ditaduras na América Latina e no Cone Sul:
debates há 40 anos dos golpes no Chile e no
Uruguai

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Regime Pinochet (1973-1990): Ditadura e Terrorismo de Estado no Chile 1

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Verónica Valdívia Ortiz de Zárate

“Están matando mucha gente. Tienen necesidad de matar para que puedan dominar los
medíocres. Matarán mucho....Y cuando ya no puedan matar más, entonces se pondrán
benévolos, los gobernantes besarán a lós niños pobres... Pero entonces serán más
peligrosos que nunca”. (Armando Uribe “Caballeros” de Chile, Lom, 2003, p.121)

Estas palavras foram ditas pelo poeta, prêmio nobel de literatura, Pablo Neruda, poucos dias
antes de morrer, e hoje refletem e sintetizam o que foi a Ditadura chilena, e a imagem do que foi o terror
de Pinochet. Para nossa desgraça, não foi apenas terror, mas uma ditadura com pretensões
hegemônicas, e portanto, havia muito interesse em gerar consenso na sociedade, com interesse
particular no povo. Se o povo não fosse ressocializado a ditadura não teria êxito. Então, mataram sem
cansar, mas também se apropriaram das crianças.
Em 11 de setembro de 1973 as Forças Armadas e a polícia derrotaram o governo socialista de
Salvador Allende, o primeiro experimento de chegar, pela via democrática, a uma proposta marxista. Se
a experiência brasileira gerou impacto nos Estados Unidos, o triunfo de Allende foi sensivelmente
intolerável. Desde o dia em que Allende ganhou, os EUA, e não apenas os EUA, como também os
segmentos de oposição a Allende, uma nova direita, um centro dividido, se lançaram a preparar um
golpe de Estado. Este golpe demorou três anos, porque a experiência socialista tinha raízes sociais
profundas, e não foi fácil expulsar Allende. Finalmente, em setembro de 1973, o golpe se realiza, e o
Chile passa a fazer parte das ditaduras terroristas que dominavam o Cone Sul.
O Chile tinha uma tradição supostamente democrática. Éramos uma exceção no Cone Sul,
juntamente com o Uruguai, mas passamos pelas mesmas experiências, e tivemos que tolerar um ditador
por dezessete anos. Um ditador genocida, que não se contentou somente em matar, mas que desejava
transformar a sociedade. A violência do golpe de Estado começou logo em seguida, como muitos de
vocês sabem. Os que têm mais de trinta anos recordam das imagens do bombardeio sobre o Palácio
Presidencial, o presidente suicidando-se. Imediatamente quando começou o golpe todas as rádios e
meios de comunicação do governo foram silenciados, e imediatamente foram presos todos os dirigentes
da Unidade Popular. Assassinatos imediatos; a criação de centros de detenção pública; criação de
campos de concentração; invasão – e isso quero que retenham – invasões ao que seriam as favelas,
que começaram três dias depois do golpe, com muita violência, o que se conhece como violência
massiva contra as populações.
Na noite do dia 11 de setembro, a Junta de Governo fez sua primeira aparição, não sabíamos
quem eram, não conhecíamos a Pinochet, não conhecíamos ao general Gustavo Leight, comandante em
chefe da Força Aérea, o Almirante Toribio Merino, chefe da Armada, e o novo diretor da Polícia, que se
3
auto designou “director de Carabineros” . Nesta noite os quatro generais se apresentam ao país, e o
general da Força Aérea disse que o golpe – por certo não usou a palavra “golpe” – tinha como objetivo
extirpar o “câncer marxista” até as últimas consequências. Nessa noite o general Leight declarou guerra
ao país. A verdade é que não tínhamos ideia do que ele estava falando. No dia seguinte, dia 12, o
general Pinochet declarou que o Chile estava em guerra interna – tampouco sabíamos do que se tratava
– e se estabeleceu o toque de recolher, no dia 12, às 24h. Vivemos com toque de recolher por quase 17
anos. Algo que se foi amenizando, mas durante os 17 anos o toque foi algo permanente. A maior parte
do tempo estivemos em estado de sítio, e quando não estávamos em estado de sítio estávamos em
estado de emergência, e portanto a suspensão de direitos foi permanente.
Em 1976 todos os dirigentes da Unidade Popular ou estavam mortos, ou estavam no exílio. Os
dirigentes da esquerda marxista – Partido Comunista, Partido Socialista, Movimiento de Izquierda
Revolucionaria (MIR), Movimiento de Acción Popular, de orientação social cristã – todos, os que não
estavam mortos, estavam fora do país. Um segmento muito pequeno ficou no país. Em 1976 no
Movimiento de Izquierda Revolucionaria, que reivindicava a via armada desde sua fundação, em 1965,
de mil militantes restavam cinquenta vivos no Chile. O restante estava morto, e poucos no exílio. O
Partido Comunista, com uma estrutura e um aparato criado desde 1922, logrou sobreviver. Seus
1
Texto produzido a partir da transcrição de conferência proferida na abertura da II Jornada de Estudos sobre
Ditaduras e Direitos Humanos. Transcrição/tradução: Clarissa de Lourdes Sommer Alves.
2
Licenciada em História. Doutora em Estudos Americanos, menção Pensamiento y Cultura pela Universidad de
Santiago de Chile. Docente da Universidad Diego Portales.
3
Nota da tradução: Carabineros é a polícia militar chilena.

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dirigentes, alguns foram presos, outros partiram ao exílio na União Soviética, mas o Partido Comunista
viu muitos de seus dirigentes e a juventude – particularmente sua juventude – sofrendo com a tortura
desde 1974. O Partido conseguiu sobreviver: alguns dirigentes intermediários salvaram-no, mas três
direções foram assassinadas entre 1973 e 1976. Em relação ao Partido Socialista, muitos de seus
dirigentes partiram à Alemanha Oriental, que existia nesse tempo, e outros ficaram no Chile. Seu
dirigente máximo, Carlos Altamirano, foi retirado pela Stasi em um operativo, caso contrário teria sido
assassinado. Muitos jovens dirigentes socialistas eram estudantes e foram assassinados. O que quero
salientar é que em 1976 a esquerda marxista no Chile quase não existia mais. Os que restavam estavam
na clandestinidade, e era uma esquerda quase paralisada.
No Chile não houve solidariedade, na maioria dos casos. O impacto da violência foi de tal nível,
que o que produziu foi uma paralisação social. Muitos dos perseguidos não receberam ajudam, e o que
ocorreu no país foi finalmente gerando uma espécie de indiferença social. Já vou explicar porque a
guerra psicológica feita pela ditadura teve êxito, e muitos setores da sociedade chilena chegaram à
conclusão de que se alguns eram perseguidos, algo haviam feito, e portanto deviam merecer o que lhes
estava ocorrendo. Assim, a rede de solidariedade não foi majoritária, e as pessoas que auxiliaram aos
perseguidos sofreram com a repressão em consequência.
Chile é hoje um país muito despolitizado. O terror paralisou grande parte da sociedade, e quem
seguia militando, colaborando ou ajudando era uma minoria. O restante estava submetido à ditadura e
ao discurso – ou ao monólogo – de Pinochet e de seus iguais. Agora, se o impacto interno da violência
foi a paralisação, a quase aniquilação da esquerda, e a neutralização da oposição – refiro-me à
Democracia Cristã – ao nível internacional a violência do golpe gerou isolamento. Se os EUA e a CIA
prepararam o golpe de Estado, na prática para o mundo o fato de Salvador Allende ter chegado por vias
democráticas ao poder tornava a violência do golpe era inaceitável, portanto, desde o primeiro momento,
a Junta de Governo ficou isolada politicamente. O Chile foi condenado sistematicamente por
organizações de Direitos Humanos, condenado pelas Nações Unidas, condenado pela OEA. Portanto, o
regime que acreditava que, uma vez derrotado Allende, seria o “favorito”, ou receberia o apoio
internacional, na prática era um regime sitiado, que não tinha apoio econômico, mas sim recebeu apoio
da CIA para exercer a repressão.
Por que este tema do isolamento internacional e o impacto da violência do golpe de Estado?
Porque diferentemente dos casos da Argentina e do Uruguai, no Chile não existia uma esquerda armada
considerável. Não tínhamos nem Tupamaros, nem Montoneros. Havia o Movimiento de Izquierda
Revolucionaria, que reivindica a violência e a via armada. O MIR foi um dos poucos partidos que tratou
de resistir ao golpe pela via armada. Mas sem dúvida, era um Partido muito pequeno, que não tinha mais
de dois mil militantes. Preparados com experiência em guerrilha, ou algo do estilo, não eram mais de dez
por cento de seus dirigentes. Em testemunhos os miristas se recordam que não tinham mais de cem
militantes preparados para combater. Destes, os que tiveram condições de lutar não passaram de
cinquenta. O chefe do MIR foi detectado um ano após o golpe. Em outubro de 1974 foi assassinado. Os
últimos dirigentes foram arrancados em 1975. Portanto, o MIR não teve nenhuma capacidade de
enfrentar o golpe de Estado. Este tema é muito importante, porque a existência de uma guerrilha não
pode ser justificativa para o golpe de Estado. Seria nos casos da Argentina e do Uruguai, onde a
resistência armada transformou-se em “desculpa” para o fato. Todavia, nos casos da Argentina e do
Uruguai existiam efetivamente grupos armados importantes. Na prática eles também foram derrotados
antes do golpe de Estado, mas sem dúvida o fato de terem existido permitiu a desculpa para o golpe, e
isso provocou a posição institucional das Forças Armadas, que se justificavam a si mesmas e a suas
alianças no poder, porque sua tarefa era derrotar a subversão. O conceito de subversão neste caso
estava associado a existência de uma guerrilha. Mas no caso do Chile isso não era possível. A ditadura
usou o discurso de que no Chile havia uma guerrilha.
De fato, em outubro de 1973, inventou-se o que foi chamou de o “Plano Zeta”. Pretendia-se dizer
que a Unidade Popular estava preparando um autogolpe, portanto, o golpe de setembro teria sido para
4
evitar a instalação de um governo totalitário ditatorial dirigido por MAPU . Isso era mentira. Esse plano
nunca existiu. Fez-se o que se conhece como Caravana da Morte, um assassinato de dirigentes da
Unidade Popular com a justificativa de que eles estavam comprometidos com o Plano Zeta. No fundo, a
ditadura precisava inventar que no Chile efetivamente havia um perigo armado para justificar o golpe de
Estado. Por tanto, a ideia de que seria necessário manter um governo militar de longa duração não se
justificava pela existência de uma guerrilha que não existia. Nesse sentido, era necessário justificar o
golpe a partir de outro ponto de vista. E esse ponto de vista é o que explica porque, hoje em dia, 40 anos
depois, seguimos vivendo sob os parâmetros da ditadura.
Se vocês têm visto notícias sobre o Chile, sabem que os estudantes têm gerado, pela primeira
vez em 40 anos, um movimento político com impacto realmente político. Pela primeira vez estão
colocando no tapete os problemas da aliança ditatorial. Pela primeira vez o sistema político tem

4
Nota de tradução: MAPU é a sigla para Movimiento de Acción Popular Unitario.

20
condições, ou está disposto a escutar uma demanda social.
Por que a partir do caso do Chile se pode saber um pouco o que foram as experiências do Cone
Sul? Pelo tipo de enfrentamento que houve no Chile. Entre 1970 e 1973 houve uma confrontação de
projeto. Foi um enfrentamento entre uma aposta socialista, de corte marxista, e uma aposta capitalista
em processo de rearticulação.
No país apareceu uma nova direita, no começo dos anos de 1960, que começou a olhar para o
que seria o neoliberalismo, que desejava propor um capitalismo de mercado – no Chile o que havia,
como em toda a parte, era um capitalismo keynesiano, fortemente estatista. Esta nova direita desejava
neutralizar o poder do Estado, neutralizar o poder dos sindicatos, e desejava colocar o Chile dentro do
mercado mundial, sob as lógicas de transnacionalização da economia, lógicas de mercado. Essa direita
não teria nenhuma possibilidade de ter êxito politicamente naquele contexto.
Enquanto a direita se rearticulava, a esquerda marxista alcançou o poder em 1970. E o mais
importante disso é que era uma esquerda no poder. Se dizia no país que essa esquerda não era
perigosa porque significava um perigo armado, mas porque havia tomado o comando do aparato estatal.
Desde o Poder Executivo, a Unidade Popular no comando do Chile transformou a economia, e permitiu a
dinamização de todos os movimentos sociais. Desde o aparato estatal criou-se um setor de economia
nacionaliza. Os grandes empresários, os grandes bancos, o sistema comercial, o sistema de grande
transporte, todos foram nacionalizados, e sob esse plano de criação de uma área de propriedade social,
os trabalhadores da indústria, os camponeses, os moradores das favelas, se mobilizaram e
aprofundaram a experiência da Unidade Popular. Ainda que Allende nunca tenha colocado a construção
do socialismo naquele momento, mas sim um processo com vias ao socialismo, na prática o movimento
social gerou o que o historiador Peter Winn chamou de uma “revolução desde baixo”.
A esquerda no Chile não ameaçava com as armas. O problema da esquerda no país foi ter
demonstrado que desde o aparato do Estado era possível transformar a economia e a sociedade. Por
tanto, o perigo marxista tinha relação com o controle do Estado, e não com as armas.
O segundo problema que tínhamos no Chile, segundo a perspectiva dos golpistas, era que a
esquerda marxista era parte da institucionalidade. O Partido Comunista e o Partido Socialista entraram
no sistema político durante os anos de 1930, e portando a chamada democracia chilena, no século XX,
contou com a participação de socialistas e comunistas todo o tempo. Isso significava que os partidos
marxistas, sobretudo o Partido Comunista, eram partidos com profunda inserção social. O Partido
Comunista nasceu em 1922, quando na verdade sua origem era o Partido Obrero Socialista de 1912, de
trabalhadores, e não de intelectuais, e portanto era um partido que se desenvolvia com muita facilidade
no mundo social, no mundo popular.
O que quero dizer é que no caso do Chile o marxismo era parte da cultura política. Neste
sentido, os golpistas deveriam extirpar o marxismo no Chile. A repressão no Chile era insuficiente, e foi
focalizada. É certo que com milhares de mortos, milhares de torturados, milhares de desaparecidos, mas
a repressão de dirigiu fundamentalmente a dirigentes políticos, estudantis e sindicais. O terror se
apoderou da sociedade, mas a repressão foi focalizada. Isso significa que para extirpar o câncer
marxista era necessário outro tipo de guerra. E essa guerra era uma guerra ideológica.
Todos os que têm estudado a Doutrina de Segurança Nacional sabem que a guerra contra-
subversiva era uma guerra ideológica. Sem dúvida, quando se fala do conceito de guerra ideológica, não
se está vislumbrando apenas a repressão, mas a guerra psicológica, e vale dizer, o tema da propaganda.
No caso do Chile a guerra psicológica foi profunda. A ditadura controlou o principal canal de televisão,
que era o Canal Nacional, o único que chegava a todo o país. Usou esse canal e controlou muitos meios
de comunicação.
A guerra no Chile era insuficiente desde a perspectiva da propaganda, precisamente porque a
esquerda era parte da cultura. Pode-se dizer que o marxismo no Chile era como um guarda-chuva
político, e portanto, como dizia o general Pinochet, era necessário arrancá-lo da mentalidade da
população. A guerra psicológica, como diz a teoria, pressupunha a conquista das mentes da população.
Isso era o que deveriam fazer. Por isso na declaração do general Leight – “vamos extirpar o câncer
marxista até as últimas consequências!”. As últimas consequências não era a repressão, mas sim
ressocializar o povo do Chile. E por isso a ditadura durou tantos anos. Porque o objetivo da ditadura era,
numa linguagem atual, “reformar” a população. Haviam que criar outro sistema de crenças e de ideias.
Porque o que fazia a repressão era extirpar: as pessoas se aterrorizavam e abandonavam ideais. Mas a
ditadura não se contentou com isso: precisavam preencher o vazio deixado pela repressão. E esse vazio
era um projeto. Essa era uma ditadura programática. Não era uma ditadura que se resumia a matar. Por
isso que usei as palavras parafraseadas de Pablo Neruda. Não se incomodaram nunca de matar, mas
depois se aproximaram das crianças, e com as crianças quero dizer que o que fizeram foi gerar um
programa político, um projeto de corte global, que permitia construir uma nova sociedade.
Se todas as ditaduras de Terrorismo de Estado no Cone Sul tinham uma aspiração fundacional,
no caso do Chile essa aspiração se cumpriu até a atualidade. E o que quer dizer isso? Que a justificação
do golpe e a posição institucional dos diferentes ramos das Forças Armadas diante do questionamento

21
da necessidade de permanecerem no poder, não estava em desarmar uma guerrilha. A posição
institucional vinha com a promessa de construir um novo país. As Forças Armadas ficariam no poder
porque iam refundar o Chile, e construir o que chamavam de uma “grande nação”. As frentes em que
lutariam esta guerra, que eu tenho denominado como uma guerra social, eram as frentes econômicas,
sociais, culturais e psicológicas. A guerra militar era importante, mas não era o mais importante. O
fundamental era mudar a mente das pessoas.
Mas por que foi importante uma guerra social no caso do Chile? Pelo conceito de subversão. Os
militares chilenos, por sua trajetória histórica, associavam a ideia de subversão à pobreza. Para eles,
por que o Partido Comunista e Socialista tinham tanta tradição? Como era possível que o marxismo
tivesse chegado ao poder por via democrática? Porque o Chile era um país pobre e subdesenvolvido, e
portanto a pobreza era o que atraia o marxismo. E de que forma se poderia superar essa ideologia
maligna? Superando a pobreza! Nesse sentido, as Forças Armadas se propuseram desde o princípio a
superar os níveis de estancamento econômico que havia no Chile. Deveriam construir um novo projeto
modernizador para transformar o país e trazer crescimento econômico; esse crescimento deveria
eliminar o que se chamava de “extremamente pobres”, os marginais, os das favelas; e em terceiro lugar,
este projeto modernizador deveria terminar com a influência dos partidos. Deveria despolitizar,
entendendo por despolitizar, eliminar a influência dos partidos. Assim, deveria ser um projeto global que
respondesse aos problemas econômicos, sociais e políticos. Esse projeto ficou pronto apenas em 1978,
provindo dos civis, mas também de elementos das Forças Armadas.
Desde o ponto de vista econômico, o projeto apontou para o neoliberalismo, ou o que hoje
compreendemos como o neoliberalismo, já que ele não existia enquanto projeto na década de 1970. O
que havia, a partir de teóricos como Milton Friedman, e tudo o que eles defendiam, as políticas de
mercado da década de 1970, eram receitas de estabilização econômica, receitas monetaristas para
baixar a inflação, mas não existia o neoliberalismo como projeto. Mas nesse projeto o neoliberalismo
excede o marco econômico, e passa ao marco social, político e cultural. Esse processo se completa no
Chile em 1978, advindo de um grupo de economista que haviam estudado na Universidade de Chicago e
que, junto com outro setor denominado “gremialistas” – nome que advém de um grupo de estudantes de
direita que se autodesignou “Movimento Gremial de la Pontificia Universidad Catolica”, porque diziam
que os grêmios estudantis e sindicais deveriam estar separados dos partidos, e dedicar-se a seus fins
específicos, ocupando espaços organizados de forma separada dos partidos – articularam um projeto
tecnocrático que cumpria com todas as condições para “vencer os desafios do Chile”, produzido a partir
de uma mescla entre os neoliberais e os gremialistas.
O que propunham os neoliberais? Desarmar o aparato estatal, completamente, e introduzir na
economia chilena as lógicas de mercado. Portanto, o Estado se desfez de suas empresas públicas,
reprivatizou todo o sistema financeiro que havia sido estatizado, privatizou o sistema comercial, tornando
tudo privado. O mais importante de 1978 é que, uma vez desestatizando o sistema econômico, os
neoliberais plantaram uma utopia: a utopia de uma sociedade autorregulada pelo mercado, que não
necessitasse das interferências do Estado, mas que sozinha pudesse se autorregular pelo mercado. Isso
significou transpassar às lógicas neoliberais para o sistema social: privatizar a previdência, a saúde, a
educação, e todos os sistemas sociais. E isso que dizer que temos que pagar por tudo no Chile. Até
mesmo a cultura, as entradas nos museus, é tudo pago.
E então, do que se ocupa o Estado? Apenas dos extremamente pobres, dos habitantes das
favelas, que segundo a ditadura não eram mais de vinte e um por cento dos habitantes do Chile, e
portanto toda a guerra psicológica e social esteve voltada a esta porcentagem dos “pobres”, para que
esses pudessem internalizar as lógicas de mercado.
Nesse sentido, no país não havia nenhuma possibilidade de reestatizar a saúde, ou a
previdência em 1990, porque tudo já pertencia a grandes consórcios econômicos transnacionalizados. A
possibilidade de que a saúde ou o trabalho voltasse às mãos da regulação do Estado não existia.
Precisariam pagar indenizações gigantescas aos grandes conglomerados, e isso não era possível. Além
disso, o que a ditadura fez foi colocar a lógica neoliberal em todos os âmbitos da vida privada, porque
tudo se transformou em problema privado: a educação, que era pública, agora era um problema privado,
e as famílias, que discutiam onde estudariam seus filhos, não resolviam na esfera pública. Tudo se
transformou em um problema privado, o que gerou uma atomização geral da sociedade. Tudo é um
problema individual, e não social. Não é um problema político. Isso significou uma legislação trabalhista
que desarticulou por completo os poucos sindicatos que existiam. Se dizia que estava mantida a
negociação coletiva, mas na prática não tinham nenhuma capacidade de enfrentar os patrões, e o
mundo sindical praticamente sucumbiu. Subsistiram os sindicatos, mas sob a lógica neoliberal.
O Chile do começo dos anos 1980 é um Chile que já não tem mais um Estado que considere
que deva estar a cargo do social, salvo para estes grupos extremamente pobres, sobre os quais se
exercerá a ressocialização mais profunda. Nós, o restante, vivemos a guerra psicológica através dos
meios de comunicação e de nossa própria experiência. Tivemos que perder a educação que tínhamos,
perder o sistema de saúde que tínhamos, e aprender com essa experiência. Mas sobre os pobres se

22
exerceu uma guerra social. O que fez a ditadura foi criar grupos que iam até essas populações, em
secretariados, voluntariados de mulheres e de jovens, para ressocializar as mulheres e jovens das
favelas. Houve todo um trabalho de doutrinamento sobre o mundo popular, para que entendessem a
lógica neoliberal. Ensinavam às mulheres, por exemplo, que a economia do lugar era uma empresa,
portanto tinha que funcionar como em uma empresa, em que os recursos eram poucos, e as
necessidades eram muitas, e portanto as mulheres deviam adequar os poucos recursos disponíveis para
manter seus filhos e organizar suas casas. Esses eram os valores do novo Chile.
Assim, não houve apenas uma mudança estrutural, como também um trabalho direto no mundo
popular. A lógica da ditadura era de que se o povo do Chile não entendesse que a sociedade havia
mudado, o golpe não teria sentido. Como dizia o Ministro do Interior, Sergio Fernández, se o povo não
entende as lógicas da economia livre que estamos construindo, tudo é inútil. O consenso mínimo
indispensável era que o povo pudesse entender a lógica neoliberal, podendo viver e reproduzir-se nela.
Esse foi o objetivo da ditadura.
Paralelamente a isso, houve uma redefinição política, que vinha por parte dos gremialistas. Este
ser “malévolo”, Jaime Guzmán, líder do movimento gremial, determinou de maneira muito sintética:
criou-se um sistema neopresidencialista, em que o presidente da república quase não tinha atribuições,
porque haviam organizações supra Executivo, como o Conselho de Segurança Nacional, formado
majoritariamente pelas Forças Armadas, e um Tribunal Constitucional que pode, até os dias de hoje,
revogar leis aprovadas pelo Congresso, bastando que um deputado diga que determinada lei é
inconstitucional. Colocou-se uma série de empecilhos institucionais para limitar o Executivo.
E ainda em paralelo a isso, o projeto autoritário redefiniu a participação política. Até então o povo
chileno entendia como participação política a participação nos grandes debates nacionais. No Chile foi
toda uma discussão o caminho para chegar ao socialismo. Foi uma discussão que tipo de Estado e de
sociedade queríamos. O que a ditadura pretendia era que as pessoas nunca mais se preocupassem com
os grandes projetos. E o que era preciso fazer? Radicar as pessoas em seus temas cotidianos: Limitar-
se aos seus temas locais. Foi feita uma separação entre participação social e participação política. As
pessoas deviam participar socialmente, em concreto, em suas comunas, por isso no Chile a reforma
política pressupõe a reforma municipal, e por isso quando se implementou o neoliberalismo e a
desestatização, foram transferidos todos os serviços sociais aos municípios: a saúde, a educação, o
sistema de definição de construções, etc. Isso significa que quando as pessoas necessitam de um
auxílio de subsídio, por exemplo, não demandam ao Ministro do Trabalho, demandam ao município. Se
têm algum problema de saúde, é saúde municipal, se há um problema de educação, é educação
municipalizada. Isso significa que todas as demandas sociais não vão ao Estado central, mas se
realizam nas comunas. Isso significa que as pessoas, seu entorno e sua lógica política se estreitou, saiu
do debate de cima, e se focalizou no nível territorial. Essa reforma municipal se mantém até os dias de
hoje, e portanto, durante os anos de 1990, no momento da transição democrática, não discutimos o
modelo econômico, porque isso estava imbricado a cima. Não discutimos o autoritarismo, porque esse é
tema da tecnocracia. Mas o que vamos discutir então? Vamos discutir se fazemos uma praça!
Discutimos se nos faltam luzes nas ruas, mas não podemos discutir o tema de fundo. Esse é o problema.
Esse projeto, que parece tão redondinho, explica que quarenta anos após o golpe o projeto da
ditadura siga completamente inteiro. Por que o tema da repressão não é o grande tema hoje em dia?
Porque nosso problema é nos desfazermos da ditadura enquanto projeto. Não é que a repressão não
importe, pois sim, importa. Mas importa de forma muito mais limitada. O movimento estudantil do Chile
hoje em dia tem muito claro o que são violações aos Direitos Humanos. As pessoas democráticas sabem
que no Chile se violaram os Direitos Humanos, mas há, sem dúvida, cerca de quarenta por centos de
chilenos pinochetistas, para os quais a repressão não importa nada, e que dizem mais: que bom que
fizeram isso! Porque não mataram mais gente? Essa é a divisão no Chile: sessenta a quarenta por
cento.
E por que o movimento estudantil conseguiu tanto êxito no último período? Porque esse
movimento está apontando o projeto da ditadura. O que os estudantes estão demandando hoje é discutir
5
o tema país, não o tema das praças. Discutamos a educação pública. E por isso o governo de Piñera
não quer discutir. Por isso a direita se opõe a que entremos em um debate profundo sobre as bases da
ditadura, e se os estudantes conseguem que se discuta o tema da educação e da saúde, mas que se
discuta as bases disso, começamos finalmente a minar a herança de Pinochet. E nesse sentido, como
vocês podem compreender, a resistência é enorme. E por isso a direita não quer mudar o sistema
político, que lhes permite controlar a metade do parlamento com um terço dos votos, não quer mudar o
modelo econômico, e seu discurso é “olhemos para o futuro!”. Não querem que olhemos para o passado,
porque discutir o passado significa discutir o futuro, ou seja, discutir se vamos transformar o Chile, ou se
vamos seguir sendo os filhos de Pinochet.

5
Nota da tradução: Sebastián Piñera, eleito presidente do Chile para mandato entre 2010 e 2013.

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“Desde entonces la patria no es la misma”: impressões sobre o terror de estado no Chile

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli

A alta qualidade da conferência proferida pela Professora Doutora Verónica Valdívia soma-se
àquelas de outros professores chilenos de História da América Latina que estiveram em nosso meio;
refiro-me a Miguel Rojas Mix e Eduardo Devés Valdéz, ambos com trabalhos que se relacionam de
alguma maneira com a ditadura civil-militar chilena. Nestas circunstâncias, aproximar-me das
abordagens mais recentes sobre o Terror de Estado no Chile exigiria um distanciamento crítico que
possivelmente eu não alcance, pois minha visão histórica daquela realidade se confunde
inequivocamente com minha memória, e esta é muito traiçoeira e inconfiável! Mais até do que partidária,
ela é passional e marcada pela indignação até os dias de hoje!
Eu recém-havia ingressado na universidade – também vivendo os horrores do Terror de Estado
no Brasil após o Quinto Ato Institucional de 1968 – e as notícias que vinham do Chile eram alvissareiras!
Tratarei então de marcar as impressões que tive dos tempos que antecederam a eleição Salvador
Allende da Unidad Popular à presidência do Chile, o impacto das realizações e das dificuldades do seu
governo, e as repercussões mais imediatas do golpe de Estado e implantação da ditadura de Pinochet.
Antes de tudo, convém situar a “familiaridade” que já tinha com a política chilena com as
histórias que meus pais contavam, de muitos anos antes. E estas falavam de um país que tinha uma
destacada tradição comunista na América Latina. O pai ouvira Pablo Neruda declamar seu Dicho en
Pacaembu no famoso Comício do Partido Comunista em julho de 1945, quando prestou sua homenagem
a Luis Carlos restes, libertado recém em abril dos porões do Estado Novo. Os milhares de pessoas que
lotavam o maior estádio brasileiro de então ouviram Pablo Neruda dizer no fechamento do seu poema:
“Hoy pido un gran silencio de volcanes y ríos. / Un gran silencio pido de tierras y varones. / Pido silencio
a América de la nieve a la pampa. / Silencio: La palavra al Capitán del Pueblo. / Silencio: Que el Brasil
1
hablará por su boca.” Quatro anos depois, escreveria ainda outra homenagem de Neruda, em Prestes
del Brasil, recordando o encontro no Pacaembu: “El estadio pululaba con cien mil corazones rojos que
2
esperaban verlo y tocarlo”. A grande obra do futuro Prêmio Nobel aludia ao líder comunista brasileiro
em dois de seus poemas, destacando-o entre os grandes Libertadores do continente americano.
Quanta diferença deste Chile ligado ao Brasil pela utopia daquelas publicações que pela primeira
vez divulgaram o “perigo vermelho” numa eventual vitória de candidatos da esquerda! Esta situação era
temida mesmo no moderado governo de Eduardo Frei, do Partido Demócrata Cristiano por ativistas da
extrema direita brasileira! Com efeito, o próprio Plínio Correa de Oliveira, fundador da famigerada
Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), tratou de identificar os riscos
que advinham da reforma agrária levada a efeito por Frei, mesmo que ela fosse muito restrita. Temia a
Democracia Cristã chilena, “desatenta” a tais projetos, mesmo que tímidos. Juan Gonzalo Larrain
Campbell, diretor da versão da TFP no Chile – Sociedade Chilena de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade – explica: “O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, sempre fiel sentinela da Contra-Revolução, não
tardou em discernir o perigo que significava para o continente latino-americano a ascensão de Frei.
Pediu, então, a Fábio Vidigal Xavier da Silveira que viajasse ao país andino para confirmar in loco as
3
apreensões que lhe assomavam ao espírito.” Com efeito, ainda em 1967 o diretor de TFP Fábio Vidigal
publicou o livro Frei, o Kerensky Chileno, que prenunciava o avanço das ideias esquerdistas na América
4
Latina, mesmo pelas mãos da Democracia Cristã.
Mas se a ultradireita brasileira e a ditadura militar se preocupavam com o Chile antes das
eleições de 1970, a pior situação para elas estava por acontecer. Houve uma cisão entre os grupos não
esquerdistas: de um lado, o Partido Nacional, com Alessandri, que congregava os setores burgueses
mais conservadores e os latifundiários; também a Democracia Cristã, com um projeto mais progressista
que atraía grupos médios urbanos, pequena burguesia e até alguns setores populares, apresentou
candidato próprio, Tomic. Esta divisão favoreceu a vitória de Unidad Popular: em 4 de setembro, com


Professor Associado do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
1
Esta poesia foi incluída em Canto General, publicado por primeira vez no México em 1950. Neste volume, a
homenagem a Prestes se inclui em Los Libertadores, parte IV do livro. NERUDA, Pablo. Dicho en Pacaembu
(Brasil, 1945). In: Canto General. Buenos Aires: Losada, 1975, p.143-145.
2
Prestes del Brasil (1949). In: Id. Ibid. p.141-143.
3
LARRAIN CAMPBELL, Juan Gonzalo. Frei, o Kerensky chileno: 30 anos depois. Catolicismo. São Paulo, Editora
Padre Belchior de Pontes, agosto de 1997 (edição on line).
4
SILVEIRA, Fábio Vidigal Xavier da. Frei, o Kerensky Chileno. Editora Vera Cruz, 1967.

24
36,6% dos votos vencia Salvador Allende, do Partido Socialista.
A Unidad Popular era composta pelo Partido Socialista e o Partido Comunista, ambos de forte
inserção entre os trabalhadores, além do Partido Radical, que representava setores médios urbanos e
médios proprietários, e o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), facção da Democracia Cristã que
se radicalizara. No campo da esquerda havia também o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR)
que defendia a ação direta, com tomada violenta do poder; se de inicio via com reservas o governo de
Allende, mais tarde faria forte oposição desde a extrema esquerda, acusando a Unidad Popular de
reformista e demagógica.
Havia, decerto, temores sobre o futuro desta vitória eleitoral. Em 25 de outubro, um complô
armado pela Central Intelligence Agency (CIA) resultou no assassinato do Comandante-em-Chefe das
Forças Armadas do Chile, René Schneider. Este general defendia a obediência à Constituição do país,
criando a chamada Doutrina Schneider que promovia a exclusão das forças armadas da política
5
nacional. Presumivelmente autorizada pelo chanceler estadunidense Henry Kissinger, o afastamento de
6
Schneider seria uma condição para impedir a posse de Allende. No entanto, além da grande comoção
popular, o presidente Eduardo Frei agiu com energia, e nomeou para o cargo o general Carlos Prats, que
compartilhava a defesa da ordem legal; mais tarde ele seria mantido no cargo por Salvador Allende.
Restava ainda uma questão política: por não ter maioria absoluta de votos, a eleição necessitava de
confirmação no Congresso Nacional, majoritariamente contrário à Unidad Popular. Aqui uma vez mais a
Democracia Cristã manteve uma posição coerente com as urnas, e Allende obteve 78.4 % dos votos dos
congressistas, legitimando-se como presidente.
Tais notícias vinham das agências internacionais de informações, além de serem “filtradas” pela
censura que os órgãos de imprensa sofriam na ditadura brasileira. Também vinham de familiares e
amigos de perseguidos políticos que cada vez mais procuravam refugio no Chile, buscando uma utopia
socialista, uma revolução “desarmada” que buscava, a partir do governo da Unidad Popular, profundas
transformações sociais nos termos constitucionais e sem tomar o poder pela força.
O ano de 1971 foi promissor, o que era possível acompanhar em que pese a censura dos órgãos
de imprensa. O programa da Unidad Popular trazia profundas medidas econômicas: a nacionalização do
cobre – principal produto chileno – era um golpe muito duro no capitalismo internacional; a reforma
agrária muito ampliada em relação àquela iniciada por Frei, feria os interesses dos latifundiários chilenos,
comprometendo as bases de um sistema semifeudal muito arraigado; o controle dos bancos
complementava este leque. Assim, o Chile vivia uma proposta ao mesmo tempo anti-imperialista,
antioligárquica e antiburguesa, e o Estado era o fiador deste projeto.
Mas já no ano seguinte apareceram e recrudesceram as ações de enfrentamento e sabotagens
– internas e externas – ao governo Allende. As dificuldades em manter as relações comerciais pelo
declínio do preço do cobre somaram-se ao desabastecimento generalizado provocado por atacadistas,
comerciantes e setores de transportes. Havia ainda uma insólita mobilização de setores das classes
dominantes, os moradores dos “barrios altos” protestando contra a situação política e econômica do
Chile. Estes graves problemas foram amplamente noticiados pela imprensa nacional e agências
estrangeiras, constituindo-se em forte propaganda contrarrevolucionária.
Com tantas dificuldades impostas ao governo Allende, a direita chilena – à qual se somava agora
a Democracia Cristã – apostava nas eleições legislativas de março de 1973. Quando o resultado delas,
dando 44% dos votos para a Unidad Popular, tornou-se muito claro não havia mais solução política à
vista, e a oposição tratou de prepara uma saída golpista. Deste processo fez parte o levante de 29 de
junho conhecido como Tancazo ou Tanquetazo, quando uma coluna de 16 carros de combate invadiu o
centro de Santiago e cercou o Palacio de La Moneda, da presidência. A sublevação foi dominada pelas
tropas leais comandadas pelo general Prats, mas trouxeram alento aos opositores do regime, dentro e
7
fora do Chile. Dois meses depois o Prats renunciou ao ministério da Defesa, substituído por Augusto
Pinochet.
Em 11 de setembro viria o esperado golpe militar, uma ação cruenta levada a cabo por todas as
Forças Armadas chilenas, comandadas pelo próprio ministro Pinochet da Defesa. O bombardeio Palacio
de La Moneda foi televisionado para o mundo inteiro, e recebido com regozijo por todos oposicionistas,
dentro e fora do Chile. Mesmo a imagem de uma sede de governo sendo alvejada e incendiada, com o
presidente Allende morrendo durante o bombardeio recebeu qualquer contrariedade por parte dos

5
Afirmara Schneider ainda em maio de 1970: “vamos garantizar la normalidad del proceso elecccionario y dar
seguridad de que asuma el Poder Ejecutivo quien resulte electo.” AYLWIN, Mariana & al. Chile en el Siglo XX.
Santiago: Planeta, 1999. 230-232.
6
É famosa uma frase de Kissinger sobre a eleição de Allende: "Não vejo porque precisamos ficar parados e
assistir um país tornar-se comunista por causa da irresponsabilidade do seu povo”.
7
Durante o Tancazo, jornalista argentino Leonardo Henrichsen filmava as ações quando foi alvejado por um cabo
das forças golpistas; as imagens do cinegrafista “documentando a própria morte” causaram impacto
mundialmente, o que não impediu a propaganda anticomunista contra o governo de Allende.

25
governantes do continente. Sabe-se que houve aberta atuação dos Estados Unidos em prol do golpe,
inclusive com sua armada a postos para intervir, assim como a participação da diplomacia brasileira, do
8
Itamaraty até sua representação no Chile.
Chegava ao fim a experiência chilena de revolução pacífica, dentro dos marcos institucionais e
– talvez por isto mesmo! – derrubada por uma ação muito cruenta das Forças Armadas, até pouco tempo
9
antes comprometidas com a ordem constitucional. Em uma obra recente, o historiador chileno Miguel
Rojas Mix elenca uma série de “tarefas” que a ditadura civil-militar de Terror de Estado assumiu no Chile,
10
de resto semelhante a outras aparecidas na América Latina. Ele chama a atenção para alguns
aspectos significativos:
1. O Terror de Estado é um corolário da chamada Doutrina de Segurança Nacional (DSN),
desenvolvida nos Estados Unidos e propalada para a América Latina; para garantir a integridade dos
países americanos, deve-se promover uma guerra contra os “inimigos internos”, justificando-se todos os
11
meios para isto.
2. O caráter religioso que aproxima o golpe chileno do falangismo da Guerra Civil Espanhola; o
“banho de sangue” para lavar o país, resgatando o “nacional-catolicismo” e a hispanidad do povo chileno
da conspurcação pretendida pelo Comunismo, internacional e ateu. A civilização ocidental se confunde
com o Catolicismo.
3. As Forças Armadas do Chile retomaram o papel histórico de defensoras do país desde os
tempos da Conquista; o golpe de Estado coloca-as como a representação máxima do nacionalismo
chileno.
4. A democracia e a “degeneração” dos costumes eram sinais inequívocos da “decadência” do
Ocidente. Spengler e Toynbee foram alguns dos autores que inspiraram estas ideias: as civilizações
passam sempre por um processo de “despertar, ascensão e queda”, necessitando de “minorias
criadoras” capazes de regenerarem as nações.
5. Estes pressupostos ideológicos se somavam às doutrinas neoliberais, defendidas por Heyer,
Friedmann e Popper desde 1947, e que se impunham progressivamente entre os países capitalistas.
Favorecer os empreendimentos transnacionais no Chile e liquidar com a intervenção do Estado na
economia foram tarefas cumpridas pela ditadura.
Nos anos seguintes a ditadura protagonizou a eliminação de antigos membros do governo
Allende. Para tanto, havia criado em 1974 a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), uma polícia
secreta treinada por agentes da CIA na Escola das Américas, na Zona do Canal do Panamá,
encarregada de fomentar a contrainsurgência nos países americanos. Já em 30 de setembro de 1974, a
recém-criada DINA levou a cabo o atentado a bomba que resultou na morte do general Carlos Prats,
exilado em Buenos Aires. Em 21 de setembro de 1976 foi a vitimado Orlando Letelier, que tinha sido
embaixador do Chile nos Estados Unidos e depois Ministro de Relações Exteriores, Interior e defesa; em

8
Um fato pitoresco: o primeiro testemunho ocular do golpe de 11 de setembro foi dado em Porto Alegre pelo
presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Rubens Freire Hoffmeister. Ele se encontrava em Santiago no
comando de uma seleção de jogadores de clubes do interior do Rio Grande do Sul que disputaria um jogo
contra a Seleção do Chile. Quando aconteceu o bombardeio do palácio de governo, a delegação estava em um
hotel localizado nas proximidades. Tendo ligações políticas com a ARENA, Hoffmeister defendeu a versão oficial
dos golpistas, a defesa da “democracia ocidental” contra o avanço do “comunismo” na América Latina. Como era
um homem muito caricato e alvo de ditos jocosos pela imprensa, seu testemunho de certa forma desmoralizou
as razões que justificavam o golpe de Estado.
9
Foram muitas as explicações dadas por intelectuais de esquerda para o fracasso do Chile. Agustín Cueva
defendeu que a causa do golpe se deu pelo caráter revolucionário da Unidad Popular, onde o Estado era a
“institución encargada de regular las contradicciones sociales, ahora más bien las reproducía ampliamente en su
seno, convertido en uno de los puntos nodales de la lucha de clases. Lucha que se expresaba en este nivel,
entre otras formas, como una contradicción entre las prácticas gubernamentales orientadas hacia la
transformación del modo de producción dominante y la superestructura jurídico-política encargada de
perpetuarlo.” CUEVA, Agustín. Teoria Social y Procesos Políticos em América Latina. México: Edicol, 1979,
p.119. Já para Sader, a Unidade Popular partia da ocupação de apenas uma parte do poder para iniciar a
transição “Ou seja, um centro vital do aparato criado para a preservação da ordem burguesa era ocupado por
uma coalizão que pretendia destruí-la. Porém, o insólito prosseguia no fato de que esta coalizão pretendia
chegar ao socialismo pelas vias institucionais criadas para combatê-lo”. SADER, Eder. Um Rumor de Botas. A
militarização do estado na América Latina. São Paulo: Polis, 1982 p.91-92. Semelhante é a explicação de
Aggio, que afirma ter o processo chileno se caracterizado por uma “revolução passiva”, onde “o Chile tinha na
função moderna desempenhada pelo Estado seu referencial de “racional absoluto”, cabendo a ele implementar
“do alto” as transformações clamadas pela sociedade em seu conjunto”. AGGIO, Alberto. Frente Popular,
radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume / FAPESP, 1999, p. 210.
10
ROJAS MIX, Miguel. El dios de Pinochet. Fisionomía del fascismo iberoamericano. Buenos Aires: Prometeo,
2007, p.13-18.
11
A DSN tinha uma versão latino-americana realizada pelo general Golbery do Couto e Silva na escola Superior
de Guerra do Brasil. SILVA, Golbery do Couto e. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: Jospe Olympio, 1967.

26
seu exílio nos Estados Unidos, ele movia forte campanha contra o governo de Pinochet, quando foi
morto pela ação conjunta entre a DINA, a CIA e imigrados cubanos de ultradireita.
O maior protagonismo externo do Chile foi a liderança do Plan Condor, criado pela DINA em 25
de novembro de 1975, em aliança com os serviços secretos das ditaduras da Bolívia, do Brasil, do
Paraguai e do Uruguai; a Argentina – que sob o governo de Isabelita Perón caíra sob domínio dos
setores direitistas do peronismo, comandados pelo ministro López Rega – também participou.
Mas eram mais candentes as notícias que vinham do próprio Chile sobre o Terror de Estado, a
maior parte delas por pessoas que haviam conseguido refugio em outros países. Além da Europa, o
México foi um lugar de eleição por muitos destes fugitivos, assim como a Argentina no breve interregno
12
democrático entre 1973 e 1976. O Estadio de Chile foi transformado em campo de concentração para
centenas de prisioneiros, dos quais muitos seriam “desaparecidos” ou executados. É emblemático desta
tragédia o assassinato do grande compositor Victor Jara, o mais famoso artista chileno destes anos;
ainda preso no estádio, compôs o poema Somos cinco mil, também chamado de Estadio de Chile, que
foi memorizado e reproduzido mais tarde por seus companheiros: “Somos cinco mil / en esta pequeña
parte de la ciudad / Somos cinco mil / ¿Cuantos seremos en total? / en las ciudades y en todo el país?”
Contou-se por muito tempo a história de que Jara teve suas mãos decepadas como uma ironia
macabra pelos versos famosos de Lo único que tengo, uma de suas canções mais conhecidas: “Y mis
manos son lo único que tengo y mis manos son mi amor y mi sustento.” No entanto, a inglesa Joan Jara,
13
viúva do artista, nega este fato na biografia que escreveu sobre ele.
Entretanto, aquele Chile que a ditadura tentava arrasar nos chegava por outros caminhos, e os
tempos de Allende apareciam através de uma profusa produção cultural, agora banida do país! Trazidas
da Argentina – até a implantação da ditadura em 24 de março de 1976! – e de outras partes, diversas
manifestações artísticas chilenas, engajadas ao projeto da Unidad Popular, eram divulgadas entre os
opositores da ditadura militar, mesmo com o risco de serem acusados de propagandear material
“subversivo”. Tornavam-se mais conhecidos os músicos, que desde os anos 60 tinham se organizado em
torno da Nueva Canción Chilena, procurando tirar das raízes populares inspiração para os movimentos
políticos contemporâneos, de maneira similar ao que ocorria principalmente na Argentina, no Uruguai, no
México.
A própria Violeta Parra – a mais importante artista musical do Chile, que se suicidou em 1967 –
apesar de anteceder esta geração, de alguma forma se associava a este grupo. Mesmo sendo uma
compositora já bem conhecida, algumas de suas canções mais radicais – Violeta era comunista! – se
difundiram a partir de seus seguidores: La carta, Al centro de la injusticia, Que dirá el santo padre Los
14
pueblos americanos, Me gustan los estudiantes, são algumas delas. Seus filhos, Ángel e Isabel Parra,
ambos compositores e cantores, além de seus trabalhos artísticos próprios, criaram em 1965 a famosa
Peña de los Parra, uma penha folclórica que reunia os principais intérpretes da Nueva Canción Chilena.
Destas reuniões resultaram os álbuns La Peña de los Parra, ainda de 1965, com vários intérpretes, e La
Peña de los Parra volume 2, agora apenas com os irmãos Ángel e Isabel.
Por lá andou Patrico Manns, que em 1971 escreveu No cierre los ojos, sobre aqueles que tinham
votado em Allende para presidente, e que “y esgrimiendo su confianza / fueron a las elecciones / a
ganar.” Como esquecer Pedro Alarcón, com sua canção Si somos americanos, ainda de 1965: “si somos
americanos, seremos todos iguales”. Ou do conjunto Quilapayun, cujo álbum Por Vietnam, de 1968,
exibia na capa uma paródia da bandeira dos Estados Unidos com listras pretas e caveiras em lugar das
estrelas que, segundo eles, havia sido feita por Mark Twain! Deste trabalho consta Canto a la pampa,
onde por primeira vez eu soube do grande massacre de Santa Maria de Iquique de 1907... Sobre o tema,
dois anos depois eles gravariam a impressionante Cantata de Santa Maria de Iquique, do compositor
Luis Advis. Também lembro o grupo Inti-Illimani, especialmente por Viva Chile, álbum lançado já no
exílio: nele, entre tantas canções, há Cueca de la CUT, o hino da Central Única de Trabajadores de Chile
do cantautor Héctor Pavez, outro dos tantos artistas da Nueva Canción Chilena, composta poucos
meses antes do golpe militar; sem esquecer Venceremos, canção da Unidad Popular durante a
campanha de Allende.
No entanto, é impossível pensar no impacto – mesmo que tardio – do cancioneiro do cantautor
Victor Jara, antes referido. Mais além da indignação pelo seu assassinato em mãos do Terror de Estado
que se abatia sobre o Chile, sua qualidade artística a serviço das causas sociais chilenas foi notável!
Impossível dissociar seu álbum de 1969, Pongo en tus manos abiertas, com a foto das mãos calejadas

12
Este era um estádio multiesportivo, construído em 1949, com capacidade para 4.500 espectadores. Muitos o
confundem com o Estadio Nacional de Chile, voltado para o futebol, com 47.000 lugares; ele não foi usado como
campo de concentração. Em 2004 o Estadio de Chile foi renomeado como Estadio Victor Jara
13
JARA, Joan. Canção Inacabada. Vida e obra de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 1998.
14
Somente em 1976 canções de Violeta Parra seriam gravadas no Brasil. Elis Regina no álbum “Falso Brilhante”
gravou Gracias a la Vida, e Milton Nascimento em “Geraes” interpretou Volver a los diecisiete junto com a
argentina Mercedes Sosa.

27
de um camponês na capa, dos martírios que sofreu antes de ser morto pela ditadura. Nele está Zamba
del Che, recordando outro dos tantos mártires americanos: “Mataron al guerrillero Che Comandante
Guevara”... Também a conhecida Te recurdo Amanda! Em 1971, no disco El derecho de vivir, Jara
apresenta uma das canções mais canônicas da América Latina, Plegaria a un labrador, um verdadeiro
hino para as históricas lutas camponesas do continente; os versos finais são da própria Ave Maria,
dando o tom de oração que prometia no título: “Juntos iremos unidos en la sangre / ahora y en la hora de
nuestra muerte / Amén”. Talvez a mais importante obra artística de Victor Jara seja La Población, de
1972, que trata da toma dos terrenos da Calle San Pablo em Barrancas, região metropolitana de
Santiago. Esta ocupação por camponeses em março de 1967 foi severamente reprimida pelo governo
15
Frei, e suas narrativas foram transformadas numa obra musical de elevado cunho social.
Menos impactantes que as canções – mas não em seu conteúdo! – muitos livros foram escritos
sobre os acontecimentos no Chile, por exilados do país ou de estrangeiros que lá viviam. Não lembro
quantos nem de seus títulos, mas circulavam nos meios estudantis e intelectuais que, nos tempos da
Distensão proposta pelo presidente Geisel, já tinham um pouco mais de oportunidades para tanto. Uma
vez mais voltamos a Neruda! Em Montevidéu, abril de 1973 – pouco antes do golpe militar que instaurou
o Terror de Estado também no Uruguai – foi publicado o último livro de poemas do poeta chileno, que
dois anos antes fora agraciado com o prêmio Nobel de Literatura. O provocativo título Invitación al
Nixonicidio y alabanza a la revolución chilena já apontava para os riscos que o Chile de Allende corria
em relação à política externa agressiva do presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Em Juntos
hablamos, poema de encerramento do livro, Pablo Neruda escreveu em seus versos finais: “Chile, mi
16
Patria no será vencida / ni al extranjero domínio sometida”. Isto foi em janeiro de 1973; Neruda ainda
presenciaria o golpe de Estado daquele ano, falecendo em 23 de setembro!

**********

Mais que “História”, eu contei apenas “histórias”, memórias que tenho sobre o Chile, que tratei
de ordenar da melhor maneira, buscando um perfil mais próximo possível de um trabalho acadêmico.
Cabe ainda, antes de encerrar este texto, mostrar um pouco dos trabalhos realizados na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Alguns colegas historiadores – aos quais eu me somo – realizaram
pessoalmente ou orientaram alunos a escreverem dissertações de Mestrado e teses de Doutorado sobre
as ditaduras na América Latina, incluída aqui aquela que se abateu sobre o Chile. Temas relacionados
ao terrorismo de Estado já adquiriram bastante relevância entre nós, e certamente isto me traz orgulho
de pertencer à Universidade e fazer parte deste grupo de docentes e alunos! Assim, em nosso Programa
de Pós-Graduação em História foram realizadas quinze Dissertações de Mestrado e cinco Teses de
Doutorado, sobre o Terror de Estado no Brasil e em outros países latino-americanos. Considerando que
já existem ainda muitos Trabalhos de Conclusão do Curso (TCC) de Graduação em História, temos um
17
número bastante significativo de pesquisas!

15
SIMÕES, Sílvia S.“Canto que ha sido valiente siempre será canción nueva” : o cancioneiro de Víctor Jara e o
golpe civil-militar no Chile. Porto Alegre: UFRGS (Dissertação de Mestrado), 2011, p.152-153.
16
NERUDA, Pablo. Invitación al Nixonicidio y alabanza a la revolución chilena. Montevideo:Ediciones Vanguardia,
1973. Postumamente foi editado seu livro de memórias, onde se refera à sua trajetória como intelectual e
militante comunista. NERUDA, Pablo. Confieso que he vivido. Buenos Aires: Losada, 1974. (Este livro só
apareceria no Brasil em 1978, quando já se anunciava a Abertura do futuro governo de João Figueiredo.
NERUDA, Pablo. Confesso que vivi – Memórias. Rio de Janeiro: Difel, 1978.)
17
Dissertações de Mestrado. Orientador Benito B. Schmidt: GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: uma
reflexão sobre os episódios de retratação pública protagonizados por integrantes de organizações de combate à
ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975). Porto Alegre: UFRGS, 2008 Orientadora Carla S. Rodeghero: ALVES,
Taiara S. Dos quartéis aos tribunais: a atuação das auditorias militares de Porto Alegre e Santa Maria no
julgamento de civis em processos políticos referentes às leis de segurança nacional (1964-1978). Porto Alegre:
UFRGS, 2009; DOBERSTEIN, Juliano M. As duas censuras do regime militar: o controle das diversões públicas
e da imprensa entre 1964 e 1978. Porto Alegre: UFRGS, 2007; GUAZZELLI, Dante G. A lei era a espada:
atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Orientador
Cesar A. B. Guazzelli: ROSA, Michele R. O pensamento de esquerda e a revista Civilização Brasileira (1965-
1968). Porto Alegre: UFRGS, 2004; SOUZA, Hélder C. Os cartões de visita do Estado: a emissão de selos
postais e a ditadura militar brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 2006; AGUIAR, José Fabiano G. C. de. “Yo vengo a
cantar por aquellos que cayeron": poesia política, engajamento e resistência na música popular uruguaia : o
cancioneiro de Daniel Viglietti : 1967-1973. Porto Alegre: UFRGS, 2009; SIMÕES, Sílvia S.“Canto que ha sido
valiente siempre será canción nueva” : o cancioneiro de Víctor Jara e o golpe civil-militar no Chile. Porto Alegre:
UFRGS, 2011. Orientadora Claudia Wasserman: BAUER, Caroline S. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º. andar:
terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do
Sul (1964-1982). Porto Alegre: UFRGS, 2006; ARENHART, Davi R. Entre risos e prantos: as memórias acerca
da luta armada contra a ditadura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2011; BRASIL, Clarissa. O Brado
de Alerta para o Despertar das Consciências: uma análise sobre o Comando de Caça aos Comunistas no Brasil,

28
Houve ainda algumas atividades destacáveis. De janeiro a março de 2004, o Museu Universitário
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul recebeu a exposição La Memoria Herida, idealizada e
organizada pelo historiador chileno Miguel Rojas Mix, um impressionante acervo de artistas plásticos do
Chile sobre os anos da ditadura naquele país. Inspirados pela exposição, os professores Claudia
Wasserman, Enrique Serra Padrós e eu organizamos o Seminário A Ditadura na América Latina,
aproveitando o ensejo dos aniversários de 30 anos das ditaduras chilena e uruguaia no ano anterior, e
dos 40 anos da brasileira que aconteceria naquele ano. Este Seminário teve sua Conferência de
Abertura proferida pelo próprio professor Miguel Rojas Mix, quando inaugurou a supracitada exposição.
O Seminário teve sequência com Mesas Redondas apresentadas pelos professores organizadores e
também alguns dos seus orientandos, tanto de Graduação quanto de Pós-Graduação em História. A
Conferência de Encerramento ficou a cargo do escritor e jornalista Zuenir Ventura. Destes trabalhos
resultou a publicação do livro Ditaduras Militares na América Latina, organizado pela professora Claudia
Wasserman e por mim; além dos organizadores e dos conferencistas do Seminário, há mais nove textos
18
escritos por alunos que participaram do mesmo.
E que mais? Um trauma que ainda permanece, o fantasma das ditaduras de Terror de Estado
assombrando a todos! No Chile, de maneira especial: uma ditadura muito cruenta que ainda não teve o
devido “acerto de contas” – o que de resto também não aconteceu entre nós! Dois autores chilenos são
muito eloquentes neste sentido.
O escritor Ariel Dorfman comenta que, apesar dos horrores do Terror de Estado no Chile,
existem por todo lado pessoas que admiram o “bom trabalho” do governo de Pinochet, trazendo a ordem
das casernas, afastando a insubordinação de trabalhadores, e principalmente favorecendo a economia
de mercado. Por tais razões, escreve ele: “Essa encarnação ambígua de Pinochet – mescla de bicho-
papão aterrador com paradigma histórico eminente e digno de ser imitado – não desapareceu, como eu
19
esperava, quando em 1990 o Chile recuperou uma democracia precária e restrita.”
Já Miguel Rojas Mix mostra mais preocupação com a exaltação da figura de Pinochet porque
uma parcela significativa da população chilena lamentou a morte do sanguinário condutor da ditadura
chilena. Acrescenta ainda que, mesmo entre aqueles que se tornaram críticos em relação ao general
muito mais o fizeram por conta da apropriação indébita de alguns milhões de dólares do que pelos
milhares de mortos e desaparecidos pelo Terror de Estado. Como símbolo da exaltação que o chefe
ainda recebe no Chile, Rojas Mix apresenta na contracapa do livro uma fotografia de homenagens
prestadas durante o velório de Pinochet, que comenta no Prólogo do livro: “Y la foto de los tres jóvenes
haciendo el saludo fascista sobre el ataúd presagia el futuro. Fue entonces que me dije que era hora de
20
publicar estas reflexiones.”
Finalizo este texto, trazendo à baila a película chilena No, dirigida por Pablo Larraín e estreando
em 2012. O enredo trata das estratégias que os oposicionistas à ditadura militar chilena desenvolveram
para o plebiscito que o governo havia convocado, na convicção de que seria vitorioso. Contra as
expectativas de que o voto “si” legitimaria Pinochet, a campanha pelo “no” inverteria esta situação,
trazendo na sua esteira o afastamento dos militares e a redemocratização do país. No filme, o grande
artífice da campanha publicitária pelo ”no” é representado pelo renomado ator mexicano Gael García, e a
película foi indicada para premiação do Oscar em 2013. Chamo atenção para isto, porque assistindo ao

1968-1981. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Orientador Enrique Serra Padrós: FERNANDES, Ananda S. Quando o
inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-
1973). Porto Alegre: UFRGS, 2009; BECHER, Franciele. O “Perigo moral” em tempos de segurança nacional:
políticas públicas e menoridade em Caxias do Sul- RS (1962-1992). Porto Alegre: UFRGS, 2012; REIS, Ramiro
J. Operação Condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre, Porto Alegre: UFRGS,
2012; LAMEIRA, Rafael F. O Golpe de 1964 no Rio Grande do Sul: A Ação Política Liberal-Conservadora na
Construção do Golpe Civil-Militar. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Teses de Doutorado: Orientador Cesar A. B.
Guazzelli: PADRÓS, Enrique S. “Como el Uruguay no hay”: terror de Estado e segurança nacional Uruguai
(1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005; ROSA, Michele R.
"Esquerdisticamente afinados”: os intelectuais, os livros e as revistas das editoras Civilização Brasileira e Paz e
Terra: (1964-1969). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Orientadora Claudia Wasserman: BAUER, Caroline S. Um
estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil-militares argentina e brasileira e a
elaboração de políticas de memória em ambos os países. Porto Alegre: UFRGS (co-tutoria com a Universtat de
Barcelona), 2011; COUTO, Cristiano P. de P. Intelectuais e exílios: confronto de resistências em revistas
culturais: Encontros com a civilização brasileira, Cuadernos de Marcha e Controversía (1978 – 1984). Porto
Alegre: UFRGS, 2013. Orientados Pedro C. D. Fonseca: RAMIREZ, Hernán R. Os institutos de estudos
econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e
Brasil, 1961-1996. Porto Alegre: UFRGS, 2005.
18
WASSERMAN, Claudia & GUAZZELLI, Cesar A. B. Ditaduras Militares na América Latina. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2004.
19
DORFMAN, Ariel. O longo adeus a Pinochet. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 192.
20
ROJAS MIX op. cit. p.12.

29
filme, me senti temeroso de que ganhasse o “si”, mesmo que obviamente seja conhecedor do resultado
daquele plebiscito! Isto para atestar a tensão emocional e o horror que o tema ainda me causa!
Mais que nunca precisamos cuidar para que não reapareça o Terror de Estado!
¡Viva Chile, mierda!

30
La agenda pendiente del proceso de paz salvadoreño: Justicia Transicional, Ley de
Amnistia y Comisión de la Verdad.1

2
Aleksander Aguilar Antunes

Resumen: El rabioso conflicto salvadoreño que oficialmente vigoró entre 1980 y 1992 no fue únicamente
la irrupción de la violencia armada, ni estaba anclado solamente en el contexto de la Guerra Fría. Hoy
persiste un escenario socio-político en el país centroamericano marcado por la presencia de tensiones y
violencias que tienen por fundamento, no por acaso, las incertezas sobre la noción de paz, o el revelarse
de los peligros de una paz negativa asumida como la necesaria y, por consecuencia, institucionalizada.
Las pendencias de los Acuerdos de Paz de Chaputelpec se expresan principalmente en la no aceptación
y en el cumplimiento parcial de las recomendaciones de la Comisión de la Verdad, en la ausencia de
implementación de la Justicia de Transición y en la vigencia de la Ley General de Amnistía, mermando
las posibilidades de reconciliación nacional e impidiendo la consolidación de la democracia.
Palabras Claves: Proceso de paz salvadoreño - Memoria Histórica – Justicia Transicional – Ley de
Amnistia – Comisión de la Verdad

Abstract: The raging conflict in El Salvador, which officially lasted between 1980 and 1992, was not only
the emergence of an armed violence period in the country, nor was merely anchored within the context of
the Cold War. Still nowadays remains in this Central American State a socio-political scenario marked by
the presence of tensions and violence. This, not by chance, is fuelled by the uncertainties on the notion of
peace, or the revelations from the potential dangers that stem from a negative peace accepted as
necessary and, consequently, institutionalized. The quarrels of the Chaputelpec´s Peace Accords are
expressed primarily: in the non-acceptance and in the partial fulfilment of the recommendations of the
Truth Commission; in the absecene of the implementation of Transitional Justice and in the ongoing
validatiy of the Amnesty Law. These pending pointgs undermine the chances for national reconciliation
and prevent the consolidation of the salvadorean democracy.
Key words: El Salvador´s peace process – Historical Memory, Transitional Justice, Amnesty Law, Truth
Commision

1. El Salvador: sangre, café y rebelión


Los Acuerdos de Chapultepec en 1992 pusieron fin a la guerra civil en El Salvador y dieron paso a
una nueva fase en la historia política del país. Pero esto también conllevó que se asumiera que el fin de
la guerra significaba vivir en paz, ignorando deliberadamente que la noción sobre esta incluye mucho
más que la mera ausencia de guerra.
En El Salvador se instauró en el postguerra una eficiente Comisión de la Verdad que se
convertió en modelo mundial, organizada bajo tutela de las Naciones Unidas. El trabajo de dicha
comisión en el país evidenció que para la construcción de la democracia era necesario hacer
desaparecer falacias históricas y clarificar los hechos. Eso corroboró la idea de que la promoción de
memoria historica contribuye para la reconciliación nacional y, a la vez, demostró que la agenda para su
plena efectivación sigue lejos de estar completa.
La lucha armada salvadoreña no estaba anclada solamente en el contexto de la Guerra Fría,
sino tuvo origen en la larga historia de exclusión política y social de la gran mayoría de la población. En
un breve repaso histórico, en 1823 las Provincias Unidas de Centroamérica (Guatemala, El Salvador,
Honduras, Nicaragua y Costa Rica) ya independientes de España desde dos años, se constituyeron
como una república federal. La federación, sin embargo, era débil y se corroyó en 1838. Surgen
repúblicas independientes, pero durante décadas se formaron, generalmente a la fuerza, federaciones y
confederaciones que reunían algunas provincias anteriores y que luego volvían a disolverse. Con la
excepción de Costa Rica, en los demás países centroamericanos se dio una larga sucesión de
dictadores, juntas cívico-militares y coroneles separatistas que se disputaron la presidencia en distintos
períodos. Los países de Centroamérica “en los primeros 170 años que siguieron después de su

1
Recife, Brasil, fevereiro/2013.
2
Máster en Estudios Internacionales por la Universitat de Barcelona (UB), becario Fundación Carolina, y
doctorando en Ciencia Política por la Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), becario CAPES.
email:antular@hotmail.com - fone: 81-9934 5189

31
independencia, se organizaron como economías oligárquicas cuya cohesión se mantuvo por medio de la
3
represión más que por la participación”.
En 1841, la Asamblea Constituyente estableció la separación formal de El Salvador de la
Federación Centroamericana, y declaraba al país Estado independiente y soberano, pero se
intensificaron las disputas entre los dos grupos políticos. Cambios en la legislación a partir de entonces
permitieron a unas pocas familias apoderarse de grandes extensiones de tierras. Estas familias se
desarrollaron en el área del comercio y en la producción e industrialización de café. El gobierno se quedó
en manos de los grandes terratenientes cafetaleros. La élite económica pasó a controlar el país. La
situación se hizo conocida como el control de las 14 Familias (número simbólico, relacionado con el
numero de departamentos del país) u Oligarquía Criolla, por ser un grupo de descendientes directos de
españoles nacidos en el país (EQUIPO MAÍZ, 2005). A partir de 1930, con la crisis del precio del café en
el mercado internacional, hay una crisis institucional y los militares toman el poder. Empieza en El
Salvador, con el general Maximiliano Hernández Martínez, un largo período de gobiernos autoritarios
controlados por las Fuerzas Armadas.
En 1932 el dictador Maximiliano sumergió en sangre la insurrección campesina indígena
4
cometiendo uno de los genocidios más brutales de la historia de El Salvador y de América Latina.
Después de su deposición, hasta 1972 se sucedieron una serie de gobiernos militares fruto de continuos
golpes de Estado o de elecciones fraudulentas. En esos años empezaron a surgir organizaciones y
sindicatos llevando a cabo luchas reivindicativas laborales, como la influyente Asociación Nacional de
Docentes de El Salvador (ANDES). Pero para las dictaduras militares y las élites económicas del país las
reivindicaciones significaban el riesgo de pérdida de poder. Por eso se recrudecía la represión y crecía la
indignación en la población.
La sociedad salvadoreña estaba dividida y una economía de pobreza y de exclusión social fue
mantenida por medio de largos períodos de dictaduras militares. Emergió en El Salvador en esta época,
bien como en las vecinas Guatemala y Nicaragua, grupos guerrilleros como actores armados contra los
regímenes dictatoriales. La aspiración era la de erradicar las dictaduras militares y establecer sociedades
socialistas. Hubo una ruptura en el Partido Comunista Salvadoreño (PCS) en los años 60 con la salida
de militantes históricos, situación que dio origen a organizaciones clandestinas dispuestas a impulsar la
lucha armada, como el Ejercito Revolucionario del Pueblo (ERP) y las Fuerzas Populares de Liberación
(FPL). De divergencias internas en el ERP surge la Resistencia Nacional (RN) y de nuevas escisiones en
esta surge el Partido Revolucionario de los Trabajadores Centroamericanos (PRTC). Fue solamente en
1977 que el PCS concluyó que debería unirse a la lucha revolucionaria armada. Por lo tanto, en 1978
esas cinco organizaciones políticas-militares deciden empezar un proceso de unificación y crean una
Dirección Revolucionaria Unificada (DRU), que dio pasó a la construcción del Frente Farabundo Martí
para la Liberación Nacional (FMLN), constituido formalmente en 10 de octubre de 1980.
Es importante ubicar la rebelión de dimensionas nacionales en el contexto internacional,
especialmente respecto la Guerra Fría y el involucramiento de los Estados Unidos durante el gobierno de
Ronald Reagan. El discurso estadounidense era que El Salvador se había convertido en el escenario
para un atrevido intento de la URSS, Cuba y Nicaragua de instalar el comunismo en todo el hemisferio
americano. Reagan en un mensaje a la nación en 1984, dejó claro que los Estados Unidos harían todo
en su poder para frenar el comunismo en América Central y consecuentemente proteger el país
(REAGAN, 1984). Fue así como la pequeña nación centroamericana asumió protagonismo en el drama
internacional de la Guerra Fría. El gobierno Reagan pasó a apoyar las élites, el ejército y gobierno
salvadoreño con una ayuda financiera estimada en más de un millón de dólares diarios durante por lo
menos once años (CHING, 2010).
Durante el periodo de la guerra, principalmente en su años iniciales, el FMLN obtuvo
impresionantes victorias militares y es un aceptado análisis el de que “si no fuera por la ayuda de los

3
KRUIJT, D. Los movimientos guerilleros en Centroamerica, Nombres Propios. Fundación Carolina, Madrid, 2008,
pp. 121-127.
4
Farabundo Martí, fundador y dirigente del Partido Comunista Salvadoreño (PCS) fue el principal y más
reconocido líder de los campesinos indígenas en la organización de la insurrección de 32, pero fue encarcelado
y muerto antes de la culminación de la rebelión. En diciembre de 1931 por medio de un golpe de estado, llegó al
poder el Coronel Maximiliano Hernández, y el clima de insatisfacción social fue el punto de partida para las
primeras huelgas de trabajadores en las plantaciones cafetaleras, que demandaban tierra y trabajo. En 22 de
enero de 1932, varios campesinos, armados con machetes y pistolas tomaron las ciudades de Tacuba, Juayúa,
Izalco y Teotepeque, a demás de los cuarteles de Ahuachapán, Santa Tecla y Sonsonate, dejando muertos en el
camino 20 civiles y 30 militares. Sin embargo, la oligarquía salvadoreña con el apoyo del gobierno de turno,
sufocaron la rebelión en 3 días, utilizándose de inmensa crueldad. La persecución duró un mes y fueron
asesinados 30.000 personas, indígenas campesinos en su mayoría. (HENRIQUEZ CONSALVI, C. & Gould, J.
Documental 1932, Cicatriz de la memoria. Museo de la Palabra y la Imagen, San Salvador, 2008. Disponible en
http://video.google.es/videoplay?docid=683961949821788422&hl=es#. Ultimo acceso en 30 enero 2013.

32
5
Estados Unidos al gobierno, la guerrilla habría ganado el conflicto” . Los guerrilleros lograron un empate
con el ejército salvadoreño después de 11 años de guerra y tenían suficiente poder de negociación para
lograr algunos de sus objetivos claves como reformas democráticas y la depuración de las fuerzas
militares y cuerpos de seguridad.

2. Negociación e implementación de la paz en El Salvador


De esta forma, entre lós años de 1980 a 1992 la República de El Salvador en América Central
estuvo hundida en una guerra que desgastó a la sociedad del país por medio de intensos niveles de
6
violencia que dejó millares de muertos y la marcó “con formas delincuenciales de espanto” . Aunque no
existen datos definitivos sobre el número total de víctimas de violaciones de Derechos Humanos durante
el conflicto armado, se estima que se torturó, ejecutó extrajudicialmente o se hizo desaparecer por lo
menos a unas 75.000 personas (BBC MUNDO, 2004).
Los Acuerdos de Paz de 92 establecieron un marco institucional para cerrar la guerra civil en el
país y para el FMLN deponer las armas, transformándose en una fuerza político-electoral. Pero el
proceso de diálogo y negociación entre el gobierno y el Frente fue complejo. Hubo desconfianzas y la
elaboración de la agenda fue un consenso difícil. Después de varios rondas de debates como Grupo
Contadora, reuniones de La Palma y proceso de Esquipulas, se alcanza el primer acuerdo, en Ginebra,
1990. En ese momento se iniciaron dos intensos años de negociación que resultaran en la firma de los
Acuerdos de Paz de Chapultepec, en México, el 16 de enero de 1992.
Los Acuerdos de Chapultepec reiteraron compromisos anotados en Ginebra y añadieron
reformas políticas y jurídicas en temas esenciales para la democratización del país. Fueron el resultado
de más de tres años de convenios negociados entre las dos partes bajo los auspicios de las Naciones
Unidas. Se estableció la depuración y reducción de la Fuerza Armada. El ejército fue designado garante
de la soberanía y la defensa nacional, sustrayéndolo de funciones que tuvieran que ver con la seguridad
interna y pública (lo que también ayuda a explicar el porqué la reciente decisión del actual gobierno, del
proprio FMLN, en enviar el ejército a contribuir en la seguridad pública ha sido tan controversial en el
país). Los batallones, como el Atlacatl, formados como estrategia contrainsurgente, fueron disueltos. La
creación de una nueva Policía Nacional Civil (PNC) fue uno de los principales puntos de los acuerdos.
Basada en la doctrina de servicio a la sociedad, la instauración de la Academia Nacional de Seguridad
Publica fue parte de los pactos.
Los Acuerdos de Chapultepec también establecían un conjunto de medidas económico-sociales.
Se creó la Procuraduría para la Defensa de los Derechos Humanos, como mecanismo para asegurar el
respeto irrestricto a estos principios. También se hicieron reformas electorales para dotar las elecciones
de mayor transparencia y obtener la confianza de la ciudadanía. En las áreas rurales pese los esfuerzos
concertados por abordar las necesidades de retornados, combatientes y población afectada por la
guerra, los programas implementados se quedaron cortos con relación a las expectativas. Según el
actual vicepresidente del país, Sánchez Céren,

(…) en este punto el acuerdo no representa una transformación de la estructura de la


propiedad que hoy en día nos muestra una concentración de tierras y riqueza en manos
de una minoría. Hay que recordar que una de las causas generadoras del conflicto
armado fue la imposibilidad de acceso a la tierra por parte del campesinado y el
7
predominio del latifundismo.

Puede decirse que se llevaron a cabo los programas de retorno, reinserción, o repoblación. Pero
en su núcleo, y en el mejor de los casos, sus resultados no excedieron a una reinstalación de las
personas afectadas directamente por la guerra – mujeres, hombres, hogares – en las mismas
condiciones de pobreza y marginalidad que vivían antes de los conflictos armados. Hubo reinserción,
pero no integración social y productiva (GAMMAGE, 2002).
Aunque se pactaron temas (como el Foro Económico) que no se implementaron, los Acuerdos de
Paz Chapultepec pusieron fin a la guerra civil y dieran paso a una serie de reformas políticas y militares.
Pero según señala Monterrosa, “el discurso gubernamental, y quizá también el popular, comenzó a
asumir que el fin de la guerra significaba vivir en paz. Desde el punto de vista de las causas de la guerra,

5
CHING, E. Civil war and guerrilla radio in northern Morazán, El Salvador: setting the stage for reading La
terquedad del Izote, 2010, p. 3
6
INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR. De la Locura a la Esperanza. La guerra de
doce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de las Naciones Unidas en Las
Naciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de las Naciones Unidas, Volumen IV, Nueva
York, 1995, p. 3.
7
SÁNCHEZ CERÉN, S. Con sueños se escribe la vida, Editorial Ocean Sur, San Salvador, 2008, p. 228.

33
8
el conflicto no está cerrado”.

3. La actual conflictividad en El Salvador


Es común y ampliamente reconocido que el fin de la guerra no representó el establecimiento de
la paz (GAMMAGE, 2002; CERÉN, 2008; CONSALVI, 2008; MONTERROSA, 2009). Hablar de paz en El
Salvador puede conformar un desafío lleno de complejidades. Como señala Arévalo, los esfuerzos para
la para la construcción de una cultura de paz “son contrarios a toda la construcción ideológica educativa
9
republicana existente en el país”. La violencia es una constante en El Salvador y ocurre desde la cultura,
la política y la educación. Hay una violencia directa que es resultado de la violencia estructural vigente y
esta conforma la base sobre la cual se realizó la reconstrucción de la sociedad salvadoreña.
Es necesario por lo tanto conceptualizar las nociones de violencia y de paz a la luz de los
llamados estudios de paz y conflicto. Johan Galtung, uno de los principales estudiosos de esta ciencia
social aplicada llamada “Investigación para la Paz”, ha evidenciado que la contraposición a la paz no
10
está en la guerra, sino en la violencia – una definición ya bastante popularizada y repetida. En estos
términos, el concepto medular necesario es la idea de paz como quehacer, como tarea de todos. Paz,
según explica Fisas (2002), no tiene nada que ver con un concepto blando, angélico o etéreo, sino un
horizonte de transformación social.
Vigora en El Salvador un tipo de violencia estructural que se manifiesta a través de la dicotomía
de pobreza de las amplias mayorías y privilegios de reducidas élites. La pobreza en El Salvador es
resultado de un proceso paulatino, sistemático e histórico de exclusión y desigualdad existentes adentro
de la sociedad.
Pero El Salvador además de su condición de vulnerabilidad social, también tiene
manifestaciones bastante directas de violencia.
Efectivamente, según el informe 2009-2010 sobre Desarrollo Humano para América Central del
Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD) la región, y en especial el llamado
Triangulo Norte (conformado por El Salvador, Honduras y Guatemala) “es hoy por hoy la más violenta del
mundo. Si se exceptúan las guerras que padecen algunas partes de África o de Asia, esta región registra
11
las tasas de homicidio más elevadas del planeta” . La inseguridad en El Salvador se complica aún más
por el crimen organizado. Las organizaciones internacionales del narcotráfico utilizan El Salvador, al igual
que al resto de países de Centro América, como una ruta de paso para transportar droga entre los países
productores y los países consumidores.
Hoy vigora un evidente conflicto en El Salvador. Hay un escenario de violencia directa y
estructural que existe con suficiente intensidad para llevar al gobierno – no sin encontrar críticas y
oposición en una polémica que persiste – por decidir militarizar la seguridad pública en noviembre de
2009 y recurrir a la utilización del Ejército para frenar la violencia. Con esto 2.500 soldados y oficiales se
sumaron a la policía para combatir la delincuencia en el país.
Pero el conflicto salvadoreño también tiene que ver con su historia, su incapacidad de establecer
justicia y verdad, su agenda pendiente en términos de Memoria histórica que concretamente es parte de
la falta del cumplimiento cabal de los Acuerdos de Paz de Chapultepec. De este incumplimiento tiene
origen una reconciliación nacional a medias, unas instituciones con un largo camino por consolidarse, la
vigencia únicamente de una paz negativa y mucho quehacer hacia la paz positiva.
En septiembre de 2009, el Centro Internacional para la Justicia Transicional (ICTJ, en la sigla en
inglés) y el Instituto de Derechos Humanos de la Universidad Centroamericana José Simeón Cañas
(IDHUCA) de El Salvador presentaron al Consejo de Derechos Humanos de la ONU, un reporte sobre lo
que consideran los temas pendientes que debe enfrentar El Salvador para cerrar el legado de violencia
del conflicto armado que vivió el país entre 1980 y 1992. El documento hace un recuento de la deuda
vigente del Estado salvadoreño con las víctimas en materia de verdad, justicia y reparación.
La materialización de esa situación en El Salvador se refleja en tres elementos:
 el no cumplimiento de la Justicia Transicional;
 la Ley de Amnistía (1993);
 la falta de divulgación y puesta en práctica de las recomendaciones de la Comisión de la Verdad

8
MONTERROSA, L. Entrevista concedida por email a Aleksander Aguilar. San Salvador, 20 julio 2009.
9
ARÉVALO, A. Construyendo un futuro común: una propuesta de educación para la paz en El Salvador. Castellón
de la Plana. Cátedra UNESCO Filosofía para la Paz. Master Internacional en Estudios de Paz, Conflictos y
Desarrollo – Universitat Jaume I, 2009.
10
GALTUNG, J. Peace by Peaceful Means. Oslo, Sage Publications, 1996, p. 9.
11
PNUD. Informe sobre Desarrollo Humano para America Central: abrir espacios para la seguridad ciudadana y el
desarrollo humano. Naciones Unidas, Impreso en Colombia, 2011.

34
Son esas deudas los principales elementos que conforman lo que se ha dado llamar de “agenda
12
pendiente del proceso de paz salvadoreño”.

3.1 La Justicia Transicional


La Justicia Transicional es como se suele llamar la implementación de una justicia adaptada a
sociedades que se transforman a sí mismas después de un período de violación generalizada de los
Derechos Humanos. Su objetivo es reconocer a las víctimas y promover iniciativas de paz, reconciliación
y democracia. Es un enfoque que surgió a finales de los años 80, principalmente como respuesta a
cambios políticos y demandas de justicia en América Latina y en Europa oriental. Es un concepto que
plantea cuatro tareas fundamentales para que consolide la democracia en Estados que vivieron
regímenes autoritarios: reforma institucional, derecho a la memoria y a la verdad, reparación de las
víctimas y tratamiento jurídico adecuado de los crímenes cometidos.
En 1998, la creación de la Corte Penal Internacional, a partir del Estatuto de Roma, fue
significativa para el respaldo de estos principios, dado que el Estatuto de la Corte consagra obligaciones
estatales de importancia vital para la lucha contra la impunidad y el respeto de los derechos de las
víctimas.
El Salvador, que no es signatario del Estatuto de Roma, a su turno, para estar al día con la
Justicia Transicional, debería cumplir con las recomendaciones emitidas por la Comisión de la Verdad.
Esto incluye implementar las observaciones dirigidas a prevenir la repetición de los hechos,
particularmente en lo que se refiere a la persecución penal de los autores intelectuales y materiales de
las violaciones a Derechos Humanos. Y, especialmente, las autoridades salvadoreñas tendrían que
eliminar los obstáculos legales que impiden la investigación de los hechos ocurridos y que facilitan la
impunidad, tal como la Ley de Amnistía.

3.2 La Ley de Amnistía en El Salvador


El informe de la Comisión Verdad para El Salvador fue tildado por la cúpula militar de la república
13
centroamericana como “injusto, incompleto, ilegal, parcial y atrevido”. Pero la Asamblea Legislativa, en
1993, antes de la publicación del documento final de la Comisión, aprobó el proyecto del gobierno: “Ley
14
de Amnistía General para la Consolidación de la Paz” .
Esa norma, aún vigente, establece la extinción de la acción penal y civil de todas aquellas
personas que estuvieron comprometidas en violaciones de los Derechos Humanos durante el conflicto.
En la práctica eso significa que la posibilidad de las víctimas de exigir justicia y reparación en los
tribunales con base en la información aportada por la Comisión de la Verdad está vedada por ese
enorme obstáculo.
El impedimento que esa ley representa para la aplicación de la justicia transicional en El
Salvador ha sido puesto de manifiesto durante la visita del Grupo de Trabajo sobre Desapariciones
Forzadas o Involuntarias del Consejo de Derechos Humanos de la ONU a este país en 2007, que
registró 2.661 casos de personas desaparecidas durante el conflicto armado. El comunicado de prensa
del Grupo con los resultados de la labor, afirma que “un elemento fundamental que en el contexto
salvadoreño constituye un obstáculo para realizar el derecho a la justicia, a la verdad, a la reparación y a
15
la readaptación, es la vigencia de la Ley de Amnistía de 1993”.
En el año 2000, la ley de amnistía salvadoreña fue sometida a control de constitucionalidad a
través de varias demandas ante la Corte Suprema de Justicia. La Corte al estudiar específicamente los
artículos 1 y 4 de la ley (los cuales las organizaciones de Derechos Humanos argumentan estar en
incompatibilidad con una serie de instrumentos internacionales de Derechos Humanos tales como la
Convención Interamericana para Prevenir y Sancionar la Tortura, y la Convención Americana Sobre
Derechos Humanos) emitió un fallo en que optó sobreseerse en el análisis. Además declaró también que

(…) no existen las infracciones constitucionales alegadas, consistentes en que el

12
INSTITUTO DE DERECHOS HUMANOS DE LA UNIVERSIDAD CENTROAMERICANA JOSÉ SIMEÓN CAÑAS
– IDHUCA. La agenda pendiente, diez años después: de la esperanza inicial a las responsabilidades
compartidas. San Salvador, Editoriales UCA, 2002.
13
Vid. LA PRENSA GRÁFICA, El Salvador, 22 de marzo de 1993, p.53.
14
ASAMBLEA LEGISLATIVA DE LA REPÚBLICA DE EL SALVADOR. Ley de Amnistía General para la
Consolidación de la Paz, Decreto Legislativo nº 486, 20 marzo 1993. Extraído el 10 de febrero de 2013, desde
http://www.unhcr.org/refworld/pdfid/3e50fd334.pdf. Ultimo acceso en 10 febrero 2013.
15
COMUNICADO DE PRENSA DEL GRUPO DE TRABAJO SOBRE DESAPARICIONES FORZADAS O
INVOLUNTARIAS DEL CONSEJO DE DERECHOS HUMANOS DE LAS NACIONES UNIDAS, emitido por el
señor Santiago Corcuera, Presidente-Relator del Grupo de Trabajo, y el señor Darko Göttlicher, miembro del
mismo Grupo, luego de su misión a El Salvador. Febrero de 2007.

35
artículo 1 de la referida ley viola el art. 244 y el 2 inciso primero de la Constitución; y que
el artículo 4 letra e del mismo cuerpo legal contraviene los artículos 2 inciso tercero y
245 Cn., ya que tales disposiciones admiten una interpretación conforme a la
16
Constitución.

En 2012, el procurador de los Derechos Humanos de El Salvador, Oscar Luna, explicó que como
parte del compromiso con los organismos internacionales en El Salvador “la ley de Amnistía debió
haberse derogado hace tiempo”. Sobre esto, Benjamin Cuellar, director del IDHUCA, ha sido incisivo: “En
los 20 años luego de los Acuerdos de Paz el único paso que no se ha dado es hacia la verdad, resolver
17
el daño, superar la impunidad”.

3.3 La Comisión de la Verdad de El Salvador


Las Comisiones de la Verdad son organismos de investigación surgidos partir del debate sobre
qué hacer con los responsables de las violaciones a los Derechos Humanos y al Derecho Humanitario.
El objetivo es ayudar a las sociedades, como la mayoría de las latinoamericanas en el siglo XX, que han
sufrido graves situaciones de violencia política o guerra interna, a enfrentarse críticamente con su
pasado, a fin de superar las profundas crisis y traumas generados por la violencia y evitar que tales
hechos se repitan en el futuro.
De esa forma se crearon, desde instancias del poder oficial en países como Argentina, Chile y El
Salvador espacios para las investigaciones de Comisiones. En estos países las Comisiones de la Verdad
se crearon por mandato legal, pero no sin la fuerte incidencia de actores políticos interesados en
asegurar la memoria histórica y la reparación del las víctimas.
La Comisión de la Verdad de El Salvador, fruto de los Acuerdos Chaputelpec, estaba compuesta
por especialistas de alto nivel y tenían un mandato temporal de apenas seis meses. Los comisionados
por la ONU, al contrario de lo que se hizo en Argentina y Chile, eran académicos de otras
nacionalidades, no salvadoreños y fueron: Belisario Betancur (Ex Presidente de Colombia), Reinaldo
Figueredo Planchart (Congresista venezolano) y Thomas Buergenthal, (juez estadounidense, ex
Presidente de la Corte Interamericana de Derechos Humanos).
Entre las definiciones y facultades, la Comisión tendría a su cargo “la investigación de graves
hechos de violencia ocurridos desde 1980, cuya huella sobre la sociedad reclama con mayor urgencia el
18
conocimiento público de la verdad” . La Comisión se constituye en instrumento de contribución para
erradicación de la impunidad cuando tiene su autoridad ampliada en el artículo 5 del Acuerdo de Paz de
Chapultepec denominado “Superación de la Impunidad” y el conjunto de esas disposiciones, luego,
componen su Mandato.
El trabajo de la Comisión de la Verdad hizo un análisis de los patrones de violencia usados
durante la guerra civil, es decir, el examen de responsabilidades materiales e intelectuales en algunos
casos. La comisión recibió 23.000 denuncias de las cuales se elaboró una lista de 13.569 casos a
investigar. De estos últimos la comisión eligió “casos ilustrativos” de los patrones de violencia de las
partes contendientes durante la guerra civil, como el asesinato en marzo de 1980 del arzobispo de San
Salvador, Óscar Arnulfo Romero, y la masacre de El Mozote, en diciembre de 1981. Sus conclusiones
detallaron también otras aniquilaciones y desapariciones forzadas producidas en operaciones militares y
actos de violencia de las fuerzas guerrilleras, como el asesinato de alcaldes.
El vicepresidente de la República y ministro de Educación ad honorem, Salvador Sánchez
Cerén, anunció en enero de 2012 que la Comisión de la Verdad desclasificaria las investigaciones de los
casos tratados y que el mismo Ejecutivo promoverá que esta información sea difundida. Pero la
Procuradoría para la Defensa de los Derechos Humanos (PDDH), no há confirmado la intención de
desclasificar la información (GARCÍA, 2012).
Para visualizarse el incumplimiento de la Comisión de la Verdad de El Salvador, destacase que
esta presentó una serie de recomendaciones que incluyen cuatro grandes grupos de medidas:

16
SALA DE LO CONSTITUCIONAL DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE EL SALVADOR. Resolución nº
24-97/21-98. Extraído en 22 de octubre de 2009 desde la base de datos
http://www.csj.gob.sv/constitu/jur_base.htm.
17
GARCÍA, Gabriel. Desclasificarán archivos de la Comisión de la Verdad. Diario Digital Contrapunto, 2012.
Disponible en: http://www.contrapunto.com.sv/cparchivo/derechoshumanos/desclasificaran-archivos-de-
comision-de-la-verdad. Extraído en 20 octubre 2012.
18
INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR (1995). De la Locura a la Esperanza. La
guerra de doce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de las Naciones
Unidas en Las Naciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de las Naciones Unidas,
Volumen IV, Nueva York, p. 10

36
I. reforma de la legislación penal y el Poder Judicial,
II. depuraciones en las Fuerza Armadas, Fuerzas Policiales y dentro de la administración pública;
III. inhabilitaciones políticas a las personas involucradas en violaciones de los Derechos Humanos
y del Derecho Humanitario, por un lapso no menor de diez años.
IV. otorgamiento de reparación material y moral para las víctimas de la violencia y sus familiares
directos.
El presidente Mauricio Funes ha cumplido una parte importante de su deber en lo referente al
proceso transicional, como jefe de Estado, ha reconocido en algunas oportunidades, de manera inédita,
la responsabilidad del Estado por las masacres y ha pedido perdón. En 16 de enero de 2010, en ocasión
de conmemorarse 18 años desde la firma de los Acuerdos de Paz, Funes dirigió el más gran acto por la
memoria histórica en el país hasta la fecha y reconoció la responsabilidad del Estado salvadoreño en
graves violaciones a Derechos Humanos contra la población civildurante el conflicto armado; pidió
perdón por esos graves crímenes en nombre del Estado salvadoreño; anunció la creación de la Comisión
Nacional de Búsqueda de niñas y niños desaparecidos durante el conflicto armado, y se comprometió a
establecer mecanismos para la reparación moral y material por los daños ocasionados.
Sin embargo el esfuerzo estatal para castigar a los responsables, reparar a las víctimas y
adoptar mecanismos para que las violaciones no se repitan no es suficiente dado que estas
manifestaciones del Estado, sumadas a la depuración de las Fuerzas Armadas al fin de la hostilidad
bélica, solamente expresan que, pasados más de 20 años, apenas las dos primeras recomendaciones
de la Comisión de la Verdad han sido parcialmente cumplidas.

4. Conclusión
La posguerra en El Salvador demostró las insuficiencias de una transición que no enfrenta el
pasado. Vigora en el país un reconocido incumplimiento del Estado en materia de verdad, justicia y
reparación como requisito imperioso para la construcción de un verdadero Estado de derecho. La
población de El Salvador se siente insegura y las tasas de delincuencia son espeluznantes. No obstante,
sorprendentemente no hay en el país una política integral de seguridad y la paz negativa es el concepto
institucionalizado.
Algunos de los factores que explican los altos niveles de violencia que afectan la sociedad
salvadoreña son la inequidad, la falta de oportunidades económicas y sociales, los altos índices de
impunidad penal y la insuficiente capacidad de las instituciones para hacer frente a la problemática, al
punto de optarse por la utilización del ejército en la seguridad pública. Y El Salvador tiene víctimas que
seguirán surgiendo de continuar vigente el actual modelo, y en una falta de política preventiva eficaz y
diseñada como herramienta de construcción de paz.
La memoria histórica tiene un papel clave para desmantelar los mecanismos que han hecho
posible el terrorismo de Estado y para evidenciar el sistema económico y político excluyente, además de
configurarse como un instrumento poderoso para resistir e impedir el desvanecimiento de las identidades
culturales.
En El Salvador la inédita e histórica victoria electoral del FMLN trajo expectativas positivas en
diversas organizaciones de Derechos Humanos en la comunidad internacional para que se alcance la
superación de la impunidad y el derecho a la verdad, a la justicia y a la reparación. La no aplicación de
las recomendaciones de la Comisión de la Verdad para la implementación de la justicia transicional
contribuye para que se mantenga en abierto el legado de violencia del conflicto armado que vivió el país
entre 1980 y 1992.
Más de 20 años de los Acuerdos de Paz, aun vigora la deuda del Estado frente a las miles de
víctimas de violaciones a los Derechos Humanos. Los responsables no fueron juzgados y los temas
económico-sociales – que están en las raíces del origen del conflicto armado – no fueron abordados
satisfactoriamente.
Permanece como el gran reto la revisión de la ley de amnistía.

5. Referências Bibliográficas
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Castellón de la Plana. Cátedra UNESCO Filosofía para la Paz. Master Internacional en Estudios de Paz,
Conflictos y Desarrollo – Universitat Jaume I, 2009.
ASAMBLEA LEGISLATIVA DE LA REPÚBLICA DE EL SALVADOR (1993); Ley de Amnistía General para

37
la Consolidación de la Paz, Decreto Legislativo nº 486, 20 marzo 1993. Extraído el 10 de febrero de
2013, desde http://www.unhcr.org/refworld/pdfid/3e50fd334.pdf. Ultimo acceso en 10 febrero 2013.
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SÁNCHEZ CERÉN, S. Con sueños se escribe la vida, Editorial Ocean Sur, San Salvador, 2008.

38
A ditadura de Stroessner no Paraguai e o controle da oposição: os mecanismos usados
pela ditadura stronista visando ao controle da oposição.

1
Miguel Dos Santos

Resumo: O regime ditatorial imposto pelo general Stroessner ao povo paraguaio desde 1954 não se
furtou do uso de medidas violentas para controlar a oposição política que tentava se organizar no sentido
de pressionar o governo. O general ditador dispôs de um leque de mecanismos autoritários que iam
desde a perseguição político-partidária, do exílio, da tortura e dos assassinatos, e ainda contou com a
cooperação de diversos setores da sociedade paraguaia na sua cruzada contra as pessoas ou
instituições que se voltassem contra o regime autoritário por ele estabelecido.
Palavras-chave: Stroessner – oposição – mecanismos-autoritários – Paraguai – povo.

Abstract: the dictatorial regime imposed by general Stroessner after 1954 to the Paraguayan people did
not avoid to use violence to control the political opposition that was trying to organized himself to make
pressure against the government. The dictador had a lot of mechanism like authoritarian party-political,
exile, torture and murder, and still had the cooperation of various sectors of Paraguayan society in his
crusade against people or institutions that turned against the authoritarian regime established by him.
Keywoards: Stroessner – opposition – mechanism-authoritarians – Paraguay – people.

O longo período do regime militar stronista no Paraguai deixou marcas que dificilmente serão
apagadas do contexto social do país, haja vista as características autoritárias, exclusivistas e opressivas
de um Estado elitista mais preocupado com a manutenção do status quo de uma minoria de indivíduos
em detrimento da grande massa da população que vivia em condições extremamente precárias. Essa
longa sobrevivência da ditadura de Stroessner não se deu pelo acaso, mas sim, devido a uma eficiente
organização estatal repressiva e autoritária que buscava, incessantemente, eliminar qualquer vestígio de
oposição ao regime estabelecido.

Stroessner enfrentó vários desafios, pero sobrevivió poniendo en marcha la


consolidación de un tipo diferente de autoritarismo. Delineó objetivos de modernización:
la erradicación del caos interno y la necessidad de proporcionar a la población un certo
grado de participación política. Para incrementar la seguridad interna, su administración
prohibió todo cuestionamiento o ataque a su legitimidad, así como también a sus
posiciones ideológicas y sus orientaciones políticas. La ruptura entre el sistema social y
el sistema político se volvió evidente. El régimen atendia a las necesidades y las
expectativas de un grupo reducido de ciudadanos. La represión sirvió para conservar
dicho orden institucional (MIRANDA, 1990, p. 10).

Nesse sentido, vários foram os mecanismos usados pela ditadura stronista para se consolidar no
poder, sendo que todos eles buscavam, de alguma forma, senão eliminar, ao menos limitar,
2
significativamente, o alcance dos movimentos das organizações oposicionistas que buscavam a
derrocada do regime. Esse trabalho do aparelho repressivo e autoritário se deu nas mais variadas
instâncias da sociedade paraguaia; indo desde os setores mais populares, incluindo aqui os
camponeses, passando pelos partidos políticos, inclusive alguns membros do partido oficial, e
terminando na burocracia estatal. Essa foi a forma encontrada pelo regime de Stroessner para garantir
sua longa duração no poder, mesmo que isso custasse um alto preço ao povo paraguaio.
Este artigo é parte integrante da monografia apresentada no curso de pós-graduação em História
do Brasil Contemporâneo, na Fapa, e tem como objetivo analisar como a ditadura stronista controlou a

1
Pós-Graduado em História do Brasil Contemporâneo pela Fapa e professor da rede pública e privada de ensino
do Rio Grande do Sul. Contato: miguelfapa77@gmail.com – (51-93182503)
2
As principais organizações oposicionistas ao regime stronista foram, em um primeiro momento: o Partido
Liberal, o Partido Febrerista e o Partido Comunista Paraguaio. Em um segundo momento também participaram
da oposição ao regime: a Igreja Católica, o Partido Liberal Radical Autêntico, o Mopoco (movimento popular
colorado), o grupo 14 de Maio e a Vanguarda Revolucionária. Esses últimos três grupos constituíram a oposição
armada ao regime e pressionaram o governo através da guerrilha.

39
oposição e quais os mecanismos usados pelo regime no sentido de tornar mais efetivo o controle dos
grupos oposicionistas. Nesse sentido, buscar-se-á, no decorrer do trabalho, mapear as ações do regime
stronista para a sua consolidação no poder, além de discorrer sobre o papel e o funcionamento de cada
estrutura posta em prática pela ditadura de Stroessner. Para a realização desse artigo a metodologia
utilizada foi a leitura de material impresso a cerca da temática abordada, além do uso de material
disponível na mídia eletrônica.
Entre os mecanismos usados pelo regime de Stroessner para se consolidar no poder merece
destaque o sistema repressivo montado pelo aparato estatal stronista objetivando o desmantelamento de
todos os movimentos que fizessem oposição ao regime. Entenda-se aqui como sistema repressivo todas
as ações colocadas em prática pelo Estado paraguaio no intuito de eliminar os focos de tensionamento
ao regime que estava em vias de se consolidar no poder, principalmente aquelas medidas que
procuravam enquadrar os opositores do regime através das perseguições, da tortura, do exílio e dos
3
assassinatos .
Nesse sentido, o controle político foi um dos mecanismos postos em prática pelo Estado no
sentido de eliminar a oposição, ou, no mínimo, limitar a participação dos partidos oposicionistas diante da
atuação do regime stronista. “Os partidos políticos que atuaram como forças opositoras no Paraguai
foram contados” (MIRANDA, 1990, p. 92). Essa situação se tornou fundamental para o governo, pois, se
por um lado, os partidos de oposição precisavam ser duramente controlados, por outro havia a
necessidade de um espaço de atuação para esses partidos como forma de mascarar o autoritarismo e
livrar o regime das pressões internacionais, principalmente das que vinham dos representantes dos
direitos humanos. Mesmo assim não se pode afirmar que os partidos de oposição, durante o regime de
Stroessner, não tenham existido, pelo contrário; o regime permitiu que alguns partidos continuassem
atuando no cenário político nacional, mais como uma forma de dar um caráter “democrático” ao contexto
político paraguaio do que por qualquer outra questão; até porque os partidários da oposição que
realmente se dispuseram a enfrentar o regime foram perseguidos e exilados pelo governo.
Nessa diretriz governamental que envolvia os adversários do stronismo, a cooptação dos lideres
da oposição foi outro mecanismo muito utilizado pelo regime como uma medida para desestabilizar os
partidos oposicionistas, além da manipulação da oposição pelo governo no sentido de dividi-la e,
consequentemente, enfraquecê-la, tornando-a mais suscetível de ser controlada. Nesse contexto, pouco
a pouco os velhos líderes do Partido Liberal e do Partido Febrerista, que estavam exilados no exterior,
tiveram a permissão para retornar ao país e participarem das eleições, mesmo que essa participação
tivesse um objetivo muito específico do ponto de vista do governo: transmitir a ideia de que as eleições
no Paraguai eram pluripartidárias e, consequentemente, ocorriam em um ambiente de aura democrática.
Foi assim que procedeu a ditadura stronista na eleição presidencial de 1963 quando permitiu que os
lideres dos partidos políticos de oposição que haviam sido exilados voltassem ao país e se organizassem
para participarem do pleito eleitoral. Esse fato foi significativo para a fragmentação entre os partidos
oposicionistas, principalmente do Partido Liberal e do Partido Febrerista, pois essa estratégia do governo
visava a cooptação dos líderes desses partidos; e a aceitação dos mesmos a participar das eleições
acabava, invariavelmente, gerando conflitos e cisões dentro das organizações partidárias que eram
adversárias do regime de Stroessner.
Os objetivos do regime eram muito claros nesse sentido, pois, fragmentando os partidos de
oposição o governo estaria enfraquecendo-os nos seus objetivos, ao mesmo tempo em que a
participação de determinados setores cooptados desses partidos acabaria passando, para a população
paraguaia e para o contexto internacional, a idéia de que no Paraguai de Stroessner as eleições eram
pluripartidárias e que o povo tinha o direito de escolha através do voto. Porém, essa situação não
condizia com a realidade social do país, haja vista que o estado opressor era quem ditava as regras de
4
como deveriam se processar as eleições, inclusive determinando quem deveria ser o vencedor ; nesse
caso, o general Alfredo Stroessner, juntamente o seu séquito de seguidores do Partido Colorado, assim
como os altos representantes da hierarquia militar.
O controle político posto em prática pelo regime stronista não se limitou a excluir do contexto
social somente os partidos de oposição. O próprio Partido Colorado sofreu a intervenção do governo, o

3
LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p. 322. El ejército paraguaio há
ganado la reputación de ser un ejército selvaje en su forma de tratar a los guerrilleros. Sus métodos son simples
y despiadados: no toman prisioneros; solo les disparan sin tan siquiera formales juicio. Por ejemplo, en
deciembre de 1959, las autoridades argentinas en el pueblo ribereño de Clorinda informaron que unos 25
guerrilleros capturados fueron llevados a bordo del canonero paraguayo Humaitá, anclado en el costado opuesto
de la ribera, y sumariamente ejecutados ante los asombrados espectadores. En agosto de 1960, 17 cuerpos
mutilados fueron sacados del río cerca do pueblo argentino de posadas.
4
De 1958, ano da primeira eleição de Stroessner, a 1988, ano da última vitória eleitoral de Stroessner, todas as
disputas eleitorais foram vencidas por ele. Em alguns casos nem eram disputas, pois ele não tinha concorrentes,
ou seja, somente ele aparecia como candidato, pois a oposição não conseguia colocar um candidato na disputa,
muito em conseqüência da repressão praticada pelo aparato de Estado do General Stroessner.

40
que gerou um grande número de expurgos de líderes do partido que não compactuavam com as
diretrizes autoritárias que emanavam das ações estatais. Como a composição do Partido Colorado era
bastante heterogênea, o regime teve que trabalhar intensamente para evitar as ações de alguns
segmentos do partido que não apoiavam as medidas autoritárias de Stroessner, principalmente os
representantes da chamada ala democrática do partido.
Nesse contexto, muitos representantes do Partido Colorado acabaram indo parar no exílio,
sobretudo os vinculados a ala democrática, os mesmos que, futuramente, fundariam o Mopoco
(Movimento Popular Colorado). Esse foi um dos problemas causados ao governo pelo partido da base,
mas não deve ser considerado o mais grave, visto que esses estavam se organizando fora do país. O
problema mais sério a ser enfrentado pelo governo de Stroessner era em relação aos segmentos do
Partido Colorado que faziam parte do seu gabinete administrativo, ou seja, da burocracia estatal, visto
que as disputas pelo poder eram constantes, e a proximidade desses com as estruturas do estado
poderia dar-lhes condições de tramar um golpe para retirar Stroessner do poder.
Como forma de se consolidar no governo e evitar um novo golpe, e a conseqüente perda do
5
poder, o governo de Stroessner buscou estabelecer um equilíbrio entre as principais facções do Partido
Colorado, principalmente no que dizia respeito aos epifanistas, de Epifânio Méndez Fleitas; aos
6
democráticos, de Federico Chaves, e aos guionistas, de Natalício Gonzalez . Esses dois últimos grupos
referidos eram inimigos declarados entre si, mesmo que pertencessem ao Partido Colorado. Seu
7
objetivo, com isso, era se aproveitar das velhas disputas intra-partidárias para ir eliminando um a um os
políticos que se mostrassem em condições de lutar pelo poder, ou que ao menos se colocassem como
possíveis ameaças ao seu projeto de governo.

Os expurgos partidários, as seccionais coloradas e o Estado de Sítio


Primeiramente, Stroessner excluiu do círculo de poder os epifanistas, como forma de se vingar
da tentativa de golpe arquitetada por Epifânio Méndez Fleitas quando este fizera parte do gabinete
administrativo de Stroessner. Paralelamente a isso, foi alijando dos quadros do governo os
representantes da ala democrática do partido (a mesma do presidente Federico Chaves que ele havia
deposto do poder com o golpe militar em 04 de maio de 1954). O único grupo que ele manteve nas
estruturas do regime por um espaço de tempo maior, e até com certo grau de autonomia, foi o guión rojo
e seu aparato de violência sistemática, pelo fato de que ele necessitaria dos serviços dos guionistas para
poder controlar as investidas dos adversários contra o governo, mas, também, como forma de manter o
equilíbrio das disputas intra-partidárias e, assim, bloquear as ações da facção democrática do partido,
principalmente.
Na verdade os guionistas tiveram um papel fundamental na organização do aparato repressivo
do regime stronista, pois eram eles que, ao mesmo tempo, defendiam e realizavam as ações do
governo, principalmente as agitações violentas em nome do regime, e, por isso, tornaram-se os
defensores do governo até as últimas conseqüências, geralmente abusando de métodos violentos para
atingir seus objetivos; sendo que as atitudes abusivas dos guionistas eram respaldadas pelo governo de
Stroessner.
Nos momentos de dificuldades pelas quais passou o regime stronista foi que acabou aparecendo
às habilidades do estrategista general Stroessner, sempre atuando com o objetivo de limitar a
participação daqueles que contrariavam as diretrizes autoritárias do estado. Nesse aspecto, ele não
poupou esforços no sentido de se consolidar a frente do aparelho estatal autoritário posto em
8
funcionamento por ele; fazendo o uso de métodos violentos e intimidadores, e, conseqüentemente,

5
LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p.144. Por su parte, Stroessner
estaba listo para hacer una trégua con los democráticos, pues elles eran un contrapeso para Méndez Fleitas. El
nuevo régimen empezó, así, con la lucha de tres bandos para obtener el poder y en la que ninguna de las partes
contaba con una ventaja clara.
6
Essas três facções do Partido Colorado eram adversárias entre si. Os epifanistas tinham uma ligação muito
próxima com o governo peronista da Argentina. Já os Democráticos de Federico Chaves eram representantes
da ala conservadora do Partido Colorado, além de defenderem a democracia como forma de governo para o
Paraguai. Natalício Gonzalez era o líder da facção guionista e inicialmente serviu ao governo stronista, mas
acabou sendo expulso do regime por planejar um golpe contra o governo de Stroessner.
7
MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990, p. 92. El gobierno de
Stroessner uso habilmente las fragmentaciones partidárias internas y la estructura de partidos en general para
asegurar su domínio. Seguro al saber que una fuerte relación entre el Partido Colorado y las fuerzas armadas
había virtualmente garantizado su continuidad, el regimen trato de manejar las situaciones de otros partidos y
centralizo las actividades del partido oficial alrededor de la administración. El resultado fue una estructura de
representación fuertemente limitada em alcance, la cual no pudo proporcionar el fundamento para la
competência abierta.
8
LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p. 320. A violência da ditadura
stronista no Paraguai assustou os representantes dos Direitos Humanos e da Anistia Internacional ao ponto

41
colocando a população paraguaia em geral, e a oposição em particular, como possíveis vítimas das
ações repressivas dos grupos que apoiavam o regime. A participação política da população estava cada
vez mais cerceada pelo aparato repressor stronista.

Los esfuerzos por participar en política fuera de los confines del control gubernamental
fueram tratados com la coerción, la cooptación y la represión. Los sindicatos, las
organizaciones campesinas, las federaciones estudiantiles y raros intentos de lucha
armada fueron infiltrados, sobornados o destruídos. Mientras los patrones de violaciones
de derechos humanos han cambiado algo en el transcurso de los anos, los paraguayos
que intentam ejercer sus derechos de organizarse o de expresar su disidencia,
continúan aún hoy enfrentando arrestos, tortura, apaleamientos, exílio e despidos de
sus empleos (BOUVIER, 1988, p. 18).

De fato, o controle exercido pelo aparato de Estado no Paraguai de Stroessner limitou


sensivelmente a participação da população nas questões relacionadas à política. O povo paraguaio teve
proibida sua liberdade de escolha, pois somente podiam votar nos candidatos do partido governista
(Partido Colorado).
Esse aspecto era muito importante para o regime e, por isso, o controle se dava de diversas
formas, mas sempre com o objetivo de que a posição do governo não fosse modificada perante as
normas de um intenso controle social por ele exercido.
Para que essa situação fosse realmente conseguida era indispensável que houvesse uma
organização sistemática da estrutura que envolvia o estado como um todo; e foi isso que Stroessner
conseguiu realizar no intento de se manter a frente do governo, mesmo que jamais tenha conseguido
eliminar totalmente a oposição ao seu regime.
As ações violentas contra aqueles que se indispusessem com o aparato oficial foram constantes
e efetivas, o que facilitou bastante a vida dos repressores. O suporte para as medidas repressivas do
9
regime stronista era oferecido principalmente pelo guion rojo e pelos pyragués colorados, mas, também,
10
a própria polícia paraguaia atuava nesse sentido, pois ela era controlada por políticos guionistas, e
estes se constituíam em uma das bases de sustentação do governo de Stroessner.
O Partido Colorado foi essencial para que Stroessner consolidasse seu domínio no conturbado
contexto político do Paraguai. Uma das formas encontradas por ele nesse sentido foi forçar as pessoas a
se filiarem ao partido para conseguirem ter suas demandas atendidas. Além disso, “o governo baixou um
decreto que obrigava todos os representantes da burocracia estatal a se filiarem ao partido, inclusive
tendo que doar 5% do seu salário para os cofres do Partido Colorado” (MIRANDA, 1990, p. 99). Essas
medidas foram responsáveis pelo crescimento significativo do número de correligionários colorados;
além de enriquecer a máquina partidária, o que também se constituía em um objetivo claro da ditadura
stronista.
Ainda nesse aspecto de intenso controle social e político deve-se mencionar o exército, porque o
ingresso para as forças armadas só era possível para os jovens que fossem filiados ao partido do
governo, neste caso o Partido Colorado. Isso fazia com que cada vez mais as estruturas do exército
fossem ocupadas por representantes do Partido Colorado, assim como as estruturas da sociedade como
um todo, ou seja, cada vez mais os ambientes político e social paraguaio eram penetrados pelo partido
da base do governo.
A rede de controle posta em prática pelo stronismo, na sociedade paraguaia, perpassava todos
os segmentos sociais, ou seja, nada escapava aos olhos da máquina estatal no intuito de defender a
ditadura de Stroessner. A grande penetração social do Partido Colorado foi fundamental para que o
controle buscado pelo regime se desse de forma bastante efetiva. Nesse contexto de vigilância
11
governamental tiveram grande destaque às seccionais e subseccionais do Partido Colorado.

destes considerarem os métodos de tortura da polícia estatal paraguaia com características “medievais”. O
sistema de tortura e repressão era bastante menos sofisticado que o do Brasil, mas, porém, tinha bastante
efetividade.
9
GOIRIS, Fabio Aníbal Jará. Paraguay: ciclos adversos y cultura política. Asunción: Servi Libro, 2004, p. 55. No
idioma guarani pyragué significa “pés aveludados”, que seria o sigiloso denunciante anônimo. Eram funcionários
públicos e membros subalternos do partido governista (Colorado) que se infiltravam silenciosamente por todo o
território nacional (e inclusive no exterior), com o objetivo de identificar e delatar os opositores ao regime de
Stroessner, criando, com isso, uma verdadeira cultura do medo e da desconfiança dentro da população.
10
A polícia paraguaia se tornou fundamental para o controle repressivo durante a ditadura stronista. O momento
de maior envolvimento desta no que diz respeito ao uso de métodos violentos foi quando esteve sob controle
dos políticos guionistas, principalmente Edgar Insfran e Ramón Duarte Vera, pois estes dois representantes
políticos colorados eram adeptos da idéia de que o controle da oposição seria facilitado na medida em que a
polícia perseguisse, prendesse e torturasse toda pessoa que representasse algum tipo de perigo para as
estruturas estatais.
11
Esses organismos do Partido Colorado foram fundamentais para que o regime conseguisse penetrar

42
La seccional colorada era uma red de información conformada por la estructura del
partido gobernante, subalternizada al Ministério del Interior. Las seccionales coloradas
eran lus nudos principales de red paralela de información política. La seccional operaba
com el comisario distrital en la administración del miedo em su distrito...En cada barrio
de las ciudades y em cada compania em el sector rural estaba la célula partidária o
subsseccional, cuya cabecilla, em alguns casos, coincidia com la persona del comisario
de compania. De qualquier manera se puede dibujar como esses organismos do Partido
Colorado fueran fundamentales para que lo regime conseguiesse penetrar
principalmiente en las áreas rurales paraguayas. Atraviés delas lo Partido Colorado e
sus representantes locales mantuvierón activos en lo control de qualquier persona que
se colocasse en la contramão del regime. Havia, entre as seccionais e subseccionais del
Partido e o regime una relaçión de cumplicidad e confiança, pois los lideres desses
segmentos eran directamente veinculados ao gobierno dictatorial de Stroessner. Una
actividad paralela, ya que mantenía la función más directa y específica de trabajar sobre
sus correligionários, empenhados em la afiliación, y la realización de concentraciones al
servicio del partido (GONZÁLEZ, 1997, p. 19).

Esses mecanismos de controle estatal obtiveram bastante êxito na medida em que foram os
responsáveis pelas afiliações partidárias da população, além de funcionarem, também, como centros de
informação sobre as movimentações estranhas que notassem, tanto no meio rural, como no meio
urbano. Esse último aspecto das subseccionais coloradas foi essencial para que o regime ficasse
sabendo dos movimentos realizados pelos grupos de oposição que optaram pela guerrilha armada.
Ainda nesse sentido de intensa vigilância estatal, pode-se dizer que “os cidadãos que não
pertencessem ao partido oficial estavam praticamente imobilizados do ponto de vista das ações cívicas e
expostos a intriga dos pyragués” (González, 1997, p. 63). As ações pró-regime dos pyragués se
constituiu em um dos principais entraves para as ações das organizações de oposição no Paraguai
durante a ditadura stronista. Os pés de plumas, como eram chamados os pyragués, funcionaram como
os olhos e os ouvidos do regime, principalmente no meio rural, delatando para o governo tudo aquilo que
pudesse colocar em perigo a estrutura autoritária instalada no país, principalmente no que diz respeito às
organizações oposicionistas. Era a partir dos avisos dos pyragués que o aparato repressivo stronista
conseguia deter o avanço dos movimentos de oposição dentro do Paraguai, invariavelmente, através de
métodos repressivos e de combates violentos que causavam grande número de mortes dos opositores.
Mesmo assim eles relutavam em se enquadrar nos moldes de sociedade imposta pelo aparelho estatal
organizado e conduzido por Stroessner e continuavam a lutar contra o regime.
Seguindo o contexto de intenso controle social imposto por Stroessner, devesse destacar o
intenso uso do Estado de Sítio como forma de limitar as ações que pudessem colocar em risco a
consolidação do regime. Essa prática coerciva predominou na sociedade paraguaia durante a ditadura
stronista, e só era suspensa por vinte e quatro horas nos dias de eleições, até como forma das pessoas
participarem das votações e consolidarem o domínio do Partido Colorado.

La medida en la que o Estado de Sítio há sido importante en Paraguay se centra en el


contexto constitucional global del cual deriva y esto sugere que el principio es una regla
excepcional. Si bien la promulgación temporária de tal principio legal puede ser
necesaria en muchos países, el contínuo retorno a esta práctica en Paraguay demostró
que el liderazgo de Stroessner era incapaz de resolver problemas internos recurriendo
solo a los instrumentos normales de coerción (MIRANDA, 1990, p. 89).

A declaração do Estado de Sítio é uma medida de exceção que pode ser tomada por qualquer
governante como forma de manter a ordem social a partir das diretrizes do executivo. Essa foi uma
prática recorrente dos regimes militares da América Latina, mas nem todos foram tão duradouros e
12
repressivos como o Estado de Sítio declarado no Paraguai pelo presidente Stroessner. Essa medida
opressora vinha acompanhada de prisões, confinamentos, proibição de reuniões públicas e
manifestações, ou seja, retirava dos cidadãos o direito de ir, vir e se reunir. Esses aspectos constituem-

principalmente nas áreas rurais paraguaias. Através delas o Partido Colorado e seus representantes locais
mantinham-se ativos no controle de qualquer pessoa que se colocasse na contramão do regime. Havia, entre as
seccionais e subseccionais do Partido e o regime uma relação de cumplicidade e confiança, pois os lideres
desses segmentos eram diretamente vinculados ao governo ditatorial de Stroessner.
12
MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990, p. 89. La medida en la
que el Estado de Sitio há sido importante en Paraguay se centra en el contexto constitucional global del cual
deriva y esto sugiere que el principio es una regla excepcional. Si bien la promulgación temporária de tal
principio legal puede ser necesaria en muchos países, el contínuo retorno a esta práctica en Paraguay demostró
que el liderazgo de Stroessner era incapaz de resolver problemas internos recurriendo solo a los instrumentos
normales de coerción.

43
se em um demonstrativo de que o regime stronista se estabeleceu e se consolidou a partir de medidas
autoritárias que visavam a um controle social a qualquer custo e sem se importar com a situação geral
dos cidadãos paraguaios.
13
O Estado de Sítio era sustentado pela chamada Guarda Urbana , que atuava sob a direção de
14
Edgar Ynsfran , um líder guionista bem-sucedido na política paraguaia (chegou ao posto de Ministro das
Relações Exteriores), tendo grande influência sobre a polícia, assim como sobre os funcionários da
burocracia estatal; o que facilitava as suas ações repressivas contra os inimigos do regime stronista ao
qual estava estreitamente ligado. Estando protegido pelo Estado de Sítio, as ações do governo no
sentido de controlar a sociedade foram pautadas pela violência sem limites. “Os milicianos da Guarda
Urbana tinham o direito de entrar em qualquer casa e prender qualquer pessoa que fosse considerada
suspeita de agir contra o governo” (LEWIS, 1986, p. 172). A vigência do Estado de Sítio colocava a
sociedade paraguaia a mercê do medo e da insegurança, além de cercear o direito à liberdade dos
paraguaios. A brutalidade da polícia paraguaia não tinha limites em suas ações, e essa situação acabou
15
despertando a crítica de representantes da Igreja Católica, pois esta passou a pressionar o governo
para a suspensão do Estado de Sítio e a conseqüente interrupção das práticas de torturas realizadas
contra alguns membros da oposição política ao regime.
A Igreja Católica não era a única instituição que passou a repudiar as práticas violentas do
governo stronista; além dela, o próprio exército estava preocupado com a ascensão da Guarda Urbana
de Ynsfran, e passou a pressionar Stroessner para que esse não concedesse tanto espaço de atuação
para uma força militar que poderia estar fora de seu controle, haja vista que, na visão de alguns líderes
16
militares, o próprio Ynsfran poderia estar arquitetando um plano para retirar Stroessner do poder . Esse
líder político guionista desfrutava de um importante apoio junto aos campesinos paraguaios, além de ser
um ferrenho anticomunista, o que, de certa forma, foi importante para que obtivesse a confiança de
Stroessner.
Nesse aspecto, o intenso controle exercido pelo regime stronista em relação aos segmentos
sociais contrários ao seu governo foi diverso, pois este buscava enquadrar seus adversários, a qualquer
custo, no sentido de eliminar as possibilidades destes virem a exercer algum tipo de pressão contra as
diretrizes ditatoriais. As formas de controle se deram em todo espectro social, mas foram mais intensas
no campo político, em que os partidos de oposição foram, cada vez mais, perdendo espaço de atuação
junto à população paraguaia, muito devido ao exílio de seus principais lideres que viam na fuga do país e
das garras da ditadura a única forma de se manterem vivos e tentarem se articular para poderem
pressionar o regime, a partir de fora do Paraguai. A oposição ao regime de Stroessner foi bastante
limitada, mas nunca deixou de ocorrer. Essa limitação oposicionista só foi possível devido ao bem
articulado e amplo sistema repressivo organizado pelo aparato oficial do governo centralizado nas mãos
do general Stroessner.

Referências Bibliográficas:

BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Ed. da
UnB, 2004.
BOUVIER, M. Virgínia. El Ocaso de un Sistema: encrucijada en Paraguai. Asunción: Editora Nanduti
Vive, 1988.
COLMÁN, Evaristo, MORAES, Ceres. A Guerrilha da Fulna: considerações preliminares. 2009.
Disponível em: http://www.cedema.org/uploads/moraes_colman.pdf. Acesso em: 04 fev. 2011.
LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986.
MEZA, Ruben Ariel. El Triângulo de la Opression. Asunción: Editora Imprensa Salesiana, 1990.

13
Guarda Urbana era uma milícia de aproximadamente vinte mil homens armados e treinados para proteger os
povoados enquanto o exército regular se preocupava com os invasores guerrilheiros.
14
Foi um líder político do Partido Colorado que ganhou a confiança de Stroessner devido ao fato de ser o líder da
facção do Guión Rojo e abusar do uso de métodos violentos contra seus opositores políticos. Tornou-se o braço
direito da ditadura stronista no intenso trabalho de desarticulação dos movimentos de guerrilha, principalmente
nas áreas rurais paraguaias.
15
A Igreja Católica paraguaia como instituição não criticou abertamente o regime stronista em seu início, pelo
contrário, apoiou esse regime justamente pelo anticomunismo apregoado pela retórica ditatorial. Alguns
representantes do clero paraguaio se envolveram em críticas as ações de perseguição e violência praticadas
pelo regime, o que acabou por gerar a prisão desses representantes religiosos. Com o aumento da violência do
regime e a perseguição a alguns padres, a Igreja Católica passou a criticar o regime stronista e a lutar pela
defesa dos direitos humanos, o que acabou por fazer o regime de Stroessner romper com a Igreja Católica.
16
LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular. 1986, p. 174-175.

44
MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990.
PAREDES, Roberto. Los Presidentes Del Paraguay. Asunción: Ed. Servi Libro, 2005.
STOPPINO, Mário. Autoritarismo. In: BOBBIO, Norberto. et. al. Dicionário de Política. Trad. Carmem C.
Varrialle et al, sob a coordenação de João Ferreira. 2ª ed. DF: Universidade de Brasília, 1986.

45
Terrorismo de Estado na Argentina e a Operação Condor: uma análise a partir de
documentos de denúncia.

Marcos Vinicius Ribeiro

Resumo: O artigo apresenta uma análise de documento conseguido junto ao Centro de Estudos Legais
e Sociais (CELS) da Argentina. Analisa-se, sobretudo, um caso inserido na lógica da Operação Condor e
outro relacionado a estruturação de um Centro Clandestino de Detenção chamado “La Cacha”.
Palavras-chave: Argentina – Operação Condor – “La Cacha”.

Abstract: The article presents an analysis of document achieved near the center of Legal and Social
Studies (CELS) of Argentina. It analyzes, in particular, a case inserted in the logic of Operation Condor
and another related to the structuring of a clandestine Center of Detention called "La Cacha".
Keywords: Argentina – Operation Condor – “La Cacha”.

O documento utilizado para a análise foi de autoria do Centro de Estudios Legales e Sociales
(CELS) da Argentina. O material contém um informe que tratou das condições encontradas no país em
relação à violação e/ou respeito aos direitos humanos durante a ditadura argentina de Terrorismo de
Estado (TDE). O informe foi confeccionado em Buenos Aires com o seguinte titulo: “La situación de los
1
Derechos en la Argentina (Octubre de 1979 – octubre de 1980)” .
A referência está composta de um sumário que contempla os principais temas descritos sobre a
questão dos Direitos Humanos no país. “1 - Violaciones al derecho a la vida, la libertad y la integridad
física; 2 - Secuestros en el exterior atribuidos a agentes del Gobierno argentino; 3 - Muertes; 4 -
Desapariciones temporarias. 4.a - Secuestro de once personas en Rosario. 5 - Testimonios oferecidos en
el exterior; 6 - Consideraciones sobre el problema de los desaparecidos y la negativa a brindar
informaciones; 7 - Expresiones oficiales. 8 - Situación de los detenidos; 9 - Situación de las entidades de
Derechos Humanos; 10 - Violaciones al derecho de información y difusión; 11 - Tratamiento oficial del
Informe de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (OEA); 12 - Reclamos de distintos
sectores de opinión en torno de detenidos-desaparecidos y presos políticas; 13 - Violaciones al derecho
2
de practicar libremente su culto; 14 - Contralor Ideológico y adoctrinamiento educativo” .
Segundo o informe que inicia o relatório, o resultado apresentado é parcial e limitado, uma vez
que vai até o ano de 1980 e indica que a questão que envolve o tema - Direitos Humanos na Argentina -
é um problema e, “Nada hace pensar que las autoridades estén dispuestas a llevar a cabo – en caso
alguno - investigaciones destinadas aclarar y sancionar los gravísimos hechos cometidos por sus
3
agentes desde la fecha citada” .
A fonte não abordou o contexto de ditadura em sua totalidade. Foi um relatório sobre seqüestros,
detenções, torturas e desaparecimentos que: “sieguen teniendo lugar, aunque en menor numero,
episodios y en particular detenciones seguidas de torturas, vejámenes y desapariciones que ponen de
manifiesto la subsistencia de procedimientos ilegales y clandestinos, autorizados y empleados desde el
4
comienzo de la represión” .
O Relatório da CELS indica que a situação era suplantada a partir da manipulação da opinião
pública, realizada pelos principais meios de comunicação social argentinos. Segundo o Relatório, a
situação existente em 1980 a respeito da repressão era sustentada porque: “Su reiteración sólo es
posible por el ocultamiento que se hace de ellos a la opinión publica, mediante la manipulación de los
5
medios de comunicación social y la intimidación” .

1
Biblioteca do Centro de Estudos Legales e Sociales - C.E. L.S. Buenos Aires Argentina (Octubre de 1980).
2
O texto de Advertência diz que se trata de um material que, “En alguna medida completa el Informe sobre la
situación de los Derechos Humanos en Argentina, aprobado por dicha Comisión el 11 de abril de 1980 y
publicado en Washington DC como documento OEA/Ser.L/V/II.49 doc. 19” (Id. Ibid.)
3
Continua com a seguinte afirmação, “Por el contrario, entre los estimonios que se incluyen en el presente
estudio se encuentran diversas declaraciones de gobernantes y militares, en las cuales se sostine que se
impedirá de calquier manera la intención de revisar aun por via judicial, las violaciones cometidas en prejuicio de
miles de ciudadanos” (Id. Ibid).
4
Id, p. 02.
5
Id. Ibid.

46
6
O texto de advertência que compõe as primeiras páginas do documento está datado em
novembro de 1980. Trata-se do período de retirada de Jorge Rafael Videla do poder. À guiza de
introdução, o documento alertou para o fato de que: “Los hechos que a continuación se describen, con el
agregado de breves comentarios, se hallan debidamente documentados. Por lo demás, parte de dichos
7
episodios ha sido materia de información periodística” .
Em resumo, este documento tráz informações sobre 62 casos de denúncia documentados entre
o fim de 1979 e o ano de 1980. Sendo que, destes 62 casos, 34 casos recolhidos em testemunhos que
versam sobre os últimos 4 meses de 1979, e, 28 casos documentados em 1980. Segundo o documento:
“Sin duda alguna, el número real de desapariciones excede a la cifra antedicha, por cuanto con
frecuencia las familias no formulan denuncia algunas a las organizaciones de derechos humanos o lo
8
hacen tardíamente” . Apesar da comoção mundial, gerada a partir da visita ao país da Comissão, os
9
mecanismos repressivos destinados a manter o silêncio em torno da questão, não se abrandaram . Pelo
contrário, passados 4 anos do golpe de março de 1976, após a visita da referida Comissão, os
mecanismos foram redirecionados a manter o ambiente de perseguição, mas foram estendidos à
vigilância dos organismos de direitos humanos encarregados de recolher o maior número de
informações sobre a prática do TDE.
Os 34 casos nomeados pela Comissão ocorridos nos últimos meses de 1979, a saber, entre
setembro e dezembro daquele ano, perfazem o conteúdo do material. Todos eram cidadãos argentinos e
foram seqüestrados e se tornaram detidos-desaparecidos em território nacional. Em todos os casos
apresentados no Relatório se encontra um breve levantamento das informações pessoais dos indivíduos
envolvidos, sendo que, em alguns deles, além das informações de documentação, relatam-se as
circunstâncias em que cada um foi detido.
Após o levantamento realizado pela CELS referente ao ano de 1979, segue no mesmo tom a
descrição de mais 28 casos de detenção/desaparição, inclusive com o emprego dos mecanismos
repressivos conhecidos e praticados pela ditadura argentina, dentre os quais, torturas com choque
elétrico com o emprego da Picana Eléctrica e práticas de afogamento (Submarino), além de
açoitamentos e isolamento das pessoas aprisionadas pelas diversas instituições de segurança
componentes do Estado.
Após referenciar cada caso tratado, o documento segue com um breve comentário que perpassa
todos os temas levantados pelo índice que compõe o documento. Um, dentre os principais temas
abordados durante o texto que compõe o Informe/Documento, encontra-se no caso de 6 sobre cidadãos
argentinos seqüestrados no exterior. São eles: Horacio Domingos Campligia, Mónica Susana Pinus de
Binstock, Noemi Esther Gianeti de Molfino, Julia Inês Santos de Acebal, Julio César Ramires e Aldo
Alberto Moran.
Em particular, a descrição dos casos que envolveram Horacio Domingos Campiglia e Mónica
Susana Pinus de Binstock são tratados no documento. Em relação a Horacio Campigli, encontramos o
seguinte: “Desaparecido el 12 de marzo de 1980, probablemente en el aeropuerto de Caracas, al
trasladarse desde Panamá a Rio de Janeiro, con tránsito en la ciudad antes mencionada. Residía en
10
Méjico” . Quanto ao evento que envolveu o seqüestro de Mónica Susana Pinus de Binstock, o
documento apresentou que Monica foi;

Secuestrada junto con el anterior el 12 de marzo de 1980, en las mismas circunstancias.


La desaparición se produjo en el trayecto Panamá-Caracas-Rio de Janeiro del vuelo 944
de VIASA, que salió de la primera de dichas ciudades el 11 de marzo con hora de
llegada a Caracas a las 23 continuando a viaje a Rio de Janeiro con arribo previsto al 12
de marzo. También la señora Binstock vivía en Méjico. Estos dos casos han sido

6
Sabe-se que, embora a proposta da OEA tenha investigado a situação dos direitos humanos no país e permitiu
a publicação do relatório da CELS no ano de 1980, o que por si teve seu mérito, ele não foi decisivo para o fim
das situações inerentes à aplicação da política de TDE. Mesmo que as denúncias realizadas através da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos tenham provocado
uma sensível retração no quadro de detenções/desaparecimentos a partir de 1979, ano em que passou a atuar
a Comissão que deu amplitude às denúncias dos detidos/desaparecidos, sabe-se que antes mesmo do
Relatório este quadro havia mudado sensivelmente, processo provocado pela pressão interna e pelo isolamento
relegado a mudança da política externa estadunidense com o governo de Jimmy Carter e a questão dos direitos
humanos. Esta política, envolta na defesa aos Direitos Humanos, previa, ademais, a estabilização do continente
em bases mais confiáveis para a atuação do imperialismo estadunidense na região descartando, enfim, a
necessidade de manutenção das ditaduras latino-americanas.
7
Id. p. 03.
8
Id. p. 10.
9
Segundo o Informe, “Sólo en 18 de los 28 casos de 1980 los familiares han presentado denuncia en la Asamblea
Permanente por los Derechos Humanos, y más o menos en el mismo número, han presentado recursos de
hábeas corpus. Las respuestas en éstos, han sido negativas”. (Id. p. 10-11).
10
Id. p. 12.

47
denunciados a las organizaciones de derechos humanos por familiares de las victimas y
11
el hecho fue publicado en “La Prensa” de Buenos Aires, el 30 de marzo de 1980 .

Trata-se de casos que remetem ao Plan Condor. Ao continuar o comentário das


detenções/desaparições, o informe indica que:

Los cuatro ciudadanos argentinos precedentemente citados fueron secuestrados, junto


con Federico Guillermo FRIAS ALBERGA 970 – que posteriormente se verifico que fuera
detenido en Buenos Aires y conducido al exterior -, en Lima Perú, el 12 de junio de
1980. Según denuncias de la prensa y de diversos sectores de la sociedad peruana,
difundidas internacionalmente y recogidas por Amnesty Internacional, el hecho habría
sido ejecutado por agentes del Gobierno argentino con anuencia de las Fuerzas
12
Armadas peruanas .

A análise da conexão repressiva entre Argentina e Peru estendeu-se no relato tratando da


anuência das forças de segurança peruana em relação à entrada de oficiais argentinos por lá. Segundo
o informe, a operação argentina foi acolhida pelos órgãos responsáveis no Peru a partir de um
entendimento entre os presidentes em exercício de cada país.

A tenor de dichas informaciones, el comandante en Jefe de Ejercito argentino, teniente


general Galtieri, habría solicitado a su colega del Perú, general Richter Prada,
invocando acuerdos preexistentes, autorización para la entrada a ese país de personal
de los servicios de Inteligencia argentinos con el fin de arrestar, interrogar y repatriar a
varios ciudadanos de nacionalidad argentina que se encontraban en Perú. El trámite
13
culminó con la detención de las cinco personas mencionadas .

Segundo o comentário apresentado no Informe, havia muitos indícios de que a operação foi
possibilitada a partir de uma ação conjunta entre Argentina e Peru. Entretanto, cabe destacar, ao
continuar o comentário acerca das investigações que envolveram a prisão e interrogatório das pessoas
citadas, que os meios de comunicação peruanos não ficaram alheios aos acontecimentos.
O complemento do comentário acerca dos casos levantados pela Comissão, continua com a
seguinte observação, “Según noticias periodísticas, las victimas habrían sido sometidas a torturas en el
Centro Recreacional Militar, ubicado en el norte de Lima, denominado Playa Hondable. A consecuencia
14
de ello habrían fallecido FRIAS y MORAN. Las tres restantes habrían sido repatriadas” .
Além da alusão aos meios de comunicação peruanos quanto ao evento, o Informe apresenta a posição
oficial do país andino relacionado às detenções de argentinos praticadas no Peru,

Un vocero del Ejército peruano negó esta versión de los hechos, informando en cambio
que el 14 de junio de 1980 habrían sido detenidos por fuerzas de seguridad los
ciudadanos argentinos Julio César Ramírez, Noemí Gianetti de Molfino y Julia dos
Santos Acebal y puestos en la frontera con la Bolivia para ser trasladados a la Argentina.
15
Fuentes bolivianas negaron haber intervenido en el operativo .

O obscurantismo que demarca as investigações do paradeiro das pessoas seqüestradas,


demonstra que a posição das autoridades oficiais, no caso, um porta-voz do Exército peruano, e da
Bolívia, foi de negar a participação nas detenções. Um traço particular das conexões repressivas que
envolveram autoridades latino-americanas no marco da Operação Condor. Entretanto, a ação não pôde
passar despercebida uma vez que redundou na execução de Noemi Molfino. Segundo informações
contidas no documento confeccionado pela CELS, a morte de Molfino se deu em circunstâncias que
levam a acreditar que militares argentinos tenham praticado o crime.

La señora MOLFINO apareció muerta el 21 de julio de 1980, en un departamento en


Madrid, España. Esto motivó un comunicado del Gobierno argentino destinado a negar
los hechos denunciados por la prensa. La policía española caratuló el sumario como
“muerte dudosa”. La prensa del mismo país acusó a las autoridades argentinas de ser
responsables del asesinato. En Perú, por decisión del Congreso, luego de una sesión
secreta con asistencia de autoridades militares, el caso se ha cerrado. En España
16
prosigue la investigación, pero no se ha arribado a nada concreto .

11
Id. Ibid.
12
Id. Ibid.
13
Id. p. 12-13.
14
Id. p. 13.
15
Id. Ibid.
16
Id. Ibid.

48
Como podemos observar, o caso não foi investigado em sua plenitude. Por omissão das
autoridades dos países envolvidos na operação, as circunstâncias da morte de Noemi Gianetti de
Molfino não foram completamente esclarecidas. Embora houvessem muitas evidências que oficiais
argentinos agiram ilegalmente no caso, como denunciaram os meios de imprensa espanhóis, pouco, ou
quase nada foi feito para ampliar as possibilidades de apuração dos fatos. O que ficou claro, neste caso,
é que, as operações destinadas a caçar e exterminar argentinos fora do país, só pôde encontrar êxito
uma vez que as autoridades locais participassem ativamente dos trabalhos.
Ao continuar a apuração acerca do assassinato de argentinos no exterior, o documento da CELS
17
apresenta o caso de desaparecimento de Jorge Oscar Adur . Trata-se de um sacerdote católico que
teria desaparecido na fronteira entre a Argentina e o Brasil, na altura de Uruguaiana-RS, no fim de junho
de 1980. Segundo as informações da CELS, Adur vajou ao Brasil para formar parte da comissão latino-
americana que recebeu o Papa João Paulo II quando de sua visita ao Brasil em julho de 1980.
Segundo o informe: “La Conferencia Episcopal Brasileña ha denunciado el caso, indicando que
18
se trataría de un secuestro” . Muitas comissões destinadas a apurar os crimes de Terrorismo de Estado
se formaram no interior da Igreja Católica no Brasil. Neste sentido, destacamos a participação da
19
Comissão Arquidiocesana para os Direitos Humanos do Arcebispado de São Paulo (Clamor) .
A Clamor recebeu uma série de testemunhos relacionados aos crimes de lesa-humanidade
praticados na Argentina durante a ditadura. A partir de tais relatos foi possível traçar um itinerário acerca
de alguns Centros Clandestinos de Detenção (CCDs) na Argentina.
Os relatos destinados a cobrir os crimes de TDE recolhidos por Clamor seguem um padrão que
20
contempla um índice no qual se encontram cerca de 9 pontos que recorrem a descrição dos
mecanismos de repressão do TDE na Argentina. Segundo o documento aqui tratado, escrito e assinado
21
por 8 argentinos que procuraram a Clamor para relatar os crimes cometidos pela ditadura: “La forma
represiva consiste en hacer ‘desaparecer’ a los militantes populares, tiene dos finalidades inmediatas:
22
destruir al militante y a su organización y extender el terror a todo el espectro social” .
A introdução do documento desenha um apanhado geral sobre as circunstâncias em que se
definiu o golpe de março de 1976. Nela os denunciantes tratam de um itinerário sobre a história
argentina: “La historia de nuestro país está caracterizada por una lucha continua entre las fuerzas
populares y las clases dominantes, lo que se traduce en una sucesión ininterrumpida de gobiernos civiles
23
y golpes militares” .
Apesar de não trazer maiores informações biográficas de cada um dos testemunhantes, o tom
do discurso usado, com informações que perpassam a economia, política e contexto social argentino,
levam a crer que se tratavam de militantes de organizações políticas que atuaram previamente ao golpe
de março de 1976 e que, provavelmente, foram desbaratadas depois do golpe.
Segundo o documento/relato, a definição de desaparecido e sua condição de detido é a
seguinte:

Que es un desaparecido?: es una persona a la cual secuestran, en su casa, en su lugar


de trabajo, en la vía pública, en su lugar de estudio y que es llevada a lugares
clandestinos de detención, donde pierde todo el vínculo con el mundo exterior, al cual no
llegan ni la luz del sol ni el brazo de la justicia, donde deja de existir, en vida. Nosotros,
que estuvimos detenidos en uno de esos centros clandestinos, queremos testimoniar
sobre nuestra común experiencia. Lo hacemos como un acto de coherencia militante: no
somos testigos de “accidente” o de un “exceso de la represión” sino parte de los treinta
24
mil compañeros desaparecidos y de su misma lucha .

17
No mesmo dia do seqüestro de Adur, pouco tempo depois, o militante montonero Lorenzo Viñas também foi
detido e em seguida desapareceu. Ambos os fatos foram relatados quando veio à tona a situação de Centro
Clandestino de Detenção da fazenda La Polaca, localizado na fronteira entre Brasil e Argentina.
18
Id. Ibid.
19
Os relatos recolhidos por CLAMOR foram conseguidos junto ao arquivo da Asamblea Permanente por los
Derechos Humanos de Argentina (APDH). Entretanto, sabe-se que este acervo encontra-se tutelados pela PUC-
SP. Tratam-se de aproximadamente 106 caixas e 30 pastas que ainda não encontram-se disponíveis para
consulta.
20
Basicamente, os pontos arrolados no índice do documento aqui consultado são os seguintes: 1. Introdução; 2.
Testemunhos; 3. Nomes de pessoas vista em “LA CACHA”; Grávidas e crianças vistas em “LA CACHA”; 4.
Nomes de responsáveis de “LA CACHA”; Características de “LA CACHA”; 6. Características Físicas de “LA
CACHA” 7. Planos; 8. Interpretação dos Planos; 9. Epílogo.
21
São eles: Nestor Daniel Torrillas; Nelva Mendes de Falcone; Alberto Omar Dissler; Roberto Luján Amerise; Ana
Maria Caracoche de Gatica; José Luis Cavaleri; Alcira Rios de Córdoba; Luis Pablo Córdoba.
22
TESTIMONIOS SOBRE “LA CACHA”. 20/10/1983. CCD7.14. p. 04.
23
Id. p. 02.
24
Id. p. 04-05.

49
Neste trecho, uma dada visão do contexto repressivo da ditadura, com muita clareza sobre o
caráter prolongado da repressão, observa-se as principais características das condições de detenção. O
relato procura estabelecer a racionalidade da atuação dos órgãos de repressão, sem deixar margem a
duvida no que concerne ao seu caráter planificado. Em última instância, rompe com a idéia encampada
pelos militares de que se houve mortes e torturas em grande número, estes atos foram isolados e
tratados de forma arbitrária pelo baixo escalão da corporação militar.
Sobre o CCD de “La Cacha”, localizado entre as ruas 191, 196, 47 y 52, ao lado da prisão de
Olmos, onde funcionou a antiga “Radio de La Provincia”, La Plata, Buenos Aires, temos as seguintes
informações com relação a condição de detenção e desaparecimento dos signatário do depoimento:

Los secuestrados eran llevados a los lugares clandestinos de detención y tortura. Uno
de estos sitios era “la Cacha”, donde estuvimos; su nombre fue asignado haciendo
referencia a “la bruja Cachavacha” personaje de dibujos animados infantiles que tenía el
poder de hacer desaparecer a la gente. Está situado en la ex-planta transmisora de
Radio Provincia, en la localidad de Lisandro Olmos, partido de La Plata, Pcia. De
25
Buenos Aires .

Segundo as informações contidas no documento, além de um local de detenção clandestino, “La


Cacha”, foi um centro de tortura que contou com a totalidade dos mecanismos de repressão sobre os
quais baseou-se a ditadura de TDE na Argentina. Os mecanismos triviais do interrogatório que contava,
ademais, com a participação de civis que aparecem no relato/documento da seguinte forma,

con el detenido en su poder encapuchado y esposado, el comando de secuestradores


se dirigía a La Cacha, donde lo sometían a salvajes torturas a través de las cuales
trataban de recabar información. Estas torturas consistían en atar al prisionero de pies y
manos a una especie de cama elástica, conocida por el nombre de “parrilla”; golpearlo
con garrotas, gomas, alambres, puñetazos y puntapiés; aplicarlo corriente eléctrica con
picanas simultaneas (…); asfixiarlo por inmersión (submarino) o por ahogamientos o por
26
ahogamientos por almohadas y bolsas de nylon (submarino por seco) .

Na continuação do documento, os depoentes declaram que as sessões de torturas só cessavam


com o desmaio do detido/desaparecido. Os mecanismos de tortura se intercalavam com perguntas
relacionadas à militância desenvolvida por cada um. Os gritos dos companheiros que estavam em
sessões semelhantes nas proximidades eram utilizados para intimidar e fazer falar o torturado da vez.
Além do envolvido diretamente na tortura, as sessões contavam com ameaças a familiares,
onde, por vezes, fotografias de familiares dos torturados eram mostradas nas sessões. A referência ao
período é abarcada no depoimento: “El período al cual nos referimos abarca del 9 de marzo de 1977 al 6
de septiembre del mismo año, y del 29 de julio de 1978 al 1 de septiembre del mismo año, época en la
cual el aparato represivo se encontraba en la plenitud de su funcionamiento y donde se realiza el mayor
27
número de secuestros” .

Conclusão
O objetivo deste artigo foi o de apresentar algumas situações de violações aos Direitos Humanos
que tiveram arregimentação sob o período de Terrorismo de Estado na Argentina. Trata-se também de
apresentar algumas questões levantadas durante nossa dissertação de mestrado intitulada “DE PERÓN
A VIDELA: revisão histórica e historiográfica do Terrorismo de Estado na Argentina (1973-1978)”
defendida no ano de 2009 no programa de pós-graduação em História, nível Mestrado da Unioeste.
Mais do que conclusões, buscamos publicizar parte do material que foi discutido durante a
pesquisa. Algumas questões nos parecem preocupantes do ponto de vista do acesso ao material
pesquisado. Refiro-me ao caso dos arquivos da Clamor. Certamente um conjunto muito rico de fontes
históricas, que ainda não se encontra acessível a maior parte dos pesquisadores.
Por outro lado, o documento aqui analisado nos permite reconhecer algumas trajetórias de
resistência às ditaduras latino-americanas. Acessar tais documento/fontes históricas é, antes de muitas
preocupações, adentrar o espaço de resistência intensa a arbitrariedade do Estado. A resignificação
deste espaço, com consequente fechamento de canais normativos de sua regulação, proporcionam
soluções definitivas e de longo prazo que atingem um conjunto amplo de situações cujo terror torna-se a
normativa.

25
Id. p. 05.
26
Id. Ibid.
27
Id. Ibid.

50
Referências Bibliográficas:
BASCHETTI, Roberto (comp.). Documentos 1970-1973. Volumen I: De la Guerrilla Peronista al Gobierno
Popular. La Plata – Bs. As: Campana de Palo, 2004 .
CALLONI, Stella e ESQUIVEL, Adolfo Pérez. Los Años del Lobo: Operación Condor. Icaria Editorial,
1999.
DE RIZ, Liliana de. História Argentina: La política en suspenso 1966/1976. Buenos Aires: Paidós, 2000.

Fontes Pesquisadas:
Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina, aprobado por dicha Comisión el 11
de abril de 1980 y publicado en Washington DC como documento OEA/Ser.L/V/II.49 doc. 19. Biblioteca
do Centro de Estaudios Legales y Sociales-CELS.
TESTIMONIOS SOBRE “LA CACHA”. 20/10/1983. CCD7.14. Asamblea Permanetnte por los Derechos
Humanos de Argentina-APDH.

51
Como eleger um ditador: Bolívia 1971 e 1997

1
Luciano Barbian

Resumo: o general hugo banzer suarez foi ditador da bolívia, governando de 1971 a 1978. Foi um dos
mandatos mais extensos de todos os presidentes bolivianos, se caracterizando por realizar um governo
ditatorial com repressão ao movimento operário, camponês, indígena e a todos os que poderiam se
tornar um obstáculo a suas políticas. Em 1997, Hugo Banzer retorna ao governo da Bolívia, dessa vez
pela via eleitoral e não de um Golpe de Estado, como nos anos 1970. Para buscar seu intento Banzer
buscou ocultar as suas raízes autoritárias, tentando apagar a memória de seu governo ditatorial. Esse
artigo busca apresentar algumas das estratégias que Banzer se utilizou para chegar a vitória eleitoral,
bem como analisar os contextos da sociedade boliviana e Latino-americana no contexto das Ditaduras
de Segurança Nacional nos anos 1960 e 1970, bem como no contexto do chamado neoliberalismo nos
anos 1990.
Palavras-chave: Bolívia – Ditadura – Hugo Banzer – repressão

Abstract: general hugo banzer suarez was dictator of bolivia, ruling from 1971 to 1978. It was one of the
most extensive mandates of all Bolivian presidents, been characterized by a dictatorial government to
carry out repression against the labor movement, peasant, indigenous and all that could become an
obstacle to its policies. In 1997, Hugo Banzer returns to the government, this time through elections, not a
coup, as in the 1970s. Their intent to seek Banzer sought to conceal its authoritarian roots, trying to erase
the memory of his dictatorial government. This paper aims to present some of the strategies that Banzer
was used to get the electoral victory, as well as analyze the contexts of Bolivian society and the Latin
American dictatorships in the context of national security in the years 1960 and 1970, as well as in the
context of so-called neoliberalism in 1990s.
Keywords: Bolivia – Dictatorship – Hugo Banzer – repression

O contexto político e o Golpe de Estado na Bolívia, 1971


Em 21 de Agosto de 1971 o então Coronel Hugo Banzer Suárez consegue chegar a presidência
da Bolívia via um Golpe de Estado que derruba o governo do General Juan Jose Torres, que contava
com grande apoio popular, em especial de sindicatos, da COB (Central Obrera Boliviana) e da
Assembleia Popular (Comuna de La Paz). Esse apoio se fortaleceu na defesa que esses grupos fizeram
ao governo contra uma primeira tentativa de Golpe impetrada por Banzer em Janeiro de 1971. Com isso,
em 1º de Maio daquele ano os trabalhadores através de seus sindicatos, da COB, os estudantes e
organizações populares se reuniram no prédio do Parlamento boliviano declararam constituída a
Assembleia Popular de La Paz.
Foram justamente as características populares e progressistas do governo de Torres e o seu
esforço por manter o movimento operário atrelado ao seu governo, impondo uma política que atacava a
independência das organizações, que levaram Torres a ser violentamente deposto por Hugo Banzer.
Segundo o relatório do Ministro do Interior do governo Torres, Gallardo Lozada, a COB havia solicitado
ao governo armas para fazer a defesa contra a ameaça de golpe dos fascistas. Torres em primeiro
momento negou esse pedido, temendo que o proletariado, com sua independência política fortalecida e
armado pudesse no futuro avançar no desenvolvimento de um processo revolucionário.
Com isso o movimento golpista, que se apoiava politicamente numa frágil aliança de três
agentes políticos, o MNR (Movimiento Nacionalista Revolucionario), a Falange Socialista (fascista) e
setores das forças armadas conseguiu alcançar seu intento. E as primeiras medidas de Banzer se
voltaram contra as organizações populares e sua autonomia.

As Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina.


A América Latina, na década de 1970 estava vivendo o desenvolvimento de vários regimes
ditatoriais que se baseavam na Doutrina da Segurança Nacional e que podem ser classificados como

1
Secretaria Municipal de Educação (SMED) – Porto Alegre. E-mail: luciano-barbian@hotmail.com.

52
2
Ditaduras de Segurança Nacional. Segundo Comblin :

A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para impor seus


objetivos a todas as forças oponentes. Essa capacidade é, naturalmente, uma força.
Trata-se portanto da força do Estado, capaz de derrotar todas as forças adversas e de
fazer triunfar os Objetivos Nacionais.

Os Objetivos Nacionais constituem um conjunto bastante vago. Os autores reconhecem


que há só um bem, que é a espinha dorsal da segurança nacional e é sempre um
objetivo e deve sempre ser colocado em segurança: a sobrevivência da nação. No
entanto, imediatamente volta a incerteza. É excepcional que a existência física de uma
nação esteja em perigo. Estende-se portanto a sobrevivência a um certo número de
atributos considerados essenciais a sobrevivência: crenças, uma religião, instituições
políticas, etc. E a incerteza volta.

Em suma, a segurança nacional não sabe muito bem quais são os bens que devem ser
postos em segurança de qualquer maneira, mas sabe muito bem que é preciso coloca-
los em segurança. Ela quer ardentemente e com todas as forças de seu poder físico
3
algo que não sabe muito bem o que é.

Dessa forma, Comblin afirma que os limites do que seriam os objetivos da Segurança Nacional
são vagos, os próprios manuais criados nos Estados Unidos para tratar da Doutrina da Segurança
Nacional não chegam a especificar o que ela seria: “ela está presente em toda a parte e jamais é
4
explicada” . Com isso os vários governos ditatoriais se apresentam com uma grande flexibilidade de
enquadramento do que seriam os objetivos da Segurança Nacional. E isso ocorre no sentido de
manutenção do poder nas mãos das classes dominantes, ou seja, das burguesias nacionais em aliança
com o imperialismo estadunidense, mantendo em segurança os interesses na acumulação capitalista na
região.
Dessa forma, como demonstra Comblin, o conceito da Segurança Nacional, apesar de toda a
sua indefinição, acaba se tornando muito útil e operacional a medida em que estabelece quem é o objeto
das políticas de Segurança Nacional, ou seja, quando se estabelece o “inimigo”. Ainda nas palavras de
Comblin: “ a segurança nacional talvez não saiba muito bem o que está defendendo, mas sabe muito
5
bem contra quem: o comunismo.” Como o “comunismo” é um termo utilizado pelas Ditaduras de
Segurança Nacional de uma forma bastante ampla, onde comunistas nãos são apenas aqueles que se
reivindicam como tal, o conceito deve se apresentar de forma bastante flexível para que tenha
operacionalidade. Seria assim esse fenômeno típico do período da Guerra Fria.
Outra definição que buscou compreender as Ditaduras da América Latina naquele período foi a
elaborada por O’Donnell que utiliza o termo “Estados Burocrático-Autoritários”, ou a sigla BA para
delimitar esse tipo de Estado. E O’Donnell define os Estados BA da seguinte forma:

As características que definem o tipo BA são: a) as posições superiores do governo


costumam ser ocupadas por pessoas que chegam a elas depois de carreiras bem-
sucedidas em organizações complexas e altamente burocratizadas – Forças Armadas, o
próprio Estado, grandes empresas privadas; b) são sistemas de exclusão política, no
sentido de que pretendem fechar os canais de acesso ao Estado do setor popular e
seus aliados, assim como desativa-lo politicamente não só pela repressão mas também
pelo funcionamento de controles verticais (corporativos) por parte do Estado sobre os
sindicatos;(...)d) são sistemas despolitizantes, ou seja, pretendem reduzir as questões
sociais e políticas públicas a questões “técnicas”, a resolver mediante interações entre
as cúpulas das grandes organizações acima mencionadas; e) correspondem a uma
etapa de importantes transformações nos mecanismos de acumulação das suas
sociedades, que por sua vez formam parte de um processo de “aprofundamento” de um
6
capitalismo periférico e dependente, mas dotado de uma extensa industrialização.

Percebe-se aqui de uma maneira mais evidente que, para O’Donnell os BA se caracterizam por
ser uma forma de impedir a organização independente da classe operária e de seus aliados, no sentido
de garantir a aplicação de uma política que resguarde os interesses imperialistas na região. E isso se
manifestou de uma forma bastante peculiar em toda a América Latina, tornando as Ditaduras de

2
COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América Latina, Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
3
COMBLIN, op cit pg 54-55
4
COMBLIN, op cit pg 54
5
Idem, pg 55
6
O’DONNELL, Guillermo. Reflexões sobre os Estados Burocráticos-Autoritários São Paulo: Vértice,1987. Pg 21

53
Segurança nacional ou os BA fenômenos políticos típicos daquela situação político-social latino-
americana e da forma como as lutas de classes se manifestam naquele contexto histórico e que ainda
mantém seus efeitos.
No caso da Bolívia, o governo de Banzer em 1971 apresenta políticas típicas das Ditaduras de
Segurança Nacional, como é o caso da utilização das políticas repressivas e de Terror de Estado contra
aqueles que se colocavam contra o governo e também se percebe de forma clara que a Ditadura na
Bolívia se enquadra nos BA no que se refere a origem militar de Banzer e nas suas alianças e políticas
que visavam atacar os movimentos operário-camponês, como veremos no tópico seguinte.

As políticas de Segurança Nacional na Ditadura de Banzer.


No governo ditatorial de Banzer a presença de medidas que evidenciam as políticas de
segurança nacional pode ser percebida através de seus decretos públicos e também de documentos
secretos, que demonstram como o governo articulava suas medidas repressivas e quem eram os alvos
dessas medidas, em especial, o movimento operário.
Como exemplo de um decreto que atacava o movimento operário boliviano e que pode
demonstrar a forma como Banzer articulava suas medidas repressivas está o Decreto de número 11952,
de 1974.
ARTÍCULO 1.- En tanto se promulgue el Código del Trabajo, el Ministerio de Trabajo,
designará Coordinadores Laborales en cada centro de producción, para que cumplan
funciones de vinculación de los trabajadores.
ARTÍCULO 2.- Serán funciones de los Coordinadores Laborales:
a) Vincular a los trabajadores de las respectivas empresas o entidades en sus
peticiones ante los empleadores y los organismos del Estado;
b) Organizar Comités compuestos por cuatro trabajadores, cuando las circunstancias lo
exijan;
7
c) Organizar bajo su responsabilidad, el patrimonio social de los trabajadores.

Percebe-se no decreto a ação do governo no sentido de atacar a independência política dos


trabalhadores já que o governo iria, através do Ministério do Trabalho, impor os Coordenadores que
seriam responsáveis por administrar e representar os trabalhadores organizados em sindicatos, ou seja,
é uma clara intervenção da Ditadura no meio sindical com o fim de desmobilizar os trabalhadores. Outro
artigo, do Decreto 11952, que demonstra a ação de repressão aos sindicatos e as formas de lutas dos
trabalhadores é o artigo 7, que diz:

ARTÍCULO 7.- Las huelgas, paros, actos de sabotaje y trabajo a desgano, prohibidos
por el Decreto Ley Nº 11947 y que se produzcan en las empresas y entidades del Sector
Público, darán lugar al inmediato despido de los infractores, sin goce de beneficios
sociales. En los casos producidos dentro del Sector Privado, se efectuará una
conminatoria previa de retorno al trabajo en el término de 24 horas, vencido el cual
serán sancionados con igual despido los trabajadores que no hubiesen acatado esta
advertencia. En este último caso, se requerirá la autorización expresa del Ministerio de
8
Trabajo.

Esse artigo apresenta de forma mais evidente a repressão pelas vias das leis da ditadura,
proibindo a articulação dos trabalhadores e a utilização das greves como uma forma de lutas pela
conquista de direitos.
Mas a ditadura de Banzer não tornava públicas todas as suas determinações, como é evidente
em um governo autoritário. Como exemplo dessa situação pode –se observar um documento redigido e
assinado por Banzer em nome do Conselho de Segurança Nacional (COSENA), de caráter interno ao
governo e secreto e que demonstra muito bem qual a posição da ditadura boliviana com relação aos
organismos operários e populares e aos opositores, que o governo ditatorial denomina como
“subversivos”. Uma análise do mesmo documento demonstra a forma como o governo se coloca frente a
contestação e desenha as políticas repressivas, comandadas pelo próprio Banzer.
Dessa forma, esse documento denominado Directiva nº72, de março de 1972, se apresenta
expondo os objetivos do governo ditatorial e divide esses objetivos em de ordem psicológica, política e
9
militar. No texto do decreto secreto, publicado pelo jornalista argentino Martin Sivak , a repressão aos

7
Decreto consultado em 20/10/2012 em: http://www.derechoteca.com/gacetabolivia/decreto-supremo-11952-del-
12-noviembre-1974.htm
8
Decreto consultado em 20/10/2012 em: http://www.derechoteca.com/gacetabolivia/decreto-supremo-11952-del-
12-noviembre-1974.htm
9
SIVAK, Martin. El Dictador Elegido. 2ªed La Paz: Plural, 2002

54
movimentos operário e comunista aparece de forma bastante evidente algumas características comuns
das Ditaduras de Segurança Nacional que foram recorrentes na América Latina no período, ou seja, o
anticomunismo, a doutrina do inimigo interno e a defesa do modelo de acumulação capitalista burguês
com a repressão aos movimentos contestadores.
De acordo com Sivak, o decreto ditatorial de Banzer pode ser descrito e dividido da seguinte
forma:

Con el membrete de SECRETO y bajo la órbita del Consejo de Seguridad Nacional


Bolivia, el documento de cinco carillas está dividido en cinco puntos: FINALIDAD,
OBJETIVOS, RESPONSABILIDADES, ORGANIZACIÓN Y TAREAS.

El apartado FINALIDAD comienza así: ‘A. Prepararse para enfrentarse a una


organización cuya misión esencial es imponer su voluntad a la población para instaurar
un régimen Castrocomunista. B. La finalidad superior de nuestra organización es lograr
10
el APOYO DE LA POBLACIÓN a la causa nacionalista.’

Pode ser revelado no texto do decreto que o governo buscava o respaldo popular a chamada
“causa nacionalista”, o que pode levar a conclusão de que o apoio do povo estava mais voltado as
organizações como a COB e aos sindicatos, por isso a conquista do apoio popular aparece como
finalidade do COSENA (Conselho de Segurança Nacional). E isso se daria especialmente através das
políticas de Terror de Estado exercidas pelo governo.
Dentro do quesito OBJETIVOS, o documento apresenta uma subdivisão em objetivos
psicológicos, políticos e político-militares. Nos chamados OBJETIVOS PSICOLÓGICOS aparece a luta
ideológica contra a “subversão comunista” impondo uma política de colaboração de classes (como no
Estado Corporativo Fascista da Itália) onde se fala em “desintoxicar” as mentes e estabelecer a
“fraternidade entre os bolivianos”. No caso dos OBJETIVOS POLÍTICOS o documento fala em
propagandear o governo através de um conjunto de obras públicas, bem como satisfazer reivindicações
imediatas de setores da população e “hacer ver al Pueblo que lograremos el desarrollo (...)si
11
mantenemos la estabilidad politica del país.”
Com relação aos OBJETIVOS POLÍTICO-MILITARES, o texto do documento aborda algumas
formas de se alcançar os ditos objetivos. Nesse sentido, orienta os Comités de Seguridad Nacional
tomar algumas medidas, com a orientação de: 1- Destruir a organização político-administrativa
insurgente; 2- Aniquilar as forças militares insurgentes e 3- Isolar o território boliviano de ‘países hostis”
(controle das fronteiras com o Chile, Peru e Argentina). Em seguida, se elencam as
RESPONSABILIDADES, que se dividem em clandestinas (Interferir, anular e destruir as organizações
insurgentes levando ao afastamento do apoio popular aos rebeldes) e as de “luta aberta” onde se
buscava evitar a consolidação popular de organizações revolucionárias, destruição de forças militares
insurgentes e a atuação nas zonas de influência das organizações guerrilheiras (insurgentes) através da
atuação da “Ação Cívica” e de políticas de desenvolvimento regional. Por fim, com relação a
ORGANIZAÇÃO, o documento lembrava aos setores regionais do COSENA que o mando sobre toda a
organização estava concentrado exclusivamente nas mãos do presidente da República, Hugo Banzer.
Dessa forma, na redação desse decreto secreto, que estabelecia e organizava as ações do
Comitê de Segurança Nacional, pode-se perceber que as ações da Ditadura se colocam dentro dos
ditames do que se classificou como as Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina. E também
se evidencia a responsabilidade de Banzer sobre as políticas repressivas e pelo Terror de Estado.

Hugo Banzer, a Segurança Nacional e a Democracia


Banzer seguiu tendo uma grande influência política sobre a Bolívia, mesmo após a derrocada de
seu período ditatorial nos anos 1970. O ditador manteve sua influência através da atuação política de
seu partido, a ADN (Aliança Democrática Nacionalista) conseguindo levar a eleição de Garcia Meza, em
1980, seu indicado político.Com isso possibilitou que houvesse a continuidade de seu projeto político e
que se afastasse a possibilidade de algum juízo de responsabilidade dos crimes de sua ditadura.
12
Conforme o relato de Sivak , em 1997, durante a disputa eleitoral, Banzer buscou se afastar de
qualquer vinculação com o seu período ditatorial. Apesar de ter ocorrido uma abstenção de 28,6%, que
foi maior do que a porcentagem de votos que Banzer obteve (22,2%), o cargo de presidente da
República da Bolívia foi conquistado pelo ditador. Durante o período da campanha eleitoral o então
candidato, que buscou por todos os meios evitar abordar os crimes da ditadura, teve que reavaliar e
mudar a sua estratégia após pressão vinda de algumas organizações de Direitos Humanos e da

10
SIVAK, pg 123
11
Idem. Pg 351
12
SIVAK, op cit pg 44

55
ASOFAMD (Associação de Familiares de Mortos e Desaparecidos pela Libertação Nacional) que levou
ao ar, na televisão boliviana, em abril daquele ano, um spot onde levantava as questões de
responsabilidade sobre as vítimas da ditadura.

57 asesinados de 1971 a 1978, 33 desaparecidos de 1971 a 1976, 14 asesinados en


enero de 1974 en Tolata, três militares asesinados, 37 bolivianos desaparecidos en
13
Argentina, 6 bolivianos asesinados en Argentina, 4 bolivianos desaparecidos en Chile.

O então candidato Banzer, após sofrer uma violenta queda nas pesquisas de intenção de votos,
passou a responder aos seus oponentes, buscando justificar as ações da ditadura. Dessa forma, utilizou
como argumento a incriminação das suas vítimas jogando sobre elas a responsabilidade pelas ações
repressivas que sofreram. E dessa forma, Banzer redigiu uma carta, intitulada “Mi palabra para que el
pueblo también recuerde” aos eleitores onde reafirmava as políticas da Segurança Nacional, as ações
repressivas e colocava o argumento de que havia uma “guerra” e que todos teriam responsabilidades
14
pelo que aconteceu naqueles anos, menos ele. Vejamos alguns trechos dessa carta, citada por Sivak :

Hace 30 años, América Latina enfrentaba una guerra irregular unas veces con
incursiones armadas a poblaciones civiles, otras veces con asaltos, persecuciones,
secuestros, y depredaciones de todo género a personas, instituciones y propiedades.
Fue un enfrentamiento que nos obligó a elegir entre las libertades alcanzadas, los
valores existentes o, en nombre de una ‘liberación’ extremista, sumarse a la violencia
antinacional y anárquica.(…)

Tomé una patriótica decisión para evitar que en el país se produjera posteriormente un
enfrentamiento armado mucho mayor, que nos hubiera llevado a una guerra civil de tipo
que hemos presenciado en países próximos, donde el precio de vidas fue
dolorosamente elevado y sangriento. (…)

La grave situación histórica de Bolivia, bajo la acción nociva del extremismo utópico, hizo
imperativa la fundación de un sistema de alianza política con capacidad de encaminar a
la Nación hacia objetivos concretos que permitiesen superar la grave crisis económica
de desajuste social, del vacío político, la inexistencia de la función del Estado que es la
autoridad y el riesgo en que se encontraba la misma patria.(…)

Mi experiencia de ex gobernante y de jefe político me permiten transitar con solvencia


moral y entrega patriótica, desde los umbrales de la Bolivia de la confrontación y del
conflicto en 1971 hasta la Bolivia de la concertación, de la Construcción y de la Unidad
para fortalecer el proceso democrático y participativo de 1997.

Dessa forma o ditador Hugo Banzer busca manter a sua inserção na política democrática, o que
já vinha acontecendo através da atuação do partido criado para esse fim, a ADN. Em um primeiro
momento, se percebe que existe a busca por justificar o contexto histórico do surgimento da ditadura em
1971, retratado como um momento de profunda crise e violência onde Banzer teria tomado uma atitude,
optando por utilizar a força, a violência e o autoritarismo por aquilo que seria uma causa justa, poupar a
Bolívia de uma guerra civil. Na verdade o que existia na Bolívia quando do golpe de Estado em 1971 era
o governo do general Torres, que, apesar de seus limites, havia avançado na via da ampliação de
direitos aos trabalhadores e que havia permitido a organização da Assembleia Popular em La Paz, órgão
de poder operário inspirado nos soviets da Revolução Russa de 1917 e que surgiu como resultado da
organização de defesa operária contra a agressão fascista ao governo, em janeiro de 1971. De qualquer
forma, quando setores do exército, junto dos fascistas da Falange Socialista Boliviana, a burguesia e as
oligarquias rurais, principalmente da região de Santa Cruz, começaram a organizar o golpe, a COB
solicitou armas ao governo para defendê-lo da agressão golpista, pedido esse negado por Torres.
O que o candidato Banzer, em 1997, denomina de grave situação histórica na Bolívia de 1971
pode ser visto de outra forma, ou seja, a situação histórica era grave para aqueles que tinham seus
interesses prejudicados pela atuação dos movimentos operário, indígena e estudantil de forma
independente do governo (de certa forma ameaçando o Pacto Militar-Camponês, instrumento utilizado
desde o governo de Barrientos, no sentido de dividir o movimento camponês, dificultando uma aliança
operário-camponesa e atrelando os sindicatos de trabalhadores rurais ao governo) e isso levou a
formação da aliança, instável, que apoiava o golpe, congregando o MNR, a Falange e setores do
exército.
Por fim, Banzer se apresenta como um governante experiente e que assume como necessário o

13
Id, pg 44
14
Ibid pg 46-47

56
autoritarismo e as políticas repressivas de sua ditadura e que isso seria o seu diferencial com relação
aos outros candidatos a eleição de 1997. Demonstra que seria o chefe de governo que não hesitaria em
utilizar da repressão novamente, no sentido da construção da unidade política em nome de seu projeto,
mesmo em um contexto de liberdades eleitorais.
Dessa forma, o ditador que governou a Bolívia por sete anos e se utilizou da violência do Terror
de Estado e que jamais foi julgado por isso (mesmo as tentativas de um julgamento político como o de
Marcelo Quiroga Santa Cruz, que foi assassinado em 1980 pelo ditador Garcia Meza, não levaram a um
julgamento oficial do Banzerato) pode retornar a presidência da Bolívia em um processo eleitoral em que
a sua votação foi menor do que a taxa de abstenção do eleitorado boliviano e onde grande parte dos
aptos a votar não tinha sofrido com a ditadura Banzer.
Porém mesmo o presidente Banzer, democraticamente eleito, não tardou em demonstrar que a
repressão não havia ficado no passado e seu governo se notabilizou por, novamente se utilizar das
ações de violência repressiva contra os movimentos sociais, como ficou evidente no massacre de
Cochabamba, na chamada Guerra da Água em 2000, movimento que protestava contra a privatização
das águas na Bolívia que o governo pretendia realizar, entregando esse recurso nacional indispensável à
população para a exploração de empresas multinacionais. Tudo isso era resultado das políticas ditadas
pelo Banco Mundial e que para serem aplicadas era necessária a repressão aos movimentos populares.
Assim, nesse momento, Banzer demonstrou que a face do ditador não havia desaparecido e, como
resposta aos protestos e mobilizações populares, prendeu dirigentes sindicais ,fazendo com a repressão
vítimas que chegaram a 5 mortos.
Apesar de a crescente mobilização popular contra seu governo, Banzer não renunciou, tendo se
afastado do governo apenas em 2001, quando um câncer veio a vitimá-lo e levá-lo a morte. Com isso se
encerrou a vida de um homem que, tendo sido responsável por uma ditadura cruel e repressiva contra os
trabalhadores, jamais foi responsabilizado por seus atos, podendo manipular a política boliviana por
décadas enquanto suas vítimas ainda esperam por justiça.

Referências bibliográficas:
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Boliviana. São Paulo : UNESP, 2007
COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978
GALLARDO LOZADA, Jorge. De Torres a Banzer – Diez meses de emergencia en Bolivia. Buenos
Aires: Periferia, 1972
GIL, Aldo Durán . Estado Militar e Instabilidade Política na Bolívia (1971-1978), tese de doutorado,
Campinas: UNICAMP, 2003
BAPTISTA GUMUCIO, Mariano. Breve Historia Contemporánea de Bolivia. México: Fondo de Cultura
Económica, 1996
O’DONNELL , Guillermo. Reflexões sobre os Estados Burocrático-Autoritários. São Paulo: Vértice, 1987.
SIVAK, Martin. El Dictador Elegido – Biografía no autorizada de Hugo Banzer Suárez.2ªed La Paz:
Plural, 2002

SITES:
http://www.derechoteca.com
http://www.asofamdbolivia.org/index.php?page=inicio
http://banzereternodictador.blogspot.com.br

57
11 de setembro de 1973: o golpe militar no Chile através do Jornal do Brasil.

Nicolas Mello

Introdução
No dia 21 de junho de 1970, a nação brasileira vivia em estado de êxtase. Seu selecionado de
futebol acabara de conquistar pela terceira vez o campeonato mundial de futebol FIFA, título máximo na
carreira de um jogador de futebol. Pelé era nosso maior jogador, o rei do futebol. Os brasileiros
entoavam em coro a marchinha “Pra Frente Brasil”, nada poderia parar o país. Sua economia crescia a
extraordinários 10% ao ano. Os empregos aumentavam cada vez mais. Parecia que o país finalmente
havia chegado ao lugar ao qual teria sido destinado desde seu descobrimento pelos portugueses.
Estaríamos entre os maiores países.
Porém, o preço pago por este progresso foi alto. O rápido crescimento econômico custou nossa
liberdade. No ano de 1964, o governo brasileiro sofreu um golpe. Os militares assumiram o poder sob o
pretexto da Segurança Nacional. Era necessário que se extirpasse o câncer, que era a ameaça
comunista, da sociedade brasileira. Esta era a visão organicista militar sendo repassada a sociedade
(O’DONNEL, 1985). O novo governo deveria ser rígido e repressor. E a repressão veio através de atos.
No total foram dezessete, sendo o mais importante, o Ato Institucional número 5. Realizado em 1968, ele
colocava sob censura prévia a imprensa no Brasil. A imprensa brasileira, que já havia sido reformada nos
anos 50, trocando o jornalismo de estilo crítico francês, pelo modelo Norte-americano, que separava a
notícia objetiva dos comentários pessoais, teve de se reformular. A autocensura passou a ser a nova
palavra de ordem. É isso que iremos ver nas análises posteriores de algumas das edições do Jornal do
Brasil.
Enquanto isso, um país na costa oeste da América do Sul, elegia como seu presidente um
socialista. As eleições do ano 1970, que levaram o senador Salvador Allende a presidência da República
do Chile, foram vistas como uma ameaça à ordem capitalista. Allende propôs um novo projeto de
sociedade, ao qual chamou “Via chilena para o socialismo” (AGGIO, 1993).
Mundialmente, se vivia a Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois projetos distintos, colocando
em diferentes lados EUA e URSS, capitalismo e socialismo. Era, portanto, necessário que dentro de sua
área de influência o governo norte-americano detivesse o controle dos países da América Latina. Após a
vitória de Allende, em 1970, os EUA e os setores conservadores da classe média, alta e industrial chilena
viram seus piores pesadelos se concretizarem. A única forma de salvar o capitalismo no Chile era o
golpe militar e a instalação de um governo ditatorial.
Isto ocorreu no ano de 1973, quando uma junta militar liderada pelo General Augusto Pinochet
assumiu o poder no país. Surgiu um novo projeto de sociedade, que se baseava no individualismo, na
repressão, no estado de sítio. A economia foi aberta aos capitais estrangeiros e após um período de
recessão econômica o país passou a viver seu próprio milagre econômico. Mas as mesmas medidas que
permitiram este milagre econômico causaram também a queda do regime ditatorial.

A queda da “Via Chilena para o socialismo”.


O Chile do início dos anos 70 encontrava-se dividido politicamente entre três partidos, cada um
destes representando uma camada social. As camadas conservadoras e de nível social mais elevado,
grandes empresários e fazendeiros, encontravam-se no Partido Nacional. A classe média apoiava os
Democratas Cristãos. E a classe operaria e grande parte dos intelectuais, estavam representados pelos
Partido Comunista e Partido Socialista.
Para Alain Rouquié (1984) essa diferenciação ocorreu devido à divisão entre o poder político e
econômico chileno, o que gerou um sistema representativo autônomo, dando maior estabilidade ao
sistema democrático do Chile. Isto ocorreu a partir da vitória na Guerra do Pacífico, ocorrida entre 1879 e
1883, sobre Bolívia e Peru, que concedeu ao Chile a anexação das ricas províncias do norte, ricas em
minérios. Esta vitória consolidou a unidade nacional do país, fazendo que ele se inserisse no mercado
mundial por meio da exportação de minérios explorados por britânicos, com o apoio da classe dirigente
exportadora nacional.
O Nitrato dos desertos do norte passou a ser a fonte da prosperidade nacional. Gerou-se um
estado rico, que cobrava impostos e direitos de exploração das sociedades estrangeiras pela exploração
do salitre. As classes dominantes também saíram beneficiadas deste processo. Dependia delas o

58
transporte do salitre e a estrutura comercial interna que sustentava a exploração do minério. Assim,
graças aos investimentos estrangeiros, o governo chileno isentou da maior parte das pressões fiscais as
classes dominantes.
No início do século XX o capital americano substituiu o inglês, principalmente após o termino da
Segunda Guerra Mundial ocorrida entre 1939 e 1945 (ROUQUIÉ, 1984). Graças a estes investimentos e
ao crescimento econômico do país ocorreu a expansão dos serviços públicos, integrando a classe média
à estrutura de poder.
É importante termos em vista este quadro, pois nas eleições de 1970 os partidos e movimentos
de esquerda uniram-se sob a sigla da Unidade Popular para eleger, com 36,2%, como novo presidente
da república, o senador do Partido Socialista, Salvador Allende. A união entre o Partido Socialista,
*
Partido Comunista e a MAPU , colocou em tensão o cenário político chileno, caracterizado pela
predominância do estado aristocrático. Allende pretendia implantar em seu governo o Plano Vuskovic,
que visava aumento salarial de 55%. Assim o mercado de consumo interno cresceria e,
conseqüentemente, as indústrias nacionais também. O plano previa o aumento dos gastos públicos em
cerca de 66%. Estas medidas visavam à conquista da classe média, para que a Unidade Popular
pudesse se sustentar no poder nas eleições que ocorreram em 1972. Junto a isto, segundo Voltaire
Schilling (2002), uniu-se à tomada de certas fábricas por trabalhadores comandados por setores
extremistas do proletariado que não estavam nos planos de estatizações da Unidade Popular. O mesmo
ocorreu no campo. As invasões ocasionaram a paralisação da agricultura e a alta de preços dos gêneros
alimentícios, o que piorou a situação econômica de crise instaurada no Chile, que já havia sofrido o corte
de investimentos estrangeiros, desde a eleição de Allende (GUZMAN, 1975). Internamente as classes
dominantes passaram a boicotar as entregas de produtos, paralisando, através de greves financiadas
pelos EUA, o sistema de transportes. Outra prática era a estocagem para que faltassem produtos no
mercado, fazendo com que o preço dos mesmos disparasse ainda mais. O mercado negro ilegal
aumentou, se beneficiando da falta de produtos para compra. A crise econômica retirou a já pequena
parcela de apoio que Allende possuía dentro da classe média, que se voltou em massa para as recém-
unidas direitas, Partido Nacional e Partido Democrata Cristão.
Para chegar à democrática “Via chilena para o socialismo”, Allende nacionalizou a mineração e
os setores fundamentais da produção industrial de base. Isto ocasionou o aumento do desgosto de
empresas multinacionais, que viram seus investimentos serem solapados por uma medida
governamental.
Os programas da Unidade Popular eram, uma política de maior redistribuição de renda, a
nacionalização da grande indústria (mineração e cobre), ampliação e expansão da reforma agrária e
aproximação diplomática e econômica com países socialistas e comunistas. Para Schilling (2002) foram
diversos os fatores que ocasionaram o fracasso do programa de governo da UP. Como fatores externos
o autor cita a Guerra Fria, estabelecida entre EUA e URSS ocorrida logo após o termino da Segunda
Guerra Mundial, que opôs dois projetos de sociedade distintas, a capitalista e a socialista. Para os EUA,
já preocupados com a Guerra do Vietnã (1959-1975), ter um país na América Latina em vias de se tornar
socialista, era inaceitável. Henry Kissinger, assessor do presidente norte-americano Richard Nixon,
aconselhou ao presidente que tomasse medidas frente à clara, “irresponsabilidade do povo chileno”.
Para Eric Hobsbawm (1995) a guerra fria tornou os países de terceiro mundo, incluindo os
países latino-americanos, focos de instabilidade, o que fez com que o governo norte americano utilizasse
uma forte propaganda de apoio ao seu sistema capitalista. No Chile, os inimigos do terceiro mundo eram,
a fase pré-capitalista, os interesses locais, representados pela influência estrangeira e o imperialismo
norte-americano (Ibid.). A solução era a criação de uma frente popular junto à pequena burguesia
nacional. Isto foi visto pelo governo da Casa Branca, como uma ameaça comunista, levando mais tarde
ao golpe de estado realizado no ano de 1973 pelas forças militares chilenas.
Os setores de mineração nacionalizados ocasionaram grandes perdas aos investidores norte-
americanos. O Chile passou a sofrer um bloqueio econômico informal. Cessaram-se os empréstimos
internacionais e o preço do cobre, principal produto de exportação chileno, sofreu boicote, levando a sua
queda no mercado internacional. O objetivo americano era sufocar a economia chilena para que junto
com a situação de instabilidade interna político-econômica, o golpe pelas forças militares, apoiadas pelos
EUA, pudesse ocorrer.
Internacionalmente, o Chile recebeu apenas apoio internacional de Cuba. Os outros países da
América do Sul já estavam sob regimes militares, caso de Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, Equador e
Peru. Para os setores das classes burguesas, médias e setores do exército, o exemplo da ditadura
brasileira, e principalmente do governo de Médici (1969-1974) e de seu “milagre econômico”, passou a
exercer fascínio e um exemplo de estado autoritário, anticomunista e antidemocrático.
A situação interna em meados de 1973 era menos favorável ainda. As dificuldades financeiras

*
Movimiento de Acción Popular Unitária, setor rebelde da Democracia Cristão.

59
fizeram à inflação disparar, chegando a 381,1% em 1973 (SCHILLING, 2002). Isso se uniu ao
decréscimo do Produto Nacional Bruto e a greves de algumas das bases políticas da Unidade Popular,
como os mineiros da mina de El Teniente. Ocorreram também protestos da parte dos universitários
chilenos contra os planos do ministério da educação de criação da Escola Nacional Unificada, que previa
uma educação voltada para os valores socialistas. Dois movimentos extremistas se opuseram, o
Movimiento de la Izquierda Revolucionária (MIR), que contrabandeava armas soviéticas vindas de Cuba,
e a extrema direita fascista, representadas pelo movimento “Patria y Libertad”, financiada pela CIA. A
situação era de caos social as vésperas do golpe militar. A CIA aumentou seu apoio aos setores militares
através do Projeto Fulbert (Ibid.), que previa derrubada de Allende desde 1970. O Plano previa o apoio
estratégico a assassinatos, fomento de greves e o contato entre políticos e militares de direita para que o
golpe fosse articulado.
Apesar deste quadro social, nas eleições de 1972, a Unidade Popular conseguiu seu objetivo e
*
adquiriu mais de 1/3 dos votos. Devido a uma cláusula na constituição chilena, que previa a retirada do
presidente apenas se houvesse consenso de 2/3 dos parlamentares, Allende não poderia ser destituído
do poder. Instaurou-se um embate entre o presidente chileno e o congresso, o que ocasionou a
demissão de inúmeros ministros do governo Allende.
Como nem presidente e nem povo conseguiam conter o quadro de crise social, foi necessário
que se recorresse a um poder externo as práticas de governo. Os militares passaram a fazer parte da
estrutura de governo, dando ao general legalista, Carlos Prats, o Ministério do Interior, responsável pela
repressão, e a chefia das Forças Armadas. Segundo João Quartim de Moraes (2001), a posição dos
militares, inicialmente, era a da legalidade constitucional. Graças a isto Allende conseguiu conter o
“Tancazo”, ocorrido meses antes do Golpe de 11 de Setembro. Foram colocadas na rua tropas legalistas
contra tropas golpistas.
Porém, quando Carlos Prats foi substituído pelo General Augusto Pinochet no Ministério do
Interior, o golpe começou a tomar forma. Pinochet, inicialmente um militar legalista, foi quem em 11 de
setembro de 1973 comandou as tropas das forças armadas chilenas no bombardeio ao Palácio de La
Moneda, onde Allende e alguns de seus aliados se trancaram, saindo apenas mortos.
A junta militar liderada por Pinochet que assumiu o poder no Chile tinha dois objetivos iniciais,
eram eles, o controle da ordem social e a o desenvolvimento de um novo projeto capitalista. O país
deveria sair da estagnação econômica em que se encontrava. A ditadura militar chilena se inspirou na
brasileira, que vivia o auge do “milagre econômico”. A diferença residiu na repressão. A esquerda chilena
estava mais bem organizada do que em outros países da América Latina (SADER, 1984), portanto, a
repressão teve de ser maior. É calculado que cerca de 20.000 pessoas tenham sido mortas ou dadas
como desaparecidas. Os líderes sindicais, políticos contrários ao regime, intelectuais, ativistas e
militantes, foram presos e levados para o Estádio Nacional de Santiago, onde foram identificados,
fuzilados, torturados e mutilados (SCHILLING, 2002).
Foram instituídos: toque de recolher, estado de sítio, censura de imprensa, proibição de partidos
considerados marxistas e suspensão dos outros partidos, fechamento do congresso e intervenção no
poder jurídico. A posição dos partidos políticos que apoiaram o golpe foi distinta. O Partido Democrata
Cristão, liderado por Eduardo Frei, viu no golpe a oportunidade de retirar a esquerda do poder e em
eleições futuras consolidar o poder de seu partido. Já o Partido Nacional se dissolveu, e o movimento
Pátria y Libertad deixou de existir.
A liberação das remessas de lucro, bem como a redução dos impostos, a exportação e a
liberação dos preços foram aprovados como medidas de reativação da economia (SADER, 1984). Essa
recuperação econômica foi curta e em 1974 a economia chilena já se encontrava novamente em
recessão.
Foram colocadas em prática, as medidas de 1975, entregando aos tecnocratas, “Chicago Boys”,
neoliberais instruídos por Milton Friedman da Escola de Economia de Chicago, os rumos da economia
do país. Os planos dos tecnocratas eram, o privilégio do capital financeiro nacional e internacional e a
exploração das vantagens relativas da produção chilena, privilegiando os ramos mais adequados à
exportação, como a mineração do cobre, produção de madeira, indústria do papel, agroindústria e pesca
(SADER, 1984).
Estas medidas inicialmente sofreram um revés, pois o contexto internacional era de crise. Para
Hobsbawm (1995), desde 1973 a economia mundial começou a entrar em crises cíclicas. A falta de
controle dos estados nacionais sobre a economia neoliberal gerava estas anomalias econômicas. A
solução dos governos, era a compra de tempo, esperando que os ciclos de crise passassem. O Chile, ao
abrir seu mercado, passou a sofrer as oscilações do mercado internacional. A solução encontrada pelo
governo militar foi à tomada de empréstimos e créditos fornecidos por bancos privados internacionais.
Os créditos e empréstimos acabaram substituindo as poupanças internas do governo. O grande
*
Escrita em 1925 durante a presidência de Arturo Alessandri e aprovada por meio de plebiscito. Suspensa após o
golpe militar.

60
problema, é que estes empréstimos, segundo Emir Sader (1984), eram canalizados para o crédito ao
consumo e não eram utilizados para a renovação da estrutura produtiva chilena.
Outra política adotada pela ditadura foi à privatização de empresas nacionalizadas anteriormente
pela Unidade Popular, diminuído os gastos públicos. As despesas sociais também foram fortemente
afetadas pela nova forma de estado mínimo neoliberal. As privatizações das empresas bancárias e
financeiras eram feitas através de créditos cedidos pelo governo a empresários. Isto ocasionou a
centralização de propriedades nas mãos de poucos, dando o controle do comércio exterior a estritas
empresas. Em 1975 o Chile se retirou do Pacto Andino e adotou uma nova legislação que favorecia o
capital estrangeiro.
As mudanças aumentaram ainda mais a recessão. Porém, também realizaram a reciclagem da
economia. Após algum tempo a inflação começou a diminuir. Estas mudanças, por outro lado,
prejudicaram as indústrias tradicionais chilenas, que produziam em sua grande parte para o mercado
interno.
Em 1977 já se notava um forte aumento nas exportações chilenas e conseqüentemente o
aumento dos créditos e empréstimos externos, gerando a reativação da economia chilena, que a partir
de 1979, e até 1982, passou a viver seu próprio “milagre econômico”. O consumo aumentou assim como
o endividamento interno e externo do governo. A dependência externa do Chile era cada vez maior, tanto
em financiamento como em tecnologia.
A ditadura no Chile, através de seu novo modelo de sociedade, reforçou as leis de mercado e
tentou eliminar o espírito de solidariedade social, o substituindo pelo individualismo, aumentando as
desigualdades sociais. A nova legislação trabalhista previa tempo máximo de duração das greves de 59
dias, após 30 dias, as empresas eram autorizadas a contratar outros trabalhadores para suprir a
ausência dos funcionários em greve.
Foi no ritmo do milagre econômico que foi levada a plebiscito uma nova constituição. A
Constituição de 1980 foi realizada em meio ao toque de recolher, ao estado de sítio, a censura de
imprensa, a suspensão dos partidos políticos e a proibição de reuniões públicas. Sua aprovação
institucionalizou a ordem ditatorial e a centralização do poder executivo.
A constituição previa um governo de transição de 8 anos que teria como presidente o General
Pinochet. Ao final destes oito anos uma junta militar se reuniria para a eleição de um novo presidente e a
realização de eleições para o congresso, limitado em participação e poder. Ela também confirmou a
predominância do poder executivo sobre os poderes legislativo e judiciário, sendo que, apenas o poder
executivo poderia realizar reformas na constituição. A presidência tomou caráter personalista. Para o
controle da nação eram utilizados os serviços de informação centralizados, divididos entre o Centro
Nacional de Informação, futura DINA, e o Conselho Nacional de Segurança. O CNS tinha como
representantes, o presidente, os chefes militares da marinha, exército, carabineiros, presidente do
senado e corte suprema.
A partir do ano de 1981 o milagre econômico chileno começou a oscilar e dar sinais de crise.
Iniciou-se a perda do equilíbrio que havia trazido calmaria à sociedade chilena. Os créditos e
empréstimos que antes eram impulsionadores da economia passaram a se tornar seu maior entrave. O
aumento da divida externa e interna, ressaltou a fragilidade da economia chilena frente as crises cíclicas
do mercado internacional. Inúmeras empresas começaram a quebrar e surgiram escândalos de
acobertamento de empresas bancárias e de créditos fictícias. Isto gerou a perda de credibilidade no
mercado internacional, que por sua vez fez com que os fluxos de empréstimos e créditos externos
diminuíssem. A solução encontrada pelos militares foi recorrer ao FMI. Era necessário renegociar a
dívida externa chilena, que, devido ao aumento das taxas de juros internacionais, havia quase dobrado.
A isto se somou uma forte crise financeira interna. As vendas a prazo fizeram o salário dos trabalhadores
diminuir em poder de compra e o desemprego aumentar, chegando a atingir 1/3 da força de trabalho
chilena.
A queda da ditadura militar estava desenhada, o povo passou a estratégia de sobrevivência
contra a fome, vivendo da caridade de entidades religiosas e de direitos humanos. O ensino, privatizado
anteriormente, encareceu, levando muitos jovens a inatividade. Os setores da classe média, agora
desempregados, começaram a aumentar o número de comerciantes informais nos centros das cidades.
No campo, os agricultores começaram a fugir do país ilegalmente, pois não podiam pagar suas dividas. A
principal base de apoio militar, os setores burgueses, acabam cindindo. A burguesia média se opôs à
financeira, pois não podiam pagar os empréstimos anteriormente tomados. A crise social demonstrada
pelas jornadas de protestos de 1983, mais tarde se tornou política. Em plebiscito realizado em 1988, a
ditadura militar chilena teve seu período de domínio terminado com a campanha popular do “NO”. Foram
previstas eleições para o ano de 1990, vencidas por Patrício Aylwin.

Reforma, censura e ditadura na imprensa brasileira.

61
No Brasil, o conturbado ano de 1964 se iniciou diante de uma crise que polarizou o cenário
político nacional. João Goulart, presidente da república, popularmente conhecido como Jango, sofria
fortes críticas por seu conjunto de reformas trabalhistas e de base. A UDN, partido de oposição liderado
pelo jornalista Carlos Lacerda, bombardeava Jango com críticas ao seu governo. PTB, partido do
presidente, e UDN, brigavam pelo espaço político (FICO, 2001). O país necessitava ser salvo deste caos
político e da subversão comunista, que representavam as reformas de Jango. Era necessário que um
grupo coeso e com força para tomar as rédeas do Brasil assumisse o poder. Este grupo era o militar.
Coeso, disciplinado e anti-comunista, os militares podiam oferecer aquilo que os setores conservadores
e liberais do país acreditavam que o país necessitava: ORDEM. O golpe começou a se desenhar. No dia
da mentira, 1º de abril, os militares assumiram o poder no Brasil. Jango fugiu para o Uruguai e depois
para Argentina, onde acabou falecendo, sem nunca ter voltado a sua terra natal.
Com o golpe militar concluído era necessário que se institucionalizasse o novo regime. Os Atos
Institucionais definiram a forma de governo no país, um governo fechado e repressor. Eles foram
elaborados entre os anos de 1964 e 1969. O mais importante destes atos foi o de número 5, elaborado
em 1968. Através dele, o presidente poderia fechar o congresso e a imprensa foi colocada sob censura
prévia, demonstrativo do enrijecimento do regime.
Coincidentemente, os atos pararam de ser publicados em 1969, ano em que assumiu a
presidência do país Emílio Garrastazu Médici, único general de 4 estrelas capaz de manter a união das
Forças Armadas na época (SKIDMORE, 1988). O processo de tomada de poder pelos militares havia
sido concluído. A atuação do Sistema Nacional de Informação, SNI, passou a ser mais intensa. A
repressão aumentou com a chegada da “linha dura” a presidência da república. Apesar do fim da
ameaça das guerrilhas de esquerda, já no ano de 1969, os militares acreditavam que a repressão
deveria continuar sendo forte. E assim o fez Médici. Prisões, torturas, exílios, estas eram as palavras no
dicionário dos DOI-CODIs pelo país. Nas universidades os estudantes foram calados e a imprensa
começou a se autocensurar.
O ministro da fazenda, Delfim Neto, continuou executando seus planos de rápido crescimento da
economia brasileira. Em 1970 seus objetivos eram: crescimento do PIB entre 8 e 9%, inflação abaixo dos
20% e 100 milhões a mais de dinheiro nas reservas estrangeiras (Ibid.). Esta era a formula mágica do
rápido crescimento econômico para o país. A formula também incluía incentivos tributários a grandes
empresas, de preferência multinacionais, manipulação do sistema financeiro e redução do custo de mão-
de-obra. Em outras palavras, congelamento de salários. Os resultados da formula mágica de Delfim
foram acima dos esperados. A economia do país crescia a incríveis 10%, a inflação ficou em 17% e as
reservas estrangeiras chegaram a 5 bilhões. Médici passou a ser o garoto propaganda do crescimento
*
econômico do país. A AERP utilizava jornalistas, psicólogos e sociólogos para descobrir a melhor forma
de vender o presidente. Agências de propaganda eram contratadas para a realização de documentários
transmitidos em televisores e cinemas de todo o Brasil. O filme em cartaz era o progresso econômico do
país. Os empregos aumentavam, a ameaça guerrilheira de esquerda havia sido eliminada, o Brasil havia
conquistado seu terceiro campeonato mundial de futebol. Tudo estava “as mil maravilhas”. Porém, nos
porões da ditadura, os DOI-CODIs trabalhavam a todo vapor. Com a eliminação dos guerrilheiros de
esquerda era necessário que se encontrasse outro inimigo. Ele poderia estar nas universidades, no
clero, entre os militares expurgados, jornalistas ou artistas. O órgão repressor necessitava justificar seu
salário, demonstrado na forma de eficiência no combate a subversão. Sérgio Fleury, delegado do DOPS
de São Paulo e anteriormente dirigente do Esquadrão da Morte, estava muito atarefado.
No ano de 1972, a censura aos jornais passou a ser exercida pela Polícia Federal, o que não
agradou seus donos, que se recusaram a conversar com os policiais. Em verdade, a grande maioria da
imprensa, integrante dos setores conservadores e liberais da época, apoiaram o golpe de 1964.
A partir dos anos 50 o país aumentou seu ritmo de industrialização. O segundo governo de
Getúlio Vargas, 1950-1954, e o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960, colocaram o país em
acelerado ritmo industrial. Com isso, o mercado interno de bens de consumo aumentou. Para vender
mais, era necessário o investimento em propagandas que atraíssem os consumidores (PACHECO,
2010). O meio para alcançar estes objetivos era o anuncio em jornais e rádios. Com o aumento de
verbas vindas das propagandas os jornais do país puderam se tornar mais independentes do estado,
anteriormente seu maior investidor. Nos anos 50 os periódicos entram em ritmo industrial. As notícias se
tornam objetivas e separadas dos comentários pessoais, agora realizados através de editoriais. O Jornal
do Brasil liderou a maior reforma dos jornais da época, servindo de exemplo para seus concorrentes. A
partir de 1956 foi criado um Suplemento Dominical que contava com a participação de escritores,
pensadores e artistas ligados a movimentos de vanguarda. Foram criados, ainda, o Caderno C,
classificados, e o caderno B, para artes teatro e cinema. Em 1962, sob a supervisão de Alberto Dines,
preso após a publicação do AI-5, o jornal terminou sua reforma, contendo na época editoriais políticos,

*
Assessoria Especial de Relações Públicas.

62
econômicos, de esportes, de cidades, e internacional (ABREU, 2002). As posições políticas também
começaram a melhor se delinear nesta época. Jornais partidários ao PTB e PSD se opunham aos
partidários a UDN. Por serem empresas independentes do estado, os donos de jornais costumavam ter
posições liberais e conservadoras. O sacrifício da liberdade de imprensa para que o golpe militar fosse
realizado parecia um sacrifício necessário a se pagar diante do caos político e da ameaça comunista que
assolavam o país. O que não havia sido previsto era a publicação do Ato Institucional número 5, que
determinou censura prévia as noticiais de jornais. Os editoriais políticos foram proibidos. A partir daí
aumentaram em importância os editoriais econômicos e as notícias internacionais. A economia era a
única forma de noticiar o que acontecia na vida do país. Como os jornais dependiam das propagandas
para sua sobrevivência, e o estado era o maior propagandista do regime, formou-se uma relação de
dependência entre a ditadura e os meios de comunicação, que passaram a contar com os investimentos
do estado para se modernizarem. A palavra de ordem passou a ser a autocensura. Para que não
houvesse atritos entre investidor, estado, e jornal, era necessário que se estabelecesse um equilíbrio
entre demanda e oferta. O casamento foi perfeito. Surgiram conglomerados de comunicação. Dentre
eles a Rede Globo, que, tal como uma dona de casa desempregada, necessitava das verbas de seu
marido para se sustentar. O casamento durou até o fim do milagre econômico, quando a formula mágica
de Delfim Neto começou a demonstrar alguns efeitos colaterais. O bolo, economia, que deveria crescer e
depois ser repartido, foi tomado pela gula de alguns poucos. A insatisfação aumentou com a crise
mundial do petróleo, de 1973. Em crise o estado não conseguia mais comprar o papel necessário aos
jornais. O papel, em sua grande maioria, era importado. Em 1974, foi encontrado morto o jornalista
Wladmir Herzog, que supostamente havia cometido suicídio. As críticas ao governo aumentavam, e,
após o anuncio do presidente Geisel, em 1974, de uma distenção política lenta e gradual de volta a
democracia, os jornais voltaram a poder falar da política nacional.

O golpe militar de 1973 no Chile através do Jornal do Brasil.


Consideremos agora, que um cidadão brasileiro, leitor do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, sem
um conhecimento mais profundo do que acontecia no Chile entre os anos de 1970 a 1973, acordasse de
manhã para tomar seu café e abrisse seu jornal, como de costume, e logo na capa de seu habitual
periódico se deparasse com uma estranha notícia sem manchete falando a respeito de um golpe de
estado no Chile. Quais as imagens que se formariam em sua cabeça? Qual seu julgamento a respeito do
que acontecia no Chile, se sua fonte de informações fossem as notícias do Jornal do Brasil?
É esta analise que tentaremos realizar agora, partindo da edição do dia 12 de setembro de 1973
do Jornal do Brasil. Nela, é estampado na capa uma notícia sem manchete. Após uma breve apreciação
o leitor é informado de forma objetiva a respeito do suicídio de Allende. Segundo o informado, o
presidente se matou com um tiro na boca, informações cedidas por jornalistas do “El Mercúrio”, jornal
chileno de oposição a Unidade Popular. A notícia ainda esclarece quem são os golpistas e quais seus
objetivos.

O movimento militar começou de manhã, em Valparaíso, principal porto chileno, onde


unidades de fuzileiros navais ocuparam a estação de rádio e os pontos chaves da
cidade. Logo depois, em Santiago, o General Augusto Pinochet, Ministro da Defesa, o
Brigadeiro Gustavo Leigh Guzman, da aeronáutica, o Almirante José Toribio Medina, da
Marinha, e o General César Mendonça, do Corpo de Carabineiros, constituíam uma
junta militar e exigiam a renúncia de Allende.(...) A Junta Militar justificou o levante: Pôr
fim a “gravíssima crise econômica, moral, e social do Chile”, devido a incapacidade do
governo de conter o caos, o crescimento de grupos armados e organizados por Partidos
da coalizão governamental, e ter fortalecido a luta de classes, “uma luta fratricida à
nossa formação” (O PRESIDENTE SALVADOR ALLENDE DO CHILE..., 1973)

Através do enunciado percebemos algumas informações, como, quem fazia parte da Junta
Militar, onde se iniciou o levante e qual a justificativa dos insurgentes. A luta entre os grupos MIR e Pátria
Y Libertad também são ressaltados nas justificativas. Na segunda página do jornal (JORNALISTA DIZ
QUE ALLENDE SE MATOU A TIRO, 1973), são fornecidas informações mais detalhadas sobre o golpe. A
informações sobre as últimas horas de Allende no poder, sua renúncia em deixar o cargo, o bombardeio
ao palácio La Moneda, e sobre outros presidentes que já haviam se suicidado quando depostos, caso de
Getúlio Vargas no Brasil.
Em reportagem ao pé da página (FORÇAS ARMADAS O ÚLTIMO RECURSO, 1973), os
jornalistas descrevem que não é a primeira vez que um levante militar ocorre no Chile, ao contrario do
que afirmavam os militares chilenos. Os episódios de 1810, 1890, 1932, 1970 e 1972, provam o
constante uso das forças do exército em atos governamentais. Este último, 1972, gerou a entrada do
General Carlos Pratts no Ministério do Interior, sacramentando a união entre estado e exército já no
governo Allende. Pratts, foi posteriormente substituído por Pinochet, um dos comandantes do golpe. O

63
episódio de Pratts é ressaltado na reportagem, que tem um cunho mais pessoal, uma espécie de
editorial, revelando a divisão que já ressaltamos.
Curiosamente na reportagem “Um Movimento Para a Libertação” (1973), que versa sobre o
ultimato realizado pelos militares, é pedido que os familiares permaneçam em seus lugares, dizendo:

(...) Neste país já não se aceitam atitudes violentas. Devemos acabar com as atitudes
extremistas. Informava também o comunicado “que todos aqueles que não acatassem
as ordens militares, ficariam sob a jurisdição das leis militares”.

Fato curioso à constatação de atitudes violentas naquele que seria o Regime Militar mais
violento da América Latina. Na mesma página é informado que os membros da Unidade Popular e
colaboracionistas do governo Allende deveriam se apresentar ao Corpo de Carabineiros (Polícia Militar),
ou ao exército, sob pena de detenção (JUNTA INTIMA DEPTOS DE ALLENDE, 1973).
Na famosa coluna política “Coluna do Castelo” (1973), escrita pelo jornalista Carlos Castelo
Branco, é comentado que o governo “antidemocrático” de Allende, não havia conseguido armar suas
milícias para a tomada do poder, restando para ela assumir um compromisso, assinado com o PDC, de
respeito às instituições democráticas.

As primeiras notícias sobre os acontecimentos de Santiago não permitem uma visão


clara do futuro próximo. Ainda não se sabe se os militares, imbuídos até há pouco de
espírito democrático e de respeito pelas instituições civis, convocarão imediatamente
eleições que permitam a revisão popular dos erros cometidos em 1970.

A “democracia” do regime militar chileno durou até o ano de 1990. Em seu nome, e em nome da
Segurança Nacional, foram assassinadas, torturadas e exiladas milhares de pessoas.
.A edição também trás as causas da queda de Allende (AQUEDA DE ALLENDE: AS CAUSAS, 1973).
Foram destacados a “Via chilena do socialismo”, os projetos de estatizações, e de expansão do mercado
interno de consumo de bens através do aumento salarial dos trabalhadores chilenos. Por outro lado, é
demonstrado os insucessos da administração da Unidade Popular, o aumento da inflação e a falta de
produtos nos mercados, além dos boicotes ao cobre chileno por parte do EUA, o que fez com que seu
preço caísse no mercado internacional. Apenas não foram noticiados os boicotes dos comerciantes de
classe média na venda de produtos, e o mercado negro que se formou devido a esta estratégia.
A repercussão internacional apresenta de forma clara os dois projetos de governo opostos no
mundo. De um lado EUA e de outro URSS. A reportagem diz:

Entretanto, fontes diplomáticas norte-americanas disseram que o reconhecimento da


Junta Militar por parte dos Estados Unidos é iminente e se trataria de uma simples
formalidade, uma vez que o novo governo controla a maior parte do país. (...) A agência
soviética Tass informou de Moscou que tinha ocorrido “um motim militar reacionário
contra o governo legítimo da República” e afirmou que “os rebeldes pediram a renúncia
do presidente Salvador Allende, mas que este expressara sua determinação de
defender o regime democrático a qualquer preço. (EUA AGUARDAM DEFINIÇÃO PARA
FALAR, 1973)

Os EUA, apoiadores do golpe, viram apenas como uma formalidade o golpe chileno, enquanto o
governo soviético o viu como um motim ilegítimo (VIZENTINI, 1990).
No Caderno B, foi destacado a vida de Allende. Nele encontramos sua infância, seu ingresso na
faculdade de medicina e seu engajamento político desde a vitória no Diretório Estudantil da escola
(ALLENDE: UM VIDA DIFÍCIL PELOS CAMINHOS LEGAIS, 1973).
Nos dias seguintes foram noticiadas a instalação do Regime Militar no país. A repressão (JUNTA
COMEÇA A ESMAGAR OPOSIÇÂO NO CHILE, 1973), e os focos de resistência (EPÍLOGO VIOLENTO,
1973), demonstram o derramamento de sangue no Chile. Os setores de resistência são demonstrados
como um grupo de minoria que mais cedo ou mais tarde tenderiam ao confronto violento para a tomada
de poder. A culpa é creditada a Allende, que os teria armado e incitado. Apesar de este sempre defender
os caminhos legais e constitucionais para a Via Chilena do Socialismo. Manifestações contrárias e a
favor do golpe pelo mundo também são demonstradas (PROTESTOS PREDOMINAM NA A. LATINA E
NA EUROPA, 1973). As relações entre Brasil e Chile, antes frias devido ao governo socialista de Allende,
voltaram a esquentar. Até o dia 13 de setembro o governo brasileiro ainda aguardava para reconhecer o
Regime Militar chileno. No dia 14 de setembro foi noticiado que a Junta Militar controlava todo o Chile,
destacando a reconstrução que aconteceria no país (JUNTA ASSEGURA CONTROLE DA SITUAÇÂO
NO CHILE, 1973). O cimento a ser usado para essa reconstrução seria a repressão e a abertura de
mercado aos capitais estrangeiros. O bolo chileno, economia, agora poderia crescer, e, como a exemplo
do Brasil, ser aproveitado por alguns poucos, em uma festa de aniversario exclusiva, onde apenas

64
convidados ilustres poderiam entrar.

Conclusões
Retomando as perguntas realizadas anteriormente com relação ao leitor do Jornal do Brasil no
ano de 1973: Quais as imagens que se formariam em sua cabeça? Qual seu julgamento a respeito do
que acontecia no Chile, se sua fonte de informações fossem as notícias do Jornal do Brasil? Chegamos
à conclusão de que o leitor teve possibilidade de avaliar alguns lados da questão.
Primeiramente, o suicídio de Allende. As notícias creditadas a sua morte, ajudaram a criar uma
aura de mártir no imaginário coletivo da população. Assim como Getúlio Vergas no Brasil em 1954,
Allende permanecera no imaginário da América do Sul, como um símbolo da luta a favor da liberdade e
da legalidade. Outro ponto a analisarmos, é a vinculação de caráter econômico-político das reportagens.
A crise política e econômica foi o principal mote das reportagens, que em momento algum citam as
conquistas alcançadas pelos trabalhadores e populações menos favorecidas do Chile. Os apoiadores de
Allende são vistos como uma minoria que queria dominar o país. Uma ditadura de uma minoria proletária
e sem organização. O que alimentou, e alimenta, até hoje o imaginário da população a respeito das
disputas políticas de grupos de esquerda. Ao invés de estas discordâncias serem vistas como um
demonstrativo da democracia, elas são vistas como brigas internas de um grupo sem coesão e
desorganizado.
Podemos notar, também, que a via do golpe militar chileno, era admitida como uma possibilidade
de volta a ordem e estabilidade no Chile. Os salvadores da pátria chilena, exército, estavam ali quando
seu país necessitou. E para o salvar pediam apenas uma coisa em troca, a liberdade de seu povo. Como
um pai que diz a seu filho que lhe obedeça cegamente, pois ele é mais experiente e apto a resolver uma
determinada situação, os militares do Chile tomaram o poder e disseram ao povo chileno que se calasse
e o obedecesse. Eles tinham o remédio para salvar o país. Porém, o remédio deixou seqüelas sentidas
até hoje. O Chile ainda engatinha no processo de catarse dos fantasmas da ditadura. Um silêncio velado
cerca o assunto. A participação do povo, democrática, na política e rumos da nação apenas será atingida
depois que se realize este processo de exorcização dos regimes de Segurança Nacional que assolaram
a América do Sul a partir da década de 60. A participação política ainda é estranha ao povo depois de
passados aproximadamente 20 anos do fim das ditaduras.

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65
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66
II – Memórias e Ditaduras: aproximações do
passado

67
68
A atuação política de oposição em um pequeno município do norte gaúcho durante o
regime civil militar: memórias de Arude Gritti.

1 2
Fernanda Pomorski dos Santos e Gerson Wasen Fraga

Resumo: O objeto deste artigo reside nas memórias de Arude Gritti, político atuante no município de
Mariano Moro, norte do estado do Rio Grande do Sul, durante o regime civil-militar brasileiro (1964-
1985). Vinculado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Arude foi eleito por duas vezes vereador
e prefeito, mantendo até hoje inserção na vida pública como militante partidário. Através de suas
lembranças, colhidas em entrevista, é possível perceber como a situação do período permeava as
relações pessoais e os espaços de sociabilidade em uma cidade pequena e afastada dos grandes
centros urbanos, bem como algumas das estratégias de intimidação política utilizadas por parte do
aparato repressivo naquela localidade.
Palavras-chave: Memória – Política partidária – Sociabilidade – Município de Mariano Moro

Abstract: The object of this paper lies in the memories of Arude Gritti, political operative in the town of
Mariano Moro, north of Rio Grande do Sul state, during the Brazilian civil-military regime (1964-1985).
Linked to the Brazilian Democratic Movement (MDB), Arude was twice elected alderman and mayor,
keeping actually insertion in public life as a militant supporter. Through their memories, gotten in an
interview, you can see how the situation of the period permeated personal relationships and socializing
spaces in a small town and away from large urban centers as well as some of the strategies of political
intimidation used by the apparatus repressive in that locality.
Keywords: Memory – Party politics – Sociability – Mariano Moro Town

Os fenômenos históricos podem ser percebidos de múltiplas maneiras, conforme a posição do


observador. Com efeito, as impressões individuais escondem e/ou revelam experiências que, inseridas
nos grandes processos, apresentam a especificidade de quem guarda na memória o olhar que um dia
3
atravessou – e que certamente ainda atravessa – o “mar agitado da História”.
Tal travessia por vezes revela os traços remanescentes dos grandes processos históricos,
dotados, em cada homem ou mulher, de matizes próprios: a convicção pessoal de quem buscou a
liberdade coletiva; o indivíduo isolado em meio à crise social; as marcas distintivas, expressas em
cicatrizes físicas ou emocionais. Por vezes, estes signos tomam morada na memória, restando ocultos
mesmo ao olhar mais atento. Perdem-se no somatório das coletividades e perecem com o próprio
indivíduo ao fim de sua existência física. Não raro, tais memórias, quando instigadas, apresentam o
indivíduo diante da macroestrutura, seja do Estado, da economia e/ou dos próprios ditames sociais, sem
que isto signifique necessariamente a perda da dimensão coletiva.
O objeto deste pequeno trabalho reside em um relato de memória, tendo como pano de fundo a
ditadura civil-militar brasileira. Arude Gritti, político vinculado ao MDB durante o regime de exceção, foi
vereador e prefeito em um pequeno município do norte gaúcho. Ali, na arena onde todos se conheciam
e as relações pessoais eram cotidianamente perpassadas por laços de pessoalidade, Arude
experienciaria, em sua atividade política e em seu cotidiano, a ditadura de uma forma muito particular. Se
a distância dos grandes núcleos urbanos minimizava as chances da materialização dos horrorres das
prisões e calabouços, era nas relações pessoais que o quadro político nacional iria se manifestar,
levando a um complexo jogo onde os sentidos contrários conviviam com as atividades prosaicas de um
homem do campo, como fazer seu gado compartilhar o mesmo campo de pastagem com o rebanho de
seu opositor.
Conhecido em sua comunidade por suas posições democráticas, Arude Gritti acabou sendo
processado. O motivo que desencadeou o processo – mais tarde arquivado – lhe é até hoje uma
incógnita. Tal qual na obra de Kafka, o cidadão foi acionado juridicamente pelo Estado, materialização
máxima da coletiviadade, sem que lhe fosse esclarecido o real motivo da ação. Arude desconfia de seus

1
Formação / Instituição: Discente do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS), campus Erechim.
2
Formação / Instituição: Doutor em Historia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor
do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim.
3
A expressão é de um poema de Maiakovski.

69
pronunciamentos na câmara de vereadores local, embora não tenha certeza. O motivo exato lhe
permanece um mistério. Sua filha, professora univesitária de História, busca hoje os autos do processo,
sem conseguir encontrá-los. Nada disto, porém, abala sua convicção na justeza de sua causa e de sua
atuação política, da qual ainda hoje não se afasta, embora restrito à condição de militante. Em suas
memórias, os nefastos anos da ditadura apresentam uma coloração própria, de um homem ligado à sua
pequena comunidade e sua família, mas também aos valores universais da liberdade e da democracia.

Das condições da entrevista.


A entrevista com Arude Griti foi realizada no dia sete de fevereiro de 2013, na residência de sua
filha, a professora Isabel Rosa Gritti, e teve a duração aproximada de uma hora. O entrevistado, nesta
ocasião com setenta e sete anos de idade, teve a companhia da filha e da esposa durante a entrevista,
que constantemente serviam como incentivadoras da memória, relembrando temas e passagens de sua
vida para que este desenvolvesse a narrativa a partir de suas próprias lembranças. A fala de Arude
reflete bem sua origem ítalo-gaúcha, com o sotaque carregado típico da região norte do Rio Grande do
Sul.
Algumas das transcrições aqui apresentadas sofreram pequenos ajustes, para uma melhor
compreensão por parte do leitor. Evidentemente, tivemos o cuidado de que estes fossem mínimos, sem
interferir no sentido da narrativa. A pedido do entrevistado, alguns nomes foram suprimidos, por se
tratarem de pessoas ainda vivas.
Sabemos que o trabalho com História Oral demanda bem mais do que apenas uma entrevista.
Desta forma, alertamos para o fato de que este texto, embora aponte para alguns caminhos conclusivos,
deve se integrar futuramente ao desenvolvimento de outras tantas pesquisas sobre a ditadura civil-militar
no norte gaúcho, especialmente nos pequenos municípios, onde a estrutura produtiva calcada no
minifúndio impunha laços de proximidade pessoal. Não se trata, portanto, de um trabalho que se esgote
em si mesmo, mas de um primeiro passo em direção ao que acreditamos ser um campo de pesquisa
ainda pouco explorado e que, por trabalhar com a memória de seus protagonistas, demanda certa
urgência.

O cenário de nossa narrativa.


Com a grande demanda de imigrantes europeus que vinham para o Brasil, as antigas colônias,
localizadas na região do Rio dos Sinos e de Caxias do Sul, já não comportavam o número crescente de
pessoas. A solução foi a ocupação da região norte do estado, dando origem à formação de pequenas
propriedades no norte gaúcho no final do século XIX e começo do século XX. Esta foi uma das últimas
regiões do estado a ser colonizada, desencadeando conflitos por terras entre colonos migrantes,
caboclos e indígenas que já habitavam as terras do Alto Uruguai, local onde mais tarde formar-se-iam
cidades de pequeno e médio porte.

A colônia Erechim foi uma das últimas a serem ocupadas no estado. Dois motivos
colaboraram para o fato: situar-se mais distante do centro de ocupação – a estância – e
da capital – Porto alegre, e por seu relevo ser bastante acidentado, especialmente na
4
porção norte, junto ao vale do rio Uruguai, sendo, assim, pouco atrativa ao latifúndio.

A cidade de Mariano Moro é um dos pequenos municípios procedentes deste movimento


migratório, junto a inúmeras outras pequenas comunidades, cuja renda e economia derivavam
principalmente da agricultura e da pecuária, e que também sofreram as coibições pelos anos de
repressão.
A vida longe dos grandes centros urbanos sempre apresentou peculiaridades, e constantemente
nos vemos presos a estereótipos ligados ao habitante destas localidades (o “colono” de fala estranha,
conservador, com pouca instrução mas esperto para os negócios). Assim, não percebemos que cada
pessoa vivencia os acontecimentos do dia a dia de forma única, e que as pequenas mudanças em seu
cotidiano podem representar as minúcias muitas vezes esquecidas pelas grandes interpretações
históricas. O contexto político, econômico e social vigente nos anos de repressão repercutem também
nestes pequenos núcleos urbanos e o cotidiano do homem do campo é alterado, as vezes de maneira
sutil, mas sem deixar de ocasionar transformações na sua maneira de pensar e de conviver com seus
pares.
A força repressora do Estado muitas vezes se fez presente nos locais de convívio. Outras vezes,
seus ideais foram assumidos por instituições que operaram como instrumentos de controle social.
Preocupada em garantir a legitimidade de suas ideias, a igreja Católica, que assumiu diferentes papeis

4
ZANELLA, Anacleto. A trajetória do sindicalismo no alto uruguai gaúcho 1937-2003. Passo Fundo: UPF,
2004, p 26.

70
diante do regime cívico-militar, exercia uma influência muito grande na formação de opinião de seus fieis.
Assim, nas pequenas comunidades do interior do Rio Grande do Sul, locais antes destinado a encontros
comunitários, confraternizações e festividades religiosas tornam-se palcos potenciais de disputas
políticas, de combate à ação comunista (ou àquilo que era percebido como ação comunista) e ao
crescimento do movimento de oposição, que deixava as lideranças católicas apreensivas e temerosas
com a possibilidade de penetração de novas ideologias. Utilizando-se do prestigio que detinham nas
pequenas localidades, os padres católicos se valiam de sua autoridade para disseminar suas opiniões
políticas, geralmente favoráveis ao sistema vigente.
É preciso ressaltar também as relações interpessoais existentes nas pequenas comunidades do
interior brasileiro. A proximidade física em meios relativamente isolados faz com que o grau de
colaboração entre elas se torne mais forte e significativo em comparação a muitas das relações pessoais
nos grandes centros urbanos. Esta proximidade por vezes coloca lado a lado pessoas com posições
políticas diferentes, sem no entanto causar-lhes constrangimentos ou mesmo apatia.
No cenário se enquadra nestas características típicas das pequenas cidades do interior gaúcho.
5
Com cerca de quatro mil habitantes em 1970 (hoje possui pouco mais de dois mil e duzentos) , Mariano
Moro emancipou-se em 1966, deixando de fazer parte do município de Erechim. Contudo, a distância
dos grandes centros não impediu a formação de lideres políticos capazes de questionar as ordens
impostas pelo regime. Assim como os braços da repressão, as formas de resistência também
alcançaram todos os níveis sociais, fazendo-se presente nos fatos mais simples do cotidiano urbano ou
rural.
Surgiam assim as lideranças locais, capazes de ver além das limitações sociais e das
dificuldades impostas pela distância dos grandes palcos para o embate político. Para estas figuras, a
possibilidade de alcançar melhorias para a comunidade estava na organização coletiva, onde
despontavam figuras que, dentro das particularidades dos pequenos municípios, divididos entre a vida
privada e pública, procuravam combater os desmandos dos anos de repressão. Esta, por sua vez,
também encontraria os caminhos para que seus aparatos de intimidação e vigilância funcionassem
nestas pequenas localidades.

O relato de Arude Gritti sobre sua experiência política.


Arude Gritti nasceu em 1935, filho de um casal de agricultores, em Mariano Moro, então distrito
de Erechim. A localidade se emanciparia em 1966 e, aos 32 anos, Arude seria um dos primeiros
vereadores eleitos no novo município, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
A inserção na vida pública não foi obra do acaso. Mesmo com as limitações que um pequeno
município recém-emancipado no norte gaúcho impunha em termos de acesso à informação, Arude
mantinha-se a par das discussões políticas que então movimentavam o país. Assim, a escolha pelo MDB
dentro do sistema bipartidarista imposto pelo Ato Institucional nº 2 (AI-2) seria uma decorrência de
admirações que já trazia desde antes de sua inserção na política local e da consciência quanto à
necessidade de reformas estruturais no país. Em outras palavras, Arude possuía uma leitura do Brasil
para além do espaço a seu redor. “Eu digo que para mim houve o Getúlio e o Jango, que foram os
6
melhores presidentes, a não ser os atuais agora que estão, né”.
Esta percepção da realidade nacional ganhava ênfase quando contrastada à ação do grande
palanque que, à época, existia em Mariano Moro: o púlpito da Igreja. De lá, o pároco local, em
consonância com o discurso oficial daqueles anos, alertava seus fieis sobre os riscos que a penetração
comunista, barrada pelo regime de exceção, traria para o país.

A população do interior, o nosso lugar, muitas vezes tu acompanhava pela própria igreja,
o padre, porque o ouvia falar que achava que era comunismo (…). As pessoas com
pouca instrução, eles acompanhavam o que o padre falava na Igreja, só que eu muitas
vezes saía fora da igreja e discutia com a turma, né, que não era isso aí que ele falava.
Que eram as reformas de base, que deveriam ser feitas. A gente acompanhava tudo.

Perceba-se que, a partir das memórias de nosso entrevistado, não é dificil traçar alguns
elementos do espaço onde sua história é narrada: uma cidade pequena e afastada dos grandes centros
urbanos, economicamente estruturada sobre a produção familiar, onde os hábitos comunitários e

5
http://www.marianomoro.rs.gov.br/portal1/demografia/mu_dem_pop_total.asp?iIdMun=100143231,
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=431200#. Acessos em 02 de março de 2013.
6
Entrevista com Arude Gritti, cedida a Gerson Wasen Fraga e Fernanda Pomorski dos Santos, no dia sete de
fevereiro de 2013. A gravação encontra-se sob guarda do Laboratório de História Oral e Linguagens
(LABHORAL) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. A fim de não sobrecarregar o
texto com notas desnecessárias, todas os excertos que se seguem, retirados da fala do entrevistado, remetem a
esta entrevista.

71
agropastoris ditam o ritmo da vida cotidiana. Um espaço de pessoas simples, onde o altar religioso se
constituía em um importante local de poder. Neste microcosmo, tal qual em outros tantos lugares da
América Latina, o conservadorismo religioso, avesso aos novos ventos que soprariam em outras tantas
paróquias a partir da Teologia da Libertação, andaria de mãos dadas com as Doutrinas de Segurança
Nacional, associando discursivamente o golpe civil militar a um movimento de defesa do cristianismo, da
pátria e da propriedade privada, atuando, por extensão, como instrumento de controle social afinado ao
regime.
Neste espaço onde Arude se inseria na vida pública, também a repressão não tardaria a chegar,
ainda que atuando de formas distintas conforme o alvo. Em alguns casos, configurava-se o tradicional
sistema de ameaças e agressões típico dos estados coronelistas.

Até o responsável pela Brigada Militar, que era o ...Era uma perseguição forte, era forte.
Inclusive nós, que éramos do MDB (…) ele ameaçava até de revólver. A própria polícia,
o próprio policial. E isto é triste. Teve gente que apanhou por causa de política,
perseguição. Não tinha o que fazer, porque eles tinham tudo na mão. Então nós
passamos uns anos “meio pesadote” lá.

Na memória de Arude Gritti, não há o registro de que sua pequena cidade tenha sentido o medo
da delação, do desaparecimento forçado ou do assassinato a mando do Estado. Isto, é claro, pode ser o
resultado de uma impressão pessoal, construída a partir de seu próprio olhar. Mas também pode ser
entendido como fruto dos mecanismos que a repressão encontrou ou julgou adequados para aquele
espaço específico. Neste sentido, a própria “cultura repressiva” dos agentes legais poderia encontrar nas
agressões toscas – entenda-se sem o “refinamento científico” das torturas – e nas ameaças sua forma
cotidiana de atuação, o que valeria também para o delito de comunismo.

Eu conheço todo mundo, sempre conheci todo mundo (…) tem uns companheiros que
apanharam, até que sofreram por causa da... (…) nunca fui a favor da... não vou dizer
“revolução”, que para mim foi um golpe, porque não tinha nada de comunismo.

Arude, no entanto, não foi agredido. A forma que o aparato repressivo encontrou para lhe
intimidar foi através de um processo motivado por algo que nunca lhe foi explicado. De certo, apenas a
desconfiança de que a peça jurídica seria motivada pela sua atuação política junto à comunidade de
Mariano Moro. “Veio aqui de Erechim, da Brigada, me entrevistar lá. Nem lembro mais o que aconteceu.
(…) Eu não fiz nada de mais. Eu defendi as minhas convicções e pronto!” Este fato nos leva a pensar
nos motivos pelos quais um indivíduo receberia, naquele cenário e contexto, uma atenção especial por
parte do aparato repressivo. Certamente, pesou o fato de Arude se constituir em uma jovem liderança
dentro do município, conhecido por todos e ostentando um matiz político oposicionista. Podemos cogitar
ainda que sua atuação, em que pese o caráter de oposição à Aliança Nacional Renovadora (ARENA),
não ultrapassasse o âmbito local, não representando assim uma ameaça substancialmente visível ao
regime de exceção. Contudo, há que se considerar ainda um elemento possível que representaria um
diferencial para Arude: uma certa aura intelectualizada em um meio marcado pelo pouco acesso à
informação. Com efeito, Arude não apenas era um jovem conhecido na política local, mas também era –
e ainda é – leitor assíduo de jornais, objeto que, à época, sofria o obstáculo das inúmeras dificuldades
impostas pelo sistema de transportes.
As lembranças de Arude e de sua família indicam que o processo deve ter transcorrido entre
1969 e 1972, aproximadamente. Foi Isabel, filha de Arude, que certa vez viu o conjunto dos documentos
no fórum de Gaurama, onde fazia pesquisas para seu doutorado. Na pressa de sua pesquisa e, naquela
época, sem ter à sua disposição uma máquina fotográfica digital, a pesquisadora resolveu deixar para
ver a documentação em outra oportunidade. Alguns anos depois, quando retornou para o Fórum a fim
consultar o processo, descobriu que este não mais se encontrava lá, e que possivelmente havia sido
incinerado. A informação dada à pesquisadora foi a de que este havia sido o destino de uma série de
processos outrora sob guarda do fórum, nos quais o réu havia sido absolvido.
Cria-se assim uma situação em que o agente passivo no processo é privado de, a qualquer
momento, poder buscar o registro de sua própria história. Para além disto, os indícios relativos à peça
jurídica, colhidos a partir da fala do entrevistado e de sua família, apontam para uma ação arbitrária e
intimidatória. A se confirmar, o descarte em tal situação não representa um ato em benefício ao réu
absolvido, mas sim a imposição de novas barreiras para que as arbitrariedades relativas ao período do
regime civil militar sejam desveladas pelos historiadores e pelos próprios interessados.

Eu não sei porque eu fui processado, porque eu não dei um tapa para ninguém, não fiz
nada de mal. Só se for o que saiu da câmara, que aquilo é que eu quero ver. Sem isso
ou aquilo, né. Mas o que tu vai dizer nessas horas. Que bom seria se fosse achar lá,
para ver os documentos, para ver qual que foi o motivo que foi. E afinal terminou por

72
assim e...

A deflagração do regime Civil Militar de 1964 abalaria as estruturas sociais de Mariano Moro,
separando vizinhos e amigos que até então desfrutavam de relações comuns. Em um local de poucos e
tradicionais espaços de sociabilidade, as transformações políticas remetem mesmo ao rompimento de
práticas cotidianas. Neste ponto, Arude recorda-se em especial da figura do primeiro interventor do
município, nomeado logo após a emancipação em 1966. Em sua narrativa, ambos eram amigos,
companheiros de jogos até o momento em que o golpe trouxe para suas relações o ingrediente da
oposição política. A partir de então, o convívio social passa a tomar outros rumos, conforme se instituiam
as relações de poder.

O mais culpado ainda eu acho que era o interventor. Nós ia jogar nossa canastra, nosso
pontinho, tudo junto. Depois começou... aí era mais difícil. Aí ficou uma relação mais
tensa e... e não tinha também como, porque, eles queriam intimidar e fazer, e eu
defendia meus amigos, meus companheiros, né. Até inclusive um que já morreu, queria
saber porque deram uma surra de laço nele uma época, porque ele era meu
companheiro de... E não sei porque que bateram. Só por causa de política, né, porque
ele era meu companheiro, eleitor meu daqueles de... de firme mesmo, que não tinha
medo.

O rompimento ou enfraquecimento de relações pessoais, tendo questões políticas como fator


determinante não é, obviamente, uma exclusividade deste caso. Nos interessa antes perceber que nesta
situação específica, o alinhamento à ARENA ou ao MDB poderia muito bem funcionar como uma
justificativa para que questões de ordem pessoal fossem resolvidas através da violência. No caso do
amigo não identificado, a intimidação pura e simples é seguida pela prática do espancamento,
demandando, muito possivelmente, uma ação orquestrada e previamente planejada. Mais uma vez,
vemos antigas práticas coronelistas sendo retomadas na região, no bojo do Golpe de 1964. O caráter de
ação planejada ganha força, no relato, pelo fato de não ter ocorrido dentro da delegacia local, mas sim
em uma estrada qualquer, envolvendo diversas pessoas em conluio para agredir apenas uma.
Como citado anteriormente, Arude passou imune a este tipo de intimidação, em que pese o fato
de seus correligionários e eleitores mais próximos tornarem-se vítimas potenciais da violência física das
autoridades da região. Mais uma vez, não há na memória do entrevistado referências a atos de extrema
violência perpetrados diretamente contra sua pessoa. “Que eles queriam me mostrar de dedo sim, mas
que eles queriam me ameaçar com arma não”. Toma força, desta forma, a hipótese de que Arude era
percebido como um diferencial em relação ao cidadão médio de Mariano Moro, o que lhe servia como
um escudo diante da possibilidade da agressão física. A ameaça legal, escondida sob a forma de um
processo não devidamente explicado deveria cumprir então esta função, intimidando ou, quiçá,
silenciando o jovem político oposicionista.
A polarização da política neste cenário afastado atingiria igualmente as relações pessoais que
extrapolavam o campo da amizade. Contudo era possível estabelecer acomodações, de forma a
estabelecer um limite entre a fidelidade partidária e vida privada. Ao mesmo tempo, hábitos ligados ao
cotidiano ou à sociabilidade, como o jogo ou apostas, poderiam se imiscuir com as questões políticas. A
narrativa a seguir apresenta vários destes elementos de forma simultânea, possibilitando inclusive
aventarmos a transposição da fidelidade partidária para a (in)fidelidade familiar diante da restrição de
possibilidades imposta pelo bipartidarismo.

Seu FR. Ele era contra nós. Até nós temos umas terras junto. Ele é casado com uma
prima irmã minha. Naquele tempo era no bigode. “Aquela lá é tua”. Nós tínhamos um
gado junto cada um. Até tinha umas vacas e uns touros de raça que eram juntos. Na
minha eleição e dele, o F. mandou jogar, “Se tu perde eu pago o gado”. E jogamos nos
votos meus e nos votos dele. Só que ele assim, contra mim assim, ele era do outro lado,
mas não era... não dá para... Então deu eleição, eu fui o mais votado do MDB, 106
votos. Do meu partido fui o mais votado. E ele chegou em último lugar com 53. Dobrei a
votação bem certo dele. Porque lá na urna, os tios dele, os cumpadres, os cunhados...
tudo para mim, não votavam para ele.

Arude lembra ainda de outra forma que foi utilizada para tentar lhe retirar do meio político de
Mariano Moro: a transferência de sua esposa, professora no município, para alguma outra localidade na
redondeza, ou mesmo para escolas mais afastadas. “Eles queriam me mandar embora para mim não
incomodar mais, que nós temos força. Não tem a criança que eu não conheça”.
O exercício da política de oposição ao regime em Mariano Moro, em que pese esta ser uma
localidade de pequeno porte, não era algo a ser feito despreocupadamente, mesmo por uma figura
popular como “seu” Arude. Em épocas de campanha eleitoral, os riscos e ameaças aumentavam,

73
exigindo por vezes um certo resguardo estratégico por parte de quem se encontrava na linha de frente.
Destes momentos, subsiste ainda na memória a lembrança do sentimento então vivido.

Tinha um pouco de medo, porque tu sabe, não é fácil. Tem horas que na campanha, nas
últimas duas ou três noites eu não saía de casa. Os meus companheiros que iam,
porque tu sabe como é que é. Sempre tem aquele, né? (…) E um dia, nós, sentados lá
fora, no bar do Ireno, uma tarde conversando uns com outros, aí então lá conversando
que ele [o irmão do interventor do município] era candidato também. (…) E ele me
ameaçou, puxou um revólver.

As situações de ameaças e confrontos armados em períodos eleitorais são, infelizmente,


práticas ainda presentes em muitos dos distantes rincões do Brasil, alicerçadas sobre o poder local e
pelo sentimento de impunidade. Neste sentido, talvez a lembrança acima citada não devesse causar,
necessariamente, surpresa. O que queremos, contudo, é lembrar que tal situação se fazia acompanhar
pelas especificidades do período em questão, onde o poder do Estado participava do jogo político,
podendo o aparato repressivo vir a ser utilizado em qualquer momento. Como seu Arude lembra,
retomando o sentimento que constantemente lhe acompanhava na vida política: “não era fácil fazer
oposição, porque hoje tu faz oposição sem medo”. O tema acabaria sendo retomado em outra passagem
de seu depoimento, explicitando um pouco mais os liames que uniam o poder de Estado e o jogo
político, mesmo na pequena Mariano Moro.

A polícia, a Brigada, porque... acho que nem Polícia Civil tinha lá no começo, a polícia,
eles eram do lado deles. Eles cumpriam as ordens deles lá, e tu não tinha o que fazer.
Tinha que me cuidar, claro, que não facilitava muito, porque eles para dar um tiro é fácil,
depois diz que tu agrediu.

Desta forma, a vida política em Mariano Moro refletia, em pequena instância, muitas das
vicissitudes que se manifestavam em nível nacional, adaptando-as contudo as características daquele
cenário específico. A intimidação, o medo e as agressões físicas integravam o rol das possibilidades para
aqueles que ousassem participar das disputas eleitorais sob as regras impostas pelo regime civil-militar.
E neste cenário, onde mesmo as relações pessoais mais próximas poderiam ser permeadas pelo
alinhamento à ARENA ou pela opção oposicionista (MDB), a ausência de regras definidas permitia que a
tentativa de enquadramento aos adversários do aparato governista se revestisse de formas um pouco
mais refinadas, quando assim fosse necessário. Tal como no processo movido contra o senhor Arude
Gritti.

Considerações Finais
A passagem dos anos não retirou de Arude Gritti o gosto pela participação na vida político-
partidária. Aos 77 anos, o ex-vereador e ex-prefeito de Mariano Moro pelo MDB milita nas fileiras petistas
do norte gaúcho, muito embora sem ocupar cargos eletivos, uma vez que sua família considera que “ele
já fez sua parte”. Da mesma forma, permance em sua memória as lembranças do tempo vivido sob o
regime civil-militar, sob o qual não perde o agudo senso crítico: “Esse golpe, essa 'revolução' que dizem,
foi o atraso do nosso Brasil. Isto não resta dúvida nenhuma, porque aí calou a ideia de gente nova, que
podia trabalhar, crescer na vida”.
Em suas memórias não há espaço para a mágoa. Os dias longes da família, a sensação de
insegurança, as ameaças sofridas por si próprio ou por seus companheiros a reproduzir práticas de uma
política coronelista, nada disto lhe retira a convicção de que aquela era uma luta necessária, um
momento particular de nossa História diante do qual não havia como permanecer calado, ainda que os
espaços para expressar sua opinião de forma livre fossem restritos. “Eu vejo que foi um atraso grande
em tudo. Primeira coisa a liberdade de expressão, que hoje tu pode te expressar que tu tem, e antes tu
não tinha”.
A lamentar, somente o fato de nunca ter sabido o real motivo pelo qual foi movido um processo
contra sua pessoa naquele período. Ainda que o mesmo tenha sido arquivado e que, no fim das contas,
não tenha produzido maiores resultados sobre sua vida pública, resta-lhe a sensação de que um direito
elementar lhe tenha sido suprimido.
E, ainda, uma certeza: “eu não queria mais voltar naqueles tempos. A grande verdade é esta”.

Fontes:

74
Entrevista com Arude Gritti, cedida ao Laboratório de História Oral e Linguagens (LABHORAL) da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. A gravação encontra-se sob guarda
desta instituição.

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http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=431200#. Acesso em 02 de março de 2013.

Referências Bibliográficas:
ZANELLA, Anacleto. A trajetória do sindicalismo no alto uruguai gaúcho 1937-2003. Passo Fundo: UPF,
2004, p 26.

75
O golpe civil-militar e o mundo que se abria: notas e possibilidades do exílio na trajetória
de Flávia Schilling (Brasil – Uruguai 1964-1980)

Diego Scherer da Silva

Resumo: O presente texto aborda a temática do exílio político (Brasil – Uruguai) a partir da trajetória de
Flávia Schilling. Filha do economista e político Paulo Schilling, Flávia acompanhou o exílio de seu pai no
Uruguai 1964, e lá vivenciou também a situação de exilada. Utilizando como fonte principal os
depoimentos de Flávia, e em segundo plano os documentos do DOPS, o texto que pretende responder,
ainda que de forma preliminar, as seguintes questões: De que forma Flávia e sua família enfrentaram o
exílio no Uruguai? Como foi a chegada a esse novo país? Quais as memórias de Flávia sobre o exílio?
Palavras-chave: Flávia Schilling – Exílio –Uruguai – Ditaduras.

Bom, quando... o dia do golpe... se não me engano é o Padre Alípio que deixa um
recado em casa: “O golpe está na rua”. E aí meu pai, ele vai para uma tentativa de
resistência, junto com Dagoberto Rodrigues, que ele era coordenador da central de
correios. Havia alguns lugares que de alguma maneira... Porque havia, lembra, a
“Frente de Mobilização Popular Nacional”, havia uma organização de alguma maneira
se compondo a favor exatamente do governo do João Goulart. Que havia proposto as
reformas de base, as famosas reformas de base que, enfim, até hoje estamos
esperando por algumas delas. E ele avisa: “O golpe está na rua”. E aí meu pai sai de
casa. E eles ficam, um pouco, percebendo os acontecimentos, que não haverá
possibilidade de resistência. O João Goulart, ele realmente sai do país rapidamente. E
aí meu pai sempre relata que ele e outros, eles foram, digamos, acolhidos nesse
momento: “o que fazemos agora?” “É possível resistir ou não?”, pelo Tenório
Cavalcante, o homem da capa preta, na baixada fluminense; que os acolhe na casa
deles e protege meu pai e outros militantes da época. E lá eles ficam durante, mais ou
menos, uma semana. Para perceber a direção do movimento, se é possível resistir, o
que fazer. Enfim, quando percebem que isso não é possível, o próprio Tenório
providencia um carro para eles e os leva, enfim, até a cercania da embaixada do
Uruguai. Eles pulam o muro da embaixada e, enfim, solicitando asilo político. Até esse
momento a gente não sabia de fato, minha mãe... Enfim, éramos minha mãe e as quatro
filhas morando lá no Leblon. A gente não sabia o que estava acontecendo com o nosso
pai, o pai. Ficamos sabendo, porque, exatamente, no dia em que ele pede o asilo... ele
entra na embaixada do Uruguai, e aí eles pulam porque ela estava cercada. Não é que
eles entraram pela porta, ela estava vigiada, então eles pulam o muro. A polícia, o
DOPS, vai em casa. E aí sabemos pelo DOPS que ele está exilado. Porque eles
estavam obviamente vigiando a casa para ver se ele aparecia para prendê-lo. Ao saber
que ele estava exilado, eles vão até nossa casa fazer uma vistoria. [...]. Então a partir
desse momento meu pai está exilado na embaixada. Há mais de uma centena de
pessoas na embaixada do Uruguai naquele momento esperando o visto para sair do
país. Enfim, quando ele consegue ir embora para o Uruguai. Nós voltamos para Porto
Alegre ainda, para o antigo apartamento de Porto Alegre. Mais ou menos pelo mês de
agosto, meu pai já está em Montevidéu, e nós acompanhamos ele indo para
Montevidéu. Vamos para Montevidéu em agosto de [19]64. Então começa a fase do
1
exílio [...] .

As palavras acima são de Flávia Schilling, referindo-se a um momento da trajetória de seu pai,
Paulo Schilling, na ocasião em que ele sai do Brasil, fugindo do DOPS, e exila-se no Uruguai. Flávia,
como vimos em seu depoimento, o acompanha meses depois e também parte para o país vizinho.
Sabemos os motivos que levaram Flávia a Montevidéu. Mas como foi a chegada a esse novo país? De
que forma Flávia e sua família enfrentaram o exílio no Uruguai? Quais as memórias de Flávia sobre o
exílio? Utilizando como fonte principal os depoimentos de Flávia, e em segundo plano os documentos do

1
Entrevista concedida por Flávia Schilling às Professoras Carla Rodeghero e Maria Paula Nascimento Araújo
como parte do projeto Marcas da Memória em 18/07/2011 na Faculdade de Educação da USP. Doravante
“entrevista 01”.
Preferimos apresentar as citações das entrevistas de Flávia, aqui, diferente das normas da ABNT para facilitar a
sua visualização. Elas serão expostas entre aspas e em itálico.

76
DOPS, o texto que segue pretende responder, ainda que de forma preliminar, essas questões.

Um pouquinho de história (ou: antecedentes da saída do Brasil)


Flávia nasceu no dia 26/04/1953 em Santa Cruz do Sul, e logo em seguida mudou-se para
Encruzilhada do Sul, cidade no interior do Rio Grande do Sul. Filha da dona de casa Ingeborg Schilling e
do economista e político Paulo Schilling, viveu os primeiros anos de sua vida em meio as mudanças de
endereço de seu pai. Após publicar o livro “A questão do trigo”, Paulo Schilling foi convidado para
trabalhar com Leonel Brizola, então governador do estado do Rio Grande do Sul. Em entrevista recente,
Flávia relatou:

“A gente sai de Encruzilhada do Sul, vai morar em Porto Alegre. E lá se vive a luta pela
legalidade, a resistência da luta pela Legalidade. Obviamente o Brizola é um dos
protagonistas. Meu pai estava lá no Palácio o tempo todo. É uma situação realmente
forte naquele momento. Enfim, meu pai trabalha nessa condição: ligado ao Brizola. E
quando o Brizola se elege deputado federal pelo Rio de Janeiro, meu pai acompanha
novamente o Brizola. E nós vamos pro Rio de Janeiro também. Em final de (19)63.
2
Então a gente vive o golpe de estado no Rio de Janeiro” .
3
É a partir da sua estada no Rio de Janeiro que os relatórios do DOPS começam a apresentar
informações sobre Paulo Schilling. “O cabeça de Brizola”, como aparece nos documentos do DOPS, era
supervisionado, entre outras coisas, pelo seu envolvimento com o “Grupo dos onze”, pelos seus contato
4
frequente com a figura de Leonel Brizola, além de ser “Superintende do ‘Panfleto’ , órgão de propaganda
do comunismo. Seu nome figura numa relação de elementos que cooperam ativamente para o
desenvolvimento do PCB, tendo publicado um livro na coleção ‘Cadernos do Povo’”, como nos informa
5
relatório do DOPS.
Paulo parece ter sido seguido bem de perto, como fica visível na sequencia do relatório:

Quando alguem bate à sua porta, (mora n’um apto. grande com a familia toda, mulher e
4 filhas) êle vem a porta da rua (o apto. está localizado n’um primeiro andar) e com ar
de importante e misterioso, até falando baixo, diz: Você dá umas voltas por aí e vem
depois, estou n’uma reunião fechada, ou então estou reunido com o “Setor Militar”. As
vezes deixa escapar alguma coisa da tais “reuniões fechadas”, em conversas até de
botequim. Muita coisa o informante conseguiu foi exatamente dessas falas. E o homem
é considerado da “mais alta responsabilidade”. [...]. Não fala noutra coisa senão
revolução. Várias vezes declarou publicamente diante de pessôas até estranhas no
Hotel: Vivo a 20 anos por conta de uma Revolução, sendo que a 12 me dedico
6
inteiramente a ela. [...].

Logo após o golpe, Paulo busca asilo na embaixada do Uruguai, motivado pela “perseguição aos
políticos ligados ao governo deposto pelo golpe e aos que eram vistos como opositores ao novo
7
regime” . Levando em consideração o dia 1º de abril como data do golpe civil militar, em menos de uma
8
semana, no dia 7 de abril de 1964, segundo relatório do DOPS , Paulo foi procurado em sua residência,
momento em que Flávia e sua família ficam sabendo do paradeiro de seu pai – “Ficamos sabendo,
porque, exatamente, no dia em que ele pede o asilo [...] a polícia, o DOPS, vai em casa. E aí sabemos
pelo DOPS que ele está exilado”. Entretanto, a primeira referência que temos a Paulo após o Golpe é do
dia 05 de abril, quando é concedido a ele e a mais quatro pessoas asilo no Uruguai. O “Relatório secreto
do DOPS sobre os cidadãos brasileiros que solicitaram asilo nas embaixadas ou países Sul
9
Americanos” infelizmente não nos apresenta as datas do salvo conduto e da partida de Paulo, mas, a
partir das informações de outros asilados, imaginamos que ele possa ter ficado na Embaixada até um
mês após a concessão do asilo.
É interessante observar que a supervisão das atividades de Paulo pelas forças repressivas não

2
Entrevista 01.
3
Aqui nos referenciamos aos documentos disponíveis no acervo pessoal de Paulo Schilling. Possivelmente Paulo
já era observado anteriormente.
4
O “Panfleto” foi o jornal do grupo nacional-revolucionário brizolista, porta voz da Frente de Mobilização Popular.
Um veículo de comunicação produzido pelo brizolismo.
5
Relatório DOPS. Nº 5757, p. 03. Este documento faz parte do Acervo de Paulo Schilling, recentemente doado ao
NPH da UFRGS. O acervo esta sendo organizado e em breve estará disponível para consulta.
6
Ibidem. P. 04. A grafia das palavras foi mantida igual ao original.
7
MARQUES,2006, p.19.
8
Ofício DOPS. Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1965. P. 02. Acervo Paulo Schilling.
9
Acervo Paulo Schilling.

77
cessou com sua saída do Brasil. Mesmo partindo para o Uruguai, ele continuou sendo vigiado pelo
10
DOPS, como fica evidente em inúmeras passagens de outros relatórios . Paulo teve, inclusive, dois
11
mandados de prisão : foi condenado a dois anos de detenção pela Auditoria da 1ª RM, como incurso no
art. 33 nº I e IV do Decreto-lei 314/67, e, na data de 4 de julho de 1967, a nove anos de prisão, pela
Auditoria da 5ª CJM, como incurso no Art. 3º da Lei 1802/53. Após seu retorno ao Brasil, o que veio a
ocorrer somente no início de 1980, depois da Lei de Anistia, ainda encontramos informações suas nos
relatórios.
Nesse sentido, o exílio político pode ser visto como um processo de duas vias: ao mesmo tempo
em que garantia um meio de fuga e de preservação da vida para os opositores, era encarado pelo
governo como uma forma de desestabilizar a oposição e servir de exemplo para a população. Segundo
Marques, o exílio político

foi visto pelo novo governo como uma eficiente maneira de desarticular a oposição ao
regime, pois objetivava afastar os principais líderes da oposição, e concomitantemente,
servir de exemplo àqueles que se propusessem a ingressar na luta contra a Ditadura
Militar. Portanto, o exílio era um dos mecanismos de controle utilizados pelos militares,
pois, ao isolar, afastar e segregar opositores, contribuía para a desarticulação dos
12
grupos de esquerda .

Era, enfim, mais um meio de manipular, através do medo, os diferentes grupos sociais e colocá-
los a favor do governo militar instituído a partir do golpe, ou ao menos não em oposição a ele. Como
indica Marques, “a possibilidade do exílio como uma ameaça àqueles que contestavam o regime militar
ficou demonstrada na excessiva exposição de slogans como, Brasil: Ame-o ou deixe-o, por meio de
13
músicas e adesivos em automóveis” .
14
Essa primeira geração de exilados – a segunda viria após os movimentos de luta contra o
regime do fim da década de 1960 – escolheu preferencialmente o Uruguai, e, mais especificamente, a
15 16
sua capital como local de residência fora do Brasil . De acordo com Marques , entre 1964 e 1967, as
movimentações políticas de exilados brasileiros no exterior se centralizavam no Uruguai. O declínio
dessa concentração começou a partir de 1967, quando Jorge Pacheco Areco assumiu a presidência no
país e deu início ao combate aos grupos considerados ligados às ideias comunistas.
Para Montevidéu foram,

entre outros, o presidente deposto, João Goulart; o ex-governador do estado do Rio


Grande do Sul e deputado pelo Rio de Janeiro, Leonel Brizola; o reitor da Universidade
de Brasília e chefe do Gabinete Civil, Darcy Ribeiro; um dos principais assessores de
Brizola, Paulo Schilling; e um dos líderes da revolta dos marinheiros, em 1964, o
17
almirante Cândido Aragão .

Mas por que o Uruguai? Por que Montevidéu? Fernandes explica que esse país “possuía uma
sólida tradição democrática e uma forte solidariedade aos exilados políticos”; além disso,

desde a década de 1950, o Uruguai abrigava cidadãos paraguaios exilados desde o


estabelecimento da ditadura de Alfredo Stroessner, em 1954, bem como argentinos que
fugiram após a queda de Juan Domingo Perón, em 1955. É difícil mensurar o número de
exilados brasileiros que foram para Montevidéu, mas estima-se que tenha sido entre
500 e 1000 pessoas recebidas pelo governo uruguaio. Esta cidade passou a ser vista
18
como sinônimo de lugar de liberdade de expressão política .

10
Para outros exemplos consultar a pasta “Arquivo DOPS” do Acervo Paulo Schilling.
11
Histórico de Paulo Schilling – Departamento de Ordem Política e Social – Divisão de Informação. P.02. “Arquivo
DOPS”. Acervo Paulo Schilling.
12
MARQUES, 2006, p.20.
13
IBID., p.21.
14
Primeira geração que, segundo Rollemberg (1999, p. 50), em geral é associada a “aqueles que se identificavam
com os projetos de reforma de base, ligados a sindicatos e partidos políticos legais, como o PTB, ou ilegais,
como o PCB”. Ainda sobre essa geração, Marques (2006, p. 21) informa que seus integrantes foram alvo da
denominada “‘Operação Limpeza’, codinome adotado pelos militares para designar este conjunto de medidas
adotadas pelo novo governo, para eliminar e afastar os seus opositores, em conformidade com os princípios da
Doutrina de Segurança Nacional”.
15
Conforme Fernandes (2009, p. 78), a primeira geração de exilados também buscou refúgio em outros países
como México, Chile, Bolívia, Argélia e França, por exemplo.
16
MARQUES, 2006, p. 24.
17
FERNANDES, 2009, p. 78.
18
IBID.

78
A historiadora Teresa Marques reforça essa perspectiva e elenca alguns outros elementos que
podem nos ajudar a entender essa escolha por parte dos exilados. Ela expõe que o sistema político do
Uruguai, visto como uma democracia exemplar na América Latina, e as suas liberdades democráticas
constituíam um dos principais incentivos para que os brasileiros optassem pelo exílio político por lá.
Segundo a autora, no Uruguai “um perseguido político obtinha facilmente asilo político, sua população
era considerada avançada cultural e democraticamente, a justiça social era levantada como a maior
19
bandeira do país, entre diversas outras características [...]” .
Outro motivo estava ligado às possibilidades de se entrar e sair do país. Fazendo fronteira com o
Rio Grande do Sul – estado de origem de Paulo Schilling e outros tantos políticos exilados – sua grande
fronteira por terra propiciava rotas para a entrada e saída de pessoas do Brasil para o Uruguai e vice-
versa. Tal fronteira, entretanto, não era um elemento importante apenas para as organizações de
esquerda, ela foi utilizada também pelo aparato repressivo.
20
Nesse sentido, Fernandes explica que a fronteira do Rio Grande do Sul – principalmente a
grande extensão de fronteira seca e as cidades “binacionais” (Chuí-Chuy e Santa do Livramento-Rivera)
– era constantemente atravessada seja por refugiados ou mesmo cidadãos “comuns” que se sentiam
ameaçados e desejavam ir para outros países, como também por agentes da repressão brasileira que
“usavam esses caminhos, seja em atividades clandestinas ou de colaboração com a repressão uruguaia,
a fim de realizarem ações de perseguições e de operações de buscas”.
E foi justamente esse o caminho escolhido pelo restante da família Schilling para ingressar no
novo país. Com o exílio de Paulo no Uruguai, Flávia, sua mãe e suas irmãs voltam para Porto Alegre,
como nos contou ela em entrevista:
“[...] depois disso a minha mãe achou que realmente não dava mais para ficar no Rio, a
gente não conhecia ninguém e não tinha ninguém, tava tudo muito disperso. [...] Então a
gente volta para Porto Alegre, pelo menos tinha família próxima, e eu nunca me
esqueço, a gente volta de ônibus e claro, há toda a mudança de novo, a gente tinha
acabado de mudar pra lá com tudo e volta com tudo, vem um caminhão voltando. Mas a
21
gente vem de ônibus com a mãe [...] ”.

Flávia fica morando em Porto Alegre até agosto de 1964, quando ruma para o novo país.
Questionada em entrevista sobre a viagem ao Uruguai ela disse:
A nossa ida, ela foi cercada de cuidados também. O Ênio Silveira, editor da [editora]
“Civilização Brasileira”, ele nos ajudou a sair do país. Enquanto família de um exilado
havia um certo temor que pudéssemos ser parados na fronteira, não é? Então eu me
lembro que a gente foi com ele até o Chuí, aí depois pegamos um trem para chegar em
22
Montevidéu” .

Flávia encontrou lá um ambiente muito diferente do vivido no Brasil: o Uruguai se apresentava


até então como um lugar com forte experiência democrática, com um ensino de qualidade e gratuito, e
com ideias muito conservadoras em relação aos costumes, o que ocasionou uma espécie de “choque
23
cultural”, como narra a própria Flávia Schilling .
Foi nesse ambiente que completou seus estudos e ingressou na militância política. Como relata
24
seu pai, na introdução do livro “Querida Família:” , “no Instituto Alfredo Vasquez Azevedo [Flávia]
25
integrou-se à F.E.R. – Federação dos Estudantes Revolucionários, de orientação Tupamara” para em
seguida, após ingressar na Faculdade de Medicina de Montevidéu – a qual abandonou-a ainda no
26
primeiro ano de graduação –, dedicar-se inteiramente ao Movimento de Libertação Nacional (MLN) .
27
Depois de aproximadamente dois anos de militância , Flávia acabou presa, em 24 de novembro
de 1972, aos 18 anos de idade. No momento de sua prisão, foi ferida por um tiro, tendo a bala lhe

19
MARQUES, 2006, p.24.
20
FERNANDES 2009, p. 94/95.
21
Entrevista 01.
22
Entrevista 01.
23
Entrevista disponível na Revista do Movimento do Ministério Público Democrático – Dialógico – ano VI, n. 28,
dezembro de 2009, p. 13. Doravante “entrevista 02”.
24
Livro de cartas escritas por Flávia Schilling durante o seu primeiro ano de prisão.
25
SCHILLING, 1972, p.10.
26
Conforme expõe Trindade (2009, p.14) “os Tupamaros surgiram oficialmente em 65, mas desde 62 já vinham se
organizando. O gripo mesclava ideologia socialista com forte apelo aintiimperialista, e contava com apoio de
grande parte da sociedade uruguaia”. Entre suas ações percebemos, como relata Padrós (2004, p.54), a
“desapropriação de bancos e financeiras, sequestros 'pedagógicos' de autoridades estatais, divulgação de
documentos sobre corrupção e malversão pública e fugas massivas dos penais”
27
Como relata seu pai, a partir de abril de 1972, após o colapso de quase todas as organizações guerrilheiras e
devido à forte repressão, Flávia teve que passar à clandestinidade, vivendo em condições tremendamente duras

79
perfurado a laringe e a epiglote, causando séria hemorragia. Submetida a uma cirurgia no hospital militar,
acabou sendo salva pela equipe médica.
Conforme consta em documento oficial do governo brasileiro, antes de ser removida
definitivamente para a Penitenciária Feminina de Punta Rieles, a 14 km de Montevidéu, Flávia
permaneceu meses mudando constantemente de prisões: “Submetida a julgamento, foi condenada a 10
anos de prisão e mais cinco de medida de segurança, numa decisão em que a pena foi superior à pedida
28
pela promotoria (9 anos)” . Visualiza-se aqui um elemento importante da repressão política uruguaia,
que tinha no encarceramento prolongado um dos seus mecanismos relevantes de repressão. Outra
característica do regime repressivo uruguaio que é observado no caso de Flávia foi a política dos
“reféns”, como nos expõe Mariana Joffilly:

[...] ademais da estratégia de encarceramento prolongado, foi o caso dos ‘reféns’,


conjunto de presos políticos que tiveram um regime de prisão extremamente duro,
diferenciado dos demais, e aos quais foi comunicado que qualquer ação realizada por
sua organização política redundaria em sua execução imediata. Foram nove homens e
nove mulheres [sendo uma delas Flávia Schilling] considerados como principais
dirigentes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros – e isolados pouco depois
29
do golpe de Estado em 1973 .

Flávia continuou presa até abril de 1980. Entretanto, as tentativas e campanhas pela sua
libertação começaram muito antes. Foram inúmeros os envolvidos nesse movimento: sua família – que
acabou se mudando para a Argentina, ficando apenas a irmã Cláudia no Uruguai –, a imprensa, os
30
comitês que lutavam por liberdades políticas e até mesmo pelo governo do Brasil. Conforme
argumentam Rodeghero, Dienstmann e Trindade, a libertação de Flávia aconteceu quando “o governo
uruguaio, pressionado interna e externamente, promulgou lei dando liberdade e expulsando a todos os
estrangeiros presos no país. Após sete anos e meio, Flávia – acompanhado de outros 36 presos
31
estrangeiros – era, finalmente, posta em liberdade” .
Pretendemos na sequencia do texto dar uns passos atrás e discutir as formas como o exílio foi
vivido e sentido por Flávia, dando ênfase a dois elementos: a ideia do “breve” exílio, ou seja, que ele logo
se encerraria e todos voltariam ao Brasil e a questão “choque cultural”, enfatizando as possibilidades e
as dificuldades de adaptação ao novo país.

“O Mundo que se abria” (ou: O Uruguai como país de exílio)


Chegamos ao Uruguai em agosto de 1964. Minha irmã e eu odiávamos tudo aquilo, por
ter deixado os laços já formados – não os do Rio, que não lamentávamos deixar depois
da experiência vivida – mas os de Porto Alegre, para onde voltamos logo após o início
do exílio de meu pai. Fomos todas: minha mãe, minhas irmãs. Viajamos de trem,
enquanto minha mãe e minhas irmãs foram de carro, por outro caminho, com um amigo,
passando pela fronteira do Chuí. Muita expectativa e medo. Medo da polícia, de sermos
barradas na fronteira.

Era um rompimento, uma nova fase não desejada. Lamentávamos o que deixávamos
para trás. Não que tivéssemos “raízes”: já as tínhamos, em todo caso, “aéreas”, por
conta das inúmeras mudanças. As formas de viver essa experiência? Diversas: para
minha mãe, uma coisa; para minhas pequenas irmãs, outra; para minha irmã mais
velha, outra. Pontos de encontro, pontos de alegria e liberdade, pontos de perda e dor.
Sempre muito difícil.

Depois de alguns anos de fechamento, no grupo dos filhos de exilados, chegamos, de


fato, ao Uruguai. Pois no começo, tudo era estranho: os costumes, as roupas, as
músicas, os códigos. Tudo era diferente. Assim conhecemos, na pele, o que significa ser
exilado. Exilado é aquele que não conhece os códigos, que, muitas vezes sem querer,
quebra os códigos. Exige-se, assim, de todas um grande esforço de contenção, de
atenção, de alerta. [...]

Nunca esquecerei a sensação de “dominó” daqueles tempos; um após outro, nossos

(SCHILLING, 1972, p. 10).


28
Caso Flávia Schilling - Relatório. Documento disponível no Arquivo Nacional. Processo GAB nº 100.075.
02/02/1979 - 19 folhas/35 páginas. [BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1632] p.15-16.
29
JOFFILLY, 2010, P.122.
30
Foram importantes as atuações, entre outros grupos, do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) e do Movimento
Feminino pela Anistia (MFPA).
31
RODEGHERO, DIENSTMANN E TRINDADE, 2011, P.137.

80
países viviam golpes de estado: Brasil, Bolívia, Peru, Uruguai, Argentina, Chile. Foi um
tempo duro, de ser “estrangeiro” e estranho, de quebra de códigos. Não havia lugar
seguro. O medo e a dor. A dificuldade de sobreviver, meu pai lutando para sustentar
uma família grande. Cabe lembrar os trabalhos do meu pai na Editora Diálogo, no
Semanário Marcha, cada uma de nós tentando achar um lugar possível para viver.
Tempos em que a política dava as cartas, determinava cada momento de nossas vidas”
32
.

Em seu relato, Flávia apresenta algumas das inúmeras dificuldades e questões que se
colocaram para aqueles que tiverem de viver a situação de exilado. Era um desafio. A viagem ao novo
país, o período de adaptação, o estranhamento - momentos que ela compartilhou com inúmeros
brasileiros e latino-americanos que experimentaram a mesma situação nas décadas de 60, 70 e 80. Com
a sucessão de golpes civil-militares na América do Sul, sair do país se tornou algo iminente e necessário
para aqueles que se opunham aos novos governos ou eram considerados inimigos dos mesmos. Nesses
casos, o exílio não era um opção. Como aponta Rollemberg:

Em muitos casos, a decisão de partir foi tomada diante da ameaça de prisão iminente,
da clandestinidade que ia se tornando cada vez mais penosa, perigosa, em meio do
cerco que se apertava, das quedas, das prisões, das notícias de barbaridades
33
cometidas nas prisões políticas. Sair, ir para o exílio era, então, escapar .

É interessante observar, entretanto, que esses pontos podem ser pensados para o caso de
Paulo, que estava diretamente envolvido com grupos políticos e apresentava-se como um opositor à
situação instalada pós-golpe no Brasil, mas não para sua mulher e filhas. Elas não tinham um
envolvimento direto nessas questões e assim foram ao exílio acompanhar seu marido e pai. Tal situação
não ocorreu apenas com a família Schilling, como aponta Marques:

[...] a maioria dos brasileiros da primeira geração de exilados da ditadura militar eram
pais de família, [assim] diversos são os casos de famílias inteiras exiladas. [...]. A
documentação sobre mulheres e crianças exiladas no Uruguai é extremamente
escassa, o que explicita mais uma característica predominante da primeira geração de
exilados pelo golpe de 1964: as mulheres exiladas da primeira geração em geral não
eram militantes, ou sequer mantinham algum tipo de vinculação direta com movimentos
políticos. Partiram para o exílio para acompanharem o marido, diferente das exiladas da
34
geração de 1968 .

35
Percebe-se que, assim como os motivos que levaram cada pessoa ao exílio são diversos , o
próprio exílio não foi algo sentido e vivido igualmente por todos os atingidos, ficando longe de ser uma
experiência homogênea. Entretanto, através da analise dos depoimentos de Flávia e dos trabalhos das
historiadoras Denise Rollemberg e Teresa Marques, é possível perceber alguns pontos em comum. Para
tanto, analisar-se-á agora a ideia do “breve exílio” presente tanto entre o primeiro grupo de exilados
como na geração de 1968.
Quando Flávia foi questionada sobre como era estar exilada, disse:

“Era muito difícil. Significava, de forma metafórica, nunca desfazer as malas. A


expectativa era de um exílio breve, “em dois anos estaremos de volta”, e durou mais de
15 anos! Ser exilado [...] implica em uma situação de violência muito especial, a perda
36
progressiva dos laços, não voluntária, o estar rejeitado, perseguido” .

32
SCHILLING, Flávia. Memorial apresentado para o Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento de
Sociologia da Educação, nas disciplinas EDF0113 Sociologia da Educação I, EDF0114 Sociologia da Educação
II e EDF0687 Educação e Atualidade, a questão do sujeito, de acordo com o Edital FEUSP 18/2012Memorial
USP. São Paulo, 2012.
33
ROLLEMBERG, 1999, p. 61.
34
MARQUES, 2006, p. 74.
35
Rollemberg (1999, p.52) nos apresenta uma interessante lista das diferentes motivações de partida dos
exilados: “Houve os atingidos pelo banimento; houve quem decidiu partir, às vezes até com documentação legal,
por rejeitar o clima que se vivia no país; houve quem pessoalmente, não era alvo da polícia política, mas exilou-
se ao acompanhar o cônjuge ou os pais [como no caso de Flávia e do restante de sua família]; houve os
diretamente perseguidos, envolvidos, uns mais, outros menos, no confronto com o regime militar; houve quem
foi morar no exterior por outras razões que não políticas e, através do contato com exilados, integrou-se às
campanhas de denúncia da ditadura e já não podiam voltar com tantas facilidades. Os casos são inúmeros”.
36
Entrevista 02.

81
Em uma leitura rápida deste trecho de uma entrevista de Flávia, uma ideia-chave nele contida
pode passar despercebida, mas, ao continuar a pesquisa sobre o exílio, a frase “a expectativa era de um
exílio breve, em dois anos estaremos de volta” ganha força. Marques entrevistou Cláudia, irmã de Flávia,
para a sua dissertação. Ao lermos seu relato podemos constatar que esta ideia também estava presente
para ela:
Desde o início vivíamos uma situação de transitoriedade. Quando fomos para lá, a
resposta que nos davam era: “temos de ir, mas daqui a um ano a gente volta”. Ninguém
esperava que a ditadura tivesse uma tão longa duração. Mas a expectativa era essa,
37
passavam os anos, mas a gente estava “sempre voltando” [...] .

Nesse sentido, Rollemberg – ao comentar a ideia inicial de um breve retorno, que com o
passar dos tempos acabou ficando claro que não aconteceria tão cedo – nos apresenta uma
interpretação que ajuda a entender as memórias das irmãs Schilling. Em suas palavras:

Nos dois primeiros anos de regime militar, os exilados acompanhavam com grande
interesse o que se passava no país [Brasil], mantendo a expectativa quanto à
possibilidade de reversão da conjuntura. Para muitos da geração de 1964, o golpe
assemelhava-se a um rearranjo de elites políticas e o exílio a um breve intervalo, de
onde observariam os desdobramentos do episódio. No entanto, depois de 1965, já
começava a ficar claro que o rápido retorno, no quadro do restabelecimento da ordem
38
democrática, não era tão evidente .

Constata-se, assim, que tal ideia foi muito presente para aqueles que saíram do Brasil logo após
o golpe civil-militar de 1964. A dificuldade de entender as proporções do que estava acontecendo e de ter
paramentos para pensar a duração de tudo aquilo fez com que a noção de um breve retorno se
39
mantivesse bastante forte nos primeiros anos de exílio .
Tudo isso fez parte dos primeiros anos de exílio, quando a ideia de logo voltar ao Brasil estava
presente com muita intensidade. Chega um momento, entretanto, que se intui que tal retorno não
40
aconteceria tão cedo . Percebendo que ficariam ali por um bom tempo, parece ter sido necessário um
processo de integração ao novo país. Era necessário vencer o “choque cultural” inicial, era preciso, como
nos disse Flávia, começar a entender os códigos. Mas não foi simples passar pelo primeiro impacto.
Quando questionada sobre as dificuldades de adaptação na chegada a Montevidéu, ela disse:

“[...] o ‘choque cultural’ foi imenso, porque Rio de Janeiro em [1964] era Beatles,
minissaia, uma certa, incrível, liberdade. Os anos sessenta, obviamente depois cortada
[a liberdade], em grande parte pelo golpe. E em Montevidéu, o Uruguai, era um país
completamente diferente, ainda muito conservador em relação aos costumes. Então nós
causávamos escândalo por usar, inclusive, calça comprida. As mulheres não usavam
calça comprida, imagina, minissaia jamais, os Beatles não tinham chegado... A nossa
adolescência já estava marcada por essa tônica, então houve choques em todos os
41
sentidos. Então eu diria assim: o começo foi difícil, o começo foi difícil inclusive […]” .

É interessante observar, entretanto, que Alguns elementos parecem ter auxiliado Flávia e outros
exilados a vencer tal choque inicial. Conforme nos diz Marques, para os gaúchos provavelmente foi mais
42
fácil esse processo de assimilação e adaptação. Segundo a autora, a proximidade de determinadas
práticas culturais – mate ou chimarrão, o costume da carne bovina como prato principal, por exemplo – e
mesmo do clima facilitaram a sua adaptação ao exílio. Paulo, em entrevista ao CooJornal, comentou um
pouco sobre essa situação:

Nós, os gaúchos, que nos refugiamos no Uruguai e na Argentina fomos privilegiados. As


mudanças não foram demasiadas, inclusive a dieta é fundamentalmente a mesma [...]: o
churrasco e o chimarrão. Estar no Uruguai ou na Argentina é estar com um pé no Brasil:

37
MARQUES, 2006, p. 26 – entrevista Cláudia Schilling.
38
ROLLEMBERG, 1999, p.54.
39
Podemos assim sugerir que a escolha do Uruguai como país de exílio também estava relacionada à ideia do
breve retono. Sua proximidade com o Brasil, somada à facilidade de se conseguir informações e mesmo de se
deslocar de um país ao outro, podem ter sido elementos levados em consideração na escolha do país platino
como “capital do exílio”.
40
É possível apontar também como elemento que explica a noção de brevidade do exílio a espera da definição
das eleições de 1966 no Brasil, após o fim do mandato oficial de Jango. Além disso, Rollemberg (1999, p. 90)
aponta que é após o golpe do Chile, em setembro de 1973, que os exilados entendem que estavam diante de
uma etapa duradoura de suas vidas.
41
Entrevista 01.
42
Sobre a noção de assimilação ver SPITZER (2001).

82
às 4 da tarde chegam os diários brasileiros, se escuta a Gaúcha e a Guaíba, como se
43
fossem locais, se vê e se fala com brasileiros de “dentro” a cada dia [...] .

Essa questão pode ter “facilitado” o processo de assimilação no exílio, assim como a existência
de uma “colônia de brasileiros” exilados no Uruguai. Como citado anteriormente, esse país foi o principal
receptor dos exilados da primeira geração, e tal concentração parece ter sido um elemento positivo para
os recém chegados. A receptividade da sociedade uruguaia era grande, entretanto, em um primeiro
momento, percebe-se uma preferência dos exilados em estreitar laços com os próprios brasileiros, para
então, em seguida, inserirem-se de forma mais clara na sociedade uruguaia. Cláudia Schilling, em seu
relato à historiadora Teresa Marques, comentou essa situação:

Quando chegamos lá, havia uma grande colônia de exilados brasileiros, cada um deles
com sua respectiva família, e assim de repente fazíamos parte de um grande grupo de
adolescentes, o que eu adorei, e conservo algumas dessas amizades até hoje. [...]
Tirando o contato com os colegas no ginásio, naquela época não houve muito contato
com a “sociedade uruguaia” como tal, porque na verdade meus amigos ficaram sendo
os outros filhos de exilados, situação que perdurou pelo menos por uns dois anos, até
que a grande maioria dos exilados começou a voltar para o Brasil ou foi para outros
lugares. [...] Portanto, sempre havia laços, e embora com o tempo todos estivéssemos
44
perfeitamente adaptados, nunca deixamos de ser “brasileiros no Uruguai” .

Em nenhum momento queremos dizer que o exílio foi algo fácil. Pensando o mesmo como um
processo de assimilação, um “processo de adaptação e ajustamento continuum” (SPITZER, 2001, p. 41)
ao novo meio onde foram obrigados a se inserir, ser gaúcho e a existência da colônia de brasileiros
podem ter sido meios de facilitar a integração ao novo espaço. Mas as dificuldades não foram poucas;
afinal, “sendo exilado político não havia como escapar da distância do lar, da família, de amigos, enfim
da terra natal” (Marques, 2006, p.68). Um exemplo desses desafios foram as dificuldades econômicas e
a necessidade de se conseguir emprego e dinheiro para manter a família no exílio, como ressaltam as
irmãs Schilling:

A situação financeira sempre foi muito precária, porque meu pai demorou para
conseguir trabalho, e tinha mulher e quatro filhas. Tínhamos um apartamento no Rio,
que foi vendido, e outro em Porto Alegre, e com isso vivemos os primeiros anos. Depois
meu pai começou a trabalhar colaborando com vários jornais do Uruguai e do exterior, e
45
a situação melhorou um pouco, mas nossa vida sempre foi extremamente simples .

Flávia complementa:

“[...] a condição do exilado com uma família, com quatro filhos, não é? Sendo que
obviamente a nossa família não é uma família de posses, a gente não tinha ingressos.
[...] Então há exílios e exílios. Eu sempre comento isso. Então a gente vai, uma família
de quatro pessoas mais a minha mãe. [...]. Você tem estratos sociais, não é igual a
experiência do exílio para todos. Para alguns foi muito difícil, não é verdade?
46
Dependendo da posição socioeconômica dos exilados, as condições de trabalho” .

Esta situação foi contornada por Paulo através de suas atividades como jornalista.
Primeiramente trabalhando no periódico “Marcha” e em seguida escrevendo também para a “Prensa
Latina” - Agência de Notícias Cubana – e tirando dessas funções o sustendo da família nos primeiros
momentos do exílio.
Todavia, não só ruins foram as marcas deixadas pelo período. Nesse sentido, gostaríamos de
ressaltar uma questão apresentada por Flávia em várias entrevistas que concedeu considerada positiva
nessa fase de exílio: a possibilidade de estudar no Liceu Uruguaio. A escola pública e mista, diferente de
sua realidade no Brasil, além das diversas disciplinas que não faziam parte da grade curricular brasileira,
são salientadas por Flávia como uma característica marcante de sua formação. Em suas palavras:

“[...] Até hoje eu agradeço, eu digo, o meu sucesso escolar, a minha cultura se deve ao
ginásio... [...]. Ao liceu uruguaio, à escola pública uruguaia. Eu sempre brinco, a gente
tinha literatura universal desde a... seria a segunda ou terceira série do ginásio, talvez

43
MARQUES, 2006, p.61 - citando: PEREIRA, Tomás. “Prato feito não!” Coojornal. Porto Alegre-RS. Ano IV. nº. 38.
Fevereiro de 1979.
44
MARQUES, 2006, p.62.
45
MARQUES, 2006, p. 69 – entrevista Cláudia Schilling.
46
Entrevista 01.

83
sexta, sétima série. E aquela coisa: a gente começava com a Ilíada, não tinha
discussão. E isso me formou de uma maneira maravilhosa. Até hoje eu agradeço isso. E
eu fiz literatura, a gente estudou literatura até o preparatório, que seria o colegial, então
a gente tem todo um, a questão da leitura. Filosofia a gente tinha também direto desde a
sétima série, filosofia mesmo. E tinha francês como língua prioritária, porque na época
era isso e não o inglês. Depois tinha duas línguas, quer dizer, um nível cultural
47
fantástico. Então essa foi realmente uma experiência muito importante para mim” .

E isso não é sublinhado apenas por Flávia. Sua irmã Cláudia relata a mesma sensação em
entrevista à historiadora Teresa Marques: “isto [referindo-se ao estudo no Uruguai] me deu as
ferramentas para ser a tradutora-intérprete que sou até hoje. Por isso sempre repito que ‘o Uruguai me
48
deu régua e compasso’” .
Pode-se atribuir, assim, ao Liceu uruguaio – público, misto e de qualidade – uma importância
bastante grande na trajetória de nossa personagem. Percebido como um ambiente politizado, é possível
pensar o Liceu e o ensino como um espaço de libertação, como um elemento de aproximação de Flávia
com o Uruguai, que permitiu a ela “sair” do grupo de exilados e politizar-se com mais autonomia.

Observações finais
Diversas outras questões poderiam ser apontadas sobre o exílio ocorrido durante os regimes
civil militares na América Latina. Levando em consideração o caráter individual da experiência do exílio,
e aqui tomamos o caso da família Schilling e mais especificamente de Flávia como exemplo, tentamos
demonstrar ao longo do texto alguns elementos do primeiro grupo de exilados que saíram do Brasil logo
após o golpe de 1964.
O trabalho não se encerra aqui. A pesquisa continua. Além do exílio, a militância política, a
clandestinidade, a prisão e as campanhas de libertação por Flávia serão tema de análise. E o próximo
passo será entender o início de sua militância, compreender o momento em que Flávia se apaixona pelo
Uruguai, como nos contou em entrevista:

“E em algum momento eu me apaixono pelo Uruguai. (risos) Acho que aquele desgosto
é superado, e uma paixão se produz de alguma maneira. Inclusive talvez para escapar
um pouco daquela situação de ‘vamos voltar já’, eu já sabia que não iríamos ‘voltar já’; e
se precisa ter raízes em algum lugar, então a gente se entrega ao lugar onde se está e
decide ‘não, eu gosto deste lugar’. Então eu também me apaixono por esse lugar, e eu
49
creio que me apaixono em torno de [19]68 ”.

Referências bibliográficas:
FERNANDES, Ananda Simões. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a
ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História) – Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
JOFFILY, Mariana. Memória, Gênero e Repressão Política no Cone Sul (1984-1991). In: Tempo e
Argumento. Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 111 – 135, jan. / jun. 2010.
MAQUES, Teresa C. Schneider. Ditadura, exílio e oposição: Os exilados brasileiros no Uruguai (1964-
1967). Dissertação (Mestrado em História) – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Mato
Grosso, Cuiabá, 2006.
PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e segurança nacional: Uruguai
(1968-1985): do Pachecato à Ditadura civil-militar. Tese (Doutorado) – Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. In: Mnemosine, Vol. 6, Nº 2, P. 02-13. Rio de Janeiro:
2010.
RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e
irrestrita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: Editora da Unisc, 2011.
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SCHILLING, Flávia. Querida Família:.Porto Alegre: CooJORNAL, 1978.

47
Entrevista 01.
48
MARQUES, 2006, p. 76 – entrevista Cláudia Schilling.
49
Entrevista 01.

84
SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África
Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.
TRINDADE, Tatiana. O papel materno na resistência à ditadura: o caso das mães de Flávio Tavares,
Flávio Koutzii e Flávia Schilling. Trabalho de Conclusão (Graduação) - Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Licenciatura em História, Porto Alegre, BR-RS,
2009.

85
É mais fácil comemorar tragédias do que reconhecer as barbáries da ditadura civil-militar
brasileira: memórias do período no Oeste Paranaense.

1
Marcos Adriani Ferrari de Campos

Resumo: O presente artigo visa analisar a construção das memórias sobre a ditadura civil-militar
brasileira no oeste Paranaense, a partir dos fatos ocorridos no município de Nova Aurora em 1970, onde
a organização de um comando territorial da Var-Palmares formado por um pequeno número de pessoas
ligadas ao grupo revolucionário desenvolviam suas atividades na região oeste do Paraná, onde
realizavam um trabalho de treinamento para a guerrilha, visando o fortalecimento dos grupos de
esquerda, para a luta armada contra a ditadura. Todos daquele grupo foram presos em maio de 1970,
acusados de terroristas, assalto a bancos e participação em sequestros, sofrendo com as torturas. O
objetivo aqui é análise dos discursos que tem se propagado na atualidade sobre o regime ditatorial
brasileiro.
Palavras-chave: História e memória – torturas- silêncios – esquecimentos.

Abstract: This article aims to analyze the construction of memories on the civil-military dictatorship in the
Western Brazilian Paranaense from the events in Nova Aurora in 1970, where the organization of a
territorial command-Var Palmares formed by a small number of people linked to revolutionary group
performed their activities in western Paraná, where they performed a work training for guerrillas, aiming at
the strengthening of leftist groups for armed struggle against the dictatorship. All of that group was
arrested in May 1970 on charges of terrorism, the banks and jump-involvement in kidnappings, suffering
the tortures. The goal here is discourse analysis that has spread today on the Brazilian dictatorship.
Keywords: History and Memory – torture-silences – forgetfulness.

A história da memória está ligada com a preocupação dos pesquisadores de como as sociedades
recordam seus passados e já que recordam no presente, é importante estudar quais são os “modos de
2
usa-los ”. Embora não se possam mudar os fatos do passado, parece que “o seu sentido forçosamente
3
se transforma ao sabor das intenções, disputas políticas e expectativas ”, trazendo no início do século
XXI, debates sobre o que lembrar, o que esquecer, ou silenciar, às vezes de maneira voltada para a
construção de memórias, que tentam harmonizar os fatos através da “reconciliação como objetivo;
4
consenso como programa e esquecimento como instrumento ”, como se isso fosse possível sem passar
5
pela crítica historiográfica. No Brasil, a instauração da “comissão da verdade ” em 2012, sem caráter
judicial, visa esclarecimentos principalmente sobre o período ditatorial, sobre um passado que insiste em
6
não querer passar.
De fato, as lacunas continuam e, mesmo quase 28 anos após seu “fim” oficialmente declarado, a
ditadura causa indagações e discursos nostálgicos da parte de alguns, que acabam negando que ela se
7
caracterizou como uma ditadura de classe . Às vezes somos muito tentados a observar os movimentos
de certos personagens e seus movimentos, mas não se deve esquecer do processo histórico pelo qual
fluem as lutas de classes, sendo que este processo, ao longo do século XX, foi marcado pela
massificação da classe trabalhadora, sendo destinada a esta, à exploração capitalista e sua exclusão
das principais cenas políticas e econômicas, com plenos ideais do liberalismo econômico, fazendo este
parecer o “caminho certo” a seguir, mesmo que para isso, fosse preciso lançar a mão de violência
1
Mestrando – Formado em história, Unioeste, Marechal Cândido Rondon, no ano de 2006.
marcosferrari66@hotmail.com 0xx4599930511. Linha de pesquisa: Estado e Poder.
2
TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa Unipop, 2012.
3
TELES, Janaina de Almeida. As constituições das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto
Brasil: Nunca mais e a abertura da Vala de Perus. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 257-292, jul. 2012. p.
258.
4
VINYES, Ricard (ed.) El Estado y La memoria: gobiernos y ciudadanos frente a lós traumas de La historia.
Barcelona, RBA, 2009. p.23.
5
PROJETO DE LEI 7376, Comissão Nacional da Verdade. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOSHUMANOS/148111-PROJETO-CRIA – Acessado
em 31/01/2013.
6
TRAVERSO, Op. Cit.
7
FERNANDEZ, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.

86
institucionalizada e o desenvolvimento do consenso, que resultariam na instauração de ditaduras civil
militares em vários países da América Latina. Na sociedade brasileira, a burguesia se esforçou de todas
as formas para manter seu domínio, sendo que para tal, organizou-se e,

aumentou (ou decuplicou suas forças sociais, graças a uma bem trabalhada “psicose de
guerra civil”, a um esforço de propaganda contínuo e maciço, do qual participaram todos
os órgãos da grande imprensa, todas as grandes revistas, todos os canais de televisão,
todas as estações de rádio, com desdobramentos na esfera da educação política e da
pregação anticomunista, levadas a efeito pelas lojas maçônicas e por todas as
convicções religiosas – embora com forte saliência católica – a uma manipulação
eficiente do “pânico burguês” diante da pretensa república sindicalista) e as classes
burguesas unificaram seu potencial de luta de classes como se tivessem completado o
8
circuito de sua maturação histórica .

O trecho do professor Florestan Fernandez, descreve o contexto o qual se encontrava o Brasil um


pouco antes do golpe e durante o regime ditatorial sendo que, irônica e paradoxalmente, vai ao encontro
do discurso atual de um deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, feito no parlamento e
transmitido pela TV câmara, no dia 09 de julho de 2009 dizendo que, “os militares em 1964, não
assumiram o governo porque quiseram, havia uma pressão de toda a mídia, quem tem dúvida é só ir na
biblioteca, toda a imprensa, pedindo que os militares assumissem[...]Havia pressão da igreja
9
católica[...] ”. Ele só esqueceu de dizer que era uma pressão articulada pela burguesia que, devido ao
medo de uma possível participação popular significativa, nas esferas políticas e econômicas, instala uma
10
“contrarrevolução preventiva “.
É impressionante pensar que houve toda uma organização civil-militar, que beira a uma
conspiração cinematográfica, onde todos os setores destinados ao lazer, à cultura, à informação e à
educação formal e informal, bem como a violência estatal, estavam a serviço de uma dominação de
classe, que veio desembocar no golpe de 1964 e “desatou a contrarrevolução como processo
11 12
prolongado ”. Para exemplificar, vejamos o envolvimento de grandes “times de futebol” , no movimento
conspirativo do golpe e até mesmo sua manutenção, onde necessariamente a produção de consenso
acrescida da violência, manteve a dominação da classe burguesa. Conseguiram parar a história por
13
algum tempo, ou seja, “a ditadura foi criada para resolver a crise do poder burguês ” e, por um pouco de
tempo a burguesia viveu um sonho de dominação perfeita, no entanto, aquilo que era temido num
passado recente, voltava a assombrar, pois a classe trabalhadora se reorganizara e os problemas no
campo continuavam, levando os camponeses à reconstrução de movimentos organizados de luta e
protesto. Diante disso, a burguesia se perguntava então; o que fazer com todo o poder burocrático
ditatorial militar ultrapassado e todos os seus riscos?
De acordo com Renato Lemos, o golpe representou a “implantação de um novo regime político e
um formato de Estado ainda inédito na América Latina: uma ditadura burguesa capitaneada pelas forças
14
armadas ”. Pois bem, o golpe e a violência serviram para a dominação de classe por algum tempo,
esboçando até ares de desenvolvimento com o “milagre econômico”, no entanto, este se desmanchava
assim como o sonho burguês, que era a ilusão de se obter quase uma “escravidão civilizada e oficial,”
sobre a classe trabalhadora. Cronicamente falando, sem liberdade de expressão, sem liberdade de
escolher os dirigentes, sem poder de pensamento político, o povo brasileiro foi mergulhado numa
ditadura sanguinária e qualquer contestação era exposta ao “chicote institucional”, o qual levava à prisão,
às torturas, ao exílio e até mesmo à morte, Mesmo com a existência dos poderes legislativo e judiciário,
estes não atuavam plenamente diante da tirania do executivo, estabelecendo-se a exclusão de forças
políticas contrárias, bem como o uso da violência estatal para a contenção de qualquer forma de
manifestação, protestos ou organizações, fossem elas de trabalhadores, estudantes ou revolucionários.
Sobre pretexto da guerra civil, da ameaça comunista e terrorismo, é que a classe burguesa organiza o
golpe com os militares e assim mantém seu domínio de classe.

8
Fernandez, Op. Cit. p. 96.
9
Jair Bolsonaro. Discurso parlamentar, 09 de julho de 2009, transmitido pela TV câmara, disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=G1zOLnTwCgI. Acessado em 21/01/2013.
10
LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência política e anistia. Texto disponível no site:
http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos. Acessado em 20/12/2012.
11
Fernandez, idem p. 96
12
DREYFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e o golpe de classe. Petrópolis:
Vozes, 1981. ( Capítulo VIII: A ação de classe da elite orgânica: o complexo IPES/IBAD e os militares) p. 361-
415. p. 385, 386.
13
FERNANDEZ, Op. Cit. p. 97.
14
LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência e anistia. Texto disponível em:
http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos Acessado em 31/01/2013.

87
A ditadura civil-militar no Brasil permanece na atualidade levantando aspectos problemáticos em
relação às visões interpretativas sobre suas reais consequências para a sociedade, sendo que suas
memórias, ou seja, as recordações, os silêncios e os esquecimentos, têm provocado neste início de
milênio uma “reviravolta” na história da memória brasileira sobre o regime ditatorial. No ano de 2012,
mais especificamente no dia 29 de março, alguns militares se encontraram no clube militar da cidade do
Rio de Janeiro, para comemorarem a data do golpe de 1964, como se aquilo fosse um grande feito para
15
a nação brasileira .
Silvio Tendler, cineasta e documentarista brasileiro, um pouco antes da data mencionada acima,
fez uma convocação através de um vídeo na internet para se reunirem na data e local acima
mencionada para protestarem contra o que ele chamou de “festim diabólico,” segundo as suas palavras,
“é inadmissível que exista gente que ainda hoje pretenda comemorar o golpe de 1964. É inadmissível
que se use espaços públicos pra comemorar a implantação de uma ditadura que destruiu uma geração
16
inteira. ” Mas quais os problemas para escrever história, diante de uma disputa de memórias que
envolvem torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres e o uso abusivo da mídia em geral como meio
de propagação de aspectos positivos de um regime ditatorial que torturou, matou e fez do povo massas
de manobras, com objetivos de dominação de classe?
As maneiras de utilizar o passado levam consigo, às vezes, a imposição de determinadas
visões, nem sempre condizente com a “realidade”, sendo que “os atores sociais diversos lutam para
afirmar a legitimidade de sua posição, em face de seus vínculos com o passado, estabelecendo
17
continuidades ou rupturas com o mesmo ”, construindo interpretações que podem manipular, rotular e
inculcar determinadas visões inaceitáveis sobre os fatos. No que diz respeito à discussão atual sobre
história e memória é possível ver claramente uma aproximação entre as duas, certa complementaridade
e seria um erro separá-las por completo, já que ambas tem o mesmo propósito, a reconstrução do
passado, embora a memória seja extremamente subjetiva e não muito preocupada com as provas. A
história além de ser objetiva, carrega consigo toda uma metodologia e certa “oficialidade” tanto em suas
funções didáticas, quanto sociais, podendo assim também se tornar um problema, ou seja, ser oficial e
não crítica. A representação do passado começa com a memória, cabendo à história a capacidade de
“ampliar en el tiempo la fuerza de la crítica, en el orden del testimonio, de la explicación y de La
18
comprension. ”
Em 2009 circulava no congresso nacional um projeto de lei que viria a se concretizar conforme já
visto acima, em uma comissão da verdade, que visa esclarecimentos para a sociedade brasileira, de
fatos obscuros ocorridos principalmente durante a ditadura civil-militar brasileira. Convém ressaltar que a
comissão não terá um apelo judicial, por causa de “negociações” com os militares e setores de direita
extremada que, “saracotearam” de todas as maneiras com discursos estereotipados, com medo de
revelações das atrocidades cometidas no período turvo da ditadura. Assim pessoas ou grupos
privilegiados incentivam a construção memorial de acordo com suas ligações com o passado, fazendo
com que a memória trabalhe a favor de determinados grupos. Vejamos o exemplo do deputado federal
Jair Bolsonaro, já citado aqui, sobre a guerrilha do Araguaia, em que traduz a busca de corpos em uma
piada cretina, num cartaz enorme pendurado no seu gabinete diz: “desaparecidos do Araguaia, quem
19
procura osso é cachorro ”.
É importante para os militares e a elite, negar o termo ditadura, bem como a negação da
institucionalização da violência, do terrorismo de Estado com as formas mais cruéis de torturas. Cresce a
veiculação de notas em jornais fazendo apologia à ditadura, onde podemos encontrar questionamentos
sobre a violência daqueles tempos, vejamos: “que tortura é essa da qual tanto reclamam? Aquela que se
caracterizava numa bolachada ao lado do ouvido para que o elemento pernicioso que fora preso
20
denunciasse em qual local seria explodida outra bomba que iria matar mais inocentes? ”
Dizer que não houve torturas, me parece ingenuidade ou hipocrisia, porque ainda nos anos

15
No dia 29 de março de 2012, manifestantes protestaram do lado de fora do Clube Militar, no centro do Rio, onde
acontecia uma comemoração pelo aniversário do golpe de 1964. A polícia militar, como de costume, fez farta
distribuição de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e muita truculência. Ex-militares como o tenente-coronel
Lício Maciel, que participou de operações no Araguaia, e o general Nilton Cerqueira, responsável pela execução
de Carlos Lamarca, foram escorraçados pelos manifestantes. Vídeo disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=pU08Qu2BjTY. Acessado em 13/01/2013.
16
Ato contra a comemoração do golpe de 64. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1_Io 8tz9WLM.
Acessado em 13/01/2013.
17
TELES, op. cit., p. 258.
18
RICOUER, P. La memoire, l’ histoire, l’ oubli, p. 153 capud, CUESTA, Josefina. La odisea de la memoria,
historia de La memoria em España siglo XX. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 2008, p. 32.
19
Gabinete do deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ), 27/05/2009). Foto: Rogério Tomaz Jr. Disponível em:
http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2009/05/27/jair-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quem-procura-
osso-e-cachorro/. Extraído em 20/01/2013.
20
Jornal Gazeta do Paraná. Tortura ou melancia no pescoço. Paulo Martins. Sábado 21/03/2009.

88
1990, é possível encontrar relatos como o de Marcelo Paixão de Araújo que servia como tenente no 12º
Regimento de Infantaria do Exército em Belo Horizonte, dizendo em entrevista que,

fiz (as torturas) porque achava que era necessário. É evidente que eu cumpria ordens.
Mas aceitei as ordens. Não quero passar a ideia de que era um bitolado. Recebi ordens,
diretrizes, mas eu estava pronto para aceitá-las e cumpri-las. Não pense que eu fui
forçado ou envolvido. Nada disso [...] Nessa época, eu tinha 21 anos, mas não era
nenhum menino ingênuo (risos). O pau comia mesmo. Quem falar que não havia tortura
21
é um idiota .

No Oeste paranaense houve intensa repressão aos movimentos de esquerda, onde várias
pessoas foram presas e torturadas. No município de Nova Aurora, por exemplo, ocorreram prisões de
várias pessoas no ano de 1970, que ainda hoje causam polêmicas. Trata-se da prisão de pessoas que
faziam parte de um comando territorial da Var-Palmares, entre eles se encontravam Izabel Fávero, Luiz
Andréa Fávero, Alberto João Fávero, Gilberto Hélio da Silveira, José Deodato Motta, Adão Pereira Rosa
22
e Benedito Osório Bueno . Enfatizaremos por enquanto aqui dois pontos importantes para um debate
inicial sobre memórias da ditadura militar no Oeste Paranaense. Primeiro, Izabel Fávero se encontrava
grávida no momento da prisão e abortou devido ás torturas conforme relato onde conta que,

eram mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram à fazenda dos meus sogros
em Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada pelo Exército. Mobilizaram cerca de
setecentos homens para a operação. Eu, meu companheiro e os pais dele fomos
torturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito choque elétrico. Fomos
literalmente saqueados. Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, a
roupa de cama e até o meu enxoval. No dia seguinte, fomos transferidos para o
Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturados
pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau-de-
arara, choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro. Dias
depois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um emblema do Esquadrão
da Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu ficava horas numa sala, entre
perguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam
sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau-de-arara, ameaça de estupro e
23
insultos, eu abortei .

A pessoa que “comandou” a prisão e as torturas, Mário Expedito Ostrovski é advogado na


atualidade e mora em Foz do Iguaçu. Tais fatos da época foram confirmados por um soldado que
participou daquela operação em uma carta anônima enviada ao jornal folha de Londrina em agosto de
24
2001 . O fato de ser uma denúncia sem nome, parece demonstrar aspectos cruéis em relação ao
acontecido e provavelmente temendo pela crueldade que poderia acontecer a si próprio, caso viesse a
se identificar. Embora o mesmo tenha uma ligação com este passado, ao lado dos torturadores,
presenciou os males das torturas e reconhece no presente as injustiças cometidas pelo regime ditatorial.
Assim como o relato de Marcelo Paixão de Araújo, as torturas foram ações bizarras durante a ditadura e
é estarrecedor que alguns afirmem que não ocorreram tais procedimentos no Brasil apesar de todas as
provas. O segundo caso é de Maria Lucia dos Santos Brandão, filha de Benedito Ozório Bueno, que
também fazia parte do grupo em questão e que, segundo a comissão especial de indenização aos
presos políticos do Estado do Paraná, além das torturas físicas que recebeu sua família também foi
ameaçada, caso fizesse parte do ocorrido. Com sua prisão a produção agrícola da qual dependiam foi
afetada, “depois de recuperar a liberdade, Benedito teve que recorrer à ajuda de amigos para sobreviver
25
até quando veio a falecer. Ainda hoje suas filhas sofrem necessidades com o ocorrido ”.
A filha de Benedito Osório Bueno ainda luta para conseguir uma indenização, mas seu pedido foi
26
indeferido . O grande problema da reparação econômica é o processo de transformação dessas
pessoas em vítimas, invisibilizando a luta pela democracia e todos os seus custos. Ora a dor e a
humilhação das torturas permanecerão, sendo que os resquícios e continuações da ditadura também

21
Entrevista de Marcelo Paixão de Araújo à revista veja de 09/08/1998. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/091298/p_044.html. Acessado em 22/01/2013.
22
PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2006, p.
107.
23
Relato de Clari Izabel Fávero, Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br /repressao/forcas-
armadas/professora-torturada-na-ditadura-acusa-advogado-de-foz-do-iguacu-de-ser-o-responsavel-pelas-
sevicias-e-aborto/. Acessado em 15/01/2012.
24
PALMAR, Op. Cit. p. 109.
25
Processo de indenização aos presos políticos do Estado do Paraná, 25 de outubro de 2004.
26
Jornal Gazeta do povo de 06 de março de 2005.

89
continuam e nos fazem refletir sobre porque, por exemplo, os nomes de ruas de presidentes ditadores
ainda continuam escancaradamente pelas cidades brasileiras. Em Nova aurora, por exemplo, temos a
rua presidente Médici, que “governou” o período mais repressivo do regime e também a rua Castelo
Branco, primeiro presidente após o golpe.
As pessoas que se mostraram contrárias ao regime, pagaram um preço altíssimo como a prisão,
torturas e exílio, sendo que no município em questão, não há menção a eles em lugar algum, nem na
prefeitura, biblioteca municipal, jornais ou rádios. A escola Estadual Jorge Nacli, onde a professora Izabel
Fávero lecionou ainda existe, mas o esquecimento institucional se estabeleceu. Pessoas que
presenciaram toda a mega operação de aproximadamente 700 homens do exército, polícia militar e
DOPS em 1970 para prender nove pessoas, falam com timidez sobre o assunto, como é o caso do
senhor Raul Pezenti morador da cidade desde 1954 diz que:

estava trabalhando na máquina quando vi os soldados [...] Ninguém falava sobre o


comunismo. Era algo que estava escondido de nós, ninguém sabia sobre isto. Mas
pouco se falava sobre política, tanto que quando chegaram [os soldados], foi pouca a
repercussão sobre o Liberato, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo e qual
27
era a realidade [...] As coisas estavam por baixo de um pano .

Luiz Andréa Fávero, Izabel Fávero, Alberto Fávero e Gilberto Hélio da Silveira estavam
28
estruturando um comando territorial da Var-Palmares, uma “área tática de apoio” pertencendo
realmente à organização referida. O restante do “grupo” estava apenas tomando conhecimento e haviam
participado de algumas reuniões, talvez treinamentos de tiros, mas mesmo assim foram submetidos à
prisão e às torturas, resultando em alguns casos, consequências drásticas já relatadas aqui. Essas
pessoas eram camponeses descontentes e desejavam mudanças sendo que a falta de justiça em
relação aos casos de torturas e outras ignomínias do regime ditatorial podem provocar discursos
nostálgicos e inclusive com caráter de “oficialidade”, nos meios de comunicação, que com certeza
mistificaram e ainda continuam mascarando as os fatos sobre a ditadura, ou ainda transformá-los em
apenas vítimas, ignorando seus valores e sua luta.
As lembranças das torturas fazem parte da formação do processo histórico até podendo fazer
parte dos custos da democracia, o que se constitui um absurdo, pois se trata de uma violação dos
direitos humanos. No entanto é preciso ter cuidado para não transformar as pessoas em vítimas, seja
com indenizações financeiras ou não, pois assim, coloca-se um ponto final, apagando-se todos os custos
da democracia, bem como promovendo a falta de justiça, a “ponto falar muito das “vítimas” e esquecer-
29
se dos ditadores ”. Segundo o jornalista de Foz do Iguaçu Aluizio Palmar, “não existe ódio em relação
30
aos torturadores, mas sim sequelas ”,sendo necessário que se faça justiça.
A promoção de “vítimas” propicia ao Estado ausentar-se de todas as responsabilidades, gerando
um clima de perdão e reparação econômica, apagando assim todos os valores políticos das pessoas que
lutaram pela democracia, provocando o esquecimento consciente das causas em que essas pessoas se
tornaram “vítimas” e o porquê decidiram lutar. Parece uma coisa ao acaso, mas não é, pois se trata de
lembrar-se das “vítimas” e esquecer aqueles que provocaram a ausência da liberdade, o terrorismo de
Estado, sob a lei de segurança nacional, mergulhando o país em anos ditatoriais. Estes estão soltos por
aí como Mário Expedito Ostrovski e Marcelo Paixão de Araújo discursando a “vitória” e propagando
agradecimentos aos militares que impediram uma “ditadura do proletariado” e a instauração do
comunismo aqui no Brasil, repetindo sempre o mesmo discurso.
Este me parece um ponto importante para a discussão, pois “a própria ideia de Revolução é
criminalizada, automaticamente remetida para a categoria do comunismo e assim arquivada no capítulo
31
‘totalitarismo’ da história do século XX ”. Tornou-se muito comum a associação direta entre comunismo
e Stalinismo, reduzindo toda uma ideia de sociedade igualitária e mais justa ao terrorismo de Estado.
Dessa maneira, o capitalismo vai sendo imposto como a forma “ideal” de se viver em sociedade e o
liberalismo econômico constitui suas principais regras. Apresentam-se como a solução de todos os
problemas da sociedade e identificado como o sistema social e político “mais democrático” (é claro que
isso impostamente) até então na história da humanidade, mas quando a balança da luta de classes
pareceu pender para o lado da classe trabalhadora, foram necessárias doses gigantescas de violência,

27
Entrevista concedida em Dezembro de 2012 a Marcos Adriani Ferrari de Campos.
28
Documento da secretaria de Estado de segurança pública, intitulado V.A.R. Palmares, in: Arquivo público do
Paraná.
29
VINYES, op. cit, p.56.
30
Aluizio Palmar em entrevista: “É preciso que a Comissão da Verdade faça justiça” – Entrevista especial para o
QTMD? (Quem tem medo da democracia?). Disponível em: http://quemtemmedodademocracia.com
/2011/10/05/aluizio-palmar-e-preciso-que-a-comissao-da-verdade-faca-justica-especial-para-o-qtmd/. Acessado
em 20/01/2013.
31
TRAVERSO, op. Cit. p. 120.

90
para manter a ordem burguesa.
Nos períodos mais obscuros do século XX, quando a opressão, as desigualdades e a violência
tenham talvez alcançado seu ponto mais descarado, ou seja, a exploração passa a ter um aspecto
“oficial”, o comunismo aparecia como o sonho de milhões de pessoas, sendo ideias pelas quais fazia
sentido lutar. Essas ideias de igualdade e sociedades justas assustam muito as elites, pois se servem da
classe trabalhadora como fonte de exploração e suprimento de suas luxúrias. Deste modo, o comunismo
passa a ser expurgado, reprimido e também pregado religiosamente como fonte do mal.
No Brasil, durante a ditadura, muitos jovens foram embalados pelos ideais comunistas, mas
havia de certa maneira, um exagero de utopia em relação aos ideais comunistas que eram os sonhos de
milhões de pessoas, pois quando comparado às ignomínias provocadas pelo capitalismo e o liberalismo
ocidental, a emancipação dos povos era a esperança de um mundo melhor. Chegado o século XXI, o
comunismo não é mais evocado por aqueles que um dia acreditaram que se poderia construir um mundo
melhor. Vejamos o exemplo da atual presidente da república brasileira, Dilma Rousseff, em 2009,
quando ainda não ocupava tal cargo, dizendo que: “a gente acreditava sinceramente que iríamos mudar
o mundo, que haveria um mundo mais igual, que o Brasil ia ser um país diferente, [...] éramos uma
32
geração que discutiu muito, [...] mas sobretudo, queríamos igualdade social ”. Assim parece não ousar-
se mais, evocar um sistema alternativo de sociedade. Não que seja o “fim da História”, mas criou-se uma
forma de consenso tão complexa que às vezes parece até irrefutável, no entanto se analisada de forma
coerente suas contradições saltam aos olhos.
Um dos conceitos propagados pelos militares em relação à comissão da verdade é o do
revanchismo, já que a lei de 1979 anistiou (apagou) e “pôs um ponto final na história”, mas o fato é que
os presos políticos foram condenados, torturados, exilados e em alguns casos mortos e os torturadores
não foram julgados. A distensão “lenta, segura e gradual”, proposta em 1974 para uma abertura
tranquila, tinha em seus custos a garantia de continuações do regime na sociedade, sendo que uma
ruptura poderia ser prejudicial aos planos da burguesia. A lei da anistia, que em meio a toda a sua
ambiguidade, excluía a responsabilidade do regime por todas as consequências, inclusive das torturas e
mortes, sendo assim, perdão a revolucionários e torturadores, igualando as causas de ambos. Segundo
a cartilha da comissão da verdade no Brasil.

Um dos objetivos que têm causado muita discussão é justamente o da reconciliação e


do estabelecimento da paz. Embora seja um objetivo louvável e um corolário dos que
promovem os Direitos Humanos como valor intrínseco à Democracia, deve-se
reconhecer que, para as vítimas, promover a reconciliação e a paz só pode ser possível
com a Justiça e com o reconhecimento oficial das responsabilidades de indivíduos que,
a mando do Estado, violaram os direitos mais elementares, prendendo arbitrariamente,
33
torturando e assassinando opositores do regime, muitos deles até hoje desaparecidos .

No entanto se pode perceber que esses indivíduos torturadores a serviço do Estado andam por
aí impunes e a palavra reconciliação pode muito bem significar esquecimento, já que os mais diversos
atores envolvidos nessas tramas de recordações, silêncios e esquecimentos de determinados aspectos
do passado, incorporam a este, os sentidos que melhor se adequarem à ligação que os mesmos têm
com esse passado. É claro que as pessoas que foram torturadas, sentem a necessidade de justiça, pois
carregam em suas mentes lembranças e traumas que guardarão para o resto de suas vidas, pois é
quase impossível se esquecer de tais experiências.
Por outro lado temos as pessoas que sob ordens superiores, realizaram coisas bizarras entre as
quais podemos citar, “choques nos testículos, pênis, orelha, língua, tudo isso amarrado no pau de
34
arara ”, além das pressões psicológicas às quais incluíam ameaças veladas de mortes, como no caso
da prisão do grupo de Nova Aurora que incluíam voos da morte com helicópteros sobre as cataratas do
Iguaçu. Apesar de todas as provas, a tortura continua sendo negada, caracterizando assim a impunidade
daqueles que a utilizaram. O caráter não punitivo da comissão da verdade no Brasil salienta algumas
reflexões. Em primeiro lugar se manterá intacta a lei de anistia de 1979, com o perdão irrestrito a
torturadores e revolucionários, substituindo toda a luta pela democracia e tornando um “benefício” do
regime ditatorial ao povo.

32
Dilma Rousseff, in: Documentário; Utopia e barbárie. Direção: Silvio Tendler, 2009 Brasil; Idioma do Áudio:
Português, Inglês, Espanhol, Francês, Italiano."Utopia e Barbárie" é um road movie histórico que percorreu ao
todo 15 países: França, Itália, Espanha, Canadá, EUA, Cuba, Vietnã, Israel, Palestina, Argentina, Chile, México,
Uruguai, Venezuela e Brasil. Em cada um desses lugares, Tendler documentou os protagonistas e testemunhas
da história do século XX.
33
A Comissão da Verdade no Brasil. Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivo
nacional.gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20da%20Verdade%20-
%20N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdf. Acessada em 20/01/2013.
34
Entrevista à Alberto Fávero cedida à Marcos Adriani Ferrari de Campos em janeiro de 2010.

91
Em segundo lugar, pode-se criar um aspecto de oficialidade, ou seja, “proclamar la memória
35
como um deber ” produzindo uma visão parcial, permitindo a isenção de responsabilidades do Estado,
36
impondo assim interpretações sobre o passado de maneira que haja “reconciliación y consenso ”, com
intenção de produzir uma “harmonização histórica”, impedindo as resignificações e fazendo desaparecer,
como se tem insistentemente reclamado aqui, a luta pela democracia, perpetrando assim o processo de
vitimização, renunciando “a explicar la democracia como um bien conquistado com esfuerzo coral y
desde la calle. [...] la que hace que el passado no acabe de trancurrir, no acabe de pasar y se instaure
37
um vacio ético, generando reclamos y creando conflitos .”
A reconciliação pode significar também, certas continuidades ditatoriais na sociedade, apenas
deixando o tempo passar, como se fosse trazer a paz, talvez para os torturadores da comemoração no
clube militar, que hoje são senhores aposentados, melhor dizendo, torturadores aposentados, ou pelo
menos coniventes com a violência da ditadura. De qualquer maneira, espera-se que pelo menos a
comissão da verdade, mesmo sem caráter punitivo possa esclarecer e “quebrar” as visões, como aquela
do jornal Folha de São Paulo, de que a ditadura não teria sido tão violenta, fazendo com que o termo
38
“Ditabranda ”, não possa circular na mídia de maneira geral, sem escapar da crítica e do
reconhecimento de um passado onde as ações ditatoriais foram irreparáveis e “ante ló irreparable, el
39
perdón no tiene sentido.”
Seria simples dizer que a escrita da história começa pela organização das memórias, e que até
mesmo a própria história começa com as memórias, no entanto, o estudo sobre a produção
memorialística da ditadura civil militar, por exemplo, consiste na análise de recordações, silêncios e
esquecimentos, que fazem parte da memória e, portanto da história. As recordações são provocadas por
alguma notícia, fotos, pesquisas e podem trazer a tona lembranças de um passado não muito distante,
mas o bastante para provocar às vezes sentimentos nostálgicos e às vezes juízo de valor, principalmente
sobre a violação dos direitos humanos, tanto a si próprio, quanto de pessoas conhecidas. As
recordações podem gerar lágrimas ou risos, mas de acordo com as influências ou relações do passado
com o presente de quem lembra, sendo que constantemente pode produzir também o silêncio e o
esquecimento.
Assim, como já citado aqui, a negação da tortura, constitui-se numa construção, pois, “o
40
presente está impregnado pelo passado ”, sendo que nos anos 90, falar em torturas a presos políticos
podia ainda significar comicamente a “vitória, uma conquista para a nação” e a transição sem rupturas,
propiciou o desenvolvimento de certas continuidades como nomes de ruas, monumentos e discursos
apologéticos sobre o milagre econômico, a segurança, entre outros aspectos, defendidos até hoje pela
burguesia, militares e doutrinados, pois é mais fácil reconstruir o significado do passado, do que assumir
as barbáries, frutos do interesse de dominação, baseados numa lei de segurança nacional, que acabou
por distribuir a violência gratuita e a obediência obrigatória.

Referências Bibliográficas
PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?Curitiba: Travessa dos Editores, 2006.
RICOUER, P. La memoire, l’ histoire, l’ oubli, p. 153, capud, CUESTA, Josefina. La odisea de La
memoria, historia de La memoria em España siglo XX. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 2008.
TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa Unipop, 2012.
TELES, Janaina de Almeida. As constituições das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto
Brasil: Nunca mais e a abertura da Vala de Perus. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 257-292, jul.
2012.
VINYES, Ricard (ed.) El Estado y La memoria: gobiernos y ciudadanos frente a lós traumas de La
historia. Barcelona, RBA, 2009. p.23.
35
VINYES, op. cit. p. 57.
36
Idem, p. 57.
37
Idem, p. 57.
38
Jornal Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009.
39
LEVI, Primo. Capud, VINYES, op. cit. p. 59.
40
CUESTA, op. Cit, p. 61.

92
FERNANDEZ, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.
DREYFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e o golpe de classe. Petrópolis:
Vozes, 1981. ( Capítulo VIII: A ação de classe da elite orgânica: o complexo IPES/IBAD e os militares) p.
361-415.

Sites
http://www.youtube.com/watch?v=G1zOLnTwCgI
http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos
http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20da
%20Verdade%20-
%20N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdfhttp://quemtemmedodademocracia.com/2011/10/05/aluizio-
palmar-e-preciso-que-a-comissao-da-verdade-faca-justica-especial-para-o-qtmd/
http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2009/05/27/jair-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quem-
procura-osso-e-cachorro/
http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/forcas-armadas/professora-torturada-na-ditadura-
acusa-advogado-de-foz-do-iguacu-de-ser-o-responsavel-pelas-sevicias-e-aborto/
http://www.youtube.com/watch?v=pU08Qu2BjTY
http://www.youtube.com/watch?v=1_Io8tz9WLM
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOSHUMANOS/148111-PROJETO-CRIA
http://veja.abril.com.br/091298/p_044.html

Fontes
Entrevista a Alberto Fávero cedida a Marcos Adriani Ferrari de Campos em janeiro de 2010.
Dilma Rousseff. In: Documentário Utopia e barbárie. Direção: Silvio Tendler, 2009, Brasil. Idioma do
Áudio: Português, Inglês, Espanhol, Francês, Italiano. "Utopia e Barbárie" é um “road movie” histórico
que percorreu ao todo 15 países: França, Itália, Espanha, Canadá, EUA, Cuba, Vietnã, Israel, Palestina,
Argentina, Chile, México, Uruguai, Venezuela e Brasil. Em cada um desses lugares, Tendler
documentou os protagonistas e testemunhas da história do século XX.
Entrevista concedida em Dezembro de 2012 a Marcos Adriani Ferrari de Campos.
Documento da secretaria de Estado de segurança pública, intitulado V.A.R. Palmares, in: Arquivo
público do Paraná.
Processo de indenização aos presos políticos do Estado do Paraná, 25 de outubro de 2004.
Entrevista de Marcelo Paixão de Araújo à revista veja de 09/08/1998.
Jornal Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009.
Jornal Gazeta do Paraná. 21 de março de 2009.
Jornal Gazeta do povo de 06 de março de 2005.

93
Índio Vargas e Jorge Fisher Nunes: os referenciais da resistência armada, durante o
período da Ditadura Militar, vistas a partir das memórias de dois militantes de
esquerda que atuaram no Rio Grande do Sul.

1
Nôva Brando

Resumo: As memórias de Índio Vargas, em Guerra é guerra, dizia o torturador, e de Jorge Fischer
Nunes, em O Riso dos Torturados, estão inseridas dentro do contexto no qual ocorreu a primeira onda de
publicações de memórias sobre a Ditadura Militar no Brasil. Nesse período, as lutas pela democratização
do país foram protagonizadas de diferentes formas, dentre as quais a edição de memórias que tornava
público a repressão e a violência do Estado dirigidas àqueles que resistiam ao regime. Além das
denúncias, há uma característica permanentemente presente nessas obras, a reivindicação de
referenciais de luta, desde o local ao geral, que permeavam todo um período de resistência. As
referências presentes nas memórias de Fischer e de Vargas, neste trabalho, são identificadas e
compreendidas enquanto parte de um referencial pertencente a uma memória coletiva e uma memória
política construídas em meio à resistência armada e construtoras de uma resistência memorialística ao
Regime Militar.
Palavras-chave: Ditadura Militar – Memórias da Ditadura – Luta Armada

Abstract: Índio Vargas’ memories in Guera é guerra, dizia o torurador, and Jorge Fischer’s memories in
O Riso dos Torturados are inset in the first wave of memories publications about Military Dictatorship in
Brazil. In this moment, the democratization’s figth was staring by differents forms and the editions of
memories was one that publicize the state’s repression and violence against the people that made
opposition by the regime. Besides this denounces, there is a permanently characteristic in this titles: the
claim of referential’s fight, both local and general, that permeated a whole period of resistance. The
references presents in Fischer’s and Vargas’ memories, in this work, are identified and understood as a
part of a referential that belongs a colective memory and political memory constructed midstream armed
resistance and them constructed a memory resistance face to Military Dictatorship.
Key-words: Military Dictatorship – Dictatorship’s memories – Armed Struggle

Introdução
As obras de Índio Vargas, Guerra é guerra, dizia o torturador, e de Jorge Fischer Nunes, O Riso
dos Torturados, estariam situadas dentro da primeira onda de memórias revolucionárias (1975-1985), em
que a esquerda procurou continuar nas páginas dos livros a luta contra a Ditadura Militar. Segundo
Cardoso, dentre as diferentes perspectivas na historiografia – e mesmo nos mais variados registros
como dossiês, diários, entrevistas, biografias, romance político –, os livros de memória ocupariam um
lugar particular enquanto instrumento de compreensão do Período da Ditadura. Para a autora, no interior
desse “surto memorialístico”, os livros de memórias seriam instrumentos representativos de grupos que
2
construiriam diferentes representações do passado.
Para Martins, os narradores da esquerda sentiriam obrigação de contar e recontar os
acontecimentos que cercam a resistência derrotada, para que mantivessem viva a memória dos anos 60
3
e 70. Isso pareceu tanto um “dever de memória”, no sentido de que seria preciso lembrar do passado

1
Formação Acadêmica: Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
graduanda em pedagogia pela UFRGS e especializanda em Ensino da Geografia e da História pela
FACED/UFRGS. Email: nova-brando@sarh.rs.gov.br
2
CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. São Paulo, Revista Brasileira de História,
v. 14, n. 27, 1994. p.180. Também nesse artigo, a autora trabalha com memórias dos militares que, segundo ela,
podem ser entendidas como uma resposta às memórias dos militantes de esquerda, no mínimo por aquelas
terem sido publicadas posteriormente a essas.
3
MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e
militares. Belo Horizonte, Varia História, n. 28, p. 178-200, dez. 2002. p.1. O autor, nesse artigo, além de
analisar livros de memórias de militantes de esquerda, analisa a memória dos militares, situando-nas naquilo
que denominou como “a guerra da memória”, onde as memórias conflitantes “disputariam” o passado.

94
para que ele não se repetisse, quanto para responder uma demanda da esquerda, que começava a
passar por um período de avaliação das suas ações durante o período da ditadura. Nesse sentido, essas
memorias, repletas de considerações sobre a resistência, do ponto de vista de quem naquelas fileiras
esteve, agora possibilitariam uma aproximação entre os problemas de pesquisa histórica, referentes aos
posicionamentos da esquerda naquele período, e o desenvolvimento do conhecimento acerca daquele
período.
Tanto Vargas quanto Fischer atuaram na luta armadas no estado do Rio grande do Sul e suas
memórias relatam esse período. Transformadas em obras memorialísticas, suas memórias, nesse
trabalho, são entendidas como fontes riquíssimas, como sugerem Cardoso e Martins, para a
compreensão das discussões travadas entre a esquerda daquele período, sobretudo aquela que optou
pela luta armada.
Encontramos dentro das memórias desses militantes que optaram pela luta armada a
reivindicação de referenciais utilizados como aportes explicativos e de sustentação de uma leitura
conjuntural que fazia das ações radicais a única possibilidade real de oposição ao regime naquele
momento em que as vias institucionais foram deliberadamente fechadas. Para trabalharmos com a
4
reincidência dessas rememorações é que atentamos para a existência, conforme Hallbwachs , de uma
5
“memória coletiva” e, de acordo com Ecléa Bosi , uma “memória política”, que teriam sido construídas e
consolidadas entre os militantes que lutaram contra a Ditadura de 1964.
Nas descrições das ações, na crítica e na autocrítica dos projetos armados bem como nos
referenciais por eles reivindicados, os memorialistas, no caso desse trabalho, Vargas e Nunes, por um
lado, apoiar-se-iam em uma memória coletiva da esquerda sobre aqueles tempos, percebida nas
menções recorrentes, por exemplo, ao caso do Marighela, ao caso do Lamarca, às discussões teóricas e
aos apontamentos das lutas internacionais travadas naquele momento. Por outro lado, haveria uma
memória política expressa nessas rememorações, nas quais a presença de juízos de valores e
demarcações de posição política estariam fortemente presentes. Portanto, identificar as referências
presentes nos relatos memorialísticos dos dois autores e compreende-las enquanto memórias coletivas
e memórias políticas construídas a partir da resistência e construtoras de uma posterior resistência
materializada na publicação de suas obras, é a intencionalidade primordial desse artigo.

Breves Considerações – Memórias sobre as organizações e as ações armadas


Em um primeiro momento, apresentaremos os autores e descreveremos algumas informações,
trazidas por eles em suas memórias, acerca das ações armadas na região metropolitana de Porto
Alegre, para que tenhamos noção de qual esquerda e de qual luta armada estamos trabalhando a partir
desses dois livros de memória.
6
Jorge Fischer Nunes, autor de Riso dos torturados , ligado, portanto à luta armada contra o
regime militar, em sua obra, além dos recortes que serão explorados e desenvolvidos nesse trabalho,
denuncia policiais, militares, autoridades públicas, delatores. Também faz um relato dos períodos em que
esteve preso, das torturas e das vivencias nos locais por onde passou. Preso em 1969, e falecido na
segunda metade da década de oitenta, Nunes está presente no rol dos militantes de esquerda
7
indenizados pelo Estado .
8
Índio Vargas, autor de Guerra é guerra, dizia o torturador , militante ligado ao nacionalismo de
9
esquerda (PTB), narra em sua obra, as experiências políticas vinculadas tanto a Brizola quanto a sua
participação indireta em ações armadas na região metropolitana de Porto Alegre, que o levariam à tortura
no Rio Grande do Sul, após sua prisão em 1970, quando foi para a Ilha do Presídio. Assim como Fischer,
10
também foi indenizado pelo Estado nos termos da Lei n.º 11.042/97, completada pela Lei n.º 11.815/02 .
No ano de 1969, os memorialistas decidiram-se pela luta armada como estratégia de luta para
derrubar a ditadura militar. Os papéis destinados aos autores foram diferenciados. Enquanto Nunes
participaria direta e ativamente nas atividades das ações armadas, Vargas prestaria apoio logístico

4
HALLBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
5
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
6
NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados Porto Alegre: PROLETRA, 1982.
7
Informações encontradas em Acervo da Luta contra a Ditadura. Disponível em:
http://www.acervoditadura.rs.gov.br/indenizacao.htm Acesso em fev/2013.
8
VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982.
9
Vargas chegou a ser eleito vereador pela cidade de Porto Alegre durante a Ditadura, tendo seu mandato
cassado após vinte dias de sua posse. Em 1979, junto a outros tantos trabalhistas no exílio, assinou a “carta de
Lisboa” que fundou o Partido Democrático Trabalhista – PDT. Disponível em
http://www.sul21.com.br/jornal/2011/06/indio-vargas-a-violencia-maior-com-um-preso-e-o-choque-eletrico/ .
Acesso em fev/2013.
10
Informações encontradas em Acervo da Luta contra a Ditadura. Disponível em:
http://www.acervoditadura.rs.gov.br/indenizacao.htm Acesso em fev/2013.

95
como, por exemplo, garantir aparelhos necessários às reuniões, aos militantes clandestinos, aos
possíveis sequestros. Nesse mesmo período, teria ocorrido a formação da organização M3-G, sob a
liderança de Edmur – militante anteriormente ligado ao Marighela – da qual Nunes era militante orgânico
e Vargas prestava apoio logístico.
Desde os primeiros contatos para formar uma organização de luta armada no estado até os
momentos em que os autores caracterizaram as ações em seus detalhes, fica evidente certo otimismo
que não encontrava apoio na restrita amplitude das ações, que eram colocadas em prática por uma
11
organização precária e deficiente . Tratou-se de algumas expropriações bancárias que, longe de
patrocinarem a luta direta contra a ditadura, eram destinadas à sobrevivência dos militantes que já
estavam vivendo na clandestinidade. A existência dessa organização não teria durado por muito mais de
um ano. Logo após a tentativa de vinculá-la a outras organizações de nível nacional, com maiores
recursos nacionais e humanos, os integrantes do M3-G, começaram a ser identificados, procurados,
12
presos e torturados pelos órgãos de repressão da ditadura .
Procuramos, portanto, localizar a militância de Fischer e de Vargas, para entendermos um pouco
melhor quem são e o que fizeram os sujeitos que reivindicavam referenciais, parte de uma memória
coletiva e política da esquerda, que justificassem a luta pela qual optaram.

Referências da esquerda presentes nessas memórias


Nessa parte do texto, faremos um recorte das obras de Fischer e de Vargas que nos aproximem
da possibilidade de identificarmos e de compreendermos quais os referenciais reivindicados pela
esquerda, enquanto construções da resistência no período e enquanto construtores das memórias
desses militantes.

Olívio (nome suposto) era um jovem militante de pouco mais de dezoito anos. Um
13
brancaleone. Guri com cara de guri, mas com coragem para dar e vender.
[Edmur] Maneiras polidas, palavra fluente, linguagem característica de um homem de
esquerda, entremeando a terminologia dos novos marxismos com o jargão do velho
14
Partido Comunista.

Discutíamos [Fischer e Djalma] muito os casos Marighella e Lamarca. O ex-deputado


federal Carlos Marighella, constituinte em 1945 e que, após o golpe, se recusava a
permanecer como figura decorativa em um Parlamento amordaçado. Marighella caíra na
clandestinidade, organizando rapidamente o grupo de resistência armada Aliança de
Libertação Nacional. [...] Lamarca havia desertado do Exército, levando consigo dois
caminhões repletos de armamentos e construído a VPR – Vanguarda Popular
15
Revolucionária, um braço armado contra a ditadura.

Guevara poderia ter tranquilamente assumido este papel [revolucionário de gabinete,


envolvido apenas por suas teorias]. Pertencia à classe média, era um profissional
liberal. Preferiu, no entanto, unir-se ao proletariado. Rompeu todos os laços ideológicos
16
que o prendiam à sua classe, assumiu a ideologia do proletariado.

Edmur continuava imperturbável quando respondeu que a revolução é uma chama que
se alastra em proporções geométricas, e que logo seríamos dez, depois vinte, depois
cem. Eu já havia lido qualquer coisa parecida em algum livro de Mao, mas resolvi ficar
de bico fechado. A matemática revolucionária nem sempre apresenta alto grau de
17
confiabilidade.

Olívio, assim como seus outros companheiros de militância no Colégio Júlio de Castilho,

11
Quase todas as ações de assaltos a banco eram cercadas de falhas. O assalto ao banco de Cachoeirinha
exemplifica tais deficiências.IN: NUNES, op cit., 1982.p. 51; VARGAS, op cit., 1982. p.50. Detalhes desse
assalto aparecem também no livro de memórias de Garcia e Posenato. GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio.
Verás que um filho teu não foge à luta. Porto Alegre: Posenato Arte e Cultura, 1989. p. 29. Outra demonstração
da debilidade das organizações armadas da esquerda no estado do Rio Grande do Sul foi a tentativa frustrada
de sequestro do cônsul norte-americano. Essa ação é identificada pelos autores, embora não tenham
participado dela, como sendo a grande responsável pela intensificação da repressão no estado. A partir dela, os
militantes da esquerda radical foram sendo presos um por um, inclusive Edmur, Vargas e Fischer. IN: NUNES,
op cit., 1982.p.57; VARGAS, op cit., 1982. p.52.
12
NUNES, op cit., 1982. p.54-57
13
NUNES, op cit., 1982. p.77
14
VARGAS, op cit., 1982. p.40
15
NUNES, op cit., 1982. p.41
16
Idem, p.138
17
Idem, p.45

96
18
recebera o nome de brancaleone. A idéia de imaturidade para a luta e das sucessivas trapalhadas
durante as ações lhes renderam tal designação. Entretanto, como sugere Fischer, apesar da pouca
idade, esses militantes se opuseram ao regime militar, enfrentando uma opressão disposta a abafar
quaisquer sussurros de descontentamento, mais ainda quando viessem de um grupo minimamente
organizado.
Ao destacar as características de um novo marxismo presente naqueles que pegaram em armas
para derrubar a ditadura militar, Vargas nos apresenta Edmur. Já no primeiro contato que teve com o
então futuro dirigente do M3-G, o autor de Guerra é guerra, dizia do torturador nos remete a diversas das
características daqueles militantes dos anos de luta armada: uma disponibilidade intelectual aliada à
necessidade de ação imediata.
Marighela e Lamarca são os grandes referenciais do período no Brasil. Tanto a Aliança de
Libertação Nacional como a Vanguarda Popular Revolucionária representaram os maiores quadros da
luta armada nos anos de chumbo, ficando o nome de seus dirigentes registrados em diversas produções,
dentre elas as memórias analisadas nesse trabalho.
Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, e Mao, líder da Revolução Chinesa, são
amplamente rememorados. Os referencias extrapolam os limites nacionais, estando neles presentes
guerrilheiros admirados por uma parcela da esquerda brasileira daquele período. Isso porque esses
personagens construíram e refletiram a ideia da violência revolucionária justa que seria reivindicada
pelos militantes que optaram pela luta armada.
Muitas são as vitrines da esquerda durante os anos da repressão no país. Os exemplos vão
desde militantes inseridos em lutas mais localizadas, como o caso dos brancaleones, passando por
dirigentes de organizações que optaram pela luta armada como Edmur, Marighela e Lamarca, chegando
aos modelos internacionais como Che Guevara e Mão-Tsé-Tung.
O apoio de parcela de membros da Igreja progressista, sobretudo de Frei Betto e Frei Tito, o
caso do cabo Anselmo, os episódios dos sequestros de diplomatas e as críticas lançadas ao Partido
Comunista Brasileiro formam um outro conjunto de lembranças recorrentes nessas obras:

[...] a guerrilha urbana parecia prosperar. No Rio, em São Paulo e em Minas apoiava-se
o tripé da luta armada contra a ditadura. Nem o clero se omitia: frei Beto e um punhado
de padres da Igreja progressista alinhavam-se ao lado da vanguarda.

[Marujo] contou-me a sua história. Servia na Marinha de Guerra quando o cabo Anselmo
liderou a famosa “rebelião dos marinheiros”. Além de apoiar o governo João Goulart,
Anselmo levantava reivindicações específicas, muito sentidas pelos marinheiros, tais
como o direito da casar. Como ficou provado mais tarde, o célebre cabo era um espião
“infiltrado” no movimento popular. Após o golpe, quando ninguém suspeitava ainda de
que ele fosse espião, infiltrou-se em algumas organizações vanguardistas, entregando
inúmeros quadros que terminaram sendo assassinados pelos homens do DOI-CODI, da
19
OBAN, do Cenimar.

A única dessas ações [armadas], aliás, realizada em São Paulo no dia 10 daquele mês
de março [1970], foi o sequestro do cônsul japonês, cujo objetivo principal era a
libertação de Chizuo Sava, conhecido como Mário Japa, que estava preso na Operação
Bandeirantes e sendo submetido a todo tipo de tortura para abrir o esquema da VPR.
Mário Japa e mais quatro pessoas foram trocadas pelo cônsul do Japão, predominando
20
a rapidez nas negociações entre os sequestradores e o Governo brasileiro.

[Marighela] Destacou que os erros do Partido Comunista vinham-se acumulando desde


1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, e que se alguma participação teve na
resistência para impedir que a direita tomasse o poder naquela época e impedisse a
posse do vice-presidente João Goulart, foi porque aliou-se, com outras organizações
democráticas, ao então governador Brizola e ao Partido Trabalhista Brasileiro. Mais
tarde – no período de Jango o PCB insistia nos apelos à greve política, sem apoio dos
camponeses. A debilidade do movimento camponês era a falha principal. Havia uma
recusa sistemática em dar prioridade ao trabalho do campo, e sem a mobilização do
21
campo seria impossível o avanço da revolução.

18
O nome de Brancaleones foi dado por Flávio Koutzi àqueles militantes que nasceram do movimento estudantil
do Colégio Júlio de Castilho. Encontramos uma série de informações sobre o movimento estudantil dessa escola
no período da ditadura militar na obra de Gutiérrez. IN: GUTIÉRREZ, Cláudio. A guerrilha brancaleone. Porto
Alegre: Proletra, 1999.
19
NUNES, op cit.,1982. p.190
20
VARGAS, Índio. op cit., 1982. p.50
21
Idem, p.20-21

97
O apoio de Frei Betto e de muitos membros da Igreja Progressista são registros recorrentes nas
obras de militantes, ainda mais devido ao apoio à ALN e a forte ligação com Marighela, um dos inimigos
22
mais odiados pelos militares e mais queridos pela repressão.
Durante conversa com um companheiro na Penitenciaria Estadual do Partenon, Fischer relembra
o caso “Cabo Anselmo”, que durante algum tempo também foi visto como um companheiro de luta e,
também por tal motivo, foi marcado nas páginas dos livros como o grande delator. Infiltrado em algumas
organizações, serviu de informante para as forças da repressão que por meio de suas declarações
mapeou organizações, chegando a um grande número de militantes que foram presos, torturados e
assassinados.
As tentativas e os sequestros bem-sucedidos ocupam lugares privilegiados nas memórias, seja
por estarem carregados de ações, aspecto tão valorizado por parcela da esquerda atuante do período,
seja pelo desfecho, ora trágico, ora bem-sucedido como no caso do sequestro do cônsul japonês que
permitiu a libertação de prisioneiros que estavam sendo torturados como o caso de Mário Japa.
Marighela se tornou uma figura conhecida e reconhecida não somente pela sua oposição
enfática ao regime militar, mas também pelas severas críticas que esse personagem fez ao Partido
23
Comunista. Elas exemplificam bem os debates que resultaram nas inúmeras dissidências ocorridas
24
durante a década de sessenta e que fazem parte da memória coletiva das esquerdas.
Nas mais diversas passagens das memórias de Fischer e de Vargas, encontramos inúmeras
alusões do que este trabalho pretende demonstrar como fazendo parte de uma memória coletiva,
25
conforme Hallbwachs , da ditadura militar, que por terem sido vivenciadas por um grande número de
indivíduos e por estarem presentes nos mais diversos discursos sobre o período – memórias, romances,
ficção, trabalhos acadêmico-científico – compõem um quadro de lembranças e informações de fácil
acesso à memória daqueles que viveram e principalmente daqueles que lutaram no período. Esses
26
nomes citados anteriormente, portanto, fazem parte de uma memória coletiva do período da ditadura.
Na obra de Colling, alguns desses referenciais perpassam diversos depoimentos. Carlos
Marighela à frente da ALN, Carlos Lamarca à frente da VPR, Che Guevara, Mão-Tsé-Tung, inserem-se
27
dentro dos modelos capazes de superar o poder estabelecido. Também nas memórias de Garcia e
Posenato, a figura de Lamarca é percebida com certa admiração pela sua história. Segundo os autores
os fuzis que trouxe com sua deserção do exército, serviram para fazer muitas ações e dar muito susto no
28
Regime.
A luta armada, a violência revolucionária, a valorização da ação são outros aspectos presentes
nas obras desses dois militantes que compõem a memória coletiva sobre o período da ditadura.

Marighella falou da sua divergência quanto à orientação do Comitê Central do Partido


Comunista Brasileiro, do qual era um dos membros. Segundo percebi, no curso da
conversa, a sua ruptura com a orientação partidária fora determinada pela opção que
fizera, depois do golpe de abril de 1964, pela luta armada, única alternativa das massas
29
brasileiras, apesar de sua desorganização.

22
Informações sobre as ligações entre a Igreja Progressista e a ALN são encontradas nas memórias de Frei Betto.
BETTO, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982.
23
Segundo Reis Filho e Ferreira, uma das grandes acusações que se fazia ao PCB era a de imobilismo. Os
grupos e organizações dissidentes que se formavam desejavam agir de forma imediata e qualquer retardamento
da ação era visto como um ato de covardia. IN: REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da
revolução; documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1985. P.41
24
Sobre as organizações de esquerda após 1964 – cisões, pontos em comum e divergências – ver RIDENTE,
Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 1993; REIS FILHO, Daniel Aarão. A
revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
25
Segundo o autor, “[...] se passa a falar de memória coletiva quando evocamos um acontecimento que teve lugar
na vida de nosso grupo e que considerávamos; e que consideramos ainda agora, no momento em que nos
lembramos, do ponto de vista desse grupo.” IN: HALLBWACHS, Maurice. op cit., 1990, p. 36
26
Mesmo que memórias como, por exemplo, de um militante brancaleone esteja presente em poucas obras, que
seja revisitada, principalmente, por militantes que atuaram nas proximidades de Porto Alegre, ela não deixa de
estar inserida dentro de uma memória sobre a militância estudantil do período, tão bem reprimida. Dados sobre
a repressão aos estudantes podem ser encontrados na obra Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
27
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1997. p.30. A autora,
ao estudar a resistência da mulher à Ditadura Militar no Brasil levanta importantes referenciais da esquerda
daquele momento, principalmente do momento em que diversos militantes optaram pela luta armada, dentre
eles, as militantes pesquisadas por ela.
28
GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. op cit., p.32. Os autores que militaram no POC e posteriormente na
VPR, rememoram suas ações, suas práticas com um alto grau de autocrítica.
29
VARGAS, op cit., 1982. p.20

98
[...] digamos que o ódio, para o revolucionário, se traduz em termos de assunção da
ideologia do proletariado. E esta ideologia é essencialmente revolucionária. [...] a
violência revolucionária é sempre uma resposta à violência reacionária; segundo, da
30
frase de Marx: “A violência é a parteira da História”.

A partir daí, intensificaram-se as ações policias. Afinal de contas, não era um cidadão
comum que havia sido alvejado, e sim o cônsul da metrópole. A colônia precisava, a
qualquer custo, apresentar os culpados. As buscas tornaram-se intensas, o DOPS
recebeu elementos do DOI-CODI (ou OBAN) para dirigir as operações, o major Átila
Roszester mandava prender qualquer suspeito e torturar. De vinte elementos torturados,
um deveria ter qualquer informação, por mínima que fosse capaz de auxiliar na
investigação. O mesmo processo utilizado pelos paraquedistas franceses na Argélia:”
torturem cem. Um saberá de alguma coisa” – e dê-lhe a queimar criaturas humanas a
31
bico de maçarico.

Ao encontrar Marighella, Vargas ficou sabendo de sua divergência quanto à orientação do comitê
Central do PCB e da sua opção pelo combate armado como meio para derrubar a violência imposta a
partir de 1964.
Nunes ao travar uma série de críticas àqueles que ele chamou de “revolucionários de gabinete”,
ou seja, revolucionários muito mais interessados na teoria e pouco dispostos a praticá-la, lança mão de
32
justificativas, também teóricas, que embasem a violência revolucionária . Também o autor, ao relembrar
a tentativa de sequestro do cônsul norte-americano em Porto Alegre e a intensificação da repressão, nos
apresenta exemplos internacionais, como o caso da Argélia, que expliquem a validade da violência
33
revolucionária no enfrentamento à violência de um regime opressor. Para isso, traz em suas páginas
um referencial difundido não somente entre a esquerda brasileira, mas também, por exemplo, a
esquerda europeia: a luta contra o colonialismo na África e um de seus maiores expoentes, a luta dos
argelinos contra os colonizadores franceses.
A partir dessas rememorações, propõe-se que uma das grandes características da esquerda da
década de sessenta é o desprezo por intermináveis discussões teóricas e a valorização da ação
imediata. Nesse sentido, a luta armada surgia como a grande ferramenta a ser utilizada no combate à
opressão, à ditadura. Era tida muito mais do que uma possibilidade de atuação, era tida como o único
meio de lutar pelo fim de um regime que fechava, principalmente após a edição do Ato Institucional
número cinco de 1968, as portas para qualquer tipo de participação que se opusesse aos seus
34
objetivos.
Para a legitimação da luta armada, muitos exemplos foram reivindicados como forma de
legitimar a violência revolucionária, a violência “justa”. Segundo Hannah Arendt, a violência “justa”, a
violência do oprimido contra o opressor não se tratava apenas do enaltecimento teórico referente ao
direito de defesa de um território invadido ou ocupado como seria o caso do Vietnã e da Argélia, e sim, a
partir de tais exemplos e experiências, construir-se-ia uma justificativa teórica para a violência em si –
35
posição amplamente criticada pela autora. Para Araújo: “ela não seria apenas um recurso extremado
36
de defesa, mas um ato valorizado em si próprio – um gesto construtor de identidade, um ato libertador”.
Os exemplos de caminhos para um amanhã possível são referências indispensáveis. Nesse
sentido, modelos revolucionários como aqueles propostos por Cuba, Vietnã, China, Argélia
desempenharão um papel de coesão fundamental para aqueles que acreditam na conquista de uma
nova organização social. Segundo Reis filho:

As peripécias do “momento atual” poderão ser desfavoráveis, a realidade poderá ser


madrasta, mas o futuro será luminoso. As revoluções vitoriosas provam que o sacrifício
não será vão. Asseguram os militantes na prática e os seguram dentro das
organizações. Em muitos momentos, desempenharão papel decisivo do que a

30
NUNES, op cit.,1982. p.138
31
NUNES, idem, p.57
32
Nunes defendeu a ideia de que mesmo não se tratando de uma experiência vitoriosa, ela contribui para acirrar
as contradições que levariam à abertura do regime, ainda que tímida no momento da rememoração. IN: NUNES,
op cit. p. 10
33
Algo semelhante acontecerá com o sequestro do embaixador pela ANL, que intensificou drasticamente a
repressão. IN: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1999. p. 169
34
Há que se lembrar que se por um lado existiam grupos dispostos a pegar em armas, existiam grupos
profundamente contrários a essa concepção como, por exemplo, o Partido Comunista Brasileiro. IN: ARAUJO,
Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. op cit., 2000.
35
ARENDT apud ARAUJO, 2000. p.39.
36
ARAUJO, op cit, 2000, p. 39.

99
37
adequação deste ou daquele programa estratégico ou tático.

Segundo Tavares, a “globalização” naqueles anos era o exemplo do Vietnã em armas que
desafiava a maior potência militar do mundo, era também a Revolução Cubana em território sob
influência dos Estados Unidos; era também a figura de Che que aos sair de Cuba foi lutar na África e,
38
mais tarde, na Bolívia. Enfim, segundo o autor a capacidade de indignar-se invadia o globo. Gutiérrez
fará referência a Declaração de Havana e a carta de despedida do Che Guevara, lida por Fidel durante a
Conferência de OLAS como elementos explosivos para aqueles que estavam militando e acreditando na
39
possibilidade de mudanças. A mesma menção dessa Conferência e da influência da figura de Che
40
Guevara, sobretudo após sua morte, aparece nas memórias de Garcia e Posenato.
Também Rollemberg visualiza em Cuba uma grande referência para muitos que se sentiram
fascinados e atraídos por um exemplo concretizado de uma vanguarda que revolucionaria todo um país,
41
além dos acontecimentos na Argélia.
Segundo Maria Paula Araujo, com o duplo impacto da valorização teórica da violência e do
recrudescimento das guerras anticoloniais na África e na Ásia, parte da esquerda ocidental, nos anos
sessenta, passou a conceber práticas políticas cada vez mais embasadas na afirmação teórica e na
prática da violência. Na América Latina, isso foi expresso pela proliferação de opções de luta armada
42
rural e/ou urbana, que é o caso no qual se inserem os militantes cujas memórias são aqui estudadas.
A valorização da ação e, por conseguinte, da luta armada também é evidenciada na obra de Reis
Filho e Jair Ferreira. Em sua caracterização da esquerda dissidente no Brasil – que em grande parte
optou pela luta armada nos anos sessenta –, destacam também essa sedução pela ação imediata e pelo
43
pragmatismo, que representavam expressões maiores de organização, em detrimento dos partidos.
Portanto, tentamos demonstrar como referenciais, sejam eles indivíduos sejam fatos ocorridos,
que representavam a concepção de violência justa reivindicada pela luta armada também compuseram
uma memória coletiva do período. Na rememoração de Vargas e de Nunes desses referenciais
44
pertencentes a uma memória coletiva, também, sugerimos que atuava uma memória política . Em O
riso dos torturados, por exemplo, não precisamos recorrer a interpretações das entrelinhas para
percebermos sua validação daquilo que foi chamado de violência justa, mesmo que, como vimos
anteriormente, o autor tenha tecido críticas a maneira desorganizada como havia sido implementada. Já
em Guerra é guerra, dizia o torturador, o autor nos pareceu mais distanciado e menos comprometido
com uma análise valorativa dessa violência, prevalecendo muito mais uma memória coletiva nos seus
relatos, que uma memória política no sentido trazido.
No contexto dessas reivindicações de referenciais que permeavam todo um período,
defendemos a ideia de que essas obras compõem um quadro da memória coletiva, e que foram por ele
influenciadas. Além disso, que essas memórias, e não poderia ser diferente uma vez que são narrativas
de militantes políticos, são imbuídas de valorações, fazendo que uma memória política atue e dê
pareceres sobre a memória coletiva, conforme os posicionamentos e atuações políticas dos autores.

Conclusão
A partir da decretação do AI-5, o embate entre os grupos de esquerda e o governo militar foram
caracterizados pela opção de luta armada por muitos militantes que formaram diversas organizações
radicais e executaram diversas ações que, na visão deles, pudessem abalar a ditadura militar. Esse
momento começou a ser explorado pelos memorialistas já no final dos anos setenta com o período de

37
REIS F., Daniel Aarão. op cit., 1990. p.95
38
TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. p. 188-189.
39
GUTIÉRREZ, op cit, 1999, p. 42
40
GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. op cit., p.31
41
ROLLEMBERG, Denise. Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio. IN: REIS, Daniel
Aarão; RIDENTI, Marcelo & SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (org). O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois
(1964 – 2004). . Bauru (SP): Edusc, 2004, p.287-288. Nesse artigo, a autora explora o tema das trajetórias
individuais no exílio. Segundo ela, na primeira fase do exílio, que inicia em 1964, a Revolução Cubana seria
símbolo para os exilados, bem como o apoio do governo da Argélia àqueles que tiveram de deixar o Brasil.
42
ARAUJO op cit., p.41
43
REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução; documentos políticos das
organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. Nesse livro
encontramos inúmeras informações sobre organizações clandestinas que optaram pela luta armada.
44
Essa “memória política”, que atuaria sobre a construção dos conteúdos e marcaria substantivamente as análises
políticas realizadas por parte de seus autores. Segundo Ecléa Bosi, “Na memória política, os juízos de valor
intervêm com mais insistência. O sujeito não se contenta em narrar como testemunha histórica “neutra”. Ele
quer também julgar, marcando bem o lado em que estava naquela altura da História, e reafirmando sua posição
ou matizando-a”. IN: BOSI, Ecléa. op cit,. p. 371-376.

100
45
distensão do Governo Geisel. Desde então, memórias antes “subterrâneas” começaram a ser
46
publicadas, dando, inclusive, continuidade a luta pela redemocratização do país.
Nesse trabalho, buscamos analisar duas obras de memórias de militantes que se opuseram ao
regime militar por meio da adesão a luta armada, que foi caracterizada, no Rio Grande do Sul, como um
conjunto de expropriações que visavam levantar fundo para a construção da resistência que derrubaria a
ditadura militar e construiria uma nova forma de organização social.
Caracterizadas as ações armadas, levantamos a existência de referenciais comuns sendo
reivindicados por aqueles que aderiram tais ações, tentando inseri-los dentro de um quadro mais geral
em um período em que diversos grupos estavam reavaliando seus posicionamentos durante os anos de
47
forte repressão (1968-1974) . Esse quadro mais geral foi nomeado nesse trabalho de memória coletiva,
uma vez que entendemos que o conceito de Hallbwacs ajudou-nos a compreender a construção da
memória desses autores, a partir da ideia de que existiria uma memória mais ampla dos grupos
opositores do regime.
No entanto, um sentido valorativo forte foi atribuído pelos autores a diversas situações
rememoradas por eles. Por isso, entendemos e procuramos demonstrar a atuação de uma memória
política nos seus relatos, nas considerações sobre opção pela luta armada e os referenciais que a
defendiam. Para explorarmos melhor essa intervenção de juízos de valores sobre o conteúdo que está
sendo rememorado, achamos que o conceito de memória política de Bosi tenha sido uma importante
ferramenta para compreendermos as diferentes leituras sobre o período da luta armada, que se davam
conforme posicionamentos políticos mais delimitados.
Tentamos elencar alguns personagens e alguns episódios que foram tomados como referenciais
para uma parcela da esquerda. Nesse momento, o conceito de violência justa Arendt, bem como o de
memória política de Bosi, nos ajudou a perceber a valorização de indivíduos e de fatos históricos
reivindicados por esses autores não apenas com sentimento de admiração, mas também como formas
de justificar e legitimar as lutas que haviam empreendido contra um regime arbitrário.
Por fim, gostaríamos de enfatizar novamente que as memórias de militantes que atuaram no
estado do Rio Grande do Sul possuem um potencial bastante grande de fonte histórica sobre um período
que vem sendo recentemente explorado nos seus aspectos regionais. Nesse sentido, os livros de cunho
memorialísticos nos fornecem muitas pistas para que cheguemos a outras fontes que venham a servir,
futuramente, para a construção de um conhecimento mais profundo sobre o período no estado.

Referências Bibliográficas:
ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1997.
CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. São Paulo, Revista Brasileira de
História, v. 14, n. 27, p. 179-203, 1994.
GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. Verás que um filho teu não foge à luta. Porto Alegre: Posenato
Arte e Cultura, 1989.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1999.
GUTIÉRREZ, Cláudio. A guerrilha brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999.
HALLBWACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e
militares. Belo Horizonte, Varia História, n. 28, p. 178-200, dez. 2002.

45
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 1989.
46
MARTINS FILHO, op cit., 2002.
47
As críticas e autocríticas já haviam começado dentro das organizações, mas é, sobretudo, no momento de
abertura política e do final da ditadura que elas são mais amplamente divulgadas como nesse caso nos livros de
memórias. Entretanto, segundo Gorender: “o avanço mais significativo do ponto de vista teórico partiu da Ala
Vermelha, na sua Resolução intitulada Autocrítica, 1967-1974.” Essa resolução teria o mérito de ser o primeiro
documento da esquerda armada que apontou graves erros cometidos pela organização. Ver GORENDER op
cit., 1999. p. 204-205

101
NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados Porto Alegre: PROLETRA, 1982.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV,
1989.
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990. 200p.
REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução; documentos políticos das
organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 1993. 285p.
ROLLEMBERG, Denise. Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio. IN: REIS,
Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (org). O golpe e a ditadura militar quarenta
anos depois (1964 – 2004). . Bauru (SP): Edusc, 2004, p.287-288.
TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999.
VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982.

102
A coleção “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história” e a narrativa
positiva da ditadura pelo exército1

2
Eduardo dos Santos Chaves

Resumo: No presente texto pretendo analisar a coleção “1964 – 31 de março: o movimento


revolucionário e a sua história”, publicada pela Editora da Biblioteca do Exército, a Bibliex, entre 2003 e
2004, a partir de duas questões que considero importantes na construção da narrativa sobre a ditadura
pelo exército: 1) como procuraram narrar e justificar os erros da “Revolução de 1964”; e 2) de que forma
entrevistados e entrevistadores entendem a derrota das Forças Armadas na “batalha” pela memória do
regime. Cabe destacar que além dessas questões, outras também foram feitas com propósitos de
justiçar a intervenção em março de 1964 e a própria ditadura civil-militar que perdurou até 1985.
Palavras-chave: ditadura civil-militar – exército – direitas – memórias – história oral.

Abstract: In this paper I analyze the collection "1964 – March 31: the revolutionary movement and its
history", published by Library Army, the Bibliex between 2003 and 2004 from two issues that I think are
important in the construction of narrative over dictatorship by the army: 1) how to narrate and sought to
justify the errors of the "Revolution of 1964", and 2) how interviewees and interviewers understand the
defeat of the Armed Forces in the "battle" for the memory of the system. It is noteworthy that in addition to
these issues, were also made with other purposes Justify intervention in March 1964 and the very civil-
military dictatorship that lasted until 1985.
Keywords: civil-military dictatorship – army – right – memories – oral history.

Introdução
Não é novidade a disputa pela memória da ditadura civil militar 3. Nessa batalha pela hegemonia
de uma memória que se quer como “verdadeira”, o período compreendido entre 1964 e 1985 revela-se
diferente para ambos os grupos. Para as esquerdas, além de procurarem saber onde se encontram os
corpos de desaparecidos políticos e insistirem, em alguns casos, na punição de militares envolvidos na
4
repressão, a luta também é em relação à verdade, na qual não aceitarão as “falsificações da história” .
Para as Forças Armadas e, particularmente, para o Exército, a verdade dos fatos vem sendo distorcida
5
por uma parcela de intelectuais que reescrevem a história, falsificada a seu talante .
O revanchismo, nesse caso, constitui-se em uma arma na mão de assaltantes, sequestradores,
6
terroristas, desertores, agora, regiamente abonados . Conforme Jarbas Passarinho, os militares “são
quase mortos-vivos a sofrer o revanchismo dos que, derrotados pelas armas, são vitoriosos pela versão
7
que destrói os fatos” .
O Exército, frente a essa disputa de memórias, produziu a sua “versão” dos fatos, procurando
fazer uma avaliação positiva do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar. O resultado dessa disputa
constituiu-se de 15 tomos, contabilizando 247 entrevistas com militares e civis que atuaram, colaboraram
e/ou tiveram alguma participação no regime dos cinco generais presidentes. Com o título “1964 – 31 de
março: o movimento revolucionário e a sua história”, a coleção foi publicada pela Editora da Biblioteca do
Exército, a Bibliex, entre 2003 e 2004, nas vésperas dos 40 anos do golpe civil-militar de 19648. As

1
Parte deste trabalho é resultado da minha dissertação de mestrado defendida em 2011 pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS, sob o título “Do outro lado da
colina: a narrativa do Exército sobre a ditadura civil-militar”.
2
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGH/UFRGS).
3
Em relação às discussões sobre as batalhas de memórias, ver: MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de
memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares. Varia História, UFMG, n.28, dez. 2002.
4
TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “Ditabranda”. Revista de Sociologia,
Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, out. 2009.
5
MOTTA, Aricildes de Moraes (Coordenação Geral). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua
história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. 15 tomos. (Apresentação a todos os tomos)
6
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 27.
7
Ibid., p. 27.
8
A coleção parece ter antecipado às discussões que ocorreram no meio acadêmico, a partir de seminários,

103
entrevistas realizadas pelo Exército procuraram levantar um número significativo de militares e civis de
várias regiões do país que, conforme seus organizadores, contribuiriam para com a “verdade” dos
acontecimentos.
No presente texto pretendo analisar duas questões que considero importantes na construção da
narrativa sobre a ditadura pelo exército: 1) como procuraram narrar e justificar os erros da “Revolução de
1964”; e 2) de que forma entrevistados e entrevistadores entendem a derrota das Forças Armadas na
“batalha” pela memória do regime. Cabe destacar que além dessas questões, outras também foram
feitas com propósitos de justiçar a intervenção em março de 1964 e a própria ditadura civil-militar que
perdurou até 1985. Nas entrevistas fica claro que entrevistadores e entrevistados parecem estar de
acordo com o que deve ser dito a respeito do período.

“Os fins justificam os meios”: os “erros” da “Revolução”


A coleção, além de apontar os inúmeros benefícios trazidos pela Revolução, como forma de
avaliar positivamente os vinte anos de Regime Militar, procurou, também, apontar alguns dos erros
cometidos pelos “governos revolucionários”. O propósito com esse questionamento é o de reafirmar que,
se houve excessos, estes foram pequenos comparados aos importantes avanços alcançados pela
9
gloriosa “Revolução”. Conforme o General de Exército Ivan de Souza Mendes , “não digo que a
Revolução não tenha cometido erros, pois todos somos passíveis de cometê-los [...]. A Revolução
cometeu alguns erros, mas esses foram irrelevantes em relação aos seus acertos”. Os erros surgem
como naturais do homem, principalmente, quando se tem que administrar “[...] um País extenso, como é
10
o Brasil, com enorme população [...]”, apontou o General Ferdinando de Carvalho .
Os principais erros cometidos, segundo significativa parte dos depoimentos, referem-se à
censura dos meios de comunicação, aos excessos com torturas e perseguições políticas que
desembocaram em exílios ou no desaparecimento de presos políticos, além de outros relacionados aos
descuidos com o sistema de ensino, hoje dominado pelos “revanchistas”, o surgimento dos inúmeros
partidos políticos, desligados da “Revolução”, o descuido em não registrar as “dádivas” da “Revolução” e
os problemas relacionados à “longevidade” dos “governos revolucionários”.
A censura foi apresentada em muitos dos depoimentos como um dos principais erros da
11
“Revolução”. Segundo o General Alacayr Frederico Werner , “toda revolução comete erros e, para mim,
o maior deles é silenciar as vozes discordantes. Na Revolução Francesa, a Revolução Comunista, em
outras tantas, no mundo, o silenciar significa matar”.
No entanto, da mesma forma em que é destacada como um erro cometido, logo é justificada,
como fez o Coronel Luís de Alencar Araripe:
Durante os governos dos presidentes militares houve cerceamento da liberdade, em
grau variável, isto é um fato. O cerceamento deve ser avaliado sob dois aspectos.
Ninguém conduz uma guerra, principalmente contra a subversão, que envolvia, além
dos militantes engajados na luta armada, elementos de universidades, da imprensa, da
Igreja etc., sem realizar um certo controle de opinião. Assim, foi e é em todos os países
12
ao enfrentarem a subversão .
A tortura, quando não explicada, surge como uma falha cometida. Quando justificada, pode figurar como
um “mal necessário”. O Coronel Mário Dias se diz totalmente contra a tortura e narra o seguinte:
Eu entendo a tortura, apenas em alguns casos. Vou citar um acontecimento. O meu
quartel dava segurança para todos os generais da área. Só aos capitães dava-se esse
serviço. Para compensar, os capitães tinham o direito de fazer as refeições em casa.
Certa vez, um capitão, de serviço foi atacado por três terroristas que atiraram nele. Por
sorte, a bala atingiu de raspão a sua cabeça. Fui avisado e, imediatamente, corri para o
Miguel Couto. Consegui uma equipe de neurologistas para operá-lo, mas eles passaram
a noite procurando fragmentos de ossos localizados no cérebro. Reconheço que esse
companheiro, com quem não tive contato, foi uma vítima daqueles terroristas cretinos.
[...] Estou contando esse caso, para dizer que, naquele momento, senti ódio. Se um
13
daqueles camaradas aparecesse na minha frente, não sei o que faria [...] .
As perseguições políticas são apresentadas, assim como outros erros, como casos de excessos
por parte do governo em resposta ao radicalismo da oposição. O General Sebastião José Ramos de

congressos e palestras, e nas organizações de esquerda, ligadas à Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos.
9
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 36.
10
Ibid., p. 159.
11
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit. t. 1, p. 74.
12
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit, t. 2, p. 247.
13
Ibid., p. 315.

104
14
Castro lembra que “também uma certa dose de radicalismo promoveu cassações que de outra forma
não seriam necessárias, radicalismo esse manifestado, tanto por parte de setores do Governo, como da
Oposição”. Ou seja, a cassação de mandatos era uma resposta ao mesmo tempo radical e coerente com
a época. Os políticos da oposição “freavam” os avanços da “Revolução”, impedindo o “progresso” do
país. Segundo as palavras do General Álvaro Nereu Klaus Calazans:

É evidente que a escalada revolucionária foi a maneira de a Revolução e dos governos


institucionalizados se armarem para fazer frente ao terrorismo. Não havia outra
alternativa a não ser o fortalecimento do Poder, amparado em atos legais. Essa reação
15
deixa à mostra o caráter legalista dos governos da Revolução .

Os atos institucionais, sobretudo o AI-5, para alguns dos depoentes, foram desnecessários,
embora entendessem as justificativas que, na época, haviam sido apresentadas. Ou seja, a edição de
instrumentos legais que deram ao presidente amplos poderes por tempo indefinido, é vista de maneira
ambígua: percebe-se a edição do ato como desnecessário, mas, ao mesmo tempo, legítima, frente às
16
“ameaças” provocadas pelas esquerdas organizadas, contrárias às arbitrariedades do regime .
17
De acordo com o General Hélio Ibiapina Lima quando questionado sobre os “prejuízos” da
“Revolução” para o país, afirma que a “nova republica” freou os avanços obtidos pelos “governos
revolucionários”, como a “[...] quantidade exagerada de partidos políticos” e a entrega do sistema de
ensino aos “contra-revolucionários”. Desse modo, os erros encontram-se no fato de a “Revolução” ter
liberado as conquistas obtidas com sacrifícios para que políticos voltados para o “revanchismo”
18
eliminassem ou deturpassem todos esses benefícios. Assim, acredita Hélio Ibiapina Lima que o
sistema educacional foi “[...] entregue aos opositores do Movimento revolucionário de 1964”, facilitando
que intelectuais de esquerda minassem o meio acadêmico.
A educação deveria abranger toda a sociedade brasileira. Uma educação política, em que o
povo prestigiasse os benefícios trazidos pela “Revolução”, pois, como ressaltou o Coronel Hélio
19
Mendes , “[...] as grandes realizações apregoadas pelos Governos da atualidade nada mais são que a
destruição, a alienação ou o desvirtuamento dos acertos da Revolução de 1964”.
Em relação ao surgimento de outros partidos políticos, após a abertura política, os depoentes
afirmam que esse foi um erro bastante grave, pois possibilitou o enfraquecimento dos “legados” da
“Revolução”. Os novos partidos não somente ignoravam os legados da “Revolução”, como procuraram
estabelecer uma separação entre eles e a ditadura civil-militar. Eram cúmplices amantes que negavam
20
qualquer aproximação com as arbitrariedades do período .
Não ter formado quadros políticos para ocupar estrategicamente as instituições democráticas
pós-1985 foi outro erro considerado pelos depoimentos. Grande parte dos entrevistados, como o General
21
José Antônio Barbosa de Moraes , avalia que os governantes já eram demasiadamente idosos, o que
dificultou posteriormente. “Hoje, não temos ninguém daqueles tempos revolucionários, com prestígio
nacional, porque começamos com homens de bem, sérios, mas pessoas velhas”.
A “Revolução” deveria ter criado um partido próprio, através do qual garantiria a sustentação
política do governo, bem como a formação de novas lideranças políticas, como destacou o Coronel Hélio
22
Mendes .
Muitos consideram ainda como erro a duração do regime, vinte anos. Conforme considera o
23
Coronel Luís de Alencar Araripe , “houve um momento em que se poderia ter desmontado do tigre,
durante o Governo Médici, época áurea da Revolução, em termos de prosperidade do País e prestígio
popular do Governo”.
Para importante parte dos depoentes, teria sido melhor encerrar a “Revolução” no governo
14
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 131.
15
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 8, p. 301.
16
É importante destacar que os atos institucionais anteriores tiveram características autoritárias, promovendo uma
verdadeira “caça às bruxas”, como apontou Samantha Viz Quadrat. Conforme destaca a historiadora, somente o
Ato Institucional nº1, o AI-1, “[...] suspendeu temporariamente a imunidade parlamentar, deu autonomia ao Poder
Executivo nas questões econômicas e suspendeu os direitos políticos de cerca de 100 pessoas, inclusive o
próprio ex-presidente João Goulart e quase toda a sua equipe”. Ver: QUADRAT, Samantha Viz. A ditadura civil-
militar em tempo de (in)definições (1964-1968). In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.).
Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006.
17
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 188.
18
Ibid., p.189.
19
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t.1, p. 264.
20
REIS FILHO, Daniel. Ditadura e Sociedade: as Reconstruções da Memória. In: 1964-2004. 40 anos do golpe.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.
21
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 207.
22
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t.1, p. 264.
23
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 246.

105
Médici, pelo fato de que o Brasil estava passando por um momento “espetacular”. O Coronel Amarcy de
Castro e Araújo afirma que se tivesse ocorrido, a “Revolução” não sofreria com ácidas críticas de hoje.
Além de ser um governo marcado pelo sucesso econômico, acredita Castro e Araújo que os “terroristas”
já haviam sido eliminados, o que proporcionaria tranquilidade:

Diria que o término do Governo Médici, teria sido uma boa oportunidade. Sobre isso,
penso que existe um consenso bastante amplo, porque o movimento revolucionário de
esquerda, tendo no seu bojo a luta armada, tinha sido vencido pelos governos da
Revolução. Então, não havia mais a subversão e o terrorismo, urbano e rural, que
24
justificassem uma repressão muito grande .

O longo período da “Revolução”, criticado por muitos depoentes, faz parte das avaliações que
realizaram do Regime Militar. Os depoimentos não procuraram desonrar os governos da “Revolução”
com as críticas sobre a duração da mesma. A organização da coleção, ao indagar sobre os erros da
“Revolução”, buscou, além de interrogar o que já sabia em cada depoente, afirmar essas falhas como
naturais em um processo conflituoso, representado nos depoimentos como um estado de guerra, em que
o país estava mergulhado.
Quando questionados sobre os erros cometidos pela “Revolução” ou se os governos
revolucionários demoraram no poder, os depoentes não respondem objetivamente às questões e
acabam, dessa forma, defendendo a “Revolução”. Ou, igualmente, justificam as medidas adotadas pela
mesma, como consta no depoimento de Carlos de Meira Mattos:

Julga o senhor que os governos revolucionários demoraram muito no poder?


A intenção do Presidente Castello Branco era de que os Atos Institucionais terminassem
no seu governo. Queria que seu sucessor saísse de eleições normais e passasse o
governo para um civil. Inclusive, já tinha alguns nomes. [...] Foram as guerrilhas, as
agressões, que, do meu ponto de vista, provocaram o prolongamento dos governos
25
revolucionários .
26
O General de Brigada Helio Duarte Pereira de Lemos , por exemplo, ao mesmo tempo em que
afirma que o combate aos comunistas foi negativo, pelo fato de ter tido um “[...] excessivo rigor policial
[...]”, também afirma que foi benéfico ao País, pois se fazia necessário para a tranquilidade da nação. Ou
seja, ao mesmo tempo em que foi, de certa forma, errado punir os “comunistas” com um rigor excessivo,
tornava-se necessária sua eliminação para a tranquilidade do país. Essa aparente ambiguidade que
persiste em outros depoimentos para explicar os erros que foram cometidos pelos governos militares
explicita o que, de modo geral, os entrevistadores e os entrevistados buscaram enfatizar: a conquista
final (eliminação do inimigo) foi maior que os erros cometidos no percurso.
Como tentativa de contar a história do Brasil e ser reconhecido fora de seu grupo, o Exército,
com a coleção, encontrou uma forma de explicar à sociedade os erros que consideraram menores frente
aos inúmeros acertos enumerados pelos depoentes. Na exposição dos erros, seguem as diversas
justificativas para a adoção de medidas radicais.
Nas lembranças dos depoentes não apareceram outros excessos cometidos, como as diversas
ações repressivas, o número de mortos e desaparecidos, assim como o apoio externo conferido ao golpe
e ao regime. Quando foram questionados a respeito das influências externas durante o golpe e a
ditadura, poucos são os depoentes que enfatizam a participação norte-americana na deposição de João
Goulart e na continuidade do regime. A maioria dos entrevistados não nega a simpatia que nutriam em
relação aos Estados Unidos, sobretudo no período da Guerra Fria, porém, a montagem da “Revolução” e
seus desdobramentos, segundo acreditam, foi obra de brasileiros.
Os depoentes da coleção, focados na preocupação com o futuro, investiram suas narrativas na
(re) construção de uma memória, que se pretende história. Que se apresentem os “méritos” da
“Revolução de 1964”, em contrapartida às “falsificações” das “esquerdas”. Este é o objetivo. Mesmo que
as falhas do Regime Militar apareçam pelas palavras de muitos dos colaboradores da “Revolução”, elas
estão permeadas propositalmente pelos silenciamentos e pela busca do esquecimento que,
conscientemente, são incorporados nas avaliações positivas que se pretendeu fazer do período.

A derrota na batalha pela memória e a vitória do “revanchismo”


Após o final do Regime Militar, uma produção memorialística ligada às esquerdas cresceu
consideravelmente. Essa produção de memória objetivava, em seu conjunto, divulgar as agruras do

24
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 8, p. 379.
25
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 234.
26
Ibid., p. 248.

106
Regime Militar, como uma denúncia contra as práticas de tortura, cassações políticas e outros temas
relacionados.
Como denunciar era uma das formas que as esquerdas encontraram para dizer o que
acreditavam ser o regime militar, aqueles que estiveram ao lado do governo, colaborando sob diversas
maneiras com a “Revolução”, trataram também de divulgar as suas “versões” sobre os fatos. Diante
dessa batalha pela memória, o Exército, ao publicar a coleção, avaliou que foram derrotados
injustamente e, assim, acreditam que suas lembranças foram omitidas pelo “revanchismo”, que destrói a
verdade dos fatos.
A coleção de depoimentos considera que “os governos revolucionários”, por princípio, deixaram
de fazer a devida difusão de seus acertos, assim como a defesa de seus erros. Assim, foram derrotados
na “batalha da comunicação social”, como afirmam os organizadores da coleção a partir das perguntas
27
realizadas. Alguns dos depoentes, como o Coronel Aluízio de Campos Costa , não se sentem à vontade
com a questão da derrota e afirmam que não executaram, adequadamente, “ações de comunicação
social”. A mídia esquerdista figura como culpada pela omissão dos acertos da “Revolução de 1964”. O
General de Exército Sebastião José Ramos de Castro afirma que:

A mídia sofre a forte influência da tendência esquerdizante que prepondera nas


Faculdades de Comunicação Social. Há, ainda, o fato de que amigos opositores
desfrutaram de importantes posições nos meios de comunicação social. Os que detêm o
poder atualmente receiam que o povo aumente a admiração pelos militares e recorde o
tempo de paz social, progresso e estabilidade que existiu, quando presidiram os
28
destinos da Nação .

A “batalha da comunicação”, perdida pelos militares, conforme os depoimentos, teve seu início
na opção que os governos revolucionários fizeram acerca da propaganda política, buscando diferenciar-
se de períodos anteriores, em que se utilizava estrategicamente da propaganda para promoção política.
Muitos deles acreditam que estiveram, em um determinado momento, com a batalha ganha, como narra
o Coronel Fracimá de Luna Máximo,

Creio que sim. Estávamos com ela ganha no Governo Médici. O processo revolucionário
de longa duração acabou nos fazendo perdê-la. Penso que, se esse processo tivesse
terminado com o Governo Médici, o panorama da Comunicação Social seria outro. [...]
Mas o próprio governo militar, não sei se por princípios, não gostava de Comunicação
Social – o próprio Castello Branco e outros. Acho que nos omitimos; não queríamos
29
participar dessa “batalha” .

Os militares, durante os depoimentos, procuram diferenciar-se dos políticos, afirmando que não
ambicionavam postos de comando e que procuraram sempre trazer civis para os governos da
“Revolução”. Na tentativa de estabelecer essa diferenciação, também se julgam culpados pela derrota na
30
“batalha”, pois, segundo eles, não tinham visão política. Conforme o Coronel Carlos Alberto Guedes ,
“não nos preocupamos em valorizar e divulgar o que fazemos. Cumprimos o nosso dever com exação,
humildade e seriedade, sem qualquer espécie de promoção pessoal”.
Ao estabelecer uma diferenciação com outros grupos, no caso dos políticos, novamente aparece
a questão identitária no grupo, de modo que procuram se representar como homens desapegados dos
privilégios políticos e ligados à defesa da pátria. A identidade, aqui, pode ser verificada no processo
através do qual o reconhecimento das similitudes e a afirmação das diferenças situam o sujeito histórico
em relação aos grupos sociais que o cercam. Os depoimentos dos militares nessa coleção figuram,
desta forma, como exemplos da afirmação de identidades sócio-históricas. A memória dos militares,
31
nesse sentido, pode ser, como nos ensinam Fentress e Wickham , uma memória social que identifica
um grupo, conferindo sentido ao seu passado e definindo as suas aspirações para o futuro. E ela, quase
sempre, faz exigências factuais sobre os acontecimentos passados.
Os políticos são aqueles que, conforme o General Geraldo de Araújo Ferreira Braga, alinhados
com o poder, buscam alianças com indignos homens, em troca de recompensas políticas. De acordo
com as considerações de Ferreira Fraga,

Entendo que não perdemos a “batalha da comunicação social”, simplesmente porque


nunca nos engajamos dela. Tive um colega – não citarei o nome – que disse assim: “A

27
Ibid., p. 282.
28
Ibid., p. 132.
29
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 11, p. 211
30
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 9, p. 275.
31
FENTRESS, James; WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. São Paulo:
Editipo, 1992.

107
galinha põe o ovo e canta”, mas não aprendemos isso na Escola Militar. Nós realizamos,
porque tempos que realizar, porque é parte do nosso trabalho, porque é parte da nossa
profissão, porque é o nosso ideal, nosso amor ao Exército, porque faz parte do nosso
amor à Pátria.
Nós não estamos habituados a trabalhar em troca de recompensas. Acredito que a
gente pense o seguinte: “O meu trabalho, os outros hão de reconhecer”. Assim pensava
32
o Presidente Castello Branco .

Segundo os depoentes, a tentativa de se diferenciar dos governantes anteriores, marcados pelas


propagandas que “engrandeciam” as medidas adotadas em diversos contextos, como foi o caso de
Getúlio Vargas, fez com que o regime não fosse reconhecido pela população. A imagem da “Revolução”,
conforme era recomendação na época, deveria ficar longe da propaganda desenvolvida pelo governo de
Getúlio Vargas, como asseguram os depoentes e a própria organização da coleção que atribui ao
33
Governo Vargas méritos em relação à propaganda . Em uma intervenção, durante o depoimento do
34
Coronel José Tancredo Ramos Jubé, o entrevistador, o General Geraldo Luiz Nery da Silva , reitera da
seguinte maneira: “Getúlio Vargas está presente, até hoje, com o nome posto em várias ruas, avenidas e
35
fundações, porque, realmente, o DIP funcionou” .
A partir do conjunto de depoimentos, verifica-se uma tentativa de responsabilizar alguns
governantes, sobretudo o ex-presidente Castello Branco, pelo desprendimento com a propaganda em
seu governo. Muitos dos depoentes atribuem à falta de propaganda das realizações da “Revolução”, em
jornais e em outros meios de comunicação, como uma das razões da derrota na “batalha”, como
36
mencionou anteriormente o General Geraldo de Araujo Ferreira Braga .
A perda da “batalha” também é sentida na educação, como lamentou o General Carlos de Meira
Mattos.

Nós perdemos não só a “guerra da comunicação social”, como também a da educação.


Não soubemos, após ocuparmos o governo por vinte e um anos, orientar o Sistema
Educacional Brasileiro e perdemos completamente a guerra da comunicação. Se você
analisar, em quase todos s institutos de estudos superiores do Brasil, universidades,
faculdades, as facções que dominam são as da esquerda, mesmo, em pequeno
número. Esses elementos dominantes continuam praticando o “revanchismo”, não
37
dando chances para quem não for do grupo deles, de esquerda .

Perder a “batalha da comunicação” significa acusar as “esquerdas”, a “mídia” e os “revanchistas”


de agentes contrários à propagação das vitórias da “Revolução”. Dessa forma, são derrotados pela
“mentira” ou pela “omissão” utilizada, segundo os depoimentos, pelos inimigos, que tomam a
comunicação social como espaço primordial de suas reivindicações. Segundo a narrativa do Coronel
Helio Mendes,

Esta questão faz parte da educação, em geral, e da educação política, em particular,


assinalada como um dos pontos falhos em todas as políticas dos governos da
Revolução, desde o inicio do Governo Castello Branco. As universidades e escolas
continuaram tendo a maioria de professores de tendência esquerdista. As livrarias
quase que só dispunham de publicações de esquerda – marxista e de outros teores. A

32
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 111.
33
Ibid., p. 246.
34
Ibid., p. 340.
35
Carlos Fico, ao examinar a propaganda do Regime Militar, adverte que: “os militares brasileiros, evidentemente,
conheciam esses tipos clássicos de propaganda (por isso sempre procuraram negar semelhanças com o DIP –
Departamento de Imprensa e Propaganda – de Getúlio Vargas) e, mais do que isso, sabiam da repulsa que eles
causavam”. FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. p.18).
36
No entanto, é importante que se aponte o fato de que a propaganda política da ditadura mais conhecida e
identificada com o período de maior repressão esteve nas mãos de militares mais moderados. Criada no
governo de Costa e Silva, a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), teve então seus dias de glória,
como destacou Denise Rollemberg. Segundo a autora, por trás da suposta função de relações-públicas, esse
órgão atuou de fato em eficientes campanhas nacionais de grande alcance, tais como “Ninguém segura este
país” e “Este é um país que vai pra frente”, criando uma imagem otimista e grandiosa do Brasil, baseada no
patriotismo. Ver: ROLLEMRG, Denise. A ditadura civil-militar em tempo de radicalização e barbárie (1968-1974).
In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ,
2006. 2006. p.147.
37
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 236.

108
Revolução fez muito pouco para conter esta avalanche, em termos de Comunicação
38
Social .

A história ensinada nas salas de aula é preocupante, conforme os depoimentos, visto que
cunham as expressões “Anos de Chumbo” e “Ditadura Militar” para caracterizar um governo que os
depoentes acreditam ter sido benéfico ao Brasil. É a partir dessas colocações que surge a coleção,
destacam os depoentes. Segundo acredita o General Rubens Bayma Denys, a importância da coletânea
de depoimentos reside no fato de oportunizar:

[...] para as pessoas que participaram, de uma forma ou de outra, da Revolução de


1964, relatarem os fatos dos quais tomaram conhecimento, ou de que, efetivamente,
participaram. A verdade registrada para posterior avaliação pelos historiadores. Acho
que a isso é muito importante. Espero que, dessa forma, a Revolução ganhe uma
39
documentação que a retrate com fidelidade; que resgate a verdade histórica .

Pensando dessa forma, alguns dos depoentes militares, diferentemente, consideram que não
perderam a “batalha”, cabendo àqueles que colaboraram com a “Revolução” ou que tiveram apreço pela
mesma, lembrar aos demais que os militares eliminaram o perigo comunista, assim como levaram o país
ao desenvolvimento. Segundo o General Ivan de Souza Mendes,

Muitos dizem que perdemos a “batalha da comunicação social”. Não concordo com a
assertiva, porque a batalha está em curso. Nós não iremos perder ou ganhar a “batalha”
em momento algum. Nem eles. Na verdade, estamos cumprindo o nosso papel, nesse
40
embate ideológico e cultural .

Ainda há aqueles que afirmam que não foram derrotados na batalha e o que houve foi a
maximização dos excessos cometidos pelo regime, como assegurou o General Octávio Pereira da
Costa.

Diria que a “batalha” da comunicação não foi propriamente perdida, pois foi útil naquelas
circunstâncias. No entanto, outros fatos negativos que ocorriam no submundo da
repressão preponderaram como a imagem que realmente ficou. “Os gramados
devastados” ou “as sentinelas que responderam mal às senhoras que pediram
informações” ocorreram, aos militares, de forma muito mais cruel. Esses excessos
cometidos foram maximizados e se fixaram, afinal, como a imagem definitiva. A
“batalha” não foi perdida. Não se perdeu, nem se ganhou. Faz-se o que era possível
41
fazer .

Ou seja, a derrota mencionada pelos depoentes na coleção procura imprimir a ideia de que os
“governos revolucionários” foram julgados injustamente pelas esquerdas e pela mídia que noticiam os
excessos cometidos, como cassações, torturas e desaparecimentos, como se tivessem sido rotineiros.
Dessa forma, a partir da coleção, os depoentes podem revidar as colocações da mídia e do meio
acadêmico que eles consideram esquerdizante. Julgam-se derrotados porque acreditam que a “versão”
que perdura em quase todos os meios sociais é daqueles que foram “derrotados nas armas”, conforme
destacou Jarbas Passarinho.

Muitas vezes temos visto, entre outros, conferencistas civis, da UNICAMP, da ESG
também, realçarem os sucessos econômicos. Todos se referem, principalmente, à
década de 1970. Fora desses institutos, entretanto, tais comentários e análises não são
divulgados, porque, embora vitoriosos na parte militar, perdemos a guerra da
42
comunicação social [...] .

Como pode se constatar, eles se vêem injustiçados pela mídia e pelos intelectuais de esquerda,
que se aproveitaram da inabilidade dos governos da “Revolução” e instituíram a propaganda contrária
aos feitos trazidos pelos “governos revolucionários”.
Embora se considerem derrotados ou não na “batalha”, os depoentes atribuem culpa às
esquerdas pela manipulação da mídia e, também, a eles próprios que não souberam se utilizar da
propaganda para projetar a “Revolução” como benéfica ao país. Ao culparem-se, procuram, da mesma
forma, estabelecer uma diferença entre eles, os militares, e os políticos, os civis, na qual aparecem como
38
Ibid., p. 268.
39
Ibid., p. 189-90.
40
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 36.
41
Ibid., p. 84.
42
MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 5, p. 50.

109
homens preocupados com a “ordem” e o “progresso” do país, diferentemente dos políticos, que segundo
os militares entrevistados, preocupam-se com eles mesmos. Isto significa que, mesmo reconhecendo a
derrota, não admitem a possibilidade de terem cometido erros fundamentais, sem justificá-los como
necessários, que pesam no presente e que são utilizados pelos “inimigos” para julgar o período. Assim,
atribuem, sempre que indagados, culpa às “esquerdas” que, de maneira ardilosa, teriam se utilizado
politicamente do passado para “autopromoção”.
Mas os usos do passado são também utilizados pela coleção, que procura avaliar positivamente
o Regime Militar. Nessa tentativa de elogiar a “Revolução”, o passado surge necessariamente como
estratégia que norteia o pensamento dos depoentes. Além do passado, questões do presente, como as
pesquisas destacadas nos depoimentos, são também utilizadas para assegurar às Forças Armadas
prestígio social.

Considerações finais
As narrativas dos entrevistados procuraram reafirmar o que o Exército acredita ter sido o período
entre 1964 a 1984. Os depoentes, numa espécie de acordo, contaram quase que a mesma história sobre
o período. Nas considerações sobre o governo de João Goulart à abertura política e à lei de anistia, as
narrativas se tornaram repetitivas, parecendo que houve uma espécie de pacto em torno do que deveria
ou não ser relembrado. Além disso, muitas entrevistas relatam episódios que algumas vezes em nada se
diferenciam do que está registrado em outras fontes também produzidas pelo Exército durante a
43
ditadura. Porém, a dimensão da memória, como afirma Montenegro , mesmo quando coincide ou
reproduz os significados sociais institucionalizados, oferece elementos para reflexão acerca da força das
marcas das histórias que se tornaram hegemônicas. Essa colocação de Montenegro nos faz pensar na
forma como a história sobre a ditadura vem sendo reproduzida e/ou (re)inventada pelo Exército. Muitos
dos militares entrevistados lembraram episódios que não dizem respeito à sua história de vida, mas
44
àquilo que eles ouviram falar ou leram em livros produzidos pela corporação. Segundo Halbwachs , o
que temos mais facilidade em lembrar é do domínio comum e é por podermos nos apoiar na memória
dos outros que somos capazes de lembrar.
A iniciativa de construir uma coleção com 247 depoimentos partiu do Exército, que acreditava
responder a uma série de grupos e sujeitos, tais como as esquerdas, a mídia e aos intelectuais que,
segundo acreditam, invés de narrar a “verdade” sobre a “Revolução” de 1964, caracterizam esse
período como uma ditadura civil militar. Todos que participaram dessa iniciativa, desde o coordenador do
projeto, o General Aricildes de Moraes Motta, os coordenadores regionais e os entrevistados deveriam
oferecer subsídios para outra história da ditadura, demonstrando as “verdadeiras” iniciativas do Exército,
a “patriótica” defesa da nação pelas lideranças civis e militares que estiveram na luta contra os “inimigos
vermelhos”, assim como as ações dos “governos revolucionários” que levaram o país ao sucesso. Essa
“versão” da ditadura foi narrada por quase todos os depoentes que formaram as redes de entrevistados
escolhidos pelo Exército. Foram assim selecionados pela trajetória que tiveram durante o regime, pela
amizade que tinham com os coordenadores e, sobretudo, por ainda narrarem positivamente a ditadura.
A boa imagem da ditadura, construída ao longo da coleção, é reafirmada pelos depoentes em
suas lembranças. Se falam com sentimento de orgulho a respeito da implementação das arbitrariedades
do regime não o fazem porque são autoritários por natureza, falam porque acreditam que estavam em
uma situação em que era preciso “livrar” o país dos “comunistas”. Durante as entrevistas, ficou visível
que o anticomunismo foi um elemento que permeava o imaginário social daquela época e que
permanece nas representações que fazem a respeito daquele contexto. Não afirmam que o país estava
sendo tomado aos poucos pelos “vermelhos” apenas para conseguir legitimar um golpe de estado e a
instauração de uma ditadura. Narraram os acontecimentos dessa forma porque ainda continuam
acreditando que o governo estava sendo aos poucos tomado pelos comunistas e que estes pretendiam
levar o Brasil à órbita soviética.
O conjunto das entrevistas acabou revelando o interesse da corporação pela batalha da
comunicação social. Ela representa um permanente duelo pela memória, visto que os atores sociais
encontram-se vivos, além das suas instituições permanecerem dispostas em representá-los nessa luta,
como fez o Exército na publicação dos depoimentos e em outras atividades.
A narrativa que os depoentes fizeram acerca dos acontecimentos fez com que chegássemos à
conclusão de que o Exército procurou cristalizar um discurso que servisse inicialmente à corporação e,
logo depois, à sociedade civil. Essa narrativa da “revolução” e dos governos dos cinco generais
presidentes deveria, segundo os organizadores, partir da corporação. Eles eram os únicos autorizados a
falar com seriedade sobre o que aconteceu naqueles anos, pois representavam a “verdade”.

43
MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v.13, n.25/26, p.56, set. 92/ago. 93.
44
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

110
Entrevistados e entrevistadores construiriam, dessa forma, uma narrativa positiva e afirmativa da
ditadura, pois ambos, na maioria das vezes pertencentes do Exército, estavam diante de uma situação
em que era imprescindível pautar elogios a ditadura. A escolha da rede de entrevistados levou em conta,
certamente, a maneira como o depoente representava, no momento da entrevista, a ditadura civil-militar.
Como era importante para o Exército solidificar uma memória sobre o regime, as falas dos entrevistados
deveriam colaborar com a visão da corporação sobre o período. Assim, foram selecionados homens que
se sentiam prestigiados em falar positivamente sobre aquele período. Eram sujeitos que se sentiam na
obrigação de falar, não somente porque eram militares ou porque atuaram em algum governo do regime.
Falavam porque acreditavam que suas memórias poderiam ser ouvidas e/ou lidas pelos jovens da
corporação e pela sociedade.

Referencias Bibliográficas:
FENTRESS, James; WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. São
Paulo: Editipo, 1992.
FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e
militares. Varia História, UFMG, n.28, dez. 2002.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História.
São Paulo, v.13, n.25/26, p.56, set. 92/ago. 93.
MOTTA, Aricildes de Moraes (Coordenação Geral). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e
sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. 15 tomos.
QUADRAT, Samantha Viz. A ditadura civil-militar em tempo de (in)definições (1964-1968). In: Martinho,
Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006.
REIS FILHO, Daniel. Ditadura e Sociedade: as Reconstruções da Memória. In: 1964-2004. 40 anos do
golpe. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.
ROLLEMRG, Denise. A ditadura civil-militar em tempo de radicalização e barbárie (1968-1974). In:
Martinho, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed
UERJ, 2006. 2006.
TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “Ditabranda”. Revista de
Sociologia, Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, out. 2009.

111
O discurso político ideológico militar em torno da guerrilha de 1965

1
Ronaldo Zatta

Resumo: a intenção deste artigo é oferecer subsídios para discussão da primeira ação armada contra o
regime militar no brasil, o episódio que ficou conhecido como a guerrilha do coronel cardim no ano de
1965. Valendo-se de uma fonte documental oficial almejou-se empregar a Análise do Discurso como
método de apreciação deste texto litúrgico/ideológico problematizando as suas finalidades políticas
vinculadas ao contexto histórico que perdurou por mais de quatro décadas. Trata-se da narrativa que
expõe a versão institucional, que oculta a sua derradeira utilização em cerimonial militar até o ano de
2006, por ocasião do translado dos restos mortais do herói Tenente Camargo, sua última manifestação
pública.
Palavras-chave: Análise do Discurso-Ditadura Militar-Cerimonial.

Abstract: the intention of this article and offer subsidies for discussion of the first military action against
the military regime in brazil, episode that became known as the guerrillas in the coronel cardim in year
1965. Relying on a source document official longed to employ Discourse Analysis as a method of
assessment of this liturgical text/ideological questioning their political purposes related to the historical
context that has lasted for more than four decades. This is the narrative that exposes the institutional
version, which hides its ultimate use in ceremonial military by the year 2006, on the occasion of the
remains of the hero Lieutenant Camargo, his last public demonstration.
Key-words: Discourse Analysis-military dictatorship-ceremonial.

Considerações Iniciais
Em novembro de 2006 enquanto prestava serviço militar
no aquartelamento do Exército Brasileiro sediado na cidade de
Francisco Beltrão no sudoeste paranaense, em específico no 16º
Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, por ser acadêmico de
História fui designado juntamente com outros militares a compor
a equipe de auxiliares do Curador do Museu Militar Tenente
Camargo. Na época o museu estava aguardando autorização do
Estado Maior do Exército para funcionamento, no entanto, o
acervo se encontrava à amostra para visitantes e interessados.
Por motivos ignorados o Estado Maior do Exército jamais
autorizou o funcionamento do museu, tendo a partir de 2010 seu
espaço físico ocupado por secções burocráticas militares. Sendo
que seu acervo foi acomodado em depósito ou porões, e em
algumas situações mais nobres expostos em salas internas como
peças decorativas.
Relevante para esta comunicação é que durante o
período em que prestei serviço militar fui encarregado de auxiliar
o curador do museu nos trabalhos de exumação dos restos
Figura 1. Sargento Camargo. Fonte: mortais do herói que deu nome ao museu. Durante estes
Pintura em Tela–Artista Cândida serviços obtive acesso a um documento/texto/narrativa que relata
Ferrari–RJ, 2000. Exposto no o episódio em que faleceu o Tenente Camargo, considerado o
Pavilhão de Comando do 16° herói militar da Operação de Contraguerrilha em 1965. Trata-se
Esquadrão de Cavalaria Mecanizado de uma breve biografia do então Sargento Carlos Argemiro de
em Francisco Beltrão–PR. Camargo, promovido postumamente ao posto de Tenente
Camargo. O documento em anexo é um discreto relato do
combate produzido pelos militares em que contam a versão oficial das operações realizadas no sudoeste

1
Doutorando em História pela UFPR – Universidade Federal do Paraná. E-mail: ronaldozatta@yahoo.com.br.
Fone: (49) 8845-3559.

112
do Paraná no ano de 1965, por ocasião do confronto com a tropa guerrilheira comandada pelo Coronel
Jeferson Cardim de Alencar Osório.
Este documento foi produzido no ano de 1977 e se tornou um padrão a ser lido anualmente nas
formaturas militares em homenagem ao herói. Como visto nas anotações/rasuras no documento que
segue em anexo, com o passar dos anos altera-se o nome da Organização Militar local, a data, mas se
mantêm o texto/discurso a ser explanado aos civis e militares que presenciavam os cerimoniais. Ou seja,
mantêm-se o discurso a ser transmitidos aos ouvintes. Como mencionado, foi em novembro de 2006, por
ocasião do translado dos restos mortais do Tenente Camargo que se encontravam depositados no
Cemitério Municipal de Francisco Beltrão para a Praça Tenente Camargo, localizada dentro do
aquartelamento daquela cidade, tive a oportunidade de acompanhar o derradeiro uso político deste
discurso direcionado ao público interno e externo à caserna.
Para se analisar um discurso segundo a perspectiva foucaultiana, deve-se fugir das
interpretações fáceis, unívocas ou que buscam encontrar o “oculto”, o distorcido, o cheio das “reais”
intenções ou conteúdos e/ou representações imediatamente não vistas nos textos. Mas sim, analisar as
relações históricas, concretas e vivas nos textos na perspectiva de uma construção histórica e política,
2
compreendendo a linguagem como constitutiva de práticas sociais.
Partindo do pressuposto de que “o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas
3
uma história” julga-se necessariamente considerar o caráter histórico dos discursos através de alguns
conceitos relacionados ao método de Análise do Discurso.
Sem o intuito de discutir uma concepção teórica da Análise do Discurso, muito menos uma
prática operacional desta disciplina, segue alguns conceitos selecionados que se apresentam como uma
tentativa de problematizar o discurso ideológico incutido na narrativa militar que foi lida por mais de
quarenta anos no sudoeste paranaense.

A Cena do Discurso Militar


No dia 17 de novembro de 2006, em formatura geral no 16º Esquadrão de Cavalaria
Mecanizado, fora realizado translado dos restos mortais do Tenente Camargo que se encontravam no
“ossário” do Cemitério Municipal de Francisco Beltrão até a Praça Tenente Camargo no interior das
instalações do quartel daquela mesma cidade.
O aquartelamento se preparou para receber o herói, sua praça foi limpa, repintada; efetuados
também alguns serviços de jardinagem e, ao centro do Brasão das Armas onde ficava o fuzil Mauser
cravado em homenagem ao militar foi remodelado um local pelo Pelotão de Obras para que fosse
acondicionada a urna funerária.
A urna funerária foi transportada por comboio de blindados militares pelas ruas da cidade de
Francisco Beltrão, sendo prestada ao herói uma série de honrarias militares destinadas aos chefes e
heróis históricos, como escolta armada, formação de guarda, lanceiros, toque de silêncio pelo clarim,
tiros de salva, entrega da bandeira nacional aos familiares e continências diversas.
Um fato que comoveu os presentes no evento foi o pranto de um ex-militar que na chegada dos
restos mortais dirigiu-se a urna, abraçou-a, e em prantos murmurava: “Meu amigo!”. Mais tarde se soube
que este idoso se chamava Sérgio Bonetti, que na função de cabo acompanhou o Pelotão de Infantaria
na perseguição aos guerrilheiros pelo sudoeste do Paraná em 1965.
Quem presencia uma cerimônia militar dificilmente não se sente entrelaçado pela onda de
tradição que conduz o fato. Tais construções culturais possuem diversos elementos que resgatam o
passado. Esta, porém, ainda possuía um quesito ainda mais especial, tratava-se da inumação de um
4
militar do “tempo presente” , que possuía parentes, amigos e conhecidos entre os convidados.
Identificações sociais, nostalgias, superações, narrações e reproduções de vividos se mesclavam e se
ritualizavam através da representação presentificada durante o cerimonial de inumação dos restos
mortais de Camargo. Costurou-se sobre um eixo simbólico o fato que amparado no tempo/espaço, nas
narrativas e objetos militares da época legitimaram uma trajetória histórica na realização deste evento
militar, com valorização reconhecida pelo grupo de militares e população civil local. Tal cerimonial de
inumação prosseguiu após alguns instantes de comoção.
Dando sequência ao evento, o Capitão Lourenço Rômulo Innocêncio Júnior, realizou a leitura da

2
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Análise do Discurso em Educação. In: Cadernos de Pesquisa, n.
114, p. 197-223, novembro/2001, p. 198 e 199.
3
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 146.
4
O conceito de história do tempo presente se refere aos acontecimentos das últimas quatro ou cinco décadas,
onde atitudes e atores ainda regem influência na sociedade atual e seu estudo “constitui um lugar privilégio para
uma reflexão sobre as modalidades e os mecanismos de incorporação do social pelos indivíduos de uma
mesma formação social”. FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes,
Petrópolis, v.94, nº 3, p.111-124, maio/jun., 2000, p. 122.

113
biografia/narrativa do Tenente Camargo, a narrativa produzida em 1977 foi pela derradeira vez utilizada
publicamente para expor a versão militar de um episódio importante, mas tão pouco estudado pela
Historiografia da Ditadura Militar Brasileira.
Esta formatura/cerimonial militar movimentou a seção de Relações Públicas do quartel, qual era
responsável para mobilizar autoridades civis, jurídicas e militares da região, bem como os meios de
comunicação regional, professores de História, alunos do Ensino Fundamental, acadêmicos e os
militares da reserva que vivenciaram os conflitos da época.
Representando a família do militar homenageado compareceram ao evento a Senhora Marines
Bósio acompanhada pelo seu filho. Marines é sobrinha do Tenente Camargo, e exerce a profissão de
professora do Ensino Fundamental na cidade de Francisco Beltrão.
Terminada a dobragem da bandeira, esta foi entregue aos familiares e baixada a urna funerária
no centro da Praça. Enquanto esta cena acontecia, a guarda fúnebre composta por seis soldados
executava tiros de salva. Era a segunda vez que o herói militar recebia a mesma homenagem, uma em
1965 por ocasião de seu sepultamento, e outra naquele instante, quando retornava ao aquartelamento
41 anos depois do episódio.
A entrega da bandeira aos familiares pode ser pensada como um ritual extremamente simbólico,
pois adquire um significado especial para cada indivíduo tendo o poder de evocar lembranças ou
sentimentos particulares. Como símbolo ela representa “coisas” que são partilhadas pelos membros de
um grupo, mascarando diferenciações pelo revestimento ideológico de “comunidade”; os símbolos são
5
eficientes por serem imprecisos.
Findando o evento foi baixada a tampa de concreto construída para obstruir o sepulcro, e sobre
ela postada uma lápide confeccionada em mármore que contia o seguinte epitáfio: “ORGULHOSOS
TRAZEMOS DE VOLTA NOSSO IRMÃO DE
ARMA. ELE CUMPRIU SEU JURAMENTO
DEFENDER A PÁTRIA COM O SACRIFÍCIO DA
PRÓPRIA VIDA”.
Em ato contínuo, fixou-se um fuzil
Mauser e um capacete de aço sobre o descanso
do herói militar. Tanto o capacete, como fuzil,
foram utilizados pelo Exército Brasileiro na
década de 1960; e nesta situação se demudaram
em símbolos de um militar que morreu em
combate cumprindo o seu “dever”.

O Contexto do Discurso Militar


Antes de sair do cemitério a solenidade
já estava sendo acompanhada pelos meios de
Figura .2 Vista parcial do cerimonial militar - 2006. Fonte: comunicação regionais: rádios e emissoras de
Arquivo pessoal do autor. TV sucursais. Em nome do Comando da
Unidade, o Capitão Rômulo concedeu várias
entrevistas, tanto antes como depois da cerimônia, explanando e relembrando a versão
institucional/oficial do contexto que envolvera a morte do militar.
Em março de 1965 quando completaria um ano de Ditadura militar instaurada no Brasil, deu
início no Estado do Rio Grande do Sul uma tentativa fracassada de contragolpe em nosso país,
comandada pelo ex-Coronel de Artilharia do Exército Jeferson Cardim de Alencar Osório, tendo como
seu principal assessor Albery Vieira dos Santos, ex-Sargento da Brigada Militar do Estado do Rio Grande
6
do Sul. Vinda do Uruguai a guerrilha seguiu por algumas cidades dos três estados do sul do Brasil.
Existe a versão de que o ex-sargento Albery, um dos exilados mais corajosos e radicais,
procurou Brizola solicitando dinheiro para realizar a incursão armada e este não forneceu. Encontrando-
se depois com Jeferson Cardim de Alencar Osório nasceu o movimento. Cardim era parente remoto de
Castelo Branco e ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), veterano militante de esquerda,
despertava ódio aos militares do Exército porque quebrara a ética militar casando-se com a mulher de
um companheiro e em seguida se amasiando com sua enteada, ou seja, havia perdido o respeito no
7
meio militar.
Com rapidez os dois começaram a se articular, mesmo sem apoio de Brizola conseguiram juntar

5
GUIBERNAU, Monserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1997, p. 92.
6
MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS Publicações, 2007,
p. 51.
7
ARAÚJO, Maria Celina de; CASTRO, Celso, (Orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997, p. 124.

114
mil dólares, três fuzis tchecos semiautomáticos e alguns revólveres. Arrumaram um caminhão e com
8
vinte e três homens entraram no Brasil no dia 19 de março de 1965. Com tal efetivo, em sua maioria
9
reunida em território gaúcho, surgiram as FALN – Forças Armadas de Libertação Nacional. As FALN
dominaram algumas unidades da Brigada Militar gaúcha, recolhendo armas e munições destes quartéis
10
e fazendo breves proclamações revolucionárias pela rádio local. O grupo então se dirigiu para o
Sudoeste do Estado do Paraná onde seus integrantes acabaram sendo aprisionados pela Organização
Militar que viria a ser conhecida por esta campanha de “Sentinela do Sudoeste”, a 1ª Companhia de
Infantaria instalada em Francisco Beltrão.
Foi no dia 27 de março de 1965 por volta das 11 horas na região de Santa Lúcia, Município de
Capitão Leônidas Marques – Pr, que ao pressentir a aproximação das tropas do Exércitos brasileiros
oriundos da cidade de Francisco Beltrão, o grupo guerrilheiro realizou uma emboscada.
Esta ação armada produziu uma vítima fatal que mais tarde se transformaria em herói: o 3°
11
Sargento Carlos de Argemiro Camargo, que foi alvejado várias vezes ao desembarcar da viatura. Os
guerrilheiros após serem presos foram conduzidos ao 1° Batalhão de Fronteira localizado em Foz do
Iguaçu julgados e condenados pela Justiça Militar subordinada a 5ª Região Militar com sede em Curitiba
– PR. Posteriormente foram favorecidos pela Lei da Anistia e indenizados pelo governo brasileiro.

O Enunciador do Discurso Militar


Na manhã do dia 17 de novembro de 2006, o Curador do Museu Tenente Camargo, o Capitão
Rômulo Innocêncio Júnior apresentou-se para o púbico da formatura militar onde realizou a leitura da
biografia do herói enfatizando seu ato de bravura e a realização do juramento que todo soldado faz ao
assumir o compromisso no “Dia do Soldado”: de “defender a Pátria com o sacrifício da própria vida”.
A leitura proferida por este militar não tinha apenas a intenção de divulgar conhecimento sobre o Tenente
Camargo, mas sim, estabelecer uma relação entre o passado, representado pelo herói, com o presente.
Pois, “a retórica empregada no uso de capital simbólico deriva-se de um conjunto paralelo de retóricas
12
usadas na criação de consciência histórica”.
Ao mesmo tempo Rômulo estava sendo em 2006 o porta-voz de uma causa política que
mobilizou as Forças Armadas do Brasil por um longo período de Guerra Fria, e através de sua linguagem
a memória estava sendo mais uma vez socializada e evocada.
Era um discurso de linguagem engajada, mobilização, de ativismo, de dimensão ufanista,
legitimação de ações e de uma memória política que brotava e emergia de testemunhos dentro de um
quadro de sociabilidade, que foi capaz de reconstruir fundamentação comum afetivamente entre a
memória individual dos soldados e dos pioneiros, pois “o poder quase mágico das palavras resulta do
efeito que têm a objectivação e a oficialização de facto que a nomeação pública realiza a vista de
13
todos”.
Com o término da leitura a posição de sentido fora tomada pelos militares cumprindo a ordem
emanada pelo clarim, e com o tom vibrante e altivo, fora cantado o Hino Nacional brasileiro como
maneira de coroar o retorno do herói à caserna.

As Condições de Produção do Discurso Militar


Compreendemos que as condições de produção de um discurso estão intimamente ligadas com
a questão do sentido literal, ou seja, ela é constitutiva do sentido. Desta forma passam a contar desde
determinações do contexto mais imediato (ligados ao momento da interlocução) como mais amplos
14
(ligados à ideologia). A bibliografia do Tenente Camargo, a narrativa do episódio e o seu sequente
processo de heroicização fizeram parte de uma atividade política institucional que esteve presente nas
Forças Armadas após 1964. Ainda hoje o Exército como instituição nacional promove e idealiza ações
com o intuito de valorizar e nutrir a memória. Tal memória foi/é fundamental para o sentimento nacional e
elaboração de consciência política e identidade comunitária dentro de um pensamento romântico da
construção de um herói, utilizando para isso uma série de conjuntos simbólicos com fins políticos.
O texto em anexo foi produzido em 1977, dentro de um contexto amplo, qual procurava legitimar
ações através da figura construída de um herói militar, vinculada a um ato tido como heróico (morrer pela

8
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 192.
9
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil
conheça. Brasília: Editora Ser, 2006, p. 130 e 140.
10
MITCHELL, Op. Cit.
11
AUGUSTO, Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro: Bibliex Editora, 2002, p. 169.
12
STRATHERN, Andrew e STEWART, Pamela J. “Global, nacional, local: escalas móveis, temas constantes”. In:
BARROS, João Rodrigues (Coord.) Globalização e identidade nacional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 56.
13
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 117.
14
ORLANDI, Eni Pulcinelli. A Linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 149.

115
15
pátria) que por sua vez pertencia a uma ideologia/formação ideológica militar.
Num contexto próximo das condições de produção podemos referenciar a política de promoção
dos comandantes nas Forças Armadas através do conceito que premia as ações que valorizem a história
da Instituição Militar. Ações que podem ser exemplificadas como a construção de monumentos,
elaboração de pesquisas históricas, nomenclaturas históricas, confecção de estandartes e heroicização
de figuras históricas. Ou seja, os comandantes que realizam este tipo de ações estão mais próximos das
promoções seguintes previstas em seu plano de carreira, e futuramente ao generalato.

Os Enlaçamentos no Discurso Militar


Dominique Maingueneau convenciona o termo “enlaçamento” como os processos pelos quais
16
um texto de uma formação discursiva reflete sua própria enunciação. Ou seja, a dupla possibilidade de
ler uma obra: a primeira como um texto doutrinário ligado a uma instituição (define um ideal enunciativo);
e a segunda como uma tematização de regras que atuam nas comunidades discursivas ligadas a esta
instituição (seus integrantes e comunidade local).
A narrativa analisada neste estudo se identifica na classificação dada por Maingueneau como
um texto de “quarto grau”, pois revela uma doutrina institucional dada pelo posicionamento político do
Exército; descreve um ideal enunciativo da própria instituição para com os seus integrantes e às
comunidades discursivas ligadas ao Exército; e por último, transmite essa doutrina que coincide com a
descrição do ideal enunciativo. Ideal enunciativo que se confunde com o percurso/história da Instituição
Militar com a descrição do mundo e a definição do ideal enunciativo do texto.
A narrativa voltada a heroicização do Tenente Camargo teve finalidade de proporcionar uma
tipificação de conduta desejada aos integrantes do Exército, apolítica e comprometida com os deveres
militares, ou seja, evitar o surgimento de novos “lamarcas”.
Ao mesmo tempo, estava voltada para inculcar na população civil a crença de que o Exército
devia ser visto com o guardião da nação e defensor dos preceitos morais ameaçados pelos guerrilheiros
comunistas. E que está vigilante a isso, sendo necessário para o desenvolvimento saudável da nação. A
trapaça discursiva que segue o percurso temático da “salvação da pátria” foi usada milhares de vezes
17
pelos que falavam a palavra do poder depois de 1964. Neste sentido cabe-se reafirmar que o elo
18
crucial entre o fazer e o dizer de uma comunidade representa o ponto cego do discurso.

As interdições do Discurso Militar


O filósofo Michel Foucault supõe que em

toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,


organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem a função de
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
19
pesa e temível materialidade.

Segundo este mesmo autor, o procedimento de exclusão mais conhecido é a interdição, pois não
se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer
20
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Da mesma forma o discurso em forma de narrativa ao
Tenente Camargo realizado em 2006 passou por um processo de triagem e adequação a situação
presentista.
Um tópico importante que deve ser ressaltado é que, no ano de 2006, em todas as entrevistas e notas à
imprensa foram excluídos os termos “Brizola” e “comunistas”. Houve um pedido do Comandante 16°
Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, o Major Marcelo Lorenzini Zucco, que não se fizesse referências
ao líder nacionalista da década de 1960, Leonel Brizola. Segundo ele não havia intenção de alimentar
antigos conflitos políticos, mas sim relembrar o ato heróico do militar que cumpriu o juramento de
“DEFENDER A PÁTRIA, SE PRECISO FOR, COM O SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA!”.
Da mesma forma foi excluído na leitura da narrativa em anexo o termo “guerrilheiros”. A narrativa
lida no cerimonial militar era embasada subjetivamente de aconselhamento e fortalecimento comum,
articulada ao sacrifício do militar e recheada de mensagens de identidade cívica e cidadania social que
emocionou os presentes. Mas o mais interessante foi adaptação da narrativa ao tempo presente, as
15
Formação ideológica deve ser compreendida como “uma visão de mundo de uma determinada classe social,
isto é, um conjunto de representações, de ideias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do
mundo”. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988, p. 32.
16
MAIGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989, p. 69.
17
FIORIN, Op. Cit., p. 41.
18
MAINGUENEAU, Op. Cit., p. 70.
19
FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2010, p. 8.
20
Idem, p. 9.

116
exclusões dos termos, como já referenciado: “Brizola” e “comunistas”.
Não se trata de uma forma de reconstruir um passado histórico dito “apropriado”, mas sim, de uma
nova forma de contar o velho e de adaptação do discurso às necessidades do presente e da sociedade
contemporânea. Pois as identidades mudam com as gerações, transformando seu conteúdo
representativo, muitas vezes afrouxando as suas raízes.
A viúva do Tenente Camargo, Maria da Penha de Camargo, foi convidada, mas recusou o convite
de participar da cerimônia alegando não estar em condições de saúde para se deslocar de Curitiba para
a cidade de Francisco Beltrão. Também afirmou que pelo trauma que viveu pela viuvez no recém-
casamento, preferiu nunca mais retornar a Francisco Beltrão. Seu filho também residente na capital do
Estado do Paraná, Carlos Argemiro de Camargo Junior, médico patologista, agradeceu a atitude do
Comando Militar, mas segundo ele próprio, por motivo de trabalho, não pode comparecer.
É evidente que Maria da Penha também possua motivos pessoais para não comparecer ao
evento! Pois ela ainda recebe a pensão do falecido, mesmo constituindo união estável, o que não é
permitido por lei. Conversas informais afirmam que o receio de perder a pensão de viuvez fez a mesma
não comparecer ao cerimonial. No entanto, esta questão não fez parte do discurso oficial manifestado
pela instituição durante o evento.
Outro caso de interdição do discurso lido no evento foi a versão de que o tiro que matou o Tenente
Camargo fora um “tiro amigo”. Sempre houve relatos dentro do aquartelamento do Exército de Francisco
Beltrão, vindo particularmente dos militares mais antigos, que apresentam a “tese do tiro amigo”.
Entretanto, jamais houvera qualquer manifestação formal sobre o assunto, talvez pela complexidade do
tema, pois se trata de um caso político que ocorreu durante o Governo Militar, os participantes ainda
estão vivos e há o medo de represálias ou punições logo, tudo isso ainda possui reflexo no tempo
presente.
Evidentemente, acredita-se que se este fato por ventura acorreu, não fora intencional, e tenha sido
um acidente. Mas tens a convicção de que a divulgação de uma ocorrência deste nível seria interditada.
Admitir uma notícia (erro) deste porte no contexto de conturbação política em que o país vivia no ano de
1965 seria admitir a incompetência das Forças Armadas nas Operações de Contraguerrilha. O que se
apresenta aqui são apenas hipóteses baseadas nas conversas informais que perambulavam dentro do
aquartelamento de Francisco Beltrão durante o cerimonial militar.

Os Efeitos de Sentidos no Discurso Militar


Eni Orlandi nos ensina a pensar o discurso não como uma transmissão de informação, mas sim
como efeito de sentidos entre os locutores, e esta é uma questão para realização de uma análise do
21
discurso.
Neste sentido, cabe ajuizar que ainda em 2006 a Instituição Militar continuava realizando a
paidéia política regional, utilizando como instrumento de produção o discurso de uma causa política que
agitou as Forças Armadas no século passado. Tendo como materialidade a construção simbólica de um
herói militar, qual se efetivou como um mecanismo e atividade prática que o Exército brasileiro utilizou
para consolidar através de símbolos materiais e imagéticos a luta contra comunismo no sudoeste do
Paraná, convinha exemplificar a toda a nação através da institucionalização do herói militar Tenente
Camargo.
Sabemos que a sociedade aceita algumas instituições e costumes, os quais julgam positivos,
selecionam hábitos que consideram bons e os inculcam em seus integrantes. No entanto, nem sempre
estes hábitos são produtos do discernimento da consciência de cada um. A formação do cidadão é
trabalhada através da formação de consciência histórica e cívica; modelos, vidas exemplares, rituais
cívicos entram nesta formação constituindo um ser nacional, de classe e regional, munido com noções
22
de valores, ordem, lei e justiça. Assim ocorre a valorização de uma memória como identidade.

Um Interdiscurso no Discurso Militar


Trata-se de interdiscurso a interação que determinadas formações discursivas mantém com
outros textos ou enunciados, abrigando novidades, imitações, mudanças ou continuidades. Interceptar
os interdiscursos dentro de um texto seria perceber o seu caráter de complementaridade e
interdependência.
Para Foucault não há

enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de


uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se

21
ORLANDI, Op. Cit.
22
LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 16-
28, 1989, p. 16-23.

117
apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde
tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. [...] Não há enunciado que não
suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de
23
coexistências.

Neste sentido, considerar a “interdiscursividade” significa deixar que aflorem as contradições, as


diferenças, inclusive os apagamentos, os esquecimentos; enfim, significa deixar aflorar a
24
heterogeneidade que subjaz a todo discurso”. Torna-se adequado afirmar que um determinado discurso
é um espaço de troca entre vários discursos precedentes, ao mesmo instante que um discurso político
ideológico pode ser pensado através do viés de reapropriação.
Dentro da narrativa em anexo ao tratar do Tenente Camargo, percebe-se o interdiscurso
presente no seguinte trecho:

Assim, não devemos esquecer jamais o dignificante gesto do Sargento CARLOS


ARGEMIRO CAMARGO, pois a esmo encarna a espiritualidade heróica das palavras de
um militar brasileiro, no passado:/ SEI QUE MORRO, MAS O MEU SANGUE E DE
MEUS COMPANHEIROS, SERVIRÁ DE PROTESTO SOLENE CONTRA A INVASÃO
25
DO SOLO DE MINHA PÁTRIA.

O discurso/narrativa analisada apresenta esta associação de forma não ocasional com a morte
do Tenente Camargo, morto de forma duvidosa no sudoeste do Paraná, com um herói da Guerra do
Paraguai que se deu em sacrifício. Sendo esta afirmação legitimada pelo dado de que Camargo não fora
voluntário para o combate à guerrilha, sendo escalado contra sua vontade, e que tentou se ausentar
26
alegando trabalhos burocráticos acumulados.
Sabe-se que todas as sociedades instalam seus “guardiões” do sistema e dispõem de certa
27
técnica de manejo das representações e símbolos. O Exército produziu durante o Regime Militar um
“sistema de representações” que traduziu e legitimou uma ordem. E neste caso, se utilizou da força do
28
heroísmo, “que tem a finalidade moralista, servindo para avaliar e dirigir capacidades e condutas”.
Deve ser levado em consideração também que o Estado, durante o Governo Militar, avocou para
si o papel de criador da identidade nacional, responsável simultaneamente por promover o progresso e
manter acesa a memória nacional. O que o fez com certo sucesso no que tange o processo de
heroicização do Tenente Camargo, que pode ser identificado como uma das maiores construções
simbólica na luta contra a “subversão” no Brasil militarizado.

Considerações finais
No campo da guerra psicológica, durante a segunda parte do século XX, a instituição militar
elaborou a construção de uma memória coletiva com base comum em prol do recém instaurado Governo
Militar, servindo-se para esta tarefa em âmbito simbólico do culto ao ‘herói’ como forma de educar
civicamente a população em geral em relação à política bipolar da Guerra Fria.
Amparado no episódio que envolveu as tropas do Coronel Cardim, o Exército elaborou a maior, e
talvez a mais bem-sucedida, edificação simbólica de luta contra a “subversão” no período. E que mesmo
com a ameaça comunista extinta, o referido herói militar permanece fazendo parte do cotidiano da
população local através dos signos a ele relacionados. Sinal de que a construção de sua tradição foi um
objetivo alcançado em plenitude. Além disso, é no imaginário que ele ainda vai perdurar por muito tempo,
pois seguidamente um soldado recruta durante o seu serviço noturno de guarda o quartel, vê vulto ou
ouve ruídos nas proximidades da Praça Tenente Camargo, o onde que por enquanto, é o seu descanso.

23
FOUCAULT, Op. Cit., 1986, p. 114.
24
FISCHER, Op. Cit., p. 212.
25
O texto supracitado trata-se de uma mensagem enviada pelo Tenente Antônio João Ribeiro, Comandante da
Colônia Militar de Dourados na Província de Mato Grosso momentos antes de tombar em combate. Em
dezembro de 1864 enquanto liderava um efetivo de quinze homens acabaram fuzilados por tropas paraguaias
ao defender a colônia. Em sua homenagem foi erguido monumento lhe dado o título de Patrono do Quadro
Auxiliar de Oficiais do Exército brasileiro.
26
Entrevista com o Subtenente da Reserva Sessuaf Micessuaf Polanski, Sargento Rádio-operador do Exército na
Operação de Contraguerrilha de 1965.
27
FÉLIX, Loiva Otero. A fabricação de carisma: a construção mítico-heroico na memória republicana gaúcha. In:
FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudio P. (Orgs.) Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: Ed.
Universidade /UFRGS, 1998, p. 142.
28
MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Editora Contexto, 1997, p. 10.

118
Fontes de primárias
FERRARI, Cândida. Retrato-Sargento Camargo. 2000. 1 original de arte, óleo sobre tela, 50 cm x 40 cm.
Pavilhão de Comando do 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado.
LIVRO DE MEMÓRIAS SOBRE O TENENTE CAMARGO. 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado.

Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Maria Celina de; CASTRO, Celso (Orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.
AUGUSTO, Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro: Bibliex Editora, 2002.
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº
3, p.111-124, maio/jun., 2000.
FÉLIX, Loiva Otero. A fabricação de carisma: a construção mítico-heroico na memória republicana
gaúcha. In: FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudio P. (Orgs.) Mitos e heróis: construção de imaginários.
Porto Alegre: Ed. Universidade /UFRGS, 1998.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Análise do Discurso em Educação. In: Cadernos de
Pesquisa, n. 114, p. 197-223, novembro/2001.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2010.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
GUIBERNAU, Monserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
p. 16-28, 1989.
MAIGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989.
MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Editora Contexto, 1997.
MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS Publicações,
2007.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. A Linguagem e seu funcionamento. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
STRATHERN, Andrew e STEWART, Pamela J. “Global, nacional, local: escalas móveis, temas
constantes”. In: BARROS, João Rodrigues (Coord.) Globalização e identidade nacional. São Paulo:
Atlas, 1999.
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil
conheça. Brasília: Editora Ser, 2006.
ANEXO I
Narrativa sobre o Tenente Camargo. Fonte: Livro de Memória ao Tenente Camargo – 16° Esquadrão de
Cavalaria Mecanizado – Francisco Beltrão – Pr.

119
120
121
122
III – Ditadura e Aparatos Repressivos

123
124
Anos de chumbo: uma análise dos aparelhos de repressão na ditadura civil militar e suas
influências no Maranhão.

Wilson Pinheiro Araújo Neto1

Resumo: Tomando como estrutura básica a teoria gramsciana, este artigo tem como objetivo analisar o
processo de montagem e articulação do aparelho repressivo na Ditadura Civil Militar considerando
variadas análises da historiografia que perpassam pelas diversas práticas repressivas nos campos
políticos, social e cultural no Brasil e suas influências no Maranhão. Neste sentido, daremos ênfase Às
práticas de alguns órgãos criados na época e seus desdobramentos no campo das relações culturais,
políticas e sociais com base na documentação do departamento de ordem política e social encontrada no
Arquivo Público do Estado do Maranhão que solidifica e confirma as análises apresentadas pela
historiografia referentes a macro-organização dos aparelhos de repressão em todo o país.
Palavras-chave: teoria gramsciana- repressão- ditadura civil militar- maranhão.

Abstract: using the theory of antonio gramsci, this article aims to analyze the assembly process and
articulation of the repressive apparatus in civil military dictatorship considering various analyzes of
historiography that move through the various repressive practices in the political, social and cultural
development in brazil and its influences in maranhão. In this regard, we emphasize the practices of some
bodies created at the time and its developments in the field of cultural, political and social basis of the
documentation department of political and social order found in the Public Archives of Maranhão that
solidifies and confirms the analyzes presented by historiography concerning the macro-organization of
the apparatus of repression throughout the country.
Keywords: theory repression gramscian-civil-military-maranhão dictatorshipthis

1. Introdução
Repressão: segundo um dicionário virtual, significa um recurso violento empregado oficialmente
2
contramovimentos sociais, dissidentes, revoltas populares e etc. Este vocábulo, portanto, tem um
3
espaço significativo na história da Ditadura Civil Militar no Brasil. Momento histórico marcado por
práticas que desencadearam, muitas vezes de forma negligente, um duro processo de perseguição
contra aqueles que se opunham aos militares, principalmente a partir da implementação do Ato
Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. No entanto, é necessário não datar o processo mais
efetivo da repressão somente a partir do AI-5, uma vez que os atos institucionais anteriores e as próprias
medidas tomadas pelos órgãos de repressão, a exemplo do DOPS (departamento de ordem política e
social), tiveram início já no momento imediatamente posterior ao golpe.
O historiador Carlos Fico, afirma que é necessário descobrir novas fontes provenientes do
4
governo ou em arquivos sigilosos ·. Neste aspecto, Fico afirma que embora tenhamos, de modo geral,
assimilado as notícias de que os militares queimaram ou deram fim a essas fontes, os arquivos dos
antigos DOPS nos possibilitam um vasto objeto de análise para pesquisas. No arquivo Público do Estado
do Maranhão (APEM) muita dessas fontes se quer foram tocadas, o que abre um leque de possibilidades

1
Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC
(Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação,
Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sob
coordenação da prof. Drª Monica Piccolo.
2
Disponível em http://www.dicionarioinformal.com.br.Acessado em 03 de março de 2013.
3
Apropriação do termo de René Dreifuss que aponta a participação da sociedade civil como preponderante para
a concretização do golpe militar. O artigo aqui apresentado, assim, compartilha dessa opção conceitual
defendida por Dreifuss, em sua obra “1664: A Conquista do Estado” que enfatiza a participação dos civis,
reunidos no complexo IPES/IBAD, não só na organização do golpe militar de 1964, como também na ossatura
material do Estado que se configura a partir de então.
4
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e
movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.167-2005.

125
para pesquisas e análises acerca da estrutura da ditadura civil militar no Maranhão. Entre o vasto acervo
documental, podem ser encontrados testamentos, dossiês, cartas, publicações de jornais, ofícios de
subversão, dentre outros. Os trabalhos desenvolvidos sobre o tema na região nordeste tem sido cada
vez mais cobiçados pelos historiadores que se debruçam sobre o regime militar, contemplando os
desejos de Gorender em mergulhar nos fatos isolados e obviamente descentralizar as discussões sobre
a repressão no eixo Rio-São Paulo ou na região sul.
Neste artigo analisaremos o processo de repressão considerando aspectos determinantes para
entender a Ditadura Civil Militar, como a criação de alguns órgãos pelos militares para “estabelecer a
ordem”, principalmente no campo cultural; a censura a jornais e movimentos artísticos; as estruturas de
espionagem que, segundo Carlos Fico, chegavam a criar situações em volta de um cidadão que poderia
suspeito ou não, que porventura ameaçaria a moral dos militares, sendo considerados subversivos a
ponto de serem torturados ou até mortos; as propagandas que eram lançadas com a proposta de
legitimar um “bem-estar social” e maquiar as sequelas provenientes das repressões do regime militar.
Nos Apropriaremos, ao longo do trabalho, do corpo teórico elaborado por Antônio Gramsci,
principalmente os conceitos de “batalha cultural” e binômio coerção/consenso no contexto da “operação
limpeza desencadeada imediatamente após a deposição de Goulart. A partir destes aspectos,
procuraremos entender em determinados momentos o quanto os aspectos culturais no regime militar
estiveram inteiramente conectados com a disputa de poder de diferentes grupos que lutavam pela
hegemonia. Órgãos a exemplo do IPES/IBAD que eram instituições criadas com a proposta de elaborar
e publicizar projetos políticos que por sua vez eram defendidos por diferentes classes que almejavam
chegar ao poder. Logo, o momento em que são apresentadas organizações com uma estrutura
ideológica e política, para Gramsci, tornam-se mais prováveis e sólidas as chances de se conquistar a
5
hegemonia.
Para esta análise utilizaremos uma fonte primária a documentação produzida pelos agentes do
Dops reunida no Arquivo Público do Estado do Maranhão. Foi realizado O trabalho de mapeamento e
fotografia de documentos, dossiês, recortes de jornais, fichas de subversivos entre outros. Dentre as
diversas documentações analisadas nos chamou a atenção um caso, ocorrido no Rio Grande do Sul em
1966, conhecido como “caso das mãos amarradas”. Foi encontrado no rio Guaíba o corpo do ex-militar
Manoel Raimundo Soares boiando com as mãos amarradas. No entanto, porque usar como objeto de
análise tal documentação uma vez que a mesma não relata um caso específico no Maranhão? A
resposta será construída ao longo deste artigo sustentando a hipótese que a historiografia recente já
aponta: a existência de um sistema complexo e muito bem organizado contra aqueles que se opunham
ao projeto milita. Desta forma notaremos na sustentação de diversos projetos vislumbrados e até mesmo
concretizados pelos militares, está presente a montagem de um aparelho repressivo que não ficou em
segundo plano. Muito antes pelo contrário, a macroestrutura encabeçada pelos militares com a intenção
de punir, torturar, privar e até matar em nome da manutenção da ordem do aparelho estatal gerou um
clima de tensão na sociedade civil do Brasil durante o regime militar.

2. Os militares e a nova ordem social


Os militares da “linha dura”, sob o comando do então Presidente Artur da Costa e Silva,
protagonizaram aqueles que podem ser considerados os momentos mais conturbados da História social
do Brasil em relação à liberdade de expressão e valorização dos direitos humanos. A partir da
implementação do AI-5 estavam estabelecidos os novos parâmetros para uma caracterização de uma
ordem social. Os militares estavam mobilizados para protegerem-se dos movimentos de contestação que
surgiram com grande efetividade a fim de questionar o regime e suas práticas.
6
Segundo Thomas Skidmore os militares, mesmo depois do golpe, divergiam com os moderados
até acerca das instâncias que os atos de repressão por parte do governo deveriam ser praticados.
Embora os militares da linha dura aparentemente estivessem tentando atuar dentro da legalidade, os
atos de repressão contra os subversivos continuavam. Carlos Fico, em um texto intitulado: Espionagem,
7
polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão apresenta alguns motivos que
impulsionaram a instauração do mais famoso dos atos institucionais como os inflamados discursos de
Marcio Moreira Alves que defendiam a greve das mulheres dos militares contra seus maridos. Apresenta
ainda a vontade primária que era fechar a Câmara dos Deputados realizando uma segunda edição da
“Operação Limpeza”. No entanto, muito mais do que dissolver a Câmera dos Deputados (fato que o
presidente anterior, Castelo Branco, já havia feito) um dos grandes trunfos do AI-5 foi a possibilidade de

5
COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
6
SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.p.165
7
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e
movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira,2003,p167-2005

126
cassação de mandatos de alguns políticos, o confisco de bens daqueles que enriqueceram ilicitamente e
a redução do poder do habeas corpus. Ainda como inovação e peculiaridade do AI-5, temos a não
demarcação do tempo em que perduraria o ato institucional. Diferentemente dos outros que tinham “data
pra terminar”, o AI-5, por sua vez, não tinha prazo de validade.
Nesse contexto de constantes e mudanças por partes dos militares, houve uma ampla
reordenação dos órgãos governamentais e de seus instrumentos de atuação. Os IPM’s (Inquéritos
Policiais Militares), por exemplo, eram vítimas do discurso da ineficiência e de que a “Revolução” não
estava sendo concretizada devido à demora em julgar os processos; a “Comissão Geral do IPM” era
inicialmente de responsabilidade dos policiais civis. Depois do AI-5, entretanto, foi editado um novo
código de processo penal militar em que todas as delegações e responsabilidades foram passadas aos
militares, sob o discurso da eficiência e da rapidez. O fato é que os “linhas-duras” organizaram um forte
aparelho repressivo muito bem estruturado.
Estas análises, portanto, correspondem estrutura Gramsciana de busca pela hegemonia. Este processo,
além de ser feito em longo prazo, é realizado somente pela classe que se encontra no poder e que lidera
a constituição. As modificações sociais para Gramsci só serão possíveis precedidas de um projeto
cultural bem articulado, como diz Carlos Nelson Coutinho na sua obra: Gramsci: um estudo sobre seu
8
pensamento político.
Para Gramsci, a cultura seria um meio privilegiado para romper com o individualismo e despertar
nos homens uma consciência universal. Esta base cultural, além de gerar uma consciência de valor da
sociedade humana (pressuposto ético do socialismo), seria ainda uma sólida construção de base do
socialismo antes da tomada do poder. Neste sentido, percebemos a presença de um projeto cultural por
9
parte dos militares (no contexto gramsciano seria a Sociedade Política ) que se articulara com a criação
de órgãos, a exemplo da Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) que foi responsável por
montar todo um aparato de propaganda para sustentar os ideais do projeto militar.

3. Uma “superestrutura de repressão”


Mediante ao novo momento em que os militares tomam as rédeas do poder, surge a
necessidade de criar uma nova estrutura pra combater aqueles que ameaçavam a ordem do País. Nesse
contexto, percebemos que alguns órgãos de repressão vão sendo criados a fim de não dar brechas às
constantes práticas de contestação que consecutivamente também vão se intensificando no período da
ditadura através dos jornais e as diversas manifestações culturais.
Inicialmente, o SNI (Serviço Nacional de Informações) que era a instituição responsável pelas
informações, desde as fases de conspirações anterior ao golpe, foi criado também o Sistema Federal de
10
Informações e Contra-Informações (SFICI) criado por Golbery do Couto e Silva
Golbery, o ministro Chefe da Casa militar, o general Jayme Portela de Melo e o próprio presidente Costa
e silva se tornaram figuras essenciais para entender as origens da repressão. Com o passar do tempo,
as competências do Conselho de Segurança Nacionais foram somente aumentando. Estava sendo
montada no país uma estruturada rede de espionagem para monitorar os subversivos. A criação da
Assessoria Especial de Segurança (AESI) se deu bem mais por capricho e pelo prestígio dos seus
chefes, ou seja, as AESI’S eram a assessoria de um “órgão macro”, subordinada ao Conselho de
Segurança Nacional para auxiliar nas investigações e nas práticas de espionagem.
Destaca-se nesse aparato de repressão em construção a elaboração do “Plano Nacional de
Informações”, aprovado pelo SNI, que se tratava de uma zona de espionagem que passaria, a partir
daquele momento a fazer parte do conjunto. Outra criação dos linhas-duras foram os falados CODI-DÓI
ou DÓI-CODI que aliavam a simples prática de colher informações e executar as penas e as torturas
designadas. Segundo Carlos Fico, o DÓI fazia todo o processo de sondagem e recortes de jornais,
ficando encarregados de juntar as provas. Já o CODI punia, torturava e até matava. Havia mais órgãos
internos, como o Centro de Informações do Exército, o CISA (Centro de Informação de Segurança da
Aeronáutica) e o CENINAR que era o da Marinha (considerado o mais violento dos três). Cabe lembrar
que todos esses órgãos específicos foram criados com um objetivo principal que era lutar contra a
subversão.
No Maranhão, nas fontes disponíveis no Arquivo Público do Estado, se encontram várias listas
de cidadãos que eram julgados por militares como “subversivos” e que muitas vezes nem sabiam que
eram notificados. A criação deste macroaparelho formado para reprimir os “subversivos” chegou a

8
COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
9
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
10
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e
movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003,p175-2005

127
extremos como julgar banalmente qualquer cidadão que vivesse uma rotina um pouco diferente dos
demais. No entanto, se de um lado a vida cotidiana de um trabalhador comum é abalada, os policias
pertencentes a muitos desses órgãos também não poderiam se expor sob o risco de sofrer represarias.
Um fato importante de se destacar é que o discurso para legitimar perante a sociedade a atuação de
muitos desses órgãos foi o combate à luta armada e às guerrilhas urbanas que, segundo os militares,
estavam por vir. Embora se tivesse tais acontecimentos, mesmo depois do fim das “guerrilhas” os órgãos
continuaram atuando de forma efetiva. O foco, entretanto, é alterado: a disseminação das ideias
socialistas e do comunismo pregados pelos PCB agora seria o novo argumento para legitimar a atuação
dos órgãos de repressão. Outro aspecto que vale ressaltar foi à criação do Sistema CGI (Comissão geral
de investigações) que consistia na punição de homens públicos que se envolviam em escândalos de
11
corrupção e enriquecimento ilícito .No entanto, este funcionou por pouco tempo já que muitos militares
estavam também envolvidos em crimes de corrupção. Logo, este serviu principalmente para intimidar os
inimigos a não entrarem na “onda de corrupção”

4. Censura: criação ou adaptação?


No campo da censura, é importante frisar que esta sempre existiu no Brasil e que nunca foi difícil
de difícil execução. Ao pensarmos nas práticas de censuras mais significativas, aquelas realizadas pela
ditadura civil militar é o maior objeto de estudo por sua intensidade e temporalidade. Assim sendo, não
se trata de uma criação da censura pelos militares no pós 1964, mas sua adequação aos moldes da
ditadura.
No texto Cães de Guarda: entre jornalistas e censores, Beatriz Kushnir define os militares como
agentes intensos na censura no Brasil, focando principalmente nos cruzamentos que se davam entre os
jornalistas que eram censores ou vice-versa, em outros casos de jornalistas que eram policiais e também
censores. A autora afirma que as empresas jornalísticas poderiam também ser vistas como clãs, feudos,
oligarquias partindo do pressuposto que os principais jornais do eixo Rio-São Paulo-Jornal do Brasil, O
Globo, Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, são ou foram pelo menos até pouco tempo empresas
12
familiares .
13
Destacamos ainda a censura prévia, citada por Carlos Fico, como uma medida de proteção dos
militares para que não fossem liberadas quaisquer publicações. A censura prévia consistia na análise
das publicações de artigos e matérias que eventualmente poderiam significar uma afronta ao Regime
militar podendo ser divulgadas ou instantaneamente vetadas. No âmbito musical não foi diferente. Em
entrevista ao “Estado de São Paulo”, em 30 de Janeiro de 2005, Odete Lanziotti, funcionária aposentada
da polícia federal e ex técnica de censura nos anos 70, relatou situações pelas quais teve que vetar
músicas ou responder alguns processos por liberação de músicas que supostamente abalariam a moral
do Estado.

5. O caso “mãos amarradas”: do rio grande do sul ao maranhão


Como já exposto anteriormente, tanto o Sistema Nacional de informações (SNI) quanto as
AESI’s, o SFI, entre outros, foram órgãos criados com o objetivo de obter um sistema unificado que fosse
capaz de controlar todo o aparelho de repressão. No Maranhão, a sede do Dops estava localizada
exatamente na Secretaria de Segurança Pública no Estado do Maranhão. Não sabemos ao certo quando
a documentação do caso mãos amarradas deu entrada na Secretaria de Segurança na época do
Regime. No entanto, em 1991 esta documentação chegou a Arquivo Público do Maranhão através do
Projeto “Memórias Reveladas” apresentando nomes de grandes personalidades do Brasil e do
Maranhão.
Durante as pesquisas no Arquivo Público do Estado do Maranhão nos deparamos com a
documentação de um caso que ocorrido em outro canto do país. O caso “Mãos Amarradas” ocorreu no
Rio Grande do Sul. Tratava da morte de um dos líderes do “movimento legalista”, Manoel Raimundo
Soares, que apoiava a restituição do Governo João Goulart que fora deposto pelos militares. O Sargento
foi preso o Rio Grande do Sul em 1966. O caso ficou conhecido nacionalmente pela característica de sua

11
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e
movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.175-2005
12
KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: entre jornalistas e censores. In: REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo,
MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe militar e a ditadura civil militar 40 anos depois(1964-2004) Bauru,
SP: Edusc 2004.
13
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e
movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.190-2005.

128
14
brutalidade. O corpo foi encontrado com as mãos amarradas no Rio Guaíba no dia 24 de agosto .
A documentação trata basicamente da solicitação da reabertura das investigações do caso
“Mãos Amarradas” pelo reformado militar da Aeronáutica, Mário Ranciaro, que acusava militares do III
Exército pela morte do sargento Manoel Soares e ainda pelo assassinato de Hugo Kretschoer que teria
sido o autor do crime. No recorte do Jornal Folha da Tarde, de quatro de janeiro de 1980 (figura 1) foi
publicado a solicitação de abertura do processo contra os militares acusados do crime. É importante
15
destacar que neste momento o AI-5 já fora extinto , que possibilitou a reabertura do processo sem a
16
intervenção dos militares no julgamento dos possíveis culpados . Mesmo com a Lei da Anistia decretada
pelo governo Figueiredo em 1979, não seriam isentos de investigações.
Em outra documentação, temos um ex-deputado destacando que a reabertura da investigação
do caso “Mãos Amarradas” seria de grande importância para a moral do país, (figura 2) destacando a
dificuldade de investigar a própria polícia.

Essa resistência da política em investigar a polícia não é surpresa quando eles estão
envolvidos. Basta recordar o recente caso do sequestro dos uruguaios Lilian Celibert e
Universindo Dias, até hoje não solucionados. Ex-deputado do MDB Airton Basnarque,
Jornal do Brasil 15/01/80

Foram encontrados ainda registro das reações dos militares no intuito de reverter o quadro das
investigações a seu favor. O tenente Ranciaro seria submetido a um exame de sanidade mental pela
Junta Médica Superior da Aeronáutica. O advogado do tenente, no entanto, entrou com um recurso para
evitar os exames. (figura 3)

6. Gramsci no contexto da repressão


Diante do exposto podemos destacar um aspecto importante na Ditadura Civil Militar brasileira:
as subdivisões entre os próprios militares, que por sua vez, não se limitaram somente ao início do regime
(linhas duras e os moderados), mas depois do cancelamento do AI-5. O fato é que os militares não eram
homogêneos. Havia disputas endógenas e projetos que estavam em disputa pelo controle da ossatura
material do Estado. A morte do sargento Manoel Soares, assim, pode ser considerada como um reflexo
de tais disputas. A morte do sargento Manoel pode ser lida como um a derrota da fração dominada da
classe dominante. No caso específico, a derrota de um determinado projeto de defesa da legalidade e do
poder constituído pelo então presidente, democraticamente eleito, João Goulart.
Em uma perspectiva gramsciana, nos primeiros momentos do golpe, predomina a repressão
como instrumento garantidor do exercício do poder por aqueles que controlavam o Estado Restrito: os
militares. A “Operação Limpeza” foi, portanto, foi um reflexo do predomínio da repressão na Ditadura Civil
Militar. Ao longo do tempo, na proporção que os níveis de repressão diminuem, inicia-se o movimento de
tentativa de construção do consenso, exemplificado, por exemplo, pela participação da Aerp (Assessoria
Especial de Relações Públicas) que foi encarregado de organizar um novo projeto de divulgação dos
ideais militares. Segundo Carlos Fico, os jargões do “desenvolvimento”, “mobilização da juventude”,
17
“fortalecimento do caráter nacional”, “amor a pátria” entre outros , foram criados na tentativa de
disseminação das novas estratégias do governo de legitimar seus projetos, um quadro bem diferente do
início da ditadura como o exemplo do “ame ou deixe-o”.
Segundo Gramsci, um determinado grupo conquista a hegemonia através de dois pilares: um de
coação ou dominação e o outro através do direcionamento intelectual ou consenso. Na ditadura civil
militar brasileira não foi diferente. Quando tivemos um determinado enfraquecimento da repressão como
modo de coação, os militares partem para outro projeto: o consenso a fim de consolidar um determinado
18
projeto da classe dominante.

7. Conclusão
A documentação analisada para a produção deste artigo nos despertou o interesse para

14
Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/o-caso-das-maos-amarradas-prisao-e-morte-
de-um-sargento-nacionalista/; Jornal O estado de São Paulo,12,outubro de 1979, série: Avulsos, Pasta: 12, Cod:
07 Fl.125.APEM.
15
Emenda constitucional nº 11 que declara extintos os poderes discricionários estabelecidos pelo AI-5 e demais
legislações repressivas no dia 13 de outubro de 1978 e extinto definitivamente no dia primeiro de janeiro.
16
FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record,2001 p.251
17
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e
movimentos sociais em fins de século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2003,(p193-195), 2005.
18
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

129
comprovar a eficiência do projeto de repressão proposto pelos militares. Um fato ocorrido no outro canto
do país chega ao Maranhão podendo ser lido como reflexo da macro organização de punição a quem se
opunha ao projeto militar. Foram, portanto, representações de uma “cadeia nacional” montada pelos
instrumentos de repressão no Brasil. Quando citamos Gramsci, estabelecemos uma relação da cultura
com a hegemonia. A batalha cultural é pensada como um projeto anterior a conquista do poder. Gramsci
19
observa na cultura um meio privilegiado de romper com o individualismo . No desfecho da história da
ditadura civil militar, percebemos que as manifestações culturais foram preponderantes pra a
consolidação das “Diretas já”.
A proposta foi apresentar a montagem e as articulações feitas pelos militares para não deixar
invadir pelos movimentos de contestação, perceber ainda que o projeto da ditadura civil militar em si foi
muito bem articulado, capaz ainda de sobreviver por 20 anos.

8. Imagens

* Figura 1. Jornal O Estado de São Paulo s/d ,


série: Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.125.APEM.

*Figura 2. Jornal do Brasil Jornal do


Brasil. 15/01/80 série: Avulsos, Pasta: 12,
Cod: 07 Fl.125.APEM.

*Figura 3. Jornal Folha da Tarde, 12,junho de 1979, série: Avulsos,


Pasta: 12, Cod: 07 Fl.124.APEM.

19
Carlos Nelson

130
8. Fontes e Referências Bibliográficas

Documentação Dops-Arquivo Publico do Estado do Maranhão Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.124
http://www.dicionarioinformal.com.br/repress%C3%A3o/
http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/o-caso-das-maos-amarradas-prisao-e-morte-de-um-
sargento-nacionalista/
COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro:
Campus, 1989.
FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record,2001
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e
movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro :Civilização Brasileira,2003,p167-2005
DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder, e golpe de classe. Rio de janeiro:
vozes, 1987.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº
13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: entre jornalistas e censores. In: REIS, Daniel Aarão, RIDENTI,
Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe militar e a ditadura civil militar 40 anos depois(1964-
2004) Bauru,SP :Edusc 2004.
SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

131
Ângelo Cardoso da Silva: Herzog gaúcho

Graziane Ortiz Righi

Resumo: Este artigo tem por objeto apresentar uma nova versão sobre a morte do militante do M3G,
Ângelo Cardoso da Silva, que foi declarado pelo regime civil-militar como suicídio. Entretanto devido as
evidências localizadas no Inquérito Policial, aberto para investigar a morte, é possível evidenciar que não
se trata de suicídio, mas sim de assassinato. Este questionamento sobre as reais evidências da morte de
Ângelo só é possível, pois há precedentes na ditadura civil-militar brasileira e por ainda não termos
acesso a toda documentação referente ao período o que possibilita a dúvida.
Palavras-chave: golpe civil-militar - resistência - tortura

Introdução
Início dos anos setenta no Brasil, a repressão do Regime Militar se intensifica, as organizações
de esquerda que optaram pela luta armada começam cair uma a uma. No Rio Grande do Sul não é
diferente. Um preso político é encontrado morto em sua cela no Presídio Central, nesse período. Sua
morte é tratada como suicídio, entretanto as fotos do Inquérito Policial, encontrada no Arquivo Judicial
Centralizado do Rio Grande do Sul, questionam essa possibilidade, pois o corpo encontrava-se com um
lençol amarrado ao pescoço e com os joelhos dobrados, sem vão-livre para sua queda, o que
impossibilitaria o enforcamento.
Segundo informações do Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-
1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Ângelo Cardoso
da Silva nasceu em 27 de outubro de 1943 (contava com 26 anos quando morreu), em Santo Antônio da
Patrulha (RS), filho de João Cardoso da Silva e Celanira Machado Cardoso. No inquérito policial consta
como nome do pai Oswaldo Cardoso da Silva, o nome da mãe é o mesmo.
Ângelo era motorista de táxi. Iniciou seus estudos primários aos 24 anos, quando também
passou a se interessar pelas questões políticas do país. Era militante da organização Marx, Mao,
Marighella, Guevara, o M3G, que atuava restritamente na região sul do país. Ângelo morreu aos vinte e
dois dias de abril de 1970, segundo a versão oficial se suicidou com um lençol em sua cela no Presídio
Central.
De acordo com o Dossiê Ditadura, o boletim da Anistia Internacional de março de 1974 denuncia
a morte de Ângelo como tendo ocorrido em “circunstâncias misteriosas”. O relator do caso (232/96) na
CEMDP, general Oswaldo Gomes Pereira, apresentou voto pelo indeferimento do pedido, alegando falta
de provas da motivação política de sua prisão. Nilmário Miranda pediu vistas e, em 27 de agosto de
1996, apresentou um parecer favorável comprovando sua participação política, sendo o caso aprovado
por unanimidade. O livro Dos filhos deste solo de, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, trata a morte de
Ângelo como assassinato, mas também apresenta a versão do estado como suicídio.
Sobre a fonte a ser trabalhada, ou seja o Inquérito Policial, é necessário levar em conta, que
tudo aquilo que chegou até nós não chegou por acaso. Todo documento envolve saberes, poderes e
intencionalidades. Nesse sentido, a objetividade do documento – o qual parecia apresentar-se por si
mesmo como uma prova histórica para a historiografia tradicional, desde que fosse testada a sua
autenticidade – que se opunha à intencionalidade do monumento é uma ideia superada. Sabemos que
toda fonte histórica deve ser vista como um “documento-monumento”, conforme definido por Jacques Le
Goff: longe de ser um resíduo imparcial e objetivo do passado, o documento é carregado de
intencionalidade; sua produção e sua preservação resultam das relações de força que existiram e
existem nas sociedades que o produziram. Estas premissas se fazem necessárias, principalmente nesta
documentação que vamos trabalhar, pois analisaremos um inquérito policial aberto para simular um
possível assassinato, tratado como suicídio.

Outros casos de falso suicídio


O questionamento sobre as circunstâncias da morte do militante do M3G, Ângelo Cardoso da
Silva, só é plausível, por não se tratar de um caso único. Há precedentes na história da ditadura civil-
militar brasileira de casos de mortes, geralmente de pessoas que não resistiram a tortura, serem
divulgados pelo governo como suicídio para ludibriar a opinião pública e como tentativa de encobrir seus
crimes. O caso mais emblemático desta situação é a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, no

132
entanto há outros casos de “falso” suicídio como o do metalúrgico Manoel Fiel Filho, militante do PCB,
morto no início de 1976 e do tenente da reserva da Polícia Militar de São Paulo, também militante do
PCB, José Ferreira de Almeida, morto em 1975.
A morte de Vladimir Herzog teve grande repercussão na mídia, por trata-se de um jornalista, e
também entre a população. Seu assassinato foi um dos mais divulgados e documentados do período da
1
ditadura, sendo considerado um marco na luta de resistência. Vlado, como era chamado entre os
amigos, era secretário do jornal “Hora da Notícia, na TV Cultura de São Paulo, e chegou a diretor do
departamento de telejornalismo da emissora. Exercia sua profissão movido pela proposta de que a
imprensa deveria cumprir sua responsabilidade social. Defendia que a TV Cultura deveria produzir um
jornalismo profissional não subserviente ao Estado e que, mais do que educativo ou cultural, fosse
2
público. Além disso era professor da Universidade de São Paulo e teatrólogo.
De acordo com o Dossiê, agentes do DOI-CODI/SP tentaram prender Herzog na noite de 24 de
outubro de 1975 em sua casa, mas ele não estava lá. Seguiram para a sede da TV Cultura, onde ele
estava trabalhando. Lá após algumas negociações entre jornalistas e agentes ficou acertado que Herzog
se apresentaria no dia seguinte na sede do DOI-CODI. Como combinado ele compareceu sem escolta
policial, no dia 25 de outubro de 1975. Era acusado de ligações com o PCB.
Sua prisão e morte foi consequência da “Operação Jacarta” que procurava atingir entidades
influentes da opinião pública, essa, por sua vez, fazia parte da “Operação Radar”, que objetivava uma
grande ofensiva do Exército, iniciada em 1973, para dizimar a direção do PCB.
Segundo a versão oficial, Herzog teria se enforcado com o cinto do macacão de presidiário que
vestia. A farsa foi desmascarada pelo testemunho de seus companheiros de prisão, Rodolfo Konder e
Jorge Benigno Jathay Duque Estrada, jornalistas presos na mesma época no DOI-CODI, que foram
acareados com Vlado. Logo após, permaneceram próximos à sala onde ele se encontrava sendo
interrogado, de onde ouviam com nitidez seus gritos, o barulho de pancadas e as ordens do torturador
para aplicação de choques. O IPM instaurado para apurar a morte de Herzog concluiu que ele se
suicidara exatamente como noticiado pelo Comando do II Exército.
A morte por suicídio foi desmentida pelas próprias contradições existentes nos depoimentos dos
médicos legistas Harry Shibata, Arildo de Toledo Viana e Armando Canger Rodrigues, prestados na ação
judicial movida pela família, cuja decisão foi dada em 27 de outubro de 1978. Essa ação declaratória
terminou por responsabilizar a União pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog.
A falsidade de seu suicídio ficou flagrante na foto em que aparece nas dependências do DOI-
CODI paulista, pendurado nas grades de uma janela, sem vida, com um cinto amarrado ao pescoço e
com os joelhos dobrados, supostamente enforcado, ainda que não houvesse vão-livre para a sua queda.
Evidências inquestionáveis da tortura foram, ainda, identificadas pelo comitê funerário judaico
responsável pela preparação do corpo para o funeral. Por essa razão, Herzog foi enterrado dentro do
cemitério e não em área separada, como são tratados os suicidas no judaísmo.
O sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo lançou um abaixo-assinado
com denúncia pública, questionando a versão oficial de suicídio. Dom Paulo Evaristo Arns dirigiu um
3
culto ecumênico, concelebrado com o rabino Henry Sobel e com o reverendo Jaime Wright.
Poucos meses depois da morte de Vladimir Herzog, outro preso político que estava sob custódia
DOI-CODI/SP foi morto, mas a versão oficial era de suicídio. Manoel Fiel Filho era operário metalúrgico e
militante do PCB, foi preso em 16 de janeiro de 1976, às 12h, na fábrica onde trabalhava por dois
homens que se diziam funcionários da prefeitura. Puseram-no num carro, foram até sua casa, que foi
vasculhada por eles. Nada encontraram que pudesse incriminar Fiel Filho. Diante de sua mulher –
Thereza de Lourdes Martins Fiel – foi levado para a sede do DOI-CODI do II Exército, afirmando que ele
4
voltaria no dia seguinte. Manoel foi torturado e, no dia seguinte, acareado com Sebastião de Almeida,
5
preso sob a mesma acusação.
Posteriormente, os órgãos de segurança emitiram uma nota oficial afirmando que Manoel havia
se enforcado em sua cela com as próprias meias, naquele mesmo dia 17, por volta das 13 horas.
Contudo, segundo os depoimentos de seus companheiros da Metal Arte, onde ele trabalhava e tinha sido
preso, o calçado que usava era chinelos, sem meias, contrariando a versão oficial. Além disso, seu corpo

1
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p 627
2
Idem, p. 626.
3
MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a
ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 343.
4
Sebastião Almeida, o Deco, vendia bilhetes de loteria na portaria da Metal Arte e era militante do PCB. Distribuía
alguns exemplares do periódico Voz Operária e recolhia contribuições financeiras para o jornal. Informações
retiradas de Idem. p, 350.
5
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 636.

133
apresentava sinais evidentes de torturas, hematomas generalizados, principalmente na região da testa,
pulsos e pescoço.
Um fato que demonstra a responsabilidade dos órgãos de segurança pela morte de Manoel Fiel
Filho é o afastamento do general Ednardo D’Ávila Mello da chefia do II Exército, ocorrido três dias após
sua divulgação. O mesmo que tinha atuado no caso de Vladimir Herzog, portanto sua imagem já estava
bastante desgastada. O presidente da República, general Ernesto Geisel, também tirou da chefia do CIE
o general Confúcio Danton de Paula Avelino, acirrando uma crise com o ministro do Exército, Sylvio
Frota, que foi demitido no ano seguinte.
O exame necroscópico, solicitado pelo delegado de polícia Orlando D. Jerônimo, e assinado
pelos médicos legistas José Antônio de Mello e José Henrique da Fonseca, confirma a versão oficial. Fiel
Filho foi enterrado por sua família no Cemitério da IV Parada, em São Paulo.
O Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos, organizado pela comissão de familiares,
apresenta um documento de 28 de abril de 1976, assinado por Darcy de Araújo Rebello, procurador
militar, onde pedia o arquivamento do caso alegando que

as provas apuradas são suficientes e robustas para nos convencer da hipótese de


suicídio de Manoel Fiel Filho, que estava sendo submetido a investigações por crime
contra a segurança nacional [...] Aliás conclusão a que também chegou o ilustre
6
Encarregado do Inquérito Policial Militar.

Outra fonte sobre o assunto encontra-se no livro A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari, onde
há outras informações sobre o caso. O seguinte relato foi recebido do Serviço Nacional de Informações
pelo capitão Dias Dourado, assistente do general João Batista Figueiredo, então chefe do SNI:

– Nominado [Manoel Fiel Filho] era casado com dois filhos e não há qualquer sinal de
violência no corpo.
– foi encontrado estrangulado com uma meia de nylon de homem. Não está
7
caracterizado suicídio.

Pelo sétimo dia de morte de Manoel foram celebradas três missas, noticiadas pela imprensa,
cujos recortes, com carimbos do Setor de Análise da Delegacia Especializada de Ordem Social, foram
encontrados nos arquivos do DOPS/SP, nos quais se lê que uma das missas contou com mais de 400
8
pessoas. Houve manifestação dos religiosos que as celebraram contra as torturas e as prisões.
A morte de José Ferreira de Almeida também aconteceu de forma obscura, com o estado
afirmando ser suicídio, mas as evidências apontando para assassinato. José era tenente da reserva da
Polícia Militar de São Paulo e militante do PCB. Foi preso dia 7 de julho de 1975, aos 64 anos de idade,
com outros militantes e vários policiais da PM, acusados de serem membros do PCB. Sua prisão, assim
como de Vladimir Herzog, foi consequência da “Operação Radar”, que objetivava dizimar a direção do
PCB.
Passou um mês incomunicável, sofreu torturas físicas e psicológicas. Depois de várias tentativas
seu advogado conseguiu visitá-lo, em 7 de agosto, no DEOPS/SP. Pois, após o AI-5 era permitido que as
autoridades policiais mantivessem o preso em seu poder por dez dias sem comunicar o fato à Justiça
9
Militar, contribuindo para a institucionalização das torturas. Na visita o advogado pôde observar o quanto
Almeida se encontrava abatido, tenso, com sinais bem visíveis de tortura. Ele teria dito ao advogado que
temia ser morto. No dia seguinte, segundo nota do Exército, apareceu morto, enforcado “ao amarrar o
10
cinto do macacão que os presos utilizavam a uma das grades da cela”.
Seu corpo foi velado no Hospital Cruz Azul da Polícia Militar, com a presença de agentes de
segurança do II Exército. O caixão foi aberto pelo advogado e familiares, que puderam constatar as
torturas sofridas. Depoimentos em auditorias militares dos presos políticos major Carlos Gomes
Machado, capitão Manoel Lopes e tenente Atílio Geromin denunciaram as torturas sofridas por José
Ferreira.
O atestado de óbito foi assinado pelo mesmo médico-legista Harry Shibata, que atestou as

6
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637.
7
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637.
8
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637.
9
MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a
ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 332.
10
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p. 616.

134
farsas de Herzog e Fiel Filho. Shibata atesta como causa da morte asfixia por constrição do pescoço.
Assina ainda o atestado de óbito Marcos Almeida. O documento dá a data da morte como 8 de agosto de
1975, em hora ignorada. Foi encontrado no arquivo do DOPS/SP um relatório da Enfermaria do II
Exército onde se vê que, além das torturas e maus-tratos, José Ferreira de Almeida sofreu com uma
11
úlcera duodenal, sendo atendido nos dias 8,10,14,19 e 20 de julho e 3 de agosto.
Em A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari, o assunto é tratado:

O tenente reformado José Ferreira de Almeida, o Piracaia, tinha 64 anos e mais de vinte
anos de militância [...] No princípio de agosto, deitado num colchão da carceragem do
DOI, despediu-se de um capitão: “Eu não agüento mais...vou morrer [...] O II Exército
informou que no dia 8 de agosto Piracaia se enforcara. Teria amarrado o cinto do
macacão à grade da cela, de forma que seu corpo pendeu com as pernas dobradas e os
pés no chão. Segundo o SNI, Piracaia se matara “quando havia indícios de que iria
nomear os prováveis contatos em outras áreas militares”. Oficialmente era 36° preso a
se suicidar dentro de uma prisão da ditadura, o 16° enforcado, o sétimo a fazê-lo sem
12
vão livre.

As três mortes relatadas aconteceram todas em São Paulo com pouco tempo de diferença entre
si e foram reconhecidas como mortes efetuadas pelos agentes da repressão. A morte de José Ferreira
de Almeida ocorreu na mesma cela onde foi “encenado” o suicídio de Vladimir Herzog.
Outro fato importante a ser ressaltado é que a morte de Ângelo Cardoso da Silva ocorreu anos
antes a esses casos mais divulgados de falso suicídio, o que configura uma prática comum da ação
repressiva.

M3G
O nosso objeto central de pesquisa neste artigo era militante do M3G, dessa forma algumas
informações sobre a mencionada organização são importantes, para assim compreender o nível de
envolvimento do nosso personagem com o grupo de resistência.
A organização Marx, Mao, Marighella e Guevara, conhecido como M3G, foi constituída em
meados de 1969 por Edmur Péricles Camargo. Segundo Fábio André Gonçalves das Chagas, o grupo foi
13
responsável pelo desencadeamento das ações armadas no Rio Grande do Sul. Edmur havia lutado ao
lado de Carlos Marighella na Aliança Libertadora Nacional (ALN), em São Paulo, mas também já tinha
atuado no Rio Grande do Sul pelo partido comunista no final dos anos cinquenta e inicio dos anos
sessenta, regressou ao estado em abril de 1969 por divergir da estratégia postulado por Marighella para
enfrentar a ditadura.
No livro Guerra é guerra, dizia o torturador (1981), de Índio Vargas, que fazia parte da luta
armada do PTB, ele descreve seu encontro com Edmur quando foi procurado por este em sua casa: “um
negro, alto forte, aparentando 50 anos, bem-vestido, [...] cabeça raspada a navalha [...] maneiras polidas,
14
palavra fluente, linguagem característica de um homem de esquerda”. O objetivo de Camargo era
conseguir o apoio de Índio Vargas para suas ações no estado de expropriações para arrecadar fundos
para a guerrilha. Em depoimento de Vargas, no Seminário Internacional Carlos Alberto Tejera de Ré, em
maio de 2012, o interlocutor afirma que Edmur Péricles Camargo havia saído de São Paulo, pois
acreditava que a linha de combate de Carlos Marighella estava muito “fraca”, que era preciso ações mais
fortes para combater o regime, assim ele veio buscar apoio no Rio Grande do Sul.
Vargas entrou em contato com seu grupo no PTB e juntos decidiram apoiar Edmur. A ajuda era o
empréstimo de um apartamento de Índio, localizado na Avenida Borges de Medeiros, de onde se
começou a articular contatos com membros de outras organizações, como a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária- Palmares (VAR-Palmares) e o Partido
Operário Comunista (POC). Os militantes do M3G, de forma geral, se aproximavam mais do ideário
nacionalista de esquerda do que com o comunismo, devido a influência de Índio Vargas que indicara
nomes trabalhistas para compor o grupo. Outros nomes de apoio que compunham o grupo são citados
por Fábio Chagas, como: Jorge Fischer Nunes, João Batista Rita, Paulo Roberto Telles Franck, este com
curso de guerrilha em Cuba e o Tenente Dario Vianna dos Reis, oficial reformado do exército. A chácara
deste ex-oficial era uma importante base de articulações, planejamentos de ações e guarda de
11
MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a
ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 333.
12
Gaspari, Elio. A Ditadura Encurralada, p. 159 in Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil
(1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. P 617.
13
CHAGAS, Fábio André Gonçalves das. A luta armada gaúcha contra a ditadura militar nos anos de 1960-1970.
Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Rio de Janeiro: UFF, 2007.p, 236
14
VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. p, 40.

135
armamentos (CHAGAS, 2007, p.242).
Davi Ruschel, em sua dissertação de mestrado, afirma que a primeira ação do M3G foi a
expropriação da agência da Caixa Econômica Federal localizada na Rua José do Patrocínio, em 13 de
junho de 1969. A ação foi realizada por Edmur e Jorge Fischer Nunes e obteve sucesso: expropriaram 5
mil cruzeiros novos e uma arma “Taurus”, calibre 38, do soldado da Brigada Militar que estava no local.
Na época a polícia não viu vínculo político na ação.
Outra ação do M3G ocorreu em 23 de julho de 1969, e agora contava com a ajuda direta de
Índio Vargas, o objetivo era expropriar a agência do banco Sulbanco localizada na esquina da Avenida
Protásio Alves com Barão de Amazonas. Nessa ação obtiveram melhor resultado: 18 mil cruzeiros
novos. Novamente a suspeita recaía sobre suspeitos comuns.
Após a expropriação, Edmur voltou a São Paulo para restabelecer contato com a ALN, seguindo
orientação de Índio Vargas que ressaltava a importância das ações no Rio Grande do Sul contar com o
apoio de outra organização. Entretanto, neste ínterim ocorre o assassinato de Carlos Marighella, no
início de novembro de 1969, e toda a cúpula da Aliança Libertadora Nacional entra na total
clandestinidade, dificultando o contato de Edmur, este por sua vez, retorna ao estado decidido a
continuar sua luta armada.
Mas O Grupo Armado do PTB e o POC decidiram não apoiar mais as expropriações. Neste mês,
devido a morte de Marighella, a situação complica: ocorreram as prisões dos freis que ajudavam os
perseguidos políticos saírem do país pela fronteira do Uruguai. O próprio Fleury veio até o Rio Grande do
Sul interrogar Frei Beto, que estava em um seminário em São Leopoldo.
O retorno de Edmur marca a entrada de João Batista Rita, o “Catarina”, no grupo. A partir desse
momento o grupo recebe o nome conhecido: M3G, uma homenagem a pensadores e combatentes de
esquerda. As ações continuam, mesmo com a saída de alguns militantes. A organização prepara-se
agora para uma expropriação em Cachoeirinha, cidade vizinha da Capital, a ação fica marcada por uma
confusão policial na tentativa de captura dos “assaltantes”. Após a expropriação, realizada com sucesso,
o carro utilizado para a fuga estraga, Edmur acaba fugindo com o dinheiro, de ônibus, enquanto os
outros companheiros tentam consertar o carro. Nesse momento a polícia passa pelos militantes, estes
estavam decididos a enfrentá-los, mas devido a uma confusão de informações os policiais passaram reto
continuando a perseguição a outro carro. Segundo Ruschel, a polícia teria se enganado quanto ao carro
a ser perseguido, além do fato do sargento da Brigada Militar que recebera a informação pelo rádio, por
trata-se de um brizolista passou a informação errada, mudando o modelo e a cor do carro. Essas
informações foram obtidas em entrevista realizada pelo autor com o militante Jorge Fischer Nunes que
teria encontrado o oficial brizolista, tempos depois na prisão.
A próxima ação do grupo contou com a ajuda de Ângelo Cardoso da Silva, este, como já citado,
era motorista de táxi e tinha dirigido para o grupo durante a expropriação de um banco no bairro Tristeza,
15
próximo a Sexta Delegacia de Polícia . Fábio André Gonçalves das Chagas, em sua tese de doutorado,
afirma que Ângelo já tinha participado de outras ações como motorista e que após essa expropriação
teria recebido dinheiro para comprar outro veículo e regulamentar a documentação, o que demonstra
certo despreparo do grupo, pois como eles iriam realizar “assaltos” utilizando carro legalmente registrado
facilitando, assim, a repressão policial. Ainda nesta ação o grupo deixou afixado no vidro da agência uma
carta aberta ao ministro da fazenda Delfim Neto criticando a política econômica do governo. A partir
deste momento a repressão percebeu tratar-se de ações revolucionárias e não apenas assaltos
efetuados por bandidos, assim o DOPS passa a conduzir melhor as investigações.
Nos meses seguintes outras organizações de esquerda, como a VPR, realizaram ações de
expropriações, enquanto a M3G em associação com a VAR-Palmares e FLN realizaram uma grande
expropriação no Banco do Brasil de Viamão, localizado ao lado do quartel da Brigada Militar, uma ação
bastante arriscada e audaciosa, que obteve sucesso e grande destaque na mídia, a qual já vinha
noticiando essas ações de cunho político estampando a foto do Edmur e ligando os fatos ao Carlos
Lamarca. Nesta ação, segundo Chagas, Ângelo teria participado. Embora a expropriação tenha
inicialmente dado certo, seu desfecho, segundo Jorge Fischer Nunes, foi primordial para a queda do
grupo. As armas utilizadas foram descobertas pela polícia que logo chegaram ao nome do ex-tenente
Dario Vianna dos Reis que tinha ajudado na ação. Nunes, como relata em seu livro, logo caiu preso
também.
Mas o fato que mais chamou atenção das autoridades para as ações da luta armada no estado
foi a tentativa de seqüestro do cônsul americano, Curly Curtiss Cutter, realizada pela VPR em 4 de abril
de 1970. Uma ação mal planejada que não obteve sucesso e aumentou ainda mais a repercussão na
mídia dos atos “terroristas”. Nas palavras de Davi Ruschel: “as consequências dessa tentativa de
seqüestro se abateriam sobre todos, pois a ação frustrada serviu para alertar os órgãos de repressão
16
para o que estava ocorrendo em Porto Alegre”. Membros da OBAN, os mais fortes torturadores, vieram
15
Jornal Zero Hora, 29 de janeiro de 1970.
16
RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura no Rio

136
para o sul para coordenar as operações de busca dos guerrilheiros, a ordem era prender e torturar.

A partir dessa maior profissionalização da repressão, com as prisões e torturas


sistemáticas, as quedas foram aumentando cada vez mais, e foram sendo desmontadas
sistematicamente as poucas organizações de luta armada que atuavam no RS, caindo
17
nas mãos da ditadura a maior parte dos que haviam optado pelas armas.

No dia 17 de abril de 1970, o Secretário de Segurança Pública, junto com o comandante da


Brigada Militar divulgaram o resultado da operação, com os nomes dos presos “subversivos”, o material
apreendido, as ações descobertas até o momento, a aparelhagem e quais militantes haviam participado
de cada ação. Dias depois, no jornal Folha da Tarde de 28 de abril de 1970 são divulgados os nomes
dos guerrilheiros presos, entre eles Paulo de Tarso Carneiro e Índio Vargas que afirmam ter divido cela
com Ângelo Cardoso da Silva, embora seu nome não conste na famigerada lista, à época da sua
reclusão no presídio Central que resultou na sua morte.

Inquérito Policial: Análise do Processo/Documento


No Inquérito Policial as informações de capa constam como delegado responsável, Ben-Hur
Moreira, do 11° Distrito Policial, da Polícia Civil. Como natureza do fato, suicídio, e o fato ocorrido no dia
22 de abril de 1970, às 16h no Presídio Central de Porto Alegre. O inquérito para investigação foi aberto
no mesmo dia do ocorrido.
Desde o início se trabalha com a certeza do suicídio, pois na abertura do inquérito já se afirma o
fato de que “[...] o presente inquérito policial foi elaborado em razão de um SUÍCIDIO [...]” (p. 2). Consta
que o fato ocorreu na sela 38, do pavilhão A do presídio Central. No processo não há o motivo da prisão
de Ângelo e nem quanto tempo estava preso. Há apenas uma referência, no depoimento do policial que
encontrou o corpo, sobre o fato de Ângelo tratar-se de preso político, assim como outros presos que
estavam no presídio central, há ainda a afirmação que estes presos estavam incomunicáveis uns com os
outros e a disposição do DOPS.
Como “testemunhas” do fato foram ouvidas os dois investigadores que faziam a guarda:
Aloncio Cardoso de Souza e Osmar Ribeiro da Cruz. Os policiais afirmaram que foram levar café da
tarde ao preso e o encontraram morto nas dependências sanitárias da cela e ainda que nesse dia,
Ângelo, apresentara comportamento normal, quando pela manhã tinha lavado roupa e almoçado
normalmente.
Nas palavras de Aloncio, durante seu depoimento:

[...] constataram que o mesmo se encontrava enforcado por um lençol, dependurado na


janela basculante interna da cela; que a vítima usou seu próprio lençol para enforcar-se;
que Ângelo encontrava-se de joelhos no piso, de frente para a parede, as mãos postas
no peito [...]

Apenas nesse breve trecho podemos salientar indícios que não foi suicídio por enforcamento.
Primeiramente, o corpo foi encontrado de joelhos, não havendo altura suficiente para o deslocamento e o
consequente enforcamento. O policial afirma que Ângelo tinha as mãos postas no peito, isto não seria
possível, pois o corpo encontrava-se ajoelhado, com o tronco na vertical, assim, as mãos estavam
estendidas ao longo do corpo.
Aloncio afirma que não sabia quanto tempo o preso estava recluso, “mas deveria ser mais ou
menos um mês” (p. 5), não sabia o motivo da prisão, apenas que o preso estava a disposição do DOPS
e mantinha bom comportamento, “que o suicida nunca reclamou de nada, era quieto e pouco falava” (p.
5). Ainda neste depoimento, o agente informa que o fato foi logo comunicado, através de rádio, ao diretor
do DOPS e que logo em seguida chegou a polícia técnica.
No depoimento de Osmar Ribeiro da Cruz, este afirma que foi chamado pelo seu colega,
Aloncio, até a cela 38, pois o preso não estava sendo visto e nem tinha respondido ao chamado, ambos
achavam que o preso tivesse fugido, quando chegou até a cela a porta já estava aberta e entrou na cela,
deparou-se com o corpo de Ângelo Cardoso da Silva “que estava dependurado com um lençol no
pescoço [...] e com os joelhos rentes ou encostado no chão; que o suicida amarrou o lençol na janela
basculante que tinha mais ou menos um metro e trinta de altura [...]”. Neste depoimento temos uma nova
informação que corrobora com a hipótese de não suicídio: o fato da janela ter apenas um metro e trinta
de altura, impossibilitando haver altura suficiente para a suspensão do corpo e o consequente
estrangulamento.

Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre:
UFRGS, 2011. p, 57
17
Idem, p. 58.

137
Interessante ressaltar que os depoimentos foram colhidos no dia 22 de novembro de 1973,
portanto três anos após o ocorrido, o que configura uma maior dificuldade dos depoentes relembrarem,
corretamente, os fatos presenciados em 1970. Além disso, o ano de 1973 é marcado pelo final da luta
armada no Brasil, quando a esquerda estava praticamente dominada pela repressão, bem diferente do
contexto de 1970, principalmente no Rio Grande do Sul, quando as organizações de esquerda e luta
armada estavam desenvolvendo várias ações contra a ditadura, o que, consequentemente, causou o
endurecimento do regime.
Após os depoimentos dos policiais foram juntados ao processo o Auto de Necropsia e
Levantamento Pericial, aos 29 dias de novembro de 1973. Os peritos responsáveis foram Izaias Ortiz
Pinto (relator) e Carlos B. Koch. O laudo foi realizado dia 23 de abril de 1970. Para este artigo uma nova
análise do laudo foi realizada, pelo médico legista Helio Antonio Rossi de Castro, que apresentou
considerações importantes que corroboraram com a versão de não suicídio. Abaixo as considerações.
A primeira delas refere-se a um detalhe simples da necropsia, mas que no caso chama a
atenção é o fato do estômago da vítima conter alimentos em fase inicial de digestão. Por que alguém
prestes a cometer um suicídio se alimentaria? Habitualmente há um estado depressivo tão importante
antecedendo a decisão e o ato de se matar, que há perda do apetite alimentar. É um dado semi-objetivo
que questiona a hipótese do suicídio.
Outra observação se deve a questão de que em “ambos os joelhos (havia) um sulco de fundo
violáceo”. Sulcos são lesões provocadas por pressão. Habitualmente referem-se ao pescoço. Tal
observação não foi comentada no item Discussão do laudo. De qualquer modo, isso poderia indicar que
a vítima permaneceu de joelhos após a morte, o que seria possível resultar tanto de um suicídio como de
um homicídio.
Na verdade, houve uma asfixia mecânica, por ora considerada como devida a enforcamento ou
estrangulamento. A questão resume-se ao tipo de força que constringiu o pescoço e ao mecanismo
responsável por tal constrição. Em tese, a força pode ser da gravidade (peso do corpo – enforcamento),
da vítima ou de um agressor (ação externa – estrangulamento). Os mecanismos foram examinados nas
situações apresentadas a seguir:

a) força da gravidade acionando um nó.


O sulco do pescoço não se interrompia. Apresentava apenas “uma área menos precisa à direita”.
Tal aspecto não permitia afirmar a existência de uma interrupção do sulco; caso contrário levaria a
comprovação da presença de um nó, o que é característico do enforcamento. Por esse critério não havia
nó. Além disso, a disposição do lençol da fotografia nº 8 permite afirmar categoricamente que o lençol
além de não estar sobreposto à face anterior do pescoço da vítima, encontrava-se entrelaçado (um lado
enlaçado ao outro), o que é típico dos casos de garroteamento (estrangulamento). Além disso, a largura
do sulco de “no máximo, 3,5 cm” permite imaginar quanto o lençol foi comprimido devido a sua torção
durante o processo de garroteamento (quanto maior a torção, menor a largura do lençol e menor a
largura do sulco provocado por ele). A imagem da fotografia nº 8, até prova em contrário (manipulação
do cadáver após a morte), exclui completamente a hipótese da existência de um nó e confirma a
hipótese de garroteamento.

b) força da vítima e garroteamento


O garroteamento do pescoço produziria a perda da consciência vítima. Inconsciente, ela largaria
o lençol o que provocaria a suspensão do garroteamento e da constrição do pescoço antes que essa
fosse capaz de causar a morte. Logo, é impossível o auto-garroteamento causar o óbito. Noutros termos,
não há suicídio por garroteamento.

c) força da gravidade e garroteamento


O garroteamento, que de fato existiu, foi produzido pelo lençol entrelaçado. Esse entrelaçamento
foi causado por uma força giratória e perpendicular ao eixo longitudinal do lençol (uma torção do lençol).
Para produzir seu efeito (constrição do pescoço) a pressão sobre a extremidade do lençol deveria ser
constante.
Tal força não poderia ser substituída pela força da gravidade. Apenas uma força externa
contínua e adequadamente aplicada sobre ambas as porções do lençol, que estavam entrelaçadas e
firmemente apertadas, seria capaz de mantê-las suficientemente comprimidas para que transmitissem tal
força de compressão para a constrição do pescoço da vítima causando a morte. Caso houvesse um
relaxamento do lençol, haveria um afrouxamento da constrição do pescoço. No momento em que
eventualmente a vítima estivesse providenciando a fixação da extremidade do lençol em algum suporte
mais alto que o nível do seu pescoço para se enforcar, esse procedimento certamente afrouxaria o
entrelaçamento inviabilizando o propósito suicida. Assim, o legista consultado concluiu que a morte não

138
decorreu da ação da força da gravidade, isto é, não houve enforcamento.

d) força externa e garroteamento


Tipicamente uma força externa, através de um laço horizontal e contínuo (sem interrupção
devido a presença de algum nó) é determinante do que se denomina estrangulamento – uma causa
homicida da morte. Isso certamente foi o que aconteceu no presente caso.
A ausência de interrupção do sulco do pescoço e a disposição do lençol observada na fotografia
nº 8 levou o legista a concluir que não havia nó no instrumento causador da asfixia, isto é, no lençol.
Poderia afirmar-se simplesmente que, se, no caso, não existe o mecanismo do nó, mas o do
garroteamento para a constrição do pescoço e se esse garroteamento não pode causar a morte quando
auto-infligido ou pela ação da força da gravidade, mas apenas se impulsionado por uma força externa e
se essa força externa é, por definição, alheia à vítima, certamente a causa da morte foi o homicídio. Mas
há outros elementos que corroboram tal diagnóstico.
A pequena escoriação observada na região sub-mandibular (“porção superior da região cervical”)
à direita pode muito bem ter sido provocada pelas unhas das mãos da vítima na tentativa de livrar-se do
garrote ou do agressor ao colocá-lo em prática. Seria excepcionalmente rara a ocorrência de tal lesão
em um procedimento suicida com um “lençol”.
O sulco estava enfraquecido na face lateral direita do pescoço e nítido na face lateral esquerda.
Isso indica que a pressão do lençol foi mais forte à esquerda e que à direita o sulco estava menos
evidente na região subjacente ao primeiro entrelaçamento do garrote. O agressor estava posicionado à
direita da vítima. Na verdade, tais aspectos também são compatíveis com a escoriação mencionada
acima. Justamente ali a ação dos dedos das mãos da vítima ou, mais provavelmente, do agressor, entre
o lençol e o pescoço, poderiam ter impedido uma pressão homogênea do lençol, produzindo um sulco
“menos preciso à direita do pomo de Adão”.
O enforcamento é uma asfixia geralmente associada a presença de um sulco oblíquo e
interrompido no pescoço. No caso em estudo, as caracterizações que o tipificam são desqualificadas
pelo próprio legista. O sulco é “levemente oblíquo” e a área, erradamente datilografada como
“interrompida” pelo escrivão (ato falho, pois se tratava de um caso concluído como enforcamento, mas
não havia interrupção do sulco), de fato não estava interrompida. Era apenas “menos precisa”, ou seja,
não havia nó. Tais qualificativos, por si sós, enfraquecem o argumento do colega. Noutros termos,
exatamente aqueles aspectos específicos que poderiam caracterizar o enforcamento estão atenuados,
minimizados. De fato, eles não podem ser sustentados como elementos capazes de diagnosticar o
enforcamento: as fotografias demonstram que o sulco apresentava uma acentuada tendência a
horizontalidade (compatível com estrangulamento) e decididamente não estava interrompido (outra
característica do estrangulamento). Os demais sinais apresentados, como as Manchas de Tardieu e a
congestão pulmonar, são inespecíficos em relação a quaisquer asfixias mecânicas (enforcamento,
estrangulamento, afogamento, soterramento, confinamento, etc.). Estavam presentes porque de fato a
vítima faleceu por asfixia mecânica.
Portanto, diante dos elementos subjetivos e objetivos analisados o médico legista, Hélio Castro,
concluiu que foi a ação de uma força externa através do mecanismo de garroteamento com a utilização
de um “lençol” que causou a morte da vítima. Não restam dúvidas de que a morte não ocorreu por
enforcamento (suicídio), mas por estrangulamento (homicídio).

Considerações Finais
Ângelo Cardoso da Silva era um jovem, motorista de táxi e militante do M3G, tinha atuado em
algumas expropriações realizadas pelo grupo e fora preso após um cerco policial contra as ações da
esquerda armada no Rio Grande do Sul que estava passando por um momento de expansão,
chamando, dessa forma, a atenção da repressão. Segundo a versão oficial teria se suicidado dentro da
cela onde estava preso no Presídio Central de Porto Alegre.
A descoberta do Inquérito Policial, aberto para investigar a morte de Ângelo Cardoso da Silva, no
Arquivo Central do Judiciário suscitou a dúvida sobre as reais circunstâncias da morte do militante. A
partir das fotos tiradas no local, que constavam no inquérito, e da nova análise da necropsia (realizada
por um profissional da área) não restam dúvidas que se trata de um falso suicídio para encobrir um
assassinato realizado pela repressão.
O questionamento sobre a morte de Ângelo só se mostrou plausível, pois há outros casos de
assassinatos encobertos por suicídios, como a emblemática morte de Vladimir Herzog, de grande
repercussão e que se tornou um símbolo da resistência, contam também a morte do metalúrgico Manoel
Fiel Filho, poucos meses após a de Herzog e ainda o caso do ex-tenente da PM paulista e militante do
PCB, José Ferreira de Almeida. Esse três casos foram posteriormente confirmados como
responsabilidade do Estado. Assim, essa nova fonte ajudou a esclarecer mais uma história obscura da

139
ditadura civil- militar brasileira e indica a possibilidade de outros casos ainda não reconhecidos.

Anexos

Fotografia 8

Fotografia 10

Fotografia 11

140
Referências Bibliográficas

CHAGAS, Fábio André Gonçalves das. A luta armada gaúcha contra a ditadura militar nos anos de 1960-
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MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante
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RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura
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Porto Alegre: UFRGS, 2011.
VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.

141
Focos de ação comunistas no Maranhão e Doutrina de Segurança Nacional

1
Sarah Fernanda Moraes Gomes

Resumo: Considerando a lei de acesso à informação, que define como um dos direitos de todo ser
humano o caminho a informação, a abertura dos documentos secretos da ditadura se encaixa como um
desses direitos; a comissão da verdade, mal ou bem, tenta satisfazer esta função. Com isso este
trabalho propõe-se a analisar de acordo com fontes documentais, como eram difundidas informações
entre os departamentos de ordem política (DOPS) e outras agências de espionagem pelas principais
cidades do Brasil. Como se articulavam e principalmente a quem perseguiam, sem deixar de levar em
consideração o papel do Maranhão naquele contexto e dos momentos finais do Regime.
Palavras- chave: Repressão, Espionagem, anticomunismo, DOPS-MA.

Abstract: Whereas the law on access to information, which it defines as a right of every human being the
way the information, the opening of secret documents from dictatorship fits like one of those rights, the
truth commission, for better or worse, tries to fulfill this function . Therefore this work proposes to analyze
according to documentary sources, as were disseminated information among departments of political
order (DOPS) and other intelligence agencies by the main cities in Brazil. As articulated and pursued
mainly who, while taking into account the role of Maranhão in that context and the final moments of the
Regime.
Keywords: Repression, Espionage, anticommunism, DOPS-MA.

Introdução

A ditadura civil-militar instaurada no Brasil a partir da deposição de João Goulart em 1964 é


marcada, até a atualidade, por silêncios que dificultam uma melhor análise aos historiadores e,
consequentemente, o desenvolvimento da historiografia sobre o Estado de Exceção então em vigência.
O uso da violência em muitos casos era direcionado. Logo, localizar os locais de fala de cada pesquisa
que surge se faz necessário para entender o que é e pode vir a ser a memória sobre o regime.
Deste modo, temos na historiografia sobre o regime militar alguns eixos centrais de análise que
perpassam ou pelo protagonismo e regência das ações golpistas que culminaram no golpe de 1964;
sendo que em geral, as teses tratam ou sobre uma perspectiva de subordinação dos militares
entremeados aos pareceres de uma elite civil que primava pela manutenção de seu status quo,
rechaçando de qualquer forma a ameaça comunista; ou sobre a primazia dos militares enquanto
dirigentes conscientes de seu dever de manutenção da ordem nacional apoiados por setores
conservadores da sociedade brasileira.
Assim, trabalhos construídos já com o auxilio de documentos recentemente liberados, revelam
um compromisso dos historiadores com a sociedade, além de possibilitar a mesma o direito à
informação. O direito a informação faz parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se faz
reconhecida por diversos países inclusive o Brasil; esse direito era negado às famílias e partes da
sociedade em geral.
Com a abertura dos documentos do DOPS e de outras instituições pertencentes ao Sistema de
Informações, acreditamos num avanço em relação à acessibilidade e pesquisa; apesar de sabermos o
tanto que ainda há de se caminhar para garantir o total acesso às informações sobre aquele período.
Este trabalho se inclui no contexto de acessibilidade a informações sigilosas do DOPS,
caracterizando-se como uma nova geração de pesquisa sobre História Contemporânea no Brasil,
especificamente das ditaduras militares, seguindo um corpo teórico gramsciniano. Desta forma a
construção deste, objetiva caracterizar os perseguidos pelo DOPS e principalmente seu sistema de
circulação de informações. Serão investigados como as delegacias se articulavam nacionalmente e
principalmente como a delegacia de polícia política do Maranhão se comportava em relação aos centros
de poder político no Brasil. Também será realizada uma breve discussão historiográfica sobre a ditadura

1
Graduanda em História/ Licenciatura na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
Integrante do Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea – NUPEHIC E-mail:
sarahmoraesgomes@gmail.com

142
Civil- militar no Brasil.
Além de tudo que já fora citado, deve-se levar em consideração a incipiência na produção de trabalhos
sobre ditaduras no Maranhão e parte do Nordeste. Assim o contato com esses documentos incentiva
novas criações e estabelece um espaço em meio à pesquisa hegemônica do eixo sul e sudeste.

Breve discussão historiográfica sobre o Regime


Diversas são as vertentes historiográficas que analisam o contexto da ditadura civil militar. A
priori, podemos destacar os estudos marxistas que primaram, entre outros aspectos, pelas
determinações econômico estruturais e os condicionamentos de classe.
2
Nessa linha, um dos primeiros a despontar com proeminência foi Jacob Gorender que foi
categórico ao afirmar que no período pré-1964 se engendrara uma real ameaça às classes dominantes
brasileiras e ao imperialismo, as macroestruturas de poder. No livro Combates nas Trevas, o autor
mencionado sai em defesa da esquerda, porém sem deixar de criticar ou apontar seus erros. Em uma
perspectiva histórica, elenca as precipitações das ações do Partido Comunista em várias partes do país
desde 1935 quando se iniciam os maiores embates com as forças dominantes.
Seguindo uma lógica de dualidade de interesses eminentes no cenário nacional, Gorender
afirma que o golpe de 1964 também fora precipitado e que os setores conservadores da sociedade,
assim como o exército, não estavam fortemente organizados. Assim, o autor caracteriza o golpe de 1964
como uma forma desnecessária de ação por parte da direita.
Haja vista, o autor reconhece que os anos anteriores a 1964 havia um grande movimento das
massas comandado pela esquerda, mas, esta mesma esquerda representada por um partido comunista,
não organizou a si e muito menos as massas para uma luta armada. O que não aconteceu com as forças
opositoras conservadoras. Indiretamente reafirmava a ideia de um contragolpe realizado pela direita em
virtude da iminência revolucionária esquerdista.
Outra linha marxista, de orientação gramsciana, deixou em segundo plano a questão econômica
e seguiu pelo extremo valor dado a associação de grupos civis golpistas em instituições representantes
3
do interesse das classes dominantes que articularam e lideraram o processo de golpe. René Dreifuss
destaca sobremaneira a atuação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES – e do Instituto
Brasileiro de Ação Democrática –IBAD – que aglutinariam os interesses conservadores civis e militares
nacionais, além dos setores empresariais internacionais.
Este autor, em sua obra de maior destaque “1964: a conquista do Estado, ação política, poder e
golpes de classe”, atenta para extrema participação de civis na instauração e manutenção do golpe.
Membros da “elite orgânica” (civis) se instauram em cargos estratégicos do governo, utilizando-se das
Forças Armadas como “padrão moderador” tornando desta maneira seus objetivos, de cunho burguês,
como nacionais. René Dreifuss é o principal defensor da linha teórica que define o regime militar, como
“regime civil- militar”, demarcando assim um espaço de destaque na produção sobre o período.
Ainda na linha marxista, porém sem o condicionamento excessivo dos civis do IPES e IBAD,
temos a interpretação defendida por Daniel Aarão Reis Filho acerca da heterogeneidade da frente social
e política que se reuniu para depor Goulart. O autor defende que tal heterogeneidade inviabilizaria a
hipótese de que tantos interesses estivessem aglutinados e orquestrados ao consenso de todos somente
nessas duas instituições.
Embora se relativize o peso do complexo ipes/ibad na organização do golpe, Reis afirma que na
historiografia nacional consolidou-se a leitura da ditadura como “apenas militar” subestimando a
capacidade dos civis para a orquestração do projeto imposto pelos militares. “É inútil esconder a
4
participação de amplos segmentos da população no movimento que auxiliou na implantação do golpe” .
Para Reis, assim, o regime político ocorrido de 1964 a 1985 possui um caráter civil- militar e
qualquer tentativa de desassociar imagem dos civis conservadores com a daquele período, perpassa por
5
um plano político mais abrangente, no caso o esquecimento coletivo da população como um todo .
Outro autor considerado de suma importância para os estudos sobre Ditadura Civil-Militar
chama-se Jorge Ferreira que ganha destaque no cenário Nacional ao sintetizar vários artigos de
diferentes autores em uma única obra, O Brasil Republicano, Vol 4, O tempo da ditadura. Este livro de
coautoria de Lucilia de Almeida Neves Delgado faz parte de uma coleção sobre os estudos de Brasil

2
Gorender, Jacob. Combate nas Trevas a Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. Ed. Ática,
1987. São Paulo.
3
Dreifuss, René. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes,
1987.
4
Reis, 2012,p33.
5
Podemos citar como exemplo o senador José Sarney, presidente do ARENA no Maranhão durante o regime
cívico-militar. Hoje, nega qualquer relação com os generais ressaltando apenas o fato de ter “auxiliado na
redemocratização”.

143
publicados recentemente.
Destacamos também, Francisco Carlos Teixeira da Silva, escritor de um dos artigos inseridos no
livro de Jorge Ferreira. Apesar de seu objeto de estudo ser o processo de “abertura do regime”, não
deixa de explanar sobre o sistema como um todo.
Carlos Teixeira toma como ponto de partida entender a natureza das ditaduras em toda América
Latina. Defende a importância para os estudos sobre ditadura, para que haja um esclarecimento de
forma justa e verdadeira. Pois, o que permanecerá escrito enquanto concepção de História futuramente
será delimitado agora. Assim, os historiadores possuem o papel de influenciar neste processo, mas sem
deixar de considerar os lugares de fala de cada personagem daquele período.
6
Assim, este autor define como devemos trabalhar com aquele período, delimitando as aberturas
levando em consideração o papel da violência e do arbítrio no decorrer dos regimes na América Latina e
também como já foi explanado assegurar os lugares de fala e suas multiplicidades (FERREIRA E
DELGADO, p. 246). A luta por uma pesquisa mais aprofundada sobre ditaduras, embora esteja no
campo do passado, torna-se uma disputa do presente, pois há um interesse político no esquecimento
daquele período, como já defendera Daniel Arão Reis.
Outra linha interpretativa que ganhou projeção foi o chamado “padrão moderador” postulado pelo
7
autor Alfred Stepam . Nessa vertente podemos ter uma concepção e entendimento histórico da
participação gradativa das Forças Armadas nos círculos de poder da política nacional. A instituição militar
funcionaria como um subsistema vigilante e atento às “ameaças” que o aparelho democrático pudesse
sofrer; é a lógica do “bom guardião”. Os militares então sairiam de seus quartéis com o objetivo único de
depor um governo e transferi-lo para outro “grupo de políticos civis engajados na manutenção do estado
8
de ordem” . Nessa ação, estariam apartados de qualquer anseio de tomada do poder, seriam apenas
“bons guardiões”. Mas então, como explicar os desdobramentos de 1964?
Para Stepan independente de quem encabeçou o processo golpista, foram às camadas
populares e As esquerdas um dos princípios ativos para a chamada “Revolução de 1964”. A tese desse
autor, apesar de muito relevante, contém alguns aspectos problemáticos no tocante à própria ideia de
“padrão moderador”, “já que existiram interferências diretas dos militares na política brasileira antes de
1964 e é bastante problemática a visão do ‘subsistema militar como ‘variável dependente’ do sistema
9
político global” . (FICO, 2004, p. 31).
Na mesma vertente militarista e com críticas a análises marxistas que tradicionalmente
privilegiavam as explicações econômicas em detrimento das demais, temos as definições teóricas de
Gláucio Ary Dillon Soares. Na escrita desse autor, estão presentes elementos comuns aos demais, tal
como o caos administrativo e a desordem política que justificariam uma intervenção militar no intuito da
preservação do regime democrático, vertente explorada por Stepan. Também a ameaça que os
comunistas e a esquerda está presente em todas as teorias de forma direta ou indireta. E no que
compete a instituição militar, destacam-se os ataques à hierarquia e à disciplina.
Soares não exclui de modo algum a importância dos setores civis conservadores, mas em seus
escritos sobre o golpe militar observamos um ponto de vista totalmente oposto à centralização
conspiratória defendida por Dreifuss. Para ele, houve na verdade um grande “caos conspiratório” por
conta da falta de coordenação entre os setores que defendiam uma reação frente a todo um contexto
ameaçador e de desordem. Haja vista, o próprio desfecho do golpe militar. Assim sendo, ao caos
administrativo e a desordem política justificariam uma intervenção militar no intuito da preservação do
regime democrático, soma-se o perigo comunista e esquerdista em geral. Tais elementos, então,
constituir-se-iam em variáveis fundamentais para o entendimento do processo de instauração do regime
militar.
Contudo, sem a desestabilização veiculada pelos eixos civis pró-golpe através de propagandas
ideológicas e suas mobilizações – por exemplo, a emblemática Marcha da Família com Deus pela
Liberdade – o golpe seria bastante difícil. Sem a iniciativa militar, todavia, seria impossível.
A rigor, todas as vertentes teóricas deram a sua contribuição para um entendimento macro ou
micro estrutural. Nesse sentido, a busca por quem dera o primeiro passo para o golpe de 1964, se civis
ou militares, torna-se uma questão secundária se atentarmos para o grau de complexidade e interesses
implícitos e explícitos que ambos os lados defendiam. Uma coisa é certa: de fato fora um golpe civil
militar com contribuições cabais de cada lado para todo o desfecho daquele ano e os vinte que estariam
por vir.
Por conseguinte, fugindo às macroestruturas explicativas sobre o período ditatorial, temos os

6
No texto o autor questiona se ocorreu Abertura do Regime civil-militar ou Aberturas, pois, Aberturas significa a
inserção de outros projetos no processo de redemocratização, antes apenas nas mãos dos milicos ou de seu
apoiadores.
7
Stepan, Alfred (1975) “Os militares na política”. Rio de Janeiro, Artenova.
8
(FICO, 2004).
9
(FICO, 2004, p. 31).

144
novos eixos de estudos que se alicerçaram na “Nova História” para o entendimento do período de modo
intimista e visceral. Por meio desse viés, grande parte dos crimes de tortura, por exemplo, vieram à tona
e expuseram a face nebulosa da atuação repressiva dos militares no poder.
Apesar de jugar necessário uma pequena análise historiográfica sobre o golpe, nossa proposta
vai além. Observaremos o principal sustentáculo de todo o regime civil militar, seu sistema de informação
10
que se pautava na Lei de Segurança nacional .

Doutrina de Segurança Nacional: Justificativa para as “investigações”.

1. Histórico e ideologia
11
A Ideologia de Segurança Nacional, segundo Margaret Crahan possui suas raízes no Brasil
desde o início do século XX. No contexto de guerra fria apropriou-se de alguns elementos pertencentes
ao conceito de “guerra total”. Aqui no Brasil e parte da América Latina, tomou a faceta da “segurança
interna” perante a “ação indireta” do comunismo. Assim, como afirma a autora Maria Helena Moreira
Alves na obra, Moreira Alves. O Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). A crescente movimentação
de contestações populares no começo dos anos de 1960 e expansão da guerra fria insuflaram nas elites
brasileiras e autoridades o pensamento de crescente “ameaça subversiva interna” e de guerra
revolucionária.
No Brasil este pensamento da Segurança Nacional foi teorizado pela Escola Superior de Guerra
12
(ESG) tendo como seu principal intelectual orgânico o general Golbery de Couto e Silva. Difundiu-se
entre os civis inseridos no complexo IPES/IBAD uma percepção mais abrangente da segurança nacional
na qual integrava também o desenvolvimento econômico.
O IPES e o IBAD contribuíram durante 25 anos com a ESG. O pensamento ratificado por essas
duas instituições trata-se de um largo corpo teórico constituído por elementos ideológicos e de diretrizes
para infiltração, coleta de informações e planejamento político-econômico de programas governamentais
(ALVES,1985). O manual básico da ESG, fundamental para implementação e solidificação do
pensamento anticomunista nos anos de 1960 no Brasil em um de seus princípios, estabelece o conceito
de Guerra Revolucionária, que consiste em conflito geralmente interno, estimulado ou apoiado por forças
13
externas e que visam a conquista do poder, comunista, pelo controle interno da nação .
Essas “forças externas” rapidamente eram associadas (ao que seria na época) à introdução do
comunismo e suas ações indiretas. Ainda segundo o manual da ESG, guerra revolucionária e a guerra
ideológica substituem a guerra convencional, entre fronteiras, desenvolvendo-se, assim, a teoria do
“inimigo interno”. Desta forma, o avanço comunista, em suas novas estratégias, tomaria a mente do
povo. Aproveitando-se dos descontentamentos existentes, colocando o povo contra a sua própria nação,
fazendo com que sejam utilizadas táticas de guerrilhas ou terrorismo.
O conceito de guerra revolucionária conclui assim que toda população pode ser colocada como
suspeita. Os chamados “inimigos internos”, deveriam ser devidamente identificados, controlados,
14
perseguidos e eliminados . Esta deveria ser a principal preocupação de uma das “maiores nações de
terceiro mundo”, pois esta “tática” do comunismo é considerada o meio mais eficaz da infiltração. A
segurança interna deveria ser mantida, contendo os antagonismos e qualquer outra pressão que
15
colocasse em questão a integridade do Estado e da Ordem .
O Estado historicamente como afirma Henrique Serra Padrós atua, como uma figura moderadora
dos conflitos de classe, sua eficiência maior ocorreu, quando uma classe se sobrepôs a outra,
legalizando o domínio, uso de força e de violência sobre as classes exploradas. (Padrós, 2005). O
movimento iniciado em 1964 no Brasil é o maior exemplo de organização entre Estado e Classes
dominantes, pois ao analisarmos o pensamento que rege a Doutrina de Segurança Nacional e como esta
engloba também questões econômicas, a violência e todo seu aparato repressivo tornam-se justificáveis.
Assim, ao contrário do que afirmam algumas novas correntes historiográficas, a ditadura civil-militar não
se deu como apenas uma questão de causa e consequência.
O pensamento da Doutrina de Segurança Nacional se fez prática ao ser ampliada em 1969
quando o AI-5 é instaurando. A Lei fornecia sustentação legal à repressão a qualquer pessoa ou grupo

10
Lei de N° 898, de 29 de setembro de 1969, institui os crimes contra Segurança Nacional e também ordem
pública e social, assim o devido julgamento p cada crime.
11
Margaret Crahan. In: Alves, Moreira Helena Maria. O Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, 1985.
12
Conceito Gramsciniano que denomina a pessoa que faz o intermédio entre um partido político ou legenda, e a
sociedade civil.
13
Manual Básico de treinamento da escola superior de guerra.
14
Manual Básico de treinamento da Escola Superior de Guerra: seção 1: Guerra contemporânea.
15
Stepan, Alfred (1975) “Os militares na política”. Rio de Janeiro: Artenova.

145
que se oponha a política do Estado de Segurança Nacional e definiria o que poderia ser um atentando
ao Estado:

A primeira Lei de Segurança Nacional foi sancionada como Decreto- Lei N° 314 a 13 de
março de 1967, e regulamentada pelo Decreto- Lei N° 510 de 20 de março de 1969. A
Lei de Segurança Nacional considerava crime “ofender moralmente quem exerça
autoridade, por motivos de faccionismo ou inconformismo político-social”, ofender a
honra e dignidade do presidente da republica, do vice-presidente e outros dignitários;
incitar à guerra, à subversão s desobediência às leis coletivas, à animosidade entre
forças armadas ou entre estas e as classes sociais ou instituições civis; à luta de
classes, à paralização de serviços ou atividades essenciais, ao ódio ou à discriminação
racial [...]. Com a Lei de Segurança Nacional de 1969, na realidade, deixaram de existir
no Brasil as liberdades de reunião, associação e imprensa. Seus dispositivos
constituíram o principal instrumento da repressão política, tornando-se a própria base do
16
poder de Estado .

Logicamente, as linhas do que era considerado crime ou não, eram tênues e a possibilidade de
desrespeito aos direitos humanos, devido ao estado de “guerra interna” é inegável. Mas, tudo justificado,
“para o bem da ordem e da nação...”.

1.2 Engrenagem do aparelho Repressivo


Como foi visto, a Doutrina de Segurança Nacional guiou a ideologia conservadora além de ser
cartilha administrativa da chamada “rede de informações” ratificada no decorrer do regime,
principalmente em 1968 quando o SNI teve suas fronteiras aumentadas (Fico, 2012).
O aparato repressivo da ditadura civil militar, logo, do Estado de Segurança Nacional era
composto por três elementos integrados entre si, porém distintos de funções. Primeiro, a vasta rede de
informações políticas; segundo órgãos e organizações responsáveis pelas ações repressivas a nível.
local e por último os aparatos das Forças Armadas usadas no controle político interno. (Alves, 1985).
17
O aparelho repressivo fora intensificado após 1969 quando foram criadas agências de combate
“à subversão” e que melhor estruturavam este sistema macro. Nestes incluem o Sistema de Segurança
Interna (SISSEGIN), Sistema Nacional de Informações (SISNI), Divisões de Segurança e Informação
(DSI’s), Inquéritos Policiais Militares (IPMs), Assessorias de Segurança e Informação (ASIs),
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Centro de Operações de Defesa Interna (CODI),
Destacamento de Operações e Informações (DOI), Operação Bandeirantes (OBAN) entre outros. Cada
ramo das forças armadas possuía um centro de informação: CIEX no exército, CISA na aeronáutica e o
CENIMAR na Marinha; todos subordinados ao Serviço Nacional de Informação. Segundo Carlo Fico na
obra “Como eles agiam”, apesar de haver posteriormente um acirramento das políticas de censura e
vigilância das atividades artísticas- culturais espalhadas por praticamente todo o Brasil, foram as
atividades de espionagem as grandes causadoras de transtorno a sociedade civil.
Segundo Priscila Antunes na obra Ditadura e Democracia na América Latina, desses aparelhos
citados O CIE teria sido o que mais se empenhou no combate a luta armada. Seus agentes compuseram
a maior parte dos destacamentos de Operações Internas (DOI) e dos de Defesa de Operações internas.
Entremeando a estrutura do Ministério do Exército ESTAVAM OS setores interligados, sem deixar de
gozar de alto grau de autonomia. Foi neste momento de incorporação das PMs que outros setores da
sociedade civil passaram a ser perseguidas pela ditadura (classe média).
A Lei de Segurança Nacional, como já fora explicitado, define o que pode ser crime contra a
“Segurança Nacional” e como seus acusados devem ser julgados, fato que gerou na população uma
cultura do medo. Mas, ao reportarmos ao serviço de informação, ha uma tendência de caracterizar
apenas o SNI como órgão responsável pelas perseguições e tortura nos porões da ditadura. Assim,
Priscila Antunes novamente se faz categórica:

Embora não fosse “lugar por excelência” das prisões e torturas, os agentes do SNI
tiveram participação ativa nesses processos de busca e muito provavelmente
colaboraram nos casos de tortura. Entre essas ações que desenvolvia, o SNI
interceptava correspondências, roubava documentos, fazia escuta telefônica e
acompanhava a vida das pessoas, fossem adversários políticos e suspeitos de
subversão, fossem integrantes da equipe governamental. Infiltrava pessoas tanto nas
organizações clandestinas quanto nos organismos legalizados de oposição ao regime,
18
como no caso do MDB .

16
Alves, 1985, p. 158.
17
Ano de instituição do AI-5.
18
Antunes, p. 221.

146
Deste modo, igualar os aparatos repressivos ou até mesmo subestimá-los enquanto análise
histórica pode nos condicionar a erros grotescos de análise.
Uma parte da historiografia atual tenta desacreditar a capacidade de ação e interação do
aparelho repressivo presente no Brasil até o começo dos anos de 1990, destacando o despreparo de
alguns oficiais, além de discursos no qual, atualmente parecem extremamente esdrúxulos e sem nexo.
Mas, como afirma Carlos Fico, o que essas correntes não observam é que estes erros eram exceções e
19
no contexto de “guerra interna” qualquer poderia ser um suspeito levado a interrogatório .

1.3 O SNI e o Nordeste, “focos” de ação comunista.


Segundo a avaliação da CIA, se houvesse uma revolução no Brasil, ela começaria pelo
Nordeste. Por isso, vários especialistas na luta antiguerrilha já se encontravam no local.
Não faltavam denúncias no Brasil e nos Estados Unidos, de que alguns milhares de
agentes norte-americanos agiam no Nordeste disfarçados de religiosos, missionários,
jornalistas, pesquisadores etc. Só em 1963, cerca de quatro mil cidadãos norte-
americanos obtiveram vistos para se fixar na região e outros três mil foram recusado
20
[...]. Depois do golpe de 1964, eles deixaram repentinamente o Nordeste .

Apesar de não ser o centro de poder, o Nordeste, por ter movimentos significativos que
21
questionavam as condições de trabalho local, como as ligas camponesas , consideradas grandes
“focos” de introdução comunista, passou a ser vigiado e mantido sobre constante observação durante
todo o regime. Não foi por acaso que no momento de instauração do golpe, houve uma verdadeira
22
“operação limpeza” que resultou no suplício do jovem ativista comunista Gregório Bezerra .
O manual da ESG e a Lei de Segurança Nacional, como já mencionado, eram seguidos (ou se
tentava seguir) à risca. Para o pensamento militar qualquer indício de que o estado estava em “perigo”
era motivo de redobrada atenção. Assim é visível observar a organização e dimensão do aparelho
repressivo, quando observamos em documentos secretos que qualquer atividade das oposições, eram
analisadas de forma cautelosa.
Qualquer movimento das oposições, mesmo sendo nos anos finais do regime, eram anotados e
divulgados por boa parte das agências de espionagem do país. As agências do Nordeste, obviamente,
não eram excluídas. Um exemplo trata-se de um documento classificado como reservado, advindo de
Porto Alegre- RS, no ano de 1981, que traça uma comparação entre os programas políticos do PC do B
e o das oposições.
Um Informe da CSI/ SSP-RS analisava uma “persistência do pensamento do Partido Comunista,
no novo programa político das oposições” (Pasta 7, Cód. 007. ARPEM). “O Partido Comunista Brasileiro,
com persistência e sutileza aproveitando-se da debilidade, e da ausência de uma ideologia definida e do
oportunismo de alguns membros dos tradicionais partidos político, impôs seu “programa mínimo” a toda
a oposição, que ingenuamente (?) o endossou e o denominou: “Programa para a União de todos””.
(Pasta 7, Cód. 007. ARPEM).
Naquele momento todas as esquerdas lutavam pelo processo de redemocratização, obviamente,
o “Programa para a União de todos” deveria conter elementos de interesses homogêneos. Eram esses
interesses homogêneos como;

“eleições diretas em todos os níveis,”” livre organização dos partidos”, “eliminação dos
dispositivos antidemocráticos... Lei de Segurança Nacional, Lei da greve e lei da
imprensa”, “extinção da tutela do Estado, direito à greve”, “política justa de distribuição
de renda”, garantia de emprego para todos”, “democratização do poder judiciário,”
reduzido o número de grupos financeiros, nacionais, estrangeiros e do Estado”. (Pasta
7, Cód. 007. ARPEM)

Ao ver estes informes, levando em consideração o contexto político-social que vivemos, não há
nada de absurdo nas exigências das oposições e muito menos do Partido Comunista. “Nós, ao termos
contato com o pensamento da comunidade de informações, a primeira reação é riso, pois, a
23
preocupação com “inimigo” parece excessiva.

Riso ou medo, muitos dos papeis circulados pela comunidade, ao serem reconhecidos,
causavam temor. Uma proposta recebida pelo SNI, encaminhada pelo chefe de gabinete

19
FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record 2001.
20
(Chiavenato, 2007, p. 97).
21
Movimento de trabalhadores do campo que lutavam por reforma agrária. Contendo cerca de 110 mil
trabalhadores entre o Norte e o Nordeste no ano de 1964, lutavam também por melhores condições de trabalho
no campo.
22
(FERREIRA E DELGADO, p. 170).
23
(FICO, 2001).

147
ao Ministro da justiça, afirmava que “todo criminoso, teme a morte violenta e a prisão”,
24
sem capacidade de recuperar a liberdade .

Outro “foco” foi à região do Araguaia, onde pessoas morreram violentamente sem se quer saber
a razão. Ao contrário do que afirma certos pensamentos historiográficos, a região Nordeste não fora
esquecida pelo regime (Infelizmente não), novas pesquisas fundadas na documentação do período, nos
mostram justamente o oposto.

As duas páginas do Informe (Pasta 07, Cód. 007/DOPS/SSP/RS) contendo o “plano de comparação do
programa político das oposições”. O documento constituído de quatro páginas foi emitido no dia 27 de
novembro de 1981, e enviadas aos DOPS das Capitais brasileiras além de todas as secretarias de
Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do
Maranhão – AMPEM, série Subversão. (Páginas 1 e 4).

Conclusão
Como foi visto a união ente sociedade civil e militares resultou amparados por um pensamento
conservador anticomunista, resultou no Golpe Estado de 1964 que visava frear o suposto “avanço
comunista” e ainda estabelecer o domínio de uma classe, sobre as demais classes populares. É claro
que a posterior institucionalização do golpe e consequentemente do aparato repressivo não retirou dos
civis a sua responsabilidade e colaboração com o Terror de Estado (TDE).
O aparto repressivo atuante em todo País, disseminou o medo. É sabido, quem em regiões
periféricas ao centro de poder como o Nordeste vigilância não tenha sido tão forte durante todo o
regime. Mas, ela não deixou de existir. A ação dos PMs e dos agentes de informação presentes
principalmente nas universidades, não deixou de gerar um clima de tenção nesses ambientes.
A pesquisa, para traçar um perfil da atuação do regime no Nordeste e especificamente no
Maranhão ainda é muito incipiente. A abertura dos documentos do DOPS deseja-se que o interesse de
pesquisadores por este episódio da História do Brasil cresça, fato que contribuirá para o esclarecimento
da verdade nesta região.

Fontes
Documento Arquivo DOPS/MA
As duas páginas do Informe (Pasta 07, Cód. 007/DOPS/SSP/RS) contendo o “plano de comparação do
programa político das oposições”. O documento constituído de quatro páginas foi emitido no dia 27 de

24
(FICO, 2001).

148
novembro de 1981, e enviadas aos DOPS das Capitais brasileiras além de todas as secretarias de
Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do
Maranhão – APEM, série Subversão. (Páginas 1 e 4).

Referências Bibliográficas:
COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos. Ditadura e
democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas/ Organizadores Carlos Fico...[et al].- Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2008.
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STEPAN, A. C. Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Artenova, 1975.

149
Operando Informações (1975-1977): Atuação Repressiva e Evolução das Violações de
Direitos Humanos no DOI/CODI/II Exército

1
Diego Oliveira de Souza

Resumo: Este artigo trata da atuação repressiva do Destacamento de Operações de Informações (DOI),
do Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), do II Exército Brasileiro, no período de 1975-1977 e
sua relação com a vulnerabilidade dos Direitos Humanos. Para tanto, busca definir o contexto político-
social do espaço de atuação do DOI/CODI/II Exército, destacando a existência de conceitos e
pensamento em comum, na ação dos agentes do DOI-CODI/II Exército, através de sua ofensiva sobre o
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Utiliza-se de fontes do próprio organismo repressivo, em especial
seu levantamento estatístico dos resultados alcançados no combate à dissidência política. Por fim,
objetiva comparar, apresentando a simetria ou a assimetria entre os resultados alcançados pelo
DOI/CODI/II Exército e as informações trazidas no livro-relatório, Direito à Memória e à Verdade, editado
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República.
Palavras-chave: Ditadura Civil Militar – Atuação Repressiva – Violações de Direitos Humanos –
DOI/CODI/II Exército – Brasil.

Abstract: This article deals with the repressive role of Information Operations Detachment (DOI), the
Operations Center of Homeland Defense (CODI), the II Brazilian Army, in the period 1975-1977 and its
relation to the vulnerability of Human Rights. Therefore, it seeks to define the political and social context
of the performance space of the DOI/CODI/II Army, highlights the existence of concepts and thinking in
common, the action of agents DOI-CODI / II Army through its offensive on the Brazilian Communist Party
(PCB). It uses the body's own repressive sources, especially his statistical results achieved in combating
political dissent. Finally, compare objectively presenting the symmetry or asymmetry between the results
achieved by DOI/CODI/II Army and the information brought in the book-report, The Right to Memory and
Truth, edited by the Special Rights human, the Presidency.
Keywords: Civil-Military Dictatorship; Acting Repressive; Human Rights Violations; DOI/CODI/II Army;
Brazyl.

Introdução
Este artigo trata da atuação repressiva do Destacamento de Operações e Informações do Centro
de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), do II Exército Brasileiro, registrada através de estatísticas,
diante do combate à dissidência política da Ditadura Civil-Militar, entre os anos de 1975 e 1977 no Brasil.
Essencialmente aborda a produção de lesões e maus-tratos, praticadas por agentes públicos no
desempenho da função pública.
Centralizada na cidade de São Paulo, a atuação do organismo repressor é compreendida
através das seguintes violações de Direitos Humanos: prisão ilegal, tortura, homicídio, morte, ocultação
das reais causas de morte e desaparecimento forçado de cidadãos. A necessidade de se evidenciar a
responsabilidade do Estado brasileiro diante do dever de memória frente a revelação das circunstâncias
em que cidadãos foram presos e mortos pelo aparelho repressivo da Ditadura Civil-Militar, assenta a
justificativa desta investigação. Deste modo, objetiva-se analisar os resultados alcançados pelo
DOI/CODI/II Exército e a vulnerabilidade das violações de Direitos Humanos, no momento da abertura
política lenta, gradual e segura, iniciada durante o governo de Ernesto Geisel. De forma complementar,
busca-se apresentar a simetria ou a assimetria entre os resultados alcançados pelo organismo repressor
do II Exército Brasileiro, quando comparados aos registros trazidos, no mesmo período, no livro-relatório
Direito à Memória e à Verdade, editado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República.

1
Técnico Administrativo do Ministério Público Federal (MPF), lotado na Procuradoria da República do Município
de Santa Maria/RS. Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Endereço Eletrônico:
diego.o.souza@hotmail.com. Telefone: (51) 9238-4574. Orientador: Diorge Alceno Konrad, Professor Adjunto do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Doutor em História Social do Trabalho
pela UNICAMP. Endereço Eletrônico: gdkonrad@uol.com.br. Telefone: (55) 9971-4703.

150
A metodologia utilizada corresponde ao estudo comparativo dos resultados alcançados, no
intervalo de 1975-1977, pelo DOI/CODI/II Exército, e as mortes e os desaparecimentos forçados,
ocorridos na região de São Paulo, no mesmo período, trazidas no livro-relatório, Direito à Memória e à
Verdade. Os dados da análise foram extraídos do Relatório de Estatística do DOI/CODI/II Exército (RPI
6/75), do ano de 1975, e da Monografia do Major Freddie Perdigão Pereira, intitulada o “Destacamento
de Operações de Informações (DOI). Histórico papel no combate à subversão.”, de 1978.
A situação de vulnerabilidade dos Direitos Humanos provocada pela atuação repressiva do
DOI/CODI/II Exército poder ser compreendida a partir da produção de atos incompatíveis com as ideias
de Direitos Humanos. Através da perspectiva da Nova História Cultural, Lynn Hunt lembra que os Direitos
Humanos possuem uma base emocional que se desloca ao longo do tempo, assim como o
desenvolvimento incompleto do reconhecimento [empatia] de que todos os outros são igualmente
2
senhores de si origina todas as desigualdades de direitos que nos têm preocupado ao longo da história.
Para atender suas pretensões, este artigo está divido em três momentos. Na primeira parte,
apresenta as tratativas iniciais em torno da criação de organismo central para o combate aos crimes
políticos, definindo a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento como fomento para as ações
de repressão à dissidência política. Na segunda, traz a Diretriz Presidencial de Segurança Interna,
elaborada no governo de Emílio Garrastazu Médici, a qual possibilitou a existência dos Destacamentos
de Operações de Informações (DOI), em nível federal, destacando, entre os agentes da repressão, a
existência de um ethos repressivo. Na parte final, trata de apresentar o resultado da ofensiva do
DOI/CODI/II Exército sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante o período 1975-1976,
evidenciado a simulação de suicídio e o desenvolvimento da ocultação das reais causas da morte de
militantes comunistas.

O “Teatro de Operações”: DOI/CODI/II Exército


Antes de partir para o estudo da estrutura repressiva, representada pelos Destacamentos de
Operações de Informações (DOI), necessita-se detalhar o contexto político anterior à instituição do
“teatro de operações” das violações de Direitos Humanos, baseado no uso da violência em
interrogatórios de militantes políticos, opositores da Ditadura Civil Militar.
O contexto histórico da institucionalização da repressão à dissidência política brasileira,
notadamente do surgimento do DOI/CODI/II Exército, guarda vinculação com o período anterior à
deflagração do Golpe Civil Militar de 1964. Além disso, as variações da relação entre o Estado de Direito
e o autoritarismo, no Brasil, de acordo com Anthony Pereira, não podem ser explicadas como resultado
da força da oposição enfrentada por cada governo, e sim deve-se observar o consenso, a integração e a
3
cooperação entre as elites do Poder Militar e Poder Judiciário.
Deste modo, a ideia de criar uma estrutura de combate ao crime político e social (atribuição
pertencente até então às Quartas Delegacias Auxiliares), em nível nacional, se consolida com a criação
4
da Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), em 1933, embrião da futura DOPS. Em
1936, quando houve o Congresso de Chefes de Polícia, no Rio de Janeiro, convocado pela Chefia de
5
Polícia do Distrito Federal e do Ministério da Justiça , este aparato é aperfeiçoado. O objetivo do evento
era melhorar as relações entre as polícias estaduais, a fim de aprimorar o combate ao comunismo.
Entretanto, a resistência a ideia de federalizar a polícia política, em detrimento do controle dos estados,
foi levantada por alguns representantes estaduais, particularmente de São Paulo, que temiam a
diminuição da eficiência do trabalho policial.
De outro lado, o ativismo político dos militares brasileiros, conforme Maud Chirio, possui a
influência da queda da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. Conforme a historiadora francesa,
inaugura-se uma era de polarização e mobilização política da sociedade brasileira, cujas Forças
Armadas ocupam lugar central, ocorrendo a participação de oficiais de todas as patentes, sendo que:

A principal caixa de ressonância é o Clube Militar, que no pós-guerra recuperou seu


papel de foco de agitação política no Exército: ali são asperamente discutidas as
grandes questões que eletrizam a cena política nacional, e ali se enfrentam, às vezes
virulentamente, a facção nacionalista, solidária do campo getulista, e a direita liberal e

2
HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 28.
3
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 283.
4
Ver mais sobre isto em: KONRAD, Diorge Alceno. O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão
policial e os movimentos socios-politicos (1930-1937). Tese de Doutorado Orientada por Michael McDonald Hall.
Campinas: IFCH-UNICAMP, 2004.
5
JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: Os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI em São
Paulo (1969-1975). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 41.

151
6
anticomunista, aglutinada a partir de 1952 na chapa da Cruzada Democrática.

Em 1958, ocorreu a II Conferência Nacional de Polícia, na qual surgiu novamente o tema da


reestruturação da polícia, com a proposta de se criar uma Polícia Federal, sendo que o modelo norte-
americano do FBI chegou a ser cogitado. Diante disso, a representação de São Paulo se opôs
novamente ao projeto, alegando que a elite paulista não estaria interessada no fortalecimento do poder
federal, do mesmo modo os policiais paulistas contavam com instituições bem aparelhadas como o
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), afastando-se assim a tentativa de criar-se um FBI
7
caboclo.
Ainda assim, a preocupação com o recolhimento de informações ocorreu desde o período pré-
8
1964, tendo em vista que Golbery do Couto e Silva , um dos principais ideólogos da Ditadura de
Segurança Nacional no Brasil, reuniu, no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), milhares de
fichas e dossiês que foram levados posteriormente para o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão
9
que o referido militar assumiu a chefia, em julho de 1964.
Dessa maneira, o Serviço Nacional de Informações (SNI) passou a ser o principal órgão do
Sistema Nacional de Informações (SISNI), criado para subsidiar as atividades da repressão política no
período pós-1964. O projeto repressivo, para muitos militares, sustentava a crença de que, via controle
policial-militar, a sociedade poderia ser moldada de forma estática e desideologizada, assim como seria
possível combater a guerrilha e, numa segunda etapa, fazer um trabalho preventivo de saneamento
10
ideológico.
A Ditadura Civil Militar, implementada a partir de 1964, possuiu entre seus pilares a ideologia de
dominação de classe, compreendida, resumidamente, através do abuso de poder ou da força para
alcançar os objetivos do Estado. Portanto, a Doutrina de Segurança Nacional e de Desenvolvimento
trata-se de variante teórica que, em sua essência, difunde visão de mundo utilizada para moldar as
estruturas do Estado Brasileiro, buscando impor formas de controle específicas da sociedade civil, bem
11
como delinear um projeto de governo para o Brasil.
Em outras palavras, a Doutrina Política de Segurança Nacional, elaborada a partir da década de
1950, em decorrência do desenvolvimento das atividades da Escola Superior de Guerra (ESG), sofreu
alteração em sua nomenclatura, inicialmente, de Segurança Nacional no seu conceito mais abrangente,
passou a ser, de 1967 em diante, intitulada de Segurança e Desenvolvimento – ou de 'Desenvolvimento
12
e Segurança' – em decorrência da publicação do Decreto-lei nº. 200, de 25 de fevereiro de 1967.
A partir de 1961, a Escola das Américas tornou-se modelo de referência para o aprimoramento
dos agentes de segurança, ligados aos mecanismos estatais, encarregados de manter a ordem social
dos países latino-americanos. Conforme Joseph Comblin, foi nos Estados Unidos que se formou a ideia
de guerra revolucionária, a partir do funcionamento dos colégios militares destinados a preparar os
13
oficiais e soldados na região do Canal do Panamá.
Em decorrência do desenvolvimento da política externa norte-americana, a partir de 1962,
desencadeiam-se diversos Golpes de Estado ou Golpes Civil-Militares na América Latina. Na década de
1970, apenas México, Colômbia e Venezuela não haviam apelado para golpes militares como solução

6
CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na Ditadura Militar Brasileira. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012, p. 11.
7
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O ofício das sombras. In: Revista do Arquivo Público Mineiro: Belo Horizonte, ano
XLII, jun. 2006, p. 61-62.
8
A frase “Ficha não se limpa. Informações não se apagam: superpõem-se, como camadas geológicas” é atribuída
ao General Golbery do Couto e Silva e foi publicada em uma matéria especial do jornalista Elio Gaspari, na
época Diretor Adjunto da Veja. Ver: Veja, Edição 602, 19 de março de 1980, p. 29.
9
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). Brasil Republicano. Livro 4. O tempo da
Ditadura. Regime Militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,
p. 174-175.
10
D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo. A
memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 7.
11
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: EDUSC, 2005, p. 31.
12
FRAGOSO, Augusto. Prefácio, p. X e XIV. In: GURGEL, José Alfredo Amaral. Segurança e democracia: uma
reflexão política sobre a doutrina da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército/José
Olympio, 1975, p. 27.
13
COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1980, p. 44. Em relação às discussões em torno do predomínio da influência doutrinária
norte-americana ou francesa sobre o pensamento militar brasileiro, na década de 1960, cabe ressaltar que
Josep Comblin foi criticado por ser um dos primeiros a simplificar a noção de Guerra Revolucionária, bem como
por adotar uma interpretação genérica do ideário da Doutrina de Segurança Nacional. Ver: MARTINS FILHO,
João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67. Junho de 2008, p. 40.

152
14
para seus problemas sociais, políticos e econômicos.
Através da deflagração do Golpe Civil-Militar no Brasil, em 1964, iniciou-se, de forma intensa, a
perseguição política aos dissidentes da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Como
resultado dos aperfeiçoamentos dos esforços para eliminar a oposição política, surgiram estruturas
repressivas voltadas especialmente para o combate dos cidadãos acusados de violarem os interesses
da Segurança Nacional. A seguir, trata-se do surgimento da estrutura repressiva do Destacamento de
Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, do II Exército brasileiro.

O DOI CODI/II Exército: conceitos e pensamento em comum


A criação do Departamento de Polícia Federal, com atuação nacional, surgiu somente após o
Golpe Civil Militar de 1964. Até 1969, a repressão política era atividade essencialmente desenvolvida
pelas Secretarias da Segurança Pública e os DOPS (Departamentos de Ordem Política e Social) de cada
estado. A centralização da repressão à dissidência política ocorreu a partir do nascimento da Operação
Bandeirante (OBAN), em julho de 1969, definida pela Diretriz para Política de Segurança Interna, do
15
Governo Costa e Silva.
A contar dos resultados alcançados através da OBAN, a Ditadura Civil-Militar avançou na
concessão do campo de atuação dos Comandantes Militares de Área (CMA), sendo que, em setembro
1970, surgiu nova orientação para o combate à dissidência política no Brasil. Trata-se da Diretriz
Presidencial de Segurança Interna, elaborada no governo do general-presidente Médici, a qual
possibilitou a existência dos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), em nível federal. O
“combate à subversão”, segundo Ustra, foi reorganizado:

De acordo com essa Diretriz, em cada Comando de Exército, que hoje se denomina
Comando Militar de Área, existiria: um Conselho de Defesa Interna (CONDI); um Centro
de Operações de Defesa Interna (CODI); um Destacamento de Operações de
16
Informações (DOI); todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército.

No discurso, o governo de Médici seria marcado pela busca da “democracia e do


desenvolvimento”, os quais conforme suas palavras, seriam:“(...) atos de vontade coletiva que cabe ao
17
Governo coordenar e transformar em autênticos e efetivos objetivos nacionais”. Para auxiliar os
esforços do governo, na busca por seus objetivos, o Exército Brasileiro desenvolveu uma linha de ação
genuinamente brasileira que serviu de ensinamento para vários outros países:

Isso ocorreu com a criação dos CONDI, dos CODI e dos DOI e com o empenho de
apenas 450 homens do seu efetivo, distribuídos aos DOI. O restante do pessoal dos DOI
era complementado com os bravos e competentes membros das Polícias Civil e Militar
dos Estados. O Exército, através dos Generais-de-Exército, Comandantes Militares de
Área, centralizou, ordenou, comandou e se tornou responsável pela condução da
Contra-subversão no país. Os DOI eram a força pronta para o combate, diretamente a
18
eles subordinados.

Importa salientar que a justificativa para o engajamento das Forças Armadas, em especial o
Exército, no combate aos opositores da Ditadura Civil-Militar, está contida na alegação de que tanto o
Departamento de Polícia Federal, quanto as Secretarias de Segurança Pública, com raras exceções, não
tinham estrutura adequada e nem preparo para cumprir essa tarefa. A centralização do planejamento e a
execução das atividades repressivas no Exército Brasileiro, na visão dos idealizadores do Livro Negro do
19
Terrorismo no Brasil (ORVIL), foram importantes por suprir a falta de um organismo que assegurasse o

14
GUAZELLI, Cesar Augusto Barcellos. História Contemporânea da América Latina 1960-1990. 2 Ed. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 28-29.
15
PEREIRA, Freddie Perdigão. O Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel no
combate à subversão – Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e Estado Maior do
Exército, Rio de Janeiro, 1978, p. 6. Documento Confidencial.
16
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29set.70-24jan.74. Brasília:
Editerra, 1987, p. 67.
17
MÉDICI, Emílio Garrastazu. O jogo da verdade. 2 ed. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1970, p.
11.
18
USTRA, Carlos Alberto Brilhante, op. cit., p. 68, grifos nossos.
19
O Livro Negro do Terrorismo do Brasil (Orvil) é resultado da pesquisa e narrativa de ex-integrantes dos serviços
de repressão política no Brasil, autoridades e servidores públicos. Afirma-se que foi escrito, nos anos de 1986 a
1988. O ano de 2007 é o período em que o Orvil veio à luz. Calcula-se que apenas quinze cópias tenham sido
feitas do documento, o qual permaneceu guardado durante 19 anos. Para maiores detalhes, ver: FIGUEIREDO,
Lucas. Olho por olho: os livros secretos da Ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 11.

153
20
planejamento integrado e a pronta e eficiente execução nos estados e em nível nacional.
O processo de assunção do Exército brasileiro da coordenação da repressão política ocasionou
o surgimento dos DOI. Com isso, a estrutura repressiva deste órgão repetia o mesmo trabalho da OBAN,
constituindo-se em corpo de polícia política dentro das organizações militares do Exército. Na visão de
Elio Gaspari:

Repetia-se no DOI o defeito genético da Oban, misturando-se informações, operações,


carceragem e serviços jurídicos. O destacamento formava uma unidade policial
autárquica, concebida de forma a preencher todas as necessidades da ação repressiva
sem depender de outros serviços públicos. Funcionou com diversas estruturas e na sua
derradeira versão tinha quatro seções: investigação, informações e análise, busca e
21
apreensão, e administração. Dispunha de uma assessoria jurídica e policial.

Ademais, nas palavras do primeiro comandante do DOI/CODI/II Exército, observa-se a


necessidade de “flexibilidade” no desempenho de suas funções, pois segundo ele, não se conseguia
“combater o terrorismo amparado nas leis normais, eficientes para um cidadão comum. Os terroristas
22
não eram cidadãos comuns”. Há de se notar que este argumento, possivelmente, seja utilizado para
justificar a organização do DOI/CODI Paulista, bem como a prática de diversas violações de Direitos
Humanos, no tratamento dos presos políticos. De todo maneira, Carlos Fico avança na visão sobre a
flexibilidade do organismo repressivo da Ditadura Civil-Militar, e o define de forma objetiva:

Os DOI seriam uma espécie de 'anticorpo mutável', diante da nova 'virose' da guerrilha
urbana. (…) Os 'destacamentos', diferentemente das 'companhias', 'batalhões' ou
'regimentos', não possuem, nas organizações militares, uma composição fixa. Assim
flexíveis, os DOI podiam movimentar pessoal e material variável, conforme as
23
necessidades de cada operação, com grande mobilidade e agilidade.

Para concluir a reflexão sobre a estrutura repressiva do DOI/CODI/II Exército, retoma-se as


ideias de Carlos Fico acerca do Sistema de Segurança Interna, ao apontar-se a existência de um ethos
repressivo, entre os agentes da repressão. Sua base principal era a memória fundada na noção de
'guerra interna', que tendia não apenas a identificar um inimigo interno, mas a superestimar sua
24
capacidade ofensiva. Os agentes do DOI/CODI/II Exército agiam através de um conjunto de costumes
e hábitos diretamente relacionados à prática sistemática de abusos de Direitos Humanos: prisões ilegais,
torturas, desaparecimentos forçados, mortes e ocultação das suas reais causas.
Neste contexto, é significativa a entrevista do ex-Sargento do Exército Marival Chaves, Analista
de informações do Exército, o qual prestou seus serviços junto ao DOI/CODI/II Exército entre 1970-1976.
Para Marival Chaves, o combate à dissidência política era desenvolvido por dois tipos de pessoas, sendo
que:

O primeiro com vocação para matar, inspirado pelo ódio. O outro não tinha vocação
para o crime, mas estava impregnado pela doutrina de segurança nacional. Esses
25
matavam por achar que estavam salvando o país do comunismo.

Por fim, o ethos repressivo, dos agentes do Destacamento de Operações de Informações (DOI)
de São Paulo, teria sua base jurídico-filosófica estabelecida, em meados de 1968, nos debates
promovidos na ESG, para qual “prender, torturar, matar, tudo é permitido para defender a Segurança
26
Nacional.”

A Ofensiva do DOI/CODI/II Exército sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB)


Para compreender o contexto repressivo, dos anos de 1975 e 1976, no qual ocorre a ofensiva
final do DOI/CODI/II Exército sobre o PCB, é necessário recordar, dentre outros acontecimentos que
contaram com a participação de membros daquele partido, o momento no qual a distensão lenta, gradual
e segura chega aos presídios. A partir de 1975, nascia o reconhecimento dos opositores à Ditadura Civil-
Militar, com a repercussão das lutas que, em todo o País, eram travadas nas prisões, não havendo mais

20
O Livro Negro do Terrorismo no Brasil, p. 453. Cópia digitalizada. Disponível em:
<http:<//www.averdadesufocada.com/images/orvil/orvil_completo.pdf>. Acesso em 07 jan. 2013.
21
GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 180.
22
USTRA, Carlos Alberto Brilhante, op. cit., p. 85.
23
FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 123.
24
Ibid, p. 136.
25
VEJA, Edição 1262, 18 de novembro de 1992, p. 30.
26
FON, Antônio Carlos. Tortura: a História da repressão política no Brasil. 5 Ed. São Paulo: Global, 1980, p. 27.

154
27
como afirmar que no Brasil não existiam presos políticos.
No período de 1968 a 1974, a repressão policial-militar se concentrou no combate à guerrilha e
alvejou menos o PCB. Deste modo, ocorreu na visão de Jacob Gorender, descuidos em relação à
segurança dos membros do PCB, revelando que o Partido

abriu-se em excesso na campanha eleitoral de 1974, quando o MDB alcançou o


primeiro êxito significativo. Os órgãos policiais não tiveram dificuldades para desarticular
o Partidão e paralisar sua alta direção. Juntando as quedas dos anos anteriores às de
1974-1975, metade do Comitê Central foi parar nas garras do inimigo.(...) Exilados
quase todos os dirigentes em liberdade, o PCB deixou de ter uma direção nacional
28
atuante no Brasil entre 1975 e 1980.

Os efeitos da atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército sobre o PCB, entre outras


organizações políticas, podem ser verificadas na Tabela 1, constituída através de registros estatísticos
das Forças Armadas. O DOI/CODI/II Exército, no período de 1975 a 1977 deteve diretamente 224
cidadãos. Nesse período, 4 pessoas foram mortos no próprio Destacamento de Operações de
Informações (DOI) de São Paulo.

Resultados alcançados entre 1975-1977 Total

Presos pelo DOI 224


Encaminhados ao DOPS para Processo 158

Encaminhados a outros Órgãos 9


Liberados 59
Mortos 4
Presos recebidos de outros Órgãos 97
Encaminhados ao DOPS para Processo 46
Encaminhados a outros Órgãos 43
Liberados 8
Mortos 0
Elementos que prestaram declarações e foram 55
liberados
Total de cidadãos que passaram pelo DOI/CODI/II 376
Exército
29
Tabela 1 Resultados alcançados pelo DOI/CODI/II Exército
De outro modo, Elio Gaspari apresenta detalhes da ofensiva do aparelho repressivo estatal sobre
os militantes do PCB, ao afirmar que após o aniquilamento dos militantes do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), na região do Araguaia, inicia-se também, no ano de 1975, a ofensiva sobre o PCB, no
momento em que:

Descobrira-se uma base do Partidão dentro da Polícia Militar paulista. Ela estivera
invicta desde sua montagem, em 1946. Funcionava sob as rígidas normas de segurança
do Setor Mil, ligando-se diretamente a um representante pessoal do secretário-geral do

27
SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Anistia no Brasil: um processo político em disputa. In: PEYNE, Leigh A.; ABRÃO,
Paulo; TORELLY, Marcelo D. (orgs.) A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva
internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin
American Centre, 2011, p. 196-197.
28
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda basileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2 ed. São
Paulo: Ática, 1987, p. 232-233.
29
Tabela elaborada a partir de dados encontrados em dois documentos distintos. O primeiro é de autoria de
PEREIRA, Freddie Perdigão, 1978, op. cit. Documento Confidencial. Encartado no Anexo 4 da peça inicial da
Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao
“Caso DOI/CODI/SP”. O segundo documento refere-se ao “Relatório de Estatística” de junho de 1975 pertence
ao dossiê 50-Z-9-39702, f. 44, do Arquivo do Estado de São Paulo. Documento Confidencial. Reproduzido no
artigo de POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Estatísticas do DOI-CODI. In: Revista ADUSP, Maio de 2005, p.
74-77. Disponível em: <http://www.adusp.org.br/files/revistas/34/r34a10.pdf>. Acesso em 11 de jul. de 2012.

155
30
PC. Na sua liquidação, prenderam-se 63 policiais.

A morte do tenente reformado da Polícia Militar de São Paulo, José Ferreira de Almeida, ocorrida em 08
de agosto de 1975, fez parte de um conjunto de mortes, de militantes do PCB, bastante semelhantes.
Para detalhar a situação envolvendo os abusos de Direitos Humanos, praticados no DOI/CODI de São
Paulo, contra José Ferreira de Almeida, segue-se o relatório oficial da Presidência da República, Direito
à Memória e à Verdade:

O corpo do tenente foi velado no Hospital Cruz Azul da Polícia Militar, sob ostensiva
vigilância de agentes de segurança do II Exército.(...) Pelo menos três presos políticos
pertencentes à Polícia Militar, o major Carlos Gomes Machado, o capitão Manoel Lopes
e o tenente Atílio Geromin, denunciaram na Justiça Militar as torturas sofridas pelo
31
tenente.

A atuação do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, durante o período de 1964-1985, na defesa


dos militantes políticos perseguidos, é bastante importante, pois permite desconstruir a versão do
suicídio, elaborada pelo modus operandi do DOI/CODI/II Exército, no ocultamento das reais
circunstâncias do homicídio do tenente reformado da Polícia Militar, pois:

acompanhado da família de Almeida, da qual era advogado, constatou, quando da


abertura do caixão entregue pelo DOI-CODI, a existência de sulcos no pescoço de
Almeida, produzidos com o objetivo de legitimar a versão oficial. O corpo apresentava
também, no entanto, evidências de tortura, fato que seria corroborado por documento
32
posteriormente obtido junto ao DEOPS/SP.

Três meses após a morte do tenente da PM, morria nas dependências do DOI/CODI II Exército e
sob condições semelhantes, o jornalista Vladimir Herzog. Depois da morte de Herzog, o operário
metalúrgico Manoel Fiel Filho também foi morto, nas mesmas condições e no mesmo local. Essas
situações demonstram que no DOI/CODI/II Exército havia um modus operandi, voltado para o
ocultamento da prática de torturas e assassinatos, o qual entrava em funcionamento quando não se
conseguia fazer desaparecer os corpos de prisioneiros políticos. Essa situação evidencia-se na
montagem da versão de suicídio, realizado por enforcamento a poucos centímetros do chão, como no
33
caso de José Ferreira de Almeida, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.
Contudo, a relação de vítimas da atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, resultado da
ofensiva sobre o PCB, pode ser percebida de forma detalhada no relatório oficial da Presidência da
República, Direito à Memória e à Verdade. (Tabela 2) Deste modo, o Estado brasileiro registra a
existência de dez casos de mortes ou desaparecimentos forçados, na área de atuação do aparato
repressivo do DOI/CODI de São Paulo, no período de 1975-1976. Além do que, registra também o
episódio conhecido como a Chacina da Lapa, o qual findou com a morte de três componentes do Comitê
Central do PCdoB.

Data Condição Nome Organização


Política
1 14/01/75 Desaparecido Élson Costa (1913 – 1975) PCB
2 15/01/75 Desaparecido Hiran de Lima Pereira (1913 – 1975) PCB
3 08/08/75 Morto/Suicídio José Ferreira de Almeida (1911 – 1975) PCB

4 29/09/75 Desaparecido José Montenegro de Lima (1943 – 1975) PCB


5 25/10/75 Morto/Suicídio Vladimir Herzog (1937 – 1975) PCB

30
GASPARI, Elio. A Ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 159-160.
31
BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 401.
32
MONTENEGRO, Darlan; MOTTA, Luiz Eduardo Perreira. Luiz Eduardo Greenhalgh: um militante dos direitos
humanos. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio (orgs.). Os advogados e a Ditadura
de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010, p. 211.
33
MORAES, Mário Sérgio de. Memória e cidadania: as mortes de Vladimir Herzog, Manuel F. Filho e José F. De
Almeida. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (orgs.) Desarquivando a
Ditadura: memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo e Rothschild Editores, 2009, p. 58.

156
6 07/01/76 Morta Neide Alves dos Santos (1944 – 1976) PCB

7 17/01/76 Morto/Suicídio Manoel Fiel Filho (1927 – 1976) PCB

8 16/12/76 Morto Ângelo Arroyo (1928 – 1976) PCdoB


9 16/12/76 Morto João Batista Franco Drumond (1942 – PCdoB
1976)
10 16/12/76 Morto Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar PCdoB
(1913 – 1976)
34
Tabela 2: Mortos e Desaparecidos na área de atuação do DOI/CODI/II Exército

Conclusão
Dos desdobramentos deste trabalho, cabe destacar a defesa da proposta interpretativa
representada pela atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, durante o período da chamada abertura
lenta, gradual e segura, e sua relação com a permanência do quadro de vulnerabilidade dos direitos
humanos, destacando-se nesse caso a ofensiva sobre o PCB.
Nos resultados alcançados pelo estudo sobre o DOI/CODI/II Exército, entre o período de 1975 e
1977, através de estatísticas elaboradas por membros das Forças Armadas, é possível avaliar a situação
de vulnerabilidade dos Direitos Humanos. O aumento do número de presos diretamente, pelo próprio
organismo repressor, evidencia a manutenção da produção de vítimas da polícia política da Ditadura
Civil-Militar, delimitando a atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, mesmo sob o período
considerado de abertura lenta, gradual e segura.
Ademais, as estatísticas dos resultados do DOI/CODI/II Exército, no período de 1975-1977,
quando comparadas aos casos de violações de Direitos Humanos, registradas no livro-relatório, Direito à
Memória e à Verdade, revelam que há assimetria entre os dados encontrados. O relatório oficial do
Estado brasileiro, de 2007, registra dez casos de mortes ou desaparecimentos forçados, na área de
atuação do DOI/CODI/II Exército, enquanto que as estatísticas do organismo repressivo apontam apenas
quatro mortes.
Contudo, a medida necessária para combater o esquecimento das violações de Direitos
Humanos, praticadas por agentes públicos, nas dependências do DOI/CODI/II Exército, durante a
Ditadura Civil-Militar, trata-se da ampla divulgação de documentos do período repressivo. Com isso, a
democratização do acesso às informações acerca da atuação repressiva e da evolução das violações de
Direitos Humanos, praticadas naquele organismo repressor, poderá colaborar com o desenvolvimento
social da empatia, conseqüentemente, fortalecerá as alternativas de se evitar abusos de Direitos
Humanos, praticados por agentes de segurança do Estado.

Fontes Pesquisadas
BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.
PEREIRA, Freddie Perdigão. O Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel no
combate à subversão – Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e Estado Maior
do Exército, Rio de Janeiro, 1978. Documento Confidencial. Encartado no Anexo 4 da peça inicial da
Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo,
relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”.
Destacamento de Operações de Informações (DOI). II Exército. Relatório de Estatística. Junho de 1975.
Dossiê 50-Z-9-39702, f. 44. Arquivo do Estado de São Paulo. Documento Confidencial.
Veja, Edição 602, 19 de março de 1980.
Veja, Edição 1262, 18 de novembro de 1992.
O Livro Negro do Terrorismo no Brasil (ORVIL). Cópia digitalizada. Disponível em:
34
Tabela elaborada a partir de dados extraídos de BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, op. cit., p. 396-427. Deve-se observar que o livro-
relatório Direito à Memória e à Verdade, contempla apenas uma morte ocorrida no ano de 1977, pelos
organismos repressivos da Ditadura Civil Militar. Trata-se da morte de Lourenço Camelo de Mesquita (1926 –
1977), militante do PCB, ocorrida na Cidade do Rio de Janeiro.

157
<http:<//www.averdadesufocada.com/images/orvil/orvil_completo.pdf>. Acesso em 07 jan. 2013.

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USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29 Set.70-24 jan.74. Brasília:
Editerra, 1987.

159
Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximação

1
Lívio Silva de Oliveira

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma análise comparativa entre (I) os procedimentos
empregados na abordagem e produção de criminosos e a reação contra os mesmos pelos aparelhos de
segurança do Estado no período da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), e (II) as novas
perspectivas de políticas públicas de segurança na democracia, que se apresentam como uma proposta
preventiva e mediadora por parte das polícias, com a ideia de segurança cidadã e proximidade. As
dimensões da violência (física, psicológica e simbólica) serão o cerne da análise comparativa entre os
pressupostos que baseiam procedimentos de segurança em cada um dos períodos apresentados (I)(II).
A metodologia escolhida para essa análise tem como bases teóricas abordagens históricas e
sociológicas sobre o papel do Estado, no que se refere a distribuição de direitos, e a ação policial e suas
especificidades.
Palavras-chave: Violência – procedimentos policiais – militarização – Segurança Pública.

Abstract: The objective of this work is to make a comparative analysis of (I) the procedures used in
approach and production of criminals and the reaction against them by the state security apparatus
during the Civil-Military Dictatorship in Brazil (1964-1985), and (II) the new perspectives of political public
safety in democracy, which are presented as a proposal by the mediator and preventative police, with the
idea of citizen security and proximity. The dimensions of violence (physical, psychological and symbolic)
are the core of the comparative analysis of the assumptions that underlie the security procedures in each
of the periods presented (I)(II). The methodology chosen for this analysis is theoretical historical and
sociological approaches on the role of the state as regards the distribution of rights, and the police action
and its specificities.
Keywords: Violence – police’s procedures – Militarization – Public Safety.

1. Introdução
O texto a seguir é um esforço reflexivo da pesquisa de conclusão de curso de graduação, e do
tema de dissertação do curso de Mestrado deste autor.
A monografia de Graduação e os textos apresentados em eventos acadêmicos, no ano de 2008,
apresentaram o tema “Ditadura e Estado de Direito no Brasil”, a partir de uma análise sobre o Ato
Institucional número 5 (AI-5) e sua influência nos processos políticos, com destaque para os
procedimentos utilizados pelos agentes responsáveis pela segurança pública no período ditatorial (1964-
1985), marcados pelo uso da violência em dimensões diversas (física, psicológica, e simbólica) e
violação de direitos que passavam pela integridade física, o da ampla defesa, e até mesmo a livre
2
manifestação e associação política . A metodologia utilizada na referida pesquisa foi a consulta de
materiais históricos (documentos, reportagens jornalísticas e produções acadêmicas) referentes aos
recortes temporal e espacial citados, para uma análise sociológica dos acontecimentos.
O tema da dissertação de Mestrado é a proposta de segurança pública mais democrática e
cidadã, que vem ganhando força nos últimos anos. A ideia de uma polícia de proximidade, mais
preventiva e mediadora em relação às ocorrências criminais, em detrimento as reações violentas da
polícia contra os seus suspeitos (muitas vezes com um alto índice de letalidade nessas ações). Há de se
observar que o foco dessa política são as áreas marginalizadas e de baixa renda, remetidas a um
histórico de violência e criminalidade. Além disso, essa nova perspectiva de segurança pública se
apresenta como alternativa de inclusão de direitos, já que não se encerra apenas nas ações policiais,
englobando os entes federativos (União, Estado e Município) em políticas públicas que se aproxime mais

1
Formação acadêmica: Mestrando em Sociologia PPGS-UFRGS. Estudante-membro do Grupo de Pesquisa
Violência e Cidadania (GPVC-UFRGS). Especializado em Sociologia Política e Cultura pela PUC-RIO. Bacharel
em Ciências Sociais pelo Instituto de Humanidades – Universidade Candido Mendes.Vínculo institucional:
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH-UFRGS).
Endereço eletrônico: liviosilvadeoliveira@yahoo.com.br Telefone: (51) 33086890 – ramal 51/ (51) 98591490.
2
Título da monografia de conclusão de curso: “O AI-5 e o Estado de Direito: Paradoxo de uma relação”. Título do
artigo publicado: “Os Militares e a redemocratização no Brasil”.

160
3
dos cidadãos, e, com isso, o debate mais amplo sobre o tema . A metodologia para a pesquisa é o
trabalho de campo, que consiste em entrevista com os atores envolvidos neste processo de política
pública de segurança (gestores, policiais e a população), para reflexão por meio de referenciais teóricos
4
sociológicos, filosóficos e históricos .
A análise comparativa desses dois períodos se faz necessária para compreensão e identificação
de fatores históricos e sociais contribuíram para a formação atual dos agentes de segurança pública no
Brasil, e quais os pressupostos que norteiam a sua conduta, desde o ethos e o habitus policiais. A
problematização de representações cristalizadas sobre as origens dos procedimentos policiais referentes
ao período da ditadura civil-militar no Brasil e seu legado no período democrático, desconstruindo
algumas afirmações e analisando a sua continuidade.
Na próxima seção serão apresentados e discutidos os contextos históricos referentes ao período
da (I) ditadura brasileira (1964-1985) e o (II) período democrático, no que se refere aos procedimentos
policiais e de segurança pública no país.

2. Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximação.

2.1. Contexto histórico da ditadura civil-militar (1964-1985): O intervencionismo militar como


traço político.
O período que antecede o golpe civil-militar de 31 de março de 1964 no Brasil é marcado por
intensas e rápidas transformações institucionais no Estado brasileiro, que sofrera influências internas e
externas.
Destarte, apresenta-se um contexto global de bipolaridade entre dois blocos ideologicamente
antagônicos e que disputam a hegemonia política e econômica após a segunda grande guerra. De um
lado, os Estados Unidos da América (EUA), com sua democracia liberal que tem suas bases econômicas
calcadas no capitalismo. Por outro lado, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou simplesmente
União Soviética; (URSS), com sua formação política de partido único e economia socialista. Estes dois
blocos influenciaram movimentos de independência de países na Ásia e na África, o que fez ruir impérios
coloniais europeus, como o caso francês e o caso inglês, dando um novo desenho ao globo. Este
período de bipolaridade é conhecido como “guerra fria”. Os dois blocos jamais entram em conflito
armado direto um contra o outro em seus territórios, mas disputavam de forma violenta a hegemonia em
países subdesenvolvidos, financiando e apoiando guerrilhas armadas e/ou governos autoritários na
África, na Ásia e na América Latina (HOBSBAWN, 1996). Com efeito, tanto URSS, quanto EUA tinham
características expansionistas de dominação hegemônica.
No caso latino-americano, podemos destacar o caso cubano como emblemático para o
continente. Em 1959, com a subida ao poder em Havana dos guerrilheiros de Sierra Maestra, sob a
liderança de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara, começou a se formar o primeiro Estado de
orientação socialista nas Américas. Devido sua posição estratégica em relação aos EUA, Cuba ganhou
apoio político e econômico da URSS, mas ficou sob ameaça constante de Washington. É válido observar
que essas efervescências sociais são um traço marcante na América Latina no século XX, mas a
revolução cubana foi um divisor de águas para os jovens do continente por se apresentar como
possibilidade efetiva de mudança de um sistema político-institucional através da luta armada. Eric
Hobsbawn se utiliza das afirmações do filósofo alemão da Escola de Frankfurt Herbert Marcuse a
respeito do fascínio pela violência por parte da juventude estudantil, que seria o catalisador da
transformação para a revolução socialista em detrimento ao operariado numa sociedade industrial, tendo
em vista que Castro e Guevara eram homens jovens e de formação universitária (32 anos e advogado, e
30 anos e médico, respectivamente) (HOBSBAWN, 1996).
Os setores mais conservadores das forças políticas latino-americanas, incluindo o Brasil, se
mostraram contrárias as possíveis mudanças. O apoio dos Estados Unidos foi fundamental para a
manutenção da ordem social vigente, e deter o avanço da esquerda. Na perspectiva de Washington, os
militares da América Latina seriam o bastião contra os comunistas, lhes seria oferecida ajuda logística e
tática, chegando a ser proposto, no governo Einsenhower, que as forças armadas tomassem formato de
guerrilhas, mais ágeis, para combater o inimigo externo e fazer a segurança pública (FICO, 2008). O
investimento na formação de uma elite militar latino-americana, que procedesse de forma condizente
com os projetos expansionistas dos EUA, deu origem da Escola das Américas, na área do canal do
Panamá, em 1946. Além disso, a política traçada pelo secretário assistente de Estado para Negócios
Interamericanos, Thomas Mann, batizada de "doutrina Mann", foi explicada num artigo do New York
Times do início de março de 1964: "Os Estados Unidos não mais procurariam punir as juntas militares
por derrubarem regimes democráticos", corroborando ao Golpe de 1964 (OLIVEIRA, 2008).

3
Programas como o PRONASCI e o RS Na Paz são exemplos desta nova mudança.
4
A pesquisa de dissertação de Mestrado se encontra em andamento.

161
Os antecedentes internos do Golpe de 1964 são a renúncia de Jânio Quadros a presidência da
5
República, e o impedimento por parte dos Ministros militares da posse de seu vice, João Goulart, em
1961 (ALMEIDA, 1997; DREIFUSS, 1981). Jango, como era conhecido o vice-presidente João Goulart,
estava na China, em missão oficial ao país comunista. Essa aproximação do Brasil a países não
alinhados, a condecoração de Che Guevara com a ordem do Cruzeiro do Sul em agosto de 1961, foram
significativos para que as forças políticas conservadoras, inclusive setores militares, identificassem em
Jango – que tinha origem política no sindicalismo – uma liderança comunista. A posse de Jango foi
possível pela resistência liderada pelo então Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel
Brizola, no levante chamado de “Campanha da legalidade”, em 1961. Brizola se aquartelou no Palácio
Piratini, sede do governo estadual, com seus partidários e suas polícias, forçando o III Exército a
6
negociar e, posteriormente, aderir à campanha (ALMEIDA, 1997) .
João Goulart tomou posse com poderes esvaziados no ano de 1961. Em 1963, houve um
plebiscito que restaurou os seus poderes de presidente da República. Com isso, Jango pode dar início
aos seus projetos de reformas de base, que causou reações negativas por parte de setores
conservadores. Em 1964, houve a revolta do sindicato dos cabos e marinheiros da Marinha de guerra –
liderados pelo Cabo Anselmo – por direitos como o de casar e os direitos políticos, foi condenada pelos
comandos militares, porém o presidente, comandante em chefe das forças armadas, foi a favor dos
revoltosos. Essa postura foi encarada pelos comandos militares como uma quebra de hierarquia, uma
contradição. A falta de compromisso constitucional dos militares se apresentou latente, aparentemente
apenas reconheciam a autoridade das fardas e das patentes, ignorando a legalidade constitucional da
autoridade civil. Este acontecimento serviu de pretexto para que setores militares aderissem aos
movimentos políticos civis que resultaram no golpe de Estado em março de 1964.
Com efeito, pode-se identificar que o intervencionismo dos militares foi uma marca deste período
de efervescência, tanto social, quanto política. Esta característica teve reflexos na Segurança Pública,
acarretando profundas mudanças no período ditatorial.

2.2. Polícia repressiva: militarização da segurança pública.


O regime de exceção imposto em 1964 acarretou em profundas mudanças sociais e políticas. A
manutenção de um status quo de setores elitistas foi se tornando cada vez mais evidente, e,
gradativamente, mais violenta por parte de quem ocupava os cargos de poder no Estado, com a
continuidade da ditadura. As oposições a esse regime eram reprimidas com severidade, muitas vezes de
forma violenta. As polícias militares, que até então tinham papel secundário na segurança pública,
começaram a atuar nas ruas, desde o controle do tráfego até manifestações públicas indesejadas,
7
incorporando as atribuições das guardas civis, extintas no ano de 1969 ; e subordinadas ao Exército
através da Inspetoria Geral das Polícias Militares. A responsabilidade do policiamento preventivo e
ostensivo se torna exclusivo da polícia, e o combate aos conflitos sociais atendem aos interesses
políticos (NÓBREGA JÚNIOR, 2010).
Com o endurecimento do regime contra seus opositores teve o seu ápice no dia 13 de dezembro
de 1968, o então Presidente, General Arthur da Costa e Silva, decretou o ato institucional número 5 (AI-
5). O AI-5 cassou os direitos políticos e civis, fechou o congresso nacional, institucionalizou a censura,
aumentando a repressão contra os opositores do regime. As manifestações públicas de cunho político
foram consideradas ilegais, passiveis de serem enquadrados no crime de lei de segurança nacional
(DREIFUSS, 1981; FICO, 2004). Nesse sentido, as dimensões da violência (física, psicológica, e
simbólica) empregadas pelos setores de Segurança Pública na sua abordagem e em seu procedimento,
como a prática da tortura, prisões ilegais que se configuravam em sequestros de Estado – sem trâmites
legais e sem a habeas corpus – e execuções sumárias de opositores, em especial aqueles que aderiram
a luta armada (OLIVEIRA, 2008). Com efeito, essas práticas foram extensivas às camadas de mais
pobres da população brasileira, historicamente reprimidas pelas forças policiais, estigmatizadas pela
marginalidade e criminalizadas, diferenciando os métodos, que antes eram as chicotadas (LAGE,
MIRANDA, 2007). A afirmação do Sociólogo José Tavares dos Santos sobre a transição do trabalho
escravista para o modo capitalista de trabalho, e o papel da coerção física violenta na relação entre os
aparatos repressivos e a população urbana e rural brasileira, remetem a outros períodos além da
Ditadura civil-militar de 1964-1985:

As práticas de tortura exercidas por agentes de diferentes polícias – no caso dos presos
políticos, durante o Estado Novo ou o regime militar, ou dos presos comuns, durante o

5
Ministros das três Forças Armadas: Marinha, Exército e Aeronáutica.
6
As ordens dadas ao General Machado Lopes, então comandante do III Exército, era de prender o Governador.
Caso Brizola não se rendesse, o Piratini seria bombardeado. Nenhuma das ocasiões citadas ocorreu (Almeida,
1997).
7
Decreto-Lei federal nº 1.072 de 30 de Dezembro de 1969 (NÓBREGA JÚNIOR, 2010, P.114).

162
regime civil da Nova República – indicam uma das facetas deste excesso de poder
exercido por agentes da organização policial. Igualmente, as práticas de grupos para-
policiais, dos esquadrões da morte aos justiceiros, desencadeando operações de
extermínio contra certos grupos sociais das populações pobres brasileiras, inclusive
8
jovens, apontam a violência difusa nas grandes cidades de nosso país .

Pode-se concluir que o excesso do uso da violência física, violência essa que o Estado possui
monopólio legítimo, por parte dos agentes de segurança não foi o resultado da ditadura civil-militar. Os
métodos excessivamente violentos de abordagem e procedimentos policiais são anteriores ao período
citado, já que o uso violência física é o último recurso que deva ser empregado. Entretanto, a
observação que se faz é a sobre a militarização da Segurança Pública no período da ditadura, que foram
determinantes para a formação do modelo atual de polícias, que ainda privilegia o sistema repressivo
como conduta (GUERRA CÂMARA, 2012). A hierarquia e a disciplina militares são latentes nas polícias
militares. Além disso, as polícias civil e militar não são atores cooperativos, por terem atribuições
distintas e não conseguem fechar um ciclo policial completo – que se caracteriza pela prevenção,
patrulhamento das ruas, investigação e indiciamento do indivíduo a justiça – o que torna o sistema de
segurança pública inoperante para a sociedade (NÓBREGA JÚNIOR, 2010). Segundo Nóbrega Jr.:

A estrutura de Segurança Pública brasileira, que deveria ser de natureza civil e com fins
de defender os interesses dos cidadãos brasileiros em quaisquer circunstâncias, se
preocupa mais com a defesa dos interesses do Estado que da cidadania, onde o
processo de militarização dessas instituições é a prova desse hiperdimensionamento do
9
Estado em relação aos cidadãos.

Porém, identifica-se uma característica corporativista nos setores de Segurança Pública. Com
10
término do período que vigorou o AI-5, em dezembro de 1978, e a posterior lei da anistia , no ano
seguinte, os crimes cometidos pelos agentes de segurança do Estado, como tortura e ocultação de
cadáver, este último com origem em homicídios causados pelos próprios agentes; foram anistiados. A lei
abrange os crimes praticados por razão política – seja por parte dos sindicalistas e/ou de grupos
guerrilheiros que se opunham ao regime, ou por parte dos agentes do Estado -, e não os crimes comuns,
que eram utilizados os mesmos procedimentos de abordagem em todos os casos, de maneira geral, ou
seja, a violência física, e até mesmo letal, se torna uma constante nos procedimentos policiais. Além
disso, os crimes dos agentes não foram individualizados, diferentemente às penalidades aplicadas aos
opositores da ditadura, sendo ações institucionais. Crimes de Lesa humanidade como a tortura, que são
imprescritíveis, foram anistiados.
É válido salientar que o corporativismo no Estado brasileiro não é exclusividade dos setores de
segurança pública. Como qualquer instituição, as polícias também têm seus próprios interesses de
classe, seja qual for sua natureza (OLIVEIRA, 2010). A própria função policial tem especificidades que
singularizam a profissão policial no Brasil, como tomada de decisões rápidas sobre vida e morte no seu
cotidiano (OLIVEIRA, 2010; TAVARES-DOS-SANTOS, 2009).

2.3 Redemocratização e Segurança Pública: violência física na formação do habitus e do ethos


policial no Brasil pós-ditadura (1964-1985).
O período de redemocratização do Brasil teve como marco a promulgação da Constituição
Federal de 1988. Os regimes ditatoriais na América Latina, incluindo o Brasil, já não existiam no início
dos anos de 1990, dando margem a governos civis de ordem neoliberal. O desgaste gerado por regimes
que levaram países a recessões econômicas, e crises sociais, como pobreza e aumento da
criminalidade, fez com que as ditaduras perdessem apoio internacional (D’ARAÚJO, 2002; HERMET,
2002). Os novos governos democráticos da América Latina encontraram muitas dificuldades para
legitimar sua autoridade, tendo em vista suas ações ineficazes, por herdarem uma estrutura estatal
personalista. Segundo Paul Ricouer, a autoridade é definida pelo direito de mandar, que caracteriza uma
relação de poder assimétrica em que implica uma parte obedecer à outra, em que ele afirma: “Estranho
poder que se assenta num direito, o direito de mandar, que implica numa reivindicação de
11
legitimidade.” . Com isso, essas dificuldades geraram frustrações por parte das populações dos países
latino-americanos, que as democracias recentes não conseguiram alcançar as expectativas geradas, nos
campos econômicos, social, jurídico e político (HERMET, 2002). Cabe a observação que autoridade não
pode ser sinônimo de autoritarismo. Segundo Hannah Arendt o binômio mandar/obedecer sobre a

8
In: TAVARES-DOS-SANTOS, 2009, p. 78.
9
In: NÓBREGA JÚNIOR, 2010, p. 113.
10
Lei nº 6. 683 de 28 de agosto de 1979. Fonte: Sítio do Presidência da República – Casa Civil – Subchefia para
Assuntos Jurídicos: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm
11
In: RICOUER, 2008. p. 101.

163
autoridade, não é uma questão de persuasão, que colocaria a autoridade em suspenso, e nem de
violência, porque a mesma teria falhado para ser empregada a força, pois Arendt afirma que a autoridade
sempre é hierárquica (ARENDT, 1972).
Os problemas da pobreza e aumento da criminalidade recaem na Segurança Pública. Como já
foi dito, há um histórico de repressão dos aparelhos de segurança sobre populações marginalizadas e
criminalizadas. Segundo Howard Becker o crime é um conceito falho nesse sentido, porque há uma
correlação entre crime e pobreza, tendo em vista que os crimes de colarinho branco, por exemplo, por
uma questão de prestígio social por parte de quem comete esse crime, com efeito, nesta perspectiva
apresentada por Becker, o criminoso age em bando, geralmente, e de maneira violenta – armado ou não
-, diferente dos crimes especializados como o de colarinho branco, que podem ser cometidos em um
escritório (BECKER, 2007). Estes indivíduos são uma espécie de catálogo de suspeitos, tipos sociais
que se enquadrariam valores depreciativos, que seriam “culpados até que se prove o contrário”, sujeitos
a violência física ilegítima – que pode ser socialmente legitimada como método de investigação - e até
mesmo subtração de sua vida, por parte dos responsáveis em reprimi-los que pode ocasionar confissões
de delitos por parte deste indivíduo, para que não haja prejuízo da sua integridade física, por possuir
características que o incriminem a priori, pela sua condição social, jurídica e econômica de
vulnerabilidade (KANT DE LIMA, 1995, MISSE, 2010; OLIVEIRA, 2010; TAVARES-DOS-SANTOS, 2009).
Com isso, a criminalidade é representada e percebida pela maneira violenta que o delito se apresenta, e
não pelo seu tipo penal previsto em lei, se configurando um quadro de seletividade jurídica. É válido
observar que na função policial há a pressão por resultados que sejam apresentados a autoridades e
uma resposta para a sociedade do papel específico dos agentes de segurança pública, o que pode
favorecer procedimentos ilegítimos de violência (OLIVEIRA, 2010).
A seletividade jurídica de tipos sociais suspeitos e a modalidade do crime violento influenciam na
construção da identidade policial, na medida em que se constrói a identidade antagônica do criminoso.
Neste sentido, podemos entender que a violência é algo que afeta as ações de quem passa por um
cotidiano violento, no qual as populações que vivem em territórios marginalizados se encontram em
maior vulnerabilidade – o que não exclui os agentes de segurança deste cotidiano violento -, e como
essa representação social se apresenta por um viés mais cognitivo do que racional (GAVÍRIA, 2008), não
sendo um mero apanhado de comportamentos individualizados, mas a articulação de ações que
acarretam numa ordem social (MACHADO DA SILVA, 2004).
Neste processo de enfrentamento entre as forças policiais e os crimes violentos apresenta uma
regularidade: a categoria juventude. O jovem tem uma relação ambivalente com a violência: ora ele é o
agressor, ora é a vítima; em um contexto onde sua vida é um processo para conviver, ou superar a
violência, além de implicar na transição para vida adulta, período ao qual a agressividade tem a
positividade de habilitá-los a se autonomizar e a construir um lugar no espaço social (TAVARES-DOS-
SANTOS, 2009). Não são apenas os jovens de classes mais pobres que são vítimas da violência, que
reforça a falha do binômio “pobreza e violência”, mas o abandono e a falta de perspectivas podem
favorecer uma lógica de recrutamento para o crime dos jovens mais pobres, fato que pode acarretar em
manifestações como vítimas de processo de exclusão social e vontade de serem reconhecidos como
cidadãos (GAVÍRIA, 2008). Com efeito, a categoria juventude não é universal, tendo em vista as diversas
representações e significados que variam quando analisadas pelas dimensões econômica, social,
jurídica, política e outras mais. Dentro deste quadro se identificam maior incidência dos casos de
violência física, ou até mesmo letal, a outras regularidades: étnicas (negros e pardos), de gênero (sexo
masculino) e etárias (entre 15-24 anos).
A política de segurança pública de enfrentamento armado contra o crime, por parte do Estado, se
apresentou infrutífera. O número crescente de vítimas – tanto do lado policial, quanto do lado
marginalizado – não só no aspecto físico e/ou letal, mas também psicológico da violência não diminuiu o
número de ocorrências criminais. Sem embargos, outras propostas de políticas públicas de segurança
foram sendo pensadas. A filosofia de prevenção e mediação de conflito para o policiamento comunitário,
em especial as populações de territórios marginalizados, com maior proximidade e participação do
cidadão, o que pode ampliar as políticas de segurança pública para além da ação policial.

 Polícia de aproximação: prevenção e mediação de conflitos, e participação cidadã na


Segurança Pública.
Nos anos de 1990 começam a surgir propostas alternativas para o aumento da criminalidade e
12
da sensação de insegurança. Projetos como os Centros Integrados de Cidadania (CIC) , com a
proposta de justiça social e aproximação do Estado na formação organizacional da comunidade, se
aproximando da promoção de direitos humanos, e criticando o autoritarismo estatal (HADDAD,
SINHORETTO, 2004):

12
Os CIC’s da referência correspondem ao Estado de São Paulo, que funcionaram entre 1996-2001.

164
O funcionamento do CIC exigiu das instituições e dos profissionais duas inversões de
prioridade: adequação de todos os serviços públicos à realidade dos conflitos (e não o
contrário) e o deslocamento das autoridades no espaço da cidade. (...) Diante da
“ausência” do Estado nas periferias, o equipamento deve, segundo o projeto, simbolizar
a ocupaçãodo “vazio”, mediante oferta de serviços de segurança e justiça em áreas
carentes desses equipamentos. A implementação disso exige uma reforma do Estado
fundada na descentralização dos serviços. Assim idealizados, esses centros,
teoricamente, deverão romper com o tradicionalmente oferecido: autoritarismo,
13
centralização,corporativismo e fragmentação.

Entretanto, com a incorporação dos CICs ao Governo Federal, 2000, a filosofia que
fundamentava o projeto foi desvirtuada, servindo como estratégia de controle social e forma de
repressão. A gestão destas ações ficou a cargo do Gabinete Institucional de Segurança, ligado a
Presidência da República, cujos cargos são privativos de Oficiais das Forças Armadas (HADDAD,
SINHORETTO, 2004). Apesar da intervenção militar, formas alternativas para Segurança Pública,
começam a tomar forma e ganhar força nos meios políticos e sociais. Outras experiências semelhantes
aos CICs se deram em outras partes do Brasil.
A proposta de uma segurança pública cidadã, que não se encerre apenas na ação policial, se
apresentou mais sistematizada com o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(PRONASCI), em 2007, pelo Governo Federal. O PRONASCI vem com a proposta de Estado em redes,
articulando os três entes federativos (União, Estado e Município) nas políticas públicas de Segurança,
para diretrizes políticas, sociais e jurídicas; formação e capacitação de policiais e guardas municipais; e
projetos de integração de comunidades marginalizadas e estigmatizadas com um histórico de violência e
criminalidade. O PRONASCI também apresenta um foco específico no perfil de jovens descrito
anteriormente neste texto:

Além dos profissionais de segurança pública, o Pronasci tem também como público-alvo
jovens de 15 a 24 anos à beira da criminalidade, que se encontram ou já estiveram em
conflito com a lei; presos ou egressos do sistema prisional; e ainda os reservistas,
passíveis de serem atraídos pelo crime organizado em função do aprendizado em
14
manejo de armas adquirido durante o serviço militar.

O PRONASCI possui projetos para a prevenção de delitos e mediação de conflitos. No caso, o


texto vai abordar o projeto “Territórios de Paz” que se apresentam como uma nova perspectiva de
combate ao crime em áreas periféricas com histórico de violência:

São áreas da cidade caracterizadas por elevados índices de violência letal, que
envolvem principalmente os jovens de 15 a 29 anos. O objetivo da identificação dessas
áreas na cidade é que estas, por meio de diversas intervenções sociais e implantação
de policiamento comunitário previstos pelo Pronasci, sejam pacificadas transformando-
15
se em Territórios da Paz. .

Com efeito, mudanças estruturais são identificadas nesta proposta de segurança pública,
denotando um maior comprometimento de setores civis nestas políticas, que pode transformar a
percepção dos atores sobre o combate ao crime. A experiência deste projeto no município de Canoas/RS
é considerada modelo pelo trabalho realizado em Guajuviras, de atuação do município no tocante a
segurança pública, com investimento em capacitação de sua Guarda Municipal e em tecnologia dos seus
aparelhos, com trabalho integrado à comunidade da Brigada Militar e da Polícia Civil do Rio Grande do
Sul, e projetos sociais de inclusão da comunidade citada, que em dois anos de implantação (2009-2011)
viu seus índices de criminalidade reduzidos (redução de 73,6% na taxa de homicídios, no primeiro
16
semestre de 2009), dando visibilidade ao projeto Território da Paz de Guajuviras :

“No Território de Paz de Guajuviras, em Canoas, o último homicídio havia sido


registrado no dia 05 de Maio de 2012. Passaram-se quatro meses e dezenove dias sem
homicídios, em um dos bairros considerados mais violentos, antes da implantação do
território da paz. Somente no dia 24 de setembro do corrente ano, registrou-se outra

13
HADDAD, SINHORETTO, 2004. P. 73.
14
Fonte: http://portal.mj.gov.br
15
Fonte: Sítio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Pública de Porto Alegre – RS.
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smdhsu/default.php?p_secao=136
16
BOFF, Claudia; MERKER, Marcos. “Canoas comemora dois anos de Territórios de Paz”: In: Diário de Canoas.
Canoas: Ed. Online, 08/10/2011. http://www.diariodecanoas.com.br/regiao/346951/canoas-comemora-dois-anos-
de-territorio-de-paz-no-guajuviras.html

165
17
ocorrência no referido bairro .

Entretanto, na própria região metropolitana de Porto Alegre, os mesmos projetos não alcançaram
o mesmo destaque que a experiência de Canoas. Além disso, pode ser apresentada a experiência das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), na cidade do Rio de Janeiro, como ocupação de territórios. As
UPPs ganharam notoriedade midiática pelas suas ocupações espetaculares de favelas marcadas por um
histórico violento, com apoio logístico das Forças Armadas – sendo empregado até carros blindados de
Guerra nessas intervenções, e tropas de prontidão. A militarização dos territórios com as UPPs é um
ponto problemático sobre a proposta dessa política – se ela é inclusiva ou uma forma de controle social?
– tendo em vista que, efetivamente, o Estado se faz presente com o emprego do seu aparato de
segurança (FLEURY, 2012).
A formação do policial é um ponto fundamental para a mudança de abordagem e procedimentos
específicos da profissão. A formação policial, mais voltada para mediação de conflitos e prevenção do
crime, mais voltada para a garantia de Direitos Humanos e Justiça Social, com maior aproximação da
população, se apresenta como necessária neste processo de transformação da Segurança Pública.
Porém, pode haver controvérsias dentro da própria instituição policial, hierárquico e geracional, que
podem influenciar no nível de comprometimento desses atores nos projetos do PRONASCI. Além disso,
o histórico de repressão violenta, intensificados pela militarização da Segurança Pública; pode gerar
desconfianças mútuas entre policiais e moradores de localidades marginalizadas e criminalizadas, o que
pode se caracterizar numa dificuldade para efetivação dessas políticas públicas de segurança, que se
propõe ser menos policial e mais cidadã.
É válido observar que o agente de segurança não é um ser que gravita a margem da sociedade,
ele é um ser social que tem origens em uma classe social e econômica e carrega valores pessoais para
sua atividade profissional, que fazem parte da sua identidade, sendo uma construção mental passível de
transformação.

Algumas Conclusões:
A análise comparativa dos períodos citados no texto apresenta algumas conclusões sobre o
processo de mudança dos procedimentos policiais: (I) a militarização da segurança pública e (II) a
proposta de transformação da política pública de segurança mais cidadã.
Pode-se concluir que o intervencionismo militar na segurança pública no período ditatorial (1964-
1985) foi determinante para a institucionalização de práticas violentas como métodos de procedimentos
policiais. O processo de investigação repressiva para presos políticos se estendeu aos presos comuns,
marcados por violências físicas e até mesmo letais. Entretanto, a repressão violenta é uma característica
histórica dos aparatos de segurança no Brasil, em especial os suspeitos oriundos de classes mais
pobres, não sendo uma invenção da ditadura civil-militar, a problemática é a permanência deste modus
operandi no período posterior a promulgação da Constituição de 1988, e sendo até mesmo socialmente
aceita no combate a criminalidade na democracia. Esse emprego da violência física e letal não diminuiu
o número de ocorrências criminais, causando perdas de vidas e levando medo a população de maneira
geral.
A repressão violenta do crime começou a demandar alternativas para segurança pública. A
perspectiva de reação não foi satisfatória, dando espaço à propostas preventivas para o crime. Com isso,
as políticas de segurança pública ganham um viés integrado entre os entes federativos, onde a tais
políticas não se encerram em apenas ações policiais, sendo necessária a reformulação da formação e
da ação policiais para esta etapa de mudanças. O projeto “Territórios de Paz” sistematizou essas
confluências em sua proposta: policiamento comunitário de aproximação e participação civil na
formulação de política pública. Entretanto, a ocupação destes territórios por forças policiais podem
suscitar perguntas se é um projeto inclusivo ou apenas mais uma forma de controle social.
Com efeito, a mudança de uma polícia de repressão para uma polícia de aproximação não
depende apenas das representações sociais dos gestores das políticas públicas de segurança, mas
também, da mudança de mentalidade de como uma sociedade entende por justiça e por vingança, e
como isso se reflete no trabalho policial.

17
Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul – Cadernos de Dados Gerenciais por
Municípios (2011-2012). Página 3:
http://www.ssp.rs.gov.br/upload/20121029183330caderno_de_dados_gerenciais___setembro_2012_em_29
.10.12___municipios.pdf

166
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167
168
IV – Ditaduras e Imprensa

169
170
Victor Civita e a Ditadura Civil-Militar Brasileira: a posição da revista Veja

1
Edina Rautenberg

Resumo: O objetivo deste artigo é problematizar as relações entre imprensa e ditadura, em especial
demonstrar como a revista Veja se posicionou neste período e como atuou no sentido de formar
determinado consenso em torno da ditadura civil militar e dos governos militares. Problematiza como os
interesses de Victor Civita (dono da revista) foram reproduzidos nas páginas de Veja encobertos de
preceitos como imparcialidade e neutralidade. Com interesses políticos, sociais e empresariais,
somados aos interesses de frações de classe à qual a revista se vincula, Veja foi responsável por criar
determinada memória sobre a ditadura e os governos militares. O artigo se baseia nas reflexões obtidas
através da análise dos editoriais de Veja durante os oito primeiros anos da revista (1968-1976), e procura
demonstrar como a revista atuou durante o período em que esteve sob editoria de Mino Carta.
Palavras-chave: Revista Veja – ditadura civil-militar – editoriais – Victor Civita – Mino Carta.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the relationship between the press and dictatorship, in
particular demonstrate how Veja magazine has positioned in this period and how acted to form some
consensus around the military dictatorship and civil-military governments. Discusses how the interests of
Victor Civita (owner of the magazine) were reproduced in the pages of Veja covert precepts as impartiality
and neutrality. With political interests, social and business, together with the interests of class fractions
which binds the magazine, Veja was responsible for creating specific memory about the dictatorship and
military governments. The article is based on the reflections obtained by analyzing the editorials of Veja
during the first eight years of the magazine (1968-1976), and explains how the magazine acted during the
period he was under the Mino Carta's editorship.
Keywords: Veja magazine – dictatorship and military – editorials – Victor Civita – Mino Carta.

2
Este artigo é parte das reflexões já desenvolvidas em torno da temática Veja e ditadura, e se
centra especialmente na análise dos editoriais de Veja nos anos de 1968 a 1976, observando como a
revista se constituiu enquanto uma revista semanal de informação e como foi marcando seu
3
posicionamento partidário nos editoriais. Em especial, procuramos demonstrar como a revista demarcou
sua posição enquanto esteve sob editoria de Mino Carta, e como foi a relação do dono da Editora Abril
(Victor Civita) com a ditadura e com a equipe jornalística de Veja. Entendemos que os editoriais
permitem uma visão mais clara do posicionamento da revista, já que é através do editorial que a revista
firma-se enquanto sujeito. A temática já foi abordada por Carla Silva que trabalhou com os editoriais da
revista Veja no período de 1989 a 2002. Em seu estudo, Silva buscou apreender o sentido da seção para
a publicação, defendendo que a mesma constitui um espaço privilegiado para a criação discursiva do
“sujeito Veja”. Segundo a autora, essa é uma forma de apagar os interesses concretos da revista em sua
ação enquanto aparelho privado de hegemonia. Como constatou Silva, “nos editoriais percebemos como
a revista busca se construir como intérprete da história atual, ocultando seu papel enquanto parte
4
interessada nessa mesma história” . Neste sentido, procuramos demonstrar, de maneira geral, como
Veja foi se posicionando partidária e politicamente desde seu lançamento, em 1968.
Veja surge exatamente no momento em que o Brasil vivia o chamado “milagre econômico
brasileiro”. A ditadura militar proporcionou a aceleração da acumulação capitalista no Brasil, baseado na
brutal concentração de riqueza e na recuperação das taxas de lucro que se tornaram possíveis através
da superexploração e do superexcedente arrancado dos trabalhadores. Apesar de uma economia

1
Mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. VINCULAÇÃO
INSTITUCIONAL: Professora Colaboradora de História na UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon
2
Refiro-me as minhas pesquisas de iniciação científica, trabalho de conclusão de curso e, principalmente, da
dissertação de mestrado em História pela Unioeste, intitulada “A revista Veja e as empresas da construção civil
(1968-1978)”.
3
Para compreender o posicionamento partidário nos utilizamos das leituras e reflexões de GRAMSCI, Antonio.
Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
4
SILVA, Carla Luciana Souza. A Carta ao Leitor de Veja: um estudo histórico sobre editoriais. IN: Intercom –
Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.32, n.1, jan./jun. 2009. P.89.

171
5
voltada para o consumo não ser um fator novo , é na década de 70 que ocorre um redimensionamento
do mercado consumidor no país. Percebemos então que a Editora Abril investiu na criação de uma
revista como Veja exatamente no momento em que se evidenciava a perspectiva de crescentes
6
faturamentos na “criação de necessidades” , quando o desenvolvimento econômico brasileiro possibilitou
a criação de uma nova sociedade de consumo nos centros urbanos do país. Para além de Veja, a Abril já
havia criado a Revista Quatro Rodas, em 1960, “junto com a implantação da nossa indústria
7
automobilística” . Para Jorge Freitas, Veja seria destinada a propagar para as classes médias dos
8
centros urbanos, os benefícios do desenvolvimento econômico .
Além de representar um nicho de mercado que precisava ser explorado, o desenvolvimento
econômico possibilitou também a modernização da revista. No entanto, como aponta Carla Silva, a
modernização tecnológica levou à dependência política de Veja tornando “as empresas jornalísticas
9
progressivamente dependentes do capital externo” . Além disso, para garantir a presença dos
anunciantes, é necessário que a linha editorial da revista seja favorável à política de idéias que vem
dentro dos produtos anunciados ou de seus anunciantes. Em levantamento realizado por Daniela Villalta
nos primeiros quatro números da revista, esta constatou que entre os principais anunciantes nacionais
estavam as empresas estatais Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras), Loteria Federal, Plano Nacional
de Habitações, Rede Globo de Televisão (anunciando a novela Passo dos Ventos e a Gata de Vison),
Banco do Estado de São Paulo, Viação Cometa, dentre outros. Ou seja, havia a participação também da
ditadura no apoio publicitário de Veja o que nos ajuda a pensar as relações entre esta publicidade e o
que era publicado na revista sobre os governos militares e a própria ditadura.
10
Apesar do projeto ambicioso da Editora Abril ao planejar Veja , a revista não teve a recepção
11
esperada . Com uma proposta diferente para os padrões brasileiros (leitores acostumados com
semanários ilustrados e revistas de economia e política), e se propondo a interessar-se por tudo, Veja
12
não atraiu muitas simpatias . Além disso, assim como os demais órgãos de imprensa, Veja foi
censurada durante a ditadura militar. No entanto, por diversas vezes, procurou burlar a censura ou
13
demonstrar que estava sendo censurada . Esta postura acabou favorecendo a imagem da revista junto
aos seus leitores, contribuindo também para que Veja fosse caracterizada enquanto uma revista de
resistência à ditadura. No entanto, ao contrário da memória que Veja pretende reconstruir sobre sua
atuação no período, o fato de ter sido censurada não representa uma postura de “esquerda” ou de
contrariedade à ditadura. Como afirma Carla Silva:

5
Como demonstra MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento.
Rio de Janeiro: Graal, 1985.
6
Com a criação de novos produtos e da possibilidade de parcelas da sociedade adquirir aqueles produtos,
tornou-se necessário estabelecer novas relações sociais. Carla Silva em sua pesquisa nos anos 1990 constatou
que grande parte das matérias de Veja de cunho cultural e comportamental traziam novos produtos a serem
consumidos, produtos estes que eram anunciados na própria revista. Segundo Carla Silva, “consome-se o
produto e o estilo de vida que sua publicidade propõe”. SILVA, Carla. Veja: O indispensável partido neoliberal
1989-2002. Niterói: UFF, Tese de Doutorado. 2005. P.494.
7
Afirmação de Victor Civita no editorial da primeira edição de Veja. Momento em que o fundador fala das
publicações da Editora Abril. Veja. Ed.01, 11/09/1968.
8
FREITAS, Jorge Roberto Martins. A entrevista nas páginas amarelas da revista Veja: a imagem do milagre
econômico sob o ponto de vista do primeiro newsmagazine brasileiro. Diss. Mestr. UFRJ, 1989. P.13.
9
SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: Revista História
e Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005. P.44.
10
Além do alto investimento financeiro baseado na impressão de 700.000 exemplares semanais, temos outros
exemplos como a organização de duas festas de lançamento, onde foram convidados personalidades,
autoridades e donos das maiores agencias de publicidade de São Paulo e Rio de Janeiro; a campanha
publicitária na imprensa, com investimento de 1 milhão na época; o curso de jornalismo oferecido pela Abril para
formar os profissionais qualificados para o trabalho na revista: Dentre 1800 inscrições, 100 jovens foram
selecionados e ficaram hospedados por três meses, custeados pela empresa, para serem engajados em uma
espécie de aprendizado rápido; etc. Mais informações sobre o processo de formação da revista podem ser
encontrados em VILLALTA (1999), ABREU (2001) e SOUZA (1988).
11
Interessante notar que apesar da crise, Veja procurava criar a impressão de ser um sucesso. O editorial da
Edição 02, destinado a relatar a recepção de Veja, afirmava “Os telegramas e telex choveram a semana inteira.
E todos contavam a mesma história: Veja era um êxito total”. Veja. Ed.02, 18/09/1968.
12
A crise na Abril, resultante do fracasso na criação da revista, é citada e analisada também por Mario Sérgio Conti
(1999) e Carmo Chagas(1992). Chagas afirma que Veja teria resistido a “dois anos inteiros de vermelho mais
intenso que a mais intensa das hemorragias” (p.70), exigindo a cada semana mais injeção de capital naquela
“operação fracassada”. Carla Silva afirma também que “os números do prejuízo aceitos pela editora estão em
torno de US$ 6,5 milhões de dólares (nos anos 1960)”(p.45).
13
Exemplos desta postura de Veja são demonstrados no artigo de Alzira Aves Abreu (1996), “Os anjos e os
demônios da revista Veja. Um discurso contra a censura”; e no livro de Maria Fernanda Lopes Almeida (2009),
“Veja sob censura:1968-1976”. Veja se utilizou desta estratégia nas edições 285 a 291.

172
O fato de que os principais veículos das imprensas brasileiras foram censurados na
ditadura não implica em que eles não tenham de diferentes formas apoiado e legitimado
o regime. Além disso, reescreveram sua versão sobre sua própria atuação no processo,
querendo se mostrar como críticos da ditadura. No caso de Veja, a revista tem investido
ainda em construir uma memória sobre o golpe que procura amenizá-lo, banalizá-lo e
14
justificá-lo .
Acreditamos que a censura contribuiu para que a revista não falisse nos primeiros anos.
Segundo Jorge Freitas, Veja “beneficiou-se da censura, porque sem censura seria mais difícil diferenciar-
15
se das outras publicações existentes no país” . Além disso, Veja conseguia – por meio de informações
16
obtidas através de contatos com o governo – diferenciar-se das outras publicações existentes no Brasil.
Ao contrário de Maria Fernanda Almeida que defende que o prejuízo de Veja foi bancado com o lucro
17
das demais publicações da Abril, em especial os quadrinhos e telenovelas , não acreditamos nesta
constatação. Como demonstra Carla Silva, a editora Abril sempre teve suas atividades em várias áreas.
O seu parque industrial foi logo aperfeiçoado, permitindo a publicação de listas telefônicas, chegando
aos anos 1970 capacitada a receber trabalhos bastante lucrativos, como a publicação dos livros do
Mobral. Nos anos 1990, a Abril participou da compra de importantes editoras de livros didáticos, a Ática e
18
Scipione, em parceria com o grupo francês Havas . Atualmente a Abril detém 29% do mercado brasileiro
de livros didáticos. Neste sentido, alegar que as demais revistas teriam sustentado Veja é mera retórica,
já que os investimentos vindos do governo constituem parcela majoritária dos investimentos na Abril.
Afirmamos que Veja não só não foi contrária ou neutra, como também foi favorável e por vezes
defendeu à ditadura militar, por se beneficiar dos projetos, bem como pelas relações comerciais
estabelecidas entre a Abril e o Governo. Em seu editorial de última edição do ano 1968, assinado por
Victor Civita, percebemos Veja apostando que 1969 seria um ano “importante na marcha para o
desenvolvimento.
Acompanhamos com entusiasmo o progresso já produzido pelas novas rodovias, usinas,
19
indústrias e escolas que brotam no País inteiro” . Os editoriais de Veja deixam claro o apoio da revista
ao Governo que levaria o Brasil ao desenvolvimento econômico e, muitas vezes a revista chegou a se
20
utilizar dos jargões de desenvolvimento nacional veiculados pelos órgãos oficiais . “E confiamos em que
o trabalho honesto de dezenas de milhões de brasileiros – dentro de um clima de ordem e seriedade –
21
continuará contribuindo para o crescimento da Nação e o bem-estar de todos” . Percebe-se a
reprodução da ideologia de Desenvolvimento e Segurança, onde o progresso só seria atingido dentro da
ordem, portanto, todo brasileiro seria responsável de zelar por ela. E, para concluir, “O mundo espera
muito do Brasil e o Brasil, de cada brasileiro. Veja procurará cumprir a sua parte, informando com
22
precisão, rapidez, imparcialidade e entusiasmo” . Estabelecido o papel dos cidadãos, Veja colocou-se
como cumprindo também o seu papel de vigiar para que realmente aquilo que se espera para o Brasil
fosse atingido.
Interessante apontar que a crise de aceitação e vendas em Veja chega ao fim justamente
quando a ditadura militar inicia uma de suas crises internas. Na sucessão de Costa e Silva, tramada
dentro dos quartéis, e com a divisão existente no Alto Comando do Exército, Veja publicou sucessivas
entrevistas e perfis de generais. De setembro a dezembro de 1969, Veja trouxe 14 capas com assuntos
políticos. E os editoriais, assinados por Mino Carta, passaram a dar as opiniões de Veja sobre a
necessidade da escolha de um líder político.

14
SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: Revista História
e Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005. P.43. Outro trabalho da mesma autora que nos ajuda a
pensar a permanente construção de memória sobre a história, em especial a forma como a grande imprensa
reescreve sua atuação ocultando que apoiaram e sustentaram a ditadura é o artigo: “Ditadura apagada e
Democracia forjada” (2011).
15
FREITAS, Jorge Roberto Martins. Op. Cit. P.151.
16
Devido ao fechamento do sistema político, os militares serviam como fontes de informação para grande parte da
imprensa. Neste sentido, Jorge Freitas afirma que o general Golbery do Couto e Silva, constituía-se em fonte de
informação para a revista Veja. Lembramos que este acesso era facilitado pelas relações pessoais estreitas de
Golbery com Élio Gaspari, repórter e editor político de Veja desde 1969 até 1973. Gaspari posteriormente usará
este mesmo “acesso privilegiado” junto à Golbery para publicar sua série de quatro livros sobre a ditadura
militar.
17
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. Op. Cit. P.45.
18
SILVA, Carla (2005). Op. Cit. P.51-52.
19
Veja. Carta do Editor. Ed.16 – 25/12/1968.
20
Como exemplo de um estudo sobre a tentativa de legitimação ideológica da ditadura, ver: ALVES, Ronaldo
Sávio Paes. Legitimação, publicidade e dominação ideológica no governo Médici (1969-1974): a
participação da iniciativa privada no esforço de legitimação. Estudos de inserções publicitárias na mídia
impressa. Dissertação de Mestrado em História, Niterói, UFF, 2000.
21
Veja. Carta do Editor. Ed.16. Op.Cit.
22
Idem.

173
(...) E os acontecimentos da primeira semana de setembro, com o seqüestro do
embaixador americano, reforçaram a impressão de que o poder supremo da Nação
23
deveria ficar nas mãos de uma única pessoa .
(...) Na página 26 está o retrato do novo presidente – não o nome, mas como ele deve
ser. Veja procura responder à interrogação que domina este começo de semana, mas
percebe-a maior do que aparenta ser. É possível que a Revolução, no momento difícil,
tenha encontrado força e motivo para cumprir mais firmemente os seus propósitos e que
24
já se esboce uma revolução dentro da Revolução.
(...) Foi assim que Veja pode revelar o plano de consultas que o Alto Comando das
Forças Armadas decidiu fazer junto aos oficiais-generais de todo o País e oferecer um
panorama completo da situação e do clima em que transcorre o esforço dos chefes
militares para resolver, da melhor maneira, o problema da sucessão. Furtando-se a
especular, Veja escolheu o caminho mais difícil: ouviu os personagens e anotou dados e
fatos concretos. Por causa disso, tem certeza de estar cumprindo dignamente o seu
25
papel .

Segundo Juliana Gazzotti, as matérias sobre este processo sucessório foram chefiadas pelo
editor Raimundo Pereira, que junto com sua equipe, foi responsável pela reportagem de capa desde a
doença de Costa e Silva até a posse do general Médici. Com a experiência em torno da sucessão
presidencial, Veja passou a ter domínio na cobertura política e aí desabrochou, deslanchou e ganhou
26
autonomia . No acompanhamento dos editoriais, percebemos que a própria revista procura reconhecer
este “novo redirecionamento” voltado para as análises e coberturas políticas. Após as várias previsões e
indicações nos editoriais sobre o novo Presidente, General Garrastazu Médici, e os relatos do trabalho
dos jornalistas para levar aos leitores de Veja a melhor análise possível, constatamos o argumento da
revista: “depois de ter atuado especialmente na área militar, nas últimas cinco semanas, Veja mostrava
27
agora a sua boa forma e rapidez de reflexos, dirigindo-se, no momento certo, para a área política” .
Em dezembro de 1969, Veja publicou duas edições seguidas (03/12/1969 e 10/12/1969) sobre o
problema da tortura praticada no Brasil, elaboradas também pelo jornalista Raimundo Pereira.
Entretanto, apesar de Veja publicar as duas matérias altamente críticas ao regime, é interessante notar
28
que algumas edições depois o jornalista foi envolvido em imposições por parte do governo , que sugeriu
que o mesmo seja retirado de Veja, o que é atendido pela diretoria da revista. Segundo Daniella Villalta:

Pode-se então perguntar: não seria uma contradição que o próprio diretor da Editora
Abril estivesse envolvido de perto com o problema da tortura levantado por seus
colaboradores e, ao mesmo tempo, sua diretoria tivesse cedido às pressões do ministro
do Planejamento da ditadura? Sim, as contradições, como já foi dito, permearam todas
as relações políticas do período. Ora por questões puramente políticas, ora por
interesses financeiros, ora por uma questão de oportunidade empresarial. No caso da
Editora Abril, especificamente com relação ao tratamento dado por Veja aos
acontecimentos políticos nacionais em seus primeiros anos, ou enquanto teve Mino
Carta como editor-chefe, o problema das baixas em sua redação e da censura sofrida
por alguns de seus números esbarrou nas relações políticas que, por sua vez, estavam
29
estreitamente ligadas ao aspecto financeiro .

Interessante apontar a dinâmica da revista: é a partir da cobertura política, iniciada através do


trabalho de Pereira junto à cobertura do processo que vai desde a doença de Costa e Silva até a posse
de Médici, que a revista Veja consegue se estabilizar no mercado. No entanto, quando esta cobertura

23
Veja. Carta ao Leitor. Ed.54 – 17/09/1969.
24
Veja. Carta ao Leitor. Ed.55 – 24/09/1969.
25
Veja. Carta ao Leitor. Ed.56 – 01/10/1969.
26
GAZZOTTI, Juliana. Imprensa e ditadura: a revista Veja e os governos militares (1968-1985). Dissertação de
Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, 1998. P.71.
27
Veja. Carta ao Leitor. Ed.58 – 15/10/1969.
28
O episódio refere-se há uma matéria intitulada “Velloso e seus grandes impactos”, onde o tema central eram as
diretrizes para o Governo Médici enfrentar o ano de 1970. Raimundo Pereira se utiliza de um tom bastante
irônico para interpretar os fatos, o que desagradou profundamente o ministro e levou a publicação de uma carta
deste desqualificando as informações de Raimundo Pereira. Apesar de Raimundo Pereira insistir que a carta
devesse sair na seção de cartas, a direção decidiu publicá-la na seção de Política, como sugeria o ministro
Velloso. Nesta ocasião, Raimundo Pereira pediu dispensa da editoria. Em comunicação interna, Edgard de Silvio
Farias (um dos sócios da Abril) escreve para Roberto Civita pedindo a transferência de Raimundo Pereira já que
este teria inspirado um novo endurecimento censório do governo em Veja. Pereira saiu do quadro da Abril em
julho de 1970.
29
VILLALTA, Daniella. Artesanato Industrial na produção jornalística de 1968. Op. Cit. PP.102-103.

174
fere os interesses da ditadura, o dono da Abril não titubeia em dispensar parte do seu quadro jornalístico.
Esta “troca de favores” é uma constante na revista. Em maio de 1975, após a publicação de uma charge
feita por Millôr Fernandes, mostrando um prisioneiro a ferros e um carcereiro dizendo “Nada consta”, o
Ministro da Justiça Armando Falcão determina que Veja seja censurada em Brasília, com o material
mandado para lá até terça-feira à noite. Civita entrou em contato com o general Golbery do Couto e
30
Silva , ministro-chefe da Casa Militar, e lhe mostrou que isto significaria tirar Veja de circulação. Após
dois dias, a exigência é desautorizada e a revista passa a sofrer apenas com a censura prévia. Em troca,
Veja esboçava sua “admiração” pelo ministro, como exemplo o editorial de 18 de junho de 1975, quando
a revista fez dele personagem central da reportagem de capa. Frases como “a serenidade está presente
em todas as atitudes do general”; “são qualidades que, aliadas ao bom uso da razão”; “vivaz senhor de
sorriso arguto e olhos brilhantes diante de raciocínios límpidos e conseqüentes”; “o general Golbery
31
dificilmente pode ser surpreendido por novidades talvez porque nunca deixe de procurá-las” etc., fazem
parte dos vastos adjetivos que são utilizados para elogiar o general. O mesmo acontece com Mino Carta,
levando a sua demissão, como demonstraremos posteriormente.
As relações “amistosas” da Editora com o Governo começaram a aparecer de forma mais nítida
em meados de 1970. Um exemplo é a edição 103, quando o editorial trouxe uma foto do então ministro
Delfim Netto recebendo uma placa das mãos do editor da Abril ,Victor Civita. A legenda explicava: “O
Ministro Delfim Netto, em visita à Editora Abril na semana passada, recebeu de Victor Civita, editor e
32
diretor, o medalhão com sua efígie que foi capa do nº 70 de Veja” . Interessante notar que em nenhum
momento do texto presente neste editorial, há referências à foto ou a ação. A foto aparece no lado
esquerdo da página, ocupando um espaço considerável, e só pode ser entendida a partir da legenda
descrita acima. A capa do nº 70 à que a legenda se refere, é a edição de 07/01/1970, que traz uma
moeda dourada com a cabeça de Delfim como símbolo. O título, “Porque Delfim é otimista”.
Delfim Netto esteve no cargo de Ministro da Fazendo entre os anos de 1967 a 1974. Em
setembro de 1970, ele e João Paulo dos Reis Velloso, foram os responsáveis pela elaboração de dois
planos econômicos que levariam o Brasil ao “crescimento econômico”: I PND e “Metas e bases para a
Ação do governo”, sendo que o último apresentava que “o Brasil precisaria crescer pelo menos 7% ao
ano, incorporar as tecnologias mais modernas aos segmentos mais dinâmicos da sociedade e integrar
33
segmentos e regiões atrasados ao núcleo mais moderno da economia” . Já demonstramos em outros
34
trabalhos o “apreço” de Veja para com Delfim Netto, responsabilizando-o pelos “sucessos” nas políticas
de exportação. Também Jorge Freitas constatou em suas análises que Veja ajudou a construir a imagem
de alguns personagens importantes dentro do setor econômico e entre eles, destacava-se a figura de
35
Delfim Netto . Lembramos que entre os palestrantes que foram convidados pela Editora Abril para
formar o quadro de jornalistas necessários para a criação de Veja, estava Delfim Netto, por estar entre os
36
“mais importantes em sua área na época” .
Para entender o motivo do medalhão entregue por Civita à Delfim Netto, voltamos a edição 70,
onde a reportagem de capa (de 10 páginas) narrou “O saldo do Ministro Delfim”. Nela Veja procurou criar
uma imagem de Delfim Netto como um homem “bem humorado quando fala de sua política, veemente
quando responde aos que a criticam. Antes de tudo, um homem satisfeito com os resultados do ano
37
passado” . Segundo a revista Delfim é um homem “seguro por natureza”, ágil e trabalhador. Isto é
38
“comprovado” com o fato de dois jornalistas de Veja terem passado “dois dias ao lado do ministro” ,
39
dando credibilidade as informações repassadas pela revista. Para explicar “porque Delfim é otimista” ,
40
Veja afirma que “o otimismo é um dado necessário à criação de um clima desenvolvimentista” .
Relatando a trajetória do ministro e suas iniciativas tomadas no ministério, Veja demonstra concordar
41
com a forma de condução da economia proposta por Delfim :

30
Que como já demonstramos tinha ligações estreitas com Elio Gaspari que trabalhava em Veja.
31
Veja. Carta ao Leitor. Ed.354 – 18/06/1975.
32
Veja. Carta ao Leitor. Ed.103 – 26/08/1970.
33
PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O ―milagre‖ brasileiro: crescimento acelerado, integração
internacional e concentração de renda (1967-1973). IN: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilda de Almeida
Neves (Org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. RJ: Civilização
Brasileira, 2003. p.221.
34
Em especial o trabalho de monografia “A revista Veja e as multinacionais no Brasil (1968-1975)”.
35
FREITAS, Jorge. Op.Cit. p.129.
36
SOUZA, Ulysses Alves. Op. Cit. p.78.
37
Veja. O saldo do ministro Delfim. Ed.70, 07/01/1970. P.42.
38
Idem.p.46.
39
Título da capa.
40
P.50.
41
No plano econômico proposto por Delfim Netto, a redistribuição de renda era reservada para um momento
posterior, quando o crescimento econômico já teria se efetivado. Neste sentido, temos a célebre frase de Delfim
Netto, “deixar o bolo crescer para dividir depois”, que é um exemplo clássico desta perspectiva.

175
A filosofia do ministro pode ser assim entendida: se a riqueza nacional cresce de 100,
não é possível distribuir senão esses 100; daí uma política ter que optar: quem ficará
com essa nova fatia, ou com a maior parte dela? A resposta é esta: o assalariado vai
querer ganhar mais apenas para consumir; a empresa desejará maiores lucros para
investir, criar novas fábricas, novos empregos, de que o país precisa – logo, ela tem
42
prioridade .

Veja procura explicar de maneira didática a “fórmula” de Delfim. Até aí, não aparece de maneira
explícita a posição da revista já que ela estaria apenas explicando a proposta do ministro. No entanto,
logo abaixo Veja afirma que mesmo que, no momento, a fatia maior não seja dos trabalhadores, a
43
proposta do ministro já “deixa grande margem de esperança ao assalariado” . Segundo a revista:

Não há mágico que possa fazer o contrário sem simultaneamente produzir inflação,
iludindo o próprio assalariado. Aliás, a fórmula de reajuste salarial, já pelo segundo ano,
proporcionou reajuste acima do aumento do custo de vida, exatamente porque o
44
governo deseja manter a participação dos trabalhadores no produto .

Ou seja, ao mesmo tempo em que legítima o fato de que os beneficiados do “desenvolvimento”


fossem apenas os empresários, a revista procura criar uma acomodação dos trabalhadores já que os
números demonstravam que também os trabalhadores tiveram um reajuste dos salários. Permanece a
questão em torno dos motivos de Civita da entrega do medalhão à Delfim Netto, mas fica a satisfação do
dono de Veja pela proposta econômica do ministro.
O argumento de que o desenvolvimento econômico no Brasil só se tornou possível graças à
ditadura e seus economistas, apareceu também nos editoriais de Veja. Como exemplo o primeiro
editorial de 1974:

Para o Brasil, onde o argumento do desenvolvimento é uma bandeira, foi um ano de


PNB alto e largas exportações, graças também a fatores políticos capazes de manter
agradável a temperatura e esperançosos os ânimos. Assim, o sóbrio e tranqüilo
encaminhamento da sucessão presidencial, um episódio que no passado, em
freqüentíssimas ocasiões, produziu abalos de escaladas agitadas, foi certamente
decisivo. Em todo caso, o começo de 1974 traz para a área econômica, aquela sempre
45
e sempre saudável nos últimos anos, algumas e graves preocupações .

Através da afirmação de uma economia “sempre e sempre saudável nos últimos anos”, a revista
propõe uma continuidade de desenvolvimento e de crescimento econômico proporcionado pela ditadura
militar. No entanto, demonstra também sua preocupação com os rumos que a economia tomaria após a
troca de presidente. O editorial remeteu-se à crise do petróleo, explicando sua reportagem de capa e
relatando a preocupação da revista e o trabalho dos jornalistas em “detectar as possíveis implicações
46
que a crise pode ter no comportamento da economia brasileira” . Junto com as entrevistas realizadas
pelos jornalistas com personalidades políticas, econômicas e empresariais, Veja chega a um veredicto
sobre as perspectivas brasileiras em 1974:

E, se há nessas manifestações os temores de conseqüências desagradáveis, nem por


isso elas estão destituídas de otimismo. Porque nos eventos econômicos, que não são
regidos pelas leis inflexíveis do mundo físico, sempre se pode fazer algo pela ação
47
eficiente do engenho e arte do homem

Na sucessão presidencial, Veja se colocou ao lado de Geisel, elaborando matérias de caráter


abertamente geiselista. Entretanto, o suspense e o silêncio em torno das decisões e dos nomes dos
futuros ministros, são fartamente criticados pela revista:

(...) Assim, preservar o sigilo em torno dos nomes dos futuros ministros do governo do
general Ernesto Geisel somente atiça as especulações que se pretenderiam evitar,
embora seja ao mesmo tempo uma demonstração de notável lisura em relação aos que
42
Veja. O saldo do ministro Delfim. Op. Cit. p.51.
43
Idem.
44
Idem.
45
Veja. Carta ao Leitor. Ed.278 – 02/01/1974.
46
Idem.
47
Idem.

176
se preparam a sair. O excesso de precauções, o vaivém das confirmações veladas e
dos desmentidos apressados e pouco convincentes acabam empurrando para a ribalta
uma onda de rumores capazes de encobrir os próprios fatos e de causar um clima
propício ao desassossego, além de favorecer a impressão de que a divulgação da lista
48
oficial acabará revelando algumas mentiras (...)

Segundo o editorial, a revista teria, várias vezes, “engatilhado” uma reportagem de capa sobre
os novos ministros e sempre teve de recuar por falta de provas. Neste sentido, por várias vezes Veja
reclamou em seus editoriais o mistério que envolvia a política ditatorial. Estas reclamações eram
apoiadas na justificativa da responsabilidade social de Veja de informar o seu leitor, reforçando sua
pretensão de quarto poder no qual a revista se apoiava. Para uma revista como Veja, já famosa por suas
coberturas políticas, não poder cobrir um acontecimento importante como a sucessão presidencial,
implicava em perder dinheiro e credibilidade junto aos leitores.
Pouco antes da posse de Ernesto Geisel, em 15 de março de 1974, e durante os primeiros anos
de seu governo, Veja passou a sofrer cortes sistemáticos em suas páginas. A partir deste momento, a
revista passou a se utilizar de estratégias para denunciar a censura. Na edição 288, gravuras de anjos e
demônios obrigaram Mino e Guzzo a uma visita à Polícia Federal. Por fim, sob ameaças e vetos da
censura, a revista deixou de se utilizar deste artifício. Segundo Almeida, a opção foi também uma
decisão da Editora, tendo em vista que com o tempo, os leitores deixariam de comprar uma revista com
“espaços em branco” ou com imagens (como anjos e demônios) que nada teriam a ver com a realidade.
Acertos entre o governo e Victor Civita fazem com que as “reclamações” e as críticas em relação
ao silenciamento em torno do novo governo desapareçam dos editoriais. Importante destacar que os
editoriais não refletiam críticas à ditadura, mas, como vimos na edição 283) ao fato da ditadura não
disponibilizar suas propostas e encaminhamentos para a imprensa. Veja não era contrária a ditadura,
afinal, esta havia propiciado um fortalecimento econômico da Editora Abril. Além disso, o
“desenvolvimento econômico” proporcionado pela ditadura atenderia os extratos empresariais que
sustentavam a revista e dos quais muitas vezes a revista expressava a opinião. A revista se posiciona
contra a liberdade de expressão por vezes vetada por esta ditadura. Liberdade esta extremamente
necessária para a continuidade de qualquer órgão de informação. Veja apoiou o governo de Geisel.
Especialmente porque ele inicia com a proposta de restabelecer as liberdades democráticas: “1975 é um
ano-chave para o definitivo e tão esperado encaminhamento de uma fórmula política destinada a
restabelecer gradualmente no Brasil plenas liberdades democráticas, segundo os propósitos do governo
49
do general Ernesto Geisel” . Além disso, a relação estreita entre Geisel e Golbery e entre Golbery e a
50
imprensa , cria expectativas de um futuro promissor:

Este hábito foi renovado pelo general Golbery no governo Geisel, o que faz dele uma
fonte preciosa para o claro e livre entendimento do governo – e dos jornalistas,
intérpretes dos humores da opinião pública junto ao Gabinete Civil da Presidência. Num
momento em que a imprensa, ou pelo menos parte dela, continua sob suspeita, este
51
salutar intercâmbio soa como animador sinal de respeito recíproco .

A partir do editorial de 20/08/1975 é possível perceber certo descontentamento de Mino Carta.


Reclamando da sua equipe, formada por profissionais “arredios e cheio de pudores”, Carta afirma não
haver relatos interessantes em Veja. Tendo se posicionado criticamente em 1974 em relação ao
“encobrimento” das informações realizado pelo novo governo, Mino Carta havia sofrido uma série de
pressões por parte da ditadura. Com o prosseguimento desta postura, quatro ministros do presidente
52
Geisel exigiram a saída de Mino Carta da direção da revista . Segundo Nilton Hernandes, nessa época
Victor Civita queria construir hotéis e os pedidos de empréstimos encalhavam na mesa dos ministros. Em
dezembro de 1975, Mino Carta se despede de Veja, segundo ele, para três meses de férias. Ele nunca
53
mais volta à revista. Em 1976, Civita obteve o empréstimo .

48
Veja. Carta ao Leitor. Ed.283 – 06/02/1974.
49
Veja. Carta ao Leitor. Ed.330 – 01/01/1975.
50
Já evidenciadas anteriormente.
51
Veja. Carta ao Leitor. Ed.354 – 18/06/1975.
52
Como demonstra HERNANDES, Nilton. A revista Veja e o discurso do emprego na globalização: uma
análise semiótica. Salvador: Edufba; Maceió, Edufal, 2004.
53
É claro que estas relações não aparecem na revista. Pelo contrário, a edição de 18/2/1976 é marcado por dois
editoriais: um de Victor Civita e outro de Guzzo e Pompeu, destinado a “registrar o nosso pesar pela perda do
amigo e velho colaborador” que teria pedido “demissão” da revista. Veja. Carta do Editor. Ed.389 – 18/02/1976.
Esta demissão teria sido por “divergências surgidas com a direção da empresa durante suas férias”. Veja. Carta
ao Leitor. Ed.389 – 18/02/1976.

177
54
Não podemos negar que houve censura à imprensa durante o período estudado . Entretanto,
não podemos esquecer a existência da auto-censura, ou seja, a obediência às proibições nas redações.
Exemplo disso é a análise de Beatriz Kushnir, que analisou os procedimentos censórios no Brasil, do AI-
5 à Constituição de 1988, abordando a relação entre censores e jornalistas sob a perspectiva do
55
colaboracionismo, ou da não oposição às medidas repressivas .
A revista Veja foi censurada e isto é um fato incontestável. Mas manifestações que reivindicavam
a necessidade da ditadura também estavam presentes como estamos demonstrando. Além disso, a
“troca de favores” entre Civita e a ditadura eram tão fortes a ponto do dono de Veja oferecer a “cabeça”
56
do seu próprio amigo para garantir os interesses da sua revista. Mino Carta havia sido responsável por
praticamente todos os editoriais de 1969 até 1975. Neste tempo, de várias maneiras procurou mostrar as
57
formas de fazer jornalismo, consolidando o “estilo Veja” e angariando credibilidade para a revista . Não
defendemos uma postura mais à esquerda de Mino Carta como parte da bibliografia parece acreditar.
Em junho de 1976 Veja é liberada da censura, levando-nos a acreditar na relação da censura com Mino
Carta. Mas convém lembrar que Mino Carta se posicionou criticamente à ditadura quanto esta feriu os
interesses da revista e os seus interesses profissionais. Em outros momentos, Mino Carta apoiou e
exaltou o desenvolvimento proporcionado pela ditadura.
Com a saída de Mino Carta, o editorial ficou sob responsabilidade de José Roberto Guzzo e
Sérgio Pompeu. A partir deles, com as influencias diretas de Elio Gaspari, a posição de sintonia com a
ditadura e seus eixos programáticos ficaram ainda mais claros.
Como podemos perceber, Victor Civita se utilizou da revista Veja para angariar da ditadura
militar, recursos financeiros e outros benefícios. Em troca, reproduziu na revista o discurso e o projeto
desenvolvimentista da ditadura, além de atender as exigências propostas por esta (demissão de
Raimundo Pereira e Mino Carta). No entanto, este projeto e esta posição não são evidenciadas na
revista. Ao contrário, nossa pesquisa demonstrou todo o processo de construção editorial de Veja em se
58
declarar enquanto neutra, imparcial e honesta . Apesar das delimitações deste artigo, procuramos
demonstrar que as falas de apoio à ditadura, não vieram apenas de Civita, mas também de Mino Carta, o
que desconstrói as afirmações deste ter uma postura contrária a ditadura. Acreditamos na importância do
trabalho com a imprensa durante a ditadura militar, pois a partir destas análises podemos analisar a
importância desta na criação de consenso e de memória que auxiliaram na sustentação de uma ditadura
de 21 anos e que constantemente reconstrói seu posicionamento daquele período.

Fontes
Acervo Digital Veja, disponível em http://veja.abril.com.br/acervodigital/

Referências bibliográficas:
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MENEZES, Lenan (Org.). História e violência. APuh-RJ/CCS-UERJ. Rio de Janeiro, 1996.
ABREU, Alzira Alves de. VEJA. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Coordenação:
Alzira Alves de Abreu. Ed.rev.atual. RJ, EFGV, CPDOC, 2001.

54
Existem vários trabalhos que se detêm sobre analise da censura à imprensa escrita nesse período. Como
exemplo citamos Paolo Marconi (1980), Gláucio Ary Dillon Soares (1989), Carlos Fico (2004), Maria Aparecida
Aquino (1990), etc.
55
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Campinas:
UNICAMP, 2001.
56
Em 13/02/1974, em editorial assinado por Victor Civita, o editor relembra o projeto de lançar Veja e as
dificuldades enfrentadas por ele e Mino Carta nos primeiros anos da revista, até chegar “á publicação corajosa”.
Segundo Civita, “E tudo isso é somente um preâmbulo para informar aos leitores que, em recente reunião da
diretoria da Abril, Mino foi convocado para lutas mais árduas. Além de continuar na direção de Veja, passa a
integrar a diretoria da Editora. É um reconhecimento merecido, que vem acompanhado pelo aplauso unânime da
empresa e pelo abraço pessoal de que invadiu este espaço privativo para saudar um excelente jornalista e
querido amigo”. Veja. Carta ao Leitor. Ed.284 – 13/02/1974. Ou seja, assim como com Raimundo Pereira, Victor
Civita não teve dúvidas ao ter que escolher entre um “bom profissional” e um bom amigo ou um favorecimento
econômico por parte da ditadura.
57
No editorial de 31/12/1975, quando do anuncio dos três meses de férias, Mino Carta desabafa: “Deixo-a sofrida
no espírito, porém ainda e sempre esperançosa – e sadia fisicamente, com sua circulação média de 165.000
exemplares”.
58
Resultados estes que infelizmente não puderam ser descritos neste texto, mas que podem ser visualizados em
nossa dissertação de mestrado.

178
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009.
ALVES, Ronaldo Sávio Paes. Legitimação, publicidade e dominação ideológica no governo Médici (1969-
1974): a participação da iniciativa privada no esforço de legitimação. Estudos de inserções publicitárias
na mídia impressa. Dissertação de Mestrado em História, Niterói, UFF, 2000.
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Comum – Rio de Janeiro – v.14 – n°31 – p.117 a 143 – julho/dezembro 2008.

179
O Tratamento das Revistas Semanais À Abordagem Do PNDH-3 Sobre A Questão da
Memória e da Verdade

1
Diego Airoso da Motta

Resumo: À luz da teoria da ideologia e do referencial metodológico da hermenêutica de profundidade,


propostos por john b. Thompson, o texto busca analisar como a mídia brasileira trabalha a questão da
memória histórica presente no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), a partir da forma
como as revistas semanais Veja, Época, IstoÉ e CartaCapital trataram do tema. A escolha destes
veículos de comunicação ocorre em função do poder de influência que detêm perante a opinião
pública,seja diretamente sobre seu público leitor, seja sobre as pautas de outros segmentos midiáticos,
além de exercer importante ascendência sobre as discussões realizadas no meio político.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Mídia. Memória. Comissão da Verdade.

Abstract: based on the theory of ideology and methodological framework of depth hermeneutics,
proposed by john b. Thompson, the text seeks to analyze how the Brazilian media works in issue of
historical memory in the 3rd National Program for Human Rights (PNDH-3), from the way the weekly
magazine Veja, Época, IstoÉ and CartaCapital treat the subject. The choice of these media is because of
the holding power to influence public opinion, either directly on your readership, is on the agendas of
other media segments, and have an important influence over the discussions at the political environment.
Key-words: Human Rights. Media. Historical Memory. Truth Commission.

Apresentação
O presente artigo busca levantar questões sobre as possibilidades e limites dos meios de
comunicação como ferramenta de educação em direitos humanos, especialmente no contexto do Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), em seu eixo “Educação e Mídia” (BRASIL,
2007). Para isso, propõe analisar a abordagem da mídia – precisamente as revistas semanais de
informação geral brasileiras, de significativo poder de influência sobre as classes socioeconômicas
médias e altas, sobretudo A e B, mas também C (BENETTI; HAGEN, 2010) – à questão da
reconstituição da memória histórica e da verdade, na forma como tratado no 3º Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH-3).
O respeito aos direitos humanos, em sua integridade, só poderá ser um horizonte alcançável na
medida em que seu universo conceitual e axiológico for amplamente conhecido e discutido. Nesse
sentido, a questão da memória e o esclarecimento público sobre as violações de direitos humanos que
marcam a história brasileira, especialmente após o golpe de 1964, adquirem severa relevância.
Evidencia-se, assim, que o encobrimento histórico da opressão atenta diretamente contra os direitos
humanos e coloca à prova seu caráter universal e indivisível.
Mesmo violando sistematicamente os direitos humanos, o “poder” cinicamente diz defendê-los.
As grandes potências, capitaneadas pelos EUA, promovem a guerra e a morte em sua autoatribuída
missão civilizadora, supostamente levando os direitos humanos e a democracia a todos os povos
(VIOLA, 2007).
À cauda da realidade mundial, no Brasil se processa o que Fonseca (2009, p. 264) chama de
“manuseio retórico dos direitos humanos”, vistos como algo que serve a bandidos, discurso gestado
durante o regime militar (ROLIM, 1998; VIOLA, 2007) e que gradualmente passa a ser substituído por
versões particularistas mais requintadas, como a que se condensa na expressão “direitos humanos para
2
humanos direitos” (CARBONARI, 2010) .

1
Formação acadêmica: Mestre em Ciências Sociais (UNISINOS); Doutorando em Sociologia (UFRGS). Email:
diegoairoso@yahoo.com.br Telefone p/ contato: (51) 9271-3734.
2
Estudo promovido em 2010 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República sobre a
percepção dos direitos humanos na opinião pública brasileira aponta que cerca de um terço da população (34%)
concorda com a ideia de que “direitos humanos deveriam ser só para pessoas direitas” (VENTURI, 2010, p.
249). Ainda que não configure uma maioria, esse percentual é preocupantemente significativo.

180
A mídia, sobretudo a comercial, regida pela lógica do capital e da concentração de poder, acaba
tendo papel imprescindível na reprodução dessa conjuntura de usos dos direitos humanos e reprodução
de valores caros à dominação. Porém, também na mídia pode estar uma importante possibilidade de
alteração estrutural desse quadro, disseminando uma cultura de paz, justiça social e protagonismo
político.
Para discutir o lugar da mídia no contexto das demandas por direitos humanos, este texto
deverá, após esboçar os aportes metodológicos e teóricos da pesquisa, trazer um breve histórico do
PNDH-3, do modo como este abordou o tema da memória e da verdade e da polêmica que o envolveu,
analisar, ainda que de forma superficial, qualitativamente os dados obtidos e, por fim, tecer algumas
considerações sobre a pesquisa.

Considerações metodológicas e teóricas


O corpus da pesquisa se refere a matérias jornalísticas de revistas semanais de grande
3
influência na opinião pública nacional e cuja orientação editorial, mais ou menos explicitamente, guarda
identificação com diferentes pontos do espectro político-ideológico: Veja, Época, Istoé e CartaCapital.
Cabe salientar que as duas primeiras editoras referidas pertencem a grandes conglomerados de
comunicação do país: o Grupo Abril, fundado por Victor Civita em São Paulo, em 1950; as Organizações
4
Globo , fundadas por Irineu e Roberto Marinho em 1925, no Rio de Janeiro, sendo o maior
conglomerado de mídia da América Latina. As outras duas empresas, a Editora Três – criada em 1972,
em São Paulo, por Domingo Alzugaray – e a Editora Confiança – fundada em 2001, também em São
Paulo, por Mino Carta, diretor de redação e criador de CartaCapital, e Luiz Gonzaga Belluzo, economista
e consultor editorial da mesma revista, em 2001, quando passou a publicar a revista em lugar da Editora
Carta Editorial, criada pelo irmão de Mino, Luis Carta, em 1976 – têm uma atuação restrita ao mercado
editorial de revistas, com oferta de títulos bem menor que suas gigantes concorrentes e tendo como
principal produto justamente as semanais.
Foram examinadas as edições publicadas entre 20/12/2009 e 29/03/2010 – 3 meses
subsequentes ao lançamento do PNDH-3 – para, assim, apreender a sua repercussão, especialmente
quanto à questão da memória e da verdade.
Para analisar esses textos, utilizou-se a hermenêutica de profundidade (HP), instrumental
metodológico proposto por Thompson (1995) para analisar a construção de sentidos presentes nas
ações e relações cotidianas, o contexto sócio-histórico da produção das formas simbólicas constituintes
deste processo (textos, imagens, falas e ações) e o uso dos sentidos aí produzidos. O método é
comumente aplicado à análise da ideologia – vista como um processo de construção de sentidos por
meio de formas simbólicas para produzir e reproduzir relações de poder sistematicamente assimétricas,
isto é, relações de dominação.
Tendo a ideologia relação com as circunstâncias sociais de sua emissão e recepção, não é difícil
projetar seus efeitos sobre as representações sociais, das quais, no contexto da midiação da cultura
moderna, parte considerável, em dado momento de seu desenvolvimento, é manejada e disseminada via
comunicação de massa, um de seus principais vetores.
É aí que se torna importante falar em opinião pública e a influência que recebe da opinião
publicada. Para Thiollent (1983, p. 190), “os meios de comunicação […] contribuem para formar as
tendências da opinião pública ao divulgar posições ou interpretações de fatos favoráveis ou
desfavoráveis ao poder político vigente ou a grupos de interesses”. Controlar a opinião publicada é
exercer poder simbólico, já que “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de
manter a força da ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as
pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1998, p. 15).
As representações sociais envolvem o peso da palavra e o capital simbólico disponível e
empenhado por quem as diz e guardam íntima relação com o que o autor chama de habitus, as
disposições historicamente construídas, exteriores e inconscientes aos indivíduos, mas que são
acessados por eles em suas práticas cotidianas: “O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento
adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a

3
O poder de influência das revistas é corroborado pelos números de circulação que apresentam: segundo o
Instituto Verificador de Circulação – IVC, em 2010 a circulação média semanal da revista Veja foi de 1.086.191
exemplares; da Época, 408.110; da Istoé, 338.861; da Carta Capital, 30.703, ocupando, respectivamente, o 1º, o
2º, o 3º e o 21º lugar no ranking nacional de circulação de revistas semanais de todos os segmentos.
4
Nos anos 60, a Globo firmou ilegalmente acordo com o grupo norte-americano Time-Life, no momento da
ascensão golpista dos militares ao poder federal, apoiados pelos EUA contra uma suposta ameaça comunista
no Brasil. O regime necessitando de legitimidade e a Globo de vista grossa à sua aliança proibida, os interesses
se fundiram. A Globo serviu de importante suporte ideológico à ditadura (GUARESCHI, 1999), cuja defesa era
objeto de matérias e editoriais dos veículos da empresa, como o jornal O Globo, alguns deles assinados por seu
próprio presidente, Roberto Marinho (COSTA, 2007).

181
hexis, indica a disposição incorporada, quase postural” (BOURDIEU, 1998, p. 61, grifos do autor).
A mídia participaria, então, na formação do que se poderia chamar um habitus moderno, onde o
5
conjunto de mensagens que cria e transmite seria tendencialmente aceito como expressão de verdade .

O PNDH-3
Apesar das persistentes violações de direitos humanos, nas discussões sobre o tema nos fóruns
regionais e internacionais o Brasil tem desempenhado importante papel. Bem o atesta a decisiva
participação da representação brasileira no Comitê de Redação da Declaração e Programa de Ação
adotada na Conferência de Direitos Humanos de Viena, em 1993, aprovada consensualmente por 171
países. Com isso, mais do que pelo compromisso diplomático assumido, o Estado brasileiro passou a ter
uma obrigação moral perante a comunidade internacional em assumir as recomendações da Declaração
da qual foi o principal redator.
Dentre essas recomendações está o artigo 71, que orienta que “cada Estado considere a
conveniência de elaborar um plano nacional de ação identificando medidas com as quais o Estado em
questão possa melhor promover e proteger os direitos humanos”. A edição desses documentos revela o
compromisso dos Estados em efetivar, fortalecer e ampliar no plano interno o respeito aos direitos
humanos com base nas orientações internacionais.
Seguindo esta diretriz, o governo federal elaborou o 1º Programa Nacional de Direitos Humanos
– PNDH-1 (Decreto n. 1.904/96), tendo sido o Brasil um dos países pioneiros nesse sentido. Sua
implantação, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso trouxe uma discussão
ainda limitada e que enfatizava os direitos civis e políticos (CICONELLO, 2008; SOUSA JÚNIOR;
BENEVIDES, 2010).
Diante da necessidade do Programa ser revisado e ampliado, ao final da gestão FHC, produz-se
o 2º Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-2 (Decreto n. 4.229/02). De sua discussão,
iniciada em 2001, participaram órgãos governamentais, sociedade civil e a academia (BRASIL, 2002),
gerando um conjunto de 518 proposições que integravam à versão anterior os direitos sociais,
econômicos e culturais.
Em 2008, o Governo Federal inicia novo processo de atualização do Programa, com vistas a
elaborar o PNDH-3, concebendo documentos de referência e promovendo conferências regionais,
debates temáticos e, enfim, a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, que sintetizou as
discussões que a antecederam e as aprofundou (BRASIL, 2010). Depois do evento, a interlocução com a
sociedade permaneceu aberta. Conforme Piovesan (2010, p. 12), também os diversos ministérios foram
convidados a participar da revisão do Programa, tendo em vista a “transversalidade e a
interministerialidade de suas diretrizes”. Ao final do processo, coordenado pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos – então capitaneada por Paulo Vannuchi –, cerca de 14 mil pessoas tinham
participado da formulação do novo Programa (SOUSA JÚNIOR; BENEVIDES, 2010).
O documento apresentado à sociedade por meio do Decreto n. 7.037/09, contava com 521
propostas, refletindo uma agenda contemporânea de direitos humanos e, ao mesmo tempo, sintonizado
com a complexa realidade brasileira ao tratar de temas como “direito ao meio ambiente, direito ao
desenvolvimento sustentável, direito à verdade, direitos dos idosos, direito à livre orientação sexual,
direito aos avanços tecnológicos, entre outros” (PIOVESAN, 2010, p. 13, grifo nosso). Entre os avanços
mais significativos está o Eixo VI, que trata do Direito à Memória e à Verdade, com vistas a esclarecer as
violações de direitos humanos protagonizadas, pelo Estado brasileiro sobretudo no período ditatorial
1964-1985.
Poucas semanas após o lançamento do PNDH-3, alguns setores sociais de orientação
conservadora, minoritários, mas estruturalmente influentes no meio político e econômico, se insurgiram
contra algumas proposições apresentadas. Gerou-se grande celeuma que agitou os espaços de
discussão política nos meios de comunicação de massa e nos fóruns institucionais do país.
Seis foram os temas que agitaram os ânimos: a prevenção da violência em conflitos agrários (e
urbanos), o reconhecimento de direitos dos homossexuais (união civil, adoção etc.), o apoio à
descriminalização do aborto, a restrição à ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos da
União, o respeito aos direitos humanos pela mídia e a criação da Comissão Nacional da Verdade para
resgatar a memória das violações de direitos humanos ocorridas no regime militar. Estes temas
mobilizaram críticas principalmente dos grandes produtores rurais, de grupos religiosos, dos
representantes das empresas de comunicação de massa e de membros das Forças Armadas (SOUSA
JÚNIOR; BENEVIDES, 2010.
5
Atribui-se aqui a qualidade de moderno à expressão de Bourdieu em função da identidade temporal que
Thompson refere haver entre modernidade e desenvolvimento da comunicação de massa, isto é, dentre as
disposições historicamente incorporadas pelo homem moderno estaria, segundo a tese aqui defendida, a crença
na veracidade das formas simbólicas, das mensagens, produzidas pela mídia, ainda que haja margem para a
crítica e a contestação dos produtos midiáticos.

182
Tal foi a pressão política – em boa parte exercida através da mídia – que, para acalmar os
ânimos dos descontentes, o governo alterou diversos dispositivos do Programa, o que, por outro lado,
gerou protestos dos movimentos sociais, entidades de defesa dos direitos humanos, acadêmicos e
partidos políticos que apoiavam o teor original do documento.

A questão da Comissão da Verdade e o resgate da memória


Severas críticas foram dirigidas às propostas de busca de esclarecimento sobre as violações de
direitos humanos ocorridas no período ditatorial, especialmente as relativas à criação da Comissão
6
Nacional da Verdade e à proibição de denominação de logradouros e prédios públicos em homenagem
a autores de crimes de lesa-humanidade.
Representantes das Forças Armadas, capitaneados pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim
(Ministro da Justiça quando do lançamento do PNDH-1), foram as primeiras vozes a se manifestar contra
o PNDH-3. O centro da discórdia foi a utilização de certas expressões na redação do Programa, como
“no contexto da repressão política”, o que os militares diziam ser uma tentativa de direcionar as
investigações somente a eles, deixando à parte os crimes cometidos pelos “terroristas de esquerda”.
Supostamente, a supressão desses termos teria sido motivo de acordo entre o Ministério da Defesa e a
Secretaria de Direitos Humanos quando das discussões internas do governo sobre o documento. Jobim
chegou inclusive a pedir demissão ao presidente Lula como forma de protesto ao lançamento do
Programa com o texto censurado pelos militares. Explorou-se, com isso, a ideia de que nem mesmo
dentro do próprio governo o PNDH-3 contava com apoio unânime. Dias após a manifestação da caserna,
seguiuram-se as dos demais grupos divergentes ao PNDH-3, como que se dando conta de que o
Programa continha itens que, se tornados concretos, bateriam contra seus interesses.
Imbuídos de um forte corporativismo, os militares queriam evitar a possibilidade de que, a partir
da apuração da verdade histórica e do resgate da memória pela referida Comissão, aqueles que
praticaram o terror de Estado entre 1964 e 1985 pudessem ser responsabilizados criminalmente por
violações de direitos humanos então protagonizadas, como prisões arbitrárias, torturas,
desaparecimentos, sequestros e homicídios. Os argumentos iam da acusação de revanchismo por parte
de membros do governo que lutaram na resistência à ditadura até uma dita tentativa de enfraquecimento
7
das Forças Armadas .
Sobre a real importância da memória e da verdade sobre a barbárie, especialmente em um país
fortemente marcado pela violência do aparato de segurança, fala Mezarobba (2010):

Assim como aconteceu na Argentina e no Chile, no caso do Brasil, a criação de uma


comissão da verdade poderá contribuir não apenas para deslegitimar a ditadura e
confirmar a opção nacional pela democracia, mas para reafirmar, de forma categórica, a
intrínseca e indispensável relação do (nem tão) novo regime com a promoção e o
respeito aos Direitos Humanos e sua impossibilidade de conviver com expedientes
ainda praticados de forma disseminada, como a tortura e o abuso de poder. Também
poderá contribuir para aprofundar a reflexão em torno de um tema que persiste
contemporâneo no debate nacional: a impunidade. […] deve ser acolhida pela
sociedade como uma oportunidade de melhor definição e aperfeiçoamento do papel de
importantes instituições, como o Judiciário e as forças de segurança (MEZAROBBA,
2010, p. 34).

A discussão sobre a criação da Comissão da Verdade foi atravessada pela questão da Lei da
Anistia de 1979. Segundo o ponto de vista dos críticos ao PNDH-3, o trabalho da Comissão – que em si
mesmo não tem caráter punitivo – levaria automaticamente a uma, para eles indesejada, revisão da Lei

6
Segundo Mezzaroba (2010, p. 32), “partindo-se do pressuposto de que os povos têm o ‘direito inalienável’ de
conhecer a verdade a respeito de crimes do passado, o que inclui as circunstâncias e os motivos envolvendo
tais atos de violência, independentemente de processos que possam mover na Justiça, uma comissão da
verdade pode ser definida como órgão estabelecido para investigar determinada história de violações de Direitos
Humanos”.
7
O Programa não fala em punições e, quando se refere de forma expressa à Lei de Anistia, diz que a Comissão
da Verdade poderia “colaborar com todas as instâncias do Poder Público para a apuração de violações de
Direitos Humanos, observadas as disposições da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979” (grifo nosso), ou seja,
a Lei da Anistia. O Programa reafirma-a e não intenta anulá-la, o que talvez devesse ser objeto de crítica por
parte das vítimas da repressão militar e não dos militares torturadores. Contudo, há que se destacar que o
Programa propõe ainda “Criar Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o Congresso
Nacional, iniciativas de legislação propondo: revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam
contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações” (grifo nosso), o
que poderia englobar a Lei da Anistia, que isentou de responsabilidade os militares que torturaram e assim
praticaram graves violações de direitos humanos, mas isso não fica claro no texto.

183
8
de Anistia , cujo objetivo teria sido fazer a passagem reconciliadora entre a ditadura e a democracia,
pretensamente anistiando ilegalidades de defensores e opositores do regime militar.
Há que se destacar, porém, que a referida Lei não parece ter a incondicionalidade que se tenta
atribuir-lhe, já que seu caráter autoanistiante – o fato de que leis como essa são elaboradas por agentes
que, dentro do Estado, são responsáveis por esmagadora maioria das violações de direitos humanos em
períodos de exceção – é sinônimo de impunidade, como bem mostra Piovesan (2010, p. 13):

A jurisprudência internacional reconhece que leis de anistia violam obrigações jurídicas


internacionais no campo dos Direitos Humanos […] perpetuam a impunidade, propiciam
uma injustiça continuada, impedem às vítimas e a seus familiares o acesso à Justiça e o
direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que
constituiria uma direta afronta à Convenção Americana [de Direitos Humanos].

Além disso, a Lei de Anistia teria de ser relativizada em razão de sua subordinação a certos
princípios e direitos de que a sociedade não deve abrir mão, conforme colocado por Britto (2010, p. 30):

Flávia Piovesan e Hélio Bicudo, coerentes defensores dos Direitos Humanos,


externaram que “o direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da
história e da memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à memória
das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de
tais práticas”. A este direito não se opôs a Lei de Anistia. E não poderia: a Anistia
cumpriu seu papel, propiciou a transição pacífica do regime ditatorial para o
democrático. Isso não quer dizer que impediu que a História venha a ser passada a
limpo. Não se trata de revanchismo, nem muito menos de revogá-la. Mas não pode ela
ser utilizada para impor a amnésia a toda uma sociedade, sobretudo porque só se pode
propor esquecimento ao que se conhece.

A celeuma em torno desse e de outros pontos teve forte repercussão nas revistas semanais.

A análise dos textos


A análise dos textos se baseou no exame de seu caráter ideológico. A leitura dos que abordaram
o tema da memória e da verdade no PNDH-3 nas revistas semanais foi orientada pelo que Thompson
(1995), Guareschi (2000) e Veronese e Guareschi (2006) – com complementações concebidas no
decorrer da pesquisa – revelam sobre os modos mais típicos de operação da ideologia e as estratégias
de construção simbólica que os concretizam.
Assim, os escritos que seguem procuram apontar esses elementos nos textos em que foram
encontradas abordagens ideológicas, ancorando-os nos aportes teóricos e históricos discutidos e
traçando reinterpretações julgadas pertinentes à compreensão dos textos.
Em face do elevado número de textos, optou-se por trazer aqui apenas um esboço geral da
análise desenvolvida, a ser discutida um pouco mais enfaticamente nas considerações finais.
Entre matérias, editoriais, artigos e cartas de leitor, chegou-se a um total de 24 textos com referência à
questão da memória e da verdade presente no PNDH-3: 10 publicados por Veja, 4 por Época, 2 por
IstoÉ e 8 por CartaCapital. Praticamente não houve nuances quanto à presença de textos com
abordagens ideológicas a respeito desses pontos: todos os textos de Veja, IstoÉ e Época trataram do
tema ideologicamente, reiterando o uso de expressões e juízos que viam a abordagem do Programa
como sinônimo de “revanchismo”, “vingança” ou ainda a tentativa, sempre vista com maus olhos, de
revisar a Lei de Anistia. Além disso, em diversas oportunidades, houve a tentativa de vinculação da
imagem de Paulo Vanuchi ao terrorismo, ao crime e à barbárie, para, assim, depreciar de arrasto o teor
do Programa. CartaCapital, por sua vez, embora sobre um ou outro ponto do PNDH-3 tenha manifestado
posição editorial diferente, abordou o assunto de forma não-ideológica em todos os textos analisados,
precisamente porque, nos juízos expressos, propôs o esclarecimento e o resgate da memória como uma
necessidade da democracia e opôs-se a posições conservadoras, sobretudo dos militares.
Analisados os textos, passa-se às considerações finais, momento em que os dados aqui
apresentados serão articulados com as reflexões trazidas nas seções anteriores.

8
Em 2008, o Conselho Federal da OAB apresentou ao STF a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 153, propondo nova interpretação ao artigo 1º da Lei de Anistia para que ele não abrangesse
agentes do Estado que teriam praticado crimes comuns, e não políticos. Em abril de 2010, por 7 votos a 2, a
ADPF foi considerada improcedente pela Corte. Sobre a ação fala Britto, (2010, p. 30): “Nela se diz que a Lei de
Anistia tratou de crimes políticos e conexos – isto é, decorrentes de um combate político. A lei abrange apenas
os lados que combateram. E o torturador não é um combatente: é um criminoso. A tortura ou o assassinato de
prisioneiros indefesos, depois de consumada a rendição, configuram crime comum – hediondo e imprescritível,
segundo a Constituição –, sem qualquer conteúdo político”.

184
Considerações finais
Diversos modos de operação da ideologia estiveram presentes entre os textos avaliados como
ideológicos. Entre os modos e as estratégias encontrados nos textos que assim se apresentaram se
destacaram a Legitimação, sobretudo através de racionalizações para justificar a validade da Lei de
Anistia; a Reificação, por meio da eternalização, com vistas a convencer de que a referida lei não pode
ser alterada e a versão histórica vigente não pode ser investigada; a Reestruturação da narrativa, pelo
uso da simplificação, para persuadir de que a tentativa de esclarecer as violações de direitos humanos é
mero revanchismo e vontade de vingança; a Unificação, por via da padronização, colocando vítimas e
agressores no mesmo plano de forças, e da simbolização da unidade, considerando a Lei de Anistia
como emblema da suposta igualdade de condições entre ambos; a Fragmentação, através da
diferenciação entre práticas semelhantes produzidas em momentos históricos umbilicalmente
conectados – a repressão da ditadura e a violência policial contemporânea.
É de se citar, especialmente pela revista Veja, a utilização da Fragmentação, através do
“Expurgo do outro” para atacar principalmente um dos proponentes do PNDH-3 (e por extensão as
propostas do próprio Programa), atrelando sua trajetória de resistência ao regime ditatorial à imagem de
um terrorista, criminoso, mal e vingativo, cujo trabalho político objetivaria tão-somente efetivar essas
características. A crítica sobre quem propõe se imbrica com a crítica sobre o que é proposto, para tentar
esvaziar sua legitimidade.
9
Partindo das definições de Wallerstein (2002) e Bobbio (2001) , o PNDH-3 foi elaborado por um
governo alicerçado em uma aliança política liderada pelo PT, um partido de esquerda, acompanhado por
outras agremiações de mesma orientação, por partidos de centro-esquerda, de centro e um de direita
(PT, PC do B, PSB, PDT, PTB, PMDB, PL [depois PR] e PP). A construção do Programa foi conduzida
por Paulo Vannuchi, militante de direitos humanos que se destaca pela atuação partidária e junto a
sindicatos, mas, mais do que isso, pelo fato de ter participado da resistência armada contra o regime
militar. Com um perfil supostamente mais confrontador e tendo sua origem partidária em forças
efetivamente de esquerda, sua ação poderia tornar real a possibilidade de concretização direta e
imediata das medidas previstas no Programa, algumas delas também frontalmente desfavoráveis às
expectativas dos grupos conservadores. Por conta de sua luta contra o poder autoritário, este apoiado
por boa parte daquelas mesmas forças conservadoras, a imagem de Vannuchi acabou sendo vinculada
ao radicalismo e à contestação. Seu trabalho em relação ao PNDH-3 passou a ser depreciado e a
criação da Comissão da Verdade, prevista no Programa, passou a ser vista como revanchista.
De certa forma, as abordagens das revistas sobre a questão da memória e da verdade dentro do
PNDH-3 também reflete as diferenças que envolvem a díade direita/esquerda, sobretudo ao se
considerar o passado recente dos posicionamentos políticos expressos pelas revistas. Em 2010, a
cobertura das eleições presidenciais tornou explícitos esses posicionamentos em relação às forças
políticas então em disputa. Se apenas se confirmaram as orientações antipetistas e pró-José Serra por
parte de Veja e favoráveis a Lula e Dilma de CartaCapital, a esta juntou-se IstoÉ e àquela uniu-se Época
(PEREIRA, 2010).Quanto mais à direita a orientação da revista, mais o Programa foi rechaçado; tanto
mais à esquerda, maior foi a aceitação do documento (ou menos intensa foi a crítica sobre ele).
Embora o intuito principal dessa pesquisa não tenha sido o de manifestar alinhamentos a
quaisquer dos “lados políticos” inerentemente envolvidos na discussão, ficou clara a defesa ao conteúdo
trazido pelo PNDH-3. Isso se justifica pelo fato de o documento objetivar combater relações de
dominação das quais boa parte é defendida nos conteúdos ideológicos identificados na abordagem do
PNDH-3, dentre elas o ocultamento e reificação da história e a promoção da violência estatal.
A forma como o tema foi apresentado pelas revistas indica seu efeito potencial para a criação de
representações sociais sobre a questão da memória e da verdade. Essas representações, por sua vez,
vão se fazer manifestas à opinião pública por meio da opinião publicada. Dito de outra forma, a opinião
publicada pelas revistas – com todo o capital simbólico, cultural e econômico que detêm e que se traduz
em poder simbólico – traz embutidas as representações que elas querem compartilhar, com seu público
em particular e com a sociedade em geral. Dotam, assim, essas representações de seu caráter “social”,
tornando-as acessíveis à opinião pública.
Se, com o peso que tem no contexto de uma crescente midiação da cultura, a opinião publicada

9
Para Bobbio (2001, p. 111), esquerda e direita se diferenciam pela forma como consideram o “ideal de
igualdade, que é, com o ideal da liberdade e o ideal da paz, um dos fins últimos que os homens se propõem a
alcançar e pelos quais estão dispostos a lutar”. Segundo o autor, ao pensamento de esquerda importa o que os
homens têm em comum, o que os une, enquanto que a concepção de direita considera relevante politicamente o
que os diferencia. Wallerstein (2002) tem definições próximas das de Bobbio, na medida em que, enquanto este
se refere à esquerda como defendendo a inclusão, aquele remete essa reivindicação aos que chama de
“democratas (ou socialistas)”, que buscariam compatibilizar igualdade e liberdade, em oposição aos “liberais”,
que priorizariam a liberdade, sobre a liberdade individual, tomando a igualdade como seu oposto.

185
é conformada e apresentada com base em representações propositalmente viciadas por dados falsos
para sedimentar ou criar relações de dominação, isto é, de forma ideológica, a opinião pública que dela
se alimenta toma a sua forma. Assim, o erro na apuração e uso dos dados sobre os temas de que tratam
faz com que as revistas, muitas vezes, atuem na construção de representações sociais que não guardam
relação com a verdade dos fatos.
Essas questões revelam aspectos significativamente contraditórios da mídia em geral, além de
denunciar limites às revistas semanais em particular como ferramenta de educação em direitos
humanos, salvo exceções. Como pensar, por exemplo, na efetividade do uso destes espaços para
campanhas em prol dos direitos humanos se, em seus conteúdos jornalísticos, as revistas, sobretudo as
de maior alcance de público, jogam contra os valores aí difundidos? Como pensar na concretização do
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, especialmente em seu eixo “Educação e Mídia”,
quando o cenário em que esse processo deve se dar é intensamente permeado por desrespeito a esses
direitos?
Demonstra-se, com isso, a necessidade de que discussões como a aqui proposta estejam presentes na
mesa de negociação política entre Estado e instituições midiáticas, a fim de conceber mecanismos de
educação em direitos humanos que tenham na comunicação de massa um de seus locais de
sedimentação.

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187
"O Arauto do Bem e da Verdade": o Jornal do Comércio (1964-1965) e o apoio à ditadura
civil-militar em Campo Grande

1
Sabrina Rodrigues Marques
Coautor: Jhonathan Cleyson Silvano Reynaldo

Resumo: Este artigo é um resultado parcial de uma pesquisa que toma como objeto de estudo o Jornal
do Comércio, durante os dois primeiros anos da ditadura civil-militar em Campo Grande, situado no
antigo estado de Mato Grosso. Procura-se definir a postura do jornal como mecanismo político e
ideológico de legitimação e apoio ao governo ilegítimo instaurado pelo golpe de 31 de Março de 1964, a
partir da análise de diversas notícias e fragmentos de publicações do periódico, durante o período de
1964-1965. O artigo buscará evidenciar o posicionamento concreto do jornal, elucidando a sustentação à
ditadura civil-militar por meio de recortes de publicações, matérias, artigos e passagens de teor
anticomunista.
Palavras-chave: Ditadura civil-militar – Imprensa – Jornal do Comércio – Campo Grande

Abstract: This article is a partial result of a research that takes as its object of study, Jornal do Comércio,
during the first two years of the civil-military dictatorship in Campo Grande, located in the former state of
Mato Grosso. It seeks to define the position of the newspaper as a mechanism of political and ideological
legitimacy and support to the ilegitimate government introduced since coup of March 31, 1964, from the
analysis of fragments of various news and periodical publications during the period 1964-1965. The paper
will seek to highlight the specific positioning of the newspaper, elucidating the support to civil-military
dictatorship through clippings of publications, materials, articles and passages of anticommunist content.
Keywords: Civil-military dictatorship – Press – Jornal do Comércio – Campo Grande

A Produção Historiográfica e o Jornal do Comércio em Campo Grande


A produção historiográfica sobre o período da ditadura civil-militar de 1964-1985, em Mato
Grosso do Sul, encontra-se em "processo embrionário” e restrito a pouquíssimos trabalhos acadêmicos
que abordam, sob diferentes ângulos, a temática. Este trabalho é uma primeira aproximação com o
tema, consequência de debates na graduação, fomentados tanto pela precariedade de fontes regionais
quanto pelos silêncios que pairam sobre o tema.
A partir das discussões promovidas por uma disciplina que aborda as relações civis e militares,
suas identidades e arcabouço ideológico, assim como, a complexa relação com a respectiva sociedade
civil, dentre outros aspectos, propôs-se a elaboração de uma pesquisa que contemplasse a temática e a
produção local.
A necessidade de compreensão dessas abordagens incentivou a busca sobre o conhecimento
do contexto da ditadura de 1964 na cidade de Campo Grande, na época Mato Grosso Uno, levando-nos
a encontrar no Instituto Histórico e Geográfico do Mato Grosso do Sul (IHGMS) e no Arquivo Histórico de
Campo Grande (ARCA) um jornal de circulação diária que se revelou um interessante objeto de estudo,
o Jornal do Comércio, autoconsagrado, “O Arauto do Bem e da Verdade”, como destacava o seu slogan.
Fundado em 1921, pelo Dr. Jaime Ferreira de Vasconcelos, Presidente da Associação da
Imprensa Matogrossense e da Associação Brasileira de Imprensa e membro da Academia
Matogrossense de Letras, teve como diretor seu próprio fundador e, como Redator-Chefe, o Dr. Amintas
Maciel. Deve ser destacado que o jornal se proclamava como sendo um "órgão dedicado exclusivamente
aos interêsses legítimos do comércio e das classes produtoras”.
Logo, em seu primeiro número, o Jornal do Comércio traz a seguinte apresentação:

[...] trabalhar sem cessar pelos legítimos interêsses do comércio e das classes
produtoras, tal é o nosso principal escopo. Sem ligações ou dependência partidárias que
nos obriguem a apoiar incondicionalmente quaisquer administrações ou nos forcem a

1
Graduanda em História Licenciatura 3º Ano, Bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Sob orientação do Prof. Dr. Jorge Christian Fernández. E-mail:
jhonathan.silvano@gmail.com

188
silenciar sôbre quaisquer abusos, procuramos sempre, de acôrdo com essa orientação,
dar aos atos dos poderes públicos, municipal ou estadual, a colaboração franca da
nossa crítica desapaixonada e serena, ou do nosso apoio desinteressado e sincero [...].

Sendo o único diário de toda a região Sul de Mato Grosso e o terceiro mais antigo do Estado, nos
propomos a analisar este importante veículo de informação destinado aos comerciantes e aos donos dos
meios de produção, em sua atitude frente ao golpe de 1964.

Legitimar o ilegítimo
Em toda a produção onde o tema é a imprensa e o jornal, é necessário atentar-se ao teor
tendencioso e subjetivo que possui este veículo de informação, mesmo quando este tenta construir o
mito da objetividade jornalística, portadora da verdade e proporcionando-nos um relato "verdadeiro" e
imparcial dos fatos:
[...] As duas posturas são contestáveis. O jornal não é um transmissor imparcial e neutro
dos acontecimentos e tampouco uma fonte desprezível porque permeada pela
subjetividade. A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e
intervenção na vida social [...].

A questão da subjetividade e intencionalidade do jornal está relacionada aos interesses pessoais


e políticos de seu "dono" e seu caráter partidário, são "meios para organizar e difundir determinados
tipos de cultura".
O golpe de 1964 empenhou-se, por meio dos jornais e revistas, a legitimação do governo
ilegítimo, no sentido de que buscou impedir que qualquer crítica negativa fosse publicada.

Os meios de comunicação sofreram os efeitos da censura estatal, já que, em quase


todos os casos concretos, uma das primeiras medidas adotadas a partir dos golpes de
Estado foi a intervenção (voluntária ou compulsória) de jornais, rádios e canais de
televisão com a finalidade de influir na opinião pública, divulgar a “informação oficial” e
transmitir os novos códigos e valores em vigor [...].

A maioria da grande imprensa, principalmente nos dois primeiros anos, exultara o governo,
contribuindo para a construção de uma imagem positiva do mesmo e seu caráter “democrático” e
nacional.

[...] a preocupação dos governos militares, a partir de 1964, atingiu a outra face da
mesma moeda do setor de comunicação social: a informação veiculada aos cidadãos.
Encarava-se como necessário o controle da informação a ser divulgada, para preservar
a imagem do regime, num exercício de ocultação que passa, inclusive, pela negação de
visibilidade, ao leitor, de suas próprias condições de vida.
Ao analisarmos os anos de 1964 e 1965 do Jornal do Comércio observamos a postura
explicita de apoio ao governo de facto, o cunho legalizador presente em suas matérias e
uns posicionamentos concretos, empenhados em construir uma pretensa identidade
democrática da nova ordem implantada pela força.

“O Arauto do Bem e da Verdade” e o Golpe de 1964


A pesquisa constatou a peculiaridade do jornal ao tratar de forma explicita e clara seu
posicionamento político e ideológico contribuindo para a construção de uma imagem positiva do regime.
A seguir, examinaremos a forma de como este diário sustentou este apoio, sendo assim necessário
compreender a organização do periódico.
O jornal, no ano de 1964 traz em seu cabeçalho informações editoriais como Diretor e Redator-
Chefe o Pe. Félix Zavattaro e Redator-Secretário Herbert de Almeida, endereço, data, telefone, seu valor
comercial, número da edição, o slogan o "Arauto do Bem e da Verdade" sempre acompanhado da
premissa "Órgão de maior penetração em todo o Estado de Mato-Grosso". Já no ano de 1965, há uma
alteração na organização do cabeçalho, permanecendo o nome, o valor, data, número da edição com
uma nova frase, "De Campo Grande para Mato Grosso".
A primeira página, na totalidade das edições analisadas (1964-1965), sempre contem manchetes
e notícias sobre o governo instituído e os desdobramentos políticos nacionais e regionais. No decorrer
das páginas são encontradas, por exemplo, a seção "Prelúdio", a qual contêm passagens bíblicas e
diversas matérias de teor religioso. "Tudo entre vós faça dentro da caridade - (Primeira carta de São
Paulo aos Coríntios, capítulo 16 versículo 14)".

189
Paulo VI abençoa governo Castelo Branco

D. Armando Lombardi, núncio apostólico no Brasil, foi portador ao Marechal Castelo


Branco de uma mensagem do Papa Paulo VI, contendo bênção especial ao novo
presidente do Brasil, com votos de feliz govêrno, em pról da prosperidade do povo.

Tanto essas passagens quanto as publicações de autoria de padres como, Pe. Félix Zavattaro
(Diretor e Redator-Chefe) e Pe. Francisco Agreiter (redator de vários artigos) exemplificam a relação e
influência de setores conservadores da Igreja com o jornal, aliados ao Estado, mas esta perspectiva é
foco para outros estudos.
Nas mesmas páginas onde estão localizados os "Prelúdios", frequentemente, encontram-se
grandes matérias e/ ou artigos de posição anticomunistas que atacam e repudiam quaisquer ações e
avanços dos “ideais comunistas”, como se depreende do artigo:

Anti-Comunismo
Uma imensa tarefa impõe-se aos homens de boa vontade: livrar a humanidade da
ideologia marxista, anti-humana, materialista, anti-teista, histórica, econômica e
socialmente superada. [...] uma filosofia que nega o espírito, os valores religiosos, a
origem divina da realidade e do homem [...] O marxismo será vencido por forças
intensamente espirituais e humanas e cristãs. Só homens profundamente impregnados
dos valores cristãos universais e nos quais as qualidades clássicas do homem autêntico
chegaram à sua maturidade, são "anti-comunistas" eficientes e válidos e legítimos.

Todas as edições estão mergulhadas em inúmeros anúncios e propagandas do comércio local.


Assim, nas manchetes atrativas de empresas comerciais exibiam publicidade de diversos produtos
(máquinas de costura, óculos, pomadas, bicicletas, gás, etc.), A partir dessas especificidades podemos
perceber, primordialmente, o financiamento do jornal pelas empresas e casas comerciais privadas.
Além disso, o Jornal do Comércio, por destacar-se no antigo estado como um grande veículo de
informação, sendo o único diário de toda a região do Sul de Mato-Grosso, tornou-se importante
mecanismo de expressão de opinião pública. Seu papel como imprensa não se restringiu apenas em
relatar os fatos, mas também, a opinar posicionando-se politicamente e influenciando na legitimação do
governo.
[...] Todos os jornais procuram atrair o público e conquistar seus corações e mentes. A
meta é sempre conseguir adeptos para uma causa seja ela empresarial ou política, e os
artifícios utilizados para esse fim são múltiplos. Na grande imprensa, onde se mesclam
interesses políticos e de lucro os recursos para a sedução do público são indispensáveis
[...].

Durante a observação dos exemplares do ano de 1964 notam-se inserções no formato de


quadrinhos estrategicamente posicionados entre as matérias, espalhados pelo corpo do jornal, sem uma
obrigatoriedade de rotinização. Repetindo-se em várias edições, essas mensagens ideológicas, como
definimos nomeá-las, constituem-se em propaganda do jornal, preocupado em forjar a imagem
democrática do governo ditatorial, remetendo-se ao ideal de paz e segurança nacional. Ao atentar-se a
esta construção verificamos o posicionamento político do jornal. É evidente este intuito de criação do teor
democrático e nacional do Golpe, na mensagem direta de 23 de abril 1964: "A REVOLUÇÃO não se fêz
para garantir privilégios ou para dar o poder a grupos. Ela é democrática e nacional. Procurará construir
o bem coletivo, através de todos os brasileiros”. Podemos inferir da mesma página uma mensagem
empenhada na cooptação dos setores civis e militares buscando a idealização de uma coletividade:
"Coopere com o Govêrno na tarefa de reconstrução. Economise (sic), produza e pense nos problemas
coletivos como pensa nos seus próprios problemas."
Demonstramos em seguida alguns exemplos de como isso se dá nas diferentes páginas e
edições:

Voltaram, ao Brasil, a confiança, a esperança e a ordem. Ajudemos o Govêrno e as


Forças Armadas a tornar a democracia respeitada e desejada por todos os brasileiros.
As reformas que serão feitas pelo atual Govêrno da República não representarão meras
fórmulas demagógicas destinadas a impressionar o povo e predispor a aventura
continuísta. Em lugar de odiar e maldizer a sociedade em que a Providência nos fez
viver, tratemos de entendê-la, de servi-la, de curá-la e de amá-la.

Como elemento justificador da legitimidade do golpe há, em todo o contexto do periódico,


passagens e mensagens diretas contra o "avanço comunista" do governo de João Goulart e sua suposta
relação com os ideais marxistas. Também observamos uma aproximação no texto do jornal entre as
matérias que relatam as atitudes do governo frente a "subversão" e as mensagens ideológicas que

190
demonstram o posicionamento conservador, aliado as políticas repressivas do governo surgido do golpe
de 1964.
Examinando a construção do texto é indiscutível esta postura do periódico, as noticias e
matérias utilizam termos e palavras que remetem a proposta do Estado emanado do Golpe:
descomunização, subversão, anticomunismo e expurgo.

Gov. Ademar: campanha anti-comunista continuará até seu fim


Em declarações prestadas ontem à imprensa paulistana, o governador Ademar de
Barros afirmou que a campanha anti-comunista que se processa em todo o país, deverá
ter continuidade até o fim, com o expurgo total dos elementos esquerdistas, sem o qual
perderá tôda a finalidade o movimento vitorioso das forças democráticas nacionais.

Prisão de subversivos
Brasília, 8 – Foi prêso nas primeiras horas da manhã de hoje Umberto Schettini,
presidente do Sindicato dos Empregados da Construção Civil de Brasilia e um dos que
constavam da lista de dois elementos procurados pelas autoridades como responsáveis
pelos recentes acontecimentos. Também foi preso José Cançado.

Material subversivo na Guanabara


A polícia política do Estado da Guanabara já apreendeu até esta data 15 toneladas de
material subversivo, em vários pontos daquela capital, informa a Secretaria de
Segurança. Êsse farto material ficará exposto ao público, para que o povo se aquilate do
desenvolvimento que vinha atingido no país a hidra comunista.

DOPS continua expurgo em São Paulo


Notícias procedentes de S. Paulo, informam que na tarde de ontem foram presos pelo
DOPS. Luiz Firmino Lima, ex-presidente da Federação dos Texteis e o artista teatral
Luiz Campos Vergueiro, conhecidos líderes comunista.

Em relação às mensagens ideológicas de teor anticomunista é relevante citarmos os seguintes


exemplos:
Como não admite a existência de Deus nem da alma, o comunismo não reconhece a
dignidade do homem e nega que o direito exista. Somente reconhece a fôrça.
O antídoto do comunismo é a democracia autêntica e vigilante. Um povo que conhece a
liberdade não se conforma em perdê-la.

Depreende-se que o jornal apoiava os atos governamentais em consonância com o


anticomunismo embasado na Doutrina de Segurança Nacional que inspirava a ditadura civil-militar,
abordando uma imagem negativa do movimento comunista, de tal forma que até mesmo ressalva uma
justificativa à repressão ao afirmar que:

[...] (o) fato da revolução recorrer a poderes excepcionais não lhe desfiguram a natureza
nem os propósitos democráticos, pois excepcional é tambem a conjuntura e transitórios
aquêles poderes.

Desta forma, o anticomunismo se confunde com a democracia, dentro de uma concepção


totalmente distorcida do que representava um Estado democrático de direito e do próprio conceito de
democracia em si.

Considerações Finais
O estudo parcial do Jornal do Comércio nos permite compreender a sua postura como
mecanismo político e ideológico de legitimação e apoio ao governo vigente, ao passo, que nos anos
analisados, o periódico coloca-se como um agente ativo na defesa e propaganda do regime, contribuindo
para a construção de uma imagem positiva e de sua pretensa roupagem democrática nacional,
chancelando os atos governamentais. Para tal era necessário obter a adesão das classes populares em
prol de uma “união nacional”, paradoxalmente baseada na exclusão e eliminação dos opositores
políticos.
Assim, uma suposta harmonia entre o povo e o governo deveria surgir. No entanto, mais do que uma
comunhão de interesses o regime pretendia enquadrar, disciplinar e doutrinar a sociedade civil para
facilitar a aceitação de um projeto de Estado autoritário, sob a chancela do capital estrangeiro e das
elites locais. Pode-se perceber que, em Campo Grande, esse modelo de Estado encontrou sustentação
no posicionamento concreto do Jornal do Comércio, um autêntico mecanismo ideológico, o “arauto” das

191
classes dominantes da região.

Referencias Bibliográficas:
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978). Bauru:
EDUSC,1999.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.
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ARAKAKI, Suzana. Dourados: memórias e representações de 1964. Editora UEMS,2008.

192
O Jornal A Razão e o discurso anticomunista

Silvania Rubert

Resumo: Neste trabalho buscou-se, através da análise das notícias e editoriais veiculados no jornal A
Razão, durante o contexto sócio-histórico estruturado da iminência da intervenção militar de 1964,
visualizar, partindo da análise da metodologia para interpretação da ideologia, proposta por Jhon B.
Thompson, as formas como o jornal A Razão colaborou para construir, no contexto regional, um
panorama ideológico legitimador da ruptura institucional ocorrida a nível nacional, bem como da ordem
autoritária surgida a partir desta ruptura, através, também, de um forte discurso anticomunista.
Palavras-chave: Jornal A Razão – ditadura militar – anticomunismo – imprensa – ideologia.

Abstract: In this study we sought, through the analysis of the news and newspaper editorials broadcast
on A Razão for the socio-historical context of structured imminent military intervention of 1964, viewing,
analyzing the methodology for interpretation of ideology, proposed by Jhon B . Thompson, forms like the
newspaper A Razão collaborated to build, in the regional context, an overview of the ideological
legitimating institutional rupture occurred at the national level as well as the authoritarian order arising
from this break through, too, a strong anticommunist discourse.
Key-words: newspaper A razão - military dictatorship - anticommunist - press - ideology.

Introdução
Este trabalho objetiva analisar o conteúdo do discurso construído pelo jornal A Razão, a partir da
análise de seus editoriais, dentro do contexto sócio-histórico estruturado da iminência do golpe militar de
1964 e imediatamente posterior à ruptura institucional. Aqui se entenda o conceito de discurso na
perspectiva do método de análise da ideologia proposto por Thompson (1995, p.371) como sendo
“instâncias de comunicação correntemente presentes”.
O diário A Razão foi fundado em 1934, na cidade de Santa Maria, localizada na região central do estado
do Rio Grande do Sul. Em poucos anos, tornou-se o maior jornal da região, graças à organização de um
sólido departamento comercial e do emprego dos serviços ferroviários como meio de distribuição, que
1
lhe permitiram conquistar mais da metade do mercado regional, suplantando a concorrência . Em 1941,
Assis Chateaubriand comprou o jornal A Razão e o submeteu a diversas reformas gráficas.
A presente análise tem como embasamento teórico a metodologia da interpretação, referencial
que evidencia o fato de que o objeto de análise é uma construção simbólica significativa, que exige uma
interpretação, no caso o jornal A Razão. Esse referencial metodológico foi proposto por Jhon B.
Thompson, em sua célebre obra Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa, mais especificamente, a teoria da hermenêutica de profundidade usada para a
análise da ideologia.
Thompson enquadra a interpretação da ideologia como uma forma específica de hermenêutica
de profundidade. Para o autor, interpretar a ideologia é explicitar a conexão entre o sentido mobilizado
pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar.
Estudar a ideologia exige a indagação acerca de se o sentido construído e usado pelas formas
simbólicas serve, ou não, para manter relações de poder sistematicamente assimétricas, sendo que,
após reformular o conceito de ideologia, Thompson (1995, p.79) o definiu como:

as maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer
e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode
criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar querendo significar que o
sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um
contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas.

Por “formas simbólicas”, Thompson (1995, p.79) entende “um amplo espectro de ações e falas,
imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como constructos

1
A respeito do estudo dos antigos jornais do Rio grande do Sul, ver: RUDIGER, Francisco. Tendências do
jornalismo. Porto Alegre: EDIUFRGS, 1993.

193
significativos”.
Os modos de operação da ideologia propostos por Thompson, bem como as estratégias de
construções simbólicas serão os pontos norteadores da estruturação da análise, tendo em vista que
deles advém a tônica e as especificidades do discurso construído, a fim de que, a partir destes dados, se
possa identificar as formas como o sentido estaria sendo mobilizado para estabelecer ou justificar
relações de dominação. Ao longo do trabalho será utilizado, principalmente, a legitimação, onde
“relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas, pelo fato de serem apresentadas como
legítimas, isto é, justas e dignas de apoio”, cujas construções simbólicas vislumbram-se a partir da
estratégia da racionalização, onde “o produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínio
que procura defender, ou justificar, um conjunto de relações, ou instituições sociais, e com isso persuadir
uma audiência de que isso é digno de apoio”; e da universalização, onde “interesses de alguns
2
indivíduos são apresentados como servindo aos interesses de todos” .
Outra categoria de análise utilizada será a dissimulação, onde “o ocultamento, negação ou
obscurecimento de relações de dominação, são apresentadas de uma maneira que desvia nossa
atenção, ou passa por cima de relações e processos existentes”; como modo geral de operação da
ideologia e como estratégia de construção simbólica o deslocamento – que se visualiza quando “um
termo usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para se referir a um outro, e
com isso conotações positivas ou negativas do termo são transferidas para o outro”, e a eufemização –
“ações, instituições ou relações sociais são descritas ou redescritas de modo a despertar uma valoração
positiva”, como estratégias de construção simbólica.
A estratégia da unificação também foi utilizada e pode ser identificada onde “relações de
dominação podem ser estabelecidas e sustentadas através da construção, no nível simbólico, de uma
forma de unidade que interliga os indivíduos numa identidade coletiva”.
A última categoria foi a fragmentação, que é divulgada a partir da estratégia de expurgo do outro
– “construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau e perigoso, contra o
qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo”.
Dentro do jornal, optou-se por trabalhar, prioritariamente, com os editoriais, todavia, também
serão utilizadas manchetes, crônicas e reportagens distribuídas na capa e na contra capa do jornal, onde
situavam-se as matérias de ordem política.

1. Contexto local: Santa Maria


Durante as décadas de 1950 e 1960, a política municipalista santamariense baseava-se muito
nos programas políticos e ideológicos de cada partido em nível nacional. Na década de 1950, Santa
Maria era uma cidade de pequeno porte. Não tinha uma forte produção industrial devido à falta de
infraestrutura, com uma precária prestação dos serviços ferroviários, que já estavam em larga
decadência. Nesta década, a influência da União Democrática Nacionalista era fraca e existia uma forte
3
aliança da oficialidade militar com o Partido Trabalhista Brasileiro , em nível local.
Em janeiro de 1964, o então prefeito Paulo Devanier Lauda, seu vice Adelmo Simas Genro, e
demais vereadores eleitos no pleito de 1963, tomaram posse. No dia da ruptura institucional, o prefeito
estava afastado do cargo, sob licença pessoal, só retornando ao comando do município em 14 de abril.
O prefeito em exercício era o vice. Este fato se repetiria diversas vezes ao longo dos meses em que
estiveram na prefeitura.
Logo começaram a surgir as notícias de alterações nas estruturas políticas e sociais em nível
local. A exemplo, a nomeação de interventores para a Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea,
para a Coordenadoria Regional dos Correios e Telégrafos, para o Serviço de Repressão ao
Contrabando, para a União Santamariense dos Estudantes e para a Inspetoria Seccional do Ensino.
Para a ocupação destes cargos, foram designados superiores do Exército tanto da ativa, como da
reserva.
Em 10 de maio sai o primeiro de vários relatórios realizados pelos interventores recém-nomeados:

Relatório da intervenção federal na Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea:


Através dos desmandos praticados pela administração oposta, quer pela irregular e
criminosa condução dos negócios sociais, quer pelo livre e ostensivo trabalho
subversivo, contra a ordem constituída e de um agressivo processo de comunização,
inspirado e dirigido pelos próprios administradores, a cooperativa tornou-se uma das
maiores células subversivas, da cidade, onde comunistas e inocentes úteis se

2
Os modos gerais de operação da ideologia, bem como suas respectivas estratégias de construção simbólica se
encontram em Thompson, 1995, p. 82-88.
3
Sobre a política local na década de 1960, ver a monografia: FAVARIN, Magale. A política em Santa Maria
durante o segundo governo de Vargas- 1951-54, defendida no curso de Especialização em História do Brasil
da Universidade Federal de Santa Maria, em março de 1999.

194
irmanavam, para transformar a meritória instituição, em foco de alta periculosidade.

Em 17 de abril, os representantes dos setores vitoriosos em 31 de março organizaram a “Marcha


do agradecimento”, manifestação de homenagem à ação das Forças Armadas. Este ato movimentou a
cidade, inclusive com a decretação de ponto facultativo nos órgãos públicos.
No início do mês de maio, a Divisão de Infantaria revelou os nomes das primeiras pessoas
detidas. Nesta, o prefeito e o vice ainda seriam poupados. Em 8 de maio de 1964, o A Razão anuncia
que Lauda e Genro sairiam da prefeitura e a Câmara de Vereadores elegeria - de forma indireta- o
próximo prefeito. O presidente da Câmara –Waldir Aita Mozzaquatro - assumiu interinamente a
prefeitura, escolhendo seus novos secretários e nomeando os novos subprefeitos. Enquanto isso, o
reitor da Universidade de Santa Maria viajava seguidas vezes para os Estados Unidos, a fim de angariar
verbas para o ano de 1965.
Em 15 de maio, a Câmara de vereadores de Santa Maria elegeu para prefeito Miguel Meirelles,
médico, 62 anos, que representava a seguinte coligação: PSD, PDC, PL e MTR. Para vice, Francisco
Alvares Pereira.
Em 10 de setembro, o diário informa que teria sido decretada a prisão de Adelmo Genro, Paulo
Lauda e outros, inclusos na lei de Segurança Nacional, e continuavam sob auditoria os outros inquéritos
realizados no setor estudantil, inclusive com uma lista com nomes como João Gilberto Lucas Coelho e
Renan Kurtz. Os professores da rede estadual de ensino também não escaparam dos inquéritos e das
punições. Muitos foram aposentados e outros simplesmente afastados do exercício do magistério.
4 —
Em outubro o A Razão notícia: “Expurgo de professor da USM” Paulo Lauda, acusado de
organizador do Grupo dos Onze e Eduardo Martins de Oliveira Rolim, acusado de atos contrários ao
regime democrático (ambos da Faculdade de Medicina) foram demitidos de seus cargos. Além de perder
o cargo de prefeito, Paulo Lauda também teve que deixar de ser professor. O mesmo aconteceu com
seu vice, Adelmo genro, que era professor da rede pública estadual e foi demitido pelo regime militar. No
dia 10 do mesmo mês, saiu a lista com os nomes dos servidores que teriam aposentadoria forçada e
outros que foram absolvidos, num total de 150 processos apreciados pela comissão Especial de
Investigações instituída pelo governo do estado.
O primeiro aniversário da Revolução foi comemorado festivamente na cidade, através de uma
grande parada cívico-militar, que teria tomado conta das ruas centrais, e da aprovação pela Câmara local
de congratulações pelo primeiro aniversário da Revolução.

2. A comunização e a cubanização-sovietização – a construção do comunismo como “inimigo


interno”
Em editorial de 1964, o jornal A Razão classifica o comunismo como um “regime despótico,
5
inumano, anticristão” .
A fragmentação, onde relações de dominação podem ser mantidas, não unificando, mas
segmentando indivíduos ou grupos que possam ser capazes de se transformar num desafio real aos
grupos dominantes, dirigindo forças de oposição potencial a estes, é o modo de operação da ideologia
que se destaca, quando analisada a sustentação, por parte do jornal, da suposta comunização,
cubanização ou sovietização dos rumos políticos brasileiros. O ícone representativo desse modus
operandis da ideologia pode ser vislumbrado na criação de um inimigo interno ou externo: o comunismo
dentro do país e o comunismo internacional – ambos sendo retratados como maus e perigosos, contra
os quais os “verdadeiros brasileiros” são chamados a lutar. No caso do Brasil, pode-se analisar a
presença destes dois inimigos, que foram criados e, constantemente, alimentados pela difusão simbólica
do discurso construído pelo jornal A Razão.
Essa construção simbólica que Thompson, em sua hermenêutica de profundidade para
interpretação da ideologia, classifica como expurgo do outro, aparece estampada claramente nas
páginas do jornal A Razão. Salientando-se que, a racionalização como uma estratégia de construção
simbólica, está presente ao longo de todo o material analisado. Cabe aqui esclarecer, também, que os
termos bolchevização, cubanização e sovietização, utilizados ao longo do discurso, inserem-se dentro do
6
modo de operação da ideologia da dissimulação, com ênfase no deslocamento , onde termos de um
contexto são transportados para outro.
Em editorial, o jornal critica a posição de apoio a Cuba, sustentada pelo chanceler Araújo de
Castro, em declarações prestadas à imprensa em Brasília:

Disse que não mudou o pensamento do Brasil em relação a Cuba e que, na próxima

4
09/10/1964, Agência Meridional, Rio de Janeiro, capa.
5
04/01/1964, “O muro e a brecha”, editorial.
6
Op. Cit., p.83.

195
reunião do Conselho de Segurança da OEA, a nossa posição será contrária a qualquer
medida punitiva contra a ditadura castrista [...]. Fidel Castro reiterou, no aniversário da
revolução, que nada afastará Cuba, dos princípios do marxismo-leninismo. Só isto
bastaria para que o Brasil se desinteressasse pela sorte de Cuba, por fidelidade aos
princípios cristãos e democráticos que estão arraigados na consciência da esmagadora
7
maioria do seu povo.

Embasando-se no pressuposto de que, as ditaduras comunistas se configuram como estados


totalitários, cujas respectivas populações viveriam privadas de liberdades individuais, o jornal constrói a
ideia – oposta – de mundo livre, do qual fariam parte os países capitalistas e onde a liberdade e o
desenvolvimento, supostamente, alimentam-se mutuamente. Neste, ponto racionalização e expurgo do
outro aparecem como possibilidades de análise e fortalecem-se na construção do discurso ideológico
legitimador.

A economia no mundo livre registrou, em 1963, uma notável expansão, a contrastar com
as aperturas em que se viram e veem os Estados totalitários, melhor dizendo, os países
do bloco comunista. À parte algumas nações da América Latina, os demais Estados
democráticos tiveram um ano propício, com execuções orçamentárias regularmente
procedidas e ingressos apreciáveis, suficientes para o correto atendimento dos
8
compromissos e do custeio da máquina administrativa.

Racionalização e expurgo do outro, novamente, se complementam, no intuito de racionalizar


para legitimar, expurgar para fragmentar, visando, em última instância, a legitimação da ruptura político-
econômica que o Brasil viveria no ano de 1964. Ao mesmo tempo em que o discurso construído pelo
jornal A Razão apresenta uma imagem unificada do ocidente, e de um suposto mundo livre, o inimigo
seria representado pelo comunismo totalitário. E segue:

Na área que tem como centro político e econômico a União Soviética, as coisas
correram pessimamente, a tal ponto, que os chefes vermelhos, pondo o orgulho de lado,
confessaram de público o malogro de seus milaborantes planos e dirigiram patéticos
apelos ao detestado “mundo capitalista”, pois sem o pão desse mundo passariam a
jejuar.

Seria o mundo capitalista ocidental, em imagem unificadora, que estaria “matando a fome” do
mundo comunista oriental. Elaborar uma imagem negativa -e unificada- dos países que aderiram à
ideologia comunista, bem como das pessoas que a professam, mesmo em países democráticas e
capitalistas, fazia parte do processo de criação e alimentação do “monstro” do comunismo, através da
difusão da simbolização do diferente como perigoso e, portanto, como um inimigo comum ao, também
unificado através do discurso, “mundo livre”.
Pode-se interpretar, no mesmo sentido:

Os devaneios continuístas e ditatoriais que tumultuam o cenário político nacional


geralmente sob inspiração extracontinental, certamente estão verificando que seu
programa de subversão da ordem pública é impraticável: a consciência democrática
brasileira vem demonstrando capacidade magnífica para reagir às ações destinadas a
destruir o regime de liberdades individuais vigentes no País. [...] É preciso lembrar,
também, que a liberdade – que os comunistas reclamam para pregar a dissolução da
9
democracia – não existe na sua pátria intelectual, a União Soviética.

Segundo a cadeia de racionalização proposta pelo diário A Razão, ao longo do período


pesquisado, pode-se analisar que, os termos ditadura, comunismo e falta de liberdade estão geralmente
atrelados, ressaltando a ideia recorrente de que um golpe comunista desferido pelo presidente da
República João Goulart e seus assessores privaria os brasileiros de suas liberdades individuais.
Nessa perspectiva, a possibilidade da decretação de um golpe seria atribuída apenas ao governo e seus
“assessores comunistas”. Se a intervenção viesse por parte das Forças Armadas não poderia ser
classificada como golpe, pois segundo o jornal, seria uma “intervenção defensiva”.
Sob o título “Ninho de ratos vermelhos” o editorial de 29 de janeiro de 1964 trata da “infiltração
comunista” na Petrobrás, fato este que teria trazido consequências prejudiciais ao país, já que muito
dinheiro, segundo o jornal, teria sido roubado dos cofres públicos pelos comunistas, instalados neste
órgão federal:

7
09/01/1964, “Apoio à OEA”, editorial.
8
15/01/1964, “Prosperidade no mundo livre”, editorial.
9
25/03/1964, “Devaneios”, editorial.

196
O período em que esteve entregue ao sr. Francisco Mangabeira marcou o início da
anarquia na Petrobrás, caracterizada pelo predomínio dos grupos comunistas que ali se
instalaram, com o propósito indisfarçável de bater moeda fácil e abundante. [...] Milhões
e milhões de cruzeiros são despendidos para benefício gáudio dos comunistas que
estão aboletados em cargos de comando, sob o amparo dos sindicatos. [...] Ninguém
ignora que as autarquias e os organismos paraestatais constituem, hoje, os mais
descalibrados centros de corrupção da história administrativa do Brasil. A maioria dessas
entidades está sendo dirigida por espertalhões tirados das fileiras do PTB, com a
aprovação do Partido Comunista que, segundo se afirma leva para os seus cofres uma
parte considerável da roubalheira praticada. Podem roubar, contanto que deem uma
percentagem do roubo à caixinha vermelha.

Note-se que a fonte da informação foi velada, pois o trecho “segundo se afirma” não possibilita
ao leitor vislumbrar quem estava afirmando a respeito dessa “roubalheira” na Petrobrás. Esse recurso de
omissão do sujeito torna-se possível quando os verbos são colocados na voz passiva, e representa uma
estratégia de construção simbólica, pertencente ao modo geral de operação da ideologia classificado por
Thompson como reificação. “Os acontecimentos são apresentados sem um sujeito responsável pelo
10
fato”. Pode-se inferir que o resultado desta construção simbólica seria a descontextualização do fato
noticiado.
Ao associar a tática de Hitler à mesma utilizada por Fidel Castro em Cuba, constrói-se uma
racionalização que objetiva construir uma imagem negativa do comunismo, bem como dos países que o
representavam.

É, como se vê, uma ameaça igual as que têm por objetivo sustentar, em Havana, o
detestado traidor de Sierra Maestra, igual também as que Adolf Hitler proferia aos berros
para preparar os seus crimes, os seus latrocínios políticos, conseguindo com essas
ameaças manter a distância os que eram jurídica e moralmente obrigados a opor-se á
11
sua prepotência.

Os trechos que seguem procuram desqualificar a teoria comunista desenvolvida no Brasil, cuja
base vem do continente europeu:

Mas, limitadamente aberto ou inteiramente fechado, o “Muro da Vergonha”, com a sua


ruptura, foi significativamente condenado pelos autores. Pode impedir que os
inconformados com a sua condição de prisioneiros do detestado regime fujam das
12
trevas para a plena luz”.

A parte do globo que aderiu ao comunismo representava as trevas, que obscurecem o mundo
todo. Já a parte capitalista seria a luz, que poderia nortear os rumos com clareza e sem obscuridade. A
metáfora criada explicita bem a cadeia de raciocínio defendida constantemente nas páginas do A Razão
- onde o capitalismo seria a melhor ou única saída viável para as nações, já que somente dentro desse
regime o desenvolvimento poderia ser alavancado de forma plena.
O comício realizado dia 13 de março de 1964, na Guanabara, foi configurado e desconfigurado
pelo jornal, sob vários aspectos. O que permanece constante nos comentários é a associação direta ao
comunismo como mentor intelectual, e do governo brasileiro – João Goulart – como o patrocinador oficial
do acontecimento que alcançou imensurável projeção no contexto da época e que teria sido classificado
como o estopim da deflagração do golpe.

No comício da Praça Cristiano Otoni falou-se mais ou menos em português, mas o


subconsciente foi russo, um russo superado porque a própria União Soviética, farta de
tantos malogros causados pela estatização, ensaia a volta aos métodos que fazem a
grandeza dos povos livres, os povos que fornecem o pão que os próprios comunistas
13
comem.

Novamente, a racionalização defende que seriam os países capitalistas que alimentariam o


mundo socialista, enaltecendo a “função social” do ocidente e o “atraso social” do oriente comunista.

10
Op. Cit., p.81.
11
25/01/1964, “O inimigo comanda a fortaleza”, editorial.
12
04/01/1964, “O muro e a brecha”, editorial.
13
19/03/1964, “um carnaval na quaresma”, editorial.

197
3. Desenvolvimento da mentalidade de revolta
Em diversos momentos, em maior ou menor grau, o jornal lançava questões pertinentes ao
desfecho que o contexto em estudo viria a ter. O discurso construído pelo jornal A Razão, objetivava
contribuir para a legitimação da ruptura institucional. Paulatinamente, trabalharia com temas e incutiria
conceitos que, posteriormente, seriam utilizados pelo regime militar, a exemplo ditadura e intervenção
das Forças Armadas. Esses conceitos são construídos sob a égide da racionalização visando à
legitimação, do expurgo do outro visando à fragmentação, da simbolização da unidade visando à
unificação. Desta forma, estas simbologias constituem e corporificam o discurso ideológico legitimador
do jornal A Razão.

Estamos vivendo momentos de indisfarçável gravidade. A sensação do perigo está em


todos os espíritos. E o fato de as forças democráticas se virem na contingência de sair
às ruas para defender o nosso regime de liberdades individuais é uma amostra de que,
continuasse a omissão, os totalitários já teriam sepultado a democracia brasileira.
Felizmente esta possui vitalidade suficiente para sobreviver mesmo aos maiores
14
embates.

O jornal expõe a sua linguagem de maneira clara e direta. As palavras são articuladas de forma
a gerar um sentimento de revolta no leitor. O próximo passo seria transformar essa revolta em
articulação para a luta contra a causa maior dos problemas brasileiros, como fica claramente visível no
trecho a seguir:
Precisamos, isso sim, desenvolver o quanto antes a mentalidade de guerra, preconizada
pelo Deputado João Calmon. Guerra à baderna, guerra sem tréguas aos conspiradores
do “paredón”, aos torvos autores da “revolução com data marcada”, denunciada pelo
governador Ildo Meneghetti. Mas, sobretudo, guerra implacável ao arqui-inimigo à vista:
15
a inflação. Essa deve ser a palavra de ordem, a flama nacional para 1964.

Deste modo, lutar contra a inflação, que seria a causadora de tantos males à economia do país,
significaria lutar contra os maus governantes, que não teriam conseguido deter seus avanços. Ao se
declarar “guerra à inflação”, também se declararia guerra ao governo de Jango. Essa mentalidade de
revolta foi divulgada, insistentemente, pelo jornal A Razão no período em estudo.

O ano de 1964 deve, assim ser para o Brasil o ano da luta sem quartel contra a inflação,
em defesa do desenvolvimento econômico, da paz social e da sobrevivência do regime.
[...] Há uma questão por demais séria para as atuais gerações – os destinos da Nação –
que não tolera transigências nem acomodações com o mal inflacionário. Devemos
repelir os engodos da demagogia e os passes de mágica dos falsos líderes do
16
passionalismo caboclo.

Ao evocar a “sobrevivência” do regime, o jornal tenta mobilizar, ideologicamente, a população e


também as Forças Armadas, incitando os “democratas” e defensores dos “verdadeiros interesses da
Nação”, a lutar contra a infiltração do inimigo. Mas, mesmo assim, “ninguém de bom senso pensa em
arrebatar o poder das mãos do presidente da República, embora todos vejam e saibam que o está
17
exercendo em detrimento dos mais sagrados interesses do Brasil”.
Ao se intitular porta-voz das Forças Armadas, o jornal emitiu, em tom de comunicado, como os
setores das três armas estariam se articulando diante do contexto de turbulências políticas. Cita-se a
crônica de Oscar de Andrade, intitulada “A consciência militar”, onde pode-se analisar, com maior
clareza, qual seria a possível posição tomada:

Podemos afirmar a todos os brasileiros que existe uma consciência firmada dentro dos
quartéis, de absoluta respeito à lei. Comandantes e comandados comungam com o
mesmo pensamento de acatar a autoridade constituída, mas nunca estar a serviço de
quem quer que seja para ferir à Carta Magna. Consideramos isso o amadurecimento de
consciências que não se deixam empolgar por paixões. O soldado de hoje é um
esclarecido, Não pode nem deve cumprir ordens contrárias à sua missão, tão bem
definida nos regulamentos e no próprio compromisso que assumiu quando ingressou
18
nas classes armadas.

14
“O inimigo comanda a fortaleza”, editorial.
15
03/03/1964, “A flama para 1964”, editorial.
16
03/01/1964, “A flama de 1964”, editorial.
17
24/01/1964, “Petulância vermelha”, editorial.
18
23/01/1964, “A consciência militar”, Oscar de Andrade, crônica, contracapa.

198
Exaltando o dever sagrado das Forças Armadas de salvaguardar a unidade nacional, a crônica
esclarece que isso não fará das três armas fantoches nas mãos de propósitos contrários ao bem do país.
Ou seja, mesmo respeitando o presidente da República como chefe supremo da nação, se este vier a
cometer atos ilícitos que representassem desrespeito à Constituição, seria impedido, pois acima das
vontades do presidente estaria o bem maior da nação, identificado através da manutenção da unidade
nacional. A sociedade civil começaria a se organizar, criando movimentos de revide às manobras
governamentais. Desses movimentos emanariam manifestações diversas, como por exemplo, a Marcha
da Família realizada em São Paulo.

A democracia vale a luta, o sacrifício e esforço que cada homem ou mulher fizer para
preservá-la. Todos devem prezar a liberdade pois só os que têm vocação para a fraude
a menosprezam. Juntemos as mãos sem ódio, mas sem covardia para que a nossa
pátria continue livre. O objetivo do movimento não é o combate histérico ao comunismo,
[...] pois as reformas são necessárias também para o bem-estar do povo brasileiro. O
que será apregoado são as reformas dentro da justiça social e através do clima de
19
liberdade e da democracia.

Mais e mais acusações são expostas nas páginas do jornal A Razão, no intuito de não deixar
dúvidas na população de que governo brasileiro estaria cada vez mais perto do desfecho deste período
de dúvidas e “trevas”. A ruptura institucional estaria próxima.

Considerações finais
A análise do jornal A Razão baseou-se na busca das construções simbólicas e de seus possíveis
significados, dentro da estruturação do discurso, sendo que entendemos o discurso como uma forma de
comunicação, que, por sua vez, objetiva divulgar uma ideia que pode representar os interesses do órgão
comunicador e/ou de quem o representa.
Como afirmou Motter (1990, p.58): “o poder lhe confere a palavra e a palavra lhe assegura o
poder”. Nesse sentido, a manipulação das informações se transforma em manipulação da realidade, haja
vista a dimensão alcançada pelos veículos de comunicação principalmente a partir do século passado. O
jornal também participa do fazer da História, podendo frear ou estimular movimentos sociais. Na
atualidade, os veículos de comunicação se apresentam como sujeitos constituídos, pois possuem um
status, um nicho e uma atuação que já se incorporou à vida moderna. Um jornal não existe deslocado de
um contexto histórico-ideológico. A História nos traz diversos exemplos de momentos em que jornais e
revistas atuaram como agentes ativos, formadores de opiniões, padrões culturais, políticos e sociais.
O jornal, utilizando-se de sua função de comunicador, tendo como espaço de visibilidade a
sociedade interiorana do Rio grande do Sul, particularmente Santa Maria, empreendeu a criação de
diversas formas expositivas da legitimação pretendida. Essas formas, analisadas á luz da metodologia
de interpretação de Jhon Thompson, nos permitiram concluir que, o jornal A Razão contribuiu,
ideologicamente, para legitimar a ruptura institucional de 1964 e referendar o Estado militar que veio a
seguir.
Não existe uma rigidez na estrutura dos discursos. A conduta é definida pela circunstância.
Assim, os meios de comunicação de massa tornaram-se mais eficientes não na criação de novos valores
ou padrões de comportamento, mas no reforço dos existentes e aceitos na sociedade. O conteúdo
dessas mensagens buscou, sobretudo, não impossibilitar ao indivíduo a auto-compreensão de seu papel
enquanto sujeito histórico, mas sim, construir uma dada versão do contexto em questão, a fim de que a
partir deste, pudesse delinear quais seriam as aspirações deste sujeitos.
O jornal A Razão classificou os fatos de 31 de março como uma Revolução cívica, contrariando o
conceito de ditadura militar. O estudo da ideologia, empreendido neste trabalho, exige que perguntemos
se o sentido construído e usado pelas formas simbólicas serve ou não para manter relações de poder
sistematicamente assimétricas. No caso do jornal A Razão, o sentido mobilizado pelo discurso contribuiu
para legitimar, no campo ideológico, a Revolução cívica e a nova ordem organizacional do país surgida a
partir desta.

Referências Bibliográficas:
ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,

19
31/01/1964, “Rede da Democracia – Sobrevivência do regime exige de todos a vigilância e o sacrifício”, Agência
Meridional, Rio de Janeiro, crônica, contracapa.

199
2003.
ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1987). Petrópolis: Vozes, 1984.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995.
BEBER, Cirilo Costa. Santa Maria 200 anos – História da economia do município. Santa Maria: Pallotti,
1998.
CAPELATO, Maria Helena. A imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1998.
FILHO, José M. da Rocha. Universidade para o desenvolvimento. 1973.
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1999.
LABIN, Suzanne. Em Cima da Hora – A Conquista Sem Guerra. Rio de Janeiro: Record, 1963.
MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984.
MOTTER, Maria Lourdes. História e imprensa. In: Revista Comunicação e Artes, Ano 15, n.24, set/dez,
1990.
RUDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.
TAVARES, José Antônio Giusti. A estrutura do autoritarismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação
de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
__________. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
Jornal utilizado: Jornal A Razão – de 1/1/1964 a 30/4/1965.

200
V – Recursos discursivos e discussão conceitual
acerca da Ditadura
O discurso da Ditadura na obra de Elio Gaspari

*
Carla Luciana Silva

Resumo: O texto trata da concepção de Ditadura presente na obra de Elio Gaspari, especialmente A
Ditadura Escancarada. Busca mostrar a forma como os movimentos de resistência à ditadura são
mostrados, de forma desqualificadora. Mostra como o uso de determinados recursos discursivos
permitem a construção de sentido não apenas para o projeto da ditadura como para o projeto dos
resistentes, sempre vistos como “terroristas”.

Neste texto busco apontar elementos sobre as relações da grande imprensa brasileira com a
Ditadura brasileira, tanto as empresas de comunicação, como os jornalistas. Nesse sentido vem sendo
desenvolvidas pesquisas sobre a revista Veja, a revista Visão, a revista Isto É e o jornal Folha de São
Paulo. A partir do referencial gramsciano, buscamos perceber a imprensa na sua complexidade: uma
empresa capitalista; um agente concreto do processo político, podendo ser um aparelho privado de
hegemonia ou mesmo tendo atuação como partido. Cada caso em estudo é diverso e precisa ser
estudado nas suas especificidades.
Recentemente publicamos uma leitura sobre o jornalista Alexandre Garcia, mostrando suas
1
vinculações com a Ditadura e também seu apoio incondicional à mesma, mesmo depois do seu fim.
Contribui o jornalista para a afirmação no senso comum da idéia de que a Ditadura brasileira foi “branda”,
ou seja, coadunando com a defesa da “ditabranda”, termo usado em 2009 pelo jornal Folha de São
Paulo, conceito que estamos buscando definir à luz do seu uso histórico.
O objeto desse texto específico é o trabalho do jornalista Elio Gaspari, mais propriamente sua obra
2
A Ditadura Escancarada. Na leitura busco a forma como a Ditadura é interpretada, e mais propriamente,
a forma como a luta armada é tratada.
Algumas questões servem de guia na problematização do livro. Em primeiro lugar, a visão que
Gaspari está buscando consolidar sobre o que foi a ditadura, mais propriamente sua tese de que a
ditadura foi uma grande “anarquia”. Em segundo lugar, o seu papel ideológico, e a forma específica com
que faz uso do discurso, dando sentido às expressões próprias da ditadura, mas não apenas, também às
expressões e significados da própria esquerda, a partir de seu próprio (de Gaspari) referente. Por fim, o
próprio sentido das ações da luta armada e da possibilidade concreta de reação à ditadura e de um
projeto revolucionário no Brasil. Transcende-se portanto à luta armada, pensando as formas distintas de
resistência.

Sobre a obra de Elio Gaspari


Não é necessário atestar a importância do texto de Gaspari, porque mesmo aqueles que não
gostam dele se vêem obrigados a ler e discuti-lo. Tem se tornado uma referência na historiografia que
tem aceitado esse tipo de texto de forma acrítica, em nome de um “texto bem escrito”, fácil de ler. É
interessante que o texto de Gaspari é uma metanarrativa, busca interpretar ao seu modo a história
recente do Brasil. Mas ele é recuperado na onda editorial que o coloca como um texto “leve”, sem a
marca explicativa dos historiadores preocupados com a totalidade.
É necessário lembrar que Elio Gaspari escreve dentro de um contexto, e esteve desde sempre
envolvido com o próprio regime militar por escolha própria. Jornalista da editora Abril, optou por tornar-se
amigo de suas fontes, ganhar delas confiança e nelas confiar. Assim conseguiu chegar em Ernesto
Geisel e em Golbery do Couto e Silva, as grandes fontes inspiradoras de sua obra. Há aqui dois
problemas, um deles é a relação que um profissional de imprensa estabelece com as fontes e com a
realidade política, os possíveis favorecimentos que podem daí advir para si e para sua empresa. O outro
é o fato de que os documentos históricos aos quais teve acesso no seu trabalho foram privilégios
recebidos diretamente dos seus produtores. Fontes históricas, sobre a história política e pública que
foram transformadas em material de uso particular. Mesmo que os livros tenham sido publicados
efetivamente nos anos 2000, seria equívoco achar que não foi fruto da relação do autor com as fontes

*
Docente do Curso de História e do Programa de Pós Graduação em História da UNIOESTE.
1
SILVA, Carla. Imprensa e ditadura: a trajetória intelectual de Alexandre Garcia. Antíteses. Goiania. N. 10, 2011,
Issn 1808-9194, p. 106-124.
2
GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. As ilusões armadas. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

203
3
ainda durante a ditadura, “uma amizade de quase trinta anos”.
Por fim cabe dizer que, de fato, sua obra é relevante, é necessário estudá-la, seja pelas
interpretações que propõe, pelos documentos que traz ou ainda pelo fato de que está se tornando
referência historiográfica e para o ensino de história, mesmo que o autor tenha alertado que sua intenção
não era escrever uma história geral da ditadura:

Em nenhum momento passou pela minha cabeça escrever uma história da ditadura. Falta
ao trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de dois
personagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram nos
21 anos de regime militar. O que eu queria contar era a história do estratagema que
4
marcou suas vidas. Fizeram a ditadura e acabaram com ela.

Ora, aqui uma incoerência. Se não tiveram tal preponderância, porque são a inspiração e o guia de
leitura, pelo menos dos dois primeiros volumes de sua obra? Há aqui também uma questão relevante,
que nos mostra a tese que Gaspari desenvolve ao longo de todos os seus quatro livros: a de que a
ditadura terminou por obra e dedicação dos próprios ditadores, chegando a afirmar que Geisel “acabou
5
com a ditadura”, o que é um absurdo insustentável, mas parte da lógica de que ele teria amenizado a
ditadura acabando com o AI-5, e que “acabara com a censura à imprensa e com a tortura de presos
6
políticos, pilares do regime desde 1968”. Essa fala em primeiro lugar faz de conta que a Ditadura não
começara em 1964, e desconsidera o fato do Pacote de Abril ter decretado recesso no Congresso e
alterado significativamente as regras da sucessão presidencial, mantendo a ditadura por ainda mais
7
tempo. E sem falar ainda da permanência da Lei de Segurança Nacional que mantinha os poderes da
Ditadura através da Doutrina de Segurança Nacional, questão que é também questionada por Elio
8
Gaspari. O que se dirá do fato de que a tortura teria “acabado” durante o período Geisel, sendo que o
próprio general admitia a tortura?

O que foi a ditadura


A forma que Gaspari qualifica a ditadura tem a ver com a forma que constrói uma interpretação
para o seu fim. Mas há um detalhe tangenciado pelo autor, que é a existência de projetos sociais contra-
hegemônicos distintos, tanto no início da ditadura como no seu final. Há uma sistemática insistência em
9
desqualificar o que foi o governo de João Goulart e os projetos sociais ali colocados, ao mesmo tempo
em que posteriormente se desqualifica o conteúdo das lutas sociais pelo fim da ditadura.
O argumento de que “Jango era um fraco” e que seu governo era uma completa desordem aprece
em Gaspari, o que já discutimos em outro momento. Mesmo assim, costura-se um argumento de que
havia uma revolução em curso e que portanto o golpe foi um “contra-golpe”, justificando a ditadura. Mas,
depois, quando vai explicar a luta armada, será insistente em dizer que a contestação à ditadura era
inexistente e que aqueles que lutaram não tinham qualquer projeto válido, que colocar a pauta da
revolução no debate era uma esquizofrenia “esquerdista”. Quando, no processo social que levou ao fim
da ditadura se recoloca o problema da revolução, o debate “socialismo ou democracia”, esse debate
será apagado por obras como a de Gaspari. Ou seja, o que se está construindo é uma versão falsa que
nega que tenha havido pensamento revolucionário no Brasil pré-64; desqualifica e mostra o
aniquilamento que as forças de repressão impuseram aos que lutaram contra a ditadura; ignora que as
lutas sociais dos anos 1980 colocavam na pauta uma alternativa socialista. É a negação da luta de
classes e apassivação dos conflitos reais. Segundo Gaspari,

A Doutrina de Segurança Nacional serviu também de conduto para racionalizar tudo o


que aconteceu de ruim na ditadura. Quando essa mesma ditadura começou a se retrair,
jogou-se fora a demonologia militar e entronizou-se a beatificação das massas. Cada
recuo do regime foi entendido como consequências de uma pressão de forças libertárias
da sociedade. A fé em que ‘o povo unido jamais será vencido’ é insuficiente para explicar

3
GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada. As ilusões armadas. São Paulo, Companhia das Letras, 2002. p. 15.
4
Idem, p. 20.
5
Idem, p. 35.
6
Idem, p. 36.
7
MACIEL, David. A argamassa da ordem: da ditadura militar à Nova República. 1974-1985. São Paulo, Xamã,
2004, p. 149.
8
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. Op; cit, p. 39.
9
Para uma visão crítica da crise dos anos 1960 e do governo de Jango, ver: MELO, Demian Bezerra. Crise
orgânica e açõa política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5/7/1962). Tese de
Doutorado. UFF, Niterói. 2013.

204
10
mudanças ocorridas antes que aparecessem, como tais, as pressões.

Trata-se, obviamente de optar por um motor histórico, as lutas sociais ou a vontade de um ou dois
homens iluminados. Mais que isso, Gaspari reitera que o regime se desfez por inépcia dos militares:
“Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery desmontaram a
ditadura, a resposta é simples: porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da desordem, era
11
uma grande bagunça”. Para sustentar esse argumento será fundamental uma utilização específica do
discurso histórico, construindo sentidos para seu projeto de hegemonia, e como tal, atribuindo sentidos
para qualquer projeto de contra-hegemonia que se colocar no caminho.

O discurso e a ideologia
Elio Gaspari não deixa qualquer dúvida sobre o papel da tortura na Ditadura, que inclusive ele
coloca como um pilar do regime (embora diga que Geisel tenha acabado com ela), negando a tese de
12
que “a tortura era produto da atividade de agentes desautorizados e passíveis de punição”. Segundo
ele, “a tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade dos
13
militares da época, e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos ditatoriais”. No
livro especialmente dedicado ao contexto da repressão, Gaspari quando fala do contexto da tortura
intitula “a praga”, portanto algo fora de controle, algo natural, fruto da reprodução indesejada de algum
ser vivo que ameaça e destrói. A dúvida é qual seria a praga, se a existência da tortura ou daquilo que a
justifica sob a lógica da ditadura, ou seja, de opositores do regime. Isso porque o foco do seu texto não é
a tortura em si, mas a sua existência, a estrutura que lhe permitia existir, sempre se referindo às
ameaças: “a ação policial da ditadura foi rotineiramente defendida como resposta adequada e necessária
14
à ameaça terrorista”. Ao deixar claro, de forma irrefutável a tortura, Gaspari traz junto como natural que
ela se opunha ao “terrorismo”, sempre associado aos opositores do regime. É uma forma sutil de atribuir
um sentido à ação dos torturadores, afinal, haviam “terroristas”, sobretudo publicando seu livro num
momento histórico em que o termo terrorista estava no auge do debate público com o atentados das
Torres Gêmeas de Nova Iorque em 2001. Há, segundo Gaspari um certo exagero: “no caso brasileiro,
15
faltou ao surto terrorista a dimensão que lhe foi atribuída”, ou seja, o problema fica apenas no exagero
da tortura e alem disso, de novo, o surto terrorista existiu, na sua reprodução da fala oficial.
Uma característica do discurso ideológico hegemônico é a sua negação enquanto ideologia,
atribuindo ao discurso opositor a pecha de ideológico. O capitalismo se coloca como vencedor histórico,
livre de ideologia, mas contestações a ele são mostradas como delírios ideológicos.
Gaspari ouve defensores e torturadores. Mostra que há uma rede social de apoio à tortura, não
nega de forma alguma sua existência. No entanto, quando fala de torturados não faz qualquer distinção
entre o tipo de ação cometida que leva à tortura, são simplesmente “terroristas”. Por isso traz várias
páginas sobre o caso da Argélia, como a tortura foi utilizada para debelar a guerrilha, lá “o pau cantou, e
16
o terrorismo sumiu”.
Gaspari deixa clara a lógica:

O que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona. O preso não quer falar,
apanha e fala. É sobre essa simples constatação que se edifica a complexa justificativa
17
da tortura pela funcionalidade. O que há de terrível nela é a sua verdade.

Portanto, está concluído, é terrível mas... funciona. E o problema, segundo ele, é que “os militantes
são treinados para resistir aos interrogatórios, para dar tempo a que seus companheiros se ponham em
18
segurança”, citando Jarbas Passarinho. E, nas palavras do próprio Gaspari, mostra como a esquerda,
mais propriamente o PCB teve um papel nesse processo: “expulsou diversos dirigentes que, uma vez
capturados, contaram aos seus torturadores segredos da organização”, citando Jacob Gorender: “são
mais aptos a resistir à tortura os militantes que interiorizaram a ideologia socialista e fizeram dela sua
norma moral”. Há, dessa forma, uma divisão de responsabilidade. Além do torturador seria responsável o
partido que ensina a resistir e daquele militante que obedece, que aceita uma dada moral. Se falassem
logo seria mais fácil e menos “dolorido”. O passo seguinte é apresentar a lógica dos que defendem a

10
Idem, p. 40.
11
Idem, 41.
12
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, p. 285.
13
Idem, p. 13.
14
Idem, p. 17.
15
Idem, p. 18
16
Idem, p. 31.
17
Idem, p. 37.
18
Idem, p. 38.

205
tortura:

A proposição é curta: imagine-se um avião cheio de crianças no qual se saber que há


uma bomba. Ela explodirá dentro de duas horas, e acaba de ser preso o terrorista que
com quase toda a certeza sabe onde ela foi escondida. Ele se recusa a falar. (...) parece
19
preferível tortura-lo.

Ele conclui a questão dizendo que se houvesse de fato a bomba, “poucos seriam os tribunais do
mundo capazes de condenar o torturador”. Ora, é uma falácia esse argumento, porque se a tortura fosse
autorizada, ela seria desde logo, legal, portanto nenhum torturador iria a julgamento por isso. Há,
portanto, uma apropriação de discursos e uma disputa de sentidos que mistura tudo e faz tudo parecer
lógico e possível, inclusive a tortura, inclusive a ditadura.

A luta armada
Quando passa a apresentar mais claramente os casos de tortura, Gaspari vai adentrando no
campo da luta armada, utilizando de bibliografia historiográfica e criando um quadro de “vitórias” e
“derrotas” dos militantes. Chega inclusive a narrar algumas mortes. Mas não dá voz ao projeto, não dá
voz ao que justificava a ação, usa para isso a expressão militar “guerra revolucionária”, dentro da lógica
da Segurança Nacional.
São incontáveis as vezes que Gaspari fala em “terrorismo” e “surto terrorista”. Quando fala de um
20
refluxo do movimento, é sarcástico: “os combatentes refluíram para lamber as feridas”. Ora, quem
lambe ferida é cachorro, animal, guerrilheiro. Terrorismo, portanto aparece como uma palavra natural. Já
21
“expropriações”, nas poucas vezes que aparece está entre aspas.
Se não há motivo, não há projeto que embase a ação de resistência, a solução é romantiza-la.
Assim define Gaspari:

Ao longo de 1969 as organizações esquerdistas brasileiras que se lançaram em atos


terroristas foram submetidas ao primeiro grande teste que a existência lhes reservava. Na
infância de sua formação, qualquer grupo revolucionário beneficia-se da falta de
informações da polícia, da capacidade de surpreender seus alvos e do apoio de uma rede
de militantes suja fidelidade é proporcional à segurança que lhe faculta a mística do
segredo da organização. É uma fase de esplendor, na qual o romantismo dos primeiros
tiros se confunde com a sensação de onipotência oferecida pela perplexidade do inimigo.
22
Parece ser a prova factual da clarividência da opção política.

Depois disso, reorganizada a repressão, “já não se organizam como a revolução precisa, mas
como a repressão condiciona, produzindo uma rotina de gato-e-rato”. Há uma permanente
descaracterização e desrespeito à posição da luta armada enquanto uma tentativa de resistência contra-
hegemônica.
Após mostrar alguns intentos de sucessos da resistência, quando Gaspari é impiedoso com a
ineficiência da repressão, falando do seqüestro do embaixador Elbrick, Gaspari conclui: “a tigrada
23
miou”. A ação é considerada espetacular, desmoralizante para o regime, humilhante. É portanto, uma
questão quase sentimental. O passo seguinte é descaracterizar os resistentes, que estariam apenas
“lutando pela sobrevivência”, sem conseguir ampliar suas bases ou avançar posições.
O texto é rico em citações advindas da imprensa, sobretudo da revista Veja. São citadas como
fonte, sem questionamento. Mostra, de forma indubitável a crescente de mortes dos “esquerdistas”, outro
termo usado como natural e que é profundamente preconceituoso. O mais intrigante é que Gaspari
insiste em dizer que o que gerou o aumento da repressão, da tortura e das mortes é a “anarquia” e
“desordem” militar, quando tudo o que ele mostra aponta o contrário, para um sistema ordenado,
orquestrado e assumido internamente.
Quando fala de Carlos Marighella, Gaspari torna mais clara sua posição sobre a guerrilha. Para o
autor, Marighella era mais que nada um propagandista, que “em declínio” usava de todos os meios para
parecer forte, mas que era um incompetente a julgar pela apresentação que ele faz do Manual do
guerrilheiro urbano, considerado pelo autor um “documento triunfalista, desordenado. Sua
grandiloqüência escondia uma concepção primária de organização”. Sua figura é sintetizada como um
“personagem radical, mistura de escoteiro e agente secreto, era um adereço propagandístico”, cheio de

19
Idem, p. 43.
20
Idem, p. 49.
21
Idem, p.56.
22
Idem, p. 57.
23
Idem, p. 97.

206
24
“erros e omissões incompreensíveis”. Aqui percebemos uma outra característica ideológica do discurso
de Elio Gaspari: ele avalia os atos da esquerda, aponta erros, critica opções, como se fosse ele parte
autorizada por esse mesmo projeto para dar opinião. No fundo, é como se tratasse de uma guerra em
que todos tinham a mesma intencionalidade:

As organizações de esquerda e a máquina repressiva do governo tinham um interesse


comum: assegurar a continuidade da ameaça terrorista negando que a morte de
Marighella fosse resultado do abalo da estrutura da ALN. Senão, uns ficariam sem
25
evolução e os outros, sem ocupação.

Era como se fosse uma retroalimentação, guerrilheiros e repressores precisam um do outro, o


resto não existe, não há sociedade nem interesses políticos. Do ponto de vista da guerrilha seria apenas
26
obra do “mestre da propaganda”, Marighella.
O presente texto buscou apresentar, ainda que brevemente, a interpretação de Elio Gaspari sobre
a ditadura, seus condicionantes, seus sujeitos e seu projeto. Gaspari foi escolhido como objeto da
análise pela importância de sua obra, lida e vista por muitos como uma “nova forma” de fazer história.
Buscamos mostrar que a concepção de Gaspari sobre a ditadura reproduz a lógica da própria ditadura.
Ele trata de forma desigual suas fontes, reproduzindo como verdade o discurso dos generais e
questionando a intencionalidade das falas resistentes. Há muito ainda a ser pesquisado sobre as
relações entre os jornalistas, a imprensa e a ditadura brasileira. Mas está muito claro que boa parte
dessas relações foram de franco colaboracionismo, seja por afinidade ideológica seja por interesses
marcadamente econômicos.

24
Gaspari, A ditadura escancarada, op. Cit. P. 144.
25
Idem, p. 156
26
Marighella foi ostensivamente retratado na revista Veja, e sua morte estampada e comemorada pela grande
imprensa.

207
Entre Civis e Militares: Conceitos e Versões do Golpe e da Ditadura Pós-1964 no Brasil.

1
Yuri Rosa de Carvalho
2
Diorge Alceno Konrad

Resumo: Este artigo tem a finalidade de discutir as diferentes conceituações e caracterizações sobre o
Golpe e a Ditadura iniciada em 31 de março de 1964. Para além de uma discussão meramente
terminológica, que vise apenas identificar as diferentes representações presentes nos discursos ao longo
do tempo, temos o objetivo de entender qual conceito sintetiza melhor a essência do Golpe e da
Ditadura, sua expressão de dominação política de classe, sua relação com o o capital estadunidense,
sua conexão com outras ditaduras do Cone Sul; em todas suas contradições. Este esforço se dá no
sentido de melhor identificar a intensa disputa ideológica do presente pela memória sobre o período,
quando diferentes grupos sociais ou buscam legitimar seu status quo ou questionar a falta de respeito
aos Direitos Humanos praticado na época.
Palavras-chave: Ditadura Brasileira – Golpe Civil-Militar – Classes Social.

Abstract: This article aims to discuss the different conceptualizations and characterizations about the
Coup and the Dictatorship started in March 31 of 1964. To beyond a purely terminological discussion, that
seeks only identifying different representations present on the speeches over time, our objective is to
understand which concept best summarizes the essence of the Coup and the Dictatorship, its expression
of political class domination, their relationship with the U.S. capital, its connection with other dictatorships
of the South Cone, in all its contradictions. This effort takes place in order to better identify the intense
ideological struggle that takes place in the present by memory on the period where different social groups
or seek to legitimize their status quo or question the lack of respect for human rights practiced at the time.
Keywords: Brazilian Dictatorship – Civil-Military Coup – Social Class.

Introdução
Tem-se acalorado recentemente o debate em torno do caráter da Ditadura que se iniciou no dia
31 de março de 1964 e acabado, como convencionalmente tem-se dito, no ano 1985. Isso se deve
graças ao novo fato político criado pela presidente Dilma Roussef ao oficializar em novembro de 2011 a
Comissão Nacional da Verdade, a qual, recentemente, teve seus membros indicados, visando investigar
violações de direitos humanos no período por parte dos agentes de Estado.
Logo, esta Comissão tem sido questionada por diversos setores da sociedade brasileira, muitos
próximos daqueles que tiveram algum tipo de participação nos crimes cometidos naquela época,
principalmente os militares. De outro lado, faz-se pressão de setores populares comprometidos com a
luta pelos Direitos Humanos para que o caráter da Comissão seja o de punição aos agentes
relacionados com torturas, assassinatos, sequestros, estupros e etc.
Nessa luta pela memória do período, vemos todo tipo de caracterização, tanto do sistema
político compreendido naquele tempo, como das próprias relações de poder que se deram a partir do
Estado. Por isso, a elaboração conceitual que defina o pós-1964 é uma questão política, e dependendo
do lado em que apareciam as forças sociais no espectro político da época, diferentes nuances podem se
apresentar hoje.
Podem-se perceber várias definições e debates em tornos delas: foi uma Ditadura ou não? Um
sistema autoritário? Um “regime brando” que, em pontos específicos, como na repressão política, se
excedeu? Uma burocracia tecnocrata que impôs um projeto autoritário, mas modernizante? Que outras
possibilidades existem?
O papel do historiador no atual contexto é buscar atualizar, se assim for necessário, os conceitos
que por ventura estejam socialmente defasados, ou por não responderem mais ao processo histórico a
que se refere (em decorrência do surgimento de novas fontes, por exemplo), ou resgatar, se for o caso,
interpretações feitas à época que, por alguma razão, não vingaram historiograficamente, mas que, hoje,
1
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisa
realizada com o auxílio da bolsa CAPES. Contato: yuri.rc@gmail.com (55)9654-6905.
2
Professor Doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente é
Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria. Contato:
gdkonrad@uol.com.br, (55) 9971-4703

208
havendo o distanciamento temporal possam responder o que até agora não se conseguiu resolver de
maneira satisfatória.
Esta não é meramente uma discussão linguística. Não pretende-se fazer aqui uma síntese das
diferentes formas utilizadas nos discursos ao longo do tempo para caracterizar o estado de coisas que
se deu no pós-1964. O objetivo é demonstrar como os diferentes conceitos correspondem a diferentes
posições político-ideológicas, evidenciando aproximações e distanciamentos, buscando a melhor chave
explicatória que defina a essência da formação social brasileira, em suas contradições.

Autoritarismo e Eufemismos
Ao se tratar do processo político iniciado em 31 de março de 1964, com o Golpe articulado por
militares, setores civis conservadores e a pressão/articulação do capital estadunidense, nos deparamos
com vários conceitos interpretativos.
O que permeia grande parte das discussões é o conceito de “autoritarismo”. Este conceito se
mostra ardiloso, pois tem sido base para uma gama de definições que reproduzem ideologicamente
posições dos interlocutores que se utilizam desse recurso.
José Antônio Giusti Tavares (1982) defende a hipótese de uma estrutura autoritária tipicamente
brasileira. Para ele, 1964 é a continuação de um processo iniciado com a crise da República Velha, na
qual o Estado, enquanto potência burocrática racional legal, se forma sob o que ele chama de “República
Autoritária Populista”, se colocando acima dos conflitos sociais e fazendo o que historicamente a
burguesia deveria fazer: impor um “padrão nacional burguês de sociedade”, desenvolvendo o
capitalismo.
Para o autor, um processo notadamente “bismarckiano”, pois repetiria um modelo criado no
processo de unificação alemã na segunda metade do século XIX, no qual o Estado substitui a burguesia
no seu papel histórico, desenvolvendo as forças produtivas capitalistas. Esta via “bismarckiana” levaria
consigo a gênese do autoritarismo político moderno no Brasil, uma estrutura que se ergueu com a
reorganização do Estado no pós-1930, e que novamente se fazia presente com os militares de 1964.
Além disso, uma segunda corrente, a via “bonapartista” também se mostraria presente no caso
brasileiro. Frente à crise das classes dominantes hegemônicas de se sustentar seu projeto político,
criando um “vazio de poder”, crescentemente pressionado por um proletariado cada vez mais
revolucionário frente as fissuras desse sistema e a contínua fragmentação das coalizões entre as
classes e frações de classe; levam ao poder uma ditadura autoritária tanto no caso dos Bonaparte, na
França de Napoleão e seu sobrinho Luís, quanto no Brasil de João Goulart.
Consolidado o novo “regime”, assim como na França, houve um forte incentivo industrial e
crescimento econômico, segundo Tavares, apesar do claro “recuo” político que as classes dominantes
permitiram ao se suicidar politicamente pra garantir de maneira autoritária seus interesses.
Ainda, de acordo com o autor, os militares em 1964 viam-se como “pretores” da sociedade, moderando-a
de acordo com o que entendiam ser os interesses da Nação, rompendo este padrão, como pensado por
Alfred Stepan (1974), por entenderem que, frente ao contexto de “estatismo autoritário” da deposta
“República Populista”, deviam rever seu papel político e não intervir de maneira pontual, mas
permanente, mesmo que isso contrariasse uma suposta postura liberal do primeiro Ditador a frente do
executivo, General Castelo Branco, como afirma Tavares.
O poder instituído teria se orientado por um “pragmatismo autoritário”, se legitimando pela
eficácia, na “competência tecnocrática” daqueles que seriam a elite política no comando.
Apesar de não ter tido muito eco no mundo acadêmico, José Tavares sintetiza amplo pensamento social
sobre o período, se detendo a modelos pré-concebidos de orientação sobretudo de referência teórica
weberiana e seus tipos ideais e elementos aparentes. Aqui, o papel dos militares se destaca e o
autoritarismo aparece quase como suis generis brasileiro. Esteve presente desde a origem, para o autor,
com o Movimento de 1930.
Assim, há uma suposta tradição histórica autoritária do Estado brasileiro e, inerentemente, da
“sociedade brasileira como um todo”. Esta “cultura política autoritária por natureza”, pretensamente
histórica, acaba por ignorar as resistências e aspectos singulares da dominação política do período.
Por esse viés, “Regime Militar” será o conceito chave amplamente favorecido, pois oculta
práticas ditatoriais, pulverizando o golpismo em padrões deste “autoritarismo” naturalizado. Desta forma,
Tavares referencia o período do pós-1964 como “Autoritarismo Burocrático-Militar”.
“Autoritarismo” passa ser amplamente enfatizado não só na historiografia como de maneira geral
pela imprensa brasileira. O entendimento é que o “regime militar” foi autoritário e que o Ato Institucional
Nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que fechou o Congresso e retirou direitos jurídicos civis, um golpe de
militares mais radicais, um processo comumente chamado de “golpe dentro do golpe”, no qual o uso da
tortura, o assassinato de opositores políticos e o aprofundamento da censura passaram a ser mais
intensificados e abrangentes. Assim, em 1979, com a Lei da Anistia, já ter-se-ia um processo de
redemocratização em andamento e novamente uma relativização do “autoritarismo exacerbado”.

209
Alguns autores de destaque flertam com estas definições. O jornalista Elio Gaspari (2002),
reconhece o autoritarismo político dos militares e acompanha a definição mais comum desde o processo
de redemocratização: Ditadura Militar. Há uma condenação em sua obra dos “excessos” que estes
teriam cometido no poder, mas ao mesmo tempo o protagonismo nos mesmos, inclusive em sua
derrocada, arquitetado por Ernesto Geisel, ditador do período de 1974 e 1979, e o general Golbery
Couto e Silva, uma das principais figuras políticas dos altos escalões militares.
De maneira mais refinada e mais profunda, o historiador Carlos Fico (2001) analisa as entranhas
do sistema repressivo e de informação, evidenciando e reforçando o caráter ditatorial do governo da
época. Mesmo percebendo a articulação de um golpe com participação de civis, o historiador salienta o
papel dos militares e seu projeto particular de desenvolvimento conservador. Para o autor, que defende
que o Golpe é Civil-Militar, mas a Ditadura é apenas Militar, este é o conceito chave, amplamente
utilizado em sua obra.
Este conceito se demonstra apenas parcialmente correto, pois não evidencia o papel de civis na
Ditadura, se mostra simples ao se resumir a questão aparente, de que militares detiveram o poder entre
1964 e 1985. Para esta definição, não há dúvidas quanto ao fim da Ditadura: quando José Sarney,
mesmo que indiretamente assume o Executivo, no início de 1985, não dever-se-ia mais falar em
Ditadura, mas já em Democracia. Assim, pelo menos a concepção de “Ditadura” é utilizada para
demonstrar o caráter repressivo e antidemocrático, diferente do editorial da Folha de São Paulo, de 17
3
de fevereiro de 2009, que qualifica o Brasil entre 1964 e 1985 de “Ditabranda” , dando a entender que
não houve grande repressão ou violação dos Direitos Humanos no Brasil”.
Tangenciando o número de vítimas assassinadas e desaparecidas do período (considerado baixo frente
a outras ditaduras), principalmente depois do Ato Institucional Nº 5, chamados por esta corrente como
“anos de chumbo”; para o editorial da Folha, nem Ditadura deveria ser usado para definir o pós-1964.
Nada estranho pra empresa que fornecia veículos de entrega de jornal para a Operação Bandeirantes –
organização paramilitar de repressão que contava com financiamento e apoio empresarial – realizar suas
ações ditas “brandas” (KUSHNIR, 2004).
De qualquer maneira, a utilização de Regime Militar ou Ditadura Militar, apesar de evidenciarem
esta nuance, em absoluto sintetizam ou compreendem todo o complexo fenômeno histórico iniciado em
31 de março de 1964. Tampouco, tornar o autoritarismo político algo inerente ao Brasil auxilia no
aprofundamento do conhecimento sobre o tema.
Ao se naturalizar o autoritarismo em toda a História nacional, se eufemiza as ditaduras, tanto a
de Getúlio Vargas quanto a do pós-1964, afinal, se sempre fomos autoritários por excelência, qual a
diferença de um período um pouco mais autoritário? Fica-se com a questão apenas aparente, os
militares, e perde-se a essência, o papel que cumpriram e seus aliados civis, uma visão liberal que
esconde o caráter de classe do Estado.
Aqueles que tentaram compreender a Ditadura como uma articulação mais complexa, profunda e
de classe, entre civis e militares, que não inicia em 1964, mas é construída com seguidas tentativas de
golpe desde o suicídio de Getúlio Vargas, estimulada e financiada pela política externa estadunidense,
no contexto da chamada “Guerra Fria”, sem dúvida nenhuma deram um salto de qualidade na
conceituação teórica relativa à Ditadura.

Civis e Militares: A Ordem dos Fatores Altera o Resultado?


Talvez o primeiro a ter cunhado o termo Ditadura Civil-Militar, e expressar conceitualmente a
articulação que existiu entre civis e militares, tanto para o Golpe que depôs o governo eleito de João
Goulart, tanto para legitimar e operacionalizar a Ditadura, tenha sido René Dreifuss (1981).
Seu trabalho clássico 1964: A conquista do Estado ainda hoje é um dos principais referenciais na
pesquisa sobre financiamento empresarial classista da oposição ao governo Jango, e como se
articularam interesses político econômicos do governo estadunidense e setores oposicionistas na
construção do golpe que o depôs.
Principalmente, através da criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais(IPES), criado em
1961, órgão que deveria ser responsável por pesquisa e produção científica oposicionista; e o Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o qual, apesar do nome, deveria fazer o contrário, construir entre
a sociedade um forte sentimento contrário à permanência de Jango no poder.
Sabe-se do intenso esforço que a burguesia brasileira e seus aliados capitalistas externos moveram para
desestabilizar o governo João Goulart. As “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, contando com
amplo apoio das classes médias, sob influência do complexo IPES/IBAD, foram um exemplo deste
esforço golpista. Consumado o Golpe, a movimentação intensa de setores conservadores para legitimar
3
A passagem do editorial é a seguinte: “(...) Mas, se as chamadas "ditabrandas" - caso do Brasil entre 1964 e
1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa
política e acesso à Justiça – (...)”. Cf. Limites a Chavez. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm. Acesso em 17 fev, de 2013.

210
e justificar a ação militar como “vontade geral da nação”, travestindo-a de um discurso que os ditadores
diriam até o fim: tratava-se de uma “democracia”.
Esta articulação entre civis e militares, uma vez colocada às claras, reforça o conceito de
Ditadura Civil-Militar. O Golpe e o que se deu depois dele, uma Ditadura, foram arquitetados, executados
e levados a adiante por militares e civis. Os militares eram a ponta de lança de um bloco no poder muito
maior, contendo frações e classes sociais dominantes, sendo a manutenção de seus interesses a razão
da existência deste “regime de exceção capitalista”.
Outro autor que mais contemporaneamente vem defendendo o conceito de Ditadura Civil-Militar
é o historiador Daniel Aarão Reis Filho (2004). Nele encontramos o esforço pela desmistificação no
campo da memória a cerca dos acontecimentos em tempo de Ditadura.
Para o historiador, na época da redemocratização, especialmente durante as “Diretas Já”, em 1984,
neste amplo movimento nacional que pedia eleições diretas, unificou-se a agenda política de diversos
setores, inclusive aqueles que construíram o Golpe e apoiaram a Ditadura, tornando-os todos
“democratas”, como se sempre o tivessem sido.
A Ditadura Civil-Militar se esgotava e nenhum apoiador ia restando. Logo, a redemocratização
parecia como o lugar certo para se ir, e nada mais natural no campo da memória do que mistificações
que legitimem viradas de posições. Tanto à direita e à esquerda, apontando o autor para o fato de que,
parte da esquerda revolucionária, ao autocriticar sua estratégia de luta armada, se colocar como uma
luta “democrática”, no sentido liberal da palavra.
O problema presente na obra de Reis Filho é a tentativa de evidenciar em demasia o amplo
apoio social aos militares, equalizando a participação de civis no Golpe, legitimando, mesmo sem ter
essa intenção, o discurso oficial dos próprios golpistas, os quais justificavam sua “Revolução”, por
atender um suposto chamado da sociedade civil.
Civis e militares articularam um Golpe e erigiram uma Ditadura que governaram até a década de
1980. Pelo menos politicamente, a questão é: qual foi o papel que coube historicamente a cada um
destes grupos? De um lado, os militares, a categoria social secular com projeto próprio de País e, de
outro lado, frações de classe e classes dominantes que se debatiam para recuperar a hegemonia
político-social perdida e questionada em tempos de Jango. Qual o peso de cada uma nesta Ditadura?
Foram iguais?
O sociólogo Marcelo Ridenti (2010) acredita que não. No posfácio da segunda edição de seu
também clássico O fantasma da Revolução Brasileira, de 2010, o autor levanta o debate sobre o peso
dos militares, tanto no Golpe, quanto na Ditadura em si.
Para o autor, por mais que esta complexa articulação de civis fosse extremamente importante, e no final
das contas, fundamentalmente estivessem protegendo seus interesses, os militares impuseram o seu
próprio projeto conservador modernizante ao País eliminando qualquer oposição política ameaçadora, à
revelia de seus aliados, os empresários civis. Pelo menos até a década de 1980 os militares nunca
vacilaram sobre quem deteria o poder institucional central. Tanto é que, aliados de primeira hora como
Carlos Lacerda, político conservador, e Jucelino Kubitschek, ex-presidente do Brasil, mudaram suas
posições logo nos primeiros anos, quando perceberam que não se tratava de apenas uma intervenção
para destituir Jango e repassar o poder aos civis.
Não houve retorno do poder aos civis, até pelo menos 1985, quando, já enfrentando seu
derradeiro fim, a Ditadura, no seu processo de abertura política, lenta e gradual, que garantisse a
impunidade de seus atos, elegeu José Sarney, político maranhense historicamente ligado aos militares.
4
Para Ridenti, a definição que melhor corresponde ao passado histórico é “Ditadura Militar-Civil” ,
pois expressa tanto a articulação de civis e militares, mas demonstra o papel preponderante que estes
últimos tiveram praticamente toda a Ditadura. Aqui o fim desse processo histórico não pode ser
entendido como antes de 1988, quando a nova Constituição é feita, e prepara eleições, daí sim, livres
para o ano seguinte.
De qualquer maneira, se entendermos que o Golpe e a Ditadura como alianças entre categorias
sociais, frações de classe e classes dominantes, que não só em regime de exceção preservaram seus
interesses capitalistas, mas se articulando internacionalmente com outras Ditaduras, como as do Cone
Sul, em um movimento mais amplo no contexto de Guerra Fria, apoiando e garantindo a falência das
democracias eleitorais na região; podemos então ficar satisfeitos também com estes conceitos de
Ditadura Civil-Militar ou Militar-Civil?
Não seria interessante buscar um conceito que entenda esse amplo processo social mais
profundamente, sem perder de vista a relação com a geopolítica da América Latina? Podemos pensar

4
Yuri de Carvalho (2010) também utilizou esta conceituação na monografia de conclusão de graduação, por
entender na época ser o conceito que melhor respondia, ou pelo menos problematizava o conceito de Ditadura
Civil-Militar hegemonicamente usado pela historiografia, mas pensado há 30 anos. De maneira provocativa, o
autor pensava em utilizar o espaço pra fomentar o debate necessário sobre a definição da Ditadura do pós-
1964.

211
algo assim para o Brasil ou temos especificidades tamanhas que não podemos em absoluto ser
comparados com qualquer outro país da região?
Seria possível novamente um salto de qualidade em termos de conceituação?

Ditaduras de Segurança Nacional e Fascismo


Entende-se que, no esforço de compreender o processo histórico brasileiro, os estudiosos tem
se esmerado mais em fazer sobressair às diferenças históricas com outros países e menos as
semelhanças com as ditaduras vizinhas, como Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile.
Essa negação a priori de semelhanças, na tentativa de colocar o Brasil como um país acima dos
demais, e cuja compreensão só se dá nele mesmo, acaba por atrapalhar um possível salto na
compreensão de um fenômeno permeado de conexões, que ajudou a moldar tanto a nossa, quanto as
Ditaduras vizinhas.
Buscando-se uma compreensão mais ampla do processo, como um fenômeno latino-americano,
o historiador Enrique Padrós organizou, em 2006, uma coleção que levava o sugestivo nome As
Ditaduras de Segurança Nacional: o Brasil e o Cone Sul.
A definição de Ditadura de Segurança Nacional busca justamente demonstrar a semelhança e
conexão entre as Ditaduras do Cone Sul e, ao mesmo tempo, expressar parte da ideologia desses
“regimes de exceção”, a política da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), oriunda da Escola das
Américas estadunidense e da experiência francesa na Guerra de Independência da Argélia, elegendo o
inimigo interno a ser combatido e eliminado.
Nos anos 1960, os governos estadunidenses passaram a fomentar as oposições políticas que se
alinhavam ideologicamente, apoiada pelas classes proprietárias dependente de sua economia, incitando
a derrubada de governos independentes pelo subcontinente sul-americano. Com isto, ditaduras
começavam a brotar pelo Cone Sul.
Em todos os casos, em maior ou menor grau, se instalaram ditaduras civil-militares baseadas na
DSN, tendo como principais características um anticomunismo militante, a identificação do inimigo
interno, a execução da guerra interna (contrainsurreição), a imposição do papel político das Forças
Armadas e a definição de fronteiras ideológicas. Além disso, essas ditaduras colocaram em prática
programas econômicos desnacionalizadores e privatistas, os quais iniciaram a abertura ao capital
5
internacional e geraram o abismo social a partir da concentração de riqueza.
A primeira tese a defender o uso do termo é a de Caroline Bauer, apresentada à Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e à Universitat de Barcelona, em 2011. Intitulada Um estudo comparativo
das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil militares argentina e brasileira e a elaboração de
políticas de memória em ambos os países, Bauer vai chamar as ditaduras brasileira e argentina de
“Ditaduras Civil-Militares de Segurança Nacional”, demonstrando como as duas têm práticas culturais
repressivas em comum.
No livro, resultado desta tese de doutorado, Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e
políticas de memória, de 2012, a historiadora parte de aspectos subjetivos, como medo e terror, para
entender como se desenvolveu o que chama de “cultura do medo”, base do Terrorismo de Estado,
disseminado pelas Ditaduras latino-americanas:

As estratégias usadas para disseminar o medo como forma de dominação política das
populações basearam-se em métodos refinados de terror físico, ideológico e psicológico,
assimilados de outras experiências e do desenvolvimento de doutrinas regionais
próprias. As práticas que compõe essas estratégias variaram em intensidade e
extensão, de acordo com os casos. Porém, todas possuem um núcleo comum,
caracterizado pela produção de informações a partir da “lógica de suspeição”; pelo
sequestro como forma de detenção; pela censura e desinformação; pela realização do
interrogatório e a tradição inquisitorial das práticas policias; pela presença de torturas
físicas e psicológicas; pela censura e desinformação; e, principalmente, pela prática do
desaparecimento forçado de pessoas, característica específica da repressão desses
regimes. Acredita-se que, nesse período, desapareceram aproximadamente 90 mil
pessoas, entre argentinos, chilenos, uruguaios e brasileiros. A consequência foi a
formação de uma “cultura do medo” como condição necessária e o resultado estratégico
6
esperado.
Apesar da formalização DSN se dar a partir dos exércitos estadunidense e francês, antes já

5
PADRÓS, Enrique Serra. Conexão repressiva internacional: o Rio Grande do Sul e o Brasil na rota do Condor.
In. PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA,Vânia M.; LOPEZ,Vanessa Albertinence; FERNANDES, Ananda Simões
(orgs). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. – 2. ed., rev.
e ampl. – Porto Alegre : CORAG, 2010. – v. 3, p. 56.
6
BAUER, Caroline. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre:
Medianiz, 2012, p. 29.

212
haviam opositores enquadrados em leis de “Segurança Nacional”. A ocupação nazista na Tcheco-
Eslováquia, depois de um atentado contra um quadro do Partido Nacional Socialista, “mobilizou 450 mil
policiais, que detiveram e revistaram 4.750 milhões de pessoas, das quais 13.119 acabaram indicadas
em processo por crime contra a segurança nacional” (KONDER, 2009). No próprio Brasil, a partir da Lei
se Segurança Nacional de abril de 1935 e, sobretudo, depois da Insurreição Nacional-Libertadora, em
novembro do mesmo ano, a maioria dos integrantes da Aliança Nacional Libertadora (ANL) foram
enquadrados em “crimes de Segurança Nacional” (KONRAD, 1994).
Na historiografia, o fascismo é reduzido hegemonicamente a um simbolismo sociológico (MANN,
2008), tornando-se fascistas apenas grupos que se adequarem a um modelo pré-concebido e fechado
nos moldes do Partido Nazista ou do exemplo clássico da Itália. Assim, nada fora do eixo Roma–Berlin
da década de 1930 pode ser considerado fascista ou com influência nítida deste.
O filósofo grego Nico Poulantzas já alertava, em 1971, que o fascismo não era um fato histórico
estanque, mas um fenômeno intrínseco às crises capitalistas, portanto, fadado a ressurgir sempre que o
capitalismo estivesse em perigo. Segundo Poulantzas:

Quanto à atualidade da questão do fascismo, digamos simplesmente que os fascismos


– como, aliás, os outros regimes de exceção – não são fenômenos limitados ao tempo.
Podem muito bem ressurgir atualmente, mesmo nos países de área europeia, na
medida em que se assiste a uma crise grave do imperialismo, crise que atinge o seu
próprio centro. O ressurgimento, pois, do fascismo continua possível, sobretudo hoje –
mesmo que, provavelmente não se revista agora exatamente das mesmas formas
7
históricas de que revestiu no passado.

O fascismo não seria resumido a aspectos aparentes, mas a uma essência tanto econômica
quanto política e cultural. Como aponta Poulantzas, “no processo de fascização e do fascismo, nenhuma
classe ou fração de classe dominante parece ser capaz de impor”, seja “pelos seus próprios meios de
organização política, seja pelo intermédio do Estado ‘democrático-parlamentar’”, a sua direção às outras
classes e frações do bloco no poder (POULANTZAS, 1978, p. 77).
Desta maneira, quando em uma crise política leva à desestabilização do bloco no poder, há um
rearranjo de categorias sociais, frações de classe, e classes sociais para garantir a continuidade do
capitalismo e sua hegemonia. Ceder espaço político para um destes atuar em regime de exceção para
garantir os interesses destes grupos, constitui economicamente e politicamente o fascismo.
João Goulart e o projeto de seu governo pelas Reformas de Base são justamente a crise política que
ameaçou socialmente o bloco dominante no poder. O rearranjo das frações de classe e classes
dominantes articuladas com a categoria social dos militares levou ao Golpe de 1964 no Brasil. Estes
governaram para garantir a hegemonia das classes dominantes e garantir a perpetuação do capitalismo.
Em julho de 1965, Theotônio Júnior publicou, na Revista Civilização Brasileira, um artigo
chamado Ideologia fascista no Brasil, no qual tentava analisar se no Brasil havia condições históricas
para o desenvolvimento do fascismo. Para ele, o País ainda não era “maduro” o suficiente no estágio
que o capitalismo se encontrava para desenvolver relações tipicamente fascistas. No entanto, percebia
que havia um “germe” fascista presente, mas que encontraria limitações.
Não imaginava o autor os desdobramentos que a Ditadura teria; que o AI-5 permitiria toda a
repressão possível, e ao mesmo tempo, a injeção de empréstimos estrangeiros e crédito facilitado
criariam a bolha do chamado “milagre econômico”, ajudando na tentativa de legitimação e respaldando
discursivamente o que era dito oficialmente.
No fim, profeticamente, Júnior faz um apelo para união de forças para barrar o crescimento do
fascismo no Brasil, não “cometendo erros passados”, para não enfraquecer o movimento popular, e
pedindo uma posição ofensiva nesse enfrentamento.
Mas se Poulantzas e Júnior possam ser tomados como corretos então não houve realmente uma
espécie de processo bismarckiano/bonapartista, como colocara Tavares? Houve apenas uma
rearticulação de frações e classes dominantes em um regime de exceção?
A diferença aqui é a reprodução de práticas culturais repressivas, se não inauguradas, pelo
menos transformada em política de Estado com o nazifascismo durante os anos de 1930. A
desumanização do outro, do “inimigo interno”, não serve só como dispositivo de legitimação discursiva,
mas naturaliza a eliminação da oposição política com respaldo de parte da população.
Quando o Estado, e aqui se entende aquelas classes sociais que o controlam, tem a prerrogativa
da morte, e a polícia se torna política, a vida se torna descartável, e o descarte tem uso político
(AGANBEN, 2002).
Como a recente descoberta da cremação de corpos de pelo menos dez guerrilheiros na década
de 1970, incinerados em uma usina de açúcar de um ex-governador do Rio de Janeiro, por um grupo de

7
POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978, p. 10.

213
extermínio do Exército, liderados por Cláudio Guerra (GUERRA; NETTO; MEDEIROS, 2012). Fora o uso
da nomenclatura “terrorista” como conceituação deste inimigo interno, já sem identidade, desumanizado,
que sobre o qual todo tipo de força deveria ser utilizada para ser erradicado.
Há aqui um duplo sentido nas práticas repressivas inauguradas no nazifascismo e reproduzidas
nas Ditaduras da América Latina. O primeiro é relativo à função central na implantação do terror como
forma de dominação política, como exemplifica Bauer:

Por “estratégia de implantação do terror” entende-se o conjunto das práticas de


sequestro, tortura, morte e desaparecimento, assim como a censura e a desinformação
e suas consequências, principalmente a formação da “cultura do medo”. Essa estratégia
pode ser entendida como “projetos”, em seu sentido consciente e racional, pois o terror,
como forma de dominação política, foi uma “opção” dos civis e militares responsáveis
8
pelas ditaduras e não uma “fatalidade” ou “imposição” conjunturais.

Em segundo lugar, estas estratégias de implantação do terror, principalmente através da política


dos desaparecimentos, tem como objetivo, além de consolidar essa “cultura do medo”, garantir uma
memória oficial, hegemônica e sem oposição. Como explicita Gagnebin:

Os arquivos dos campos de concentração foram queimados nos últimos dias da guerra,
"os nazistas explodiram as câmaras de gás e os fornos crematórios de Auschwitz".
Depois da derrota de Estalingrado, isto é,quando se torna claro que o Reich alemão não
seria o vencedor e que, portanto, ele não poderia "ser também o mestre da verdade"
futura, os prisioneiros dos campos foram obrigados a desenterrar os milhares de
cadáveres de seus camaradas (agora já em decomposição) que haviam sido
executados e jogados em valas comuns, para queimá-los em gigantescas fogueiras: não
9
poderia restar nenhum rastro desses mortos, nem seus nomes, nem seus ossos.

Assim, reforça-se a compreensão de que não só a Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional


no Brasil, mas também as outras ditaduras de segurança-nacional no resto da América Latina foram
fundamentalmente ditaduras de classe. O objetivo último destas ditaduras foram fundamentalmente
garantir a reprodução do Capital, a exploração dos trabalhadores, a manutenção da propriedade privada
e das classes governantes, incapazes de se garantir no controle do Estado sem exacerbar a ditadura
capitalista. Daí a proximidade destas experiências históricas, não só em aspectos culturais e ideológicos,
com os fascismos mundo a fora.
As classes trabalhadoras não foram, obviamente, as únicas atingidas pela implantação do
Estado de Terror imposto no Brasil a partir de 1964; outras categorias e camadas sociais também o
foram, principalmente quando se colocaram frontalmente contra a dominação política dos setores
golpistas, como parte de estudantes e militares legalistas, por exemplo.
Contudo, não resta dúvida que a deflagração do movimento grevista do grande ABCD paulista no final
dos anos 1970, entre metalúrgicos do setor da indústria automobilística, do qual a figura de Luis Inácio
Lula da Silva ganhou projeção nacional, significou uma clara demarcação de ruptura no processo de
distensão política que vinha sem sobressaltos até então, demonstrando que foi a classe operária que
mais sofreu com o peso da Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional, ao contrário das classes
médias, cujo apoio aos grupos golpistas flutuou durante todo o período.
Assim, o uso do conceito de Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional é o que mais consegue
expressar a essência do processo histórico brasileiro a partir de 1964, até pelo menos 1988,
evidenciando as conexões existentes entre as outras ditaduras latino-americanas, além da sua influência
ideológica doutrinária da DSN, ligando-as ao quadro maior do imperialismo capitalista estadunidense da
época, tanto em relação às condições objetivas, quanto às subjetivas.
Aqui, é possível perceber, também, como a crise de hegemonia no bloco no poder, a
reorganização das classes dominantes alicerçando-se na categoria social dos militares para garantir a
reprodução do capital e seus interesses, assim como as práticas repressivas que erigiram o Estado de
Terror, a partir da cultura do medo, são características fundamentalmente fascistas. Como bem
demonstra Rosa Cavalari (1999), “a participação [...] de ex-dirigentes integralistas em posições de
destaque na conspiração e no golpe militar de 64, na liderança do Congresso e no primeiro escalão do
poder executivo durante a ditadura”, levou Plínio Salgado, chefe do grupo brasileiro mais nitidamente
fascista dos anos 1930, a declarar que “os Integralistas estavam no poder”.

Fontes

8
BAUER, Caroline, op. cit., p. 31.
9
GAGNEBIN, J. Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: ed. 34, 2006, p.46.

214
LIMITES a Chavez. In. Folha de São Paulo [editorial] Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm. Acesso em 17 fev, de 2013.

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215
Segurança Nacional: Uma Discussão Conceitual

1
Aline Aparecida Faé Inocenti

Resumo: este artigo tem a intenção de discutir a conceitualização da segurança nacional dentro do
sistema de implantação do regime cívico-militar no brasil. Esse conceito vai ao encontro da articulação
política executada pelos militares que tiveram sua formação aos moldes americanos, introduzindo no
país a Doutrina de Segurança Nacional fundamentada nas ideias estadunidenses de “defesa do
território” e o “inimigo interno e externo do sistema”.
Palavras-chave: Conceito – Segurança Nacional – Regime cívico-militar.

Abstract: this article has the intention to discuss the conceptualization of national security within the
system of deployment of civic – military regime in brazil. This concept goes to meet of the policy
articulation implemented by the military that had their education to the American mold, introducing the
country´s National Security Doctrine based on American ideas of “homeland defense” and the “enemy
within and outside the system”.
Key-Words: Concept – National Security – civic – military regime.

Introdução: Inserção dos Conceitos na Sociedade


“De acordo com uma conhecida frase de Epiteto, não são os fatos que abalam os homens, mas
2
sim o que se escreve sobre eles”.
A frase citada acima faz parte de uma antiga tradição que se ocupa da relação entre as palavras
e as coisas, entre linguagem e o mundo, focalizando a discussão no mundo conceitual e social. Reinhart
Koselleck, ao citar essa frase em uma das suas obras – Futuro Passado – faz nos lembrar do poder que
as palavras possuem na relação de transmissão sobre fatos e ideias.
Neste sentido, pode-se considerar que o uso de tais palavras ou expressões na sociedade
podem servir tanto para se comunicar, quanto para ressaltar seu poderio frente a grupos sociais. Com o
passar do tempo estas palavras adquirem um caráter de conceito, de ideia formada, ou de uma tradição
se transformando em um costume que passa a ser seguido.
Esses conceitos adquiridos por uma determinada ordem social devem ser parcialmente aceitos
por um grupo de indivíduos, para assim formar e formatar os sistemas políticos e ideológicos. Como
exemplo disso, pode-se utilizar a efetivação do golpe cívico-militar no Brasil, que foi incorporado pelo
grupo dos militares e de alguns civis do país, possibilitando o estabelecimento do regime.
Este golpe se utilizou de conceitos que advinham de outras sociedades, onde desempenhavam
poder dominante sobre a população. Voltados para o conceito de Segurança e de Defesa contra o que
acreditavam serem inimigos, o grupo organizou-se e inseriu essas ideias na estrutura social e política do
Brasil.
Durante toda a trajetória da humanidade, pode-se visualizar a utilização de conceitos para
determinar e compreender certas relações e conflitos. Os acontecimentos de relevância social sempre se
utilizam de palavras de significação para caracterizar o fato ocorrido. Pode-se aqui citar a questão do
conceito de “guerra fria”, que muito mais do que diz as palavras carrega significados abundantes, o
principal deles é o confronto ideológico entre capitalismo e socialismo.
Assim, considera-se que “[...] os conceitos não servem mais para apreender os fatos de tal ou tal
3
maneira, eles apontam para o futuro” . Nesta dinâmica, pode-se entender que os conceitos surgidos em
uma determinada época, carregada de algumas simbologias, não servem apenas para retratar a
realidade presente, mas sim para modificar os fatores que estavam envolvidos no acontecimento ou o
fato passado.
Assim, cabe ao historiador compreender os conflitos sociais, políticos e ideológicos do passado
por meio das delimitações conceituais para se ter uma conclusão, ou uma interpretação do presente,
dando ênfase para as mudanças sociais e culturais durante o passar dos anos.
Portanto, a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado da

1
Programa de Pós-graduação em História – Mestrado em História. fone: (49) 35530278 / (49) 99713185
2
KOSELLECK, 2006, P.97.
3
KOSELLECK, 2006, P. 102.

216
crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista
social e político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais de
4
conteúdo social ou político.

Existem conceitos que permanecem por entre os tempos, entretanto, outros sofrem modificações
estruturais em longo prazo dependendo da realidade de cada época e do olhar humano sobre tal termo,
levando em consideração toda a camada de sentido estruturado em cada interpretação.
Assim o campo da história dos conceitos necessita atentar para todos os conteúdos semânticos
de cada palavra conceitual, entendidos em diferentes épocas históricas. Os processos de mudança e
permanência de tais conceitualizações, portanto, podem ser analisados após uma longa série de
significados e do uso desses termos na sociedade. Pode-se considerar então, que cada conceito
depende da época e da sociedade vivenciada, refletindo a partir do significado dado a ele pelos
indivíduos.
Cada conceito é preso a uma ou mais palavras, mas nem toda palavra pode ser considerada
conceito social, político ou ideológico. Eles dependem de uma exigência de generalização na sociedade.
Para que uma determinada palavra se torne conceito, é necessária a homogeneização da mesma nos
preceitos sociais, dependendo sempre dos elementos associados a ela.
5
Para Koselleck “[...] uma palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstâncias
político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela”. Assim, os
conceitos são vocábulos que concentram diversos e abundantes significados. Pode assim, reunir a
diversidade da experiência histórica ou ser analisado através de uma única circunstância.
Uma história dos conceitos deve sempre considerar os acontecimentos e as situações políticas e
sociais que já tenham sido compreendidos e também os resultados obtidos por uma pesquisa destes
determinados eventos na sociedade, para poder compreender seus elementos constitutivos.
Através do trabalho da história dos conceitos, a problematização e as premissas históricas podem ser
avaliadas a curto, médio e longo tempo. Ela consegue confrontar mudanças e permanências desses
conceitos por entre os anos e fatos sociais decorridos deles.
Dentro deste parâmetro, este artigo busca discutir o conceito de Segurança Nacional, e sua
recepção e aplicação no Brasil durante os anos da ditadura cívico-militar (1964 a 1985), apontando suas
origens e sua manutenção durante os anos, e os fatos surgidos com tal acontecimento que modificaram
os moldes políticos e sociais do país.
“Traçar a história dos conceitos significa identificar as continuidades e transformações que,
dentro da perspectiva de uma imersão definitiva do mundo moderno, constituem os eixos de longa
6
duração da experiência política do Ocidente” .
Neste sentido, a análise proposta neste trabalho se baseia no conceito de Segurança Nacional e
sua articulação na sociedade durante os anos da ditadura cívico-militar no país, delimitado entre 1964 e
1985. A Doutrina de Segurança Nacional advinda das características propostas pelos Estados Unidos
proporciona transformações na esfera política, econômica e social do Brasil.
Assim, primeiramente será delimitada a origem deste conceito e sua estruturação e meio a este
contexto histórico, seguindo com a análise da Doutrina de Segurança Nacional e sua caracterização.

Origens do Conceito de Segurança Nacional.


Entre os anos de 1964 e 1985, o Brasil viveu a ditadura cívico-militar, anos estes que se
caracterizaram pela inserção da política de segurança nacional e a busca pela erradicação do chamado
“inimigo interno”. Neste período o grupo militar, dividido internamente entre os radicais de direita e os
militares moderados controlaram as decisões do país e governaram á partir das ideias da Segurança
Nacional, de maneira a defender os “interesses do país”, mantendo a ordem e a paz.
Este fato originário do regime da ditadura cívico-militar, apesar de suas várias interpretações,
teve origem na tentativa de erradicar governos de cunho esquerdista no país, por meio das ideias
advindas da ideologia da Segurança Nacional.
“A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para impor seus objetivos a
7
todas as forças oponentes” . É através da aplicação dessa Segurança, que o Estado defende os ideais
que acredita ser o melhor para a nação, utilizando qualquer forma, sendo esta violenta ou não. Para isso
os militares fizeram uso de um aparato legal que sustentava todas as decisões e ações, denominado
aqui no Brasil de Atos Institucionais.
A origem do conceito de Segurança Nacional advém dos Estados Unidos com a sua política de
defesa contra o comunismo, considerado para eles o “inimigo”. Após o término da Segunda Guerra

4
KOSSELECK, 2006, P. 103
5
KOSSELECK, 2006, P. 109.
6
(CHIGNOLA, apud FERES JUNIOR, 2007, p.112).
7
COMBLIN, 1978, P. 54

217
Mundial, os estadunidenses reformularam sua política ideológica a fim de reestruturar as bases de seu
novo plano político voltado para a defesa da ideologia de Segurança Nacional e para a proteção de seus
interesses.
Os Estados Unidos dentro desse contexto buscava cumprir sua meta, que era delimitada como a
vitória frente a nova guerra que se aproximara (Guerra Fria). Para isto os objetivos que necessitavam,
eram de deter o poder absoluto frente às nações aliadas, para conseguir assim se defender do que
estava por vir. “[...] desse modo parece-lhes normal que a segurança – um bem absoluto e ilimitado –
8
seja a meta da guerra, a meta da guerra fria e a meta de sua política externa” .
Dentro do contexto da Guerra Fria, a política norte-americana pautada no objetivo de Segurança
Nacional, passou a ser marcada pelo acentuado anticomunismo iniciando assim, uma forte influência
frente às nações que estavam ameaçadas pelo chamado “inimigo”. Seu objetivo era assegurar os
mercados tradicionais e os novos que estavam abrindo devido o processo de descolonização de antigos
impérios.
Assim, os Estados Unidos organizaram dois planos visando fortalecer o regime capitalista
liderado por eles. Primeiro o Plano Marshall, “elaborado para reconstruiu a economia europeia, visando
barrar o avanço do comunismo [...]”. Segundo, a Doutrina Trumann “e a sua política de contenção,
através da qual os Estados Unidos se comprometiam a enviar forças militares a qualquer país do mundo
9
ameaçado pela União Soviética [...]”.
Esses dois projetos criados pelos Estados Unidos acabaram por “influenciar” em toda a
sociedade, modificando as metas políticas de defesa dos interesses nacionais, tanto nos países
influenciados pelo capitalismo que deveriam seguir os ideais norte-americanos, quanto para os países
socialistas que necessitavam elaborar assim, um projeto econômico e político a fim de se desenvolver
em meio a essa conjuntura.
Toda essa concepção intelectual, frente à disputa entre capitalismo e socialismo, está
fundamentada no conceito de “interesse nacional”. Esse conceito vai muito além do que se pode pensar
em ser do interesse social, pois dentro de cada nação há divergências de ideias na questão do que
considerar interesse, e o sobre o que deve se defender.

Consequentemente, a meta de toda política nacional é a defesa do interesse nacional.


O conceito de interesse nacional é muito pouco claro em si mesmo. Assim que se tenta
definir lhe o conteúdo, torna-se vago e inapreensível. No entanto é muito enfatizado:
10
nele se vê, acima de tudo, a recusa de qualquer finalidade ideal abstrata . (COMBLIN,
1978,P. 109).

No Brasil, este conceito sempre esteve presente na sociedade, com o intuito de proteger o
território nacional contra os inimigos internos, ou contra a ameaça externa. Entretanto, mais recente e
objeto desse estudo, é dado ênfase ao período cívico-militar, onde as forças governamentais utilizavam
dessa conceitualização para explicar toda e qualquer ação desempenhada por eles.

“a segurança nacional é eminentemente política e, portanto, ideológica; é uma das


modalidades de que se reveste a política geral de um país. Seu conteúdo não é
estático, mas historicamente variável. Um mesmo país terá políticos de segurança
nacional diferentes, conforme as etapas de seu desenvolvimento.

A partir desse período, com esses ideais muito fortemente ligados à política interna e externa do
país, a Segurança Nacional passa a ser uma regra para a Nação poder se desenvolver e se proteger. E
que para todos os objetivos entendidos para o desenvolvimento do país sejam alcançados é necessário
a implementação dessa Doutrina nos âmbitos sociais e políticos.
Com o fundamento de bem-estar social ligado ao conceito, a sociedade inicia a implementação das
características da Segurança Nacional como sendo a única maneira na época (Golpe Militar – 1964) de
poder assegurar sua economia e sua política nacional, sem correr riscos de ser atacados ou ser
influenciados pelo “maléfico” comunismo. Constituindo assim o aparato legal que regia a sociedade - Lei
de Segurança Nacional e Atos Institucionais – a partir da influência exercida pelos Estados Unidos sobre
os militares que se preparavam nos colégios ou escolas de guerra.

A preparação direta para o novo regime militar brasileiro foi a Escola Superior de
Guerra, fundada em 1949. Porém os homens que fundaram a Escola Superior de
Guerra para imitar o National War College de Washington e introduzir suas doutrinas no

8
COMBLIN, 1978, P. 108.
9
FERNANDES, Antíteses, 2009, p.832.
10
REZNIK, 2004,P. 36 apud Ramos, 1957.

218
11
Brasil não partiram do nada .

O National War College, fundado em 1946 pelos Estados Unidos, teve como objetivo a criação
de um centro coordenado para estudar e aprimorar a política externa dentro do contexto da Guerra Fria,
visando a segurança do território e da nação. Ele também foi responsável pela criação da Doutrina de
Segurança Nacional, que mais tarde foi difundida pelos países da América Latina.
Após a Revolução Cubana, com a disseminação da ideia do avanço comunista, foram realizados
programas militares que ensinavam sobre a proteção contra esse novo modelo político-econômico,
considerando por alguns grupos “um modelo maléfico” para a sociedade. Os primeiros treinamentos
foram realizados na zona de ocupação do canal do Panamá e estendidos para os militares de toda a
América Latina, orientando sobre a estratégica de contensão da expansão desse regime, iniciando a
defesa pela segurança interna.
Dessa forma, a enorme rede de comunicação criada pelos Estados Unidos com os países da
América Latina a partir de centros de instrução e de missões militares, acabou por reforçar ainda mais a
ideologia do conceito de Segurança Nacional e sua aplicação pelos militares, que no momento eram as
pessoas treinadas e indicadas para tal situação. Assim, mais uma vez fortificava a ideia que somente um
governo militar conseguiria organizar e recuperar o desenvolvimento de um país que passava por uma
12
crise econômica ou devido a existência de um governo com abertura para os ideais comunistas .
Assim, sob a influência dessa instituição, os países latinos americanos fundaram suas próprias
escolas de guerra, tendo a mesma finalidade: a segurança e proteção de sua nação.
No Brasil foi fundada a Escola Superior de Guerra, a qual determinou a aproximação de setores civis e
militares, uma campanha que já vinha se estruturando na sociedade brasileira a muito tempo. Esta
Escola, mais tarde vai recepcionar a Doutrina de Segurança Nacional teorizando o conteúdo ideológico
para a aplicação manutenção do golpe militar em 1964.
A Escola Superior de Guerra teve suas origens remotas em 1922, época de despertar nacional
em vários setores e anos também do modernismo nacional. Neste mesmo período um pequeno grupo de
tenentes se organizou e ocupou por algumas horas o Forte de Copacabana querendo o poder, esse
episódio é conhecido pelo movimento do Tenentismo. Essa tentativa fracassou no momento, mais serviu
de ponto inicial para a organização dos militares enquanto grupo para protagonizar a política do país.
Desse modo, dentro de uma linha evolutiva o exército passou a ter participação ativa na política do
Estado, aonde em 1964 chega ao poder, a partir de uma estruturação ideológica, baseada na
metodologia desenvolvida pelas suas instituições de guerra e proteção.
Além de toda a influência norte americana, os objetos de análise desse grupo se
fundamentaram no pensamento positivista: progresso, ciência e indústria; no novo nacionalismo, onde se
destaca a busca por um Brasil grande e poderoso; nas ideias políticas pautadas no novo liberalismo
econômico, argumentando que o país ainda não estava suficientemente maduro ou organizado para a
democracia, sendo necessário um autoritarismo político centrado na importância da geopolítica, que
passa a ser o elemento necessário para o país cumprir seu destino em ser potência mundial.
A Escola Superior de Guerra é uma instituição de “próprio gênero”, sendo independente do
13
Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Ela destina-se a formar uma classe dirigente de civis e militares .
Desde o início está, formulou conceitos fundamentais esquematizando a Doutrina de objetivos nacionais,
segurança nacional, poder nacional e estratégia nacional.
14
Até 1964, os teóricos da ESG , são pouco explícitos quanto aos seus objetivos em relação ao
regime político do país, não colocando em ação a Doutrina de Segurança Nacional no estado, defendido
por eles. Com o golpe cívico-militar a oportunidade de se colocar em prática todos os seu ideais se torna
possível.
Desse modo, a Doutrina de Segurança Nacional, através dos militares apoiados pela elite civil,
foi adotada pela política brasileira com pouca reação adversa, pois o movimento reacionista não possuía
no momento força para se contrapor, se comparado ao aparato que possuíam os militares.

A Doutrina de Segurança Nacional no Brasil.


O golpe cívico-militar e a manutenção desse regime sofreu influência direta da Doutrina de
11
COMBLIN, 1978.P. 151).
12
No caso o governo citado aqui, seria o governo de Jânio Quadros e depois de João Goulart, que por disseminar
ideias de reforma agrária e reformulações sociais, acabaram por ser considerados governos pré-comunistas por
alguns grupos políticos brasileiros.
13
COMBLIN, Pe J. A Ideologia da Segurança Nacional. O poder militar na América Latina. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978, P. 153.
14
ESG: Escola Superior de Guerra.

219
Segurança Nacional, como já citado anteriormente. Ela forneceu inerentemente a estrutura necessária
para a instalação e a manutenção de um estado forte com uma determinada ordem social.
“Objetivamente, a Doutrina de Segurança Nacional é a manifestação de uma ideologia que
repousa sobre uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e os países
15
ocidentais” .
Essa Doutrina pode ser assim considerada como o esqueleto teórico que fundamentou os
regimes cívico-militares com justificativas na emergência das Forças Armadas assumirem o conturbado
cenário político dos anos 60. Ela foi disseminada através de academias e escolas de guerra, formando
quadros de profissionais especializados na área com os preceitos de bipolaridade, delimitação de zonas
de influências, caracterização do inimigo e consequentemente sua derrota frente aos combates e a
introdução de proteção do Estado e da nação (organismos passíveis de contaminação) contra o
comunismo.
Dessa maneira, os teóricos do período aproximaram as ideias de necessidade de segurança
16
com a doutrina de contrarrevolução . Ou seja, além de reforçar os aportes teóricos de proteção e da
disseminação do ideário de Segurança era necessário também buscar introduzir políticas que
confrontassem os “inimigos” e os mostrasse incapazes perante o poderio capitalista ou anticomunista.
Os fundamentos dessa Doutrina de Segurança Nacional se modificam perante o cenário
mundial, configurando-se na noção de segurança coletiva, de uma segurança hemisférica, ampliando a
17
noção desde a Doutrina Monroe . Essa segurança considerada neste momento coletiva, se configurou
frente a ameaça comunista que “obrigou” os Estados Unidos a lançaram um programa de assistência
militar em vários países americanos, inclusive no Brasil.
O clima de Guerra Fria faz entender o conceito de guerra em todos os seus parâmetros, primeiro
fazendo apelo a todas as formas de participação, eliminado de seu caráter a neutralidade ou a
ambiguidade. Segundo a ideia de guerra total, é possível identificar o conflito dentro e fora das fronteiras
nacionais, podendo este ser gerado tanto no exterior quanto no interior, criando aqui o conceito de
“inimigo interno e inimigo externo”.
A formulação dessa Doutrina de Segurança Nacional passa por diversas etapas, desde a sua
fundação até a colocação em prática de seus objetos políticos no meio social. Apesar das mudanças, o
elemento fundamental – considerado o conflito ideológico – se mantém, possibilitando assim uma guerra
total entre Ocidente e Oriente.
Além do conflito ideológico, outro elemento de importância a se considerar é a geopolítica na
conjuntura internacional. Segundo alguns pensadores brasileiros, que estudaram a origem da palavra
(geo = terra, política=arte de governar) o objetivo dessa pode estar em tentar dar teoria a uma marca
política e não apenas ou somente geográfica.
A geopolítica, dentro dessa caracterização se apresenta como uma teoria do e para o Estado,
mas para um Estado de características militares, com uma teoria de Estado absoluto, de poderio. De um
Estado que se caracteriza pela vontade de um líder ditador ou de um grupo coletivo ditatorial, como é o
caso das Forças Armadas, modelando-se a partir da vontade de poucos e articulando estas à vida social
de uma sociedade inteira.
Essa geopolítica se fundamenta no conceito de ditadura soberana, elaborada por um jurista
alemão chamado Karl Schmidt. A base desse conceito se articula do ideário de que o direito, ou conjunto
de regras que rege a sociedade não se baseia somente em normas gerais e sim no regimento de
18
múltiplas situações, podendo estas serem individuais ou coletivas .
Assim, o governo passaria a ser absoluto e encarregado de tomar todas as decisões, sendo
estas em momentos de crise ou não. Podendo ainda suspender ou criar constituições legais, a fim de
seguir seus preceitos.
“A ditadura soberana se caracteriza não somente pela usurpação do poder (golpe militar), mas
também pela concentração em suas mãos de todos os poderes e funções do Estado (a manutenção do
19
regime)” .
Desse modo, foi a partir dessa concepção de geopolítica, ligado a Segurança Nacional e ao
conceito de ditadura soberana que o grupo cívico-militar toma a liderança do governo em 1964, se

15
BORGES, 2003, p. 24
16
PADRÓS, Henrique Serra. Como el Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional - Uruguai (1968-
1985): do Pachecato a Ditadura Cívico-Militar. 2005. 876 f. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p. 184
17
A Doutrina Monroe foi proferida pelo presidente James Monroe no dia 02 de dezembro de 1823, no Congresso
norte-americano.
18
BORGES, Nilson. A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares. In: DELGADO, Lucilia de Almeida
Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em
fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.26,
19
BORGES, 2003, p. 27

220
utilizando do poder de governar e concentrando de forma considerada legal pelos “olhos da lei”, ou seja,
com todo o aparato de Atos, Leis, Constituições conseguem se manter no poder por mais de 15 anos,
sem surgir nesse meio tempo um grupo forte capaz de derrubar o governo e instaurar um modelo político
democrático.
Além de todas as características já citadas, a geopolítica dentro dos países latino-americanos no
período trabalha com as chamadas “fronteiras ideológicas”. Estas não delimitam um território nacional do
outro separando os Estados-Nação, e sim separa os povos dentro das nações, devido os divergentes
modelos ideológicos existentes. Desse modo, os militares se colocam em pontos estratégicos dentro das
nações, aonde podem controlar através de ações civis, toda a sociedade.
Nos governos militares, surgidos nos anos 60 dentro da América Latina, a geopolítica se
fundamenta na concepção bélica e se sobrepõe na ciência política, ou seja, o sentimento de defesa, de
guerra, de luta, torna-se de maior importância se comparado ao sentimento político. Pois a política passa
a ser absorvida pelas estratégias criadas pelos militares. Assim;
20
Neste contexto denominado arte militar , a política torna-se o elemento fundamental para a
manutenção do poder por parte dos participantes da instauração do golpe. Assim a guerra interna com a
busca e a eliminação incessante do inimigo interno passa a ser uma estratégia imposta para impor a
chamada segurança nacional no país.
Com estreita ligação entre a manutenção do poder militar e a Doutrina de Segurança, a obtenção
dos objetivos nacionais passam a ser realizados pelo desenvolvimento da competição política que surge
com o novo cenário global, pautado nas novas estratégias de guerra e de luta interna, transformando
assim o país em um cenário de luta política que não abre espaços para novas negociações.

A guerra interna é, pois, uma guerra total e permanente, o que vai atribuir um forte
papel, na sociedade civil, aos aparelhos de segurança e informações que agem,
preferencialmente, pela violência, com suas táticas de guerra e métodos desumanos
21
(tortura física) .

A guerra total, que foi o contexto institucionalizado durante a manutenção da política da Doutrina
de Segurança Nacional, defende a ideia de que as ações tomadas frente a população não são somente
militares, mas também psicológicas, que definem a forma de agir das lideranças governamentais do país.
Essas ações psicológicas são necessárias à Doutrina para que seu projeto seja incorporado e
desempenhado, pois nessa guerra tratava-se de aniquilar moralmente os inimigos e de assegurar que
essa oposição não se colocasse contra a projeção política da Doutrina de Segurança Nacional.
Essa guerra psicológica se fundamenta na ideia de terror de Estado, utilizado diretamente com o
fim de intimidar o inimigo e evitar que os indecisos partam para o lado contrário dos militares. O Estado
assim se configurou como um elemento repressivo, que varia o grau de violência, tendo como marca
comum a supressão das instituições democráticas.

[...] o Estado, que deveria ser uma estrutura de mediação e de proteção da sociedade,
agindo como fiador da segurança das pessoas, foi utilizado, de forma geral, em toda a
22
região, como um mecanismo que devia enfrentar e derrotar o “inimigo interno” .

Cada país que adotou o regime fundamentado nas ideias militares efetivaram sua interpretação
individual da Doutrina de Segurança e aplicaram a partir de um aparato estatal que de certa forma
extrapolou os limites constitucionais, transformando a política em um sistema de terror de Estado.
Esse terror de estado se constitui como um instrumento de análise da realidade dos governos
militares que se basearam no conceito de Segurança Nacional e nos objetos políticos da Doutrina.
Enrique Serra Padrós (2005), defende que a política do Terror de Estado implementada pelos
governos civil-militares, foi o mecanismo utilizado para aplicar as premissas da Doutrina de Segurança
Nacional. Segundo ele esse Terror de Estado se fundamenta como uma modalidade de terrorismo.
Além desta linha de discussão sobre o terrorismo, outra linha de interpretação surge dentro do
contexto de governo militar e da Doutrina de Segurança Nacional, que coloca os chamados “inimigos
internos”, ou seja, os adeptos ou simpatizantes do comunismo, como os protagonistas desse terrorismo.
A partir das colocações sobre o conceito de Terror de Estado, de guerra, pode-se começar a
traçar um dos objetivos ou talvez uma justificativa da Doutrina de Segurança Nacional em não realizar a
escolha dos dirigentes da população através da eleição popular. Pois segundo essa Doutrina, o inimigo e
o próprio ato de agressão surgem do grau de entendimento político e socioeconômico do povo, e
somente as pessoas que atingem um “certo patamar”, considerado por eles um grau de preparação e

20
Arte Militar: a expressão neste sentido quer se relacionar ao poderio militar durante os anos da ditadura no
cenário político brasileiro.
21
BORGES, 2003, p. 28.
22
PADRÓS, 2005, p.58.

221
experiência, possuindo os saberes militares de como agir, podem ter legitimidade do poder no país.
Assim, esses dirigentes nomeados pelo corpo militar precisam impor sua autoridade perante a
nação. Para isso estes se utilizam de meios concretos, sendo estes a política e a censura, visado serem
organizados em vista de ações repressivas mantendo a ordem pública e impedindo ações subversivas
contra o governo.

A Doutrina de Segurança Nacional trabalha com quatro conceitos principais: os objetivos


nacionais, que se dividem em permanentes e atuais [...]; o poder nacional [...]; a
estratégia nacional [...]; segurança nacional [...]. É pois, em torno desses conceitos,
adaptados às características estruturais e conjunturais de cada país, que gira a
23
Doutrina .

Esses quatro conceitos estão descritos na política dessa Doutrina de Segurança Nacional, mas o
que merece mais atenção, sem dúvida são os objetivos nacionais. Na prática eles são a teorização dos
interesses, das aspirações e das regras de uma nação inspirada nesses conceitos.
No Brasil, a Doutrina serviu como base ideológica do regime militar implantado em 1964 e
contribuiu para a formação do aparato de informações da nova ordem constitucional do país. O Serviço
Nacional de Informações (SNI) foi criado logo após a efetivação do golpe, no governo de Castelo Branco
e foi a forma criada pelos militares para tentar controlar os “inimigos internos”.
Esse Serviço de Informações passa a concentrar dentro do país todo e qualquer tipo de
informação e de tratar de assuntos internos e externos. O grupo assim passa a assumir uma
superioridade no bloco do poder, tendo em vista a função de coletar, analisar e julgar as informações
pertinentes para a contenção dos inimigos do regime.
Assim, na medida em que a Doutrina era difundida pela sociedade, o governo militar articulava
uma estrutura jurídica forte e fundamentada nos preceitos de defesa da nação, impondo para todas as
suas ideias e regimentos, perseguindo os chamados “inimigos”, fundamentado nos aparatos do Terror
criado pelo Estado.

Considerações Finais
A Doutrina de Segurança Nacional, baseada no conceito de segurança Nacional e disseminada
na sociedade pela política de defesa dos Estados Unidos, fundamentou todos os governos militares
surgidos na América Latina. Esses governos surgiam com o objetivo de ordenar o país, protegendo toda
a nação contra o inimigo, considerado por essa política; os adeptos ao comunismo.
Esse modelo político instaurado chegou às forças governamentais através da instrução dada aos
militares através das Escolas de guerra que eram ministradas pelos norte americanos. No caso brasileiro
foi a Escola Superior de Guerra a responsável pela orientação dada aos militares e civis que mais tarde
vão ser os protagonistas do golpe de 1964.
No Brasil, a permanência do regime militar no país se deve a duas características: primeira; a
existência de uma ideologia que ultrapassa as particulares nacionais e mantém a estrutura e coerência
política através da base constitucional criada para manter os militares no governo brasileiro. Segunda; a
utilização da política do Terror do Estado, que advinha do uso de torturas psicológicas e também físicas,
causando medo da população em geral.
Dentro da estruturação política dos militares brasileiros, a Doutrina de Segurança serviu para
abolir dois princípios fundamentais do regime democrático: a subordinação dos militares ao poder civil,
pois agora eles estavam no alto patamar governamental; e a não intervenção no processo político, pois
agora a política estava toda fundamentada no conceito de segurança contra os inimigos submetidos aos
militares.
Assim, a base ideológica do regime militar decorrem várias ações que afetam distintos setores
sociais, pois, a prática das eleições indiretas para presidente, e a de nomeação para governadores,
prefeitos de capitais e prefeitos das Áreas de Interesse de Segurança Nacional, era uma forma de dizer
que o povo brasileiro não sabia escolher seu representante. Disseminado a ideia de que isso era uma
forma de se defender contra os “inimigos internos” que poderiam chegar ao poder.
Durante todo o governo militar e a manutenção da Doutrina de Segurança, os direitos civis e
políticos foram os que mais sofreram com a ação dos governantes militares. Pois além do povo não
poder escolher seus representantes, a manutenção do sentimento de terror, através das torturas e
perseguições faziam com que a maioria dos brasileiros aceitassem as determinações sem se manifestar
contra.
Dessa maneira, o objeto de estudo desse artigo que era analisar a trajetória e fundamentação da
Doutrina de Segurança Nacional foi discutido, utilizando como foco de discussão o golpe militar
brasileiro. Portanto, o que de fato precisa ser levado em consideração é a forma como o poder foi

23
BORGES, 2003, p. 30.

222
manipulado e controlado pelos militares, e a não efetivação dos direitos legais do povo brasileiro, que
não teve opção de escolha política durante os anos analisados.

Referências Bibliográficas:
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Almeida Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e
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PADRÓS, Henrique Serra. Como el Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional – Uruguai
(1968-1985): do Pachecato a Ditadura Cívico-Militar. 2005. 876 f. Tese (Doutorado – Programa de Pós-
Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
REZNIK, Luís. Democracia e Segurança Nacional: a polícia política no pós-guerra – Rio de Janeiro:
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DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura –
regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

223
224
VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura

225
226
A Memória da Censura durante a Ditadura Civil Militar em Campo Grande/MS.

1
Mariana Duenha Rodrigues

Resumo: O presente artigo tem como objeto de pesquisa, a repressão política, com foco na cesura, na
cidade de Campo Grande/MS, durante os anos de 1964-1985, marcados pela Ditadura Civil Militar no
Brasil. Levantando a discussão de como foi esses 21 anos em cidades interioranas, e até então, tidos
como “pacatas”, que historiograficamente pouco se conhece. Utilizando como, principal fonte de
pesquisa, a História Oral, com entrevistas e vídeo documentário.
Palavras-chave: MT/MS – Ditadura – Repressão – Censura.

Mato Grosso do Sul localiza-se no Centro-oeste do Brasil, fazendo fronteira com a Bolívia e
Paraguai. Estado conhecido pelas riquezas naturais, grandes rebanhos, e agricultura, que foi criado em
meio ao caos que o país passava, enfrentando um governo ditatorial de extrema repressão política e
ideológica, que teve de sua história, ainda jovem, uma parte abafada. O Estado “interiorano” não era tão
calmo assim, o governo de opressão e o Terror de Estado deixaram suas marcas.
Entretanto, historiograficamente, pouco se fala da ditadura civil-militar no Estado de Mato Grosso
do Sul, o que torna ainda mais intrigante o porquê de tanto silêncio. A escolha da metodologia, História
Oral, deu-se a partir desses silêncios, não apenas por se mostrar uma fonte de pesquisa viável, mas
principalmente por se tratar da memória individual e coletiva de diferentes grupos e pessoas que
estiveram envolvidas, diretamente ou indiretamente, nos anos de chumbo, principalmente entre os anos
de 1969 a 1985 na cidade de Campo Grande.
2
Em entrevista ao documentário “Gritos do Mato” da Jornalista Tainara Rebelo, a professora
3
Maria da Glória Sá Rosa diz,

“Chamada de “Revolução”, em 1964, tinha como lema combater a corrupção e a


subversão. Então tudo aquilo que podia ferir a moral e os bons costumes, eram
proibidos, (...) em todos os níveis, havia aqueles olhos arregalados da censura, dos
pseudos “defensores” da moral e dos bons costumes, tentando cortar o que pudesse
fazer mal as consciências.” (Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)

Campo Grande e a Censura


Na virada da década de 1960-1970, Campo Grande era uma cidade “pacata” dos imigrantes
paraguaios, portugueses, japoneses e sírio-libaneses, além da presença indígena, expressiva, que
constituiu parte de sua cultura. Com a criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, tornou-se a capital do
novo Estado. Perfilava-se como uma cidade em grande desenvolvimento e abrigava diferentes posições
políticas do Mato Grosso. Mas, apesar de sua aparente “calmaria”, não se livrou da “mão pesada” da
ditadura civil-militar no Brasil. Entretanto, a proporção e a intensidade em que se era “aplicada” os meios
4
repressivos pareciam variar de acordo com o Estado da federação. Segundo Paulo Simões , o fato de
Campo Grande ser considerada uma cidade calma, favorecia para que qualquer comportamento
“diferente” fosse logo repreendido.

“Além do fato de Campo grande ser uma cidade do interior, uma cidade, relativamente,
“provinciana” na época. Ao mesmo tempo o clima era de censura, de medo, de restrição
de liberdade. Qualquer coisa que destoasse, era vista com muito mais preocupação.”

1
Email: mariduenha@uol.com.br Telefone: (67)9150-6033 Graduada em História/UFMS.
2
Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Artigo realizado a partir do
Trabalho de Conclusão de Curso, sob orientação do Professor Dr. Jorge Christian Fernandez. (2012) REBELO,
T. P. 2009. “Gritos do Mato – a contracultura – expressão artística – no período da Ditadura Militar em Campo
Grande.”
3
Maria da Glória Sá Rosa – também conhecida como “Glorinha” - Professora aposentada da Universidade
Federal de Mato grosso do Sul (UFMS), onde lecionou, por 26 anos, Literaturas de Língua Portuguesa e História
da Arte. Fundadora da Revista Estudos Universitários (FUCMAT) o Teatro Universitário Campo-grandense (TUC)
e o Cine Clube de Campo Grande. Responsável por diferentes movimentos culturais na cidade de Campo
Grande/MS. Atualmente compõe a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Disponível em:
http://www.acletrasms.com.br/membro.asp ?IDMCad=37, (Acessado em 02/07/2012).
4
Paulo Simões- Músico e Jornalista.

227
(Paulo Simões, Gritos do Mato, 2009)

Em entrevista, ao ser questionado sobre a ditadura ter sido “branda” no estado de Mato
5
Grosso/Mato Grosso do Sul, Américo Calheiros diz:

“Obviamente nós aqui no Estado de Mato Grosso do Sul, não tivemos aquela... Não
chegamos a ver com muita projeção, como aconteceu em outros lugares do Brasil, nos
grandes centros, Rio, São Paulo, aqui não houve uma manifestação publica a exemplo
de Rio São Paulo, né? (...) à medida que a gente foi crescendo foi entendo a força dos
Atos Institucionais, o de 68 (AI-5), por exemplo, foi muito visível já por que a gente
estava compreendendo melhor o que estava acontecendo. Sabia noticias de pessoas
que tinham... de políticos que tinha sido cassados aqui, de acontecimentos envolvendo
homens públicos, prisão, cassação, etc... Tudo isso começou a transparecer.” (Américo
Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)
6
Sob a mesma pergunta Celito Espindola diz:

“Pelo que a gente tem conhecimento, do ponto de vista nacional, chegou de uma forma
mais branda, nós conhecemos história de pessoas que foram torturadas, presas, de
maneira bem forte mesmo, mas aqui, eu percebo eventos dessa repressão física. Alguns
fatos.” (Celito Espindola, entrevista realizada pelo autor em 15 de março de 2012)

Na década de 1960, os movimentos culturais efervesciam em todo o mundo. A onda “paz e


amor”, e os movimentos nacionais como tropicalismo, influenciaram os artistas regionais, que
impulsionados pela vontade de criar, deram vida, a partir de companhias de teatro, festivais músicas e
apresentações, a uma cidade que se abria para uma nova vertente cultural.
Em 1968, iniciava-se em Campo Grande um Festival de música regional, coordenado pela
Professora Maria da Glória Sá Rosa, conhecida como Professora Glorinha, e que foi palco de muita
censura, já que o festival teve seu nascimento no mesmo ano que se institucionalizou o AI-5.
Segundo Glorinha, a censura agiu desde o primeiro festival, quando vetou uma música do
compositor Paulo Simões, que em seus versos continha uma frase em inglês, e naquela época não se
podia fazer qualquer referência que fosse ligada ao “estrangeiro”. No segundo festival, a censura vetou
um texto de José Otavio Guizzo, intitulado “Zé Galo, costureiro e matador”, argumentando que se trava
de um texto contra a polícia e que estava atacando os “valores” da polícia. Nesse trecho da entrevista,
Glorinha fala de como acontecia o processo de análise da censura:

“A gente tinha que apresentar as letras em três copias para censura, ela analisava,
cortava as coisas, e aquilo irritava profundamente as pessoas que assistiam,
né?”(Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)

Diversos músicos tiveram problemas com a censura regional, Celito Espíndola teve a música
“Alice” censurada, e só pode tocá-la no festival após fazer alterações na letra. O músico e compositor
Geraldo Espindola conta que também teve duas músicas censuradas,

“Eu cheguei a ter músicas censuradas, pela ditadura, como “muito sacana”, que é uma
critica sobre o império norte americano, na época não era de “bom tom” se criticar o
governo aliado, os Estados Unidos. (...) Teve também uma musica, que eu ganhei um
festival com ela, chamada, “ponha na sua cabeça”, que nós tivemos que mudar, por que
tinha palavras muito agressivas, tive que mudar e mexer em toda letra, por que o
governo também não permitia que se falassem palavras pesadas. Talvez por
consciência pesada.” (Geraldo Espíndola, Gritos do Mato, 2009)

A indefinição da censura gerava conflito dentro do próprio sistema de repressão, desaprovando


em meios regionais, e aprovando na censura nacional, Paulo Simões e Geraldo Roca, compositores de
umas das canções mais conhecidas do estado de Mato Grosso do Sul, “Trem do Pantanal”, viveram na
pele essa realidade.

“Foi enorme a nossa surpresa, quando a censura local, regional, vetou a musica “Trem
do Pantanal”, eu tenho inclusive a cópia com o carimbo VETADO, não era censurado,
era vetado. Lá fomos nós, eu e o Roca, discutimos com a censura da época, mas eu
confesso que eu não resisti a ser um pouco mais duro e eu disse: “- Escuta, essa aqui

5
Américo Calheiros – Professor, teatrista e criador do Grupo Teatral Amador Campo-Grandense (GUTAC).
Atualmente assume o cargo de Presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.
6
Celito Espindola - Professor, Produtor e Compositor.

228
tudo bem que ali a gente coloca estojo, faz um negocio, agora Trem do pantanal,
francamente, o que é que você viu aí de tão perigoso?”,ela falou: “- A primeira aqui, a
primeira estrofe: “Mas um fugitivo da guerra”, que guerra é essa?”(...) Mas, eu voltei
para o Rio de Janeiro, com o Roca, e nós mandamos para a censura de lá, que era uma
censura de peso nacional, a daqui tinha peso apenas regional. Foi
absolutamente aprovada, até por que não foi entendida.” (Paulo Simões, Gritos do Mato,
2009).

Eram também realizados festivais de teatro, e segundo a professora Glorinha, a censura no


teatro foi ainda mais expressiva. Diversas peças foram censuradas, algumas delas totalmente impedidas
de serem apresentadas como a peça “Arena contra zumbi”. Outra peça que foi vista com maus olhos
pela censura foi à peça: “O outro lado, do lado de cá, visto do lado de lá dos lados”, também conhecida
por “A estupefaciente conclusão que se chegou da discussão que teve lugar, entre Sargento X e Recruta
Y, no país da nuvem azul”, de Paulo Simões e Cândido Fonseca, peça essa que ganhou o festival de
teatro, e se tratava de um monólogo entre dois soldados que tinham morrido, mas não sabiam que
tinham morrido.
Outra peça que foi censurada, do grupo de Teatro Universitario Campograndense (TUC), foi a
peça “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel. Professora Glorinha conta que
precisou ir pessoalmente a Brasília para conseguir o aval da censura para apresentar essa peça, e
mesmo assim a peça veio toda cortada, com várias partes censuradas. Porém essa peça fez grande
sucesso, sendo levada até Cuiabá, Três Lagoas e interior do Estado. Na apresentação em Três Lagoas,
um dos atores da peça, desafiabdo a censura disse: “Atenção pessoal, se continuarmos a defender os
princípios da liberdade, se continuarmos a levar a efeito peças como essa, com tudo que a gente disse e
ainda vai dizer, eu acho que nós vamos cair numa democracia.”, após esse fato, Glorinha relata:

“Quando eu voltei com o grupo para Campo Grande, o chefe da censura, veio aqui em
casa, e disse que eles não iriam mais deixar a peça ser levada em frente, por que
estávamos desobedecendo, os atores falando texto que a censura tinha proibido. Ai eu
disse: “-Mas eu não posso colocar um esparadrapo na boca dos atores!”no final, acabou
ai aceitando.” (Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)

Em 1971 fora criado em Campo Grande o Grupo Teatral Amador Campo-Grandense (GUTAC),
por Américo Calheiros. O GUTAC teve grande participação em festivais, e Américo Calheiros teve uma
peça totalmente censurada, chamada “Nada é Grátis”. Em entrevista, Américo conta sobre a censura,

“Para nós, jovens daquela época, e para mim especificamente, a censura oriunda da
ditadura passou influenciar, diretamente, a minha e a nossa vida, a partir da
manifestação de arte e cultura que a gente decidiu realizar, então eu tive uma peça de
teatro minha proibida, literalmente, o texto todo, uma peça que se chamava Nada é
grátis, da minha autoria e foi o último texto de teatro que eu escrevi, a gente já tava
ensaiando, estávamos bastante animados, era uma peça que tinha toda uma
simbologia, mas incompreensivelmente , quer dizer, ela foi proibida, censurada. (...)Eu
disse na ocasião que esse tipo de coisa não ia afetar a minha capacidade criativa, mas
foi o último texto de teatro que eu escrevi, de uma certa forma, eu senti com o passar
dos anos, que foi uma marca, uma castração, né?” (Américo Calheiros, entrevista
realizada pelo autor em 21/03/2012).

Em outro trecho, ao perguntar sobre como acontecia os processos de censura, relatou:

“Todos os textos de teatro tinham que passar pela censura Federal, não apenas o texto,
que você tinha que mandar por antecedência, mas também você tinha que fazer um
ensaio final, antes de apresentar o espetáculo, para uma pessoa que representava a
Polícia Federal, nessa área especifica de censura de espetáculos, como se fosse já o
espetáculo no dia. Com roupa, com iluminação, com música, com todos os detalhes
possíveis para que houvesse, fidedignamente, uma amostra do que você apresentaria e
a pessoa ficava assistindo com o texto na mão acompanhando letra por letra, fala por
fala, pausa por pausa, que tinha que obviamente estar de acordo com a censura que
havia sido previamente feito no texto que você tinha enviado para censura Federal.”
(Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)

Américo levanta uma questão importante em sua fala, que são as marcas que a repressão do
Estado, neste caso a censura, deixou em todos os que sofreram com o governo opressor. Ainda diz que
o GUTAC não teve sua formação para “atingir” a ditadura, mas que na medida em que o tempo passava,
e eles se davam conta do que a ditadura representava, os textos mais “politizados” foram surgindo,
escritos, principalmente, pela Cristina Matogrosso. Sobre essa “castração” feita pela censura, Cristina

229
Mato Grosso lembra:

“O teatro para o povo, a arte para o povo, ela praticamente não chegava ao povo, da
forma que ela deveria ser, na essência, no âmago do povo, entende? Não havia uma
participação, era algo de elite para o povo. Então era algo que, existia uma pretensão,
existia um ideal, existia uma plataforma disso ai tudo, só que ela não chegou a atingir.
Ela poderia ter atingido, ela poderia ter avançado, nesse sentido, só que ouve o golpe
militar e o sonho acabou. Ai nasce o movimento de Campo Grande, quando o sonho
acabou.” (Cristina Mato Grosso, Gritos do Mato, 2009).

A aproximação com outros Estados, também facilitou essa abertura e real dimensão da
repressão, sobre isso, Américo diz:

“Começamos a conhecer pessoas e grupos e... tinham posturas muito claras contra a
questão da censura no país. O país de uma certa forma também, na medida que a
censura... que a ditadura foi ganhando mais anos, digamos assim, no país... foi trazendo
por meio intelectual, do meio político, e de grande parte da classe artística nacional, toda
uma consciência e um nível de participação muito forte e com muita clareza com o que
se pretendia. E o que se pretendia realmente era acabar com a Ditadura pelo Brasil.”
(Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)

Com parte da imprensa manipulada pelo AI-5, também passou por momentos de forte repressão,
7
o Jornalista José Ramos de Almeida , conhecido como “Zeca do Trombone”, conta que passou por
apuros durante a ditadura e que existia também nas redações de Campo Grande um censor que permitia
ou não a publicação das matérias:

“Então, você imagina, a dificuldade que era para um jornal diário fechar. Para um boçal
qualquer, ficar tendo que ler tudo aquilo, para dar o aval. Nós sabíamos que ali na
redação, tinha um censor, mas nem ver a cara do “fulano” não via, por que era uma
questão de “segurança”, né?” (Zeca Do Trambone, Gritos do Mato, 2009).

Não se podia falar em miséria e pobreza do povo, que era considerado grande afronta ao
Estado, assim como não podia publicar nada que incentivasse a revolta, ou “difamasse” o Estado. Zeca
do Trombone conta que em meados de 1973, fez um artigo questionando sobre a votação do novo
diretor da União Campo-Grandensse de Estudantes (UCE), já que após a saída do então presidente,
ninguém teve coragem de se candidatar:

“E eu fiz um artigo, simplesmente dizendo: “Mas como que isso pode acontecer?!”, sorte
que eu não assinei. Mas, houve o seguinte, tava na redação, e chegou um comunicado
do Comandante, do General, não sei quem era, não lembro, acho que era governo do
“Garrastazu”, convocando toda a imprensa no seu gabinete. Rapaz! Todos os jornalistas
apareceram lá, e pareciam tudo cordeirinhos, sabe? E o aparato militar era incrível, né?
Os caras tudo lá... Ai, então entramos na sala do General, e o General praguejava: “- Eu
não vou permitir uma coisa dessas, incitação a baderna”, e pegou o artigo e mostrou,
“Isso aqui não pode acontecer, isso aqui se eu pegar o responsável, ele vai para cadeia”,
E era eu! [Risos]” (Zeca Do Trambone, Gritos do Mato, 2009)

Outro caso de repressão aconteceu na redação do jornal “O Democrata”, localizado na Rua Maracaju
8
esquina com a Rua Calógeras, região central de Campo Grande. Segundo Lairson Palermo , em 1964 o
jornal “O Democrata” foi invadido pelos militares, que retirou o dono do jornal a força, atirou todo o
maquinário e arquivo do jornal na rua e destruiu. O jornal “O Democrata” era financiado por comunistas,
logo, sua destruição foi “justificada” como: “Ameaça aos interesses do país.” Abaixo, matéria vinculada
no Jornal Correio do Estado.

7
José Ramos de Almeida -“Zeca do Trombobe”: Músico e Jornalista.
8
Advogado Lairson Palermo em entrevista ao Jornalista Celso Bejarano, para o Jornal Correio do Estado.
Disponível em: http://flip.siteseguro.ws/pub/correiodoestado/index.jsp?ipg=56328, (Acessado em: 02/07/2012)

230
Figura 1. Matéria: “Arquivos de jornal foram destruídos pelos militares”, (Acervo
Correio do Estado, Maio 2012)

Observa-se que os entrevistados tiveram melhores lembranças dos acontecimentos, entre os


anos de 1969 a 1985, principalmente no governo do militar, Emilio Garrastazu Médici. Momento de
grande repressão em todo o Brasil. Observa-se também que os entrevistados, embora fizessem alguma
referência ao longo das entrevistas, não falaram em prisões e torturas no meio artístico, o que leva a
acreditar que essas medidas eram tomadas em Mato Grosso do Sul, principalmente, em militantes
engajados nas causas de Reforma de Bases. Nesse trecho da entrevista, nota-se o cuidado com o
silêncio que a ditadura tinha:

P – Você teve, ou conheceu alguém, que teve algum problema com a repressão, além
da censura(prisões, cassações, torturas)?
Américo: A gente ouvia falar, de políticos que foram cassados, o Nelson Trad, a família
Neder também teve pessoas que foram aprisionadas, a gente ouvia falar...
P – Mais voltado para política?
Américo: É! Mais voltado para política, mas era tudo muito, como se diz? Tudo muito
velado. Doutor Wilson Barbosa Martins também foi cassado.
(Entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)

Entretanto, não se pode anular a possibilidade de artistas – músicos, atores, radialistas,


escritores, jornalistas – locais, terem sido vítimas de prisões e torturas. Os silêncios causados pela
ditadura ainda são muitos. Isso fica evidente no receio que as pessoas ainda têm de falar sobre os “anos
de chumbo”.

Considerações finais
Muitas pessoas que estiveram envolvidas em movimentos contra o regime, em Campo Grande,
parecem se recusar a falar e a relembrar os acontecimentos. Assim, podemos considerar que o “não
9
dito” , exerce papel fundamental para o entendimento de como todo esse processo aconteceu. Segundo
Michael Pollak, (1989, p.7) “Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas,
é moldada pela angustia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao
menos de se expor a mal-entendidos.”
As marcas deixadas pelos 21 anos de governo militar, na cidade de Campo Grande, parecem ser
maiores do que se pode imaginar e talvez a maior evidência disso seja a “falta” de evidências sobre a
existência da repressão no Estado de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul. O que nos leva a pensar que
talvez seja mais cômodo acreditar que o Estado de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul, não tenha sofrido
com o Terror de Estado. Dessa forma:

9
POLLAK, Michael. Memória Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 3-
15.

231
“A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em
nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de
grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que
uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor.” (POLLACK, 1989, p.6)

O que levanta as seguintes duvidas: as pessoas envolvidas não querem mesmo falar, ou o
Estado que não quer ouvir!? O terror das lembranças dos fatos, causados pela ditadura e a falta de
interesse do Estado, talvez esteja impedindo que a história seja, de fato, escrita.

Referências Bibliográficas
BITTAR, Marisa. MATO GROSSO DO SUL a construção de um estado, volume I: regionalismo e
divisionismo no sul de Mato Grosso/ Marisa Bittar. – Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009.
BITTAR, Marisa. MATO GROSSO DO SUL a construção de um estado, volume II: poder político e elites
dirigentes sul-mato-grossenses/ Marisa Bittar. – Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009.
DUENHA, Aline. Do palco à academia: arena de conflitos em mão na luva, de Oduvaldo Vianna Filho,
2011.
LEITE, Eudes Fernandes. Aquidauana: A baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa
revolução. / Eudes Fernandes Leite. – Dourados, MS: Editora da UFGD, 2009.
MOREIRA ALVES, Maria H. Estado e Oposição no Brasil (1964- 1984). Petrópolis: Vozes, 1989.
POLLAK, Michael. Memória Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3,
1989, p. 3-15.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v.5, n.10, 1992.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo: PUC/SP. N. 14,
fev. 1997.
Videodocumentário
REBELO, T. P.“Gritos do Mato – a contracultura – expressão artística – no período da Ditadura Militar em
Campo Grande.” 2009.

232
Memórias da ditadura nos Cinemas Latino-americanos contemporâneos

1
Rosângela Fachel de Medeiros

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar e analisar algumas obras cinematográficas de uma
geração de cineastas latino-americanos que eram crianças durante a ditadura de seus países e que, de
diferentes maneiras, trouxeram essas memórias para sua produção cinematográfica.
Palavras-chave: Cinema – América Latina – Ditadura – Memória.

Abstract: The objective of this work is to present and analyze some films by a generation of Latin
Americans filmmakers who were children during the dictatorship in their countries and that, in different
ways, brought those memories to his cinematographic production.
Keywords: Cinema – Latin America – Dictatorship – Memory

Observa-se uma tendência nos Cinemas Latino-americanos contemporâneos a enfocarem em


suas narrativas, direta ou indiretamente, as ditaduras vividas nos países da região. Tal fato contribui, por
exemplo, para que dentre as indicações dos países Latino-americanos à pré-seleção para o Oscar 2013
na categoria de Melhor Filme Estrangeiro estivessem duas produções que abordam diretamente o tema:
o chileno, No – 2012, de Pablo Larraín, e o argentino, Infância Clandestina – 2011, de Benjamín Ávila. O
filme de Larraín acabou ficando entre os cinco concorrentes finais à premiação. Vale lembrar que o
primeiro filme argentino a receber o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro foi A história oficial (La historia
oficial – 1985), de Luis Puenso, que aborda a delicada questão das crianças que eram retiradas de seus
pais, presos políticos que seriam executados, e entregues em adoção a famílias de militares ou de
colaboradores da ditadura. E O segredo de seus olhos (El secreto de sus ojos – 2010), de Juan José
Campanella, que recebeu o segundo Oscar para o cinema argentino, trata do passado obscuro pré-
ditadura de 1976. Além disso, outras recentes indicações de países Latino-americanos ao Oscar
abordavam as ditaduras da região: o argentino Kamchatka (2002), de Marcelo Piñeyro; o chileno
Machuca (2004), de Andrés Wood e o brasileiro O Ano em que meus pais saíram de férias (2006), de
Cao Hamburger. Essas indicações ao prêmio mais cobiçado da indústria cinematográfica, bem como as
demais premiações recebidas por esses filmes em festivais ao redor do mundo não apenas corroboram
a qualidade cinematográfica dessas obras, mas também sinalizam o interesse internacional pela revisão
cinematográfica e artística desse período e das questões sociais, culturais, políticas e econômicas a ele
relacionadas. É interessante destacar que Argentina e Chile são os países latino-americanos que mais
2
produzem filmes sobre o tema.
E considerando que os Cinemas Latino-americanos são quase totalmente realizados graças a
acordos de coprodução, multi ou binacionais, e são dependentes de políticas públicas de incentivo,
sendo os projetos submetidos a editais que visam promover e desenvolver os cinemas nacionais, bem
como preservar e incentivar a cultura dessas nações e da região através de obras que apresentem
comprometimento com questões culturas e identintárias; não é ao acaso que muitos de seus filmes
3
abordem o período das ditaduras direta ou indiretamente.
O historiador Marc Ferro (1992) propõe duas vias de leitura do cinema em relação à história: a
“leitura histórica do filme” e a “leitura cinematográfica da história”. A primeira lê o filme em relação ao
período em que foi produzido, o filme é lido através da história; e a segunda lê o filme enquanto discurso
sobre o passado, a história é lida através do cinema e, em particular, dos "filmes históricos". O intuito
desse artigo, apesar de sua brevidade, é combinar essas duas formas de leitura para analisar os filmes

1
É graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
possui mestrado e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFGRS), participa como pesquisadora do grupo Cinema Latino-americano da Universidade Federal Fluminense
(UFF).
2
O site argentino Memoria Abierta possui uma página onde é possível encontrar informações sobre os filmes
nacionais que abordam a ditadura, La Dictadura em el Cine:
http://www.memoriaabierta.org.ar/ladictaduraenelcine/index.html
3
Sobre a questão da coprodução nos Cinemas Latino-americanos proponho a leitura de meus textos: “Cinemas
latino-americanos: do Nacional ao Transnacional” e “Cinemas do Mercosul: políticas de incentivo, coproduções e
identidade cultural”.

233
enquanto discursos sobre o passado ditatorial, mas também como testemunhos sobre o presente.

Os cineastas e seus filmes: o cinema como memória reconstruída


O cineasta chileno Pablo Larraín, filho do senador Hernán Larraín (que era defensor da ditadura
de Augusto Pinochet), nasceu em 1976, três anos após o golpe militar que colocou Pinochet na
presidência do Chile. Larraín era criança enquanto os crimes contra os direitos humanos eram
perpetrados pelos militares chilenos e tinha quatorze anos, em 1990, quando a ditadura terminou, dando
lugar à democracia. É justamente o processo de transição instaurado pelo plebiscito de 1988, que
resultou no afastamento de Pinochet da presidência e permitiu o regresso do país ao regime
democrático, o tema de No, seu filme mais recente e de maior repercussão.
No, coproduzido por Chile, Estados Unidos e França, trata de fatos reais relativos à realização
da campanha publicitária ao voto pelo “não” no Plebiscito Nacional de 1988 no Chile em que a população
votaria “sim” ou “não” à permanência de Pinochet no poder por mais oito anos. O roteiro do filme foi
escrito por Pedro Peirano a partir da peça El plebiscito (nunca encenada), de Antonio Skármeta, e de um
processo de pesquisa e de entrevistas a respeito da realização da campanha publicitária. O filme
acompanha René Saavedra, um publicitário que viveu um exílio no México e agora trabalha em uma
grande agência de publicidade. Procurado pelos opositores ao governo de para comandar a campanha
do “não”, Saavedra precisa harmonizar as forças e os conceitos da oposição, o que consegue aos
poucos impondo sua racionalidade publicitária aos políticos e afastando os mais radicais. Com poucos
recursos e sob a constante observação dos agentes do governo, sua estratégia é usar a alegria e a
esperança associadas a técnicas de propaganda e marketing para vender o “não” como se fosse um
produto. Seu chefe, Lucho Guzmán, que é envolvido com a ditadura, acaba ficando a cargo da
campanha pelo “sim”. No entanto, esse antagonismo não representa um rompimento entre eles que
seguem trabalhando juntos e a vitória do “não” acaba sendo um trunfo para agência.
A fim de reproduzir a definição das imagens apresentadas pela televisão na década de 1980,
que habitam sua memória, Larraín optou por rodar o filme em suporte de vídeo U-matic 3/4, o mesmo
usado na época. Pois para o cineasta, realizar o filme com a tecnologia atual, em película ou com
câmeras digitais de alta definição, geraria um distanciamento em relação ao imaginário da época
(LARRAÍN, 18/05/2012). Desta forma, as imagens ficcionais apresentam as mesmas texturas e cores
das imagens da época que são exibidas no filme, fazendo com que o ficcional amalgama-se
imageticamente ao arquivo, borrando os limites entre o documental e o ficcional.
Com No Larraín encerra a trilogia, que não havia planejado, sobre a ditadura chilena, composta
ainda por: Tony Manero e Post Mortem. No entanto, No é o único dentre os três filmes em que a ditadura
é o tema central da trama, nos anteriores a ditadura é a força motriz não nominada, mas onipresente,
que transforma não apenas a vida, mas a própria identidade dos protagonistas.
Tony Manero – 2008, foi escrito em coautoria por Larraín, Mateo Iribarren e Alfredo Castro, e foi
coproduzido por Chile e Brasil. A narrativa se passa em Santiago, Chile, no ano 1978, durante a ditadura
de Pinochet. Raul Peralta é um homem de meia idade que vive no submundo chileno. Obcecado pelo
personagem Tony Manero, interpretado por John Travolta, de Embalos de sábado à noite (Saturday Night
Fever – 1977, de John Badham), ele passa seus dias ensaiando os passos de dança do personagem
para um concurso televisivo e ensaiando os números de dança do filme com um grupo de parceiros com
os quais se apresenta na mesma pocilga em que moram. Indiferente à ditadura que aflige seu país, ele
sabe como agir para manter-se à margem. As ações dos militares (as rondas, as perseguições, as
invasões e os espancamentos) são vista apenas como situações a serem evitadas. Amoral, Peralta não
tem escrúpulos para obter o que deseja. Mas sucumbe emocionalmente frente à derrota no programa de
televisão.
Ao apropriar-se do personagem Tony Manero e de cenas do filme, Laraín não apenas constrói
4
um perverso discurso intertextual através da transculturação, mas também estabelece um paralelo
alegórico entre a situação cultural do Chile no período, dominada pela cultura hollywoodiana, e o apoio
da CIA ao regime de Pinochet.
Post Mortem – 2010, escrito e dirigido por Larraín, foi coproduzido por Chile, México e
Alemanha. A trama está ambientada em setembro de 1973, em Santiago, Chile. Mario Cornejo trabalha
no Instituto Médico Legal, sendo o encarregado de redigir as descrições referentes às autópsias. Com o
golpe de estado que derruba Salvador Allende, Cornejo tem de trabalhar com os militares nas
numerosas autópsias dos executados e inclusive na do ex-presidente (em uma cena que corrobora a
teoria de que a morte de Allende não foi um suicídio). Mesmo assim, Cornejo mostra pouco envolvimento
ou preocupação com o que está acontecendo a sua volta, seu único e real interesse é sua vizinha, uma

4
Sobre a questão da transculturação nos Cinemas Latino-americanos proponho a leitura de meu texto: “A
transculturação como estética dos Cinemas latino-americanos”.

234
dançarina de cabaré, Nancy Puelma. Após a vitória de Pinochet, que nunca é referida na película, a casa
de Nancy, reduto de reuniões de sindicalistas organizadas por seu pai, é assolada pelos militares. A
família da bailarina desaparece e ela foge. Cornejo a procura e descobre que ela se escondera em sua
própria casa, passando então a protegê-la até descobrir que ela trouxera o amante para o seu
esconderijo.
A trilogia de Larraín não segue a ordem cronológica dos acontecimentos, mas é reconstruída em
um sentido decrescente de intensidade: o primeiro filme, Tony Manero, está ambientado no momento
mais intenso e violento com a ditadura já instaurada; o segundo, Post Mortem, transcorre no início quase
absurdo do período de ditadura; e o terceiro, No, apresenta o encerramento da ditadura de Pinochet.
Larraín não vivenciou as agruras da ditadura, não há em seus filmes referências a sua infância, ou a
memórias pessoais:

Mis primeros recuerdos son de los últimos años de la dictadura (...) No viví eso, realicé
mi propio juicio a partir de recuerdos de otras personas, pero es algo que no he resuelto
totalmente ni he entendido aún y eso es lo que me lleva a este tema (LARRAIN,
05/09/2010).

Mas, se Larraín se apropria de memórias para desconstruir uma memória idealizada propagada
pelo poder, outros cineastas latino-americanos da mesma geração utilizam as memórias da própria
infância para revisitar e reconstruir as memórias coletivas sobre a ditadura. É o caso de Machuca (2004),
de Andrés Wood; O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger, Andrés no
quiere dormir la siesta (2009), de Daniel Bustamante, El premio – 2011, de Paula Markovitch, e Infância
clandestina – 2011, de Benjamín Ávila. E mesmo que a presença das memórias infantis não tenha um
objetivo biográfico, todos os filmes estão centrados em protagonistas infantis que são também o foco
narrativo dessas obras, sendo, de certa forma, “alter egos” dos cineastas. Esses filmes narram histórias
íntimas de conflitos individuais (na família, na escola, entre os amigos) que se articulam à história
coletiva. E, nesse aspecto, se aproximam ao Romance de Formação, caracterizado por apresentar o
processo de desenvolvimento interior (moral, psicológico, social e/ou político) de um personagem,
geralmente a partir de sua infância, no confronto aos acontecimentos exteriores.
Mas, antes de passarmos a esses filmes, é relevante apresentar Kamchatka – 2002, de Marcelo
Piñeyro, coprodução Argentina, Espanha e Itália, que não faz parte do corpus selecionado, pois Piñeyro
pertence a uma geração anterior, que já era adulta à época da ultima ditadura argentina. No entanto,
Kamchatka, roteiro original escrito por Piñeyro e Marcelo Figueira, pode ser visto como o fundador dessa
linhagem de filmes sobre a ditadura narrados a partir do olhar infantil. A história, ambientada na
Argentina, em 1976, no início da última ditadura do país, é contada pelo foco narrativo de um menino,
Harry, cuja voz em off narra situações e revela pensamentos. Harry é o nome escolhido pelo menino, em
alusão a Harry Houdini, que precisa ocultar a sua verdadeira identidade. O desaparecimento de vizinhos
e amigos faz com que os pais de Harry decidam fugir com os filhos para uma “quinta” retirada de Buenos
Aires. Guiado pelo olhar de Harry, o espectador pouco sabe sobre a vida dos pais “fora” de casa, que é o
“fora de campo”, e sobre os motivos da fuga. São poucas as referências à ditadura e à realidade do país,
mas a tensão referente ao “pior”, que pode acontecer a qualquer momento, é constante, principalmente,
para o espectador que traz para o filme suas referências e memórias. No entanto, quando algo ruim
acontece é longe dos olhos do menino e, por conseguinte, dos do espectador.
Ao contar essa história vivida na ditadura através do foco narrativo de um menino, Piñeyro evoca
as crianças que viveram aquele período a contarem a sua versão da história. A resposta dessa geração,
ao assumir a voz narrativa, provou que o olhar infantil não é ingênuo.
Machuca, coproduzido por Chile, Espanha, Inglaterra e França, escrito a quatro mãos por:
Andrés Wood, Eliseo Altunaga, Roberto Brodsky e Mamoun Hassan; conta a histórias da amizade, cheia
de emoções e descobertas, de dois meninos de onze anos, Gonzalo Infante e Pedro Machuca em
Santiago, Chile. Eles se conhecem em 1973 alguns meses antes do golpe que derrubaria Allende. De
classes sociais diferentes; Infante vive em um bonito bairro de classe alta e Machuca em uma vila ilegal
da periferia. A amizade entre eles nasce da ação do padre McEnroe, diretor de um colégio renomado e
exclusivo, que decide admitir gratuitamente alunos de famílias pobres. Juntos, Infante e Machuca,
experimentam o surgimento do desejo pelas meninas e conhecem o mundo das mentiras, traições e
compromissos em que vivem os adultos e serão testemunhas da chegada da ditadura e de suas
conseqüências.
Wood recorreu às memórias do tempo de escola para construir sua narrativa. De classe média,
ele estudou em uma escola particular renomada e participou de um programa de integração semelhante
ao que apresenta em seu filme até que em 1973 seu colégio foi tomado pelos militares e os padres foram
expulsos. Assim a escolha de Infante como foco narrativo revela a identificação entre o
personagem e as memórias do cineasta. No entanto, Wood faz questão de dizer que seu filme está
baseado en la memoria subjetiva, en el relato oral y también en libros, diarios y documentales (WOOD,

235
sd). Contando então os roteiristas com material advindo de pesquisas realizadas em arquivos e de
entrevistas para escreverem sua história. Além disso, o filme apresenta imagens televisivas da época, de
Allende e Pinochet, que são imbricadas à narrativa ficcional, sendo assistidas pelas personagens.
O ano em que meus pais saíram de férias, roteiro escrito por Cao Hamburger, Cláudio Galperin,
Bráulio Mantovani e Anna Muylaert, se passa em 1970, quando os pais de Mauro, um garoto de doze
anos, saem de férias de uma forma inesperada e abrupta. Militantes de esquerda, os pais do menino
precisam fugir da perseguição militar e decidem deixá-lo com o avô paterno. No entanto, no mesmo dia
que Mauro chega a São Paulo seu avô morre e ele acaba ficando aos cuidados de seu vizinho, Shlomo,
um solitário senhor judeu. Enquanto espera por um contato dos pais, Mauro tem que aprender a
lidar com uma nova realidade que combina momentos de tristeza, por sua situação, e de alegria, pelo
desempenho da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970. A solidão vivida por Mauro ao ser
afastado da família e ir viver com um “estrangeiro” é usada como uma metáfora do exílio vivido por
aqueles que precisaram fugir do Brasil durante a ditadura. A relação antagônica entre o estado repressor
de ditadura e o júbilo pela vitória da Copa de 1970 subjaz à narrativa na inocência de Mauro.
Hamburger recorreu às suas memórias e a elementos pessoais para compor sua narrativa,
assim como seu protagonista, ele gosta de futebol e jogava na posição de goleiro. Hamburger tinha oito
anos quando seus pais, o casal de físicos, Ernst e Amélia Hamburger, desapareceram, ficando dias
afastados da família. E, nesse período, ele e os irmãos ficaram aos cuidados das avós, uma judia e outra
católica. Mas, apesar das similaridades, para o cineasta esse não é um filme autobiográfico. E embora
seja uma obra de ficção, o filme utiliza imagens reais dos jogos do Brasil na Copa de 1970, as quais são
assistidas pelos personagens, passando então a fazer parte do universo diegético da narrativa.
El premio, escrito e dirigido por Paula Markovitch, coproduzido por México, França, Alemanha e
Polônia, conta a história de Ceci, uma menina de sete anos que durante a ditadura vive com a mãe em
uma casa defronte ao mar em San Clemente del Tuyú enquanto o pai mora em Buenos Aires. Elas estão
vivendo quase na clandestinidade e por temor à repressão militar a menina precisa manter segredos.
Para proteger a vida de sua família, ela não pode repetir na escola o que escuta em casa e nem revelar
a ninguém sua verdadeira identidade. Os problemas aparecem quando Ceci começa a questionar-se a
respeito do que está ocultando e do que deve ou não dizer. O filme trata ainda da relação estabelecida
na época entre a escola e o regime militar: livros são enterrados na praia e professoras argumentam em
favor da delação. O título do filme se refere ao prêmio recebido por Ceci em um concurso escolar para
propagandas do regime militar. Assim como em O ano em que meus pais saíram de férias novamente
estamos diante de uma criança “exilada” por conta da ditadura.
El premio nasceu das memórias de infância de Markovitch que, assim como sua protagonistas,
viveu sua infância em uma casa defronte ao mar em San Clemente del Tuyú, freqüentou a mesma
escola que mostra no filme e muitas das situações apresentadas na narrativa foram vividas por ela. Além
disso, assim como sua protagonista, Markovitch viveu vários períodos de angustiante ausência paterna.
Uma vez que seus pais eram artistas e ativistas políticos e ajudaram a muitos clandestinos.
Andrés no quiere dormir la siesta é uma produção independente e foi escrita e dirigida por
Daniel Bustamante. A trama transcorre na cidade argentina de Santa Fé em 1977. Andrés e seu irmão
vivem com a mãe, que ninguém sabe ser uma militante política, seus pais estão separados e a relação
entre eles não é boa. Com a morte repentina da mãe, os meninos vão morar com o pai e a avó, Dona
Olga. A vida no bairro é tranqüila apenas na superfície, pois em uma casa vizinha ao lugar onde os
meninos jogam bola funciona um centro clandestino de detenção, um segredo que todos conhecem, mas
sobre o qual não se fala. A relação entre o pai e os meninos é rígida, mas é entre Andrés e sua avó que
se estabelece uma guerra pelo poder. O clima opressivo dos anos de chumbo está por todos os lados,
da sala de aula à mesa de jantar. E no transcorrer de um ano, em que Andrés acaba vendo o que não
devia ser visto, ele se torna um menino perverso.
Justamente, assim como seu protagonista, é santafesino e era menino durante os anos da
ditadura, ele recorre as suas memórias daquela época e daquele lugar para construir o universo infantil
de Andrés e seus amigos. A inspiração para o roteiro, no entanto, nasceu de um documentário assistido
pelo cineasta, em que uma ex-prisioneira de um centro de detenção em Santa Fé contou que
diferenciava o dia da noite através dos sons das crianças em uma escola próxima a seu lugar de
detenção, justamente a escola que ele freqüentara na época. Ao dar-se conta da proximidade que
estivera do terror da ditadura durante a sua infância, Bustamante “imagina” filmicamente como seria se
uma das crianças que estavam por ali se interasse do que estava acontecendo, criando uma memória
imaginada possível da própria infância. Assim como em Machuca, em Andrés no quiere dormir la siesta
as memórias infantis são recriadas e ressignificadas a partir de conhecimentos e entendimentos que o
cineasta obtém na vida adulta.
Infância clandestina, coprodução Argentina, Brasil e Espanha, foi escrito por Benjamín Ávila em
parceria com o brasileiro Marcelo Müller e produzido por Luis Puenso (diretor de A história oficial). O
filme conta a história de Juan, um menino de doze anos, que, após um exílio em Cuba, regressa com
sua família para a Argentina em 1979. O país ainda vive a mesma ditadura militar que os obrigou a

236
partirem. Juan testemunha a luta e os debates ideológicos de seus pais, mas tenta levar uma vida
normal apesar de precisar viver sob uma falsa identidade, com o novo nome que escolheu: Hernesto (em
homenagem a Che Guevara). Juan/Hernesto tem como aliado o tio Beto que entende que os ideais e a
luta não devem suplantar os prazeres da vida. Mas a dupla vida do menino se complica quando ele se
apaixonando por uma colega de escola. E após a morte de seu tio em combate, ele decide abandonar a
família para viver seu amor infantil. Mas após a fuga frustrada, ele regressa para sua família que nesse
ponto já está sob a vigilância dos militares que acabam invadindo a casa. Ele e a irmã menor são
separados da família, mas, enquanto Juan/Hernesto é interrogado e torturado psicologicamente para
posteriormente ser deixado em frente à porta da casa de sua avó, o paradeiro da irmã é desconhecido.
Apesar de Infância Clandestina, conforme afirmar Ávila, não ser autobiográfico, é, assim como El
premio, uma história que apresenta muitos elementos literais da infância do diretor. Filho de uma
militante dos Montoneros, cujo parceiro era um dos líderes da organização, Ávila viveu um período no
exílio com a família e, após o regresso à Argentina, teve de conviver com o desaparecimento da mãe e
do irmão menor, que tinha então nove meses, em 1979. Seu irmão foi recuperado em 1984, sendo um
dos primeiros netos a ser restituído pelas Abuelas de La Plaza de Mayo. Seu primeiro trabalho, o
documentário Nietos (identidad y Memoria) – 2004, conta justamente histórias de crianças que foram
retiradas de seus pais militantes para serem criadas por outras famílias, mas que posteriormente foram
restituídas às suas famílias e às suas identidades. Ávila reconstrói as próprias memórias da infância na
intimidade dos Motoneros, em um jogo entre realidade e ficção, mas sem se abster de um
comprometimento histórico, como ele declara: No fue fácil enfrentarme a mi propia vida, a mis propios
fantasmas, a mis propias obligaciones históricas, etcétera (ÁVILA in: RANZANI, 20/05, 2012).
Infância Clandestina difere de seus predecessores por ser uma obra que, apesar de ser contada
através do foco narrativo de uma criança (Juan/Ernesto), é politicamente engajada. Também é diferente
ao escolher usar a animação para construir o foco narrativo de Juan/Ernesto em relação às cenas de
violência, que se tornam menos terríveis, mas não menos dramáticas. A animação é a forma encontrada
para representar o absurdo que a violência insere no universo infantil, instaurando outro tempo/espaço
narrativo no interior do filme. Esse artifício narrativo é um dos aspectos mais efetivos da obra pela
maneira com imbrica a forma e o conteúdo, criando uma cena em que a dramaticidade é traduzida pelo e
para o olhar infantil. Além disso, a escolha pela animação revela a interferência do presente sobre a
narrativa do passado, na escolha por artifícios (tecnológicos e narrativos) contemporâneos. Justamente o
inverso do que faz Larraín em No, que no afã de reproduzir a definição (de baixa qualidade) da televisão
dos anos 1980, utiliza a mesma tecnologia imagética da época, o que, no entanto, é igualmente uma
marca do presente.

História, memória e ficção: a metaficção historiográfica


Ao serem obras realizadas por cineastas que eram criança durante as ditaduras latino-
americanas e que recorrem a memórias (pessoais e/ou coletivas) para confeccionar seus enredos, esses
filmes se aproximam da chamada literatura de testemunho; a qual está arraigada à memória e
geralmente narra uma experiência-limite vivida no passado para um leitor no presente. Além disso, ao
realizarem pesquisas e entrevistas para a escritura de seus roteiros esses artistas trazem para suas
narrativas outras memórias, midiáticas e pessoais, que transformam a suas obras também em
testemunho daquela época.
No entanto, nem mesmo as obras que trazem mais literalmente as memórias pessoais de seus
realizadores, como Infância clandestina e El premio, podem ser consideradas autobiográficas, pois como
bem observa Markovitch: cualquier relato es ficticio, ya que, (incluso los recuerdos que aparecen sólo en
nuestra mente), reflejan una idea distorsionada de lo que pasó realmente (MARKOVITCH, 19/09/2011).
Havendo para a cineasta um paralelo entre a memória e a ficção, idéia que parece ser
compartilhada por Larraín:

Yo siento que la memoria, en general, es mucho más desordenada y caótica, y que los
recuerdos se van organizando a partir de cómo uno quiere que sea el presente. O cómo
uno quiere que se recuerde eso. Tal vez ahí está lo que produce fricción entre mi trabajo
y algunas personas (LARRAÍN, 20/01/2013).

Realidade e ficção, memória e esquecimento, fala e silêncio articulam-se na construção dessas


narrativas, que buscam rearticular esse passado traumático, mostrando que a memória está sempre na
articulação entre a lembrança, o esquecimento e a imaginação. E que o passado, como declara Paul
Ricoeur (2008), é uma construção narrativa na qual também participa o trabalho da imaginação.
Já ao trazerem o fato histórico, a ditadura, para a narrativa ficcional, esses cineastas transpõem
para o contexto fílmico a estrutura do romance histórico, o qual, conforme Michel Vanoosthuyse (1996), é
um gênero híbrido por articular a ficção, do romance, com o verídico, do discurso histórico. No entanto,
eles não apenas ambientam suas narrativas no período das ditaduras, eles propõem a releitura desse

237
momento, recontando a história por novos pontos de vista. E ao proporem essas releituras do passado e
das memórias eles confluem com a produção literária pós-moderna latino-americana, que, conforme
Carlos Rincón (1995), está alicerçada na metaficção, na intertextuadalide e na reescritura da história.
Desta forma, esses cineastas realizam em linguagem cinematográfica o mesmo processo
narrativo do romance histórico pós-moderno ou, como Linda Hutcheon (1991) prefere denominar, da
“metaficção historiográfica”: que ao incorporar os domínios da literatura, da história e da teoria, traz uma
autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas, que passa a ser base para o
repensar e a reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. A “metaficção historiográfica”
reconhece os limites entre literatura e história para em seguida desafiá-los: “estabelece a ordem
totalizante, só para contestá-la, com sua provisoriedade, sua intertextualidade e, muitas vezes, sua
fragmentação radicais” (HUTCHEON, 1991, p. 155). Para Linda Hutcheon: “reescrever ou reapresentar o
passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser
conclusivo e teleológico” (HUTCHEON, 1991, p. 147). No contexto cinematográfico diríamos então que a
metaficção historiográfica incorpora os domínios do cinema (ficção), da história (documentário) e da
teoria, compreendendo que tanto a história quanto a ficção são criações humanas, que atuam no
repensar e na reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. A metaficção historiográfica no
cinema questiona então os limites entre a realidade e a ficção, entre o documental e o ficcional; se nutre
de outras narrativas (cinematográficas, midiáticas, literárias e musicais) através da intertextualidade;
experimenta novos focos narrativos e novas linguagens; e é auto-reflexiva. O que faz com que esse
cinema seja, simultaneamente, fictício, histórico e discursivo.
Ao se apropria de imagens de arquivo da televisão da época (“imagens reais”), como em
Machuca, Tony Manero, O ano em que meus pais saíram de férias e No, esses filmes infringem o limite
entre o ficcional e o documental, entre a realidade e a ficção, conferindo credibilidade às narrativas. Pois,
como diz José Carlos Avellar: “os fragmentos de cinejornais colados na ponta de ficção, ajudam mesmo
é a levar o espectador a aceitar a ficção como se ela fosse também um registro do real” (AVELLAR,
1982, p. 57). Essas imagens de arquivo do passado, que estavam mortas e congeladas em seu tempo,
ganham vida na narrativa ficcional, que as resignificam para recontar a história no presente. Em um
processo que vai ao encontro da noção de arquivo, proposta por Jacques Derrida, como um material que
por organizar e conter itens do passado "deveria por em questão a chegada do futuro" (DERRIDA, 2001,
p.48), ou seja, rearticular o passado no presente para o futuro.
Esses filmes rearticulam também os imaginários referentes à ditadura construídos
midiaticamente como, por exemplo, as memórias de outras produções cinematográficas, com as quais
dialogam. Isso fica evidente no comentário de Ávila acerca da relação de seu filme com o filme de
Puenso, pois estando ambos diegeticamente no mesmo período, a irmã menor de Juan levada pelos
militares no final de Infância Clandestina poderia ser Gaby, a menina adotada por Alícia e Roberto em A
história oficial, que se descobre ser possivelmente a filha de prisioneiros políticos executados.
Inversamente à cronologia da realização das obras, Infância Clandestina seria então o prelúdio do filme
de Puenso. Essa construção metaficcional se revela também na referência a outras obras
cinematográficas levada ao extremo em Tony Manero, na auto-reflexão sobre o fazer midiático
apresentada em No, bem como no imbricamento de diferentes linguagens realizado em Infância
Clandestina. E, em concordância a Jean François Lyotard (1993) que vê a condição pós-moderna como
a representação da desconfiança frente as narrativas-mestras, a cena da autópsia de Allende, em Post
Mortem, desconstrói a versão oficial sobre sua morte.
De maneiras variadas, confluentes ou dissonantes, as narrativas fílmicas aqui analisadas
provocam o questionamento sobre o passado histórico ditatorial da região a partir do passado e através
da (meta)ficção.
E quando os países Latino-americanos se unem em coproduções para contar essas histórias
imbricam-se não apenas incentivos econômicos, mas também memórias, em uma integração que, ao
inverso da Operação Condor, propõe o desvelamento das ditaduras. E filmes como Tony Manero e
Infância Clandestina, ao terem o Brasil como coprodutor são considerados também filmes brasileiros,
condição que lhes é conferida quando agraciados pelos editais, passando então a receberem tratamento
igual às demais obras nacionais e chegando assim às salas de cinema brasileiras. Dentre as produções
aqui apresentadas, apenas duas não são coproduções internacionais: O ano em que meus pais saíram
de casa e Andrés no quiere dormir la siesta; o primeiro realizado graças ao trabalho conjunto de três
produtoras brasileiras, tendo a Globo Filmes como coprodutora, e o segundo realizado de forma
independente por duas produtoras argentinas.
Realizados por cineastas/roteiristas que viveram a infância durante a ditadura, esses filmes
revelam um desejo de compreender o passado nebuloso que assombra ou paira sobre suas memórias
de infância, oferecendo novos olhares sobre um tema que, apesar de já recorrente nas cinematografias
Latino-americanas, eles provam que necessita ser revisitado por outras perspectivas. E ao
reapresentarem e ressignificarem o passado a partir de suas memórias, de suas experiências e de seus
intertextos, eles reelaboraram no âmbito fílmico discursos incompletos ou silenciados a respeito das

238
ditaduras latino-americanas. E, mais que isso, sugerem que cada época fará a sua revisão desse
passado, buscando responder os seus próprios questionamentos.
Esses filmes participam então na composição das memórias e das identidades da maioria de
seus espectadores, que não viveram as ditaduras, incidindo ainda sobre o imaginário referente à própria
nação. Cientes do poder do cinema e de seus filmes na rearticulação das memórias nacionais, esses
cineastas não vêm explicar ou responder, mas sim questionar e problematizar, convocando a um
constante repensar sobre esse período histórico. Em um momento em que ainda lutamos pela abertura
dos arquivos da ditadura, a busca das produções cinematográficas pela reinterpretação do passado dá
voz e força a essa resistência frente ao desejo do poder de fechar o extenso e dramático capítulo do
terrorismo imposto pelas ditaduras militares na América Latina. Assim sendo, esses filmes têm muito
mais a ver como o presente do que com o passado, pois ao representarem o passado, eles traduzem o
presente.

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240
O malabarista, a farda e o nanquim: o governo Jango e golpe nas charges de Sampaulo
publicadas no jornal Diário de Notícias em março e abril de 1964

1
Dante Guimaraens Guazzelli

Resumo: Este artigo analisa as charges de Sampaulo publicadas no jornal portoalegrense Diário de
Notícias em março e abril de 1964, buscando ver como foi retratado o fim do Governo de João Goulart e
o início da Ditadura Civil-Militar. São apresentadas as formas como o artista retratou os grupos políticos
envolvidos, dando especial atenção ao Golpe Civil-Militar e suas consequências. Além disso, este artigo
pretende apontar as possibilidades que o estudo das charges pode trazer para o conhecimento histórico.
Palavras-chave: Governo João Goulart – Golpe de 1964 – Ditadura Civil-Militar – Charges – Imprensa.

Abstract: This paper analyzes the cartoons of sampaulo published in the newspaper of porto alegre
diário de noticias in march and april 1964, showing how was presented the end of the government of joão
goulart and early civil-military dictatorship. Forms are presented as the artist portrayed the political groups
involved, paying particular attention to the Civil-Military Coup and its aftermath. Furthermore, this article
points to the possibility that the study of the cartoons can bring historical knowledge.
Keywords: government goulart – coup of 1964 – civil-military dictatorship – charges – press.

No dia 1º de abril de 1964, o centro de Porto Alegre encontrava-se em ebulição: diante da notícia
de que havia um golpe de estado ocorrendo no país, grupos de partidários do Governo de João Goulart
2
decidiram tomar a frente e defender o governo legitimamente instituído. E já tinham um alvo em
potencial: o governador Ildo Meneghetti: a massa rumava em direção ao Palácio Piratini, sede do
governo estadual, com o intuito de depor Meneghetti. Frente a isso, o governador, que fazia parte da
conspiração golpista, pôs a Polícia Civil e a Brigada Militar em prontidão e requisitou as emissoras de
rádio e televisão da cidade. Essas medidas, ao mesmo tempo em que buscavam proteger Meneghetti da
turba, tinham como objetivo evitar a reedição da Campanha da Legalidade. Para evitar o confronto, o
prefeito da cidade, Sereno Chaise, que era do partido do presidente, PTB, clamou a população que
aguardasse o desenlace dos acontecimentos em frente à Prefeitura. Com a possibilidade de embate
entre os golpistas e os resistentes, o governador decidiu pôr em prática a Operação Farroupilha e
3
transferiu a sede do governo para a cidade de Passo Fundo.
Em 25 de agosto de 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros militares
4
vetaram a posse do vice, João Goulart, que estava em viagem oficial a China. Para garantir a posse,
Brizola lançou a Campanha da Legalidade, mobilizou a população, principalmente através da chamada
Rede da Legalidade, cadeia de emissoras de rádio que difundiu a resistência democrática por todo país.
Após obter grande apoio popular, a Campanha da Legalidade foi vitoriosa, devido ao apoio dos militares,
que seguiram a postura legalista do comandante do III Exército, o Gal. Machado Lopes. Ao desembarcar
em Porto Alegre, no dia 1º de abril de 1964, Brizola reuniu-se com Sereno Chaise e o novo comandante
do III Exército, Gal. Ladário Pereira Telles, com o objetivo de novamente transformar a capital gaúcha no
bastião da democracia nacional.
Esses acontecimentos foram a culminância da disputa que existia no Brasil entre dois projetos
5
políticos concorrentes. De um lado haviam os nacionalistas, formados por setores populares, movimento

1
Doutorando em História/UFRGS. E-mail: dante.guimaraens@gmail.com
2
PADRÓS, Enrique Serra; LAMEIRA, Rafael Fantinel. “Introdução – 1964: O Rio Grande do Sul no furacão”. In:
In: PADRÓS, Enrique Serra ET all. A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985):
História e Memória. Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto Alegre, Corag, 2009, pp.
33-50; WASSERMAN, Claudia. “O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, ‘celeiro’ do Brasil”. In: PADRÓS, Enrique
Serra ET all. Op. cit. , pp. 51-70.
3
ZARDO, Murilo Erpen. Operação farroupilha: a transferência do governo estadual do Rio Grande do Sul para
Passo Fundo durante os dias do golpe civil-militar de 1964. Porto Alegre, UFRGS, 2010. Monografia de
conclusão de curso de História
4
FERREIRA, Jorge. A Legalidade Traída: os Dias Sombrios de Agosto e Setembro de 1961. Revista Tempo, Rio
de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1997.
5
RODEGHERO, Carla Simone. Regime militar e oposição no Rio Grande do Sul. In: GERTZ, René (Org.).
História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, vol. 4, 2007

241
estudantil, movimento sindical, sem-terra, grupos progressistas das Forças Armadas e da Igreja, o PTB e
o PCB, que buscavam diminuir as diferenças sociais, econômicas e culturais existentes na população
brasileira. Já do outro lado, havia os conservadores, que eram os latifundiários, os grandes empresários,
militares de direita, que eram liderados pela UDN e tinham como maior representante o jornalista e
político Carlos Lacerda.
Nos veículos de comunicação vemos os embates entre estes projetos. A maior parte da grande
imprensa estava contra o projeto nacionalista, demonstrando seu comprometimento com os setores
conservadores. Durante o Governo de Jango, os conservadores utilizavam manchetes e artigos nos
grandes jornais para apresentar o presidente como alguém que subverteria a ordem legal e levaria o país
ao caos e ao comunismo. No Rio Grande do Sul os jornais do grupo Caldas Junior, o Correio do Povo e
a Folha da Tarde, e o representante gaúcho dos Diários Associados, o Diário de Noticias, eram os
principais representantes disto: nas páginas destes periódicos vemos nos dias e meses que
antecederam o golpe uma campanha de desmoralização tremenda. Do outro lado, estava o tabloide
Última Hora, que pertencia a Samuel Weiman e estava afinado com o projeto e rumos que o governo
estava tomando e a linha do jornal refletia isto. Desta forma, uma pessoa que passasse por uma banca
de jornal durante o Governo Jango podia ver nas manchetes as mesmas palavras, mas que se referiam
a grupos diferentes: enquanto que o Correio do Povo, a Folha da Tarde e o Diário de Noticias acusavam
o governo de querer subverter a ordem legal, a Última Hora fazia as mesmas denúncias à oposição. No
entanto, o que se percebe é que, se em agosto/setembro de 1961 os nacionalistas foram bem-sucedidos
em impor suas imagens, em março/abril de 1964 foram os conservadores os vitoriosos na batalha dos
símbolos.
Pretendo, neste artigo, analisar como foi retratado este embate entre estes projetos nas charges
do artista Sampaulo publicadas no jornal Diário de Notícias nos meses de março e abril de 1964. O
material apresentado aqui é fruto da pesquisa Memória Visual da Ditadura no Rio Grande do Sul, projeto
do Centro de Assessoria Multi-Profissional (CAMP) com financiamento da Comissão da Anistia do
6
Ministério da Justiça. Este projeto tem como objetivo a publicação de um livro com imagens produzidas
no estado durante a ditadura civil-militar, acompanhadas de textos que sintetizam a produção acadêmica
mais recente, que será distribuído na rede de ensino estadual. Assim, este projeto busca levar o
conhecimento acadêmico mais recente sobre o período no estado para os professores, que poderão
trabalhar em sala de aula estas questões partindo de imagens que mostram como foi representado este
período por fotógrafos e artistas. Ao mesmo tempo, ao dar espaço para a produção dos chargistas
gaúchos, salientamos a característica do Rio Grande do Sul como um “celeiro” de artistas gráficos:
segundo o pesquisador Joaquim da Fonseca, há, no Rio Grande do Sul, mais artistas gráficos do que
espaço para publicação de seus trabalhos, mostrando que o estado é um “celeiro” de cartunistas,
7
chargistas, quadrinistas, etc.
Um dos um desses representantes é o chargista e cartunista Paulo Sampaio, que era conhecido
como Sampaulo: ele nasceu em Uruguaiana-RS em 1939 e atuou entre 1954 até sua morte em 1999,
em Porto Alegre. Ele, que iniciou na carreira a exemplo de seu irmão o cartunista Sampaio, trabalhou
nos jornais Clarim, A Hora, Diário de Noticias, Folha da Tarde, Folha Esportiva, Correio do Povo, Folha
da Manhã e Zero Hora, além de contribuir com revistas como a Revista do Globo. Lançou diversos livros,
tanto individuais quanto coletivos. Sampaulo foi reconhecido internacionalmente, ganhando prêmios no
Brasil e em outros países. As charges analisadas aqui foram pesquisadas das edições do Diário de
Noticias, de março e abril de 1964, encontradas no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa e
retratam o momento da crise e queda do governo de Joçao Goulart e a institucionalização da ditadura
civil-militar.
A expressão charge (que vem do francês charger, ou seja, carregar, exagerar) refere-se a

uma representação pictórica de caráter burlesco e caricatural(...) em que se satiriza um


fato específico , tal como uma idéia, um acontecimento, situação ou pessoa, em geral
8
de caráter político, que seja de conhecimento público.

6
Este projeto não seria possível sem a disposição e ajuda de fotógrafos e artistas e seus familiares que abriram
suas casas e seus acervos para os pesquisadores. Gostaria de agradecer, principalmente, a Maria Lucia
Sampaio, sobrinha de Sampaulo, que fez tudo para contribuir com a pesquisa. Para mais informações sobre
este acervo visitar sampaulocartunista.blogspot.com.br/ .
7
FONSECA, Joaquim da. Caricatura – a imagem gráfica do humor. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999, p. 271.
8
Idem, p. 26. A charge se distingue do cartum pelo caráter específico do acontecimento tratado: assim, o cartum
trata de temas mais genéricos, atemporais, até “universais”. Uma distinção mais complexa é a da charge e da
caricatura: segundo Joaquim da Fonseca, a caricatura é um termo que abarca a charge, o cartum, o desenho de
humor, a tira cômica, a história em quadrinhos de humor e a caricatura pessoal. Por esta razão, alguns autores,
como Rodrigo Patto Sá Motta, preferem se referir ao desenho de humor editorial como caricatura e não charge.
Optei por utilizar o termo charge e não caricatura, pois penso que este termo acaba se referindo mais a obras
que focam-se em personalidades, a chamada caricatura pessoal. Prefiro utilizar o termo charge, já que tratarei

242
A charge tem como objetivo fustigar a sociedade: por esta razão muitas vezes existe uma
relação tensa entre chargistas e os donos do poder. A charge pode ser uma arma contra aquele que está
sendo retratado, ou melhor, satirizado. Isto se dá porque é uma expressão visual, podendo obter um
efeito superior ao discurso verbal, fixando imagens na sociedade. A charge

ajuda a traduzir os eventos, conflitos e grandes personagens políticos para a linguagem


popular, tornando tais temas mais palatáveis para indivíduos iletrados e/ou socialmente
excluídos. (...) Ela contribui para desmitificar e dessacralizar o poder, mostrando líderes
e chefes de Estado como seres falíveis e, eventualmente, ridículos. Ao mesmo tempo,
torna os assuntos políticos menos misteriosos e mais próximos do universo de
9
compreensão do povo.

Um exemplo disso é a Figura 1, publicada no Clarim, jornal vinculado ao PTB, durante a eleição
para prefeito de Porto Alegre em 1955: ela mostra o então prefeito, Walter Peracchi Barcellos, mostrando
pontos turísticos a seu candidato, Euclides Triches que havia se transferido recentemente a capital. Ao
ser transformada em imagem, a ideia por traz dela, que Triches não conhecia a cidade que queria
governar, ganhou força e, segundo alguns autores, mudou os rumos de uma eleição: a esta charge é
10
atribuída a vitória eleitoral de Brizola.

Figura 1 – Charge de Sampaulo publicada no Jornal Clarim, em 1955. Acervo de Maria Lucia Sampaio.
Desde o século XIX a charge tem importante papel dentro de um jornal, tomando a forma de um
11
editorial no qual o jornal expressa seu ponto de vista, ilustrando a posição política do jornal. Assim, as
charges e caricaturas constituem documentos muito ricos para o conhecimento histórico, já que podem
12
ser vistas como crônica e interpretação, mostrando a visão que um grupo tem de um acontecimento.
Isto serve para analisarmos as charges exibidas aqui: elas são de autoria de Sampaulo, mas
dizem tanto sobre sua visão quanto sobre a visão que seu jornal, o Diário de Noticias, queria passar. O
trabalho de Sampaulo foi, no início de sua carreira muito marcado pela política: ele – que era filho do
desembargador João Pereira Sampaio, que concorreu ao governo do estado em 1954 pelo PSB,
apoiado pelo PCB – surgiu publicando no periódico Clarim, vinculado a Brizola, e trabalhou no Comitê de
Resistência, durante a Legalidade. Por outro lado, seu jornal havia assumido o projeto conservador. As
charges que ele publicou durante este período podem ser vistas sobre este prisma da dualidade: ao
mesmo tempo que atacam os conservadores, criticam posturas dos nacionalistas.
Durante o ápice da disputa entre os dois projetos políticos são realizados grandes eventos, tanto
por aqueles que apoiavam Jango, quanto pelos que queriam sua deposição: destacam-se entre as
manifestações de apoio, os comícios de 9 de março em Porto Alegre e o de 13 de março na Central do
Brasil; entre as da oposição, a Marcha da Família Com Deus pela Liberdade, resposta ao comício da
Central, organizado em São Paulo em 19 de março.

aqui de obras que tratam de situações e acontecimentos e não pessoas específicas. Além disso, penso que este
termo é mais genérico, e, desta forma, de melhor utilização.
9
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p.
18
10
FONSECA. Op. cit., p. 12.
11
MOTTA, Op. cit, p. 19.
12
Idem, p. 23.

243
Figura 2: Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 13/3/1964
No dia do Comício da Central foi publicada no Diário de Notícias a Figura 2: nela vemos dois
personagens representando o homem comum (o que fica claro através da linguagem coloquial utilizada)
falando, com certo temor, do Comício que ocorreria naquele dia no Rio de Janeiro. É interessante ver a
forma como o Comício da Central foi visto por Sampaulo: em sua charge ele brinca que a primeira
reforma (já que a manifestação era em prol das reformas de base) deveria ser do dia em que se
realizaria. Era uma sexta-feira 13, um dia mal assombrado. É digno de nota o fato de que outros dois
eventos marcantes da história pregressa haviam ocorrido em épocas agourentas: tanto o suicídio de
Getúlio Vargas quanto a tentativa de Golpe em 1961 deram-se no mês de agosto, um mês assombrado
segundo crenças populares. Pode-se pensar que ao mencionar o mau-agouro que havia no dia,
Sampaulo estava fazendo referência a estes eventos.
Em março de 1964 a disputa entre os nacionalistas e os conservadores chega ao limite: os setores
populares pressionavam o governo pelas reformas, enquanto os setores conservadores brandiam contra
o governo e suas medidas que refletiam, para eles, o plano de implantação do comunismo no Brasil. Isto
é evidenciado nas Figuras 3 e 4: na primeira vemos Jango acuado sentado em uma cadeira
(representação da presidência da república), enquanto o “Congresso” afirma que está com vontade de
fazer uma “desapropriaçãozinha”, isto é, retirar o presidente de seu lugar. Na forma como Jango é visto
por Sampaulo são ressaltadas algumas características físicas, como sua calvície incipiente, seu nariz
proeminente e seu rosto rechonchudo, além de ser apontado um certo retraimento, ou timidez: estes
13
elementos também foram utilizados por outros chargistas para retratar o político.

13
MOTTA. Op. cit., pp. 43-4.

244
Figura 3 – Charge de Sampaulo- Diário de Notícias 18/3/1964
Mas o que é mais claro na charge é a insatisfação do Congresso em relação ao presidente.
Podemos ver aqui uma indicação do posicionamento dúbio que as charges de Sampaulo tinham neste
momento: por um lado, ela apresenta que o todo o Congresso, ou seja, todos os representantes do povo
brasileiro, estava contrário a Jango. Isto é uma distorção, já que, mesmo que fossem minoria, havia
congressistas favoráveis a Jango e suas medidas reformistas enviadas no início do ano, como a reforma
agrária mencionada na palavra “desapropriação”. Por outro lado, a forma como são retratados os dois
personagens nos permite outra leitura: Jango, o vice-presidente eleito legitimamente, está intimidado por
um “Congresso” que quer se impor: ele está sussurrando seus planos, o que denota uma conspiração.
Já na Figura 4, é feita uma metáfora da situação política tomando como base os personagens de
desenho animado, Frajola e Piu-piu: o Gato/Governo deseja matar o Pássaro/Constituição, que está no
alto, protegido por uma gaiola. O que não está dito são as razões do governo: as mudanças que queria
fazer na Constituição visavam permitir as reformas que buscava trazer ao país, as reformas de base, que
eram as reformas urbana, política, econômica, agrária, de ensino, e sindical. Esta metáfora, que poderia
ser compreendida até por uma criança, mostra uma forma como Jango era visto pela imprensa
conservadora: ele seguia os passos de seu “mestre” Getúlio Vargas e queria implantar uma ditadura no
Brasil. Ao utilizar esta metáfora, o artista faz ironia, já que Frajola, por mais elaborados que sejam seus
planos, nunca consegue comer o Piu-piu: de acordo com a charge, a Constituição não era um alvo tão
fácil como pensava o Governo.

Figura 4 – Charge de Sampaulo 24/3/1964


Já a Figura 5, publicada poucos dias antes do golpe, mostra o “malabarista” Jango tentando
equilibrar diversos tijolos: estão representadas as refinarias de Ipiranga, Capuava e Manguinhos, além
da destilaria Rio-Grandense, que eram particulares e haviam sido encampadas pelo governo federal.
Além disso, Goulart tem em sua posse também outro tijolo chamado “Terras”, que se refere ao
movimento que o governo estava fazendo no sentido de desapropriar terras para a Reforma Agrária.
Estas medidas haviam sido tomadas e anunciadas no Comício da Central. Os próximos “malabares” a
serem utilizados eram “Papel”, “TV” e “Rádio”: estes eram referências a intenção do Governo de
14
controlar o monopólio do papel. Segundo os temores da grande imprensa, Jango se utilizaria do
monopólio do papel para reprimir e controlar a imprensa.

14
Idem, pp. 152-3.

245
Figura 5 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 25/3/1964
Desta forma, esta charge mostra que Jango buscava controlar todas as esferas da vida
econômica e política em suas mãos, instalando assim uma ditadura totalitária. Por esta razão ele queria
equilibrar também a “Propaganda”: se iniciaria no Brasil um regime que, assim como no Estado Novo,
além de cercear a imprensa e a iniciativa privada, buscaria impor sua visão de mundo através de uma
forte política de propaganda. Nesta charge, Sampaulo retrata Goulart como alguém que, ao mesmo
tempo em que tem uma aparência simpática e agradável, aparentemente não sabe o que está fazendo:
esta era uma visão muito difundida entre os chargistas da época, que viam o presidente “como político
desastrado, que promovia eventos e alianças que fugiam ao seu controle, agindo como uma espécie de
15
aprendiz de feiticeiro”.
A partir do dia 25 de março, com uma manifestação de marinheiros, a crise política vai crescendo
em ritmo acelerado, especialmente a relação do presidente com os oficiais conservadores. Eles
pressionavam cada vez mais o presidente para reprimir militares subalternos revoltosos; em reposta,
Jango atacou os oficiais golpistas no dia 30 em uma reunião com 5 mil sargentos e suboficiais da Polícia
Militar da Guanabara no Automóvel Clube. Este evento fortaleceu a união do grupo pró-reformas, mas
aumentou o temor dos oficiais das Forças Armadas. Após este evento, em Minas Gerais o comandante
do IV Exército, General Olympio Mourão Filho, com o apoio do governador Magalhães Pinto, insurgiu-se
contra o governo estabelecido em 31 de março, recebendo apoio de outros conspiradores, como os
governadores de São Paulo, Adhemar de Barros, e da Guanabara, Carlos Lacerda, o que levou a
tomada do poder em um golpe de estado no dia 1º de abril.
Após o Golpe, o presidente deposto viajou a Porto Alegre na madrugada do dia 1º para o dia 2,
sendo recebido por uma parcela da população de Porto Alegre, formada tanto por civis quanto por
militares, que estava disposta a resistir ao Golpe. Apesar destas mobilizações, Jango chegou a Porto
Alegre decidido a não provocar derramamento de sangue; no final da manhã do mesmo dia, Jango
decidiu ir para o exílio no Uruguai, recusando-se a distribuir armas para a população e ampliar a
resistência. Ele nunca mais voltou com vida ao seu país.
Os acontecimentos ocorridos imediatamente após o Golpe Civil-Militar são retratados nas
Figuras 6 e 7. Na primeira vemos Jango e Brizola, que também buscou exílio no Uruguai, saindo do
Prédio/Brasil vestindo somente um barril: eles haviam perdido suas roupas em um jogo, possivelmente
pôquer. Jango fala para o cunhado que não era possível blefar (“passar o cachorro”) duas vezes na
mesma mesa. A situação é vista sob a metáfora do jogo: a crise política é vista como um pôquer, em que
os golpistas e os governistas estavam disputando o Brasil, sendo que o primeiro blefe seria a Campanha
da Legalidade e o segundo a tentativa de resistência em 1964.

15
Idem, p. 56.

246
Figura 6 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 7/4/1964
É digno de nota a forma como são representados os políticos: enquanto Jango está entre a
constrangimento e a conformação, Brizola está irritado. Sampaulo apresenta o político de forma similar a
outros artistas do país: é ressaltado seu “perfil radical, que transparece na composição das feições,
16
quase sempre agressivas(...)”. Assim, enquanto um cunhado é mostrado como passivo e conformado,
o outro é radical e indignado.

Figura 7 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 8/4/1964


Imediatamente após o Golpe ser bem-sucedido, inicia-se a repressão: em Porto Alegre os
primeiros alvos são os civis que encontravam-se em frente à prefeitura dispostos a resistir e que, já na
tarde do dia 2, foram brutalmente reprimidos pelos golpistas. Posteriormente, são expedidos mandados
de prisões a diversos líderes da resistência, tanto civis quanto militares, em especial o prefeito Sereno
Chaise, que não havia ido imediatamente para o exílio. Isto é retratado na charge de Sampaulo do dia 8
de abril (Figura 7), que mostra Sereno Chaise representando a expressão popular “ficou agarrado no
pincel”: ele cai após duas figuras (possivelmente Jango e Brizola) levarem sua escada. A mensagem da
charge é clara, já que ele é o único entre os líderes nacionalistas que é preso nos dias seguintes ao
Golpe.
No dia seguinte foi baixado o Ato Institucional que representou “a necessidade de
17
institucionalizar um novo aparato que apoiasse a ‘revolução’”. Este aparato, que permitiu a Operação
Limpeza, dizia respeito a medidas punitivas aos apoiadores do regime anterior: ele “visava a erradicar

16
Idem, p. 37.
17
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005, p.65.

247
18
ameaças potenciais a algo que era definido como segurança nacional”. Além disso, fortalecia o poder
do Executivo, em detrimento do legislativo. Com este dipositivo, foi ampliada a repressão, que se deu
através de prisões e expurgos.

Figura 8 – Charge de Sampaulo – Diário de Noticias 18/4/1964


É esta situação que é descrita na charge do dia 18 de abril: um homem está a comemorar o fato
de não estar presente na lista das pessoas presas pela Ditadura em função de vinculação com o governo
deposto. Ainda há a menção a outra lista, a dos novos ministros. Pode-se dizer que o artista retrata os
primeiros dias do novo regime como um dia do juízo final: algumas pessoas eram abençoadas com o
paraíso (uma participação no novo governo) ou amaldiçoadas ao inferno (sendo encarceradas e
reprimidas).
Neste momento também se iniciam os expurgos, através dos quais a ditadura afastou todos
aqueles que tinham relação com o governo anterior. Foram instauradas comissões de expurgos em
órgãos dos governos federal, estadual e municipal e além de empresas estatais e de economia mista.
Após o expurgo, a pessoa via-se privada de sua fonte de renda, sendo obrigada a modificar radicalmente
seus planos de vida.

Figura 9 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 23-4-1964


Este foi o caso dos expurgados da Brigada Militar, já que havia muitos apoiadores do governo
Jango nesta instituição. Isso é mostrado na Figura 9: nesta charge Sampaulo mostra alguns brigadianos
saindo do Prédio/Brigada Militar sob as ordens do Oficial/Ato Institucional. O que chama a atenção na
imagem é a agressividade do “Oficial”, que se impõe aos brigadianos, que estão com ar triste e
desesperançoso.
Assim, analisamos a forma como os acontecimentos políticos de março e abril de 1964 foram
18
PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 117.

248
retratados pelo chargista Sampaulo: da mesma forma que criticava os nacionalistas, ele atacava os
conservadores. As imagens escolhidas aqui foram as que sintetizaram melhor esta postura dúbia do
artista. O que ficou esboçado aqui é que, com a institucionalização da ditadura civil-militar este artista vai
produzir mais obras que apontam as arbitrariedades do novo regime. Ao mesmo tempo, ficou clara a
grande contribuição que a charge pode trazer ao conhecimento histórico: através de um desenho
podemos ver a forma como um indivíduo ou grupo posicionou-se frente a um acontecimento.
Fontes pesquisadas
Edições do Jornal Diário de Noticias de Porto Alegre, de março e abril de 1964 . Setor de Imprensa do
Museu da Comunicação Hipólito José da Costa.
http://sampaulocartunista.blogspot.com.br/

Referências Bibliográficas:
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005.
FERREIRA, Jorge. A Legalidade Traída: os Dias Sombrios de Agosto e Setembro de 1961. In: Revista
Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1997.
FONSECA, Joaquim da. Caricatura – a imagem gráfica do humor. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2006, p. 18
PADRÓS, Enrique Serra; LAMEIRA, Rafael Fantinel. “Introdução – 1964: O Rio Grande do Sul no
furacão”. In: PADRÓS, Enrique Serra ET all. A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do
Sul(1964-1985): História e Memória. Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto
Alegre, Corag, 2009.
PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e
na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 117.
RODEGHERO, Carla Simone. “Regime militar e oposição no Rio Grande do Sul”. In: GERTZ, René
(Org.). História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, vol. 4, 2007.
WASSERMAN, Claudia. “O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, ‘celeiro’ do Brasil”. In: PADRÓS, Enrique
Serra ET all A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): História e Memória.
Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto Alegre, Corag, 2009.
ZARDO, Murilo Erpen. Operação farroupilha: a transferência do governo estadual do Rio Grande do Sul
para Passo Fundo durante os dias do golpe civil-militar de 1964. Porto Alegre, UFRGS, 2010. Monografia
de conclusão de curso de História.

249
250
VII – Ditaduras em arquivo: documentos da
repressão e da resistência
Análise do Processo Descritivo Como Produção de Conhecimento Arquivístico: o caso
das oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos na ditadura militar.

1
Anna Luiza de Moura Saldanha

Resumo: O presente artigo visa demonstrar a forma como os processos descritivos amplos e
contextualizados historicamente servem como ponto de produção de conhecimento arquivístico,
demonstrando o papel de pesquisador do arquivista nos acervos documentais, através da análise da
descrição feita nas unidades documentais “oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos”, constantes
na série 3 – terrorismo de estado nas ditaduras do cone sul, do fundo documental movimento de justiça e
direitos humanos.
Palavras-chave: Descrição Arquivística – Movimento de Justiça e Direitos Humanos - Ditaduras do
Cone Sul

Abstract: The present article aims to demonstrate how the processes descriptive contextualized
historically serve as a point of producing archival knowledge, demonstrating the role of the archivist as
researcher on documentary collections, by examining the description given in units documentary
"hearings of family of uruguayans disappeared" appearing in the series 3 – state terrorism in the southern
cone dictatorships, the fund documentary movement for justice and human rights.
Keywords: Archival Description – Movement for Justice and Human Rights - Southern Cone
dictatorships

Introdução
Os regimes militares na América Latina produziram diversos documentos que identificavam os
cidadãos contrários ao sistema que vigorava. Além disso, estratégias de ação como capturas, torturas e
desaparecimentos de opositores geraram uma infinidade de registros escritos que atualmente se
transformam nas principais provas das violações cometidas pelo próprio Estado.
De suma importância, o acervo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos possui grande
funcionalidade para a história da humanidade, por ser detentor de fontes que contém retratos da luta,
resistência e resgate dos Direitos Humanos.
O arquivo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos se constitui por um acervo que possui
como fundo documental esse mesmo nome. Dentro deste fundo existem 6 séries, com suas subséries,
que retratam sua história de luta, resistência, resgate e respeito aos direitos fundamentais do homem,
revelando a história da repressão militar no Rio Grande do Sul, no Brasil e na América Latina –
identificando personagens e redes de solidariedade na luta contra a ditadura.
A problemática que se definirá ao longo do trabalho é a forma como os processos descritivos
amplos e contextualizados historicamente servem como ponto de produção de conhecimento
arquivístico, demonstrando o papel de pesquisador do arquivista no acervo, a partir da análise do
processo de descrição dos itens documentais “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos” que
se encontram arquivados na série Terrorismo de Estado no Período da Ditadura no Cone Sul do Fundo
do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.

Descrição arquivística e representação informacional


A descrição arquivística é uma das tarefas primordiais no tratamento dos acervos, visando
garantir o acesso às informações contidas nos documentos. Antônia Heredia (1997, p. 299) defende que
a descrição: “[…] es el analisis realizado por el archivero sobre los fondos y los documentos de archivo
agrupados natural o artificialmente, a fin de sintetizar y condensar la información en ellos contenida para
oferecerla a los interesados.” Para ela, a análise aplicada aos documentos de arquivo devem ser feitas
com subjetividade, e que os arquivistas devem se limitar a representar os documentos, condensando ou
substituindo o mais fiel possível as informações de um documento. Em seguida, ela diz que a descrição
deve ser:

1
Arquivista e historiadora. Telefone para contato: 51-99007717. Cursando especialização em Gestão em Arquivos
EAD pela UFSM/UAB

253
Exacta: en cuanto que os documentos no son algo impreciso, sino testimonios únicos y
concretos.
Suficiente: par la unidad que se está informando (archivo, fondo, serie o documento), sin
ofrecer más de lo necesario, por exceso o por defecto,
Oportuna: en cuanto que ha de reflejar una programación que marque una jerarquía de
la información. (HEREDIA, 1997, p.301).

Dessa forma, a autora acredita que a descrição arquivística pode facilitar o controle do arquivista
e dar informação aos demais (usuários). Ainda, Heredia (1997) fala que a obtenção dos dados da
descrição pelo arquivista não é uma “explotação” das informações dos documentos em benefício próprio,
como pode ser a atividade de um historiador, e sim, que este trabalho é encaminhado a “dar a conhecer”
a informação indispensável a quem a solicite.
Na abordagem pós-custodial ou funcional desenvolvida pelos canadenses, os princípios
arquivísticos são reformulados de acordo com os novos paradigmas da sociedade contemporânea.
Dessa forma, o princípio da proveniência dos documentos é visto por essa corrente não mais baseado
na estrutura física dos documentos e da instituição que os criou, mas sim, no contexto de produção, na
herança documental e no valor social da informação (TOGNOLI e GUIMARÃES, 2010). Como
conseqüência desta reformulação, os conceitos de arranjo e descrição são desenvolvidos mais dentro de
um entendimento contextual das relações do documento, do que na entidade física documental. (2012,
p.30). Para Cook (apud TOGNOLI, 2012, p.30):

A descrição pós-moderna refletiria as pesquisas contextuais sustentadas


pelosarquivistas na história dos documentos e de seus criadores, e produzira descrições
em constante-mudança, uma vez que a criação dos documentos e a própria história
custodial nunca termina. A descrição é continuamente reinventada, reconstruída,
renascida. Adescrição pós-moderna, focando-se dessa maneira na história do
documento, refletiria uma maior nuance no contexto, o que abriria uma riqueza de
conteúdo informacional. (COOK, 2007a, p.34)

Para que se garanta amplo acesso, na visão pós-custodial, a descrição é feita através de uma
metodologia escolhida pelo arquivista com base nas políticas que envolvem o arquivo, o contexto no qual
os documentos foram criados e as atividades a que eles serviram.
2
Sobre o conceito de representação, ainda Hagen (1998, p. 3) faz considerações citando Cook :

A descrição tem como base a teoria da representação: “a teoria da representação é a de


que enquanto os arquivos originais devem ser necessariamente armazenados na
estante numa determinada ordem e localização física (normalmente em embalagens
fechadas), as representações dos originais podem ser multiplicadas e armazenadas em
qualquer ordem e em qualquer lugar que seja considerado útil.

Hagen (1998) analisa as características da teoria da representação que os originais não tem,
dizendo que são duas: a primeira é que podem ser distribuídas para fora do arquivo, podendo se tornar
públicas de forma impressa ou pelo suporte digital, para atender os usuários; a segunda é que elas
podem ser organizadas internamente para facilitar a busca de informações pelos usuários.

O processo descritivo no acervo do MJDH – O quadro de arranjo, as séries documentais e a


reconstrução do contexto arquivístico
A preocupação em dar acesso aos documentos de um acervo é uma função primordial dos
arquivistas. Sendo assim, seu trabalho na organização dos arquivos – o arranjo e a descrição –
pressupõe a compreensão da origem dos documentos, de quem foram seus produtores, suas funções
sociais e o papel que ocuparam perante a sociedade. Dessa forma, o arquivista, em seu trabalho de
pesquisa, produz conhecimento ao iniciar um programa descritivo com metodologia própria da
Arquivologia, objetivando difundir acervo que está organizando.
Os documentos de organizações de direitos humanos foram os testemunhos da atuação
repressiva do Estado e a prova da existência de mortos, desaparecidos, perseguidos ou torturados por
ordem deste. Posteriormente, foram constituídos como acervos, não perdendo o seu papel de denúncia,
agregando em sua valoração a construção e preservação da memória da luta contra a ditadura e
sistemas repressivos.
Estes acervos foram tema de debate durante o Fórum Social Mundial de 2005. A partir daí, surge

2
COOK, Michael. Information Manegement and archival data. London: Library Association Publishing, 1993,
apud HAGEN, 1998, p.3.

254
uma ação da Archiveros Sin Fronteras, aqui Arquivistas Sem Fronteiras, de formar grupos de trabalho
para localizar e intervir em acervos da luta contra a ditadura civil-militar no Cone Sul. No Rio Grande do
Sul, sob a coordenação do arquivista Jorge Enriquez Vivar, em conjunto com a pró-reitoria de extensão
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é montado um grupo de trabalho para recuperar o
acervo do MJDH.
Segundo o arquivista Jorge Vivar, em entrevista cedida para este trabalho, encontravam-se
misturados documentos sobre a Operação Condor no Brasil, informes da polícia de inteligência de
Buenos Aires, documentos simbólicos sobre tortura, prisão e perseguição de lideranças políticas,
sindicais, estudantis e sociais, entre vários outros.
É recorrente compreender os conceitos arquivísticos dentro do trabalho de organização de um
acervo, pois para que se chegue à atividade descritiva é necessário percorrer um longo caminho de
análise e entendimento dos documentos, as relações deles entre si, com sua origem e seus produtores e
a pertinência com as atividades e funções da instituição que os abriga. Assim, o arquivista determina o
tipo de acervo a ser organizado, e inicia o processo de organização e conhecimento do acervo,
aplicando a metodologia própria da arquivística, através dos seus principais conceitos.
O quadro de arranjo do MJDH foi construído sob a concepção de que um arquivista não deve ser neutro
ou imparcial ao aplicar a teoria arquivística em seu trabalho. Segundo o arquivista Jorge Vivar, ao falar
sobre a Série 3 “Terrorismo de Estado no período da Ditadura no Cone Sul”, diz que a reflexão na
elaboração do quadro de arranjo da instituição foi feita a partir dessa perspectiva. Para ele:

Havia uma outra discussão na arquivística sobre a neutralidade, a imparcialidade do


arquivista..não existe isso né...todos nós, seres humanos, temos, a ver, isso que se
chama ideologia também, todos nós temos...princípios, temos ideais, temos éticas, e
elas estão associadas àquilo que nós pensamos, do ser humano, da vida e da
sociedade. Então não existe isso de uma arquivista ser um neutro, um profissional
imparcial. (VIVAR, 2012)

Para Cook e Schwartz (2004): “[...] os arquivistas são artífices da política de identidade” (p.26) e,
com isso, exercem poder sobre a construção do conhecimento histórico e sobre como nos conhecemos
como indivíduos, grupos e sociedades. Dado o fato de o acervo ser constituído por uma instituição que
combate as violações aos direitos humanos, seu quadro de arranjo reflete sua política e visão de mundo.
A série 1 – organização e funcionamento – como toda instituição contem documentos sobre a
fundação do MJDH, o regimento e estatuto, bem como documentação administrativa, fiscal e de recursos
humanos.
A série 2 – Promoção e intervenção na defesa dos direitos humanos – é constituída por
subséries que abarcam documentos sobre a defesa das violações cometidos pelo poder público no
período democrático da história do país e do mundo. As subséries são denominadas a partir das
intervenções feitas pelo MJDH na saúde e segurança pública, nas questões agrárias e de moradia
urbana – com grande participação no nascimento do Movimento dos Sem-Terra -, questões de xenofobia
e discriminação social, as parcerias feitas entre o MJDH e organizações internacionais, como a UITA, e a
subsérie que demonstra as ações feitas pela instituição na educação pelos Direitos Humanos.
A série 3 – Terrorismo de Estado no período da Ditadura no Cone Sul – que dentro do quadro de
arranjo, pode ser visualizada no anexo A deste trabalho, aborda as intervenções feitas pelo Movimento
entre 1964 e 1984, desde sua clandestinidade na luta contra os órgãos repressores na América Latina.
Contém documentos que denunciam torturas, prisões arbitrárias, desaparecimento de pessoas, além do
auxílio dado aos refugiados e às famílias de mortos e desaparecidos políticos.
A série 4 – Transição política no Cone Sul – que trata das questões de abertura democrática e
de como ela foi promovida nos países latino-americanos que sofreram o golpe militar. Há documentos,
panfletos, recortes, correspondências sobre as interferências e ações do Movimentos nas discussões
sobre as questões de anistia, abertura de arquivos do Estado e reparação e indenização de vítimas e
familiares.
A série 5 – Prêmio de Justiça e Direitos Humanos – traz toda a documentação do evento
promovido pelo MJDH há 29 anos, que premia jornalistas dos mais variados meios que cobrem as
notícias de violação ou premiação dos direitos humanos.
Finalmente, a série 6 traz os clippings de jornais sobre as ações às quais o MJDH esteve
envolvido e que foram coletados desde o inicio de suas ações. Nesta série optou-se por classificar os
documentos de acordo com o quadro de arranjo, ou seja, traz como subséries as séries anteriores a
esta, porque noticiam as ações da instituição.

A função da pesquisa na descrição arquivística


O acervo do MJDH, como pudemos ver, demonstra ter uma peculiaridade ímpar no que diz
respeito à origem e organicidade de seus documentos, e o conteúdo que carrega. Na identificação de

255
usuários, percebeu-se que os documentos tem sido solicitados principalmente para a elaboração de
artigos, dissertações e teses nas áreas das Ciências Humanas - História, Sociologia - e também áreas
de Comunicação, como o Jornalismo.
Diante desse quadro, optou-se por maximizar o conteúdo da descrição, procurando obter
referências com os seus produtores e o contexto no qual eles foram criados. Assim, a documentação
obtida através da atividade descritiva torna-se um complemento à fonte de pesquisa, ampliando ao
usuário informações que antes poderiam ser ignoradas, conforme se posiciona BELLOTTO (2007):

Cabe, portanto, ao elaborador da descrição apreender, identificar, condensar e,


sem distorções, apresentar todas as possibilidades de uso e aplicações da
documentação por ele descrita. Se o historiador deve submeter-se às
coordenadas que limitam seu trabalho, isto é, à existência de documentos
utilizáveis e à lógica de sua própria análise, interpretação e síntese, o
arquivista, por seu conhecimento do acervo e por sua técnica de descrição,
indexação e resumo, pode fornecer-lhe elementos que, muitas vezes,
permaneceriam para sempre ignorados, gerando lacunas, distorções graves ou
mesmo fatais para a historiografia. (p.177)

Nesse sentido, o que pode-se perceber é que se procurou desenvolver um minucioso trabalho
de pesquisa, de forma a reconstruir o contexto arquivístico do acervo do MJDH. Para isso, a atividade
descritiva partiu das seguintes etapas:

a) Identificação dos membros do Movimento de Justiça e Direitos Humanos;


b) Identificação de personagens e eventos mais recorrentes na documentação do acervo entre
ativistas do próprio MJDH, vítimas e agentes de violações aos Direitos Humanos;
c) Elaboração de cronologia com base na documentação e em fontes bibliográficas;
d) Pesquisa em fontes bibliográficas sobre os personagens, os eventos e os fatos históricos
recorrentes no acervo;
e) Entrevistas com membros do MJDH e com personagens da história da instituição, através do
Projeto Marcas da Memória;
f) Construção do quadro de arranjo.

Para Velloso (2010), a descrição documental é o trabalho intelectual do arquivista, é onde se dá a


produção de conhecimento de um arquivo. Segundo ela:

A compreensão da descrição arquivística como processo de pesquisa redimensiona o


seu próprio lugar na Arquivologia. Tradicionalmente entendida como atividade voltada à
elaboração de instrumentos de pesquisa, perdeu-se sua dimensão científica e foi
reforçada sua perspectiva prática até chegarmos a ponto da produção de modelos de
“confecção” de descrição. (VELLOSO, 2010, p.53).

De importante conteúdo no que se refere às ações do Movimento e Justiça e Direitos Humanos


e das Ditaduras Militares no Cone Sul, as Oitivas de familiares de Uruguaios Desaparecidos forneceram
amplo auxílio para a construção do contexto arquivístico da instituição. Utilizada como produto de uma
análise, sua descrição pode ser encontrada no anexo deste trabalho. A descrição deste item documental
é visto no anexo C deste trabalho.
A importância deste item documental, e a sua procura por pesquisadores fizeram com que se optasse
pela elaboração de um catálogo, seguindo uma descrição analítica para a sua disponibilização e
consulta. Antonia Heredia (1991) o define como:

Catálogo es el instrumento que describe ordenadamente y de forma individualizada las


piezas documentales o las unidades archivistitas de una serie o de un conjunto
documental que guardan entre ellas una relación o unidad tipológica, temática o
institucional. (p.360)

O catálogo geralmente é utilizado em descrições de unidades ou itens documentais, em resposta


aos interesses relativos à política da instituição ou à demanda de pesquisa – determinado esse valor, fica
justificada sua elaboração.
O catálogo analítico imprime uma possibilidade maior de demonstrar o instrumento de pesquisa
como produção de conhecimento. A relevância do valor histórico desses itens documentais faz com que
o arquivista possa elaborar uma pesquisa minuciosa sobre determinado tema, e sendo o item
documental uma composição de uma série e de um fundo, maior será a compreensão do arquivo e do
contexto ao qual ele faz parte.

256
No período repressivo, a ONU, através de sua subcomissão de Direitos Humanos, propôs a
realização de audiências para as oitivas de familiares de desaparecidos uruguaios, ao preocupar-se com
as violações aos Direitos do Homem pelas ditaduras do Conesul.
Em setembro de 1979, a OEA (Organização dos Estados Americanos) enviou funcionários a Buenos
Aires, a fim de investigar e inspecionar o Estado buscando denúncias dos crimes cometidos por este
contra cidadãos comuns que conforme Eric Nepomuceno, em seu artigo na revista Carta Maior:

Imunes a tudo isso, na porta do prédio onde funcionava a representação da


OEA, na Avenida de Mayo, havia filas de gente disposta a falar, apesar dos
riscos, apesar do medo. Na verdade, desde 1975 a OEA recebia denúncias de
violações dos direitos fundamentais. Mas depois do golpe de março de 1976,
3
essas denúncias viraram uma torrente. (2011, documento on-line. )

O relatório foi finalizado em abril de 1980 e proibido de circular na Argentina, sob imposição do
regime ditatorial latino-americano. Essa campanha resultou em repercussão negativa para a ditadura
argentina, fazendo com que a regime uruguaio não aceitasse o pedido da OEA para fazer um processo
igual em seu território. No entanto, a investigação na Argentina já havia registrado denúncias de parentes
de desaparecidos políticos uruguaios, e a OEA fez com que a existência de desaparecidos uruguaios e a
negativa do regime militar de realizar as oitivas em solo uruguaio se tornasse amplamente conhecida,
chamando a atenção de outras entidades de luta pelos Direitos Humanos.
Nessa mesma conjuntura, foi criada em Paris a A.F.U.D.E. (Agrupación de Familiares de
Uruguayos Desaparecidos), uma associação semelhante à da Madres da Plaza de Mayo, o que
proporcionou maior organização na busca e maior registro de denúncias de desaparecimentos políticos
uruguaios.
Tamanha repercussão chamou a atenção da Subcomissão de Direitos Humanos da ONU, que
através da A.F.U.DE. negociou a oitiva desses familiares de uruguaios desaparecidos, com audiências a
serem realizadas no Brasil, que nesse momento vivia sua fase de “transição democrática”.
A seqüência de oitivas e o andamento do processo fizeram com que 130 casos de
desaparecidos uruguaios fossem conhecidos e investigados e aliado a isso, escancarou a tensão vivida
no território uruguaio sob a égide do regime militar. Além disso, a operação ter sido realizada em Porto
Alegre facilitou sua realização, pela proximidade com o Uruguai, e deu mais base para a luta da
A.F.U.DE., que ganhou novos membros, pois muitos familiares se conheceram através da oitiva no
Brasil.
Michael Cook (2007b, p. 126) enfatiza a importância do aspecto da pesquisa no processo descritivo:

[...] há muito que afirmo que a pesquisa é uma característica fundamental de


nosso trabalho profissional. Mas, geralmente, essa pesquisa tem sido
direcionada para a analise da estrutura e dos métodos da organização
produtora dos documentos, ao invés de ser voltada para a produção de um
instrumento de pesquisa. Se adotarmos o último ponto de vista (uma idéia
relativamente nova), podemos rapidamente ver que nossa pesquisa pode ser
conduzida de forma útil – de fato necessária – para criar o que Mc Neil chama
de ‘texto cultural’. Nossas descrições são interpretativas, e não simplesmente
sistemas neutros de indicativos.

Para ele, algo deveria ter sido pensado, no que se refere às discussões sobre descrição
arquivística, para a inclusão de resultados de pesquisa visando a interpretação de materiais, e não
4
somente às referências de produção e transmissão de dados. Quando cita Mc Neil (2007), dizendo que
o trabalho de descrição, finalizado com um instrumento de pesquisa é visto como um texto cultural, se
refere a que os arquivistas neste trabalho fazem tanto um trabalho de pesquisa quanto de interpretação.
Bellotto (2007, p. 174) acredita que:

[...] os instrumentos de pesquisa são vitais para o processo historiográfico. Escolhido um


tema e aventadas as hipóteses de trabalho, o historiador passa ao como e ao aonde.
Diante de um sem-número de fontes utilizáveis, a primeira providência, pela própria
essência do método histórico, é a localização dos testemunhos. Para tanto, farão o seu
papel as referências documentais em trabalhos publicados, o “colégio invisível” e o
próprio conhecimento dos arquivos: as diferentes tipologias das instituições já definem

3
NEPOMUCENO, Eric. A memória encaixotada sai das trevas. Carta Maior, São Paulo, 29 nov. 2011. Disponível
em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19096>. Acesso em: 03 jun. 2012.
4
MC NEIL. Heather. Recent Trends in archival description: the finding aid as cultural text. Paper to the ARMEeN
workshop. Londres: University College London, 2007, apud COOK, 2007b.

257
as espécies documentais que guardam e possibilitam desenhar o perfil das informações
contidas. Ir da análise crítica do material documentário até a síntese e a interpretação é
o caminho a seguir.

Nesse paradigma, o uso de outras fontes que contemplem e completem o material documentário
possibilitam a reconstrução do contexto arquivístico e a ampliação da descrição documental.
Segundo o Professor Jorge Vivar, a principal metodologia empregada na pesquisa e reconstrução do
contexto dos documentos do acervo do MJDH – além da pesquisa na própria documentação e no acervo
bibliográfico - foi a de História Oral. Na entrevista concedida, ele diz que:

Para a organização do acervo evidentemente nós utilizamos a metodologia da História


Oral. Entrevistamos os atores dessa história do Movimento que, evidentemente os que
se conseguiram localizar. [...] a partir desses depoimentos passou-se entender essa
documentação e sua informação e, na medida em que procedia com sua organização,
solicitávamos a presença deles quando as dúvidas faziam-se presentes. Exemplos: de
repente nos deparávamos com um pedaço de folha escrita com anotações que
continham informações aparentemente insignificantes e inorgânicas, entre aspas não?
Porém esse pedaço de papel junto a outro documento e a informação do depoente
legitimava a informação. A partir daí optamos por não eliminar absolutamente nada, e
sim encontrar a organicidade dos documentos e o significado disto e, evidentemente
para isto, tínhamos que trabalhar em conjunto com os produtores. Neste caso, muito
nos ajudou Jair Krischke, quase nesse processo todo, quase que diariamente... desde o
início. Diria que esta foi a metodologia adotada. Claro, evidentemente que somada e
esta, foi necessária a pesquisa em fontes bibliográficas, procurando encontrar diferentes
significados e aprendizados relacionados aos direito humanos, ditaduras, história
recente, terrorismo de Estado no Mercosul, bibliografia a respeito disto...tudo o que a
gente encontrasse. Muito útil nos foi o próprio acervo bibliográfico que se tem lá. Muitas
teses, dissertações em fim, muitas indicações a respeito deste período. (VIVAR, 2012)

O uso da História Oral é usado como mecanismo de resgate de possíveis esquecimentos dentro
da pesquisa arquivística, de ver o contexto ao qual o documento ou o acervo pertence, sob outro ponto
de vista. Para Favier et. al. (2003, p; 48),

Nuestra época, sin embargo, ha agregado a los archivos que yo calificaria


como espontáneamente formados, los archivos orales, que son creados de
manera deliberada. Aquí nos encontramos con la memoria. Su interés radica
en que permiten conservar un rastro de testimonios de gente que nunca ha
escrito ni escribirá nada, por ejemplo, las confidencias de un ex diplomático que
no tiene la intención de escribir sus memórias, pero que puede aportar mucho
respecto a los pormenores de una negociación o sobre la evolución del ámbito
en que trabajó, o los recuerdos de un antiguo artesano ou obrero atinentes a
una herramienta que inventó o a un oficio que desempeñó y que ahora ya no
existe, o, en fin, las apreciaciones de un particular respecto a un cima social
que él conoció bien. El término “archivo” quizá no sea del todo exacto en estos
casos, pero tales ‘archivos orales’ llenan ostensibles vacios de los archivos
escritos.

Assim, na História Oral resultam narrativas dos protagonistas, que assumem a condição de
fontes à pesquisa histórica, e dentro da Arquivologia permite que o arquivista conheça profundamente o
arquivo em que está trabalhando, no que diz respeito ao seu acervo e ao contexto ao qual se insere.
Outro aspecto salientado na questão do processo descritivo como produção de conhecimento é
a visão crítica do arquivista ao pesquisar e elaborar uma descrição arquivística.
Cook e Schwartz (2004) ressaltam que por muito tempo o arquivista era considerado e se
considerava como neutro, objetivo e imparcial – onde apenas recebiam documentos de entidades e
disponibilizavam ao pesquisador. Não imprimia o seu trabalho de construção do acervo e sua visão de
mundo em relação ao contexto histórico do arquivo. Em seu artigo “Arquivos, Documentos e Poder: a
construção da memória moderna”, os autores apontam a tomada de consciência dos arquivistas sobre a
reflexão crítica nos acervos documentais. Para eles:

Os arquivos – como registros – exercem poder sobre a construção do


conhecimento histórico, da memória coletiva e da identidade nacional, sobre
como nós nos conhecemos como indivíduos, grupos e sociedade. E, por fim,
na busca de suas responsabilidades profissionais, os arquivistas – como
gestores de arquivos o detêm o poder sobre os próprios documentos

258
essenciais à formação da memória e da identidade, por meio da gestão ativa
dos registros antes deles se tornarem arquivos, de sua avaliação e seleção
como arquivos e, posteriormente, de sua descrição, preservação e uso em
permanente evolução enquanto fonte histórica. (COOK; SCHWARTZ, 2004,
p.15).

Na análise feita nas descrições das oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos na ditadura
militar podemos ver essa idéia refletida. O grupo de trabalho formado pelos Arquivistas sem Fronteiras
(AsF) estava em pleno acordo com a história e política do MJDH – este, defensor dos direitos humanos e
principalmente, denunciante das violações cometidas pelo Estado durante a ditadura militar na América
Latina. Dessa forma, o processo de descrição arquivística para a difusão do acervo é uma forma de
representação da história contida dentro dos documentos e de seu contexto de criação.
A reconstrução do contexto arquivístico através da organização do acervo, a análise dos
documentos, a pesquisa feita interna e externamente através da história oral, o posicionamento do
arquivista ao refletir sobre o contexto onde os documentos foram criados, e a escolha de uma
metodologia de trabalho própria da Arquivologia, isso tudo converge para que haja uma descrição
arquivística bem fundamentada, que represente o contexto histórico do acervo, o contexto de origem dos
documentos e as atividades que levaram à sua criação, tornando-se, dessa forma, uma produção de
conhecimento arquivístico, facilitando o entendimento do que é o arquivo e todo o seu conteúdo
informacional.

Considerações Finais
Diante da análise do trabalho feito para o arranjo e descrição do acervo do MJDH, foi importante
perceber a forma e a metodologia de trabalho escolhida pelos Arquivistas sem Fronteiras nesta
intervenção. De características singulares, pois se tratava de um arquivo privado de uma organização
social que desenvolveu seu trabalho em ações na defesa dos direitos humanos, os arquivistas tiveram
dificuldades em perceber as relações entre os documentos, os personagens identificados neles e as
atividades às quais eles faziam parte. A partir disso, o exercício de identificação dessas relações
proporcionou a busca por uma metodologia arquivística que esclarecesse a organicidade dos
documentos, e a utilização de métodos combinados de pesquisa, para que fosse possível obter, no
momento de sua descrição, a representação da complexidade do conteúdo deste acervo. Assim, a
pesquisa do contexto histórico da atuação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, passou pela
interpretação do quadro de arranjo, pela análise dos documentos e da busca de suas relações, e a
pesquisa bibliográfica sobre os principais conceitos que moveram a instituição a atuar em prol de seus
objetivos. Aliada à pesquisa bibliográfica, o uso da metodologia de História Oral foi determinante para
que os documentos fossem entendidos como um conjunto documental, além de proporcionar ao trabalho
de arranjo e descrição a interpretação do lugar que os documentos ocupam nas ações de defesa dos
direitos humanos.
Consequentemente, o arcabouço teórico que a pesquisa traz ao trabalho de arranjo e descrição,
fornece ao arquivista um amplo conhecimento dessas relações entre os documentos e seus
personagens, e assim, possibilita a inclusão de sua reflexão crítica em relação ao contexto histórico do
arquivo, levando em consideração a função social da instituição e os usuários do mesmo.
Como vemos, a organização de um acervo arquivístico fundamentado através da busca por
fontes de pesquisa que possam embasar a escolha de uma metodologia arquivística, além da percepção
do arquivista como pesquisador e produtor de conhecimento, trazem a possibilidade de elaborar um
programa de descrição arquivística amplo e contextualizado historicamente, onde o usuário, ao se utilizar
deste produto para o acesso à informação, encontrará não só a localização desta, mas também seu
sentido enquanto informação pertencente ao arquivo que a abriga.
No arquivo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, é possível perceber e demonstrar ao
usuário o acervo como marco interpretativo das ditaduras do Cone Sul, contendo uma memória
emblemática com os objetivos de legitimar a história das pessoas afetadas pelo regime de repressão e
conscientizar a sociedade a razão da luta por verdade e justiça.

Fontes Pesquisadas:
Quadro de Arranjo do Fundo Documental Movimento de Justiça e Direitos Humanos - Projeto de
Organização do Acervo do Movimentos de Justiça e Direitos Humanos. Coordenação e elaboração Prof.
Jorge Eduardo Enriquez Vivar. Disponível na sede do arquivo de MJDH.
Catálogo analítico do item documental “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos”. Disponível
na sede do arquivo do MJDH.

259
Item documental “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos”. Série 3 “Terrorismo de Estado no
Período da Ditadura no Cone Sul”. Fundo Documental Movimento de Justiça e Direitos Humanos.
Disponível na sede do arquivo do MJDH.
VIVAR, Jorge. O acervo do MJDH. [2012]. Porto Alegre. Entrevista concedida para este trabalho.

Referências Bibliográficas:
BELLOTTO, Heloisa. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
COOK, Michael. Desenvolvimentos na descrição arquivística: algumas sugestões para o futuro. Revista
Acervo, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1-2, p. 125-132, jan./dez. 2007.
COOK, Terry. SCHWARTZ, Joan. Arquivos, Documentos e Poder: a construção da memória moderna.
Registro: Revista do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba/Fundação Pró-Memória de Indaiatuba,
Indaiatuba, v. 3 n.3, p.15-30, jul. 2004. Disponível em: <http://www.promemoria.indaiatuba.sp.gov.br/
arquivos/galerias/registro_3.pdf>. Acesso em: 28 maio 2012.
FAVIER, Jean et. al. Memória y archivos. In: RICOEUR, Paul. Por qué recordar? Barcelona: Granica,
2003.
HAGEN, Acácia Maria Maduro. Algumas considerações a partir do processo de padronização da
descrição arquivística. Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 27, n. 3, 1998. Disponível em:
<http://revista.ibict.br/ciinf/index.php/ciinf/article/view/312/278>. Acesso em: 28 maio 2012.
HEREDIA, Antonia. Archivística general: teoria y practica. Sevilla: Diputación de Sevilla, 1997.
NEPOMUCENO, Eric. A memória encaixotada sai das trevas. Carta Maior, São Paulo, 29 nov. 2011.
Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19096>. Acesso
em: 03 jun. 2012.
TOGNOLI, Natália B. GUIMARÃES, José Augusto C. Arquivística Pós-Moderna, Diplomática Arquivística
e Arquivística Integrada: novas abordagens de organização para a construção de uma disciplina
contemporânea. In: ENCONTRO NACIONAL Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 11.,
2010, Rio de Janeiro. Comunicação Oral. Rio de Janeiro: IBICT/MCT, 2010. Disponível em:
<http://enancib.ibict.br/index.php/xi/enancibXI/paper/download/249/215 > Acesso em: 14 nov. 2012.
VIVAR, Jorge. O acervo do MJDH. [2012]. Porto Alegre. Entrevista concedida para este trabalho.
VELLOSO, Lucia Maria. Modelagem e status científico da descrição arquivística no campo de arquivos
pessoais. 2010. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

260
O DOPS e os arquivos da repressão: as atribuições da Delegacia de Ordem Política e
Social no Maranhão.

1
Manoel Afonso Ferreira Cunha

Resumo: Este trabalho tem por objetivo buscar compreender a vigilância institucionalizada sob a forma
de atribuições identificadas em ofício da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS-MA) em São Luís
do Maranhão, na segunda metade da década de 1970, tendo por base os documentos produzidos e/ou
arquivados pela mesma instituição (DOPS-MA) e que atualmente se encontram disponibilizados para
pesquisa no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Antes se faz necessário salientar a
importância da História do Tempo Presente,das principais perspectivas de entendimento do golpe militar,
da atuação da polícia política (DOPS), da Doutrina de Segurança Nacional e da funcionalidade dos
arquivos como alternativa para o estudo da História Contemporânea brasileira.
Palavras-chave: Ditadura – DOPS – Polícia – Segurança Nacional–Atribuições.

Abstract: This paper aims at seeking to understand surveillance institutionalized in the form of
assignments identified in a letter from the Department of Political and Social Order (DOPS-MA) in São
Luís do Maranhão, in the second half of the 1970s, based on the documents produced and / or archived
from the same institution (DOPS-MA), and that are currently available for research in the Public Archives
of the State of Maranhão (Ampem). Before it is necessary to stress the importance of the History of the
Present Time, the main perspectives of understanding of the military coup, the role of the political police
(DOPS), the National Security Doctrine, and the functionality of the files as an alternative to the study of
Contemporary History Brazilian.
Keywords Dictatorship – DOPS – Police – National Security – Assignments.

1. Introdução
O estudo da História do Tempo Presente no Brasil é algo ainda bastante delicado e suscetível a
inúmeras críticas, haja vista que investigar determinados assuntos e traçar qualquer tipo de análise,
levando em consideração o aspecto inquietante de lidarmos com problemas do nosso dia a dia, de
trabalharmos temas históricos em que diversos atores de grande relevância ainda estão vivos, torna-se
um interessante desafio para a História e para aqueles que desejam desenvolver estudos nesta área.
Há uma forte tendência da historiografia atual em se trabalhar com objetos relativos à
contemporaneidade, construir um novo modo de pensar as relações entre passado e presente, seguindo
o movimento de abandono da noção de um passado estático e acabado. Assim, o processo de
renovação da História Contemporânea está conseguindo responder de maneira positiva a questões
referentes às disponibilidades de fontes, antes tidas como raras (inacessíveis e enclausuradas em
arquivos que há tempos atrás tolhiam a pesquisa acadêmica) e abundantes (maior quantidade e
diversidade) ao mesmo tempo. Como prova disso, vimos surgir, em contraposição aos tradicionais
centros de pesquisas e produções históricas, institutos paralelos que universalizam a noção de
historicidade, democratização e dilatação da História. Exemplos disso são o Instituto de Estudos
Políticos e o Instituto de História do Tempo Presente.
Dentro desse contexto de abordagem histórica do Tempo Presente, encontramos os estudos
relacionados à ditadura civilmilitar no Brasil, ao golpe que deu início a um regime que durou 21 anos e
marcou de maneira funesta a história do nosso país. Logo, devemos atentar para o compromisso que as
pesquisas de História Contemporânea devem trazer tanto para a academia quanto para a sociedade
brasileira. Para isso, vale destacar a importância da análise da trajetória de estudos e pesquisas sobre o
tema.
Diferentemente de outros períodos da história brasileira, a ditaduracivil militar conheceu na
ciência política seu pioneiro instrumento de estudo. Essa perspectiva começa a se modificar na década

1
Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC
(Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação,
Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sob
coordenação da prof. Drª Monica Piccolo.

261
de 1970 (coincidentemente o período mais duro do regime) quando ocorre a reforma universitária e
sistematiza-se aprofissionalização da pesquisa histórica em terras brasileiras, o que acaba, nos anos
2
seguintes, proporcionando a difusão de programas de pós-graduação por todo o país.
Nessa atmosfera de sigilo, de escassez documental estimulada por membros envolvidos no
processo, que os brasilianistas vão ganhar destaque nas pesquisas históricas sobre a ditadura militar.
Historiadores de outras nacionalidades, em sua maioria norte-americana, terão acesso privilegiado a
determinados documentos que pesquisadores brasileiros não tiveram na época, dentre esses podemos
destacar Alfred Stepan, com a obra “Os Militares na Política”, publicada originalmente em 1975.

2. O golpe em diferentes perspectivas


A inovação da pesquisa histórica republicana, com objetivo de romper com o passado, baseada
no forte interesse pela trajetória nacional mais recente, tem suas vantagens, mas nem por isso se livrou
das amarras do tradicionalismo. Ao analisar algumas das principais obras sobre a ditadura militar,
podemos perceber que ainda existe uma tendência que busca personalizar a história do regime.
É comum identificar tanto na direita (que via no Goulart um demagogo e corrupto) quanto na
esquerda (a qual apontava Jango como um burguês de massa vacilante) a avaliação exclusiva do
comportamento e da personalidade de João Goulart para explicar o golpe de 1964. Assim, partindo de
um panorama tradicionalista, o regime instaurado na década de 1960 “teria ocorrido devido à falta de
3
talento de um único indivíduo.”
Além dessas explicações, temos também interpretações voltadas para as grandes estruturas e
4
para a “grande conspiração”. Como afirmam Luís Carlos Prado e Fábio Sá Earp , a primeira compreende
o golpe enquanto consequência do colapso do Populismo. Seus principais representantes são Octávio
Ianni, Guilherme O`Donnel e Fernando Henrique Cardoso. Estes apontam, respectivamente, que o golpe
resultou da crise do modelo agroexportador e os modelos de desenvolvimento nacionalista em aliança
com as empresas estrangeiras; a aproximação entre industrialização e autoritarismo; e a necessidade de
gestões autoritárias para coordenar esse processo de acumulação de capital.
5
A segunda, referente às grandes conspirações , tem um importante enfoque nos arranjos feitos
pelos grupos sociais conservadores brasileiros, com influencia externa norte – americana que, para
muitos, teria sido o fator primordial para a eclosão do processo golpista em 1964. No entanto esse tipo
de interpretação desconsidera o papel dos grupos sociais que atuaram de forma litigiosa dentro do país,
tendo como resultado o deslocamento externo do protagonismo da história do Brasil.

 O caráter militar


Podemos notar outras versões interpretativas do que os próprios militares chamaram de
“Revolução”. Existemtrabalhos de historiadores e cientistas políticos que atribuem um caráter
estritamente militar para a tomada de poder após o fim do governo Goulart. Entretanto, existempesquisas
que discordem dessa análise e apontem a forte presença civil no processo de desgaste da presidência
de João Goulart e da instauração do regime militar. Acreditamos, portanto, ser de total necessidade,
trazer luz, de maneira sintetizada, alguns desses pontos de vista sobre o golpe militar de 1964.
A interpretação que confere caráter predominantemente militar ao golpe de 1964 enfatiza o
desempenho dos militares no processo de tomada de poder, sustentado pelo fechamento de partidos
políticos, do enfraquecimento exacerbado do congresso nacional, do arrocho salarial e das práticas de
repressão em todos os níveis.Carlos Fico afirmar em Além do Golpe que “se a preparação do golpe foi
6
de fato civil-militar, no golpe, propriamente, sobressaiu o papel dos militares” , visto que ocorreu uma
intensa militarização a partir da progressiva institucionalização dos aparatos repressivos, inserindo
diretamente os militares nas ações de polícia política.
Partindo de análises que seguem a mesma linha anteriormente citada, temos ainda dois

2
FICO, Carlos. Além do Golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro:
Record, 2004, p. 21.
3
FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Licília
(orgs) O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe
civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 346.
4
PRADO, Luís Carlos; SÁ EARP, Fábio. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e
concentração de renda (1967-1973). In FERREIRA, Jorge; DELGADO, Licília (orgs) O Brasil Republicano. O
tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 210.
5
DELGADO, Lucília de Almedida Neves. 1964: temporalidades e interpretações. In REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,
Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois. Bauru, SP:
Edusc, 2004, p. 22.
6
FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record,
2004, p.38.

262
importantes historiadores: Jacob Gorender, autor de Combate nas Trevas, e Carlos Werneck Sodré,
História Militar do Brasil. O primeiro afirma que “a consciência de classe de crescentes contingentes de
7
trabalhadores” estava “cada vez menos compatível com a expressão populista” , intensificaram os
conflitos no âmbito da sociedade civil.
Em consonância como fortalecimento das disputas sociais, a industrialização adquire, nessa
época, feições nacionalistas, incomodando os setores conservadores, que estavam bastante receosos
da influência comunista dentro do Brasil. A partir do objetivo de estudar a esquerda e a luta armada no
contexto ditatorial, Gorender, na mesma obra, afirma que essa efervescência trabalhista se produziu, aos
olhos da direita, numa ameaça a classe dominante e ao imperialismo.
Para Werneck Sodré, a atuação das forças armadas jamais poderia ser interpretada
isoladamente, desvinculada das outras esferas da sociedade. Ao corroborar com o discurso que defende
8
o cunho militar ao golpe de 64 seu caráter militar em sua exteriorização e político em sua essência..
Alfred Stepan em Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira também
aponta o protagonismo militar na articulação e execução do golpe de 1964, o destaque de sua análise se
trata da quebra do padrão moderador. Ou seja, em diversos momentos da história do Brasil, os militares
assumiam o poder para resgatar a ordem e depois voltavam para os quartéis, no entanto, em 1964, essa
postura é modificada. A singularidade estava no fato de que, na década de 1960, os militares se sentiam
profundamente ameaçados pela ineficiência das instituições civis.

2.2 Os civis no golpe


Afastando-se da tendência bastante valorativa do papel dos militares no golpe de 1964, temos
9
interpretações que defendam uma forte participação civil na “revolução” , levando em consideração a
ideia de que se a ditadura militar não tivesse uma ampla aceitação das bases sociais internas do Brasil,
o golpe não teria sido efetivado.
10
Nessa linha temos René Dreifuss e sua obra 1964: a conquista do Estado, na qualé trabalhada
a participação central do complexo IPES/IBAD como explicação para o processo de derrocada do
governo Goulart, e da instauração do regime civil – militar. O perfeito trabalho empírico, mostrando
claramente os membros que atuavam nessas agências, e que fariam posteriormente parte da ossatura
11
material doEstado restrito .
Com isso, pode ser comprovado que os ativistas desse complexo acabaram por capitanear o
processo de formulação de diretrizes, além de constituírem papel central nas decisões a serem
tomadas, já que esses colaboradores moldaram o sistema financeiro e assumiram as principais pastas
do governo e os maiores órgão públicos administrativos. Portanto, assumiram a função social de
12
intelectuais orgânicos dentro de um instituto que, na concepção gramsciniana, exercia o papel de
partido político, ou seja, de organizador da vontade coletiva.
Outro historiador já citadoque trabalha nessa linha do golpe civil – militar é o brasiliniasta, de
nacionalidade norte – americana, Thomas Skidmore, em sua obra Brasil de Castelo a Tancredo fica
bastante clara essa opinião, já queos conspiradores militares e civis que depuseram João Goulart em
março de 1964 tinham dois objetivos: frustrar o plano comunista e estabelecer a ordem de modo que se
13
pudessem executar reformas legais.
Há de se concordar, levando em consideração as perspectivas discutidas anteriormente, que o
regime autoritário nascido em 1964 não se sustentaria sem elaborar, um consolidado sistema de
informações, espionagem e repressão, legitimados por atos e decretos que faziam parte de um grande
projeto de proteção dos interesses da fração dominante da classe dominante que se encontrava no

7
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.
São Paulo: Ática, 1987, p. 16.
8
SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Editora Expressão popular, 2010.
9
BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1ª ed., 1998. Vol.1, p. 1122.
10
DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro,
Vozes, 1987, p. 455.
11
O conceito de Estado para Gramsci sofre a chamada “renovação e superação dialética” frente à obra de Marx e
Lênin já que não é visto somente como um aparelho que garante a dominação da classe burguesa. Para o
intelectual sardo, o Estado possui uma dupla dimensão: sociedade civil (Portadora material da figura social da
hegemonia) e sociedade política (Estado em sentido Restrito ou Estado Coerção). Para maiores detalhes, ver
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
12
Intelectual que, na concepção moderna de Gramsci, além de elaborar discursos, também organizaria as práticas
sociais, e seriam gerados dentro da própria classe, exprimindo as experiências e os sentimentos que as massas
não poderiam exprimir. Cadernos do Cárcere, vo. 2, ,vol. 2, . Os intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
13
SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 45.

263
controle do Estado Restrito.

 A doutrina de Segurança Nacional, os Direitos Humanos e as informações nos arquivos de


Estado.

3.1 A doutrina de Segurança Nacional


Com o advento da ditadura militar no Brasil, e em nome da Segurança Nacional, instalou-se um
complexo sistema repressivo para combater a subversão e, ao mesmo tempo, reprimir preventivamente
14
qualquer atividade considerada suspeita por se afigurar como potencialmente perturbadora da ordem:

Crahan identificou as origens da ideologia de segurança nacional na América Latina já


no século XIX, no Brasil, e no início do século XX, na Argentina e no Chile. Elas
vinculam-se então a teorias geopolíticas, ao antimarxismo e às tendências
conservadoras do pensamento social católico, expressas por organizações como a
15
Opus Dei, na Espanha, e a ActionFrançaise.

A Escola Superior de Guerra foi esteve incumbida de elaborar e difundiras diretrizes da Doutrina
de Segurança Nacional. Houve, na sua formulação, a participação do complexo IPES/ IBAD, existindo
em seu interior, um corpo de intelectuais de formação técnica que, no campo da sociedade civil,
contribuíram na formulação de diretrizes para a busca do consenso, já que métodos de coerção se
tornariam ineficientes a médio e longo prazo.
Dentro da DSN, destaca Márcia Moreira Alves, havia o conceito de guerra total que se baseava
na estratégia militar da Guerra Fria que definia a guerra moderna como total e absoluta, entrando em
conflito com a ação revolucionária de esquerda, pautada esta no conflito interno, visando o controle da
nação sem abrir mão de apoio externo, no caso países comunistas (URSS, Cuba e China), com intuito
de angariar mentes descontentes com a ordem vigente.
Enquanto elemento importante da DSN, temos a função geopolítica exercida pelo Brasil no
contexto latino-americano. Tanto os militares, quanto o governo norte- americano acreditavam que o
Brasil era a grande potência da América do sul, e que se transformara na prioridade da luta contra a
“subversão” comunista na região, visto que a Revolução Cubana de 1959 abrira os olhos das direitas no
continente.
Havia, portanto,a estreita relação entre Segurança Nacional e desenvolvimento econômico. O
Brasil, por ser um Estado de modelo capitalista, demandaria a proteção e legitimação da aliança entre
das frações dominantes da classe dominantee o capital externo. Para isto, tinha-se a necessidade de
intervenção no meio político e social visando atender as exigências dos interesses internacionais,
deslocando do âmbito social a prioridade do Estado, que não mais se colocava na função de provedor da
elevação do padrão de vida da maioria da população.
A repressão, característica dos governos de segurança nacional, decorrente das pressões do
capital externo e das elites locais que ansiavam por um novo modelo de acumulação de capital, fez
16·.
surgir o que se chama de Terror de Estado, o uso da violência estatal na “defesa” da democracia. E
para que existisse pleno desenvolvimento dos interesses da Doutrina de segurança Nacional, se fazia
necessária atuação de uma polícia política que objetivasse a manutenção da ordem, o estabelecimento
da vigilância e da repressão daqueles que contestassem a ordem vigente.
Nesse contexto, ocorre o remodelamento da Delegacia Política de Ordem Social, o DOPS,
criada em 1924, e que juntamente com o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações –
Centro de Operações de Defesa Interna) e o SNI (Sistema Nacional de Informações), formariam um dos
pilares de sustentação da ditadura no Brasil.

3.2 A luta pela informação e direitos humanos


As primeiras intenções voltadas para a publicização de informações classificadas como secretas,
e das preocupações referentes aos direitos humanos datam do período medieval, ao analisarmos a

14
MAGALHÃES, Marionildes Dias Brehpol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos a época
da ditadura militar no Brasil.
15
MOREIRA ALVES, Márcia Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Rio de Janeiro: Editora Vozes,
2°edição, 1984, p.33.
16
PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-
americanas.In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e
perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 141 a 176.

264
trajetória de luta pela informação e da gênese do debate sobre o que são direitos humanos, destacamos
a Declaração das Cortes de Leão, em 1188, na península ibérica; e a Magna Carta inglesa de 1215.
No entanto, é apenas no final do século XVIII que se formulará o conceito moderno de direitos humanos,
com dois documentos de grande repercussão na história ocidental: a Declaração de Virgínia, de 1766,
no contexto da Independência dos Estados Unidos da América; e a famosa Declaração dos Homens e
dos Cidadãos, de 1789, durante a Revolução Francesa.
Contudo, vai ser na Renascença que se dará a conceitualização do termo “privado”. Ao longo do
século XIX o termo ganha dimensão nacional, já que o surgimento dos Estados Nacionais modernos
difundirá os debates sobreas questões relativas aointeresse público e privado, como também sobre os
assuntos classificados como segredos de Estado.
Com o pós-guerra, exatamente em 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU)
ocorrerá a universalização da temática relacionada aos direitos humanos, com isso abre-se a discussão
sobre o direito a liberdade de assuntos de âmbito privado e da valoração das informações presentes nos
arquivos de Estado.
No Brasil, desenvolveu-se a Comissão Nacional da Verdade visando a apurar graves violações
aos direitos humanos no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. Criada a partir da
Lei 12.528, a comissão foi instalada em 16 de março de 2012 com prazo de dois anos para depurar as
transgressões anteriormente citadas. Os trabalhos estão divididos em três subcomissões (Pesquisa,
17
Relações com a sociedade e Informação), todas estas fragmentadas em grupos temáticos.
Logo, as questões relativas aos direitos humanos e divulgação de informações antes inerentes
ao Estado, acaba por atribuir grande importância às pesquisas executadas nos arquivos públicos,
através das fontes documentais provenientes dos arquivos da polícia política, nesse caso o DOPS.
Assim, a divulgação desses documentos pode denunciar práticas nocivas à sociedade (tortura),
18
tornando-se de interesse público.

3.3 Os arquivos da polícia política brasileira


Ao pesquisarmos os arquivos da polícia política, temos a oportunidade de analisar os conteúdos
inseridos presente nos documentos apreendidos e/ou elaborados dentro da Delegacia de Ordem Política
e Social(DOPS), reconstituindo e identificando o discurso deordem, genuinamente repressivo, como
também avaliar a função daqueles que enfrentaram o autoritarismo.
A partir das vastas fontes documentais, existe a possibilidade de pesquisa, para aqueles que
estudam a História do Brasil Contemporâneo, de como era exercido o poder pelas instituições públicas,
especialmente o órgão de polícia política. Porém, não podemos esquecer que essa variedade de
arquivos expressacoexistência de diversos discursos: o discurso polícia (ou da ordem), o do delator ou
19
da imprensa (parte da imprensa em convergência com Estado de exceção)e o da resistência ou
“desordem”.
Por conseguinte, livros, jornais, fichas, relatórios, panfletos, ofícios, todos estes materiais, que se
encontram arquivados pelos DOPS de todo o país, trazem discursos que sofreram algum tipo de
manipulação e/ ou gerenciamento, expressando certas condutas e práticas previamente estabelecidas
20
pelo organismo policial. ” Notamos assim, que a vastidão de fontesdocumentais relativas a policia
política brasileira oferece a possibilidade deestudos em diferentes aspectos.
Podemos avaliá-las do ponto de vista cultural, identificado no corpus documental desta
instituição valores e preconceitos arraigados no imaginário coletivo do período; do prisma organizacional
desse órgão, que por muitos anos disfarçou sua essência ditatória; e sobre o panorama exclusivamente
documental, visto que os documentos possam ter sido alvo de manipulação.

 As atribuições do DOPS no Maranhão


A fonte analisada para o desenvolvimento deste trabalho trata de atribuições da Delegacia de
Ordem Política e Social (DOPS) enviadas em ofício para a Secretaria de Segurança do Estado do
Maranhão. As orientações estão contidas em dossiê inserido na série intitulada “Subversão” e servem
17
Ver melhor sobre a Comissão da Verdade em http://www.cnv.gov.br.
18
COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos (org.)Ditadura e
democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p.20.
19
“Assim, para usar o termo com propriedade a fim de pensar a resistência brasileira, importa mais o significado
do combate à ditadura do que o de ofensiva revolucionária”. RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da
resistência armada contra a ditadura: armadilha para pesquisadores. In REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo e
MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois. Bauru, SP: Edusc,
2004, p. 54.
20
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os estudos
do Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d disponível em
http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf. Acessado em 03 de março de 2012.

265
para esclarecer como estas diretrizes, provenientes da Doutrina de Segurança Nacional, foram
difundidas por todos os setores de segurança pública em todas as regiões do país. Essas tarefas, aos
serem propagadas explicitam a intenção de obstar as disparidades de pensamento existentes no país.
Aos pesquisarmos os acervos do DOPS no Estado do Maranhão, identificamos a atuaçãode um
órgão com intento de coibir a disseminação de ideias revolucionárias, em um claro exemplo de
predomínio da estratégia de coerção e não da busca do consenso.A organização desses arquivos estava
a critério das próprias autoridades policiais, explicitando uma simbologia representativa dos preceitos da
segurança nacional.
A fonte primária deste trabalho nos permite problematizar, de maneira geral, os valores
presentes no discurso de ordem do Departamento de Polícia e Ordem Social contra qualquer tipo de
ameaça a ordem social em solo maranhense.Assim, identificamosum ofício da Delegacia de Ordem
Social e Política, destinado a Secretária de segurança pública do Estado do Maranhão, contendo lista de
atribuições que deveriam orientar o setor de segurança pública do Estado no ano de 1977.
O ofício assinado pelo delegado do DOPS-MA Francisco Florimar de Almeida, e enviado ao
secretário de segurança pública do Estado do Maranhão traz atribuições relativas ao controle e vigilância
contra atentados a ordem política e social. As onze orientações basicamente se referem àmissão de
manter osecretário de segurança informado a respeito de tudo que tenha relação à ordem política e
social.

As duas primeiras páginas do Ofício 0142/SI/DOPS/SSP/MA contendo todas as onze atribuições do DOPS/MA.
Documento constituído de quatro páginas, assinadas por Francisco Florimar de Almeida, delegado do DOPS na data
de 03 de Novembro de 1977, e enviadas ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documento
localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão – APEM, série Subversão. (Páginas 1,2, respectivamente)

Afirma-se em tal ofício que a Polícia de Ordem Política e Social (DOPS-MA) não abriria mão de
empregar de meios policiais para prevenção, repressão e controle de atividades “subversivas” e crimes
de natureza comum, organizar os serviços de informação, além de solicitar, junto a Secretaria de
Segurança, materiais e equipamentos necessários para a execução de tais atribuições.
Neste caso, como afirma Tucci Carneiro no texto acima trabalhado, a autoridade policial se põe
na função de construtor de uma história oficial, produzindo realidades a partir do uso da violência e do
controle exercido pelo DOPS. Estas “verdades” ao serem disseminadas nas instancias superiores
(Secretária de Segurança Pública do Maranhão) e difundidas na grande imprensa, tornam-se diretrizes
morais que, aliadas ao domínio pela força, acabam por objetivar o consenso, constituindo a supremacia
do grupo social dominante e legitimando a repressão.
Portanto, a ação da polícia faz transparecer a atuação repressiva de um Estado de tipo Ocidental

266
21
no qual a sociedade civil é complexa e maior do que a sociedade políticaque então busca enfrentar
seus inimigos através da repressão direcionada e de uma legislação de segurança nacional. Logo, a
atuação das instituições jurídicas e da polícia política (DOPS) representa, segundo Gramsci, a
perspectiva negativa desta sociedade civil. Percebe-se, então, a legitimação da repressão, da suspeição
e de todas as formas de violência em detrimento das liberdades civis, de expressão e dos ideais
democráticos.O crime político passava a ter estrita ligação com aqueles que se tornavam suspeitos por
contestarem a ordem, ou até mesmo por si manterem neutros às problemáticas existentes no período da
ditadura.
Ao recolher informações de indivíduos suspeitos aos olhos da repressão, constrói-se uma
imagem negativa de inúmeras pessoas, o discurso da ordem passa a ter um caráter inquisitório. Essa
prática, durante a ditadura, assumiu proporções elevadas visando à derrubada da ameaça comunista,
sustentando mitos como o da nacionalidade, e que como vemos nas atribuições do DOPS-MA,
chegaram até a cidade de São Luís.
O DOPS se constitui no Maranhão, assim como na grande maioria do Brasil, através de suas
prisões, interrogatórios, torturas, num elemento formulador de diretrizes do interesse da classe
dominante, e também do autocontrole na sociedade civil (a esfera da vida privada e do consentimento).
Procurava-se exaltar a imagem negativa dos indiciados, e transformar o discurso da ordem num caráter
humanitário de defesa do povo e pátria.

Considerações Finais
Para finalizar, podemos compreender que os estudos históricos sobre o período da ditadura
militar no Brasil atendem as inúmeras exigências e indagações provenientes da abordagem referente à
história do tempo presente. Portanto, é bastante louvável analisar a produção historiográfica sobre
período, enfatizando suas nuances, diferenças e peculiaridades que, livres das amarras do
tradicionalismo, dos preconceitos ideológicos, poderão trazer ainda muitos frutos para a história
contemporânea de nosso país.
Com a decorrente democratização das fontes provenientes dos acervos da polícia política, cabe
a nós historiadores, sabermos problematizar de maneira competente todos os discursos ali presentes
direta ou indiretamente, já que “fazer História do Brasil Contemporâneo a partir de documentos policiais,
22
implica uma maneira de ler esses registros, avaliando-os no sentido inverso ao do raciocínio policial” .
A partir desse novo olhar sobre documentos ainda não investigados e explorados, importantes
abordagens históricas a serem reveladas trarão novos olhares e debates tanto no âmbito da academia
quanto da sociedade. Democratizar os acervos da polícia política, e esmiuçá-los em todas as suas
perspectivas, identificado os erros de um período tão nefasto da história contemporânea brasileira,
servirão de exemplo para que as falhas do passado não mais se repitam e jamais se esqueçam.

Referências Bibliográficas:

I. Documentação Arquivos DOPS/MA


Ofício 0142/SI/DOPS/SSP/MA contendo todas as onze atribuições do DOPS/MA. Documento constituído
de quatro páginas, assinadas por Francisco Florimar de Almeida, delegado do DOPS na data de 03 de
Novembro de 1977, e enviadas ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Maranhão.
Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM), na série Subversão.

II. Obras Gerais


BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. trad.Carmen C,
Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev.geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília :
Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998. Vol.1.

21
A partir da dupla dimensão do Estado (sociedade civil e sociedade política), Gramsci identifica o dois tipos de
Estado: Oriental (sociedade civil fraca e predomínio do Estado Coerção com uma sociedade política forte em
que deve predominar a Guerra de Movimento) e Ocidental (sociedade civil forte e complexa, em equilíbrio com a
sociedade política; deve predominar a Guerra de Movimento como estratégia revolucionária). O Brasil aparece
como uma formação de tipo Ocidental, em função da complexização de sua sociedade civil.Para maiores
detalhes, ver GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno
(caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
22
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os estudos
do Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d disponível em
http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf.
.

267
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os
estudos do Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d
disponível em http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf.
COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos. Ditadura e
democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas/ Organizadores Carlos Fico...[et al].- Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2008.
DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro,
Vozes, 1987.
FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.
São Paulo: Ática, 1987.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº
13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
MAGALHÃES, Marionildes Dias Brehpol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos a
época da ditadura militar no Brasil.
MOREIRA ALVES, Márcia Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Editora Vozes, 2°edição,
1984.
PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras
latino-americanas.In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e
perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Editora Expressão popular, São Paulo, 2010.
STEPAN, A. C. Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Artenova, 1975.

268
Arquivos Repressivos da Polícia Política: o caso do Departamento de Ordem Política e
Social do Rio Grande do Sul

1
Ananda Simões Fernandes

Resumo: O presente artigo pretende abordar a discussão sobre a abertura, o acesso e a utilização dos
chamados arquivos repressivos produzidos pelos aparatos de segurança e informação do Estado
ditatorial brasileiro. Para tanto, será analisada a documentação da polícia política do estado do Rio
Grande do Sul, do Departamento de Ordem Política e Social do estado do Rio Grande do Sul, ao qual
estavam atribuídas as funções de polícia política.
Palavras-chave: ditadura brasileira – arquivos repressivos – polícia política – Departamento de Ordem e
Política Social do Rio Grande do Sul

Abstract: This article intends to address the debate on openness, access and use of the named files
produced by repressive apparatuses of security information and the Brazilian dictatorial rule. Therefore,
we will analyze the documentation of the political police of the state of Rio Grande do Sul, Department of
Political and Social Order in the state of Rio Grande do Sul, to which were assigned the roles of political
police.
Keywords: Brazilian dictatorship – repressive files – political police – Department of Political and Social
Order of Rio Grande do Sul

Os arquivos repressivos
O tratamento dado aos “arquivos repressivos” caracteriza-se como um dos assuntos centrais dos
processos de investigação dos crimes cometidos pelo Estado durante a vigência das ditaduras de
Segurança Nacional no Cone Sul. Pouco se fez para avançar na abertura desses arquivos, e mesmo nos
2
países onde há leis específicas para essa questão (caso do Brasil, por exemplo), não há uma política
arquivística específica para esse tipo de documentação. Para Gerardo Caetano, o tratamento a estes
3
arquivos ainda não foi compreendido a partir da lógica da questão dos direitos humanos.
A reflexão sobre a abertura dos arquivos repressivos e a sua utilização na construção histórica
dos regimes de exceção insere-se nos debates referentes à História do Tempo Presente (ou Historia
4
Reciente). Vertente da chamada Nova História Política, após muitas discussões teórico-metodológicos,
foi inserida definitivamente como um campo do saber histórico.
Os historiadores europeus consideram o marco para o início da abrangência da história recente
o fim da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, os autores concordam que a História do Tempo Presente
não é um período demarcado cronologicamente. Assim, é importante destacar a transposição da História
do Tempo Presente para o caso específico das ditaduras da região. Pode-se afirmar, então, que “en el
Cono Sur latino-americano, fue la experiencia de las últimas dictaduras militares, que asumieron
modalidades inéditas en estados criminales y terroristas, el punto de ruptura que ha promovido los
5
estudios sobre el passado cercano”.
A História do Tempo Presente nos traz mais interrogativas do que respostas, conforme constata
Bruno Groppo, que alerta para o fato de que o discurso sobre o passado ditatorial dos países do Cone
Sul se mantenha aberto. Para ele, em cada país “la dictadura marcó una ruptura cuyo balance queda por

1
E-mail: anandasfernandes@gmail.com Telefone: (51) 9135-2046 Formação acadêmica: Doutoranda em
História/UFRGS Instituição: Técnica em Assuntos Culturais do Arquivo Histórico do RS
2
BRASIL. Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII
o o o o
do art. 5 , no inciso II do § 3 do art. 37 e no § 2 do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei n 8.112, de 11
o o
de dezembro de 1990; revoga a Lei n 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei n 8.159, de 8 de
janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2011/Lei/L12527.htm>. Acesso em: 2 ago. 2012.
3
CAETANO, Gerardo. Los archivos represivos en los procesos de “justicia transicional”: una cuestión de
derechos. Perfiles Latinoamericanos, Ciudad de México, n. 37, p. 9-32, ene./jun. 2011.
4
CHAVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (orgs.). Questões para a história do presente. Bauru/SP: EDUSC, 1999.
5
FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia (comps.). Historia reciente: perspectivas y desafíos para un campo en
construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 15.

269
hacer, un balance que interrogue por sus causas, sus consecuencias y su significado. Mientras este
6
trabajo no se realice, el pasado seguirá estando presente”.
Os chamados arquivos da repressão (ou repressivos) são conjuntos documentais produzidos e
acumulados em decorrência de atividades de controle, vigilância e punição pela rede do sistema
repressivo durante a vigência das ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. Compõem-se por um
amplo conjunto de documentos que inclui, entre outros, prontuários, dossiês, fichas criminais, relatórios
sobre possíveis agentes “subversivos”, documentos e objetos pessoais apreendidos em buscas
7
policiais. Estes arquivos se apresentam como um caso paradigmático, porque afetam grande parte da
sociedade da qual foram recuperados, desde o Estado e seus agentes até as vítimas e seu entorno.
Na utilização dessas fontes, é necessário realizar uma análise apurada dos arquivos da
repressão, pois se trata de fontes oficiais do aparelho repressivo que têm como qualidade intrínseca o
8
fato de carregarem consigo a marca impressa das instituições que as produziram. Ana Maria Camargo
distingue entre os conceitos de autenticidade – o documento de arquivo constitui uma prova do processo
que o gerou – e de veracidade – elemento o qual, independentemente da origem do documento, precisa
ser buscado num universo que ultrapasse o seu horizonte. Além disso, é importante também chamar a
atenção para o fato de que muitas das fontes produzidas pelos agentes da repressão permitem “ver o
que eles [agentes secretos] viam”. De acordo com Beatriz Kushnir, estas fontes

Se por um lado, tem como objetivo identificar o “fichado” no mundo, por outro, trata-se
de um arquivo que explicita o universo do outro a partir da lógica interna do seu titular,
ou seja, da perspectiva da Polícia. Assim, seu acervo permite tanto reconstituir uma
história do “fichado”, a partir da perspectiva do agente policial, como a do “fichador”;
9
mas a óptica que deve dirigir a consulta deve ser a do “fichador”.

No momento de sua confecção, esses documentos representavam o resultado funcional de uma


atividade cotidiana, e não um procedimento clandestino. Sua preservação deve-se justamente ao fato de
ser o interrogatório uma operação realizada dentro de uma engrenagem instituída pelo Estado, ainda
que nem todas as suas atividades estivessem inscritas no plano da legalidade. Assim, o cotejamento
entre outras fontes e a produção historiográfica é imprescindível.
A eficácia das medidas de reparação às vítimas das ditaduras, assim como a apuração das
responsabilidades dos agentes envolvidos nos crimes de Estado ficam, em grande parte, condicionadas
pelo uso dos documentos produzidos e armazenados pelas instituições repressivas daquele período.
Esses arquivos facilitam vários direitos à população, tanto no nível individual quanto no coletivo.
Na questão individual podem-se elencar diversos direitos, entre eles: direito dos familiares de
saber onde estão os restos mortais dos desaparecidos; direito de conhecer os dados existentes sobre
qualquer pessoa nos arquivos repressivos; direito à anistia para presos e perseguidos políticos; direito à
reparação por danos sofridos pelas vítimas da repressão; direito à restituição de bens confiscados;
direito à investigação histórica e científica.
Já na questão dos direitos coletivos, os arquivos repressivos facilitam: o direito à integridade da
memória escrita dos povos; o direito à verdade; o direito de conhecer os responsáveis de crimes contra
os direitos humanos; o direito dos povos e nações de escolher a sua própria transição política.
Nesta última questão, levanta-se a efetividade da instalação das comissões da verdade,
efetuadas durante o período da chamada justiça de transição, e que experiências em diversos países já
demonstraram que variam muito de acordo com a disponibilidade ou não de se ter acesso à
documentação repressiva.
Por fim, é importante trazer à tona a reflexão de Ludmila da Silva Catela, que expõe quatro
10
elementos centrais referentes à organização, preservação e difusão dos arquivos repressivos. Em

6
GROPPO, Bruno. Traumatismos de la memoria e imposibilidad de olvido em los países delConoSur. In: ______;
FLIER, Patricia (comps.). La imposibilidad del olvido: recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguai. La
Plata: Al Margen, 2001. p. 21.
7
Já os arquivos sobre a repressão são acervos que se originaram em decorrência da própria demanda social por
esclarecimentos, pela verdade e pela justiça. Também podem ser considerados arquivos constituídos pelos
próprios indivíduos ou famílias em decorrência das atividades que desempenharam no contexto dos regimes
repressivos, assim como documentos que se constituíram com o objetivo de preservação da memória e conta
também com fontes diversas de informações, principalmente depoimentos pessoais. Cf. GONZÁLEZ
QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regímenes represivos. Paris:
UNESCO, [1995?]. Disponível em: <http://www.unesco.org>. Acesso em: 27 mar. 2009.
8
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Os arquivos da polícia política como fonte. Registro, Indaiatuba/SP, n. 1, p.
7-17, jul. 2002.
9
KUSHNIR, Beatriz. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e às fontes (os arquivos do DOPS – RJ e
SP). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. História da Censura no Brasil. São Paulo:
Ed. da USP, 2002. p. 567.
10
SILVA CATELA, Ludmila da. El mundo de los archivos. In: ______; JELÍN, Elisabeth (comps.). Los archivos de la

270
primeiro lugar, os documentos que formam os acervos provenientes dos aparatos repressivos servem no
presente para uma ação diametralmente oposta da sua origem. Produzidos na lógica da suspeição e da
inculpação, são utilizados agora para compensar as vítimas que tiveram seus direitos violados durante
esse período de exceção (o chamado “efeito bumerangue”). Em segundo lugar, servem para identificar
os responsáveis pelos crimes cometidos pelo Estado, constituindo-se como provas. Em terceiro lugar,
esses documentos são fontes para a investigação científica, permitindo à sociedade a escrita da sua
história. Por conseguinte, em quarto lugar, geram ações pedagógicas e educativas sobre a intolerância,
a tortura, entre outros fatores tão presentes nas ditaduras civil-militares do Cone Sul.

A estrutura da polícia política no Rio Grande do Sul


O Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS), vinculado à
Secretaria de Segurança Pública e localizado em Porto Alegre, tinha por função exercer as ações de
polícia política neste estado. A este órgão competia a coleta de informações e a repressão dos “inimigos
internos” do regime ditatorial, traduzindo-se em prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos e
desaparecimentos. Embora o DOPS/RS tenha sido criado em 1937, foi com a instalação da ditadura de
11
1964 que suas diretrizes passaram a acompanhar as premissas da Doutrina de Segurança Nacional.
Essa nova orientação pode ser percebida na primeira circular expedida pelo órgão, após o golpe de
Estado, com as determinações que as delegacias regionais deveriam seguir, intitulada “Instruções para
as delegacias de Política do Interior do Estado, no que se refere à ordem política e social”:

MODELO
DELEGACIA DE POLÍCIA DE:
RELATÓRIO DE INFORMAÇÕES
Órgão: (Delegacia de Polícia)
Período: x/xx/xx a X/XX/XX
Referência: Plano de Busca nº. 1/64-DOPS

1. ARTICULAÇÃO DE ELEMENTOS ESQUERDISTAS (comunistas e comuno-


brizolistas)
1.1 Reuniões – registrar as que tiverem sido constatadas, dando hora, data e local, casa
de quem; citar nomes, filiação e residência, a periodicidade das reuniões; como são
preparadas ou convocadas; quem lidera; assunto tratado (exato ou presumido, etc).
1.2 Chegadas – elementos esquerdistas ou suspeitos de o serem que chegam ao
município. Nomes, filiação, tipos físicos. Datas de chegada e saída. Meio utilizado para
chegar e sair. Local onde ficam hospedados (endereço). Em companhia de quem
chegaram, com quem partiram. Com quem entraram em contato, quem os procurou?
Onde? De onde vieram, para onde foram? Participaram de reunião? Quais seus
objetivos (exato ou presumido)?
1.3 Saídas – elementos esquerdistas que tenham viajado: nomes, filiação e residências.
Datas de saídas e de chegadas. Com quem viajaram? Com quem voltaram? Datas.
Destino da viagem? De onde retornaram? Meios que utilizaram para ir e vir? Objetivos?
Etc.
1.4 Atuação Suspeita – nomes e filiação dos elementos esquerdistas que têm tido a
atuação suspeita. O que têm praticado? Quando? Como? Onde? Etc. Contatos – locais,
horários, etc.
1.5 Outras Informações – citar outras informações julgadas importantes e úteis, dentro
12
do assunto geral e que não tenham sido enquadradas dentro dos itens acima.

Os órgãos de repressão, nessa nova conjuntura proporcionada pelo golpe de Estado,


necessitaram de reformulação e reestruturação, pois, além das novas orientações impostas pela
Doutrina de Segurança Nacional, havia a necessidade de se ajustarem aos sistemas de segurança e de
informação organizados em nível federal. O Secretário de Segurança Pública do Estado deixou de ser
um civil, assim como outros cargos vinculados a esta secretaria começaram a ser ocupados por
militares.
No contexto das comemorações dos 20 anos da decretação da Lei da Anistia, em 1999, foi
criada uma comissão de representantes, escolhidos em vários segmentos organizados que outrora

represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. p. 195-221.


11
Para uma análise das ações do DOPS/RS durante o período da ditadura brasileira, ver BAUER, Caroline
Silveira. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do
Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado em
História). Porto Alegre: UFRGS, 2006.
12
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Santo Ângelo.
SOPS/SA – 4.-.136.12.1. Porto Alegre, 1964.

271
estiveram envolvidos na luta armada e em movimentos de direitos humanos contra a ditadura militar,
para assumir a responsabilidade de gerir os documentos produzidos pelos órgãos de repressão do
estado do Rio Grande do Sul durante este período. O grupo recebeu a denominação oficial de
“Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura”. A iniciativa integrava o processo de políticas
reparatórias do estado gaúcho, fortalecendo os trabalhos da Comissão que trabalhou na busca,
organização, ordenação e divulgação do acervo que conseguiu reunir.
No entanto, havia uma lacuna importante no acervo histórico do período. Tratava-se da quase
inexistência de remanescentes da vida material do DOPS/RS, pois praticamente toda a sua
documentação foi queimada em ato público por iniciativa do governador Amaral de Souza, quando da
extinção do órgão repressivo. No dia 27 de maio de 1982, quatro caminhões levaram toneladas de
documentos do DOPS/RS para uma olaria da Brigada Militar em Gravataí (município da Grande Porto
Alegre), onde demoraram oito horas para serem queimados.
Porém, apesar da destruição física destes documentos, é possível rastrear a sua rede de
informações, no que se refere à produção, circulação e difusão. A polícia política do rio Grade do Sul se
13
estendia para o interior do estado através das chamadas Seções de Ordem Política e Social (SOPS).
Estas funcionavam como filiais do DOPS divididas nas regiões do interior, que recebiam e expediam
informações diárias a este departamento. O Rio Grande do Sul estava dividido em 24 regiões policiais,
14
sendo que em cada delegacia-sede havia uma sala destinada à SOPS. Entretanto, somente foram
encontrados e recolhidos ao Acervo da Luta contra a Ditadura documentos de dez SOPS, localizadas
nos seguintes municípios: Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Cruz Alta, Erechim, Lajeado, Lagoa
Vermelha, Osório, Rio Grande e Santo Ângelo.
Assim, o DOPS remitia ordens e instruções (como ordens de busca, por exemplo) às diversas
SOPS do Rio Grande do Sul, recebendo, em contrapartida, informações. Estas seções deveriam
comunicar-se diariamente com o DOPS, conforme pode ser percebido no radiograma de caráter urgente
enviado por este departamento às delegacias:

Solicito se digne informar este DOPS, diariamente, via rádio, pela manhã e pela tarde,
situação político social dessa região, bem como qualquer fato relevante. Estes
radiogramas deverão ser passados mesmo que se limitem a informar que nada ocorreu
de anormal. Esta determinação visa atender determinação Senhor Secretário
15
Segurança Pública.

Os documentos que integram o Fundo Secretaria de Segurança Pública, composto de 85 caixas,


são os únicos que sobreviveram à queima da documentação do DOPS/RS, em 1982, quando da sua
extinção. Apesar de não se constituir em um volume documental grande, sua importância é singular, pois
é o único registro da atuação da polícia política no Rio Grande do Sul, o DOPS/RS, e a sua rede de
SOPS.
De maneira específica, constituem o Fundo Secretaria de Segurança Pública: fichas nominais,
fichas datiloscópicas, prontuários de presos, processos e resoluções, relações de pessoas que
interessavam aos organismos de informação, listas de indivíduos citados em processos da polícia
política, listas de indivíduos enquadrados na Lei de Segurança Nacional, entre outros.
O Fundo Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul demonstra padrões
de coleta, codificação, organização e difusão da informação. Assim, há a possibilidade de se reconstituir,
em parte, a lógica do funcionamento do sistema repressivo brasileiro, os diferentes órgãos participantes,
sua metodologia de atuação e os seus principais interesses, assim como a lógica da distribuição e da
difusão da informação. Entretanto, a informação contida na documentação do Fundo Secretaria de
Segurança Pública não está restrita à dimensão regional ou nacional, pois ultrapassa as dimensões das

13
Para uma análise das ações das SOPS durante o período da ditadura brasileira, ver LIEBERKNECHT, Vanessa.
“Conhece teu inimigo mas não deixa ele te conhecer”: as Seções de Ordem Política e Social (SOPS): 1964-
1982. Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: PUCRS, 2011.
14
De acordo com o Art. 389 do Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969, a área do interior do Estado
ficava organizada em 24 Regiões Policiais, com uma Delegacia Regional de Polícia em cada uma, nas
seguintes localidades: 1ª Região Policial, sede em São Leopoldo; 2ª, Taquara; 3ª, Santa Maria; 4ª, Alegrete; 5ª,
Cruz Alta; 6ª, Passo Fundo; 7ª, Rio Grande; 8ª, Caxias do Sul; 9ª, Bagé; 10ª, Santa Rosa; 11ª, Erechim; 12ª,
Livramento; 13ª, Santo Ângelo; 14ª, Palmeira das Missões; 15ª, Lagoa Vermelha; 16ª, Santa Cruz do Sul; 17ª,
São Jerônimo; 18ª, Pelotas; 19ª, Lajeado; 20ª, Cachoeira do Sul; 21ª, Santiago; 22ª, Três Passos; 23ª, Osório;
24ª, Soledade. RIO GRANDE DO SUL. Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969.
Estabelece a Estrutura e o Regulamento Geral da Polícia Civil da Secretaria da Segurança Pública e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.
ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=39241&hTexto=&Hid_IDNorma=39241>. Acesso em: 31 out. 2012.
15
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul.
SOPS/CS – 1.-.32.1.1B. Porto Alegre, 1 set. 1969.

272
próprias fronteiras nacionais. Desse modo, este fundo confirma a rede de informações no âmbito do
Cone Sul nas décadas de 1960 a 1980.
Atualmente, o Fundo Documental Secretaria de Segurança Pública é formado pela
documentação da SOPS, dos prontuários do DOPS e das fichas informacionais e datiloscópicas do
Instituto de Identificação. Constitui-se de ofícios, relatórios, correspondências, bilhetes, memorandos,
dossiês, ordens de busca e demais documentos.
Essa massa documental reveste-se de imensa importância para os pesquisadores e para a
sociedade brasileira, na medida em que o período ditatorial pode ser mapeado e discutido através de
ordens de instâncias superiores e sua recepção e execução no interior do estado do Rio Grande do Sul e
demais cidades do Brasil e, inclusive, de outros países, destacadamente, os do Cone Sul.

Os arquivos repressivos do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul e


seus registros durante a ditadura brasileira
O estado do Rio Grande do Sul, devido à sua localização geográfica, adquire uma importância
ímpar durante a ditadura brasileira, pois é a única unidade administrativa da federação que possui
simultaneamente fronteiras com a Argentina e o Uruguai. Esta informação é fundamental, porque explica
o trânsito quase incessante, durante duas décadas, de refugiados, perseguidos políticos, integrantes da
luta armada e de órgãos de segurança de ambos os lados da fronteira.
A primeira geração de exilados, a partir de 1964, se concentra em território uruguaio, o que se
transforma em motivo de preocupação para a nascente ditadura. O monitoramento que o Brasil fará em
relação ao Uruguai se deve, inicialmente, à presença de uma forte oposição política exilada: João
Goulart, Leonel Brizola, Paulo Schilling, Darcy Ribeiro, Cândido Aragão, etc. Esta vigilância da polícia
política do Rio Grande do Sul – que inclusive desconheceu fronteiras políticas – está atestada na
documentação, assim como o monitoramento dos acontecimentos internos do país vizinho,
especialmente quando da maior atuação da luta armada e da coalizão de esquerdas da Frente Ampla,
no Uruguai.
Considerando sua importância geopolítica, a região do Rio Grande do Sul converteu-se em área
de segurança nacional, principalmente suas fronteiras com a Argentina e o Uruguai, e os municípios com
presença intensa de militares e zonas portuárias.
No contexto regional, destacam-se algumas conjunturas específicas: em 1964, a perseguição
política contra os simpatizantes do ex-governador Leonel Brizola – principalmente os chamados Grupos
dos Onze – e os militantes do Partido Trabalhista Brasileiro; entre 1964-1967, o controle das redes locais
que mantém contato com os grupos de exilados no Uruguai; em 1967-1968, a perseguição ao
movimento estudantil; de 1968 a 1970, a repressão aos grupos da luta armada; na década de 1970, a
percepção do recrudescimento do regime, através do controle cotidiano, como a censura, o controle
policial; já o final dos anos 1970 são marcados pela vigilância sobre estrangeiros que pudessem estar
em território gaúcho (inclusive utilizando-se da Operação Condor para isso, como foi o caso do
sequestro dos uruguaios em Porto Alegre, em 1978) e as tentativas de impedir a crescente articulação
partidária, sindical e de grupos de direitos humanos.
É interessante observar como os órgãos brasileiros não se restringiam a obter informações
somente de atividades ocorridas no Rio Grande do Sul. A amplitude dessa rede sofisticada chegava até
os países vizinhos. Pela ótica da vigilância do “inimigo interno” (mesmo que em outro país) e das
“fronteiras ideológicas” isso era plenamente aceitável, dir-se-ia até, imprescindível. A averiguação das
ações dos exilados brasileiros pode ser observada na ordem de busca enviada pela Secretaria de
Segurança Pública para a SOPS de Lagoa Vermelha:

1 – INFORME:
Há vários dias que o asilado PAULO MELO BASTOS não é visto circulando na
cidade de MONTEVIDÉU (ROU).
Acredita-se que MELO BASTOS tenha viajado clandestinamente para o Brasil ou
para algum país da órbita socialista.
2 – PROVIDÊNCIAS SOLICITADAS:
Observar e informar qualquer movimento de asilados no interior do RGS, assim
como qualquer assunto relativo aos mesmos, que por ventura seja comentada nas
16
áreas regionais.

A presença do ex-governador Leonel Brizola no Uruguai era um fato alarmante para as


autoridades brasileiras. Além de manter contato constante com políticos e militantes que ficaram no

16
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil.
Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.2.894.10.4. Porto
Alegre, 24 abr. 1967.

273
Brasil, através dos seus “pombos-correio”, foi um dos responsáveis pela criação do Movimento
Nacionalista Revolucionário (MNR), em 1965. O nome de Brizola também estava vinculado aos
chamados “Grupos dos Onze”, considerados como possíveis baluartes de resistência contra a ditadura,
logo após o golpe de Estado.
Os “grupos dos onze” foram organizados antes da deflagração do golpe, em 1963, surgindo da
mobilização popular liderada por Leonel Brizola a fim de que as reformas de base fossem realizadas;
para tanto, esses vários grupos de “onze companheiros” deveriam pressionar o Congresso e o
presidente João Goulart. Também deveriam resistir ao golpe que os setores conservadores estavam
organizando (na concepção de Brizola, o golpe de Estado encontrava-se em gestação).
Os setores conservadores, na época do chamamento de Brizola para a formação dos “grupos
dos onze”, utilizaram-se muito desses grupos de pressão para fomentar a campanha anticomunista
estabelecida contra o presidente João Goulart, mas também contra Leonel Brizola, alegando que a
existência desses grupos era prova cabal de que a “guerra revolucionária” (na concepção da Escola
Superior de Guerra) estava prestes a ser deflagrada. Essa visão, que beneficiava a ditadura civil-militar
brasileira, persistiu após o golpe de 1964, segundo demonstra a ordem de busca emitida pelo DOPS, de
caráter secreto:

ORDEM DE BUSCA
1. FATO: BRENO ARAÚJO, irmão de JAYME ARAÚJO, é viajante e reside em IJUÍ, à
rua 13 de Maio; consta que sua progenitora, ALCÍDIA ARAÚJO, possui indústria em
CACHOEIRA DO SUL e reside à rua Bento Gonçalves, 340 naquela cidade. Esta viaja
seguidamente ao URUGUAI, sendo JAIME ARAÚJO elemento ligado e pertencente ao
“GRUPO DOS ONZE”, tendo auxiliado a ELIZEU TORRES a exilar-se no Uruguai.
2. PROVIDÊNCIAS:
a) Verificar a veracidade do informe;
b) Antecedentes políticos dos nominados;
c) Viagens, atividades políticas dos nominados;
17
d) Enviar relatório ao DOPS.

É interessante observar que a maior parte da documentação das SOPS encontrada no Acervo
da Luta Contra a Ditadura no período imediato à instauração da ditadura faz referência a possíveis
atuações dos “grupos dos onze”, constando muitos interrogatórios de pessoas que assinaram as listas
18
para integrá-lo. Os números divergem: desde 20 mil a 70 mil “grupos dos onze” teriam sido criados.
Cabe destacar que os “grupos dos onze” não eram grupos guerrilheiros, mas, sim, grupos de pressão às
reformas de base. Possivelmente, esses grupos se constituiriam em núcleos de um futuro partido
revolucionário (em realidade, reformista) sob a liderança de Leonel Brizola. Eles possuíam uma
orientação de defesa da legalidade, e não uma postura de deflagração de guerra, caso os setores
conservadores arquitetassem um golpe contra a democracia.
Outro elemento que pode ser encontrado nos documentos da polícia política é a aplicação de
práticas que configuraram a ditadura brasileira como detentora do terrorismo de Estado. A aplicação das
premissas da Doutrina de Segurança Nacional arrastou consigo a violência, o terror e o medo. Dessa
maneira, associada a ela, manifestou-se o terrorismo de Estado, pois, para sua eficácia e a de seus
instrumentos ideológicos nos locais onde necessitava ser instalada, o terrorismo advinha como
consequência.
A imposição do medo entre a população é elemento central no terrorismo de Estado. Utilizando-
se de um conjunto de instrumentos que visava “educar” (pela força e pela alienação) a sociedade – a
“pedagogia do medo” – a ditadura brasileira pôde estabelecer a denominada “cultura do medo”. Os
instrumentos “pedagógicos” do terrorismo de Estado objetivavam impactar os cidadãos, “ensinando-os”,
através do “efeito demonstrativo”, como deveriam agir no Estado de Segurança Nacional. Ou seja, a
“pedagogia do medo” era a aplicação direta das práticas coercitivas sobre a população, constantemente
lembrando de que as faltas seriam castigadas. Já a utilização sistemática das práticas do terrorismo de
Estado levava à construção dessa “cultura do medo”, “um cenário com um clima de tons cinzas e
opacos, no qual predomina o silêncio, pois uns calam porque lhes falta a voz e outros por medo de
19
punição exemplar”.
17
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul.
SOPS/CS – 1.2.1282.17.5. Porto Alegre, 4 jan. 1966.
18
Para maiores informações sobre os “grupos dos onze”, ver BALDISSERA, Marli de. Onde estão os grupos de
onze?:os comandos nacionalistas na região Alto Uruguai – RS. Dissertação (Mestrado em História). Passo
Fundo/RS: UPF, 2003.
19
PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (1968-
1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2005. p.
97.

274
Durante os “anos de chumbo” da ditadura brasileira, o principal “inimigo interno” da ditadura foi a
luta armada. Esta situação, entretanto, não excluía que qualquer cidadão fosse um inimigo em potencial;
na realidade, isso era desejável, pois ampliava o alcance do leque de terror. Esta definição do “inimigo
potencial” amplificava o terror e o arbítrio porque o “universo das vítimas potenciais jamais é claramente
20
definido de antemão” e isto dá então “ao impacto subjetivo da ameaça um lugar totalmente particular”.
O caráter da imprevisibilidade é o que gera sua maior eficiência. Atos considerados simples e
triviais, em outros tempos, poderiam ser considerados perigosos e passíveis de punição. Isso gerava a
“cultura do medo”, baseada em um medo estrutural, ou seja, decorrente das práticas produzidas pelo
próprio Estado, e disseminadas para a população. Instalava-se um “terror permanente”, que atingia as
situações mais corriqueiras do cotidiano, percebido no olhar autoritário do policial, no medo de expressar
opiniões, de escutar determinadas músicas, de ler determinados livros, entre outros, conforme se
depreende do documento a seguir:

Pedido de busca nº 441/72 / DCI/SSP/RS


1 – Dados conhecidos:
1.1 – No dia 06/10/72 foi detido nessa cidade o estudante de nome ERWIN ROMMEL
DOS SANTOS.
1.2 – O nominado é filho de LOURIVAL CÂNDIDO DOS SANTOS e LUCI CÂNDIDO
DOS SANTOS.
1.3 – Quando de sua detenção o nominado trazia consigo um livro intitulado “COMO
21
TORNAR-SE UM BOM COMUNISTA”, de Wayko.

Uma das principais especificidades do território gaúcho é a questão da fronteira simultânea com
Argentina e Uruguai. Assim, o Rio Grande do Sul exerceu um papel de baluarte da defesa nacional da
ditadura brasileira, utilizando-se intensamente do seu aparato repressivo para tal. Paradoxalmente, para
a oposição e para as vítimas da Doutrina de Segurança Nacional, era praticamente uma rota obrigatória
para conexão com o exterior. O Rio Grande do Sul, inclusive, foi palco de operativos da Condor. O Brasil
havia se tornado local de encontros e de rota de saída e de entrada de organizações estrangeiras em
função de, no final da década de 1970 e início da década de 1980, apontar caminhos para a abertura,
como a liberdade de imprensa, a reorganização do movimento sindical e a oposição partidária, entre
outros. Entretanto, a máquina repressiva da ditadura brasileira não havia sido desmontada, e tampouco
estava desconectada da realidade global do Cone Sul, como se observa no documento abaixo:

Pedido de busca nº 23-1015/76/DCI/SSP/RS


Dados conhecidos:
1. Terroristas argentinos integrantes das organizações “EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO
DO POVO – ERP” e “MONTONEROS” receberam orientação de seus chefes para
procurarem homiziar-se em território brasileiro.
Aqui, aguardariam a diminuição da pressão anti-subversiva na REPÚBLICA
ARGENTINA, para onde regressariam quando a situação fosse menos desfavorável.
No momento, a identificação do combate contínuo à subversão empreendido pelas
FFAA e de SEGURANÇA argentinas impondo contínuos revezes às principais
organizações terroristas, tem forçado um retraimento geral.
2. Em consequência, os terroristas argentinos poderão penetrar em nosso território
através de diversos pontos e utilizando os mais diferentes meios de transportes,
explorando os atuais tratados recíprocos que facilitam o trânsito dos respectivos
nacionais.
DADOS SOLICITADOS:
a) Manter rígido controle sobre a permanência de argentinos em nosso território
coibindo qualquer situação irregular.
b) Deter e identificar todo o estrangeiro encontrado em situação irregular no País,
encaminhando-o para o SR/DPF (DPF) para a observância estrita [...].
22
c) Caso ocorra tal detenção, informar a este Departamento.

Por fim, apesar de a documentação do DOPS/RS ter sido oficialmente destruída em 1982, ainda
é possível averiguar a sua rede de atuação, por meio de diversos outros órgãos que integravam a
comunidade de segurança e informação. Entretanto, essas ações não se dão na totalidade: o que se

20
CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 190.
21
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha.
SOPS/LV – 1.2.1118.13.5. Porto Alegre, 9 out. 1972.
22
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha.
SOPS/LV – 1.1.792.8.3. Porto Alegre, 15 dez. 1976.

275
consegue são juntar algumas peças para tentar-se chegar a uma dinâmica e metodologia próprias deste
órgão repressivo. Assim, é importante destacar que a documentação sob a guarda do Arquivo Histórico
do Rio Grande do Sul foi totalmente preservada e tem caráter único, não possuindo originais em outros
lugares. Somente esse conjunto documental demonstra a atuação da polícia política do estado do Rio
Grande do Sul. Os documentos têm acesso irrestrito, sendo intensamente acessados, tanto para
pesquisas de cunho histórico, como para subsidiar processos de reparação judicial.

Fontes Consultadas:
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – Acervo da Luta Contra a Ditadura – Porto Alegre, Rio Grande
do Sul, Brasil
Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Santo Ângelo. SOPS/SA – 4.-.136.12.1. Porto Alegre, 1964.
Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.-.32.1.1B. Porto Alegre, 1 set. 1969.
Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.2.1282.17.5. Porto Alegre, 4 jan. 1966.
Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.1.792.8.3. Porto Alegre, 15 dez. 1976.

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Uruguai – RS. Dissertação (Mestrado em História). Passo Fundo/RS: UPF, 2003.
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(Mestrado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2006.
BRASIL. Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso
XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei
no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da
Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em:
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276
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(1968-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre:
UFRGS, 2005.
PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa Albertinence; FERNANDES, Ananda
Simões. A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): história e memória. 2. ed.
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Estabelece a Estrutura e o Regulamento Geral da Polícia Civil da Secretaria da Segurança Pública e dá
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277
278
VIII - Debates sobre ditaduras no campo jurídico

279
280
Uma luta inconclusa: reflexões sobre a Lei da Anistia (L. 6.683/79) e o processo de
redemocratização no Brasil

1
Débora Strieder Kreuz

Resumo: O presente trabalho objetiva refletir sobre o processo de criação da Lei 6.683/79, conhecida
como a Lei da Anistia, bem como sobre seus aspectos jurídicos mais polêmicos, e ainda sobre os
reflexos de tal regramento na sociedade brasileira atual. Dessa forma, pretende-se contribuir para o
debate que se acentua cada dia mais, tendo em vista o seu crescimento na sociedade, incitado,
sobretudo, pela nomeação, em 2012 da Comissão Nacional da Verdade. Ressalte-se que a referida lei é
uma afronta explícita à legislação internacional da qual o Brasil é signatário, tendo em vista a suposta
proteção que oferece aqueles que violaram direitos fundamentais dos que se opuseram às
arbitrariedades do governo.
Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar – Anistia – Direitos Humanos

Abstract: This paper aims to reflect on the process of creation of the Law 6.683/79, known as the
Amnesty Law, as well as its most controversial legal issues, and even on the reflections of such rules in
brazilian society today. Thereby, we intend to contribute to the debate that has increased more each day,
given the growth in Brazilian society about the theme, urged especially by the nomination in 2012 of the
“National Commission of Truth”. It should be noted that this law is an explicit affront to international law to
which Brazil is a signatory, in view of the supposed protection it offers those who violated the fundamental
rights of those who opposed the arbitrariness of government.
Key words: Civil-Military Dictatorship - Amnesty - Human Rights

Introdução
Durante cerca de 20 anos o Brasil viveu uma Ditadura Civil-Militar, a qual foi implantada com o
golpe de 1964 e perdurou até 1985, com a eleição, mesmo que indireta, de um presidente civil. Nesse
espaço de tempo, o país esteve imerso em um regime político que prendia, torturava, matava e
desaparecia com aqueles que se opusessem de qualquer forma às arbitrariedades cometidas.
Em 1979, ainda sob a vigência de tal governo, foi promulgada a Lei da Anistia (Lei 6.683/79), a
qual foi um marco muito importante no processo de retorno ao regime democrático. Após a sua
promulgação grande parte dos exilados políticos puderam retornar ao país e auxiliar em tal momento de
transição.
Contudo, a referida lei possui inúmeros pontos controversos, pois, na percepção militar e de
alguns setores conservadores da comunidade jurídica e da sociedade, instituiu-se a anistia para os
militares que comandavam práticas que atentam os direitos fundamentais mínimos, como a tortura.
Deve-se ressaltar que essa foi uma política de estado vigente no período ditatorial, ou seja, não foi
apenas “excesso” de alguns, como muitas vezes é argumentado.
Após o retorno ao regime democrático, assuntos referentes à Ditadura Civil-Militar, como a
tortura, desaparecimentos forçados e julgamentos de militares que praticaram tais atos e que violaram
direitos básicos foram colocados no esquecimento, tendo em vista a suposta “reconciliação” entre
torturadores e torturados. Deve-se ressaltar que tal argumento é equivocado, pois, para que realmente
haja a reconciliação nacional, deve-se promover políticas públicas que busquem o resgate de memória
do período, a análise de como os fatos ocorreram - pois muitos deles, inclusive mortes e
desaparecimentos foram forjados pelos agentes da repressão, de forma a se isentarem de
2
responsabilidade - e o julgamento daqueles que perpetraram tais práticas. Tais medidas, em nosso país,
andam a passos lentos.
O argumento principal daqueles que defendem o silêncio ante tal período é o de que a Lei da
Anistia colocou um ponto final em tais questionamentos. Contudo, acredita-se que o equívoco ante tal

1
Graduação em História pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Acadêmica do curso de Direito da
mesma instituição. Email: debora_kreuz@yahoo.com.br. Tel: (55) 8122-9659
2
Esses são os fundamentos da chamada Justiça de Transição. Conforme: MEZAROBBA, Glenda. Da
necessidade de discutir a anistia. Disponível em: http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2008/jusp840/ pag02.htm.
Acesso em: 02/01/13.

281
afirmativa deve ser esclarecido, pois, muitas são as confusões daí derivadas. E esse será o foco do
presente trabalho, ao qual nos deteremos a partir de agora.

A Ditadura Civil-Militar e o contexto de surgimento da Lei da Anistia


A imersão a que foi submetido o país ao regime autoritário a partir de 1964 foi quase que total.
Muitas das garantias existentes naquele momento foram suprimidas, tendo em vista a concentração de
poderes nas mãos dos comandantes militares, muitas vezes em detrimento, inclusive, do poder do
Congresso Nacional. Os ditadores poderiam, dessa forma, legislar sem serem submetidos ao poder de
fato competente para tal. O meio utilizado para levar a cabo tal empreitada foram os chamados Atos
Institucionais, os quais se sucederam no decorrer do regime.
Em 1965, com a promulgação do Ato Institucional nº2: “que acaba com todos os partidos
políticos e permite ao Executivo fechar o Congresso Nacional quando bem entender; torna indiretas as
3
eleições para presidente da República e estende aos civis a abrangência da Justiça Militar.” , teve-se a
dimensão do quão afetadas poderiam ser as garantias individuais, pois, todo aquele que fosse
processado por algum crime previsto nos decretos-leis 314 e 898, de 1967 e 69, definidos pelos militares
como sendo contra a segurança nacional passou a ser julgado pela justiça militar, ferindo assim, a
clássica separação de competências garantida em um estado democrático de direito. Também foram
extintos todos os partidos políticos, passando a existir, legalmente, somente a oposição consentida,
representada pelo Movimento Democrático Brasileiro – MDB, sendo que, aqueles que não concordavam
com as suas diretrizes, passaram a atuar na clandestinidade.
Em dezembro de 1968, a situação tornou-se ainda mais grave, tendo em vista a promulgação do
Ato Institucional nº 5, o qual dava ao presidente:

[...] em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso do


Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares;
suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco
4
de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus.

Ou seja, além de serem julgados por um tribunal militar, os opositores tiveram uma das principais
garantias contra a prisão arbitrária – o habeas corpus – extinto. Dessa forma, e com os métodos que
utilizavam os agentes da repressão, toda a qualquer forma de contestação passou a ser duramente
5
reprimida, inclusive com a tortura, a morte e o desaparecimento de inúmeras pessoas . Para Mezarobba:

Marcada pela inexistência de estado de direito e, portanto pelo constante desrespeito a


princípios jurídicos fundamentais e pela ampla margem de arbítrio de que dispunham as
autoridades policiais, a realidade imposta pela doutrina de segurança nacional contava
6
com a ajuda da Justiça Militar para manter-se.

Até 1975, foram praticamente aniquiladas todas aquelas organizações que, de forma armada ou
7
não, opuseram-se as arbitrariedades dos governos. O exílio foi o caminho dos que não foram presos ou
mortos e, de lá, que se iniciou o movimento de denúncia das atrocidades que estavam sendo cometidas
pelo governo brasileiro.
Já em 1974, o general Ernesto Geisel assumiu o governo com a proposta de realizar a abertura
política “lenta, gradual e segura”, ou seja, a transição democrática deveria realizar-se sem
inconveniências para o regime militar. Tal processo derivou da grande crise econômica enfrentada pelo
país, bem como com o aumento da oposição interna e externa. A transição foi realmente lenta, de forma
a terminar somente em 1985.
Em 1979 foi promulgada a Lei da Anistia, a qual, mesmo sendo fruto de uma luta intensa de
amplos setores da sociedade civil, não contemplou todas as suas demandas. O que se almejava era a
anistia “ampla, geral e irrestrita”, ou seja, que abrangesse a todos os perseguidos políticos e condenados
pela ditadura, o que não ocorreu, tendo em vista que os condenados pelos chamados “crimes de
sangue” não foram beneficiados pela mesma. Dessa forma, cabe já salientar, que o argumento de que a

3
ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
4
Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5. Acesso em: 28/02/13.
5
Até hoje, não sabemos ao certo o número de pessoas que foram torturadas naquele período. Estão
desaparecidos 138 indivíduos e mortos 357. Contudo, tal número pode ser muito maior, em virtude do silêncio
que ainda impera em inúmeras regiões. Fonte: Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos
e Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos - - Brasília : Secretaria
Especial dos Direitos Humanos, 2007
6
MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudo do caso
brasileiro. Dissertação de mestrado em Ciência Política. Universidade de São Paulo: 2003.
7
GORENDER, Jacob. O combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, 6ª ed.

282
anistia foi negociada entre os todos os setores envolvidos no processo não procede, pois, mesmo com
inúmeras propostas da sociedade civil, o texto que foi aprovado, num Congresso Nacional ainda
dominado pelo medo, foi a proposta enviada por João Figueiredo, general que estava no poder.

Discussão sobre os aspectos jurídicos mais polêmicos da Anistia


Inicialmente, cabe destacar que um dos pontos mais polêmicos da lei ora em comento se
encontra no seu artigo 1º e também no inciso 1º:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de


setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com
estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos
servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder
público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos
dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza
8
relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

Ressalte-se que a redação de tais dispositivos, obviamente dúbia e obscura, foi proposital, tendo
em vista o interesse do governo autoritário de se incluir na proteção concedida e garantir, dessa forma, a
sua total tranquilidade após o término do regime. Cabe destacar, nesse sentido, que a autoanistia é
condenada, tendo em vista que a mesma impede que aqueles que prenderam arbitrariamente,
torturaram e mataram sequer possam ser investigados, diferentemente dos perseguidos, que foram
processados, muitas vezes, inclusive, sem respeito às mínimas garantias processuais.
A interpretação que prevaleceu já naquele momento, não sem críticas, foi a de que os agentes
da repressão que, supostamente, cometeram crimes conexos com os dos guerrilheiros também foram
abrigados pela lei ora em comento. Tal posicionamento, desde o início, foi atacado por inúmeros juristas,
como se pode depreender da afirmação de Nilo Batista:

A tortura e o homicídio de um preso não são crimes políticos, nem são crimes conexos a
crimes políticos, objetiva ou subjetivamente. São crimes comuns, são repugnantes
9
crimes comuns, que estão a merecer - até quando? - processo e julgamento.

Tal entendimento também é presente na atualidade. De acordo com Soares:

A constituição de 1988, bem como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e


a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis reconhecem a tortura como crime contra a humanidade, sendo assim
imprescritível e não sujeito à graça ou anistia. O próprio texto na lei de anistia não
10
concede anistia a crimes contra a humanidade, mas apenas a crimes políticos.

Nesse sentido, é importante ressaltar que inúmeras leis de autoanistia já foram condenadas por
Tribunais Internacionais. Cita-se o exemplo da Lei existente no Peru, que foi declarada incompatível com
os Tratados de Direitos Humanos assinados pelo país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Para Trindade: “[...] as leis de auto-anistia estão viciadas de nulidade ex tunc, de nulidade ab initio,
11
carecendo portanto de todo e qualquer efeito jurídico.” No comento de Piovesan:

Conclui a Corte que as leis de “autoanistia” perpetuam a impunidade, propiciam uma


injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o
direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que
12
constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana.

8
BRASIL. Lei nº 6.683/79. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso em:
25/02/13.
9
BATISTA, Nilo. Aspectos jurídicos-penais da anistia. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, nº26. Jul-
Dez 1979. Pg 33-42.
10
SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade. Disponível em:
http://mundorama.net/2008/11/21/lei-de-auto-anistia-no-brasil-obstrucao-da-justica-e-da-verdade-por-adalgisa-
bozi-soares/. Acesso em: 25/02/13.
11
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O fim das “leis” de auto-anistia. Disponível em:
http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2394&Itemid=2. Acesso em: 26/02/13.
12
PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. In: TELES,
Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
Pg. 91-107.

283
*******
Faz-se também necessária a discussão no referente a questão dos crimes conexos
mencionados no artigo 1º supra mencionado. De acordo com Bicudo:

Nos crimes conexos, um crime é pressuposto do outro. A unidade delitiva que se


manifesta pela unidade do fato é o fundamento do instituto. Fora daí não existem crimes
conexos, mas independentes, porque palmilham caminhos diferentes e perseguem
13
objetivos que não se confundem.

Dessa forma, não é possível que delitos cometidos por lados que se opunham completamente
naquele momento sejam considerados conexos uns com os outros. Contudo, o Supremo Tribunal
Federal, na sentença da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF153, proposta
pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB em 2008, afirma que a conexidade dos crimes faz-se
presente, fato que, acredita-se, é um equívoco, tendo em vista toda a doutrina, que fala no sentido
oposto, que envolve tal instituto. Para Piovesan: “Não se pode falar em conexidade entre os fatos
praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas e não àqueles;
14
perdoou as vítimas e não os que delinquem em nome do Estado.”

*******
Também se deve comentar que, para que exista anistia, é necessário que haja um processo,
onde exista a menção da prática do delito pelo sujeito. Os militantes de esquerda foram, mesmo que
sem as garantias básicas, processados e punidos, o que não ocorreu com os agentes do governo. Estes
15
sequer foram denunciados pela prática de ilícitos penais. Dessa forma, se não existiu a denúncia, de
forma alguma poderiam ser anistiados, afinal, não houve o reconhecimento da prática do delito.

********
Os argumentos acima citados são de ordem interna, ou seja, já no ordenamento jurídico nacional
existem incompatibilidades inadmissíveis. Em nome da segurança jurídica e para que o respeito aos
princípios democráticos seja garantido, tais aberrações não poderiam ocorrer. Outros tantos problemas
podemos encontrar se analisarmos a Lei de Anistia brasileira face ao Direito Internacional, especialmente
16
no tocante aos Direitos Humanos, os quais são, nas palavras de Piovesan o “mínimo ético irredutível” .
Inúmeras são as convenções assinadas pelo Brasil que proíbem toda e qualquer forma de
tratamento degradante ao indivíduo, especialmente a tortura. Em nenhum momento esta pode ser
admitida. Contudo, sabe-se que a mesma foi aplicada sistematicamente pelos agentes da repressão
para que todas as informações possíveis fossem colhidas. Para citar apenas alguns regramentos
internacionais que fazem referência à temática ora em comento, ratificados pelo Brasil temos a
Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a
Convenção contra a Tortura e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Piovesen, fazendo uma
síntese de tais regramentos, dispõe que:

Ao direito de não ser submetido à tortura somam-se o direito à proteção judicial, o direito
à verdade e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitos
humanos. [...] Também é dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla
dimensão – individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o
que compreende o direito ao luto) e em prol da sociedade à construção da memória e
17
identidade coletivas.

Para finalizar tal momento, menciona-se também que a Constituição Federal, no seu artigo 5º, é
enfática quando trata de crimes contra a humanidade, como a tortura:

5º:
[...]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática
da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos

13
BICUDO, Helio. Lei da Anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos:
reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs. 85-7.
14
PIOVESAN. Flávia. Op. Cit.
15
Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/970/anistia-graca-e-indulto-renuncia-e-perdao-decadencia-e-
prescricao. Acesso em: 25/02/13
16
PIOVESAN, Flavia. Op. Cit.
17
PIOVESAN. Op Cit.

284
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que,
18
podendo evitá-los, se omitirem;

Assim, percebe-se que as falhas jurídicas da lei são inúmeras. A obscuridade é marca presente,
pois, como já mencionado, interessava aos agentes do governo autoritário saírem ilesos das prováveis
consequências de seus atos.

O lento caminhar brasileiro


Desde a promulgação da anistia a luta para que a história do período autoritário não seja
apagada continua. Mesmo com o processo de esquecimento a qual foi submetida a sociedade brasileira,
com a suposta “reconciliação” entre os lados opostos, especialmente os familiares de mortos e
desaparecidos políticos e os que lutam pela causa dos direitos humanos não deixaram que a amnésia
coletiva prevalecesse.
Sua luta teve uma das primeiras conquistas em 1995, quando foi aprovada a Lei 9.140/95,
também conhecida como Lei dos Desaparecidos. Por meio dela, o Estado brasileiro “[...] reconheceu
como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em
19
atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.” Ou seja, houve o
reconhecimento, por parte do estado brasileiro, de que opositores foram mortos em razão da sua
militância. Contudo, não existiu nenhum esforço, por parte desse mesmo estado em punir aqueles que
executaram tais atos, com o argumento de que a Lei da Anistia seria ferida. Os familiares puderam
apenas requerer atestados de óbito de seus entes e requerer indenizações, sendo que os responsáveis
pelo seu desaparecimento continuaram impunes. Para Mezarobba:

Se não há dúvidas de que a Lei 9.140 representou um avanço [...], seus termos não
foram suficientes, na interpretação dos parentes das vítimas, entre outros motivos, pelo
fato de a iniciativa desobrigar o Estado a identificar e responsabilizar os que estiveram
diretamente envolvidos na prática dos crimes e pelo ônus da prova ter sido deixado aos
20
próprios familiares.

Nessa sequência, em 2001, foi criada, por Medida Provisória, a Comissão da Anistia, a qual “[...]
está analisando os pedidos de indenização formulados pelas pessoas que foram impedidas de exercer
atividades econômicas por motivação exclusivamente política desde 18 de setembro de 1946 até cinco
21
de outubro de 1988.” Até o momento, já foram encaminhados para a comissão mais de 50 mil
requerimentos. A partir desse número, pode-se ter uma pequena noção de como a ditadura afetou a vida
de milhares de pessoas. Para dar visibilidade a tal temática, são promovidas por todo o país as
chamadas Caravanas da Anistia, onde alguns requerimentos são analisados de forma pública.
Em 2008, uma das famílias atingidas pela repressão, protocolou Ação Declaratória contra o
coronel do Exército, Carlos Brilhante Ustra, de forma a poder chamá-lo de torturador. Já na primeira
instância, em 2010 foi julgada procedente e, em sede de recurso, no ano de 2012, também. Embora não
possua efeitos penais, a sentença demonstra que o judiciário, em certos setores, encontra-se mais
aberto a discutir tais questões e, novamente, tais questões ganham visibilidade perante a sociedade.
A sentença do “Caso Gomes Lund e outros versus Brasil”, proferida em 2010 foi emblemática,
tendo em vista a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por inúmeros
fatos, como a não persecução penal daqueles que violaram os direitos humanos, em contraposição ao
assinado pelo país nas convenções internacionais, a ausência de informações sobre os desaparecidos,
dentre inúmeros outros aspectos.
Uma das recomendações ao país era de que fosse criada uma Comissão da Verdade, com o
objetivo de esclarecer as violações de direitos ocorridas no período, bem como promover políticas de
resgate da memória e também a punição dos repressores. Em 2011 foi criada a lei que instituiu a
Comissão Nacional da Verdade – Lei 12.528/11 –, como forma de cumprir parte da sentença. Embora
não tenha o poder de punir penalmente e com o tempo de atuação muito curto – apenas dois anos - veio
como meio de fazer conhecer a verdade sobre o período e dar visibilidade a demandas que há décadas
perturbam parte da sociedade.
Assim, faz-se importante a quebra de um argumento utilizado, que menciona que o “remexer nas
18
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 25/02/13.
19
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Mortos e desaparecidos políticos. Disponível em:
http://www.sedh.gov.br/mortosedesap. Acesso em: 26/02/13.
20
MEZAROBBA, Glenda. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 109-119.
21
Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJABFF735EITEMID48C923D22C804143
AB475A47E582E1D8PTBRIE.htm. Acesso em: 26/02/13.

285
feridas faria mal a sociedade”:

O esquecimento e a negação da memória têm sido um traço marcante no


comportamento das elites brasileiras. O passado é visto como uma presença incômoda
que deve ser soterrada em nome da tranqüilidade do presente. Tranqüilidade para
quem?, deve-se perguntar. Uma pessoa, uma cidade, um povo ou um país que
22
desconhece sua história e esquece seu passado caminha sem rumo para o futuro.

Conclusão
Muito se avançou no tocante às questões ainda abertas da Ditadura Civil-Militar. Porém, muito
mais se tem a avançar. A recente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
no caso referente à Guerrilha do Araguaia, demonstra o quanto algumas questões polêmicas devem ser
objeto de análise com a busca de soluções, especialmente no que se refere aos desaparecimentos
políticos, a elucidação de como, de fato, as mortes ocorreram e também o julgamento/punição daqueles
que violaram os direitos mais fundamentais.
Sabe-se que a impunidade dos agentes da repressão não contribui para a efetivação de um
regime democrático, como menciona Herzog:

Não há nada que justifique a tentativa de pôr um ponto final na questão sem esclarecer
o que ocorreu, negando-se a apurar a circunstâncias das mortes e torturas. O
conhecimento desses fatos não abala a democracia brasileira. Ao contrário, é quando
23
não prevalece a justiça que os princípios democráticos são enfraquecidos.

Assim, acredita-se que, para além do conformismo jurídico existente, o Judiciário, impulsionado
também pela sociedade civil organizada deve cumprir seu papel de protetor da coletividade. Para
Moreira:

Nessa ótica, é imprescindível ao desenvolvimento de uma democracia que ela possa


confrontar-se com o seu passado de barbárie e repressão política, demarcando
claramente a diferença que guarda deste passado obscuro e sinalizando fortemente
para uma nova direção, na qual o respeito aos direitos humanos e a manutenção das
24
liberdades públicas sejam pilares inegociáveis e inexpugnáveis.

Dessa forma, pretendeu-se apresentar os argumentos mais utilizados em defesa da Lei da


Anistia, demonstrando o quão inadmissíveis os mesmos são, tanto no tocante ao direito interno quando
ao direito internacional. Acredita-se que o Estado brasileiro caminha em direção à efetiva garantia dos
direitos humanos, mas, enquanto as lacunas de tal momento ainda persistirem, não há que se falar em
“passado”, pois, os questionamentos estão presentes e a sociedade precisa de respostas.

Referências Bibliográficas:
ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
BATISTA, Nilo. Aspectos jurídicos-penais da anistia. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense,
nº26. Jul-Dez 1979. Pg 33-42.
BICUDO, Helio. Lei da Anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos
políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs. 85-7.
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em:

22
PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2012, 4ª
edição.
23
HERZOG. André. Anistia não é lei do silêncio. In: In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos:
reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs 81-3.
24
MOREIRA, José Carlos. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição
Democrática Brasileira. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direito ao
desenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010.

286
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Lei 6.689/79. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm.
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Mortos e desaparecidos políticos. Disponível em:
http://www.sedh.gov.br/mortosedesap
HERZOG. André. Anistia não é lei do silêncio. In: In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos
políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs 81-3.
GORENDER, Jacob. O combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, 6ª ed.
MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudo
do caso brasileiro. Dissertação de mestrado em Ciência Política. Universidade de São Paulo: 2003.
_______________. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 109-119.
________________. Da necessidade de discutir a anistia. Disponível em:
http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2008/jusp840/pag02.htm
MOREIRA, José Carlos. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada
Transição Democrática Brasileira. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direito
ao desenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010
PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2012,
4ª edição
PIOVESAN, Flavia. Direito Internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. In:
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010. Pg. 91-107
SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade. Disponível
em: http://mundorama.net/2008/11/21/lei-de-auto-anistia-no-brasil-obstrucao-da-justica-e-da-verdade-
por-adalgisa-bozi-soares/. Acesso em:
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O fim das “leis” de auto-anistia. Disponível
em:http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2394&Itemid=2.

287
Bourdieu e o campo jurídico: debate sobre a autonomia do Supremo Tribunal Federal
durante a ditadura militar brasileira (1964-1979)

1
Mateus Gamba Torres

Resumo: Conforme explica Pierre Bourdieu, em seu livro O Poder Simbólico, em seu capítulo VIII
intitulado A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, os juristas e historiadores
do direito concebem a história do direito como a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos
e dos seus métodos, que somente podem ser compreendidos através de sua dinâmica interna,
concebendo-o como um sistema fechado e autônomo. A intensão de Kelsen em sua “teoria pura do
direito” foi de construir um campo de doutrinas e regras que fossem totalmente independentes dos
constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo seu próprio fundamento. Durante a ditadura
militar brasileira de 1964 a 1979, o Supremo Tribunal Federal sofreu diversas intervenções pelo
Executivo golpista e sofreu pressões vindas do mundo social tanto conservadoras como contestadoras,
por isso a pesquisa se baseia no conceito de autonomia do campo jurídico de Bourdieu e como isso faz
parte de um poder simbólico atribuído a este campo que muitas vezes se adapta as situações de
pressões advindas de outros poderes ou outros setores da sociedade.
Palavras-chave: Bourdieu, Ditadura Militar, Supremo Tribunal Federal

Dias após o golpe civil-militar de 1964, acontecimentos referentes às esferas de poder faziam
notícias explodirem nos jornais em letras garrafais. Eram muitos os acontecimentos, uma “revolução”
estava acontecendo, segundo os militares, para reestabelecer a ordem. Para isso acontecer, o
Presidente da República João Goulart, foi deposto e o Congresso Nacional declarou vaga a Presidência
da República. Assume o Presidente da Câmara Ranieri Mazzili, porém havia um aparato constitucional
ao menos teoricamente a cumprir. Esse aparato, porém, que não previa golpes de estado que depunham
presidentes, e que não dava respostas legais para se resolver o impasse: quem iria posteriormente
assumir a Presidência da República e de que forma?
A Constituição de 1946 previa que naquele caso, na ausência definitiva do Presidente da
República e do Vice-Presidente da República, assumiria o Presidente da Câmara dos Deputados e se
convocariam em 30 dias eleições indiretas para presidente, na qual os eleitores seriam os membros do
congresso nacional. (BRASIL, 1946)
Nesse contexto, vários políticos que apoiaram o golpe de estado se lançaram candidatos:
General Kruel, Eurico Gaspar Dutra (ex-presidente) e o próprio Presidente da Câmara Ranieri Mazzili.
(FOLHA DE SÃO PAULO, 1964). Porém o “Candidato” escolhido foi o General Humberto Castelo
Branco, militar que foi um dos conspiradores do golpe. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1964)
Porém, a solução “Constitucional” pelo visto parecia democrática demais. No dia 09 de abril de
1964, após a aprovação de uma lei que regulamentava a eleição indireta para Presidente da República,
o Comando Militar, com o intuito de “institucionalizar” a “revolução”, como já mencionado pelo então
Ministro da Guerra Costa e Silva, decreta o primeiro de muitos outros “Atos Institucionais”.(FOLHA DE
SÃO PAULO, 1964)
Mas, o que seria um Ato Institucional? Uma lei emergencial? Uma reforma constitucional? Qual
era o discurso oficial sobre a natureza do Ato Institucional? À época algumas explicações foram dadas.
Segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Medeiros Silva,

sem o Ato Institucional, não teria havido uma Revolução, mas um golpe de estado, ou
uma revolta, destinados a substituir pessoas dos altos postos do Governo, conservando,
porém, as mesmas regras jurídicas, os mesmos métodos de governo, políticos e
administrativos, que provocaram a deterioração do poder e a sua perda.(1964)
2
Temos então a opinião de um jurista reconhecido pelo seu notório saber jurídico. Um Ministro do
Supremo explica que, sem mudança na estrutura legal brasileira, o movimento de 1964 seria apenas um

1
Doutorando em História – UFRGS, Professor Assistente – UFFS. Email: mateustorres@ig.com.br.
2
O notório saber jurídico era um dos requisitos da Constituição Federal de 1946 para que um jurista fosse
nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal. Conforme: BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do
Brasil de 1946. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/legislacao>. Acesso em: 5 jun. 2012.

288
golpe ou uma revolta. No raciocínio do Ministro, a mudança legal após uma tomada de poder não só se
justifica como também se faz necessária, sob pena de o movimento ser considerado apenas uma
mudança de postos administrativos no alto escalão do governo. Mesmo assim, não é uma explicação
conceitual do ato ou de sua natureza. Nesse artigo percebe-se que o ministro se esforça para explicar a
situação vigente do ponto de vista jurídico, porém, analisando as palavras do Ministro, percebe-se que
este apenas deu-se ao trabalho de plagiar formalmente o que já está escrito no próprio Ato Institucional.
Tais explicações, retiradas de um artigo “científico”, foram dadas apenas dois dias após a publicação do
Ato. O próprio Ministro afirma que está estabelecendo apenas uma leitura rápida do Ato Institucional.
Mas 20 dias depois, o Ministro já parecia ter as respostas necessárias, os conceitos jurídicos
necessários para internalizar na linguagem jurídica este acontecimento no mundo social explica
juridicamente o que ocorreu e porque tudo aquilo era perfeitamente aceitável.

O Ato Institucional de 09 de abril de 1964, é uma lei constitucional temporária, cuja


vigência, iniciada na sua data, terminará em 31 de janeiro de 1966. No período limitado,
que corresponde ao Mandato do Presidente da República, eleito pela forma nele
estabelecida, alguns preceitos da Constituição de 1946 deixarão de vigorar, porque
outros também de natureza constitucional inscritos no próprio ato, sobre aqueles
prevalecerão. (SILVA, 1964)

Essas medidas judicias tomadas no Brasil, após o golpe de 1964, o governo ditatorial possuem o
objetivo de interferir no funcionamento do poder judiciário e consequentemente do campo judiciário como
um todo.
Todavia, o ato institucional nº 1 não modificou a estrutura judiciária brasileira, mas determinava a
investigação sumária através de inquéritos administrativos que tinham o objetivo de apurar a
responsabilidade de servidores públicos na prática de crimes contra o Estado ou o seu patrimônio e
contra a ordem política e social. Estes poderiam ser demitidos, dispensados, postos em disponibilidade,
aposentados, transferidos para a reserva ou reformados por decreto do Presidente da República ou
Governador do Estado, sem prejuízo das sanções penais a que estivessem sujeitos. Cabia ao judiciário
apenas apreciar as formalidades extrínsecas, ou seja, se o “procedimento” adotado pelas comissões de
inquérito eram corretos. (BRASIL, 1964)
3
Devido à grande quantidade de Habeas Corpus e outros instrumentos jurídicos pelos por meio
dos quais o judiciário interveio no funcionamento dessas comissões de inquérito, revisando
procedimentos, revertendo decisões, soltando presos políticos, etc., o Ato Institucional nº 2 interveio de
forma direta no funcionamento do Poder Judiciário (BRASIL, 1965):

1) mudou a composição do Supremo Tribunal Federal de 11 para 16 ministros, visto que estes eram
nomeados pelo Presidente da República.
2) transferiu para a competência da Justiça Militar os processos e julgamentos de crimes previstos
na Lei de Segurança Nacional de 1953.(BRASIL, 1953)
3) Passou o julgamento de Governadores e de Secretários de Estado passou para o Superior
Tribunal Militar.

Assim, o governo teria mais certeza de que as decisões judiciais seriam favoráveis ao regime,
pois tirou a atribuição da justiça comum no julgamento de civis, para que estes fossem julgados por
juízes ou ministros dos tribunais militares e aumentou o número de ministros do Supremo, de nomeação
direta pelo Presidente da República; restava como possibilidade de recorrer à justiça comum,
diretamente ao Supremo Tribunal Federal, para o julgamento de Habeas Corpus e de Recurso Ordinário
em caso de “crimes políticos”. O Habeas Corpus é um pedido que podia ser feito diretamente ao STF no
caso de prisão ilegal, independentemente de haver processo já instaurado contra o réu; tinha o objetivo
de ser célere, fazendo com que o STF tivesse ciência da ilegalidade da prisão e diretamente
determinasse a soltura do réu caso aquela fosse comprovada. Já o Recurso Ordinário pressupunha uma
decisão anterior do Poder Judiciária sobre um crime que estava sendo imputado ao acusado, e sob cuja
4
decisão deveria se pronunciar o Supremo Tribunal Federal .
Após a outorga da Constituição de 1967, ocorreu a manutenção do direito de Habeas Corpus
bem como o julgamento por parte do STF de recurso ordinário relacionado a decisões do Superior

3
É medida judicial destinada a garantir e proteger a liberdade de quem está preso ou ameaçado de prisão. O
habeas corpus serve, também, para reparação de qualquer constrangimento em processo penal, pois o
processo penal, podendo resultar em pena privativa de liberdade, é ameaça ao ir e vir. O nome, em latim,
significa, tome o corpo. Disponível em < http://www.esmpu.gov.br> Acesso em: 22 mar. 2012.
4
Conforme a Constituição Federal de 1946 o recurso ordinário era julgado pelo Supremo Tribunal Federal em
caso de crimes políticos. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em 22 mar 2012.

289
5
Tribunal Militar em crimes contra a segurança nacional . Ou seja, a Constituição especificamente
determinava a existência desse recurso no qual a decisão final cabe ao STF. (BRASIL, 1967)
Após o Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968, no entanto, fica suspensa a garantia
de Habeas Corpus em caso de crime político, contra a segurança nacional, a ordem econômica e a
economia popular. Além disso, o STF sofre um golpe direto. Os Ministros Victor Nunes Leal, Hermes
Lima e Evandro Lins e Silva são cassados. Dois ministros se aposentaram em solidariedade: Antônio
Gonçalves de Oliveira e Carlos Lafaiete de Andrade. (MATTOS, 2002). Após a saída destes cinco
ministros, com o sexto ato institucional, o regime diminui o número de Ministros do STF de 16 para 11,
aproveitando o fato de que praticamente todos os membros do colegiado tinham sido nomeados pela
ditadura.(BRASIL, 1969)
Após o ato institucional nº 6, de 1º de fevereiro de 1969, o recurso ordinário ao STF passou
apenas a ser admitido no caso do parágrafo 2º do artigo 122, ou seja, somente no de julgamento de
Governadores de Estado e seus Secretários. Os civis acusados de crime contra a segurança nacional
seriam julgados pela justiça militar, sendo o único recurso passível ao STF o Extraordinário. Por este
expediente, o Supremo não revisaria as provas colhidas contra os acusados, nem ao menos se foi
correta ou não a condenação de acordo com a Lei de Segurança Nacional; ficaria responsável somente
por verificar se a Constituição de 1967 foi devidamente aplicada. Isto faria com que o nenhum tribunal
civil apreciasse as provas existentes nos processos contra acusados de crime contra a Segurança
Nacional, fazendo com que apenas os militares, através de sua justiça, fizessem um juízo de validade
das provas dos autos, decidindo se condenavam ou não os réus.
Porém tal determinação, mesmo demonstrando a vontade existente de dominação por parte da
Justiça Militar de tudo o que fosse relacionado a crimes contra a segurança nacional, foi revogada 10
meses depois. Com a Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969, é restabelecida a
possibilidade de Recurso Ordinário ao STF, nos casos do artigo 119 da Constituição, bem como com os
parágrafos 1º e 2º do artigo 129, que tinham a seguinte redação:

Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal:


II – Julgar em Recurso Ordinário
b) os casos previstos no artigo 129,§ 1 e 2º.
(...)
Art. 129. À Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em
lei, os militares e as pessoas que lhes são assemelhadas.
§ 1º Êsse fôro especial estender-se-á aos civis, nos casos expressos em lei, para
repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares.
§ 2º Compete originariamente ao Superior Tribunal Militar processar e julgar os
Governadores de Estado e seus Secretários, nos crimes de que trata o § 1º. (BRASIL,
1967)

Voltam assim a ter direito de interpor Recurso Ordinário ao STF os condenados pelo STM no
caso de crimes contra a segurança nacional. O STF poderia modificar todos os aspectos da decisão do
STM, inclusive revisar provas e procedimentos, determinar novas perícias, ou seja, o STF voltou, nesse
caso, a ser um Tribunal revisor das decisões do STM. E foi assim até a revogação do AI-5. O Recurso
Ordinário ao STF continuou sendo a única possibilidade de um cidadão ter revisada a sua sentença por
um tribunal civil. O Supremo verificaria ao menos se a decisão respeitava ou não a legislação estipulada
pela ditadura, e se foi dada com base nas provas presentes nos autos, mesmo nas condições adversas
que existiam durante a sua coleta.
Ao interporem tais Recursos Ordinários ao STF, os advogados de presos políticos ou os
Procuradores Militares poderiam requerer uma revisão integral do acórdão julgado pelo Superior Tribunal
Militar. Assim, ficava o STF com a obrigação de confeccionar um novo acórdão, analisando todos os
aspectos da decisão do STM. Os Ministros do STF decidiam conforme o que tenha sido requerido pelo
advogado do réu ou em alguns casos pelo Ministério Público Militar. Todo Recurso é um instrumento de
revisão de uma decisão e, caso seja interposto, é porque uma das partes, acusação ou defesa,
necessariamente não ficou satisfeita com o resultado da demanda. Da interposição destes recursos,
resultou a confecção de acórdãos desde o ano de 1964 até o ano de 1979, nos casos de crime contra a
segurança nacional. Este material é uma rica fonte de pesquisa sobre o judiciário durante a ditadura. Os
acórdãos dão a dimensão de como o STF se movia em relação a legislação, ao executivo, as pressões
sociais. São parte de um processo histórico, de um acordo entre uma elite militar e judiciária no sentido

5
Conforme Pedro Lenza em razão do autoritarismo implantado pelo Comando Militar da Revolução, não
possuindo o Congresso Nacional liberdade para alterar substancialmente o novo Estado que se instaurava, é
preferível considera-la como outorgada unilateralmente (apesar de formalmente votado, aprovado e
“promulgado”) pelo regime ditatorial militar implantado. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.
São Paulo: Saraiva, 2008. P.26

290
de se estabelecer um regime repressivo, estando a disposição para consulta pública no site do Supremo
Tribunal Federal.
Conforme explica Pierre Bourdieu, em seu livro O Poder Simbólico, em seu capítulo VIII
intitulado A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, os juristas e historiadores
do direito vislumbram a história do direito como a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos
e dos seus métodos, que somente podem ser compreendidos através de sua dinâmica interna,
concebendo-o como um sistema fechado e autônomo. A intensão de Kelsen em sua “teoria pura do
direito” foi de construir um campo de doutrinas e regras que fossem totalmente independentes dos
constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo seu próprio fundamento. (BOURDIEU,
2010)
Em contraposição, Bourdieu propõe que a prática dos agentes encarregados de produzir o
direito ou de aplicá-lo em um determinado caso judicial, deve muito às afinidades ideológicas,
econômicas e até culturais que unem os detentores por excelência desta forma de poder simbólico aos
detentores do poder temporal, político ou econômico. Com interesses próximos e, sobretudo, a afinidade
do habitus ligada a formações familiares e escolares semelhantes, as visões do mundo da classe
dominante e dos membros do corpo jurídico não se diferenciam. Segue-se aqui que as escolhas que os
integrantes da classe jurídica devem fazer em cada momento, entre interesses, valores, visões do
mundo diferentes ou antagonistas, destoantes do que está estabelecido na ideologia da classe
dominante, têm poucas probabilidades de desfavorecê-los. De tal modo o ethos dos agentes jurídicos,
que é invocado tanto para justificar seus atos como para os inspirar, está adequado aos interesses, aos
valores e à visão de mundo dos dominantes. A pertença dos magistrados à classe dominante está
atestada em toda a parte.(BOURDIEU, 2010)
Para Bourdieu, a função de manutenção da ordem simbólica que é assegurada pela contribuição
do campo jurídico é

– como a função de reprodução do próprio campo jurídico, das suas divisões e das suas
hierarquias, e do princípio de visão e de divisão que está no seu fundamento – produto
de inúmeras ações que não têm como fim a realização desta função e que podem
mesmo se inspirar, em intenções opostas, como os trabalhos subversivos das
vanguardas, os quais contribuem, definitivamente, para determinar a adaptação do
direito e do campo jurídico ao novo estado das relações sociais e para garantir assim a
legitimação da forma estabelecida dessas relações. É a estrutura do jogo e não um
simples efeito de agregação mecânica, que está na origem da transcendência, revelada
pelos casos de inversão das instituições, do efeito objetivo e coletivo das ações
acumuladas. (BOURDIEU, 2010)

Como acima mencionado, Bourdieu aponta como característica do campo jurídico a sua
constante afirmação de autonomia, essa, formadora de sua própria identidade como campo. O campo
jurídico, caracterizado pelas leis, técnicas e linguagens trabalhadas pelos profissionais da área,
considera-se um mundo diferenciado do restante da sociedade. Mesmo fazendo parte dela e nela
atuando, os agentes do campo jurídico consideram-se autônomos no sentido de não aceitar pressões
sociais externas, daquilo que consideram estar fora de seu próprio campo. Seus membros trabalhariam
relacionando-se exclusivamente com as legislações, doutrinas e jurisprudências, colocando-se como
aplicadores das técnicas judiciais, sem levar em conta os acontecimentos políticos, sociais e
econômicos, ocorridos no mundo social que consideram apartados do judicial.
O campo jurídico afirma-se autônomo em relação a tudo que não é jurídico, judicial, e seus
membros procuram afirmar essa diferenciação através de símbolos que consideram próprios do campo:
linguagens, indumentária, técnicas de trabalho e procedimentos para a aplicação da justiça que,
segundo seus profissionais, são completamente imparciais e neutros em relação a tudo que não seja a
aplicação da lei. Essa neutralidade e imparcialidade os diferenciam dos outros poderes instituídos
(executivo, legislativo), bem como de instrumentos de reivindicação social (movimentos sociais,
imprensa, ideologias), pois ambos não teriam a aura da imparcialidade (tomariam partido, dependeriam
de voto, precisariam de eleitores, expressariam opiniões), do Judiciário.
Dentre os aspectos que querem revelar a autonomia e imparcialidade do campo jurídico
encontra-se na linguagem jurídica, uma retórica de impessoalidade e de neutralidade. Dois efeitos são
gerados na utilização desta linguagem: neutralidade e universalização. A neutralidade é obtida pelo
conjunto de características sintáticas tais como o predomínio de construções passivas e das frases
impessoais. A universalização é obtida por meio de vários processos convergentes: utilização de verbos
no indicativo para enunciar normas (aliciar, subverter), a utilização de verbos na terceira pessoa do
singular ou do passado composto, (compromete-se, declarou); o uso dos indefinidos (todo o condenado),
o presente intemporal ou o futuro jurídico, para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade da
regra do direito; as referências a fatores transubjetivos, que pressupõem a existência de um consenso
ético, fórmulas lapidares e formas fixas. (BOURDIEU, 2010)

291
O poder judiciário, órgão do Estado definido pelo campo jurídico como detentor do poder de
decisão sobre as demandas propostas, somente pode ser provocado e instado a decidir por um
profissional também do campo jurídico (advogado ou promotor de justiça), sendo que nisso o cidadão é
obrigado, por não estar inserido no campo jurídico, a tacitamente renunciar a qualquer possibilidade de
se expressar pessoalmente frente ao Estado. Ocorrida esta renúncia tácita, a autonomia do campo se
estabelece, excluindo qualquer mudança ou subversão do que está posto e já previamente estabelecido
como única possibilidade de aplicação da justiça na sociedade.
O campo jurídico se apresenta e é reconhecido como tendo um poder autônomo em relação à
sociedade, com um funcionamento específico e um corpus jurídico relativamente independente de
constrangimentos externos. Então, a ilusão da autonomia não diz respeito apenas à relação entre o
judiciário e os poderes instituídos (executivo e legislativo), também diz respeito: à demarcação de quem
tem autoridade e competência para interpretar a lei; à posição do juiz na estrutura da distribuição do
capital específico de autoridade jurídica; ao vocabulário utilizado para impor noções de universalidade e
de neutralidade; ao controle das divergências possíveis entre os “intérpretes autorizados”; à
hierarquização das instâncias decisórias, divididas em juízes de primeira instância, e os Tribunais, que
irão, através dos recursos interpostos, revisar as decisões dos juízes de primeira instância.

Referências Bibliográficas:
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru, SP: Edusc, 2005. p.67
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 13ª ed. 2010. P. 209
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em:
<http://www.presidencia.gov.br/legislacao>. Acesso em: 9 jun. 2012.
BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 abril 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-
01-64.htm>. Acesso em: 5 nov. 2007
BRASIL. Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm>. Acesso em: 5 nov. 2007.
BRASIL. Lei nº 1802, de 5 de janeiro de 1953. Disponível em: <http://www.soleis.adv.br>. Acesso em: 19
dez. 2007.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:
<http://www.presidencia.gov.br/legislacao>. Acesso em: 2 jul. 2008.
BRASIL. Ato institucional n° 6 de 1 de fevereiro de 1969. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-06-69.htm>. Acesso em: 10 mar 2012.
BRASIL. Constituição do Brasil de 1967. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao67.htm>. Acesso em 30 jul 2011.
COSTA e Silva Desejamos que o povo confie em nós. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 abr. 1964. p.1.
Disponível em <http://acervo.folha.com.br/fsp/1964/04/01/>. Acesso em 01 jun. 2012.
DUTRA também é candidato. Folha de São Paulo, São Paulo, 09 abr. 1964. p.1. Disponível em
<http://acervo.folha.com.br/fsp/1964/04/01/>. Acesso em 01 jun. 2012.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008. P.26
MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de. Em nome da Segurança _acional: os processos da Justiça
Militar contra a Ação Libertadora Nacional (ALN), 1969-1972. São Paulo: Universidade de São Paulo,
2002. Dissertação de Mestrado em História.p.25 e 26.
SILVA, Carlos Medeiros. Observações sobre o ato institucional. Revista de Direito Administrativo, n. 76,
p. 473-475, abr./jun. 1964.
SILVA, Carlos Medeiros. O ato institucional e a elaboração legislativa. Revista dos Tribunais, v. 53, n.
347, p. 7-17, set. 1964.

292
As vozes da contemporaneidade e a questão da imprescritibilidade dos crimes de tortura
perpetrados na ditadura civil-militar no Brasil

1
Fabiano Negreiros

Resumo: O presente artigo é elaborado no intuito de contribuir com a fundamentação acerca da


imprescritibilidade dos crimes de tortura praticados pela ditadura civil-militar no brasil durante o período
de 1964 a meados de 1980, partindo da premissa de que em relação a esses delitos jamais pode restar
dúvida quanto à sua inafastabilidade do campo jurisdicional por institutos como a prescrição, uma vez
que se enquadram nos crimes de lesa-humanidade. O método escolhido para a elaboração desta
pesquisa foi entrevistas com especialistas na matéria, buscando uma análise jurídica com um recorte
histórico relacionando a pesquisa de campo como principal instrumento, haja vista o intuito de abordar o
problema à luz da prática. Assim, pode-se observar uma gama de profícuos argumentos no que tange ao
controle jurisdicional dos crimes de tortura; compreensão que se coaduna com a doutrina e
jurisprudência internacional, que não deixam dúvidas quanto à imprescindível responsabilização dos
agentes públicos.
Palavras-chave: Imprescritibilidade – Tortura – Ditadura civil-militar – Direitos Humanos – Direito
Internacional.

Abstract: This article is elaborated in order to contribute with the grounding related with the
imprescriptibility of the crimes of torture committed by the civil-military dictatorship in Brazil during the
period of 1964 until the middle of 1980, starting with the premise that there isn’t have any doubt about the
exclusion of these delicts of the institutes as an example the prescription, because they are crimes
against humanity. The method chose for this research was interviews with specialists in this content,
combining a juridical analysis with a historical view using the field research as a principal instrument, in
order to attend the problem in a practical way. It can be observed a lot of arguments related with
jurisdictional control about the crimes of torture; comprehension that incorporate the doctrine and
international jurisprudence: they don’t let any doubts about the necessary punishment of the public
agents.
Keywords: Imprescriptibility – Torture – Civil-military dictatorship – Human Rights – International Law.

Introdução
O Brasil teve um dos maiores períodos de ruptura constitucional da América Latina, a partir de
1964, quando da deposição do presidente João Goulart, interregno que deixou marcas profundas na
sociedade brasileira, com consequências que até hoje são sentidas.
O presente artigo aborda esse capítulo da história brasileira, mais especificamente os crimes de
tortura praticados pelos “agentes de segurança do Estado” que, em “nome do País”, aprisionaram,
torturaram e mataram pessoas que sequer tinham possibilidades de se defender ante um Estado
opressor e violador de preceitos fundamentais que, hoje, inclusive, fundamentam a vigente Constituição
Federal.
Será usada a expressão ditadura civil-militar, uma vez que houve direta intervenção de
2
segmentos da sociedade civil no processo de organização e consolidação da cisão da democracia em
1964.
A tortura é de tamanha afronta à dignidade humana que, principalmente, desde o pós-2ª Guerra,
toda a construção do Direito Internacional em relação aos Direitos Humanos vem estabelecendo um
inequívoco consenso: em hipótese alguma o homem deve ser violentado na sua identidade mais íntima
de ser humano, que é a sua dignidade. Por isso, é pacífico no cenário internacional o dever dos Estados
de promoverem todas as ações possíveis a fim de erradicar esses crimes. Com o objetivo de
consubstanciar a imprescritibilidade da tortura, buscou-se pareceres de especialistas no intuito de
oferecer uma abordagem contemporânea fundada no conhecimento empírico dos mesmos.

1
Advogado liberd@bol.com.br (51) 9242-5075
2
O documentário Cidadão Boilesen joga luzes acerca da participação de setores influentes da sociedade
brasileira no governo inconstitucional de 1964.

293
Jogar a “sujeira para debaixo do tapete” é se condenar a uma alienação equivalente à dos anos
de chumbo, mantendo a sociedade em uma constante situação de perigo. Pois, se não se tem o
necessário discernimento da história com a devida consequência de imputação de responsabilidade
àqueles que torturaram, corre-se o risco de a qualquer momento, a partir de rompantes de efêmera
desilusão, relativizar-se valores tão caros à humanidade, como o reconhecimento da pessoa em sua
condição de inviolabilidade, e sentir “saudades” de um tempo que, oxalá, jamais volte.

1. Os Crimes Contra a Humanidade


Antes de se aprofundar na análise trazida pelo presente artigo, entende-se como de grande
relevância um resgate das primeiras considerações acerca dos crimes contra a humanidade, com
enfoque na tortura, pois compreender tais ilícitos sob o contexto histórico contribui no discernimento dos
mesmos.
A partir dessa premissa, segundo Santos (2010), é preciso remontar à 1ª Guerra Mundial, mais
especificamente “após o massacre da minoria Armênia na Turquia”. Conforme o autor, o “Tratado de
Sèvres, firmado entre a Turquia e as potências aliadas vencedoras da 1ª Guerra Mundial, trouxe o
embrião da responsabilidade internacional de crimes praticados por agentes de um Estado contra
minorias internas” (p. 103).
Já no âmbito da 2ª Grande Guerra, conforme Santos (2010), os crimes cometidos pela
Alemanha Nazista contra sua própria população não se subzumiam aos “crimes de guerra”, uma vez que
“não havia precedente na história das guerras a expulsão, a deportação e o extermínio levados a cabo
por um país contra seus próprios nacionais”. Por isso, a fim de que tais delitos não ficassem impunes, o
conceito de crimes contra a humanidade foi delineado (p. 103). O autor ainda destaca que o
entendimento sobre os crimes de lesa-humanidade se desenvolveu consubstanciando os Estatutos do
Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia (artigo 5º) e para Ruanda (artigo 3º); Estatuto do Tribunal
Especial para Serra Leoa (artigo 2º); Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (artigo. 7º); e
julgados dos tribunais penais internacionais. Em suma, os crimes de lesa-humanidade podem ser
caracterizados:

(i) são ofensas particularmente repulsivas, no sentido de que constituem um sério


ataque à dignidade humana, uma grave humilhação ou degradação de seres humanos;
(ii) não são eventos isolados ou esporádicos, mas sim parte de uma política de governo
ou de uma prática sistemática e frequente de atrocidades que são toleradas, perdoadas
ou incentivadas por um governante ou pela autoridade de fato; (iii) são atos proibidos e
podem ser consequentemente punidos, independente se tenham sidos perpetrados em
tempos de guerra ou de paz; (iv) as vítimas do crime devem ser civis, ou no caso de
crimes cometidos durante um conflito armado, pessoas que não tenham tomado parte
nas hostilidades. (CASSESE, 2005 apud SANTOS, 2010, p. 109-110).

Segundo Gomes e Mazzuoli (2011), a primeira definição acerca dos crimes contra humanidade
se deu “com toda a clareza” a partir do Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, que instaurou o
Tribunal de Nuremberg. Os julgamentos que ali aconteceram, tais como de réus nazistas que, com sua
3
política de extermínio de seus próprios cidadãos (somente crianças judias mataram um milhão e meio ),
tiveram como principais fundamentos o costume internacional e o jus cogens – “direito cogente de
validade universal” (p. 88).
Na visão de Weichert (2008), em relação aos crimes contra a humanidade, “o que os caracteriza
é a especificidade do contexto e da motivação com que praticados”. O autor afirma que, à luz do Direito
Internacional, o crime de lesa-humanidade “é aquele praticado dentro de um padrão amplo e repetitivo
de perseguição a determinado grupo (ou grupos) da sociedade civil, por qualquer razão (política,
religiosa ou racial e étnica)” (p. 174).
No Brasil, sobre os crimes (torturas, sequestros, assassinatos, etc.) praticados pela ditadura civil-
militar, Weichert (2008) é expresso em caracterizá-los como crimes de lesa-humanidade, tendo em vista
que “foram consumados dentro de um padrão sistemático e generalizado de atos violentos praticados
contra a população civil por agentes do Estado brasileiro sob o comando de oficiais do Exército” (p. 181).

1.1 A Tortura, Um Instrumento que Anula a Personalidade


O crime de tortura vem sendo constantemente objeto de estudo, tanto no âmbito nacional quanto
no cenário internacional, inclusive sendo positivado nos mais variados ordenamentos jurídicos. Todavia,
antes de adentrar em tal campo do conhecimento, é mister fazer, em breves palavras, um recorte
histórico dos referidos ilícitos.

3
Número segundo a ONU. Disponível em: < http://www.onu.org.br/dia-internacional-em-memoria-das-vitimas-do-
holocausto-27-de-janeiro-de-2012>. Acesso em: 15 jan. 2013.

294
Dessa forma, como bem refere Ramella (1987, p. 70 e 71):

Desde antigamente se tem praticado a tortura ou o tormento como um meio legal para
obter a confissão do réu. Na Grécia assim se agia, Isócrates afirmava: “Nada mais
seguro do que o tormento para se saber a verdade”. Demóstenes participava desse
pensamento. Em Roma usava-se o potro (instrumento de tortura) para os escravos e
gladiadores. Tito disse que se aplicava também a todos os cidadãos. A Lex Julia
majestatis ordenava que se devia aplicar a tortura aos cidadãos incursos em acusações
de lesa-majestade. Na Alemanha de admitiu a tortura vários séculos depois do
cristianismo: a lei Carolina previa tormentos. O mesmo nos Países Baixos e Inglaterra.
Igualmente na Rússia. Como nesta nação ninguém podia ser condenado se não
confessasse um delito, mesmo que houvesse testemunhas do fato, era autorizado o
tormento a fim de que se obtivesse a confissão. O tormento foi abolido por Catarina II,
em 1769. Na Suécia, onde era considerado legal, foi ele abolido em fins do século XVIII
pelo rei Gustavo III. Na França, a Ordenança de 1670 estabelecia as normas para os
tormentos. Foram abolidos pela lei de 9 de outubro de 1789. Na Espanha, a Partida 7ª,
título 3º, continha nove leis dedicadas a definir o que é tormento, a determinar as
pessoas que podiam aplicá-lo e aqueles a quem se deviam infligir. Aboliu-se por decreto
da Corte de 22 de abril de 1811.

Nessa esteira, o autor destaca o entendimento da Corte Europeia de Direitos Humanos no Caso
4
Grécia , acerca da tortura: “Denota um tratamento desumano que tem um propósito, tal como a obtenção
de informações ou uma confissão, ou a inflição de um castigo, e é geralmente uma forma agravada de
tratamento desumano” (p. 72).
Marques (2011, p. 143) ressalta o artigo 7º do Estatuto de Roma, que é taxativo ao dispor sobre
o conceito de tortura:

Ato por meio do qual uma dor ou sofrimento agudos, físicos ou mentais são
intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle do
acusado; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente
de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas.

Assim, conclui o autor: os crimes cometidos pelas ditaduras que se subsumem aos delitos acima
descritos por força dos tratados internacionais (Estatuto do Tribunal Penal Internacional) e decisões
internacionais, vide a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Guerrilha do
Araguaia, são crimes contra a humanidade, logo são insuscetíveis de serem fulminados pelo instituto da
prescrição (p. 144).
5
Segundo a Convenção Interamericana para Prevenir a Tortura , essa se entende como

todo o ato realizado intencionalmente pelo qual se inflija a uma pessoa penas ou
sofrimentos físicos e/ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio
intimidatório, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com
qualquer outro fim. Se entenderá (sic) também como tortura a aplicação sobre uma
pessoa de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima ou a diminuir sua
capacidade física ou mental, ainda que não cause dor física ou angústia psíquica.

Baldi (2011) destaca a lição de Marilena Chauí acerca da tortura como uma significativa
contradição a partir do pressuposto de que se destrói um ser humano a fim de que seja humanizado e
complementa:

Tem como correspondente as técnicas de simulacro e de teatralização da violência: não


somente pela atuação de papéis, mas pelo aparato técnico da tortura que só opera
quando exibido, mas uma exibição, porém, que é clandestina. Não só porque se opera
em porões, mas também porque “torturados e torturadores não tem nome nem
identidade”: e que, portanto, possibilita que os torturados se sintam “sem direitos”, mas
que os torturadores se confessem “sem poderes” (CHAUÍ, 1987, p. 34-35 apud BALDI,
2011, p. 164).

De profunda lucidez as palavras de Maria Rita Kehl, citadas por Baldi (2011), acerca da
4
Segundo o Centro di Documentazione su Carcere, devianza e Marginalità, historicamente, foi a Comissão
Europeia de Direitos Humanos (CEDH) o primeiro órgão internacional a enfrentar o desafio de definir o crime de
tortura, diferenciando-o dos demais tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, quando da análise do Caso
Grego (Greek Case), de 1967-1969. Disponível em:
<http://www.altrodiritto.unifi.it/ricerche/latina/dias/cap2.htm#1>. Acesso em: 14 jan. 2013.
5
Disponível em:< http://www.cidh.oas.org/basicos/basicos6.htm>. Acesso em: 14 jan. 2013.

295
conivência da sociedade: “A tortura somente existe porque a sociedade, explícita ou implicitamente, a
admite”. Segundo a autora, “não se pode considerar a tortura desumana”, mas humana, “porque não
conhecemos nenhuma espécie animal capaz de instrumentalizar o corpo do indivíduo da mesma
espécie, e além disso gozar com isso, a pretexto de certo amor à ‘verdade’”. Ainda ela: um corpo
violentado é um “corpo roubado ao seu próprio controle; corpo dissociado de um sujeito, transformado
em objeto nas mãos poderosas de outro – seja o Estado ou um criminoso comum” (KEHL, 2010, p. 130 e
131 apud BALDI, 2011, p. 165).
Já, para Mello (2010), a tortura representa a total dissonância axiológica em face dos preceitos
constitucionais. Em suas palavras: “Eis, pois, que não pode padecer a mais remota, a mais insignificante
dúvida de que a tortura representa a antítese dos valores básicos que a Constituição Brasileira professa
enfaticamente” (p. 94).
A tortura causa consequências psicológicas tão graves que muitas vezes deixa a vítima numa
espécie de limbo temporal em que sua memória é esfacelada pelos traumas sofridos. Segundo Kolker
(2012):

Para evitar o contato com a experiência da dor e do desamparo, as marcas psíquicas da


violência são encapsuladas e dissociadas, e, no lugar da vivência traumática, o que
subsiste são bolhas de tempo, zonas de silêncio, fragmentos de vida que não podem
ser integrados aos demais.

Saavedra (2008) destaca a abstenção cognitiva do torturador em relação à identidade humana


da vítima como pressuposto da plena concretização de seus atos. Ensina: “Para que alguém se torne um
torturador, é necessário que ele primeiro passe por um processo de aprendizagem negativo. Ele precisa
aprender a perder essa capacidade, essa percepção do sofrimento do outro, de sofrer-com, de
compaixão” (p. 98). Para o autor (p.98), ele precisa aprender “a não se ver mais no outro. Ele precisa
aprender a não ser mais humano” (grifo do autor).
A fim de demonstrar toda a repercussão dos efeitos da tortura no comportamento da vítima,
Alvarez (2008) menciona a lição de Sussman:

A tortura não apenas prejudica ou danifica a capacidade de agir da vítima mas antes
coloca essa capacidade contra si mesma, ao forçar a vítima a experimentar-se como
desamparada e ainda cúmplice de sua própria violação. Não é apenas um assalto ou
uma violação da autonomia da vítima mas também uma perversão dessa autonomia,
uma espécie de escárnio sistemático das relações morais básicas que um indivíduo
estabelece tanto com os outros quanto consigo mesmo. Talvez seja por isso que a
tortura pareça qualitativamente pior que outras formas de brutalidade e crueldade
(SUSSMAN, 2005, p. 30 apud ALVAREZ, 2008, p. 278).

Ante o exposto, não resta dúvida acerca da inexorável violência da tortura contra as vítimas que
padeceram sob a força daqueles que instrumentalizaram os crimes contra a humanidade com o aparato
do Estado brasileiro, causando ofensas que atingiram a esfera mais íntima da pessoa, a partir da
violação de seu corpo e mente. Entender esses atos como inaceitáveis e insuscetíveis de qualquer
benesse, por parte do Estado, é pressuposto a uma sociedade que pretenda pautar o seu
desenvolvimento por valores humanistas que, no caso brasileiro, são expressos em sua Carta
Constitucional, esta por sua vez em consonância com as normas internacionais.

2. Vozes da Contemporaneidade
Entende-se de relevância decisiva para este artigo a pesquisa de campo. A partir da busca de
fontes empíricas pode-se vislumbrar um estudo crítico à luz de percepções práticas que enfrentam tal
temática totalmente vinculadas à realidade. Acredita-se que, dessa forma, seja possível oferecer um
ângulo diferenciado do problema.

2.1 A Imprescritibilidade da Tortura Sob a Ótica da Práxis


6
O ativista de Direitos Humanos e advogado Jair Krischke ressalta que a imprescritibilidade dos
crimes de tortura e outros considerados como crimes contra a humanidade são incorporados como
norma internacional a partir de 1950, visto que seu conceito começa a ser delineado pelo Tribunal de
Nuremberg alguns anos antes de sua aplicação como regra cogente. No mesmo sentido, o advogado
7
José Carlos Moreira da Silva Filho entende que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade
deriva da própria essência de tais crimes e também devido a uma importante fonte de Direito

6
Em entrevista ao autor.
7
Em entrevista ao autor.

296
Internacional, que é o direito costumeiro. Nas suas palavras:

É claro que nesse momento não houve uma explicitação no texto do tratado (de
Nuremberg) de que esses crimes seriam imprescritíveis, porém, pela própria definição
do que esses crimes são, e por uma fonte de direito que é extremamente importante no
Direito Internacional Público, que é o costume. [...].
8
O procurador da República Ivan Marx ressalta que, embora a tortura não constasse de forma
expressa nos Princípios de Nuremberg, ela era plenamente dedutível a partir dos atos inumanos
constantes naqueles princípios. Em suas palavras: “A tortura, com esses termos, não está colocada lá,
mas ela pode ser claramente interpretada como outros atos desumanos, que está previsto tanto em
Nuremberg como em Tóquio também”.
Krischke reconhece o pleno desenvolvimento desses conceitos a partir da intensa deferência, no
que tange à sua fundamentação, pelas convenções internacionais não só admitidas pela ONU, mas
também pela Organização dos Estados Americanos (OEA), assim como a ampla jurisprudência
internacional consoante à imprescritibilidade de tais delitos. Silva Filho também destaca que:

[...] esse entendimento de que a imprescritibilidade é parcela inerente da definição de


crimes contra a humanidade se apresentou em uma série de documentos da ONU, em
memorandos, em assembleias, em comunicados tão bem documentados que
mencionam essa característica.
9
Para o historiador Enrique Padrós , tal compreensão do Direito Internacional denota uma
verdadeira e inafastável evolução histórica: “Isso torna, digamos assim, um avanço civilizatório do qual a
gente não deve abrir mão”.
O historiador ainda lembra acerca da tortura em relação ao seu momento de caracterização:

A tortura começa quando a pessoa é detida e imediatamente colocam um capuz na sua


cabeça e ela perde o controle sensorial de tudo aquilo que diz respeito ao seu entorno,
aos seus movimentos, e de qualquer certeza do que a partir dali possa lhe ocorrer.

Nessa esteira, à luz do direito comparado, Krischke destaca a “lei de obediência devida” na
Argentina, que visava, a exemplo do Brasil, à impunidade dos agentes estatais perpetradores de crimes
contra a humanidade. Silva Filho ressalta que na Argentina se enfrentou a questão da imprescritibilidade
dos crimes contra a humanidade a partir do entendimento de que, independentemente de qualquer
positivação no ordenamento internacional, esse princípio já detinha força cogente. Ele entende que tal
interpretação é aplicável no Brasil. Na sua lição: “A Suprema Corte Argentina evoca um argumento de
que a imprescritibilidade desses crimes não precisa estar escrita para que só a partir desse momento ela
pudesse ser considerada”.
Para Silva Filho, há outra fundamentação de grande relevância no que diz respeito à
imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, que é a norma imperativa de direito jus cogens e
que, a seu juízo, não é devidamente observada pelo “pessoal do Direito Penal” quando da análise da
presente matéria, uma vez que se tem apenas uma visão interna em prejuízo de um campo de análise
mais amplo, ou seja, em “termos internacionais ou macropolíticos”.
No mesmo sentido, acerca das normas imperativas como instrumento de afastamento da anista,
pondera Marx: “Então, pelo direito imperativo internacional, jus cogens, esses crimes seriam
imprescritíveis e deles também podem retirar a insuscetibilidade da anistia por uma previsão cogente
internacional que se aplicaria”.
Conforme Silva Filho, o direito consuetudinário detém mais força inclusive em relação aos
tratados internacionais. Nas suas palavras:

Tem muito mais peso no cenário internacional a construção de um conjunto de práticas,


de convicções e de costumes internacionais que demoram muito mais tempo para
serem sedimentados e que têm muito mais densidade jurídica, segurança jurídica, do
que os próprios tratados internacionais, que, muitas vezes, podem ser alterados, podem
ser denunciados ou podem simplesmente não obter a adesão de uma série de países.

Para ele, o costume internacional vincula os países independentemente de sua adesão formal,
assim não restando aos Estados outra alternativa senão respeitarem os entendimentos da comunidade
internacional no que tange à compreensão dos Direitos Humanos e a melhor forma de tutela dos

8
Em entrevista ao autor.
9
Em entrevista ao autor.

297
cidadãos em relação ao Estado. Ainda sobre a gravidade desse tipo de crime, é taxativo: “É quase
incestuoso”.
Ainda que se compreendesse possível uma eventual contagem do prazo prescricional dos
crimes de tortura cometidos pela ditadura civil-militar, Silva Filho entende como impossível de se contar
tais prazos a partir do seu efetivo cometimento, visto que era o próprio Estado que os cometia num
contexto de perseguição à população civil. Assim, enfatiza: “A gente não vivia numa democracia, como
você pode querer contar um prazo prescricional de um crime num contexto onde era impossível iniciar
uma investigação desse crime, impossível porque o Estado não dava condições para isso”.
Portanto, conclui: ainda que se quisesse efetuar qualquer contagem prescricional, seria
necessário ter como marco temporal inicial a promulgação da presente Constituição. Ensina: “Pelo
menos deveríamos arguir a possibilidade do início da contagem prescricional desses atos só depois da
Constituição de 88 porque até lá não havia condição nenhuma para investigação”. É claro o
entendimento de Marx ao citar um contexto de completa omissão do Estado: “Quando o Estado
realmente não quer fazer e deixa esse prazo correr, então se poderia entender que a prescrição não
corre”.
Para o procurador, a fim de fundamentar a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade
cometidos no Brasil durante o período de exceção, cabe fazer uma análise acerca de elementos que
caracterizam tais crimes. Dessa forma, não deixando dúvidas sobre o efetivo cometimento desses
ilícitos. Ensina ele: “Então você precisa um ataque generalizado e sistemático contra a população civil e
com conhecimento desse ataque”. Segundo o procurador, era o que acontecia naquele período: “Então,
a ditadura militar brasileira fazia uma perseguição sistemática e generalizada? Sim”. Ele ainda refere os
crimes contra a humanidade a partir da teoria de Luban, na qual o indivíduo, que é um “animal político”,
se organiza em sociedade, abrindo mão, em parte, da autotutela para o Estado, que, em troca, lhe
oferece proteção. “O ser humano se organiza em sociedade e entrega a parcela do seu poder, digamos
assim, pelas teorias contratualistas, para um governo que tem por obrigação garantir a sua segurança.”
Por isso, segundo Marx, quando o Estado falha no seu papel de proteção aos indivíduos, quebra
esse “pacto”. Esse rompimento se torna ainda mais dramático quando é o próprio Estado que comete
esses crimes. Assim, defende Marx:

Esse tipo de violação fere o ser humano como um animal político. Ele está entregue ao
criminoso, que é justamente quem deveria protegê-lo. Então, quando esse Estado, que
tem esse poder e essa obrigação, fere os direitos e faz um ataque generalizado,
sistemático contra essa população civil, por isso, o conceito de população civil, não é,
porque é um inocente que está ali e deveria ser protegido, ele pratica crime contra a
humanidade, contra esse ser político.

O ativista de Direitos Humanos Krishke não deixa de mencionar o reconhecimento do indivíduo


na sua condição individual de inviolabilidade inerente à compreensão de humanidade. “Ou nós
conseguimos entender que quando apenas um homem tem os seus direitos violados toda a humanidade
foi violada, é disso que se trata.” Nesse mesmo sentido, ele afirma: “Alguém já disse na questão do
Tribunal de Nuremberg que o Holocausto foi a morte de um judeu, apenas um judeu, os outros cinco
milhões novecentos e noventa e nove mil são decorrência, mas apenas um seria suficiente [...]”.
Segundo o advogado, é essa compreensão que coloca a sociedade num processo de desenvolvimento e
evolução histórica. “E esse entendimento que é importante, isso é que vai nos dando fóruns de
civilidade, é o avanço do homem, o homem saindo da barbárie, saindo da caverna e crescendo. Então,
por isso que esses crimes não podem ser anistiáveis, não podem ser de forma alguma.”
O procurador Ivan Marx faz uma análise do instituto da prescrição e da anistia em relação ao
comportamento estatal. Segundo ele:

Enquanto a prescrição acontece por uma inação do Estado, ou seja, o Estado pratica
crimes e não pune por inação, a anistia é uma atitude positiva do Estado, ou seja, ele
deixa correr a prescrição porque não age e ainda assim ele vai lá e toma uma atitude no
sentido de proteger melhor ainda esses crimes, vai lá e diz que esses crimes estão
anistiados.

Lembra ainda, acerca das várias discussões internacionais no que tange à repulsa à prescrição
dos crimes contra a humanidade, e que acontece o mesmo com a anistia, uma vez que iria de encontro
ao “princípio de justiça”. Assim pondera: “Isso também não é aceito pela mesma lógica, ou seja, se existe
uma pressão internacional de dar uma resposta a esses crimes, também não pode ser aceita a anistia”.

Conclusão

298
Desde o pós-2ª Guerra, a preocupação em limitar as ações estatais em relação ao cometimento
de crimes de lesa-humanidade se tornou uma tônica nas deliberações das organizações internacionais.
Sempre com o intuito de evitar que perseguições à população civil voltassem a acontecer.
Essas decisões inegavelmente adquiriram uma força cogente que contribui para uma aceitação
cada vez mais pacífica no que tange às normas imperativas de direito, isto é, o jus cogens. Essa
evolução fica nítida ao se observar as decisões de tribunais internacionais que reafirmam
constantemente o dever de respeito, pelos Estados, acerca de tais normas.
Os crimes de tortura foram cometidos no Brasil dentro de uma lógica de Estado, na qual as
agressões se deram de forma sistematizada, em que seus agentes contaram com todo o aparato
governamental, causando uma verdadeira perseguição contra a sociedade civil. Essa situação teve
como consequência a tortura como uma marca desse período histórico.
Pode-se observar uma sintonia no que tange a uma inequívoca aversão em relação a qualquer
possibilidade de afastamento da persecução penal sobre aqueles agentes do Estado que cometeram
crimes contra a humanidade. No caso em estudo, a tortura. Nota-se uma construção doutrinária e
jurisprudencial que caminha no mesmo sentido: repulsa a qualquer impunidade que coloque em xeque
os preceitos oriundos do Direito Internacional, que detém em seu escopo a tutela dos Direitos Humanos.
Nesse sentido, cabe aos Estados respeitarem não só os tratados internacionais de que são
signatários, mas principalmente todos os princípios internacionais imperativos de direito que guardam
relação com a temática de Direitos Humanos. Assim, não resta ao Brasil outra alternativa senão respeitar
os princípios internacionais regidos pela proteção do indivíduo na sua condição inafastável de ser
humano, sob pena de enquadrar-se como um país violador não só de tratados internacionais pelos quais
soberanamente manifestou adesão, mas pelas normas imperativas de direito.
Uma cultura democrática passa necessariamente pela total repulsa ao cometimento de crimes
contra a humanidade que alcança uma unanimidade no plano internacional há muitos anos. Essa
compreensão exige um amadurecimento tanto do Estado quanto da sociedade que têm como corolário o
discernimento exato dos caminhos a serem percorridos sem chance de retrocessos. Para que isso
ocorra, o Direito não pode ser instrumentalizado com o intuito de obscurecer tais premissas, baseando-
se numa hermenêutica jurídica que tem como plano de fundo o cultivo à impunidade.
Por fim, ter a coragem de olhar para a história sob um ponto de vista crítico viabiliza uma maior
compreensão das mazelas que assolam as nossas relações sociais no presente. Não há como negar o
peso de mais de duas décadas de violações sistemáticas sobre um povo, e, por isso, o exercício da
memória é imprescindível numa dimensão pedagógica em que a autocrítica é mister a uma melhor
compreensão dos fatos históricos, aliada ao comprometimento de justiça inerente à pacificação social.
Assim, para se vislumbrar um futuro avesso a valores antidemocráticos se faz necessária a promoção de
ações que cauterizem as feridas abertas e possibilitem o desenvolvimento da sociedade guiada tão-
somente pela carga axiológica emanada da Constituição Federal de 1988.

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299
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prescrição penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 16, nº 74, set. out. 2008, p.
170-229.

300
A atuação do Poder Judiciário na Argentina frente aos crimes de lesa humanidade
perpetrados pela Ditadura de Segurança Nacional (1976-1983).

1
Patrícia da Costa Machado

Resumo: o presente artigo pretende analisar a reivindicação ao direito à memória e à justiça no âmbito
da jurisdição argentina, buscando compreender os mecanismos que permitem a concretização destes
direitos relacionados ao período da ditadura civil-militar (1976-1983).
Palavras-chave: Direito à Memória. – Justiça – Ditadura Civil-Militar Argentina – Julgamentos Crimes de
Lesa Humanidade

Introdução
Frente ao irreparável, o perdão carece de sentido. Estas célebres palavras, atribuídas a Primo
Levi, podem ajudar-nos a compreender a importância que a realização de justiça pode ter em uma
sociedade herdeira de um passado autoritário.
Justiça, contudo, não se confunde com o direito, tampouco com a lei. Também não se confunde
com aqueles que a aplicam. É algo mais complexo, difícil de delimitar ou conceituar de maneira objetiva.
Do ponto de vista filosófico, o sentimento de justiça é intrínseco à consciência humana, do homem
dotado de discernimento entre o certo e o errado, o justo e o injusto. Através dos tempos, desde
Aristóteles e São Tomás de Aquino, passando por Hobbes, Montesquieu e Rousseau, se sustenta que
cabe à lei definir o que é justo e injusto. Justo é o que está permitido em lei, e injusto o que está proibido.
No passado esta concepção tinha um fundamento, que era o de acreditar que jamais o governante
usaria do poder para prejudicar o bem comum. Modernamente, não se admite isso depois que o
fascismo mostrou o que é possível fazer em uma sociedade usando o poder legislativo de forma
ilegítima.
Os recentes acontecimentos desencadeados na Argentina, contudo, tem se tornado exemplo na
concretização de uma justiça plena. Porque no país vizinho foi desencadeado um processo,
aparentemente irreversível, de confronto com o passado autoritário? Porque lá a justiça de transição tem
se tornado cada vez mais presente e eficaz?
Primeiramente, importante compreender que a noção de justiça de transição abrange o conjunto
de processos e mecanismos associados às tentativas de uma sociedade em chegar a um acordo quanto
ao legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de
seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos, que podem ser
judiciais ou extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), abarcam o
juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, ou a combinação de
2
todos esses procedimentos. Com base neste conceito, e conforme veremos neste breve artigo,
podemos afirmar que a Argentina tem obtido sucesso nesta busca por justiça nos últimos anos.
Para compreendermos o longo caminho percorrido e o atual estágio em que se encontra o país
platino no que diz respeito aos julgamentos por crimes de lesa humanidade cometidos durante a última
ditadura civil-militar, será necessário compreender, primeiramente, o significado de crimes contra a
3
humanidade.
A experiência nazista impulsionou o surgimento da figura dos crimes contra a humanidade no
cenário internacional, quando foi constatada a possibilidade de que o Estado poderia voltar-se contra
seus próprios cidadãos. Sua primeira conceituação legal está no Acordo de Londres, de 1945, que
instituiu o Tribunal de Nuremberg. Ao contrário dos crimes de guerra convencionais, os crimes de lesa
humanidade pressupõem um absoluto desequilíbrio – a ausência total de reciprocidade, a negação da
vítima como pessoa, sua anulação completa seja pela tortura, seja pela sua inclusão em um campo de
concentração.
1
Mestranda em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul Email: patydcm@hotmail.com
Endereço: Rua Tomaz Flores 60/31, POA/RS Telefone: (51) 99628889
2
NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em
conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretario Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de
Transição, Brasília, 2009, n.1. p.320-351.
3
Para fins deste artigo, crimes contra a humanidade e delitos de lesa humanidade serão utilizados como
sinônimos.

301
Trinta anos após o fim da segunda guerra, as sociedades latino-americanas experimentariam o
peso da violência sistemática cometida em nome, não mais da pureza genética ou da conquista do
espaço vital, mas da segurança nacional. A ditadura argentina é comumente apontada como a mais feroz
das ditaduras de segurança nacional latino-americanas. De fato, o regime do país vizinho dispensou
qualquer tipo de estratégia legal, engajando-se, entre os anos de 1976 a 1983, em uma guerra total e
implacável contra os supostos agentes da subversão.
Esta realidade avassaladora afetou –e ainda afeta- profundamente os argentinos. O
desaparecimento assegurou não somente o assassinato físico e simbólico de pessoas desvinculadas de
qualquer militância, opositores políticos e integrantes de grupos guerrilheiros, como também foi um fator
determinante para a intimidação e a submissão de setores da sociedade, atingidos direta ou
indiretamente pela multiplicação de seus efeitos.
Para ilustrar a dimensão do ocorrido no país platino, de acordo com dados do relatório Nunca
Más, 62% das vítimas de desaparecimentos foram retiradas de suas próprias casas. Outras 24,6% foram
sequestradas na rua, e apenas 7% e 6%, respectivamente, foram detidas no trabalho ou na escola.
Apenas 0,4% dos desaparecidos estavam legalmente detidos em estabelecimentos militares, penais ou
policiais, sugerindo que esse reconhecimento legal conferia proteção aos presos e que, de modo
4
inverso, os sequestros clandestinos acobertavam as execuções praticadas pelas autoridades.
As feridas decorrentes dessa política sistemática de eliminação, tão presentes na sociedade
argentina atual, somada às intensas lutas protagonizadas por diversos atores sociais (organizações de
familiares de mortos e desaparecidos, sobreviventes, instituições defensoras de direitos humanos), alçou
a Argentina como exemplo mundial no que diz respeito à concretização da justiça frente a impunidade de
um regime autoritário. A revogação das chamadas leis de impunidade (Lei do Ponto Final e Lei da
Obediência Devida), em 2003, a mudança de paradigma da jurisprudência argentina e as decisões
emanadas pela Corte Interamericana de Justiça da OEA resultaram em uma drástica alteração no rumo
da luta ao direito à verdade, à memória e à justiça naquela nação.
Feitas estas observações iniciais, o presente artigo pretende analisar brevemente o contexto que
possibilitou a retomada dos julgamentos criminais por violações aos direitos humanos ocorridos na
5
ditadura civil-militar argentina de 1976-1983.

1. A ditadura civil-militar argentina e o terrorismo de estado: síntese


Em 24 de março de 1976, um golpe militar derrubou o governo civil de María Estela Martínez de
Perón e instaurou o regime autoritário mais repressivo da história argentina. Como conseqüência do
golpe de Estado, a Junta Militar se transformou na principal entidade política de Estado e tomou para si
uma ampla gama de faculdades governamentais que a Constituição atribuía aos Poderes Executivo e
Legislativo. Esse regime compartilhava algo em comum com as outras ditaduras instauradas na região:
se sustentava na Doutrina de Segurança Nacional que, sinteticamente, pregava que o inimigo estava
dentro do país e que deveria ser procurado entre o povo. Para defender o estado de segurança,
justificava-se a violação aos direitos humanos e constitucionais.
O golpe de Estado substituiu o governo representativo pela ditadura militar, o que implicava, por
conseqüência, no desaparecimento do Legislativo. A partir disso, as leis não emanariam dos legisladores
eleitos democraticamente, mas sim do poder militar com a assistência de civis, selecionados entre os
elementos mais conservadores e reacionários que davam o necessário suporte social ao novo regime.
Entre 1976 e 1983, quatro juntas militares governaram a Argentina. Ainda que se tratasse de um
mandato conjunto, o representante do Exército era considerado o Presidente da Nação durante o
governo de cada junta. Cinco foram os presidentes de fato.
Para compreender os acontecimentos deste contexto histórico, é de suma importância entender
o conceito de Terrorismo de Estado, que é a idéia de que o Estado pode, em períodos extraordinários,
governar mediante a intimidação, utilizando-se, para tanto, do monopólio da violência. Nesse sentido,
explica Enrique Padrós que

o Terrorismo de Estado (TDE) configura-se como modalidade essencialmente distinta do


terrorismo individual ou de grupos extremados não-estatais. Enquanto este é
responsabilidade de indivíduos que utilizam a violência de forma indiscriminada para
atingir e desestabilizar o Estado e a sociedade, o TDE se fundamenta na lógica de
governar mediante a intimidação. Em suma, é um sistema de governo que emprega o
terror para enquadrar a sociedade que conta com o respaldo dos setores dominantes,

4
PEREIRA, Anthony. W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile e Argentina.
São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.202-203.
5
Para fins deste trabalho, consideramos a nomenclatura “ditadura civil-militar”. Contudo, utilizaremos sinônimos
como “regime militar”, “ditadura argentina” e “regime autoritário”, para fins semânticos.

302
6
mostrando a vinculação intrínseca entre Estado, governo e aparelho repressivo.

Durante o denominado Processo de Reorganização Nacional (ou simplesmente Proceso), os


militares argentinos definiram o conceito de subversão de maneira propositadamente ampla: todo aquele
que não estivesse aliado com as pautas dos golpistas era subversivo, o que incluía, obviamente, grande
parte da população.
7,
Segundo Ricardo Lorenzetti e Alfredo Kraut dentro do marco ideológico do golpe de Estado, o
conceito de nacionalidade excluía qualquer forma de heterogeneidade possível. Esta busca de
homogeneidade da sociedade marginalizava as minorias, tomando em conta, por exemplo, suas raízes,
sua orientação sexual e sua identidade de gênero, ou suas crenças religiosas além, é claro, de sua
ideologia.
O plano de extermínio e perseguição era sistemático. Se, por um lado, seqüestros, torturas e
assassinatos por razões políticas foram cometidos por outras ditaduras militares da América Latina e do
resto do mundo, nem todas produziram um dispositivo como o desaparecimento de pessoas e a
supressão das provas dos crimes, como fez a Argentina.
Para conseguir esses propósitos, os militares estabeleceram uma rede de centros de detenção
clandestinos. Nesses campos de concentração, as pessoas desaparecidas eram submetidas a
interrogatórios mediante tortura feroz, que em muitos casos levava a morte das pessoas. De acordo
8
com Lorenzetti e Kraut , se dividiu o país em 50 zonas, 19 subzonas e 117 áreas. Em uma das zonas, o
comandante regional tinha plena autonomia sobre as coerções clandestinas. Ao mesmo tempo, dentro
de cada zona militar, oficiais de médio escalão e agentes de segurança intervinham nos seqüestros dos
supostos subversivos.
Eram freqüentes os fuzilamentos em simulações de enfrentamentos. Ainda nos anos 1974 e
1975, foram realizadas numerosas detenções, principalmente de militantes de organizações políticas que
haviam sido declaradas ilegais por parte do governo de “Isabel” Perón. Muitos dos que estavam detidos
foram colocados em cárceres comuns e ficaram a disposição da justiça, pois eram presos legais.
Contudo, logo após o golpe, foram transferidos para prisões “especiais”, despojados de todos os direitos
constitucionais. Como essas detenções eram “legais”, existiam registros delas, o que levou a
organização repressora a implementar, em muitos casos, a chamada “lei de fuga”. Desta maneira, os
detidos eram transladados de uma unidade penitenciária para outra, e eram fuzilados no caminho, sob o
pretexto de tentativa de fuga.
Segundo pesquisa desenvolvida por Anthony Pereira, a judicialização da repressão
desempenhou papel importantíssimo para compreender os regimes autoritários instaurados no Conesul.
Segundo este autor, as diferentes características dos sistemas legais são moldadas, em parte, pela
história de cooperação e do antagonismo existente entre duas organizações estatais: alto oficialato das
9
Forças Armadas e poder judiciário. Quanto maior a cooperação entre estes setores, maior o grau de
interferência do judiciário nas atividades repressivas.
Ao contrário do Brasil, que manteve a maior parte do aparato judicial de tempos de paz durante o
regime militar e o utilizou para processar dissidentes políticos, na Argentina a opção foi pela “guerra
suja”. Como bem demonstra Pereira, a matriz institucional argentina foi a mais drástica de todas as
ditaduras da região. Lá, grande parte dos tribunais não se envolvia no regime repressivo exceto para
negar pedidos de habeas corpus e para servir como camuflagem do terror estatal.
10
Segundo Pereira , o papel político dos militares argentinos era muito mais conservador do que
em outros países. Isso ocorreria devido a fatores estruturais próprios daquela sociedade, como a
polarização profunda entre um movimento de trabalhadores industriais forte e altamente militante e uma
classe dominante rica e intransigente, dominada por interesses agrários e financeiros. Nesses confrontos
ideológicos, o uso da força direta dos militares quase sempre acabava por prevalecer e a cooperação
entre civis e militares era muito menor quando comparados com outros países, como o Brasil.
A Argentina, portanto, representa um caminho extremo, radical e extrajudicial. A violência política
argentina nasceu numa sociedade polarizada entre os partidários e os opositores do ex-presidente Juan
Domingo Perón, e cresceu de modo gradual, após o golpe militar de 1955, que o depôs. Uma esquerda
armada surgiu no país em inícios da década de 1960, e o golpe de 1966 levou ao poder um novo regime
militar. Em fins da década de 1960, as ações armadas dirigidas contra pessoal militar por forças de
6
PADRÓS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (1965-
1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese (Doutorado em História) –
Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre 2005. p.64.
7
LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge. Derechos Humanos: justicia e reparación. La experiência de
los juicios en la Argentina. Crimines de Lesa Humanidad. 2ª ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. p.80.
8
LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge Op.cit, p.81.
9
PEREIRA, Anthony.Op.cit.p.26.
10
Ibid. p.100.

303
11
guerrilha, como os Montoneros, converteram-se numa preocupação central do governo.
Quando o regime militar deixou o poder em 1973, permitindo a restauração de um governo
peronista, a repressão intensificou-se. Durante a presidência de Isabel Perón, o grupo paramilitar Triplo A
(Alianza Anticomunista Argentina) deslanchou uma guerra suja contra a esquerda armada. A ofensiva
acabou tomando maiores proporções, até se transformar numa grande operação militar comandada pelo
Exército na província de Tucumán, em 1975. Como bem afirma Pereira, diferentemente de Brasil e Chile,
12
na Argentina, a repressão começou antes, e não depois do estabelecimento do regime militar.
Em 1983, o governo de fato seu viu obrigado a convocar eleições livres, celebradas em outubro
daquele ano, decisão tomada frente a um acúmulo de motivos, como o crescente número de história de
violações aos direitos humanos que apareciam em organismos internacionais, e o desfecho desastroso
da Guerra das Malvinas. Nestas eleições, resultou vencedor o candidato da União Cívica Radical, Raúl
Ricardo Alfonsín, que tomou posse em dezembro do mesmo ano. O novo presidente defendia a
investigação e julgamento de chefes militares pelos crimes cometidos, mas pregava que fossem
excluídos os delitos cometidos por subalternos, que teoricamente cumpririam seu dever legal de
obediência. Entre suas primeiras decisões – que irão ter papel fundamental no contexto atual do país no
que diz respeito aos julgamentos – ratificou as principais convenções internacionais de direitos humanos
e suprimiu a jurisdição militar por delitos cometidos por membros das Forças Armadas em relação a atos
13
de serviço.

2. O retorno democrático, as leis de impunidade e os indultos presidenciais.


Poucos dias após tomar posse, Alfonsín emitiu um decreto pelo qual ordenava a detenção e o
julgamento do Conselho Supremo das Forças Armadas. Antes disso, contudo, foi necessário declarar
nula a lei de autoanistia aprovada pelo governo militar, decisão que posteriormente foi ratificada pela
14
Suprema Corte argentina.
O julgamento das Juntas Militares iniciou em 22 de abril de 1985 e durou 8 meses. Foram
processados os comandantes das três armas (Exército, Marinha e Aeronáutica) que haviam integrado o
governo de fato. Em 9 de dezembro de 1985, a Câmara Federal da Capital promulgou a sentença
definitiva. O tribunal se pronunciou sobre 700 casos emblemáticos de desaparecidos, previamente
selecionados pelos fiscais de acordo com as provas. Dos nove comandantes julgados, cinco foram
condenados por privação de liberdade qualificada por violência e ameaça. Esta sentença, que continha
mais de 1000 páginas, não tinha precedentes na América Latina e colocou a Argentina no centro das
15
atenções da imprensa e da comunidade internacional.
Contudo, um setor importante dos militares se opunha aos julgamentos. Sob pressão, em 1987 o
governo apresentou um projeto de lei ao Congresso conhecido como “Lei do Ponto Final”, que foi
aprovado pela Lei nº. 23.492 e que fixou um prazo de 60 dias para apresentação de novas denúncias por
delitos cometidos durante a ditadura militar. Alguns meses mais tarde, o Congresso aprovou a “Lei de
Obediência Devida”, buscando acabar com as revoltas existentes – e cada vez mais numerosas – dentro
das Forças Armadas. Esta lei estabeleceu uma presunção absoluta no sentido de que oficiais de médio e
baixo escalão haviam atuado seguindo ordens e, em conseqüência disso, não poderiam ser punidos.
Meses depois, a Suprema Corte argentina afastaria a inconstitucionalidade dessas leis, que se
16
mantiveram vigentes até 2003.
Nos anos de 1989 e 1990, o então presidente Carlos Menem emitiu um total de dez decretos
concedendo indultos a militares e civis que haviam sido condenados ou que estavam sendo julgados por
feitos ocorridos durante a ditadura. Assim, os oficiais excluídos da Lei de Obediência Devida e os
comandantes das Juntas condenados foram indultados.
A Argentina, portanto, enfrentou um caminho tortuoso desde o final da ditadura civil-militar. Ao
mesmo tempo em que se fizeram avanços importantes, como os julgamentos das Juntas e o informe da
Conadep (o Nunca Mais Argentino), existiram retrocessos e limites, como as leis acima citadas e os
indultos.
Contudo, algo curioso ocorreu no país vizinho: nenhuma das chamadas leis de impunidade
incluíram os delitos de subtração e ocultação de menores. Isso porque, a época dos julgamentos das
Juntas, apenas dois casos de apropriação de crianças e supressão de suas identidades haviam sido
registrados. A ideia de que se tratava de uma prática sistemática exercida pelo Estado não existia, o que
permitiu que casos de subtração de menores pudessem ser investigados criminalmente. Segundo dados
fornecidos pelas Abuelas de Plaza de Mayo, mais de 500 crianças foram seqüestradas junto com seus

11
PEREIRA. Op.cit.,p.61.
12
Idem p.62.
13
LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.84.
14
Idem.p.86.
15
LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.90.
16
LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.97

304
pais ou nasceram em cativeiro.
Durante a década de 90 e inicio dos anos 2000, a maioria dos casos que chegaram aos tribunais
versavam sobre essa matéria. Simultaneamente com o processo de ex-militares pro subtração, ocultação
e substituição da identidade civil de menores, o Estado começou a compilar informações sobre bebês
nascidos em centros clandestinos de detenção que foram apropriados ou dados a adoção ao pessoal
das Forças Armadas ou seus conhecidos. Em 1992, Menem criou a Comissão Nacional pelo Direito a
17
Identidade (CONADI).
Entretanto, o retorno dessas crianças a sua famílias biológicas está cercada de vários
problemas. Alguns dessas crianças (hoje adultos) não querem expor a família que os adotou e por isso,
não procuram informações e muitos se negam a realizar os exames, mesmo quando há evidências de
seu seqüestro. O conflito entre o direito individual a intimidade e o direito coletivo a verdade gerou – e
ainda gera – muita discussão. Há em trâmite no Congresso Argentino um projeto de lei que visa
possibilitar a extração compulsiva de material genético de pessoas sobre as quais existam dúvidas
18
convincentes de que se trata de filho de desaparecido. No entanto, as implicações dessa questão
fogem ao recorte deste artigo.
19
De acordo com Guillermo Yacobucci , a reforma constitucional de 1994, denominada “Pacto de
Olivos”, culminou com uma mudança constitucional no que concerne aos instrumentos internacionais de
direitos humanos firmados pela República Argentina. O artigo 75, inciso II da nova Carta Magna,
incorporou, entre outros, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose) e elevou os
tratados internacionais de direitos humanos a categoria de norma constitucional. Isso significou uma
mudança de paradigma quanto à compreensão da ordem jurídica argentina e impulsionou uma
transformação de sua cultura legal, pois colocou as obrigações do Estado argentino frente à graves
violações de direitos humanos em primeiro plano, abrindo o caminho para a revisão das leis de anistia e
indultos.

3. A retomada dos processos envolvendo crimes de lesa humanidade


A discussão jurídica que permitiu a mudança radical no entendimento da Suprema Corte
Argentina frente à questão dos crimes cometidos pelo regime militar, baseia-se, em linhas gerais, em um
confronto entre normas de direito interno e internacional.. A existência da prescrição (instituto que visa
regular a perda do direito de acionar judicialmente, devido ao decurso de determinado período de
tempo), da coisa julgada (que é a qualidade conferida a sentença judicial contra a qual não cabem mais
recursos, tornando-a imutável e indiscutível) e princípios como o da legalidade (não há crime sem lei
anterior que o defina), da presunção de inocência e da irretroatividade da lei (qualidade de não ser válido
no passado, mas sim a partir de sua elaboração ou publicação) são os pilares de um Estado de Direito
pois estabelecem que o Estado deve se submeter ao império da lei, afastando a insegurança e
garantindo que a sociedade não está presa às vontades particulares daquele que governa.
Os fundamentos jurídicos para a reabertura dos processos penais, impossibilitados de serem
levados adiante em razão das leis e indultos citados, implicam a superação de um marco de legalidade
formal. Essa legalidade, como visto acima, se expressa no princípio que dita que não há crime sem lei
anterior que o defina nem pena sem previsão legal. Dentro dessa lógica, os crimes cometidos antes da
ratificação dos tratados internacionais que versam sobre imprescritibilidade de crimes de lesa
humanidade (dentre eles o assassinato, o genocídio, a tortura e o desaparecimento forçado), não
poderiam ser levados a julgamento pela inexistência legal e legitima de previsão desses crimes à época
de seu cometimento.
20
De acordo com Lorenzetti e Kraut , contudo, não haveria uma violação ao princípio da
legalidade na medida em que os crimes de lesa humanidade sempre estiveram previstos pelo
ordenamento jurídico argentino, mesmo antes da reforma constitucional de 1994 e das ratificações dos
tratados de direitos humanos, ocorridas no governo Alfonsín. Como bem aponta o jurista argentino:

Las garantias e los derechos constitucionales – verdaderas trabas a la persecución


penal por parte del Estado – con los que cuenta cualquier persona (derechos del
imputado), son conquistas del Estado de Derecho logradas trabajosamente a traves del
tiempo. Sin embargo, cuando se trata de crimines perpetrados por agencias estatales

17
Ibid. p.105.
18
Disponível no link http://www1.hcdn.gov.ar/proyxml/expediente.asp?fundamentos=si&numexp=2730-D-2007.
Visualizado em 12.07.2012.
19
YACOBUCCI, Guillermo. J. El juzgamiento de las graves violaciones de los derechos humanos en la Argentina.
In: Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos
humanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. GOMES, Luis Flavio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira
(organizadores). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.28.
20
LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo. Op.cit. p.42

305
por fuera del próprio aparato – delitos cometidos contra la humanidad – la respuesta que
proporciona el diseno constitucional penal tradicional empieza a tornar-se imprecisa o, al
menos, dudosa. Em efecto, en estos casos se plantearon diversos problemas
procesales y doctrinales: la prescripción de la acción penal, el principio de legalidad, la
validez constitucional de las llamadas leyes de impunidad y los indultos dictados por
21
Carlos Saul Menem, la cosa juzgada, entre otros.

Nesse sentido, a jurisprudência da Suprema Corte argentina formulada entre 2000 e 2004 marca
uma evolução cujos fundamentos tem permitido aos tribunais inferiores investigar, instruir e
eventualmente sancionar graves violações dos direitos humanos. A mudança contextual iniciou-se em
2003, quando se outorgou hierarquia constitucional a adesão à Convenção sobre Imprescritibilidade dos
crimes de guerra e dos crimes de lesa humanidade, aprovada pela Lei nº. 24.584 de 1995.
Conjuntamente, no mesmo ano o Congresso revogou as leis de Obediência Devida e de Ponto Final (Lei
nº. 25.779, promulgada em 2 de setembro de 2003).
Importantíssima, também, a evolução da jurisprudência da Corte Interamericana sobre Direitos
Humanos (OEA), que especificava o dever dos Estados de investigar, sancionar os responsáveis e
reparar as vitimas pelo dano causado por feitos aberrantes cometidos durante as décadas de 60/70.
Com base nessas modificações, a Suprema Corte entendeu que era possível encarar os processos e
investigações acerca dos delitos de lesa humanidade cometidos.
Três decisões são encaradas como emblemáticas e serviram de suporte a todas as modificações
sociais e jurídicas que a Argentina presenciou e ainda presencia. O caso “Arancibia Clavel”, o caso
“Simón” e o caso “Mazzeo”.
No primeiro caso, o tribunal supremo decidiu acerca da aplicação do princípio da
imprescritibilidade dos delitos de lesa humanidade, não importando a data do cometimento dos crimes.
Entre março de 1974 e novembro de 1978, o réu Arancibia Clavel integrou uma associação ilícita chilena
conhecida como DINA, cuja atividade consistia na perseguição de opositores políticos do regime de
Pinochet que se encontravam na Argentina. Ele foi acusado, dentre outros crimes, de participar no
atentado a bomba que provocou a morte do General chileno Carlos Prats e sua esposa Sofia Cuthbert,
em Buenos Aires no ano de 1974. Foi condenado à prisão perpétua. O acórdão (decisão judicial tomada
pelos tribunais) estabeleceu que a conduta imputada era um crime de lesa humanidade e, por
conseqüência, imprescritível, o que não violaria o principio da legalidade formal frente a adesão a
Convenção sobre Imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa humanidade.
No segundo caso, a Corte enfrentou o problema da inconstitucionalidade das leis de Ponto Final
e de Obediência Devida. Em 1978, o cidadão chileno Jose Poblete e sua esposa argentina Gertrudis
Marta Hlaczik formavam parte do grupo “Cristianos por la Liberación”. Foram seqüestrados pelo Exercito
argentino e conduzidos ao centro clandestino “El Olimpo”. Foram torturados e a filha deles, de apenas
oito meses, foi subtraída dos pais. Entre aqueles que participaram do seqüestro, estavam Julian Simón e
Juan Antonio del Cerro, que utilizaram como defesa as Leis de Ponto Final e Obediência Devida. Neste
precedente, a Corte fixou que as leis – revogadas e anuladas – não poderiam ser aplicadas em virtude
do caso em pauta configurar delitos de lesa humanidade. Esta foi a grande importância desta decisão:
por maioria, a Suprema Corte declarou a validade constitucional de Lei nº. 25.779 – que anulou as Leis
de Ponto Final e Obediência Devida – e declarou sem efeito qualquer ato fundado nelas que pudessem
22
obstar o avanço dos processos e julgamentos de responsáveis por crimes de lesa humanidade.
No terceiro caso, a Corte se pronunciou sobre a inconstitucionalidade dos indultos, concluindo
que nenhum tipo de perdão pode opor-se e deixar sem efeito a persecução penal e a condenação de
crimes de lesa humanidade. Em 2004, a Liga Argentina pelos Direitos Humanos ingressou com ação de
inconstitucionalidade, buscando a anulação do indulto concedido, em 1989, a Santiago Omar Riveros,
que era investigado por participação, junto com outros agentes das Forças Armadas, em diversos
homicídios, privações ilegais de liberdade, torturas, lesões e violações de domicilio. Por maioria, a
Suprema Corte declarou inconstitucional os indultos, por entender que este ato de governo resultava na
renuncia a verdade, à investigação, a comprovação de feitos, a identificação de autores e a
desarticulação dos meios e recursos eficazes para evitar a impunidade, violando, assim, não só a
Constituição nacional mas a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de
23
Direitos Civis e Políticos .
Muitos dos delitos ocorridos a partir do golpe de 1976, com seu saldo de desaparecimentos
forçados, detenções arbitrárias em centros clandestinos de detenção, mortes, apropriação de crianças e
bebês e milhares de exilados, dentre outros crimes, foram e seguem sendo julgados na atualidade. Esta
política de julgamentos reconhece uma forte pressão social e uma luta incansável dos organismos de
direitos humanos e de muitos atores sociais, em busca da verdade, justiça e reparação. Nesse contexto,
21
LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo. Op.cit p.130.
22
Ibid.p.147-148.
23
Ibid. p.160-161.

306
as decisões da Suprema Corte possibilitaram as condições para que se levassem adiante as
24
investigações jurisdicionais.
25
Segundo Lorenzetti e Kraut , a Suprema Corte criou uma unidade especial para coordenar as
medidas necessárias para levar a cabo os ajuizamentos de todos os casos de supostas violações aos
direitos humanos causadas pelo Terrorismo de Estado. Criada em 2007, a “Unidade de Assistência e
Seguimento das causas penais nas quais se investiga o desaparecimento forçado de pessoas ocorrido
antes de 10 de dezembro de 1983”, a fim de ajudar os tribunais federais que atualmente levam adiante
os julgamentos.
Muitos julgamentos estão ocorrendo nas jurisdições federais argentinas. Alguns já foram
finalizados e muitos responsáveis foram condenados. Devido a grande quantidade de delitos ocorridos
nos diversos centros de detenção clandestinas existentes naquele período, muitos processos reúnem
diversos réus e vítimas, como o caso da ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada), que reúne mais de
5000 vítimas e, ao menos, 1000 autores, e o caso “Plán Condor”, no qual se investiga casos de
desaparecimentos e mortes oriundos da operação coordenada entra as Forças Armadas da Argentina,
26
Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai.
De acordo com dados da Unidade Fiscal de Coordenação e Seguimento de causas por
violações aos direitos humanos, da Procuradoria-geral da Nação, até o momento, 273 pessoas foram
condenadas por delitos de lesa humanidade cometidos durante o terrorismo de estado; 875 pessoas
estão sendo processadas; 15 julgamentos (orais e escritos) estão em andamento; 7 novos julgamentos
27
orais já tem data para iniciar. Números expressivos que demonstram a irreversibilidade deste processo
em busca de uma justiça contra os arbítrios cometidos pelo terrorismo de estado argentino.

Considerações Finais
Como se pode ver, a Argentina é o país que mais avançou na América Latina na tarefa de
julgamento dos crimes cometidos durante o período ditatorial que assolou o continente. Nesta busca pela
verdade, pela reconstrução da memória e pela construção da justiça, nossos vizinhos inovaram – e
seguem inovando – em matéria de direito civil, penal e constitucional. Pactos e tratados internacionais de
direitos humanos, subscritos e ratificados pelo país, foram incorporados à Constituição, possibilitando
sua utilização para superar os obstáculos jurídicos internos, que proibiam a responsabilização dos
violadores de direitos humanos.
Além disso, segundo entrevista concedida pelo deputado nacional Remo Carlotto à revista Carta
Maior, na Argentina, tem-se discutido a responsabilização de civis e grupos empresariais que
participaram ativamente do golpe e da repressão, como verificamos no trecho abaixo:

A empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires,
um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram
torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz e com a principal
empresa açucareira argentina, Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o
seqüestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde
representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais
importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nacion,
a empresa Papel Prensa, a partir do seqüestro e da tortura dos proprietários dessa
28
empresa que produz papel para jornais.

Os processos de conhecimento da verdade, de construção da memória e da justiça são


processos inexoráveis para qualquer sociedade com um passado autoritário. Os instrumentos
internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos tem um papel de suma importância nesse sentido, pois suas recomendações não são
apenas morais ou políticas, ao contrário do que muitos afirmam. Ao subscrever e ratificar um tratado
internacional, o Estado assume uma responsabilidade perante esses organismos. Essa consciência, que
infelizmente não existe no Brasil, é uma das responsáveis por reverter o processo de impunidade no
marco estrito da justiça.
A importância destes processos não reside somente na penalização dos responsáveis, mas
também em seu legado para o futuro. A garantia de que não haverá lei nem perdão para aqueles que
cometem atos de perseguição política e que, mais cedo ou mais tarde, aqueles que cometem crimes

24
LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.169.
25
Ibid. p.241.
26
Ibid. p.297.
27
Disponível em http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/subnotas/190350-58358-2012-03-24.html. Visualizado
em 12.07.2012.
28
Disponível no link: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19916. Visualizado
em 12.07.2012.

307
horrendos serão levados a justiça, constitui um forte incentivo institucional que ajuda a prevenir o
terrorismo de estado. Como bem aponta Ricardo Lorenzetti:

Aunque el olvido sea imposible, debemos ejercitar la memória, reactivar el pasado,


perseverar em la búsqueda de justicia y reparación. Sin memória y justicia no hay
29
presente, no hay futuro.

A esperança, para o restante da América Latina reside no fato de que o primeiro passo é a busca
pela verdade. Havendo a preocupação em não esquecer, procurando compreender os fatos ocorridos no
passado e não deixando a memória se esvair, pode-se continuar lutando em busca da justiça.

Referências Bibliográficas:
BAUER, Caroline Silveira. Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil-
militares argentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países. Porto
Alegre: UFRGS, 2011. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge. Derechos Humanos: justicia e reparación. La
experiencia de los juicios en la Argentina: Crímenes de Lesa Humanidad. 2ª ed. Buenos Aires:
Sudamericana, 2011.
NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em
sociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretario Geral S/2004/616. In: Revista Anistia
Política e Justiça de Transição, Brasília, 2009, n.1.
PADRÓS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai
(1965-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese (Doutorado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre 2005.
PEREIRA, Anthony. W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile e
Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
YACOBUCCI, Guillermo. J. El juzgamiento de las graves violaciones de los derechos humanos en la
Argentina. In: Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte
Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. GOMES, Luis Flavio e
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizadores). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da
jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.

29
LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.op.cit.p.307.

308
A Comissão Nacional da Verdade e a Ausência de Função Jurisdicional

1
Gabriela Goergen de Oliveira

Resumo: foi instaurada no brasil, em maio de 2012, a comissão nacional da verdade, responsável pela
apuração das violações aos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou pessoas a seu serviço
durante o período de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, tendo como foco central dos
trabalhos o período que corresponde ao regime militar (1964-1985). A maior polêmica em torno da CNV
é o fato de que não irá punir, ao final dos trabalhos, qualquer investigado. O presente artigo analisará a
figura de uma comissão da verdade e a característica de não possuir função jurisdicional. O objetivo é o
esclarecimento de que independentemente de não ter função judicial, os trabalhos de uma comissão da
verdade podem contribuir, mesmo que de forma indireta, porém significativamente, na responsabilização
criminal dos investigados.
Palavras-chave: Direitos Humanos – Justiça de Transição – ditadura militar – comissão da verdade –
justiça.

Abstract: it was instaured in brazil, in may 2012, the national comission of truth (comissão nacional da
verdade), responsible for the calculation of human rights practiced by public agents or people working for
it during the period of september 18, 1946 until october 5, 1988, having as main focus of the works the
corresponding period of the military regime (1964-1985). The major controversy among CNV is the fact
that it will not punish, in the end of the works, the ones investigated. The main purpose is to clarify that,
independently of not having a judiciary function, the works of a truth comission can contribute, even
indirectly, but meaningfully, in the criminal responsability of the investigated.
Keywords: human right – transiction justice – military dictatorship – truth comission, justice – criminal
responsability.

Introdução
Vinte e oito anos após o fim de um regime civil-militar está em funcionamento, no Brasil, uma
Comissão da Verdade. A Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012, surgiu em meio a
um complicado cenário.
O processo de transição no Brasil é ambíguo e segue em andamento desde o final do regime
militar. Em comparação a América Latina, por exemplo, ao mesmo tempo em que está atrasado em
alguns aspectos, encontra-se adiantado em outros. Dessa forma, no âmbito da verdade e memória,
assim como da reparação (material e simbólica), o Brasil já realizou consideráveis avanços. No entanto,
no que se refere à punições das violações aos direitos humanos ocorridas no decorrer do regime militar,
o Brasil pouco – ou nada – evoluiu. Os vizinhos latino-americanos que também enfrentaram regimes de
exceção durante o século XX, principalmente em relação a seus vizinhos latino-americanos, que,
reconhecendo e respeitando o direito internacional, já implementaram e seguem a tomar medidas no
sentido dos crimes cometidos não restarem impunes.
Existe, por fim, porém não menos importante, o desconhecimento a respeito da figura da
“comissão da verdade”, assim como do tema “Justiça de Transição”. A falta de conhecimento sobre o
tema pode gerar equívocos que, já enraizados na opinião pública, dificilmente podem ser revertidos.
No Brasil, tudo que é público já nasce desacreditado, e não foi diferente com a CNV – criada
pelo Estado, mais especificamente pela Casa Civil. A opinião pública já sentenciou que a Comissão
Nacional da Verdade “já nasceu derrotada”, sob o argumento de que os militares responsáveis por
mortes, desaparecimentos, torturas e demais crimes não serão julgados, condenados e presos. Como se
verá no decorrer do presente estudo, a Comissão Nacional da Verdade não tem poder punitivo. Não se
trata de uma característica da Comissão brasileira, mas sim das mais de quarenta Comissões da
Verdade já instaladas em todo o mundo.
Dessa forma, o presente artigo pretende analisar a figura de uma comissão da verdade e a
característica de não possuir função jurisdicional, para então esclarecer que, independentemente de não
ter função judicial, os trabalhos de uma comissão da verdade podem contribuir, mesmo que de forma
1
Acadêmica do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Contato: gabrielagoergen@hotmail.com

309
indireta, na responsabilização criminal dos investigados.

1. Comissões da Verdade
As comissões da verdade correspondem a um dos diversos mecanismos que compõem a
2
Justiça de Transição , normalmente aplicadas em países emergentes de regimes autoritários ou de
guerras civis.
O principal objetivo dessas comissões é descobrir, esclarecer e reconhecer os abusos ocorridos
no passado, dando voz às vítimas, e, quando isso não for possível pelo fato de estarem mortas ou
desaparecidas, através de seus familiares. Somente entrevistando livremente os que foram sujeitos a
abusos e dando voz aos que permanecem em silêncio é que se poderá constituir a “história silenciada”
3
do período.
O direito de particulares de conhecer a verdade acerca da sorte que tiveram as pessoas
desaparecida ou de receber informações sobre outros abusos cometidos no passado foi confirmado
pelos órgãos criados em virtude de tratados internacionais, tribunais regionais, internacionais e
4
nacionais.
As comissões são órgãos temporários, e, analisando algumas das comissões já instaladas no
mundo, os mandados que lhes são atribuídos para que possam desempenhar suas funções valem por
um lapso de tempo que varia entre seis meses e três anos, sendo que a maioria atua por cerca de dois.
Não existe um molde exato a partir do qual as medidas de Justiça de Transição, assim como as
comissões da verdade devam ser criadas e realizadas. O que existem são parâmetros, medidas que
mais proporcionam resultados positivos, as quais são costumeiramente seguidas e aplicadas.

2. Sobre o surgimento e a instalação da comissão nacional da verdade


Não se trata de uma questão recente.
Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no Supremo Tribunal Federal
com uma Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental, então chamada de ADPF n.º 153,
5
questionando a interpretação da Lei da Anistia. Segundo a ADPF, em seu §1º do artigo 1º , a Lei teria
anistiado os agentes públicos que promoveram torturas, desaparecimentos e outras violações aos
direitos humanos durante a ditadura militar. A OAB requereu ao STF uma interpretação da Lei conforme
a Constituição Federal, de modo a declarar-se que a Lei da Anistia não atinge os crimes comuns
praticados por agentes da repressão. Nesta Ação Constitucional, a OAB afirma que o §1º não pode ser
recepcionado pela Carta de 1988, pois esta, no inciso XLIII do artigo 5º, reputa o crime de tortura como
insuscetível de anistia ou graça. A inicial ressalta, ainda, o fato da Lei ter sido votada durante a vigência
plena do regime militar, em um Congresso amordaçado pelos militares e, inclusive, composto pelos
chamados “senadores biônicos”, e, ainda, ter sido sancionada por um presidente da república militar, não
eleito pelo povo.
Em 2009, quando o governo brasileiro publicou o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (o
6
PNDH-3) . O Eixo Orientador VI tratou o Direito à Memória e à Verdade, fez remissão ao período da
ditadura militar e evocou o dever por parte do Estado de resgatar a história do período de repressão
política visando a erradicação de políticas violentas, como a tortura, “ainda persistente no cotidiano
brasileiro” (Secretaria, 2009, p. 170). Dessa forma, o PNDH-3 previu a criação de uma Comissão da

2
O processo de transição após experiências autoritárias compõe-se de pelo menos quatro dimensões
fundamentais: (i) reparação, (ii) o fornecimento da verdade e construção da memória, (iii) a regularização da
justiça e reestabelecimento da igualdade perante à lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras das
violações contra os direitos humanos. ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de transição e eficácia da
lei de anistia no Brasil: alternativas para a verdade e justiça. In: Direitos Humanos – justiça, verdade e
memória. ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMES, José Maria
(coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
3
BRASIL. A Comissão da Verdade no Brasil: Por quê, o que é, o que temos de fazer? Org.: Núcleo de
Preservação da Memória Política. São Paulo: 2012, p. 08.
4
Nações Unidas: Gabinete do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Instrumentos do Estado de Direito para sociedades que tenham saído de um conflito. Comissões da
Verdade. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 5 (jan. / jun. 2011). –
Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 295.
5
§1º do artigo 1º da Lei n.º 6.683/79: “Consideram-se conexos, para os efeitos desse artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”
6
O PNDH é um programa plurianual do Governo Federal elaborado por setores da Sociedade Civil, movimentos
sociais e entidades de classe, que propõe diretrizes e metas a serem implementadas em políticas públicas
voltadas para a consolidação dos direitos humanos. O programa, em si, não é auto-executável. Para as
propostas ou temas de debate sugeridos pelo PNDH entrem em vigor é necessária a aprovação pelo Congresso
Nacional. O PNDH-1 e PNDH-2 foram publicados durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, e o último e
mais polêmico, o PNDH-3, no Governo Lula.

310
Verdade com o objetivo de apurar os crimes e demais violações aos direitos humanos ocorridos no
período ditatorial. A polêmica estava lançada: militares ameaçaram pedir demissão, a ponto do
Presidente Lula chegar a fazer modificações no Plano. Foi criado um Grupo de Trabalho formado por
representantes da Casa Civil, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa, da Secretaria de Direitos
Humanos e da Sociedade Civil, a fim de que fosse elaborado um projeto de Lei que instituísse uma
Comissão da Verdade.
O julgamento da ADPF 153 ocorreu em 28 de abril de 2010, quando o Supremo Tribunal Federal
julgou improcedente a Ação, deliberando pela eficácia da Lei da Anistia àqueles que violaram os direitos
humanos durante o regime militar.
Ainda em 2010, em novembro, após o julgamento da ADPF, o Brasil foi condenado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund x Brasil (Caso Guerrilha do Araguaia), em
ação provocada pela resistente militância de familiares de mortos e desaparecidos na Guerrilha do
Araguaia. O pedido foi a condenação do Estado brasileiro pela não abertura dos arquivos e pela não
revelação do paradeiro dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. A Corte declarou o Brasil culpado
pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, á vida, à integridade pessoal e à
liberdade pessoal das pessoas indicadas na denúncia. Na Ação, ainda, foi solicitado à CIDH que
ordenasse o Brasil a criação de uma comissão da verdade. Na sentença, a Corte não condenou
objetivamente o País à criação de uma comissão. A CIDH considerou que a criação de uma comissão se
trata de um mecanismo importante no sentido do Estado brasileiro cumprir a obrigação de garantir o
direito da sociedade a conhecer a verdade sobre o ocorrido. Assim, o Tribunal valorou a iniciativa de
criação de uma Comissão Nacional da Verdade e exortou o Brasil a implementá-la. Sobre
responsabilizações individuais dos crimes cometidos, a Corte foi clara:

A Corte julga pertinente, no entanto, destacar que não substituem a obrigação do


Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de
7
responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais.

O Projeto de Lei n.º 7.376/10 foi assinado pelo Presidente Lula e enviado ao Congresso
Nacional, que, através da Lei n.º 12.528/12, criou, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República,
a Comissão Nacional da Verdade, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover
a reconciliação nacional. A Comissão foi instalada em 16 de maio de 2012 e terá prazo de dois anos para
apurar as violações aos direitos humanos praticadas por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com
apoio ou no interesse do Estado entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.

3. As comissões da verdade e a relação com a justiça


A Comissão Nacional da Verdade tem quatro finalidades principais: promover o direito à
memória; efetivar a verdade histórica, promover a reconciliação nacional e recomendar reformas no
aparato institucional. A promoção do direito à memória e à verdade são típicas de uma comissão da
verdade e integram o rol de medidas de justiça transicional. Relativamente ao modo de operação, em
termos gerais, as comissões possuem caráter consultivo, explicativo, que dispensa qualquer tipo de
procedimento legal ou julgamento.
De acordo com a essência do papel de uma comissão da verdade, a Lei n.º 12.528/12 não
atribuiu à Comissão brasileira tarefa jurisdicional ou persecutória, atividade que somente pode ser
8
realizada por iniciativa do Ministério Público . A Lei da Anistia, que até hoje foi o empecilho para a
punição dos agentes do Estado que cometeram crimes durante o regime militar, é um “fato” que a
Comissão Nacional da Verdade não tem o poder de questionar. Da mesma forma, como já referido, a
falta de poder jurisdicional não se trata de característica exclusiva da Comissão brasileira: nenhuma
comissão da verdade instaurada no mundo até hoje teve, em seus mandatos, o poder de punir qualquer
indivíduo.
E é na relação entre verdade e justiça que se concentra a maior polêmica em torno da Comissão
Nacional da Verdade: a falta de conhecimento no que se refere à Justiça de Transição e seus
mecanismos (nos quais as comissões da verdade se incluem) e o fato da Comissão brasileira não
possuir tarefa jurisdicional acabou por resultar no equívoco de que, “pelo fato de não ter poder de
punição, ela não terá efetividade, sendo apenas de uma comissão de fachada”. Trata-se de um mal-
entendido que deve ser esclarecido o quanto antes, afinal não são poucos os que já sentenciaram a sua
“derrota” justamente por não promover a responsabilização dos perpetradores de violações aos direitos

7
CORTEIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Caso Guerrilha do
Araguaia). Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010.
Disponível em: <http://www.carteidh.or.cr/casos.cfm>. Acesso em 15 de fevereiro de 2013, p. 107.
8
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na
forma da lei.

311
humanos.
As comissões da verdade tratam de muitos fatos que poderiam ser também sujeitos a processos
legais, e, por não possuírem caráter judicial, a relação delas com o sistema judiciário é muitas vezes mal
compreendida. O fato de não terem poder persecutório pode causar, muitas vezes, equívocos, os quais
devem ser sanados o mais breve possível. Daí a importância de um estudo, mesmo que breve, das
atribuições de seus mandatos.

As expectativas com relação às comissões da verdade muitas vezes são exageradas na


mente dos cidadãos, por isso, é importante manipular devidamente essas expectativas,
mantê-las dentro do razoável e descrever com franqueza desde o princípio o que uma
9
comissão da verdade pode oferecer.

Até o momento, já foram instauradas em todo o mundo cerca de quarenta comissões da


verdade, e uma característica comum entre todas foi o fato de nenhuma possuir função jurisdicional.
Nenhuma pessoa foi denunciada, processada, julgada e condenada por uma. Em muitos países, não é
incomum a dificuldade ou a impossibilidade de empreender a acusação por crimes massivos, aliado à
falta de capacidade do sistema judicial ou de uma anistia de fato ou de direito. Diante de tais
dificuldades, mesmo não sendo um substituto da ação judicial, através das comissões da verdade é
oferecida certa possibilidade de explicar o passado. O resultado do seu trabalho é apontado como
revelação da “verdade histórica”, em contraponto àquela que surge de um processo judicial, identificada
10
como “verdade judicial”.
Embora as relações entre comissões da verdade e a instância legal tenham variado dependendo
do país e das condições políticas específicas, não resta dúvida de que a maioria delas teve a intenção
de contribuir no sentido do fortalecimento do processamento civil e/ou criminal dos mandantes e
executores de violências e crimes praticados. De fato, para a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, uma comissão da verdade “não substitui a obrigação do Estado de estabelecera a verdade e
11
assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através de processos penais”.
Independente de não possuírem poder de punição, as comissões não são aceitas, atualmente,
pelo direito internacional dos direitos humanos, como substitutivas dos órgãos judiciários de
investigação. E tampouco suprimem a necessidade de promoção da responsabilidade penal. O trabalho
de uma comissão da verdade pode impulsionar ou reforçar uma acusação a ser instalada no futuro.
Ao final dos mandados, a missão das comissões é a produção de um relatório final, o qual
deverá constituir-se na postura oficial do Estado, sendo por ele assumido e amplamente divulgado. Além
de proporcionar à sociedade o conhecimento da verdade sobre o regime que oprimiu e violou direitos e
garantias fundamentais, a grande maioria das comissões recomenda, em seu relatório final, a
instauração de ações penais (ou investigações judiciais que levem a possíveis processos) pelos fatos
que foram por elas documentados. As comissões não podem processar ninguém, mas sim recorrer ao
sistema judicial para que seja dado início a processos penais.
A recomendação pode se referir a pessoas específicas ou tratar-se de uma recomendação geral
para que sejam realizadas mais investigações além daquelas já realizadas e que seja dado andamento
no sentido da responsabilização dos crimes cometidos no passado. É possível, ainda, mas menos
comum, que as informações obtidas pelas comissões sejam entregues ao Ministério Público no decorrer
dos seus trabalhos. Sobre a atuação do Ministério Público Federal, Weichert afirma

que o órgão, em especial, atua nesta matéria tanto na seara criminal (para a promoção
da persecução penal) como na cível, onde busca a promoção do direito à verdade, à
informação e à memória, bem como o aperfeiçoamento do aparato estatal de segurança
pública. Em ambos os campos é recomendável a sinergia, sem prejuízo da maior
afinidade entre os objetivos da Comissão Nacional da Verdade e as funções
constitucionais do Ministério Público na promoção dos direitos fundamentais dos
12
cidadãos.

Diante disso, o que se pode concluir é que a CNV, mesmo não tendo caráter jurisdicional, pode
impulsionar, ao seu término, a instauração de processos civis e criminais no sentido da
responsabilização daqueles que cometeram assassinatos, tortura e demais violações aos direitos
9
Nações Unidas (2012), op. cit., p. 296.
10
WEICHERT, Marlon Alberto. A Comissão Nacional da Verdade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da;
TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRÃO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas – olhares
interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
11
CORTEIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Caso Guerrilha do
Araguaia). Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010.
Disponível em: <http://www.carteidh.or.cr/casos.cfm>. Acesso em 06 de fevereiro de 2013, p. 106.
12
WEICHERT (2013), op. cit., p. 14.

312
humanos durante a ditadura militar.
Além disso, em muitos casos as comissões não somente determinam a responsabilidade do
Estado e de suas várias instituições na consecução de práticas repressivas – fossem estas oriundas de
forças públicas ou militares –, mas também responsabilizam, em seus relatórios, o Judiciário por sua
omissão e até mesmo por sua conivência.
No relatório final, as comissões também apresentam recomendações que visam o
aprimoramento de determinadas instituições estatais que devem ser reformadas ou extintas, no sentido
de contribuir para uma política de não repetição. Quando não for o caso de sugestão de eliminação,
trata-se da apresentação de propostas que visem a reforma do mandato, a capacitação, assim como das
operações das instituições específicas (principalmente àquelas relacionadas à segurança pública) a fim
de garantir a sua operação efetiva, no sentido da proteção – e não de violação e desrespeito – dos
direitos humanos.
A Comissão Nacional da Verdade instaurada no Brasil foi criada a partir das características de
todas as demais Comissões que já funcionaram no mundo. Como já referido, nenhuma delas teve o
poder de punição – assim como a brasileira também não possui. A CNV desempenhará, mesmo de
forma indireta, relevante papel no sentido de uma possível responsabilização criminal, assim como civil,
dos responsáveis pelo cometimento de violações aos direitos humanos durante o regime militar
brasileiro.
A impunidade corrói as bases do Estado de Direito e afeta a essência da democracia.

É necessário discorrer sobre a importância e sobre o significado do acesso ao “direito à


justiça” para entender a concretização dos processos de transição política e
consolidação da democracia. O cumprimento desse direito assegura a
13
responsabilização, além de ter uma função pedagógica.

A instauração de processos e consequentes julgamentos e condenações contribuem


significativamente para o restabelecimento da confiança dos cidadãos para com o Estado e suas
instituições, no sentido de afirmar que o objetivo principal é a proteção do cidadão e de seus direitos e
garantias fundamentais, e não do próprio Estado.

Os julgamentos não devem ser vistos somente como expressões de um anseio social
de retribuição, dado que também desempenham uma função vital quando reafirmam
publicamente normas e valores essenciais cuja violação implica sanções. Os processos
também podem auxiliar a restabelecer a confiança entre os cidadãos e o Estado
demonstrando àqueles cujos direitos foram violados que as instituições estatais buscam
14
proteger e não violar seus direitos.

No Brasil, até o momento, há um esforço por parte do Poder Executivo federal e certa
participação do Poder Legislativo (no que tange à promulgação de leis relativas a reparações e
reconhecimentos de mortos e desaparecidos visando à efetivação da transição brasileira). O Judiciário,
por sua vez, ainda não contribuiu positivamente neste processo transicional. A Lei de Anistia de 1979 tem
sido o maior obstáculo para o processamento de responsáveis pelas violações de direitos humanos,
sobretudo após a decisão do STF que, ao decidir pela improcedência da ADPF n.º 153, só reforçou a
sua postura inerte e até mesmo conivente com os crimes cometidos ao longo do regime militar.

Conclusão
A “derrota” da Comissão Nacional da Verdade parece ter sido, por muitos, anunciada: baseado
no caráter não punitivo da CNV, o ceticismo acerca dos seus trabalhos é uma realidade. Afinal, “de que
adianta uma comissão da verdade se nenhum torturador será preso”? Não é de se surpreender com
tamanha falta de otimismo. No país do carnaval, tudo o que é ou vem do público já nasce desacreditado.
E isso não foi causado pelos militares – talvez por eles somente reafirmado. Trata-se de uma herança de
uma Coroa e de toda a sua Corte que aqui firmaram residência em 1808, dando início ao carnaval no
qual dançamos até hoje.
Além da falta de credibilidade daquilo que publico é, aliado a posição de retaguarda do Brasil em
comparação com demais países no que se refere a implementação das medidas de justiça transicional,
os perpetradores de graves violações aos direitos humanos durante o regime militar não foram sequer
processados, muito menos punidos pelos seus crimes. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal ratificou a

13
BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto
Alegre: Medianiz, 2012, p. 176.
14
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. In: Justiça de Transição:
manual para a América Latina. Félix Reátegui (Coord.) – Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça;
Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011, p. 35.

313
postura conservadora do Judiciário brasileiro e sua inércia diante dos crimes ocorridos durante o regime
militar. Afrontou os compromissos internacionais assumidos pelo País, como o Pacto de São José da
Costa Rica (a Convenção Interamericana de Direitos Humanos). Ignorou o fato dos vizinhos latino-
americanos, em respeito ao entendimento da Corte Interamericana em considerar nulas as auto-anistias,
estarem anulando as suas próprias leis de anistia, como o caso da Argentina, que anulou a sua em 2005.
No entanto, mesmo diante desse quadro, já existe uma movimentação no meio jurídico para
tentar contornar as barreiras impostas pela Lei da Anistia. Antes mesmo do debate em torno da validade
da Lei de 1979 vir à tona, uma ação cível foi impetrada, em 2005, na 23ª Vara Cível da Comarca de São
Paulo contra o Coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra. Com a sentença, de eficácia
meramente declaratória, o Coronel passou a ser declarado como torturador. Atualmente, o Ministério
Público Federal tem entrado com ações em varas federais requerendo a abertura de investigações de
crimes de desaparecimentos ocorridos durante o regime militar. Em agosto de 2012, por exemplo, a
Justiça Federal do Marabá recebeu denúncias do Ministério Público Federal contra o Coronel Sebastião
Curió Rodrigues e contra o Major Lício Augusto Maciel, acusados de seqüestro qualificado de militantes
capturados durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Em São Paulo também foram recebidas em
agosto de 2012 denúncias pelo crime de seqüestro qualificado contra o Coronel Ustra, Alcides Singillo e
Carlos Alberto Augusto (“Carlinhos Metralha”), estes dois últimos delegados da Polícia Civil. A
interpretação dos promotores é a de que não poderia haver um marco temporal nesses casos, pois não
tendo sido encontrado o corpo, este seria um crime permanente, ou seja, ainda em vigor, e, assim, fora
do período estabelecido pela Lei da Anistia.
O ponto causador de maior polêmica em torno da CNV é a ausência de caráter judicial. De fato:
a punição é, sem dúvida, o maior anseio das vítimas, de seus familiares e, por que não, da sociedade
em geral. Representa a certeza de que aqueles que proporcionaram sofrimento e dor por um crime
paguem por aquilo que fizeram. As expectativas em relação aos resultados dos trabalhos da Comissão
não poderiam ser menores: embora se diga que o objetivo da CNV é levantar a “história silenciada” do
País, a pressão popular e política será – e se espera que seja – mais forte quando responsáveis mortes
e torturas passarem a ser indicados.
Ao final de dois anos, os membros da CNV deverão apresentar um relatório elaborado a partir da
análise de documentos, muitos deles sigilosos, e depoimentos. No entanto, ainda que identifique
envolvidos e responsáveis por torturas, assassinatos ou desaparecimentos de opositores do regime
militar, uma possível punição poderá esbarrar nos limites estabelecidos pela Lei da Anistia.
Ocorre que a idéia de que anistias e violações aos direitos humanos ocorridas durante regimes
autoritários bloqueiam a possibilidade de julgamentos já é passado na maior parte da América Latina.
Com o tempo, essa noção está passando a ser suprimida a partir de casos como o da Argentina, em que
grupos conseguiram driblar a Lei da Anistia sugerindo interpretações criativas ou explorando brechas.
Engana-se quem pensa que não existe mais razão para a instauração de uma comissão da
verdade, sob o argumento de que a mesma não terá poder de punição. Sociedades que não superaram
as barbáries históricas cometidas por governos autoritários impregnaram em seu tecido social e na sua
cultura práticas que neutralizam as violências e o autoritarismo.
O Brasil ainda não concluiu a transição à democracia e convive até hoje com a herança do
regime militar. Órgãos responsáveis pela segurança pública seguem como enclaves contrários a certos
valores democráticos adotados pela Constituição de 1988, até hoje desrespeitando e/ou ignorando
completamente os direitos humanos: matando, torturando e cometendo as mais diversas barbáries. O
resultado de tamanho descaso é o estímulo à violência sistemática, à cultura da impunidade, da falta de
informação e da falta de espírito crítico da sociedade.
Mesmo que tardiamente, com o advento de uma comissão da verdade o Brasil vivencia grandes
desafios – ou melhor, grandes oportunidades – que, se bem aproveitadas, permitirão prósperos avanços
na consolidação da democracia e na superação do estado de transição. Trata-se de uma oportunidade
ímpar tanto para a investigação dos crimes cometidos durante a ditadura militar como para aprofundar
um exame sobre as causas e principalmente das consequências do regime instaurado em 1964 – estas
últimas até hoje presentes.
O papel primordial de uma comissão da verdade é, sem dúvida, levantar a história do período
autoritário ocorrido em um Estado. Da mesma forma, é também o de alimentar um debate na sociedade
sobre o que ocorreu no passado. Isso, em muitos casos, favoreceu a abertura de julgamentos para
estabelecer responsabilidades criminais. Nesses casos, a função das comissões da verdade foi ajudar a
munir advogados e Ministério Público com evidências para a abertura de processos. Nesse cenário,
passa a ser criado um clima favorável para a ocorrência de decisões judiciais favoráveis à flexibilização
das anistias.
Passados quase trinta anos do final da ditadura militar, ainda há muitos que gostariam de manter
embaixo do tapete verdades que virão à tona a partir dos trabalhos da CNV. Para tanto, o ideal é que a
sociedade desconheça a real importância de uma comissão da verdade e desacredite em seus trabalhos
pelo fato de não ter o poder de punir os responsáveis pelos crimes ocorridos.

314
A instauração de uma Comissão da Verdade é de suma importância no sentido de uma ruptura
com o passado autoritário e seu legado – o qual perdura até hoje. Como já esclarecido, a CNV não terá
o poder de punir qualquer investigado. No entanto, ao final de seus trabalhos e a partir do relatório que
será elaborado é que as denúncias podem começar a surgir.
Julgamentos podem dar fim à impunidade e fortalecer a democracia e o respeito aos direitos
humanos.
Amanhã vai ser outro dia.

Referências Bibliográficas:
ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMES, José Maria
(coordenadores). Direitos Humanos: justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto
Alegre: Medianiz, 2012.
BRASIL. A Comissão da Verdade no Brasil: Por quê, o que é, o que temos de fazer? Org.: Núcleo de
Preservação da Memória Política. São Paulo: 2012.
BRASIL. Justiça de Transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (Coordenação) – Brasília:
Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de
Transição, 2011.
BRASIL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 2 (jul. / dez. 2009). –
Brasília: Ministério da Justiça, 2009.
BRASIL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 5 (jan. / jun. 2011). –
Brasília: Ministério da Justiça, 2012.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRÃO, Paulo (Orgs.). Justiça de
Transição nas Américas – olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo
Horizonte: Fórum, 2013.

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316
IX - Resistências e redes de solidariedade nas
Ditaduras do Cone Sul

317
318
Los tortuosos caminos: a fuga dos argentinos para o Brasil, no marco temporal das
ditaduras civis-militares de Segurança Nacional

1
Jorge Christian Fernandez

Introdução
A travessia de uma fronteira internacional costuma provocar nas pessoas certa tensão e
nervosismo, em maior ou menor grau. Mesmo em condições político-institucionais “normais”, ou seja,
quando o “império das leis” rege as ações normativas do Estado. Isso depende de uma multiplicidade de
fatores que incluem desde a estabilidade emocional do sujeito que está cruzando a fronteira e passando
pela formação e a habilidade dos agentes do Estado encarregados de efetuar os controles migratórios,
alfandegários, etc. E, sem esquecer o contexto histórico específico no qual se insere o processo que
envolve o atravessar uma fronteira entre dois países.
Pode até dizer-se que a natureza da travessia já encerra um componente de constrangimento. O
atravessar uma fronteira é um fato complexo que envolve verificação de documentos, um escrutínio do
transporte empregado, da bagagem pessoal e, por vezes, se submete o indivíduo à revista corporal, o
que acarreta uma humilhação, tanto seja por sentir-se “alvo” de suspeita ou discriminado, quanto pela
violação do espaço íntimo pessoal.
Ou seja, a tensão da travessia é geralmente composta por um caleidoscópio de sensações que
incluem apreensão, insegurança, desconhecimento, desamparo e medo. Em grande parte, esses
sentimentos começam a ser construídos com antecedência ao ato de partir da “sua” zona de conforto e
adentrar em um terreno desconhecido, os domínios do “outro”. Ao desconforto de índole psicológica,
ainda podem-se adicionar entraves objetivos, como a barreira da língua associada à corriqueira ausência
ou a áspera negativa de informação por parte das autoridades fronteiriças. Uma situação que
normalmente se agrava quando o estrangeiro prestes a cruzar a fronteira é inexperiente ou com baixo
nível de instrução escolar. A reação do indivíduo perante essas regras burocráticas com as quais não
possui familiaridade e códigos sociais desconhecidos também causa muito estresse.
Imagine-se então o que representava passar a fronteira Argentina–Brasil nos anos 1970-1980,
em um contexto repressivo, onde as garantias constitucionais e o respeito pelos direitos humanos
existiam de modo figurativo, como no Brasil, ou simplesmente inexistiam, como na Argentina. Nesse
quadro de horror, pânico e insegurança, pessoas das mais diversas origens sociais, desde militantes
políticos ou sociais, estudantes, operários ou profissionais liberais, não somente de “esquerda”, mas sim
dos mais variados matizes e militâncias, procuraram um lugar de refúgio. Para alguns, esse refúgio seria
apenas temporário, na espera da mudança dos instáveis ventos da política; para outros seria uma
passagem em direção a um terceiro lugar, geralmente além-mar e considerado mais seguro, longe dos
horrores que haviam padecido em seu próprio lar. Nessa conjuntura, o Brasil se apresentou como uma
das poucas possibilidades plausíveis de sobrevivência. No entanto, atravessar a linha de fronteira podia
se transformar em algo tão temerário e perigoso quanto permanecer no país de origem. Pois o Brasil
ainda era governado por um regime ditatorial análogo ao da Argentina (embora em processo de
distensão) e, paradoxalmente, ao intentar fugir do terrorismo de Estado (TDE) implantado na Argentina
podia cair-se nas experientes garras do TDE brasileiro, em um momento histórico onde as fronteiras
2
ideológicas tornaram fluidas as fronteiras entre os Estados nacionais do Cone Sul , favorecendo a
colaboração repressiva.
Independente de todos esses perigos, muitos perseguidos políticos ousaram fazer a travessia ao
longo daqueles anos. Uma travessia dramática que, em muitos casos, adquiriu contornos quase que
cinematográficos, como veremos.

A Fuga: Como e Por Onde Sair da Argentina?


Para aqueles que tiveram que sair da Argentina com a sensação, real ou presumida, de que a
repressão estava no seu encalço, o processo de abandono do país podia adquirir contornos
verdadeiramente dramáticos. Todos os meios de transporte eram válidos: aéreos, terrestres e fluviais. O

1
Professor UFMS. E-mail: intbrig@yahoo.com.br
2
PADRÓS, Enrique S.; MARÇAL, Fabio A. O Rio Grande do Sul no Cenário da Coordenação Repressiva de
Segurança Nacional. In: PADRÓS, Enrique S.; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa A.; FERNANDES, Ananda, S.
(Org.). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2009. v.3, p. 47.

319
ônibus e o trem eram opções bastante comuns além de serem mais populares; o avião e o automóvel
não eram acessíveis para a maioria, de escassos recursos financeiros. Muitas vezes combinavam-se os
meios de forma variada, intercalando um e outro no sentido de despistar um possível monitoramento. Em
grande parte desses processos de fuga foi essencial à intervenção ou a participação solidaria de amigos
e parentes que, ao ajudar das mais diferentes formas, muitas vezes arriscaram suas próprias vidas com
o objetivo de salvar a vida de um terceiro.
Mesmo no auge da repressão política, durante a década de 1970, tratados internacionais
recíprocos garantiam e amparavam a liberdade de trânsito em ambos os sentidos da fronteira Brasil –
Argentina. Essa prerrogativa legal possibilitou a fuga de muitos perseguidos, especialmente em períodos
de férias escolares quando a circulação de pessoas aumentava vertiginosamente dificultando os
controles nos principais pontos de fronteiras onde existia concentração de intenso fluxo de turistas, como
Uruguaiana-Paso de los Libres. Mas, para poder cruzá-la, primeiro era necessário chegar até a fronteira.
E nesse sentido atingir o Brasil, por via terrestre, partindo de qualquer cidade argentina de grande porte
não era uma tarefa muito fácil, dada a quantidade de controles policiais existentes nas rodovias do lado
3
argentino.
Um de nossos entrevistados se recorda do contraste entre a vigilância do lado brasileiro e a do
lado argentino: Los caminos de acá (Porto Alegre) hasta Uruguaiana no te paraba ni un “tero” y allá, a
cada veinte kilómetros, más o menos, un puesto de gendarmería, o cosa por el estilo, parándome a cada
4
rato.
Mas não se precisava ser um opositor ou “subversivo” para ser maltratado ou se sentir
5
ameaçado pelas forças de segurança, pois o caráter horizontal da repressão na Argentina via o conjunto
da população com suspeição. Residentes argentinos no Brasil, sem motivo político aparente, relataram
ter passado por experiências desagradáveis nas mãos de militares e policiais quando estavam de retorno
ao país natal.
Um de nossos entrevistados, Carlos P., relatou momentos de tensão vividos durante uma
simples viagem de férias para visitar a família:

Una vez, en un viaje (…) me desvié del camino y tuve que entrar por Curuzú Cuatiá,
cosa que yo no quería y no dio otra: entre por una calle que justamente estaba un
cuartel. Me pararon y me llevaron para adentro. Y nosotros estábamos viajando de aquí
para allá con mi mujer y las dos criaturas… los tuve que dejar en el auto y ahí me
llevaron a hablar con el “capo general”… y el tipo me hizo unas preguntas, que se yo
que, me demoró no sé cuánto tiempo. Yo, bien, por las dudas, quieto. Yo sentí el olor del
6
peligro.

Foi similar o caso de Ernesto, quem residia no Brasil desde 1975, mas tinha de se deslocar para
a Argentina com frequencia, o que não lhe agradava. Ele recorda-se em especial de uma destas viagens
em que foi alvo de um destes controles ameaçadores e perdeu a calma ao ver a intimidade da sua
família vulnerada pelos agentes do Estado:

(depois do Golpe) Empezaban a revisar el auto. Una vez, con mi nena chiquita, en la
zona de Entre Ríos, me agarró un ataque de nervios… Mi mujer es toda higiénica,
lavaba y hervía los pañales… Nos abrieron las valijas y los gendarmes sucios
empezaron a meter las manos en ropa, y aparte es prohibido: “¡no, que está hervido, es
de la nena! Y me agarró un ataque de nervios… (…) no me fusilaron porque… (...) Era
7
una cosa muy tensa, no fue fácil.

Cruzando o Rio Uruguai


Para aqueles que eram perseguidos, a travessia do Rio Uruguai não se constituía em uma

3
Uma viagem de campo exploratória realizada pelo autor, em 2009, permitiu observar que mesmo nos dias atuais,
o controle sobre os veículos e pessoas que circulam nas estradas argentinas é bastante rigoroso. Somente
trafegando pela Ruta Nacional 14, no trecho de Paso de los Libres até Zárate (divisa da província de Entre Rios com
a província de Buenos Aires), o autor contabilizou, além do controle aduaneiro na fronteira, mais treze postos da
Gendarmeria (espécie de guarda de fronteira) e cinco da polícia provincial de Entre Rios e Corrientes. Em quase
todos estes postos podiam ver-se veículos e documentação sendo examinados. Pode-se deduzir que no período da
ditadura civil-militar este controle de tráfego interno era, provavelmente, ainda mais minucioso e obviamente
agressivo e intimidador.
4
Tero: o pássaro “quero-quero”. Entrevista com C. P. realizada em Porto Alegre, 07/08/2008.
5
ABOS, Álvaro. La racionalidad del Terror. El Viejo Topo, Barcelona, n° 39, dic. 1979.
6
Idem.
7
Segunda entrevista com E.T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.

320
empresa simples. Por um lado porque, a exceção de Paso de Los Libres, as outras cidades costeiras
argentinas não contavam com pontes que fizessem a ligação. Por outro, porque estas cidades não
passavam (e não passam ainda) de pequenos povoados onde a simples presença de um indivíduo (ou
um grupo) desconhecido seria facilmente notada pela população podendo ser denunciada as
autoridades do local. Especialmente se este “visitante” tivesse um sotaque diferenciado (portenho ou
cordobés, por exemplo) aliado a uma aparência física de tipo europeu caucasiano, a qual também
contrastaria com certa homogeneidade do biótipo físico dos nativos da região correntina e misionera,
onde é marcante a ascendência étnica indígena. Além do mais, por ser região de fronteira, cada um
destes povoados conta com unidades militares geralmente desproporcionais ao tamanho das localidades
onde estão assentadas.
Um memorando secreto do Ministério das Relações Exteriores brasileiro ao Conselho de
Segurança Nacional, datado de fevereiro de 1982, destacava o elevado grau de controle da margem
argentina do Rio Uruguai:

Sob o comando de oficiais, com recursos humanos e material apropriado existiriam


instalações de “Prefectura Naval Argentina” em Monte Caseros, Paso de los Libres,
Yapeyú, La Cruz, Alvear, Santo Tomé, Garruchos e San Javier. A partir desta última
cidade até Monteagudo, na província de Misiones, a vigilância do Rio Uruguai seria feita
8
pela “Gendarmeria Nacional” que disporia de uma infra-estrutura bem montada.

Mesmo assim, ainda havia a possibilidade de atravessar o Rio Uruguai em pontos inóspitos.
Entretanto, para realizar a travessia atalhando campos e mata era necessário que a pessoa tivesse um
conhecimento prévio da região, ou que contasse com o suporte de algum nativo que servisse de guia.
Ou seja, um mateiro, pescador ou até mesmo um contrabandista, para saber exatamente os pontos onde
a passagem poderia ser facilitada por acidentes geográficos que estreitassem as margens, pela pouca
profundidade do leito do rio ou pela simples ausência de controle em determinada parte e determinado
horário. Assim, a passagem da fronteira pelo rio poderia ser realizada com uma pequena lancha, bote
ou, dependendo da qualificação e da capacidade física do “fugitivo”, até mesmo a nado. Eis um possível
exemplo deste tipo de fuga. Em um documento confidencial da Polícia Federal e difundido ao Exército
Brasileiro, à Brigada Militar e à Polícia Civil do Rio Grande do Sul, em 08 de dezembro de 1977, pedia-se
a localização e captura de

[...]a. Pedro Mancias, 38 anos, moreno, forte, cerca de 1,75m, gordo, cabelos brancos,
é ex-oficial da Polícia de Misiones/RA.
b. O nominado atravessou a fronteira para o Brasil, na região do Canal Torto, no dia 04
de outubro de 77. Elementos do Exército Argentino que se encontravam em Alba
Posse, solicitaram a colaboração da Polícia Federal para localizar e capturar o
nominado.
c. Segundo informações colhidas junto aos militares argentinos, Pedro Mancias possui
9
entre outros cursos, o de guerrilha urbana, além de ser técnico em explosivos.

Logo, este tipo de saída se adequava mais aos paisanos da região (provavelmente o caso de
Mancias), acostumados desde sempre a cruzar a fronteira de um lado para o outro, geralmente
ignorando os controles migratórios, uma característica típica da particular dinâmica de zona fronteiriça,
onde é frequente o contato próximo entre os habitantes dos dois lados. Também é bem claro no
documento o tipo de colaboração direta e sem maiores impedimentos exercida na faixa de fronteira entre
as forças repressivas de ambos os países.

8
Memorando (Secreto). DAM-1/DF/SCDL/36/24 (B46) (B29) Brasil – Argentina. Patrulhamento do trecho
compartilhado do Rio Uruguai. N° 013/82 - 29/01/1982, p.426. Cx. 008-D2, Fundo CSN, Arquivo Nacional - Brasília.
9
DOPS/RS: Pedido de Busca - PB 086 - S2/77 de 08/12/77 - SOPS/RG 1.1.341.3.1 – Acervo da Luta Contra a
Ditadura - Porto Alegre

321
Figura 1. Região do Alto Uruguai (divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina) detalhe da parte central da
fronteira Brasil - Argentina. Cabe destacar que, em determinados pontos desta região, as margens do Rio Uruguai se
estreitam facilitando a sua travessia apesar da ausência de pontes. Além disso, a faixa de fronteira conta com
centros urbanos de menor índice populacional, uma malha rodoviária bastante precária e descontínua (mesmo
atualmente) e vastas áreas inóspitas ou de difícil acesso, o que dificultava o controle desta zona (Fonte:
http://info.lncc.br/wrmkkk/aruru2.html).

Por outro lado, uma vez em território brasileiro, a fiscalização da movimentação de pessoas
diminuía consideravelmente. A extensão de nossas fronteiras e a falta de pessoal das forças de
segurança encarregado para exercer a vigilância na faixa de fronteira sempre foi um dos problemas
apontados pela administração pública brasileira:

A insuficiência da fiscalização da margem brasileira do Rio Uruguai é clara, ao longo


dos aproximadamente 700 km que separam a localidade brasileira de Barra do Quarai
(...) do Alto Uruguai, constituindo-se pequenas exceções às áreas frente às cidades de
Uruguaiana, Itaqui e São Borja.
Na parte brasileira, da Barra do Quarai até Santo Ângelo, a Policia Federal contaria com
um efetivo de aproximadamente 80 homens, voltados mais para a segurança interna, e
a Delegacia da Capitania dos Portos, em Uruguaiana, disporia de dois oficiais e
dezesseis praças, além de um capataz em São Borja, um em Porto Lucena, um em
10
Porto Mauá e outro em Alto Uruguai.

Portanto, esta linha imaginária, que separa o Rio Grande do Sul das províncias argentinas de
Corrientes e Misiones era um dos pontos mais vulneráveis da fronteira, apesar da barreira natural
oferecida pelo Rio Uruguai. Assim, esta longa e pouco controlada fronteira fluvial (pelo menos do lado
11
brasileiro) se tornou, em um primeiro momento, uma “porta de entrada” ( e posteriormente uma espécie
de “corredor”) para guerrilheiros e militantes perseguidos, além do histórico contrabando de gado e de
mercadorias, e também do então incipiente tráfico de entorpecentes. Aliás, os agentes do Estado
frequentemente também atribuíam estas duas últimas atividades criminosas, de um modo genérico, aos
chamados “subversivos”, como podemos ver neste documento:

Pedido de busca N° 728/75/DCBI/DOPS/RS


DADOS CONHECIDOS:
CONCEPCIÓN NOEMI DIAZ MARTINEZ, Argentina, antropóloga, portadora da cédula
de identidade argentina/ n°6.795.547 (expedida pela Polícia Federal), seria ligada a

10
Memorando (Secreto). DAM-1/DF/SCDL/36/24 (B46) (B29) Brasil – Argentina. Patrulhamento do trecho
compartilhado do Rio Uruguai. N° 013/82 - 01/02/1982, p. 428. Cx. 008-D2, Fundo CSN, Arquivo Nacional - Brasília.
11
Posteriormente seria um ponto de reingresso clandestino ao território argentino.

322
JUAN CARLOS PERALTA, recentemente preso na Argentina, por tráfico de tóxicos e
atividades subversivas, desenvolvidas naquele país.
Segundo as autoridades argentinas, a nominada estaria presa no Brasil, onde teria
12
chegado proveniente de MISIONES/RA.

Via Uruguaiana
Uruguaiana era uma das principais portas de entrada ao Brasil e uma das principais rotas usadas
pelos refugiados e militantes em fuga. Por um lado, eram conhecidos os perigos da zona fronteiriça e se
temia a fluida conexão repressiva entre os dois países. Porem, em contrapartida, como toda passagem
de fronteiras de porte, o considerável e constante trafego de veículos comerciais, particulares e pessoas,
cujo fluxo crescia enormemente na temporada de férias e especialmente no verão, dificultava a eficiência
13
do controle pretendido pelas forças de segurança. Era essencial desenvolver estratégias de mimetismo
para sobreviver. Portanto, aproveitando-se da estação do ano muitos refugiados conseguiram escapar da
Argentina, mesclados na avalanche de turistas ávidos por fazer compras em um ou outro país, de acordo
com a oscilação cambial da época. Desta forma, só o PRT/ERP conseguiu retirar em torno de uma
centena de militantes pelo Brasil, segundo afirmam Anguita e Caparrós:

La mayoría de los militantes del PRT salía por Paso de los Libres,(...) además el verano
resultaba ideal: el flujo de turistas complicaba los controles de Gendarmería, desde
fines de año anterior (verão 1975-1976) que estaban mandando gente por ahí, y
14
todavía no había caído nadie .

No entanto, em certos períodos o controle aduaneiro era reforçado. Por exemplo, no dia do
Golpe de Março de 1976, a Argentina bloqueou as saídas de todas suas fronteiras: aéreas, marítimas e
terrestres. Alguns dias depois, a Gendarmeria reabriu a fronteira, porém impediu que os táxis brasileiros
transportassem mais de três passageiros para Paso de los Libres e proibia que os mesmos retornassem
para o Brasil com passageiros, o que suscitou protestos dos motoristas brasileiros perante as
15
autoridades de ambos os países , o que nos dá uma idéia do controle exercido na fronteira. Para os
militares, este controle sobre os táxis tinha sua razão de ser.

12
DOPS/RS: Pedido de Busca - PB n° 728/ 75/ DCBI/ DOPS/ RS - 09/12/75 - SOPS/CX 1.1.31.2.1– Acervo da Luta
Contra a Ditadura - Porto Alegre
13
ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. ANGUITA, Eduardo; CAPARRÓS, Martín. La voluntad. Una historia
de la militancia revolucionaria en Argentina. V Tomos, Buenos Aires: Booket, 2006, p.356-357 e 466-467.
14
ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. op. cit., p.356-357 e 466-467.
15
Zero Hora, 7/4/76 p.30 e 8/4/76 p.29. Arquivo Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – Porto
Alegre.

323
Figura 2. Detalhe da bacia hidrográfica do Rio Uruguai entre as cidades de São Borja e Uruguaiana (RS), pelo lado
brasileiro, e Santo Tomé e Paso de los Libres (Província de Corrientes) pelo lado argentino. Na década de 1970-
1980 a ligação entre os centros urbanos da margem ocidental e oriental do Rio Uruguai era ainda muito precária
sendo feita por balsa ou outro meio fluvial. A exceção ficava por conta de Uruguaiana e Paso de los Libres, onde
estava à única ponte que ligava fisicamente Brasil e Argentina, a Ponte Internacional Getúlio Vargas-Agustín P. Justo
construída na década de 1940. Apenas em 1998 foi inaugurada uma segunda ponte sobre o Rio Uruguai, a que liga
São Borja e Santo Tomé, mas as outras cidades costeiras (como Itaqui e Alvear) continuam aguardando suas
respectivas pontes que são reivindicações de longa data (Fonte: http://info.lncc.br/wrmkkk/aruru1.html).

Cabe explicar que a travessia por meio de táxis era algo muito comum para quem chegava a
Paso de los Libres por ônibus intermunicipal ou trem e se constituiu em um expediente bastante
empregado pelos refugiados. Acontece que os táxis, cujos motoristas ou donos eram conhecidos na
região, costumavam não ser muito controlados na fronteira, seja por algum tipo de relação pessoal com
os guardas ou por simples corrupção: pequeno contrabando, câmbio ilegal de moeda, etc.
Daniel de Santis, quadro do ERP, foi um dos que atravessou a ponte de táxi. Acompanhado na
fuga por uma companheira que se passava por sua mulher, Disse a companheira: Tratemos de salir hoy
16
mismo para Porto Alegre. Acá (em Uruguaiana) podemos terminar en manos del DOPS , consciente do
perigo que o acossava na cidade fronteiriça. Um de nossos entrevistados afirmou conhecer uma rede de
taxistas encarregados de fazer esse translado clandestino entre as duas cidades, mediante o pagamento
de uma “taxa extra”. Ele nos contou como diversos conhecidos seus fizeram o trajeto:

P- ¿Y Ud. Sabe como venían?

Si, y totalmente en negro, no hacían ingreso al país, nada. Clandestinos, totalmente.


Corrían el riesgo de quedar ‘enganchados’ en la frontera. Y… iban a la frontera
tomaban un taxi, o venían por Uruguay, siempre había maneras. Se tomaba un taxi,
arreglabas con el tachero, le dabas 50 mangos en un taxi de Paso de los Libres y te
pasaba del otro lado… en el otro (lado) te tomabas otro y así…era así. Había un
17
control, pero no tanto…de la parte brasilera era así.

Todavia, outros refugiados acabariam entrando no Brasil dentro de automóveis particulares,


geralmente conduzidos por parentes, companheiros ou amigos, apesar dos enormes riscos que esta

16
ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. op. cit., Tomo 5, p.376.
17
Segunda entrevista com E. T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.

324
ação envolvia. Ricardo, quem fugiu em 1979, após ser ameaçado de morte em Buenos Aires, lembra
bem como foi feita sua retirada às pressas da Argentina. Inclusive ele contou com a ajuda de uma
insuspeita “escolta militar” no carro que o trouxe até o Brasil:

La vez que rajé para venirme a Brasil (…) vino un muchacho que es ingeniero, pero
que llegó a capitán de fragata de la Armada argentina. (…) El vino con mi hermano;
entonces yo me tiré en el asiento de atrás… era de noche, muy tarde. Mi hermano y el
capitán, este con su cédula militar, pese a que retirado, ¿no? Presentó la cédula…
18
claro, capitán de la Armada… y pasamos.

Já Juan, ex-funcionário público e combatente montonero, encontrava-se na clandestinidade


desde 1976 na cidade de Córdoba, onde continuava a militar, em meio ao perigo da repressão e as
inúmeras quedas dos seus colegas de armas e militância. Em março de 1977, segundo o entrevistado,
foi expedida contra ele uma “ordem de execução” dada pelo comandante militar da região. Isso
significava que deveria tentar fugir urgentemente e permanecer era equivalente a cometer suicídio. Uma
arriscada travessia de 950 km entre Córdoba e Uruguaiana foi feita a bordo do automóvel de um familiar.
Ou seja, o processo todo teve de ser feito na mais absoluta clandestinidade para poder aumentar as
chances de sucesso da fuga e sobreviver. Explicou-nos melhor o narrador:

(...) ¡orden de fusilamiento! Y si, a mi me dieron la orden, entonces el 5 de marzo estoy


pasando la frontera. (...) yo salí de Córdoba escondido en un auto hasta la frontera.
19
Pasé (a fronteira) escondido y estuve un año clandestino acá (em Porto Alegre).

Também as linhas de ônibus internacionais, usadas comumente por turistas, foram igualmente
utilizadas pelos exilados em fuga. Mas, tal como outros métodos já descritos, a fuga utilizando o
transporte rodoviário apresentava alto risco, pois a repressão conhecia de antemão estes estratagemas.
Por exemplo, um informe do Centro de Informações do Exército (CIEx), de março de 1975 já alertava
aos órgãos de segurança pública sobre o uso do transporte rodoviário pelos “subversivos”:

Consta que elementos subversivos argentinos estariam ingressando no Brasil, com a


finalidade de descansar ou de se ocultar por algum tempo das autoridades argentinas.
O ingresso seria feito por Uruguaiana/RS, na qualidade de turistas, utilizando-se de
carros particulares ou de ônibus da empresa Pluma-Conforto e Turismo e Expresso
20
Americano, que fazem a linha Buenos Aires - Rio de Janeiro.

A escalada da violência paramilitar na Argentina durante 1975 e a intensa e sistemática


repressão estatal logo após o Golpe, que provocou uma verdadeira debandada humana, colocou em
estado de prontidão as forças de segurança nas fronteiras brasileiras. Na concepção dos militares,

[...]Em conseqüência [da repressão] os terroristas argentinos poderão penetrar em


nosso território através de diversos pontos e utilizando os mais diferentes meios de
transportes, explorando os atuais tratados recíprocos que facilitam o transito dos
respectivos nacionais.

3. É pois de máxima conveniência para a SEGURANÇA NACIONAL manter um rígido


controle sobre a permanência de argentinos em nosso território coibindo qualquer
21
situação irregular, face a legislação existente.

O governo brasileiro temia que o Brasil pudesse oferecer, devido a sua imensidão territorial, um
espaço de refúgio e/ou articulação para os grupos guerrilheiros da Argentina e/ou de outros países
vizinhos, sem falar numa possível “contaminação ideológica” advinda de uma suposta conexão
internacional entre as esquerdas. E embora esta última pudesse ser hiper-dimensionada (já que muito
dela era alimentada pela paranóia da Guerra Fria) era, no entanto, funcional ao servir de principal
justificativa para a cooperação entre os governos militares na região.
Não obstante os perigos inerentes, a viagem pela fronteira terrestre utilizando-se da malha
rodoviária ou ferroviária foi um recurso muito utilizado. Foi esse o método utilizado pelos irmãos Diego e
Gabriel ao sair da Argentina. Em agosto de 1976, eles viajaram em ônibus de linha comercial, direto de
Buenos Aires a Porto Alegre. E, apesar de ser familiarmente vinculados à chefia dos Montoneros, o que

18
Entrevista com R. A. realizada em Porto Alegre - 17/03/2008.
19
Entrevista com J. P. realizada em Porto Alegre – 09/08/2008.
20
DEOPS/SP: CIE: Entrada de Subversivos Argentinos no Brasil, 12/03/75 - Dossiê DEOPS 50-E- 016 – 175.
Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) – São Paulo.
21
DOPS/RS: INFO 41/EM/2 de 29/11/76 - SOPS/CX 1.1.20.2.1 – Acervo da Luta Contra a Ditadura – Porto Alegre.

325
obviamente implicava em maiores riscos, eles conseguiram atravessar a fronteira utilizando seus
22
próprios documentos.
Mas o fato é que Uruguaiana era um lugar muito perigoso e, evidentemente, nem todos tiveram a
mesma sorte dos entrevistados acima. Em junho de 1977, dois supostos montoneros, José Maria
Rodriguez e Jorge Alfredo Iturburo, foram presos na Estação Ferroviária de Uruguaiana, quando
intentavam adquirir passagens no “trem húngaro”, composição que fazia regularmente o trajeto
Uruguaiana - Porto Alegre. De acordo com o noticiado nos jornais da época

Os dois homens, sem documento, (...) foram detidos pela Brigada Militar, em cujas
dependências confessaram sua condição de terroristas especializados na “montagem
de armas”, segundo informações fornecidas às rádios Charrúa e São Miguel por
elementos da corporação. Na Policia Federal, para onde foram encaminhados pela
Polícia Militar, José Maria Rodriguez e Jorge Alfredo Iturburo negaram pertencer àquela
organização e se identificaram como comerciantes de Buenos Aires. Sobre o caso, o
delegado Marco Pólo, da Policia Federal, disse que “existem suspeitas de que sejam
mesmo montoneros, pois suas histórias são contraditórias. As autoridades argentinas
23
investigarão o caso, o qual vamos acompanhar”.

Segundo a polícia, eles não haviam cruzado pela Ponte da Amizade, mas sim pelo Rio Uruguai.
No dia 30 de junho, a Polícia Federal removeu os dois homens e os entregou a uma unidade do Exército
Argentino em Paso de los Libres. A partir daí seus rastros se perdem.
Cabe destacar que é na região de Uruguaiana onde se concentra a maioria dos diversos casos
de prisões, sequestros e desaparecimentos efetuados no marco da colaboração repressiva transnacional
entre as ditaduras civis-militares, alguns dos quais não resolvidos ainda hoje. E não só de argentinos.
Em março de 1974, o dirigente do PCB, David Capistrano da Costa, ex-militar e veterano da Guerra Civil
Espanhola, desapareceu por essa região junto com o motorista que guiava o Fusca que os transportava,
24
José Roman. Seus corpos nunca foram encontrados.
Sobre algumas das vítimas não se sabe quase nada, como Gregorio Bregstein, argentino
supostamente desaparecido em Uruguaiana em janeiro de 1975; ou Cristina Glória Fiori de Vina, quem
25
foi sequestrada por policiais civis do Rio Grande do Sul a mando de um policia federal argentino.
Também ocorreu na região de Uruguaiana, em junho de 1980, os sequestros de Jorge Oscar
Adur e Lorenzo Ismael Viñas, militantes da organização Montoneros que viajavam desde a Argentina em
ônibus de linha internacional, quando foram interceptados e capturados, e desaparecendo a seguir.

Via Uruguai
Outra forma de sair da Argentina para chegar ao Brasil era pelo Uruguai. Entretanto, este país
também estava sob uma ditadura civil-militar análoga e colaboradora dos regimes vizinhos. Assim, cruzar
o Rio da Prata, por via fluvial ou aérea, representava um enorme risco dado à vigilância constante, não
só no porto e nos aeroportos de Buenos Aires, mas também do outro lado, onde os serviços de
informação argentinos tinham agentes e “marcadores” ou “dedos”, ex-militantes quebrados que
(geralmente após serem reduzidos a farrapos humanos graças à tortura) se convertiam em delatores
26
para identificar aqueles que tentavam escapar. Por via terrestre, a opção era atravessar pelas pontes
sobre o Rio Uruguai que ligam cidades da Argentina e do Uruguai, respectivamente: Gualeguaychú -
Fray Bentos, Colón – Paysandu e Concórdia - Salto. Segundo Bonasso, pelo menos em Salto, havia
27
espiões e “dedos” a espreita dos fugitivos. As vantagens residiriam principalmente em encurtar uns 100
km o trajeto a fronteira brasileira, assim como o tempo de viagem. Todavia os riscos eram dobrados, pois
havia que atravessar duas alfândegas, a uruguaia e a brasileira. Apesar disso, alguns se arriscaram por
este caminho de solitárias e intermináveis estradas cortando o pampa oriental. O fato de a região ser
escassamente povoada talvez aumentasse psicologicamente a sensação de segurança nos refugiados.
Um entrevistado nos contou um episódio onde ele e um amigo brasileiro foram à Argentina,
supostamente a passeio, mas na verdade a “missão” era trazer na volta para o Brasil uma jovem
argentina perseguida na sua cidade.

22
Entrevista com Diego Martinez Agüero realizada em Porto Alegre - 21/08/2010.
23
Correio do Povo, 30/06/1977, p. 5. Arquivo Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – Porto Alegre.
24
COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLITICOS; INSTITUTO DE ESTUDOS
SOBRE A VIOLÊNCIA DE ESTADO. Dossiê Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São
Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009, p. 546-550.
25
Ambos os casos constam nos registros da CONADEP: Gregorio Bregstein – Actor 5918; Gloria Cristina Fiori de
Viña – Actor 6561.
26
BONASSO, Miguel. Recuerdo de la muerte. Buenos Aires: Brugera, 1984, p. 373-375.
27
Idem.

326
Un día, me dice un amigo: “bah, está fea la cosa. Ya le reventaron la casa, si no se
va…”Y fuimos a pasear con un amigo a La Plata y a la vuelta, en la ruta cerca de
Gualeguaychú, me la pasaron de un auto para el mío y pasamos la frontera… ¡Que
irresponsabilidad! Y mi amigo brasilero, el pobre no entendía nada (…) era un tipo
buenísimo, si supiera…La pusimos en el auto brasilero (…) entré por Fray Bentos y en
Uruguay ni se dieron cuenta que estaba en el auto, sentada, cuando hicimos los
trámites. Ni preguntaron. Y fuimos y la largamos en Passo Fundo y de ahí se fue a
28
Suecia.

Destaca-se a solidariedade dos que já estavam no Brasil como um elemento importante com o
qual podiam contar aqueles que precisavam fugir da Argentina. O caso acima também é exemplar por
nos revelar a articulação de redes solidarias que não necessariamente se vinculavam à militância, mas
que seriam impensáveis sem a existência de profundos laços de amizade e diversas identidades em
comum.

Via Aérea
Empresas de transporte aéreo também foram empregadas para retirar pessoas da Argentina,
embora menos utilizado em função do custo elevado das passagens aéreas na época. Como todos os
outros métodos descritos anteriormente, a fuga utilizando o transporte de linha internacional apresentava
igualmente um alto risco, devido à estrita vigilância nos aeroportos e a presença de delatores nos
mesmos. Em março de 1980, Horacio Domingo Campiglia e Monica Pinus de Bistock foram detidos logo
ao desembarcar no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.
Pelo menos um de nossos entrevistados havia escolhido este meio convencional para sair do
seu país. A travessia de Carlos para o Brasil, em outubro de 1976, foi feita em diversas escalas para não
chamar a atenção, como se fosse uma viagem de negócios qualquer: (...) había un vuelo de Aerolíneas
29
que salía de Aeroparque a Iguazú, o Formosa, y de ahí a São Paulo. Antes de deixar a Argentina, na
última escala, apresentou um “convite” de um suposto congresso para poder justificar a continuação da
viagem para o exterior. Como ele mesmo colocou: (…) así pude salir, seguro que fue un riesgo terrible...
30
el ’76. Pero, todavía no habían empezado a hacer ‘dedo’ en la frontera.
De fato, embora a fuga de Carlos tenha ocorrido durante o auge da repressão, por outra parte,
ele teve a sorte que nos primeiros meses de 1976 o regime argentino ainda não havia começado a
utilizar-se dos tais “marcadores”.

Via Foz do Iguaçu


Outro ponto bastante utilizado para sair da Argentina era a fronteira Puerto Iguazú–Foz do
Iguaçu, no Paraná. Devido ao grande fluxo de turistas internacionais na região durante a maior parte do
ano devido às Cataratas do Iguaçu, o controle migratório tornava-se aqui muito dificultoso para as
autoridades fronteiriças, mesmo que naquele tempo a travessia ainda era feita por balsa. Daí em diante
seguia-se geralmente para São Paulo, Rio de Janeiro ou descia-se ao Rio Grande do Sul, pois
permanecer em qualquer zona de fronteira era muito arriscado.
Foz do Iguaçu também foi palco das trágicas mortes de Liliana Goldemberg e Eduardo
Escabosa. No dia 02 de agosto de 1980, o casal de militantes montoneros suicidou-se ingerindo
31
cápsulas de cianureto, pouco antes de ser entregue a militares argentinos.

28
Segunda entrevista com E. T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.
29
Entrevista com Carlos Claret realizada em Foz do Iguaçu - 18/09/2009. CLARET, Carlos A. Requerimento Certidão
de Inteiro Teor, Estocolmo, 05/02/2009, p.1. Acervo Movimento Justiça e Direitos Humanos (MJDH) – Porto Alegre.
30
Entrevista com Carlos Claret realizada em Foz do Iguaçu - 18/09/2009.
31
Clamor, Dez de 1980, p. 48-49, APOF, cx. 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura - Porto Alegre.

327
Figura 3. Detalhe da zona da tríplice fronteira Brasil, Paraguai e Argentina. Esta região parece ter sido uma das
rotas de fuga prediletas dos perseguidos políticos argentinos. O intenso tráfego de turistas, praticamente durante o
ano todo, facilitava o mimetismo dos exilados entre a massa de visitantes das Cataratas e do Parque Nacional do
Iguaçu. Na época, a travessia ainda era feita por balsas, já que a ponte somente seria inaugurada em 1985 (Fonte:
http://www2.mre.gov.br/daa/puertigua.htm ).

Um de nossos entrevistados, militante no Partido Socialista de los Trabajadores (PST) havia feito
esse mesmo trajeto, apenas alguns meses antes. Jose e sua companheira atravessaram a fronteira
32
utilizando-se do pretexto de “conhecer as cataratas” do lado brasileiro . Ele estava preocupado que as
autoridades detectassem seu documento de identidade adulterado. Mas, ironicamente, o que salvou o
entrevistado foi levar na bagagem um inusitado florete de esgrima. O guarda se encantou tanto com a
peça e com a conversa de Jose sobre esgrima que sequer prestou atenção ao documento, liberando a
passagem do casal. Tentando controlar o nervosismo, para dar verossimilhança ao seu papel de turista,
eles embarcaram na balsa. José descreveu intensamente o momento gravado na lembrança:

(…) la sensación de estar en la mitad del río, viste, que vas llegando, vas llegando...
¡te da un ataque de euforia! (...) el clima (...) ¡nunca había sentido tanto calor en mi
vida! Yo estaba muy nervioso, con bronca, con rabia. Me sentía como si me hubieran
dado una patada en el culo. Todo me parecía feo (...) Brasil era maravilloso, pero yo
33
estaba tenso, muy tenso... .

Sua abalada estrutura emocional e psíquica distorcia as imagens reais e lhe produzia
sensações contraditórias. O Brasil que ele via era “outro”, não era “normal” e sequer parecia ser real.
Mais se assemelhava a um cenário de filme de terror, apesar de perceber que estava rodeado por uma
natureza exuberante. Doía-lhe quase fisicamente a terrível sensação de haver sido arrancado, expulso
da sua terra, e jogado numa dimensão incógnita a qual teve de enfrentar para poder continuar a viver.

32
Entrevista com J. V. realizada em Porto Alegre - 20/06/2007.
33
Entrevista com J. V. realizada em Porto Alegre - 20/06/2007.

328
Considerações finais
As narrativas e a documentação aqui analisada nos oferecem uma mostra, mesmo que em
escala reduzida, do que foi o complexo e diverso processo de saída da Argentina em função da brutal
repressão, iniciada antes do Golpe de 24 de março de 1976, mas exacerbada e ilimitada após a tomada
do poder pela junta militar.
Em virtude do descompasso temporal entre ambas as ditaduras, o Brasil costumou ser percebido
pelos argentinos como um “mal menor”, se comparado aos outros países vizinhos, onde a repressão
ainda estava na ordem do dia. Assim, o Brasil da “Anistia, lenta gradual e restrita” de Geisel oferecia-se,
aparentemente, como um “corredor” ou “trampolim” para os refugiados. No entanto, o Estado brasileiro
(que desde 1969 já tinha uma política xenófoba, discriminatória e intolerante contra os estrangeiros em
geral assentada nas bases da Segurança Nacional) reforçou um comportamento discriminatório
especificamente direcionado aos argentinos. Desse modo, para os militares brasileiros, ao emigrado
“argentino” cabia normalmente, na melhor das hipóteses, o adjetivo “suspeito”; quando não “terrorista” ou
“subversivo”, somente por sua condição de origem nacional. Ou seja, para a ditadura civil-militar
brasileira, os argentinos que circulassem ou estivessem no Brasil deveriam ser monitorados de perto,
pois a vigilância específica deste grupo nacional (dadas suas peculiares características e contexto do
movimento migratório) se inseria na própria dinâmica da chamada Doutrina de Segurança Nacional.

329
Mortos e desaparecidos políticos no Brasil, no Chile e no Uruguai: notas sobre a atuação
dos seus familiares

1
Carlos Artur Gallo

Resumo: O presente trabalho analisa as formas como os familiares de mortos e desaparecidos políticos
no Brasil, no Chile e no Uruguai se organizaram para reivindicar a elucidação das circunstâncias dos
crimes cometidos pelo aparato repressivo, a responsabilização dos culpados e a preservação da
memória sobre o período. Dividido em duas seções, na primeira é realizado um breve panorama
histórico sobre o período autoritário em cada um dos países mencionados. Na sequência, apresenta-se
os principais fatos referentes à trajetória destas associações.
Palavras-chave: Direito à Memória e à Verdade – Direitos Humanos – Ditaduras de Segurança Nacional
– Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Abstract: This work analyzes the ways in which the families of dead and disappeared political activists in
Brazil, Chile and Uruguay have organized themselves to demand the clarification of the circumstances of
the crimes committed by the repressive apparatus, the accountability of perpetrators and preserving the
memory of the period. Divided into two sections, at the first we do a brief historical overview of the
authoritarian period in each countrie. Finally, we present the main facts concerning the history of these
associations.
Keywords: Human Rights – Families of the Dead and Disappeared Political Activists – Right to Memory
and the Truth – Security National Dictatorships.

Introdução
A partir das ditaduras de Segurança Nacional instauradas no Cone Sul entre as décadas de 1950
e 1970, muitos indivíduos que eram considerados inimigos do Estado de acordo com a Doutrina de
Segurança Nacional – DSN foram perseguidos e presos pelo aparato repressivo, sendo, nas situações
2
extremas, mortos ou desaparecidos . O presente estudo foca nas estratégias utilizadas por familiares de
mortos e desaparecidos políticos durante a Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), chilena (1973-
1990) e uruguaia (1973-1985) para tratar da questão. Dividido em duas partes, na primeira apresenta-se
algumas informações sobre o período autoritário em cada um dos países referidos; na segunda parte do
estudo, são analisadas as principais políticas públicas elaboradas para dar conta do saldo da repressão
3
referente aos mortos e/ou desaparecidos políticos nestes países .

A Ditadura Civil-Militar no Brasil, no Chile e no Uruguai


A ditadura civil-militar brasileira foi instaurada entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964,

1
Formação acadêmica: Doutorando em Ciência Política, Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
e-mail: galloadv@gmail.com
2
AMNISTÍA INTERNACIONAL. Desapariciones. Madrid: Editorial Fundamentos, 1983; _____. Crímenes sin
castigo: homicidios políticos y desapariciones forzadas. Madrid: EDAI, 1993; ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO.
Brasil: nunca mais. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1985; BRASIL; Secretaria Especial de Direitos Humanos; Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e direito à verdade. Brasília: SEDH,
2007; _____; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos
desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010.
3
Salienta-se que, embora o uso das expressões desaparição forçada, desaparecimentos e desaparecidos tenha
adquirido novos contornos no cenário internacional a partir das experiências repressivas vivenciadas na
Guatemala, no Chile e na Argentina (AMNISTÍA INTERNACIONAL. Desapariciones. Madrid: Editorial
Fundamentos, 1983. p. 7-8), tais situações não se tratam, contudo, de uma novidade criada pelas ditaduras
latino-americanas. Neste sentido, as origens do desaparecimento de opositores civis como uma política
repressiva específica de um Estado autoritário podem ser encontradas na doutrina contrarrevolucionária
francesa, na Alemanha nazista e na Espanha franquista (PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay, no hay...
Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. 874f. [2v.].
Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. p. 613-614).

330
estando o seu acontecimento intimamente relacionado, além das motivações econômicas e
marcadamente anticomunistas, à desestabilização política vivenciada no país desde agosto de 1961,
4
quando ocorrera a renúncia do presidente Jânio Quadros . Naquele momento, para que ocorresse a
posse do vice João Goulart na Presidência da República, foram necessárias, além de uma transação
política que adotou temporariamente o parlamentarismo para o país, ampla mobilização popular
encabeçada, no Rio Grande do Sul, pelo governador Leonel Brizola, que criou a “Rede da Legalidade”.
Garantida a posse do presidente João Goulart, retardou-se o golpe por pouco mais de dois anos e meio.
Em 1964, os mesmos setores das Forças Armadas que em 1961 tentaram impedir a posse de
João Goulart por verem nas suas ações tendências comunistas, mas, desta vez contando com o apoio
de elites, efetivam o golpe frustrado anteriormente, iniciando no país um período de 21 anos
autoritarismo. Na sua vigência, entretanto, foi criado um sistema político bipartidário dividido entre
ARENA (Aliança da Renovação Nacional, partido governista) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro,
abrangendo a oposição consentida), sendo realizadas eleições periódicas e regulares para os cargos
dos poderes legislativos municipal, estadual e federal.
5
De acordo com Carlos H. Acuña e Catalina Smulovitz :

As estratégias políticas dos militares de início foram eficazes, mas, [...] de 1968 a 1974,
a sistemática exclusão política e econômica que caracterizava as políticas do regime
militar levou a um aprofundamento do conflito com a oposição que não estava integrada
no jogo bipartidário. A taxa média de crescimento anual, que entre 1962-1967 foi de
3,7%, subiu para 10,1% durante o período de 1968-1974. Este processo foi
acompanhado por uma exclusão distributiva consistente: a renda da metade mais pobre
da população caiu em relação à renda nacional total de 17%, em 1960, para 14,9% em
1970, e 12,6% em 1980, enquanto a renda dos dez por cento mais ricos da população
cresceu, nesses anos, de 39,6% para 46,7% e 50,9%, respectivamente.

Em 1974, época em que o regime ainda colhia os frutos do crescimento econômico e a


neutralização dos opositores que atuavam fora do sistema partidário atingia seu auge, Ernesto Geisel
(ditador-presidente entre 1974 e 1979) formata e inicia, de dentro do próprio governo, um projeto de
transição “lenta, gradual e segura” que se estenderia até 1985. Altamente pactuado e controlado ao
longo da sua trajetória, o processo de transição no Brasil garantiu que os envolvidos com a repressão
não fossem punidos pelas violações aos direitos humanos praticadas, garantindo ainda aos setores da
elite civil diretamente relacionados à ditadura sua sobrevivência enquanto atores relevantes no novo
6
cenário político .
Os golpes de Estado no Chile e no Uruguai ocorreram em 27 de junho e em 11 de setembro de
1973, respectivamente. Se as Forças Armadas uruguaias não intervinham diretamente na política interna
7
do país desde 1890, quando se deu o golpe de Estado no Uruguai, a situação foi diversa . Decorrente de
uma crise política que teria iniciado em 1967, quando houve a radicalização de grupos de esquerda e o
governo de Pacheco Areco (1967-1972) declarou-lhes ilegais, na consolidação do Estado de exceção, e
apesar da interferência direta dos militares, o país esteve sob a presidência do civil Juan María
Bordaberry, que fechou o Congresso e criou um Conselho de Estado para assumir as funções
legislativas.
A transição no país começou em julho de 1981, em virtude da detrioração do prestígio dos
militares junto à sociedade. A proposta feita pelas Forças Armadas para alguns dirigentes políticos em
direção à abertura, consistiu em quatro pontos: 1º) ela seria realizada em três anos e contando com a
participação de membros partidários em um Conselho de Estado; 2º) seria organizado um estatuto para
criação de partidos políticos; 3º) haveria uma reforma constitucional; 4º) seriam realizadas eleições
8
diretas . Em 1984, quando foi concretizado o último item referido, iniciou-se o último ato da ditadura
uruguaia, que se encerraria em 1985, com a posse do presidente eleito, Juan María Sanguinetti, do
Partido Colorado.
O golpe no Chile, embora também tenha sido levado a cabo no mesmo contexto internacional

4
MARTINS, Luciano. A “liberalização” do regime autoritário no Brasil. In: O’DONNELL, Guillermo; SCHMITTER,
Philippe C.; WHITEHEAD, Laurence (Org.). Transições do regime autoritário: América Latina. São Paulo:
Vértice / Revista dos Tribunais, 1988; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o
anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2002.
5
ACUÑA, Carlos H.; SMULOVITZ, Catalina. O ajuste das Forças Armadas à democracia: sucessos, fracassos e
ambigüidades no Cone Sul. In: JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a democracia:
direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV, 2006. p. 47.
6
ARTURI, Carlos S. O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista de
Sociologia e Política, n.17, Curitiba, nov. 2001. p. 11-12.
7
VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. Uruguai: autoritarismo e ditadura. In: PADRÓS, Enrique Serra (Org.). As
ditaduras de Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Corag, 2006. p. 23.
8
VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. Op. cit. p. 29.

331
que os demais, deu-se em um ambiente político-institucional diferente do caso brasileiro e uruguaio, uma
vez que neste país já existia um sistema partidário consolidado pelo menos desde a década de 1930,
9
quando havia sido estabelecido um “Estado de Compromisso” que garantia a estabilidade . O golpe foi
possível porque a partir de 1964, quando a Democracia Cristã chilena obteve ampla maioria, o pacto
político que vinha sendo respeitado desde 1932 começou a ser deteriorado, sendo a crise agravada com
a eleição do socialista Salvador Allende.
No que diz respeito à transição chilena, a mesma se deu de forma organizada. A realização de
eleições presidenciais, que ocorreriam em 1989, foi prevista na Constituição Federal promulgada em
1980. Em 1988, em um plebiscito que, também previsto na nova Constituição, seria realizado para que o
povo decidisse se o ditador-presidente Augusto Pinochet continuaria no poder por mais 8 anos, votaram
pelo “não”, e, no ano seguinte, elejeram seu novo presidente.
10
Sobre a transição no Chile, Francisco Rojas Aravena salienta que:

Após o triunfo do “não”, iniciou-se um processo de transição que partiu de um ponto


muito diferente daquele de outras transições latino-americanas. No caso chileno, as
Forças Armadas não foram derrotadas militarmente. Não estavam divididas e
mantinham parcelas significativas de poder e autonomia. O projeto e o contexto
constitucional não foi negado, apenas sofreu ajustes parciais. Finalmente, uma questão
muito importante, as Forças Armadas deixavam o poder com uma auto-estima muito
elevada. Além disso, cabe lembrar, a coalizão militar-civil que governou o país até 1990
obteve 43% dos votos no plebiscito.
11
Notas sobre a luta dos familiares brasileiros, chilenos e uruguaios.
Iniciada na vigência do próprio regime autoritário de forma quase que instintiva, uma vez que a
busca de informações sobre seus familiares começava a partir do momento em que havia a falta total de
notícias dos militantes, em alguns casos, ou a descoberta das suas prisões, em outros, a luta dos
familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil ganha força na década de 1970. Foi nesta
época, por exemplo, que, rompendo com as barreiras da própria repressão e contando com o apoio dos
grupos de defensores dos direitos humanos que se estruturavam, foram organizadas, atreladas às
cerimônias religiosas em memória de algumas vítimas do aparato repressivo, manifestações públicas de
repúdio ao regime e à violência de Estado por ele praticada desde 1964.
Mas, se na clara tentativa de tornar público uma situação dramática que era muitas vezes
negada ou minimizada pelos porta-vozes do Governo ditatorial, e, com frequência, adulterada ou
ignorada pelos meios de comunicação silenciados pela censura, a demanda dos familiares ía tomando
forma e fortalecendo-se com a organização de manifestações quase que artesanais, um ponto de
inflexão nesta trajetória pode ser encontrado na campanha pela Anistia. Saindo de uma atuação ainda
embrionária e integrando-se às mobilizações em prol da anistia, os familiares potencializaram o alcance
de suas demandas, que, se num primeiro momento estiveram fragmentadas pela própria força da
repressão e da censura, encontraram junto aos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA’s) um ambiente
propício à sua apresentação, através de uma causa compartilhada coletivamente.
A luta pela anistia não teve o alcance pretendido pelos movimentos organizados em torno dos
CBA’s, embora possa ser interpretada como uma conquista parcial. Como resultado, foi editada uma lei
que não libertou todos os presos políticos, não legislou a respeito da situação dos mortos e
desaparecidos, limitando-se a possibilitar aos seus familiares a obtenção de um atestado de paradeiro
ignorado já previsto na legislação civil vigente à época, e, lançando as bases para que a punição dos
agentes da repressão não ocorresse, consolidou uma política de esquecimento junto à sociedade em
12
nome da reconciliação nacional .
9
ACUÑA, Carlos H.; SMULOVITZ, Catalina. Op. cit. p. 54-55.
10
ROJAS ARAVENA, Francisco. A detenção do general Pinochet e as relações civis-militares. In: D’ARAÚJO,
Maria Celina; CASTRO, Celso (Org.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2000, p. 133-134.
11
Parte dos dados que apresento sobre a trajetória dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil
foram extraídos de minha dissertação de mestrado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em março de 2012. Para maiores informações, consultar:
GALLO, Carlos Artur. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça: um estudo sobre o trabalho
da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. 117f. Dissertação (Mestrado em
Ciência Política). Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
12
MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências: um estudo do
caso brasileiro. 213f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003; _____. Anistia de 1979: o que restou da lei forjada pelo
arbítrio? In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Org.). Desarquivando a
ditadura: memória e justiça no Brasil. v.2. São Paulo: HUCITEC, 2009.

332
Repercutindo diretamente na organização dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, o
fim das mobilizações a favor de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” e, consequentemente, da
desarticulação dos CBA’s, representou para este segmento não só o fim de um momento de luta
compartilhada em torno de uma causa geral, mas também o início de uma nova reestruturação na
trajetória da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP). É no período
imediatamente posterior a agosto de 1979, que, enfrentado inicialmente a desmobilização de seus
participantes, a Comissão toma sua forma atual, constituindo-se como uma organização autônoma, que,
composta por familiares e/ou pessoas próximas às vítimas fatais da repressão, engaja-se na luta pela
elucidação das circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos ocorridos, pela identificação e
punição dos envolvidos e pelo resgate dos seus restos mortais.
Caracterizada por uma baixa organicidade, os integrantes da Comissão nunca chegaram, em
13
mais de 30 anos de atividades, a constituir uma estrutura organizacional interna real , estando a sua
atuação, inclusive, marcada por uma grande informalidade. Inicialmente melhor organizados em São
Paulo e no Rio de Janeiro, ao longo da década de 1980 integrantes da CFMDP assistiram, além da
formação de outras entidades vinculadas à causa dos direitos humanos – caso dos Grupos Tortura
Nunca Mais –, o retorno de lideranças políticas que estavam exiladas, o fim do sistema bipartidário, o
surgimento de novos partidos políticos, o movimento Diretas Já e a derrocada do regime autoritário.
No que diz respeito às estratégias postas em prática pela Comissão, e, uma vez que suas
demandas foram preteridas quando da edição da Lei de Anistia, coube aos familiares, pouco a pouco,
angariar apoio político à causa e, dentro do possível, legitimá-la publicamente. Até o início dos anos de
1990, quando ocorreu a abertura da Vala de Perus (onde ocorreram sepultamentos clandestinos de
vítimas da repressão), a criação de uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo e de uma Comissão de
Investigação para busca das ossadas de militantes mortos e desaparecidos, a CFMDP passou por
momentos delicados, nos quais, para persistir na luta pelo reconhecimento das suas demandas, foram
enfrentados, além da falta de apoio dos parlamentares e das dificuldades de veiculação das suas
histórias na opinião pública, problemas diretamente relacionados à falta de recursos, que limitava as
14
possibilidades concretas de ação dos seus integrantes .
Em 1995, após mais de vinte anos de luta, e, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi
aprovada a Lei nº 9.140 (chamada de Lei dos Mortos e Desaparecidos), na qual o Estado brasileiro
assumiu a sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos de 136 pessoas. Ademais, a partir da
15
edição da lei foi criada a CEMDP , que, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República desde 2003, passou a analisar e julgar os casos de morte e de
desaparecimento de militantes políticos e a fixar indenizações aos familiares, sendo reconhecidos 221
16
casos em quase 11 anos de trabalho .
Ainda que a Lei tenha possibilitado inegáveis avanços, a CFMDP aponta os seguintes problemas
decorrentes da sua aprovação: 1º) eximiu o Estado de identificar e responsabilizar os agentes envolvidos
nos crimes ocorridos durante a ditadura; 2º) legou o ônus da prova aos familiares; 3º) não obrigou o
Estado brasileiro a localizar os corpos dos desaparecidos; 4º) excluiu a possibilidade de outros
interessados ingressassem com o pedido de reconhecimento das mortes e/ou desaparecimentos,
reforçando, com isto, a ideia de que os interessados são única e exclusivamente parentes das vítimas,
17
algo que nega o caráter público da questão .
Posteriormente, os familiares obtiveram outras duas conquistas no âmbito legislativo. Em 2002,
com a Lei nº 10.536, o período de responsabilidade do Estado brasileiro, inicialmente compreendido
entre 1961 e 79, foi ampliado até 1988. Em 2004, com a Lei nº 10.875, foram consideradas mortes
passíveis de responsabilização do Estado e fixação de indenização aquelas que se deram em

13
Em 1993 foi criada uma instituição, o Instituto de Estudos Sobre a Violência do Estado, com sede em São Paulo,
para representar formalmente a causa da CFMDP. Suzana K. Lisbôa refere (In: Entrevista, Porto Alegre, 16 de
junho de 2011) que, na prática, sua criação não acarretou nenhuma alteração na atuação dos familiares, sendo
a sua estrutura interna, inclusive, uma mera formalidade cumprida para que eles, caso fosse necessário,
tivessem uma personalidade jurídica à disposição.
14
Entrevista com Suzana K. Lisbôa, Porto Alegre, 16 de junho de 2011.
15
Em 2007, o trabalho desenvolvido pela CEMDP desde a sua criação até 2006 foi publicado em um livro-
relatório, intitulado Direito à memória e direito à verdade, contando, na sua elaboração, com a participação de
integrantes da CFMDP e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que, sendo
uma publicação oficial, além de ter procedido à apresentação de um histórico da Comissão e do seu trabalho,
fez um resgate da história política brasileira a partir dos anos de 1960, reconhecendo a responsabilidade do
Estado pelas mortes e desaparecimentos, e, ainda, apresentando a listagem e o resumo dos casos analisados e
julgados. Esta publicação encontra-se disponível em: <http://www.sedh.gov.br>.
16
BRASIL; Secretaria Especial de Direitos Humanos; Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Direito à memória e direito à verdade. Brasília: SEDH, 2007. p. 17-18, 41.
17
ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985).
2.ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 33-34.

333
manifestação pública mediante repressão policial, bem como os casos de pessoas que cometeram
18
suicídio para evitar prisão ou devido às sequelas da tortura .
Com o início dos trabalhos da “Comissão Nacional da Verdade” (CNV) em 2012, novas
perspectivas com vistas ao esclarecimento das circunstâncias desses casos, além da averiguação dos
locais de sepultamento e dos envolvidos nos crimes, despontaram como algo a ser realizado pelos
membros da Comissão. Na prática, as possibilidades de efetivação das expectativas dos familiares para
com a CNV restam reduzidas por que, além de ter sua atuação atrelada-limitada à interpretação da
19
anistia recíproca , e, consequentemente não visar a realização da Justiça, vê-se pelos menos outros
três fatores limitadores: 1º) o fato de a Lei que cria a CNV estender o lapso temporal a ser investigado
para o período compreendido entre 1946 e 1988, ou seja, um período que, embora abranja os 21 anos
de ditadura, é extenso demais; 2º) o prazo de funcionamento da Comissão, que terá 2 anos para
investigar situações ocorridas em um país do tamanho do Brasil; 3º) o número reduzido de integrantes
da CNV, limitado a 7 membros.
No que se relaciona à organização dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no
Uruguai e no Chile, observa-se que a mesma não é muito diferente da trajetória dos familiares no Brasil,
uma vez que as demandas que canalizariam a formação de grupos de familiares teve início, nos dois
países analisados, no exato momento em que as violações aos direitos humanos dos opositores da
ditadura ocorriam, valendo-se, para tanto, de todos os meios possíveis (como a realização de passeatas
e de denúncia para organismos internacionais).
Começando na segunda metade da década de 1970, a formulação das demandas dos familiares
dos “detenidos desaparecidos” no Uruguai, contudo, difere do ocorrido com os familiares no Brasil
porque, conforme visto, os familiares brasileiros centralizaram sua atuação em torno de uma estrutura
única saída dos CBA´s: a CFMDP. No Uruguai, até que a causa fosse centralizada em torno do grupo
“Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos” (MFUDD), no ano de 1983, existiram pelo
menos três grupos que tratavam, de forma fragmentada e independente, da questão: a “Asociación de
Familiares de Uruguayos Desaparecidos” (AFUDE), formada por exilados políticos uruguaios vivendo na
Europa; o grupo de “Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos en Argentina”, atuante desde
20
1977; e os “Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos em Uruguay”, criado em 1982 .
Basicamente, como objetivo da sua luta, os familiares uruguaios buscam:

[...] conocer la suerta de estas personas, procurar la verdad y la justicia y la no


reiteración de estos crímenes. Familiares ees El lugar donde se busca asesoramiento,
se piensa cada situación política, se evalúa y se decide, se logran y se organizan los
21
apoyos .

No que diz respeito às políticas da memória formuladas e implementadas no Uruguai após a


transição à democracia, e buscando atender, ainda que de forma pouco exitosa, as demandas dos
familiares, parece importante destacar que:

En el caso de las experiencias de violaciones sistemáticas desarrolladas durante la


dictadura uruguaya, esta lucha por la memoria fue un largo proceso que lentamente
rompió los cercos de las experiencias privadas de las víctimas, sus familiares y
compañeros de militancia. En primer término se debió superar la indiferencia o negación
mayoritaria de la sociedad uruguaya, hasta constituir, con el advenimiento de los
compañeros de las víctimas al gobierno, un discurso también oficial pero que pretende
consagrar una visión posible de los hechos. El periplo histórico uruguayo referido a las
violaciones sistemáticas de los derechos humanos perpetrados por los agentes del
Estado muestra un conflicto pretendido de historias oficiales o puntos finales que
procuran de algún modo establecer de manera totalizadora una verdad definitiva sobre
22
los hechos .

Embora o processo de rememoração-resgate-reflexão possa ser referido como lento, note-se


que, no Uruguai, políticas da memória começaram a ser postas em prática logo após o final do período

18
ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Op. cit. p. 35-36.
19
A interpretação da anistia recíproca foi reforçada no Brasil, em abril de 2010, com o julgamento da ADPF nº 153.
Nesse julgamento, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte do Judiciário no país, decidiram,
por maioria dos votos dos seus membros, que a Lei da Anistia de 1979 era válida, e que a interpretação
corrente, de que agentes da repressão foram anistiados sem sequer serem levados a julgamento, devia ser
mantida em nome da reconciliação nacional.
20
Ver site do MFUDD: <http://www.desaparecidos.org.uy>.
21
Ver Histórico dos Familiares em: http://www.desaparecidos.org.uy/>.
22
MIRANDA, Javier (Coord.). Itinerários de los derechos humanos en el Uruguay 1985-2007: temas, actores y
visibilidad pública. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung / CLAEH, 2009. p. 25.

334
23
autoritário . Ainda em 1985, foi criada a “Comissão Investigadora sobre a Situação de Pessoas
Desaparecidas e Fatos que a Motivaram”. Passados seis meses desde o início dos seus trabalhos, a
Comissão apresentou um relatório à Suprema Corte uruguaia, relatando que 160 pessoas haviam
morrido devido à violência estatal perpertrada durante a ditadura. O alcance do relatório, embora tenha
se tratado de uma política implementada em âmbito nacional, foi pequeno, visto que os trabalhos
realizados por seus membros dedicaram-se exclusivamente à questão da identificação de desaparecidos
políticos.
Ainda no Uruguai pós-ditadura, duas leis foram editadas para tratar das violações: a Lei de
Anistia (Lei nº 15.737 de 1985) e a Lei de Caducidade (Lei nº 15.848 de 1986). A anistia uruguaia
anistiara todos militantes envolvidos em crimes políticos, comuns e militares cometidos no país a partir
de 1962. A Lei de Caducidade, destinada aos setores que sustentaram o golpe, e, dentre eles, dos
agentes da repressão, declarou que, em nome da transição e da ordem, caducara o direito de punir
estas pessoas. Duas tentativas de revogar esta Lei foram implementadas, sem sucesso, em 1986 e
2009. Apesar de não terem sido vitoriosos com os plebiscitos de 1986 e 2009, os setores que eram
favoráveis à punição dos responsáveis pela repressão têm obtido certo êxito no Poder Judiciário
uruguaio, onde, como consequência da absorção da normativa internacional de proteção aos direitos
humanos, foram julgados e condenados alguns dos seus ex-ditadores.
Em 2000, outra medida implementada e que parece despontar como ponto de inflexão na
tratamento do tema no Uruguai foi a criação, pelo presidente Jorge Batlle, de uma Comissão da Verdade,
chamada oficialmente de “Comissão para a Paz”. Vindo na esteira das tentativas do Governo esclarecer
24
o caso “Gelman” , a Comissão foi criada através de um decreto onde estabeleceu-se que:

Se entiende necesario para consolidar la pacificacion nacional y sellar para siempre la


paz entre los uruguayos, dar los pasos posibles para determinar la situación de los
detenidos desaparecidos durante el régimen de facto, así como de los menores
25
desaparecidos en similares condiciones .

Com duração inicialmente prevista para atuar durante o período de 120 dias, a Comissão teve
seu prazo de funcionamento ampliado. Quando chegou ao final do seu mandato, em abril de 2003, seus
membros realizaram um novo e detalhado relatório sobre os casos de presos desaparecidos no país e
nele sugeriram ao governo que revisasse sua legislação de forma que os crimes de tortura, genocídio e
26
desaparecimento forçado fossem integrados à legislação nacional uruguaia . Ainda que estas medidas
possam ter sido identificadas como saldo positivo da atuação da Comissão uruguaia, é possível,
contudo, apontar limitações em seus resultados.
Nesse sentido, ao tentar avaliar os resultados dos mecanismos adotados no Uruguai para tratar
27
da questão da violência praticada durante e em nome do regime autoritário, Pablo Galain Palermo
constata que:
Con la creación de la Comisión para la Paz [...] se procura “la paz del alma” y se
pretende ofrecer información verídica y oficial a las víctimas para cumplir con los
principios del derecho a la verdad y a la reparación, así como reconstruir la memoria
colectiva. Sin embargo, esa información se limitó a los casos de desapariciones forzadas
y no hizo referencia a los sistemáticos crímenes de tortura practicados
indiscriminadamente a todos los detenidos durante la dictadura. Además, la Comisión
para la Paz no tuvo potestades para determinar responsabilidades ni para investigar, por

23
BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos
desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 49-52; PALERMO, Pablo Galain. Justicia de transición:
informes nacionales (Uruguay). In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justicia de
Transición: con informes de América Latina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación Konrad-
Adenauer-Stiftung, 2009. p. 391-414.
24
O caso “Gelman” relaciona-se ao processamento, junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), do
caso de sequestro, morte e desaparecimento da militante política argentina María Claudia García de Gelman,
nora do poeta argentino Juan Gelman. Sequestrada nos marcos da Operação Condor em Buenos Aires em
1976 e grávida de sete meses, María Claudia foi levada para Montevidéu, onde teve a filha María Macarena, e,
pouco tempo depois de dar à luz à criança, desapareceu. Sua filha, María Macarena foi adotada ilegalmente e
criada por uma família de oficiais uruguaios, tendo sua verdadeira identidade restabelecida somente no ano
2000. Em março de 2011 a CIDH condenou o Estado uruguaio a esclarecer as circunstâncias da morte e
desaparição e a atribuir as devidas responsabilidades aos oficiais envolvidos no crime. Em março de 2012, o
presidente do Uruguai, José Mujica, em cumprimento à determinação da sentença da CIDH reconheceu
publicamente a responsabilidade do Estado uruguaio e pediu desculpas oficias pelos crimes cometidos contra a
família de Macarena.
25
MIRANDA, Javier. Op. cit. p. 33.
26
BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos
desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 50-51.
27
PALERMO, Pablo Galain. Op. cit. p. 411.

335
lo que la verdad oficial recabada es parcial y no tiene por ende capacidad para cerrar la
transición.

No que diz respeito aos primeiros anos de atuação e organização da causa dos familiares no
Chile, familiares chilenos foram apoiados por organizações religiosas, como a “Vicaría de Solidaridad”,
sendo grande parte deste apoio obtido com o surgimento, fortalecimento e/ou ampliação dos
28
movimentos em defesa dos direitos humanos na América Latina. De acordo com Kathryn Sikkink :

O golpe de 1973, no Chile, foi um divisor de águas na criação da rede de direitos


humanos na América Latina. [...] Em resposta ao golpe chileno, aumentaram os
membros das organizações existentes de direitos humanos, tais como a Anistia
Internacional (tanto na Europa como nos Estados Unidos), e novas organizações foram
criadas, inclusive o Washington Office on Latin America [Escritório de Washington para a
América Latina] e o Council on Hemispheric Affairs [Conselho sobre Assuntos
Hemisféricos]. As organizações chilenas que se formaram para enfrentar a repressão do
governo, especialmente o Comitê pela Paz (depois conhecido como Vicaría de
Solidaridad), tornaram-se modelos para os grupos de direitos humanos em toda a
América Latina assim como fontes de informação e inspiração para os ativistas de
direitos humanos nos Estados Unidos e na Europa.

Verifica-se a existência de uma diferença na organização da causa por parte dos familiares no
Brasil e no Chile quando observa-se que, enquanto no Brasil as demandas dos familiares de mortos e
desaparecidos políticos foi centralizada em uma organização específica, a CFMDP, no Chile a questão
também foi trabalhada de forma fragmentada. Isto é, foram criadas organizações para tratar dos
29
interesses doa familiares dos mortos, a Agrupación de Familiares de Ejecutados Políticos en Chile
(AFEP), e outra para dar conta das famílias de desaparecidos, a Agrupación de Familiares de Detenidos
30
Desaparecidos (AFDD).
A ditadura chilena terminou em março de 1990. Em abril, quando foi criada a “Comissão
Nacional de Verdade e Reconciliação”, começou a ser trilhado o caminho das políticas da memória
31
naquele país , fato este que permite, portanto, que se diga que falar nos caminhos do Direito à Memória
e à Verdade no Chile é falar sobre os resultados do trabalho da Comissão da Verdade. Também
conhecida como “Comissão Rettig”, por ter sido presidida pelo advogado Raúl Rettig Guissen, a
Comissão da Verdade chilena produziu um relatório sobre as maiores violações aos direitos humanos
ocorridas entre 1973 e 1990 no Chile, e teve uma vigência de nove meses. Apesar de serem enfrentados
32
problemas referentes à aceitação do relatório por parte das Forças Armadas e do Judiciário , como
decorrência da implementação dessa primeira política de larga escala para recomposição-enfrentamento
da memória do período autoritário chileno, encontra-se, em 1992, a criação da “Comissão Nacional de
Reparação e Reconciliação”.
Desde a sua criação, a Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação reparou familiares de
mortos e desaparecidos políticos, realizou programas de apoio social e legal à estas famílias; organizou
centros de documentação sobre o período; promoveu a busca dos cadáveres das vítimas do aparato
repressivo estatal; além de ter empreendido uma série de políticas educacionais voltadas para a
consolidação do respeito aos direitos humanos. A partir de 2003, uma nova comissão (“Comissão
Nacional sobre Prisão Política e Tortura”) também passou a reparar pessoas que foram presas e/ou
torturadas pela ditadura. Quando o relatório produzido na primeira etapa de trabalhos desta nova
comissão estava para ser publicado, em novembro de 2004, o Comandante-Chefe das Forças Armadas
chilenas reconheceu publicamente a responsabilidade das Forças Armadas pelos crimes cometidos.
33
Sobre a atuação das Comissões chilenas José Luis Guzmán Dalbora diz:

Tanto la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación como la Comisión Nacional


sobre Prisión Política y Tortura dieron cima a sus informes con un conjunto de
propuestas de reparación, reconciliación y prevención. No todas, ni siquiera la mayoría,

28
SIKKINK, Kathryn. A emergência, efetividade e evolução da Rede de Direitos Humanos da América Latina. In:
JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a democracia: direitos humanos, cidadania e
sociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV, 2006. p. 102-103.
29
Para mais informações sobre o trabalho da AFEP, ver: <http://www.afepchile.cl>.
30
Para mais informações sobre o trabalho da AFDD, ver: <http://www.afdd.cl>.
31
BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos
desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 44-49; GUZMÁN DALBORA, José Luis. Justicia de
transición: informes nacionales (Chile). In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justicia
de Transición: con informes de América Latina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación Konrad-
Adenauer-Stiftung, 2009. p. 201-234.
32
GUZMÁN DALBORA, José Luis. Op. cit. p. 226.
33
GUZMÁN DALBORA, José Luis. Op. cit. p. 219.

336
se han incorporado formalmente al ordenamiento jurídico. Las leyes aprobadas hasta el
momento tratan del asunto más urgente, la reparación de las víctimas y sus familias. En
cambio, no se divisan aún las modificaciones que demanda el ordenamiento jurídico
para adecuarlo al derecho internacional de los derechos fundamentales, imprimir en el
entero aparato público las valoraciones resultantes y sancionar convenientemente los
atentados más graves contra los bienes jurídicos respectivos.

Apesar dessas críticas e de a Lei de Anistia chilena não ter sido revogada ou revista até a
atualidade, processos judiciais baseados na normativa internacional, que compreende os crimes de
tortura, morte e desaparecimento de pessoas como crimes contra a humanidade, têm permitido que
alguns agentes sejam processados. Pinochet, entretanto, faleceu em 2006 sem ter sido definitivamente
julgado em nenhum dos mais de 200 processos que tramitavam contra ele na Justiça chilena.
Comparado às experiências ditatoriais de países vizinhos como a Argentina e o Chile, o saldo da
repressão relativo aos mortos e desaparecidos políticos no Brasil é menos impactante. Enquanto na
Argentina estima-se em aproximadamente 30 mil o número de desaparecidos, e, no Chile, este cálculo
fica em torno de 5 mil ocorrências, no Brasil foram identificados pela CFMDP, até a atualidade, 436
34
casos de mortes e/ou desaparecimentos políticos . O baixo saldo de vítimas fatais da repressão
brasileira comparada à argentina e chilena, contudo, não deve servir como fundamento à deslegitimação
da causa dos familiares de uma país ante os demais, afinal, o que deve ser levado em conta não é o
número de casos, mas sim a existência ou não desta modalidade de crime político.

Considerações finais
Ainda que o período autoritário nos países estudados contenha particularidades evidentes no
que diz respeito ao momento do golpe, à duração da ditadura e ao processo de transição, como aspecto
semelhante no saldo da repressão praticada verifica-se a existência de mortos e desaparecidos políticos.
Como é possível depreender da exposição, encontra-se no Brasil, Chile e Uruguai uma série de
avanços e limitações atrelados à forma como a memória do período foi trabalhada a partir da transição à
democracia. Mecanismos jurídicos para que as demandas dos familiares das vítimas sejam atendidas,
existem. O que persiste, no entanto, é uma dificuldade – visivelmente maior no caso brasileiro – de se
enfrentar-refletir pública e coletivamente sobre a questão. As possibilidades são muitas, mas, sem
debater o tema e resgatar essas memórias, as mesmas continuarão sendo tão limitadas quanto as
políticas elaboradas em cada país.

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34
ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Op. cit.

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338
A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul e a formação de redes de
solidariedade na fronteira Brasil-Uruguai

1
Marla Barbosa Assumpção

Resumo: O artigo se propõe a analisar a formação de redes de solidariedade e resistência na fronteira


entre o Brasil e o Uruguai, desencadeadas a partir da deflagração do golpe de Estado em 1964. Com a
instauração de uma ditadura civil-militar, a fronteira do Rio Grande do Sul assume um papel de destaque
no cenário nacional e internacional em função de sua localização privilegiada, tanto do ponto de vista da
repressão como da resistência. Nesse contexto, o Uruguai se destacou como o principal endereço
daqueles que foram impelidos a deixar o Brasil e a fronteira terrestre entre ambos os países – sobretudo
as cidades de Santana do Livramento e Rivera – foi a rota de saída mais utilizada. Ademais de se
constituir como uma região de passagem, ela se configurou enquanto local de permanência para muitos
militantes que se deslocaram para o outro lado da linha divisória, fato este que desencadeou a formação
das mencionadas redes.
Palavras-chave: ditadura civil-militar – fronteira – redes de solidariedade

Abstract: The article aims to analyze the formation of solidarity and resistance networks on the border
between Brazil and Uruguay, unleashed by the deflagration of the coup d'etat in 1964. With the
establishment of a civil-military dictatorship, the border of Rio Grande do Sul assumes a prominent role in
the national and international scene due to its prime location, both from the point of view of repression
and resistance. In this context, Uruguay stood out as the main address of those who were compelled to
leave Brazil and the land border between the two countries - especially the cities of Rivera and Santana
do Livramento - was the most used exit route. In addition to constitute itself as a region of passage, it was
configured as a place of residence for many activists who have moved to the other side of the dividing
line, a fact that prompted the formation of the mentioned networks.
Keywords: civil-military dictatorship – border – solidarity networks

O presente artigo objetiva analisar as dinâmicas diferenciadas atravessadas pelo Rio Grande do
Sul, tendo em vista a sua configuração fronteiriça, no contexto desencadeado com a deflagração do
golpe de Estado no Brasil, em 31 de março de 1964. Nesse momento, o estado era uma rota quase
obrigatória de passagem para os demais países do Cone Sul, despertando a preocupação das
autoridades brasileiras, que almejavam por fim ao fluxo de pessoas que atravessavam a fronteira gaúcha
rumo aos territórios vizinhos – sobretudo em direção ao Uruguai, nos primeiros anos que se seguiram ao
golpe – ou que reingressavam no Brasil, na tentativa, muitas vezes, de conectar o exílio com uma
debilitada resistência interna. Nesse sentido, percebe-se que o Rio Grande do Sul configurou-se como
um estado-chave no mapa da mobilidade tanto da repressão quanto da resistência.
Tendo em vista os mencionados aspectos, o presente trabalho analisará a constituição de redes
de solidariedade na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, destacadamente em Santana do Livramento e
Rivera, que auxiliaram na passagem e, inclusive, na permanência de diversas pessoas que foram, direta
ou indiretamente, impelidas a deixar o território brasileiro no contexto supracitado. Com esse intuito,
acredita-se ser de suma importância discutir as dinâmicas específicas características do ambiente
fronteiriço para, em seguida, analisar a estruturação das mencionadas redes.

O intercâmbio político entre os agentes fronteiriços de Brasil-Uruguai


Primeiramente, é importante destacar que a noção de fronteira, que constitui um dos cernes da
presente análise, apresenta um caráter, aparentemente, contraditório, mas que lhe é inerente, qual seja,
sendo o limite entre objetos ou fenômenos, ela tanto separa, quanto os põe em contato. Em outras
palavras, conforme afirmaram Adriana Dorfman e Gladys Rosés, “a fronteira é uma característica de
qualquer objeto ou fenômeno, cuja existência possua extensão e fim. O fim, ou fronteira, representará
2
também o contato, caso haja um objeto ou fenômeno de igual natureza adjacente ao primeiro.”
1
Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda com bolsa CNPq
do Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS. E-mail: marlalua@yahoo.com.br
2
DORFMAN, Adriana; ROSÉS, Gladys. Regionalismo fronteiriço e o “Acordo para os nacionais fronteiriços

339
Ainda que noções como limite e fronteira sejam antigas, esses termos passaram a ser
sistematicamente utilizados e alcançaram acentuada relevância para os campos da Geografia Política,
Ciência Política, entre outros, sobretudo com o desenvolvimento do sistema de estados nacionais. A
partir de então, noções como a de limite internacional tornaram-se centrais nas análises que versam
sobre esse tema. Segundo Lia Osório Machado,

O limite internacional foi estabelecido como conceito jurídico associado ao Estado


territorial no sentido de delimitar espaços mutuamente excludentes e definir o perímetro
máximo de controle soberano exercido por um Estado central. Apesar de não ter vida
própria nem existência material (por definição, a linha é abstrata e não pertence a
nenhum dos lados) o limite internacional não é uma ficção e sim uma realidade
3
geográfica que gera outras realidades.

A noção de fronteira internacional, por sua vez, refere-se a uma realidade mais complexa do que
aquela encerrada pelo limite, já que

o conceito de fronteira internacional se refere a uma área indefinida, uma zona


percorrida pelo limite internacional e que se aproxima da noção geográfica de região. No
entanto, na realidade o ambiente geográfico de fronteira é mais complexo do que aquele
simbolizado pelo limite, pois se faz pela territorialização de grupos humanos e de redes
de circulação e intercâmbio, unidos pela permeabilidade dos limites estatais através da
4
comunicação entre populações pertencentes a diferentes sistemas de poder territorial.

A posição geográfica singular, responsável por marcar o começo e o fim do estado nacional,
confere à fronteira uma territorialização definida pela proximidade entre populações separadas, ainda
que, muitas vezes, apenas formalmente, pelo limite internacional. Tal noção de zona de fronteira refere-
se a um espaço relacional e não dicotômico. E é justamente a partir dessa concepção relacional que não
constitui um paradoxo o fato de a zona de fronteira ser ao mesmo tempo lugar de comunicação e troca e
também de tensão e conflito, visto ser intrínseco à fronteira reunir noções aparentemente contraditórias.
Nesse sentido, no que concerne à fronteira internacional, percebe-se um espaço onde se entrelaçam as
influências dos estados em contato, a partir do compartilhamento de diversas práticas no âmbito social,
econômico, político e cultural. Assim, ao mesmo tempo em que distingue os territórios estatais, a
fronteira não os torna estanques, uma vez que o fluxo de pessoas, objetos, práticas, informações, entre
outros, cruza permanentemente o limite.
Em síntese, em relação às noções elencadas anteriormente, pode-se dizer que

enquanto a fronteira pode ser um fator de integração, na medida que for uma zona de
interpenetração mútua e de constante manipulação de estruturas sócio-políticas e
culturais distintas, o limite é um fator de separação, pois separa unidades políticas
soberanas e permanece como um obstáculo fixo, não importando a presença de certos
5
fatores comuns, físico-gegráficos ou culturais. (grifos da autora)

No tocante ao estado do Rio Grande do Sul e, mais especificamente, à sua região fronteiriça,
foco da presente análise, pode-se dizer que este constitui um espaço diferenciado em relação aos
centros – políticos e econômicos – do país. Nesse sentido, vale destacar que a região de fronteira é
marcada por

uma sobreposição de dinâmicas sócio-econômicas diversas que a tornam uma difusa


zona de transição que acaba diferindo das características nacionais dos países em
contato. [...] Conseqüentemente, forma-se um novo espaço que contém territórios dos
países em contato e que sofre, além dos influxos das economias nacionais, uma
6
dinâmica própria resultante da interação social dos agentes fronteiriços.

brasileiros e uruguaios”. In: OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de (Org.). Território sem Limites: estudos sobre
fronteiras. Campo Grande: Editora UFMS, 2005. p. 196.
3
MACHADO, Lia Osório. Cidades na fronteira internacional: conceitos e tipologia. In: NÚÑEZ, Ángel; PADOIN,
Maria Medianeira; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de (Org.). Dilemas e diálogos platinos: fronteiras. Dourados:
Ed. UFGD, 2010. p. 60-61.
4
Ibid., p. 62-63.
5
MACHADO, Lia Osório. Limites, Fronteiras, Redes. In: STROHAECKER, Tânia Marques; DAMIANI, Anelisa;
SCHÄFFER, Neiva Otero; BLAUTH, Nely; DUTRA, Viviane Saad (Org.). Fronteiras e espaço global. Porto
Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre, 1998. p. 42.
6
PADRÓS, Enrique. Fronteiras e Integração Fronteiriça: elementos para uma abordagem conceitual. Humanas:
Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, Porto Alegre, v. 17, n. 1/2, jan./dez. 1994. p.
69.

340
O mencionado estado possui uma linha divisória internacional com a Argentina e o Uruguai de
7
aproximadamente 1700 Km de extensão, dos quais 1003 Km de divisa com a Banda Oriental. É válido
ressaltar, ainda, que o Rio Grande do Sul é o único estado brasileiro a fazer fronteira com o Uruguai. Ao
longo desse limite, com o passar do tempo, estabeleceram-se pares de centros urbanos entre as
populações orientais e suas contrapartes brasileiras, que se tornaram “áreas privilegiadas de contato e
8
entrelaçamento político” .
Ao se trabalhar com um espaço singular, como é o caso das cidades de fronteira – foco do
presente trabalho –, é importante levar em consideração que nem todas as interações que conformam as
dinâmicas locais possuem respaldo institucional. Trata-se, muitas vezes, de práticas originárias de
9
demandas que não são legitimadas juridicamente, mas que são características do cotidiano fronteiriço.
Ainda que um panorama histórico de formação da fronteira aqui analisada esteja além dos
propósitos do presente trabalho, acredita-se ser importante destacar que, a despeito dos conflitos serem
a tônica da região quando de seu delineamento, este espaço, desde muito cedo, foi marcado por
10
relações de troca que forjavam uma história com elementos em comum. Nesse sentido, constituiu-se,
com o passar dos anos, uma situação de cooperação, chave para o entendimento das relações
traçadas entre os agentes fronteiriços desde então:

La realidad espacial de contacto e integración de hecho, genera un espacio fronterizo


singular, son verdaderos territorios diferenciados con códigos comunes que le dan
sentido. Ese espacio fronterizo de interrelaciones de profundidad histórica, de cotidianos
que construyen el presente, escapa a limitaciones políticamente impuestas, hacia
11
construcciones comunes y específicas.

Cabe ainda destacar que a fronteira analisada configura o que muitos autores chamam de
cidades-gêmeas, ou seja, “núcleos localizados de um lado e outro do limite internacional, cuja
interdependência é com freqüência maior do que de cada cidade com sua região ou com o próprio
12
território nacional.” Essas aglomerações próximas ao limite internacional – dentre as quais destacam-
se as mencionadas cidades geminadas – possuem potencial acentuado de atuarem como nódulos
articuladores de redes locais, regionais, nacionais e transnacionais. Vale ainda ressaltar que, a despeito
de operarem, em maior ou menor grau, em todo território nacional, “essas redes encontram um ambiente
que favorece o estabelecimento de nódulos de articulação transnacionais nas cidades de fronteira,
13
particularmente nas cidades situadas na divisa internacional – o ambiente fronteiriço.”
Conforme se pode observar pelos aspectos supracitados, nesse espaço singular, as relações
travadas perpassam as mais variadas esferas da sociedade. Sendo assim, essa região era e é
impactada pelos fatos ocorridos em ambos os lados da linha demarcatória: “os acontecimentos políticos
daqui repercutiam lá e vice-versa. Isto é, na esfera política igualmente se manifestou a interação
inter-regional já anteriormente percebida nas imbricações socioeconômicas e culturais
14
antecedentes.” No tocante ao intercâmbio político nessa região de fronteira, vale destacar que este
remonta às primeiras tentativas de apropriação desse espaço. E esse entrelaçamento político, registrado
15
historicamente, chega até o presente momento.
É válido ressaltar também que a forte atração exercida pela região fronteiriça, e o decorrente
trânsito bilateral, era fonte de preocupação para as autoridades constituídas, especialmente em
conjunturas de conturbação política, quando a fronteira acabava atraindo os grupos sublevados:
“También en el plano político, la frontera se asume como ‘refugio’: Movimientos revolucionarios y
16
dictaduras han movilizado la búsqueda del ‘otro lado’ en ese sentido.” Este recurso foi historicamente
utilizado em diferentes contextos, sendo válido também em relação ao período abarcado pelo presente

7
SCHÄFFER, Neiva Otero. A especificidade funcional da urbanização na fronteira meridional do Estado. História
Debates e Tendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002. p. 136.
8
DORMAN; ROSÉS. In: OLIVEIRA, op. cit, p. 201.
9
OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de. Tipologia das relações fronteiriças: elementos para o debate teórico-
práticos. In: ______ (Org.), op. cit., p. 378.
10
SOUZA, Suzana Bleil et al. (Org.). Práticas de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre:
Ed. UFRGS / Instituto Goethe, 1995. p. 155.
11
BENTANCOR, Gladys Teresa. Las fronteras en un contexto de cambios: la vida cotidiana en ciudades gemelas -
Rivera (Uruguay) y Sant’Ana do Livramento (Brasil). Revista Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 2, n. 3, maio de 2008.
p. 24.
12
MACHADO, Lia Osório.Cidades na fronteira internacional... p. 66.
13
Ibid., p. 71.
14
RECKZIEGEL, Ana Luiza. A fronteira como marco das conexões políticas inter-regionais. História Debates e
Tendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002. p. 29.
15
BENTANCOR, op. cit, p. 28.
16
Ibid,, p. 35-36.

341
trabalho. Nesse sentido,

Ao longo do século XX, foi prática comum na política do Cone Sul a brusca mudança na
ordem do poder, com a substituição dos líderes e a perseguição dos derrotados. Como
consequência, sucederam-se os exílios, tendo como destino frequente a área
fronteiriça do país vizinho, lugar de asilo e proteção sem distanciamento, facilitado pela
familiaridade cultural e proximidade geográfica, e possibilitando a continuidade das
lutas. Esse foi o caso de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, entre muitos
outros. Da mesma forma, a repressão política durante o período ditatorial no Cone Sul
17
desconsiderou os limites nacionais e criou a região de ação do Plano Condor.

Assim, em 31 de março de 1964, com a deflagração do golpe de Estado no Brasil e a decorrente


instauração de uma ditadura de Segurança Nacional, o estado do Rio Grande do Sul – e, sobretudo, a
sua região fronteiriça – assume um papel de destaque, dentre outros motivos, em função de sua
localização privilegiada, tanto do ponto de vista da repressão como da resistência. Nesse contexto, o
Uruguai – que possuía uma longa tradição democrática e profunda solidariedade na acolhida aos
asilados políticos – se destacou como o principal endereço da primeira geração de exilados. Por essas
questões, possivelmente aliadas a outros motivos, o mencionado estado, ao possuir uma extensa e
importante faixa de fronteira com os países do Prata, torna-se central nesse contexto, despertando a
atenção dos agentes da repressão brasileira, que monitoravam a região no intuito, principalmente, de
pôr fim ao fluxo de pessoas que a atravessavam rumo, sobretudo, ao Uruguai, mas que também
procuravam reingressar no país, na tentativa, muitas vezes, de articular o exílio com uma debilitada
resistência interna. Tais elementos, somados a tantos outros, contribuíram para o clima de efervescência
política e, possivelmente, concorreram para que a região fronteiriça gaúcha sofresse um processo de
intervenção, por parte do Conselho de Segurança Nacional, em 1968.

Redes de solidariedade na fronteira de Santana do Livramento e Rivera


A ditadura civil-militar brasileira, desencadeada com o golpe de Estado em 1964, já em um
primeiro momento, repercutiu na fronteira de Santana do Livramento e Rivera. Nesse sentido, vale
destacar que o então prefeito petebista de Livramento, Sérgio Fuentes, criou um foco de resistência na
Prefeitura do Município com vistas a defender a ordem democrática e a apoiar o presidente deposto. É
patente, nesse momento, a participação e a solidariedade dos riverenses com os brasileiros de Santana
do Livramento, fruto, possivelmente, dos já citados vínculos existentes entre ambos os lados. Essa
região possuía forte influência do trabalhismo – um dos “inimigos internos” a ser combatido pelo novo
regime, segundo premissas da Doutrina de Segurança Nacional. De acordo com Marlon Assef,

[...] com o golpe já em andamento, nos primeiros momentos do dia 1º de abril, Sérgio
Fuentes decide dispor a Prefeitura Municipal como sede da resistência. No saguão do
prédio é instalado um transmissor de rádio, doado por militantes comunistas de Rivera.
Para lá se dirigem representantes sindicais, jornalistas, ativistas políticos e
18
simpatizantes do governo deposto.

Contudo, a percepção da efetivação do golpe, ainda nos primeiros dias de abril de 1964,
produziu forte impacto sobre a dinâmica fronteiriça e sobre os atores locais. Assim,

para os envolvidos diretamente com os partidos opositores e líderes sindicais, a saída


emergencial foi um breve resguardo em Rivera, à espera dos acontecimentos. A
movimentação dos atores políticos perseguidos e autoexilados começava a aumentar
dia a dia, conferindo outro perfil político à fronteira, renovando um ciclo que mais uma
19
vez abraçaria a região.

Dessa forma, o fluxo de pessoas proveniente de Livramento, e que se resguardou em Rivera,


assim como daqueles que vieram de diferentes regiões do país, e que atravessaram para o Uruguai, foi
aumentando paulatinamente. Para aqueles que optavam pelas mencionadas cidades gêmeas enquanto
rota de saída, a sobrevivência exigia uma carga de informações que incluía, dentre outras coisas, o
conhecimento do sinuoso traçado entre os dois países. E para ingressar no país vizinho era necessário
também burlar os complexos mecanismos de vigilância da fronteira.
Dentre aquelas famílias que se estabeleceram na fronteira Brasil-Uruguai após 1964, algumas já

17
DORFMAN; ROSÉS. In: OLIVEIRA, op. cit., p. 206.
18
ASSEF, Marlon. Retratos do exílio: solidariedade e resistência na fronteira. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009.
p. 65.
19
Ibid., p. 72.

342
possuíam laços de parentesco em Livramento e Rivera, o que certamente facilitou, em alguma medida, o
estabelecimento na região. Não obstante, outras pessoas lá chegaram com pouca ou nenhuma
referência. Em ambos os casos, a constituição de redes de solidariedade locais se mostrou de
fundamental importância para aqueles que lá se instalavam.
Assim, o êxito da passagem para o país vizinho dependia da conexão realizada, através de
militantes políticos, entre aqueles que almejam deixar o país e a base de apoio na cidade fronteiriça.
Inicialmente, o núcleo santanense do Partido Comunista Brasileiro (PCB), acostumado à clandestinidade
dos anos precedentes, assumiu a recepção aos que buscavam refúgio na região de fronteira. Vale
destacar que o PCB, justamente por estar na clandestinidade, reunia-se, muitas vezes, do lado uruguaio,
mesmo antes do golpe de Estado de 1964, conforme destacou Sérgio Alves Perez, filho de comunista
brasileiro exilado em 1950, em função do massacre responsável pela morte de militantes comunistas,
ocorrido na Praça Internacional situada na fronteira em questão. É válido ressaltar que o Partido
Comunista Uruguaio (PCU) também auxiliou aquelas pessoas que, por diversas razões, foram impelidas,
direta ou indiretamente, a deixar o território brasileiro, saindo pela fronteira estudada. Nas palavras do
próprio Sérgio, “o PCU cumpriu um papel fundamental em toda essa história, porque [...] se encarregou
20
de ajudar todas essas pessoas que passavam para o outro lado.” Essa ajuda, segundo relata, envolvia
desde a obtenção de comida até um lugar para se dormir. Estoecel Santana destaca também, em seu
depoimento, a participação de cidadãos uruguaios na constituição dessas redes locais: “Nós
tínhamos muito apoio dos uruguaios e de cidadãos brasileiros que moravam aqui [...] e do Partido
21
Comunista do Uruguai, que nos deu um grande apoio.”
A marcante atuação do PCB e do PCU se conjugava com a ação de diversos outros grupos
partidários ou não, como, por exemplo, religiosos e funcionários públicos locais de ambos os lados da
fronteira, assim como de diversas famílias. Além disso, estabeleceu-se uma rede de informações, que
envolvia contatos da polícia brasileira e uruguaia, assim como eram obtidos dados privilegiados do
próprio Exército, conseguidos, muitas vezes, através de redes de parentesco e amizades. Segundo
Edair Machado Pujol, “aqui na fronteira as pessoas eram solidárias. Às vezes, não eram nem políticos,
22
mas ajudavam. Não estavam nem envolvidas com política e ajudavam.” Assim, a colaboração de
cidadãos sem um histórico de envolvimento político – e, portanto, longe dos olhos da polícia – com
aquelas pessoas que necessitavam de auxílio para atravessar para o país vizinho foi de extrema
importância. O mencionado auxílio aos que se encontravam exilados na fronteira ou que a utilizavam
como rota de passagem ia desde a obtenção de algum emprego até algo para se comer, um lugar para
se dormir, etc. Conforme relatou América Ineu Chaves,

Na minha casa passaram inúmeros exilados. Tem uns que marcam a gente. Teve um
rapaz, Armênio, que era de São Paulo, de Santos. Era ele e uma irmã. E ele apareceu
na minha casa com os pés em carne viva. Ele veio de carona até Rosário. Ele
conseguiu carona com um caminhão. E de Rosário até chegar aqui em Rivera, ele veio
por dentro dos campos, para poder não passar nos controles. Chegou praticamente só
com a roupa do corpo, de pés descalços. E eu fiquei chocada de ver o estado dele. E
era um menino também. [...] e daí eu fui conseguir com um sobrinho do Santana [...]
23
roupa. Daí ele me levou roupa, levou calçado.

É importante lembrar que, normalmente, os exilados tinham o seu nível social rebaixado, dadas
as difíceis condições em que se encontravam em uma terra desconhecida: “Em geral, trata-se de um
processo penoso, agravado pelas carências materiais, pelo descontentamento da língua, da cultura
e dos trâmites burocráticos, pela falta de documentos, pela não rara impossibilidade de exercer a
24
profissão de origem.” Assim, a ajuda prestada por Estoecel Santana aos que lá chegavam sem
condições materiais de sobreviver foi fundamental. Estoecel empregava algumas pessoas como
professores no curso que fundara para conseguir permanecer na fronteira.
A partir dos relatos de Estoecel, pode-se perceber também que, a despeito de alguns militares e
policiais colaborarem com os exilados, segundo assinalado anteriormente, a vigilância era permanente:

E aí, por incrível que pareça, este é um fato interessante: os milicos passaram a estudar
lá [no curso fundado por ele]. Os militares, para fazer a escola militar. [...] Eu não podia
entrar aqui [Santana do Livramento], mas eles iam para lá [Rivera] [...] Aí, era gente que
estudava na polícia, e tinham também os que eram investigadores, que iam para aula

20
Entrevista concedida por Sérgio Alves Perez, 62 anos, em Santana do Livramento, em 18 de dezembro de 2012.
21
Entrevista concedida por Estoecel Ribeiro Santana, 72 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de
2010.
22
Entrevista concedida por Edair Machado Pujol, 67 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.
23
Entrevista concedida por América Ineu Chaves, 73 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.
24
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 28.

343
25
para observar.

A movimentação política na fronteira era intensa, a despeito da permanente vigilância a que


estavam sujeitos os que por lá passavam ou viviam. Antônio Apoitia Neto assinalou alguns dos
estratagemas utilizados para burlar esse controle:

[...] quando havia uma reunião importante, que era uma reunião secreta, com pessoas
que estavam foragidas da polícia, nós a fazíamos em um carro, dentro do automóvel, de
noite. [...] E a gente discutia uma série de coisas sobre política, pra tomar alguma
decisão sobre a passagem de algum fulano. E tinha um que ficava encarregado de
conseguir um papel da polícia uruguaia. [...] Havia muita gente [que ajudava], tinha
gente do Exército. [...] E isso era muito comum por aqui. E políticos passaram por
aqui, gente do governo federal. É a natureza da fronteira, não é? Atravessa a rua e está
26
do outro lado. Com documento falso, que tinha gente aqui que fazia.

Além de todo o auxílio prestado aos que necessitavam cruzar a fronteira ou que ali buscavam
abrigo, podemos notar os vínculos políticos que conectavam Montevidéu – conhecida, nesse momento,
como a “capital dos exilados” – a Porto Alegre, e vice-versa, assim como a atuação dos agentes
fronteiriços nessa empreitada. Nesse sentido, a partir dos relatos de Apoitia Neto, pode-se perceber a
conexão realizada entre o exílio daqueles que estavam em Montevidéu com a fronteira e, inclusive, com
a capital gaúcha:

Vim para Rivera, daí tirei a cidadania uruguaia e passei a ir freqüentemente a


Montevidéu. [...] Eu tinha a certidão de identidade com outro nome e eu viajava
freqüentemente a Montevidéu. Tive contato com o Brizola, com o Jango, com o Ministro
Amaury Silva [...] que estavam exilados lá, e com vários subversivos e exilados. E eu
usava documento falso. Eu usava outra identidade. E vivia indo de Rivera a Montevidéu.
E Porto Alegre também. Fazia documentos, passava pessoas. Eu era muito ativo
27
nesse sentido. [...] Eu era subversivo, inimigo do regime, da ditadura.

E acrescenta ainda: “a gente conseguia no Uruguai muito material político que fazia chegar até
Porto Alegre. Levava aquilo clandestinamente. Material de gente como o Jango, o Amaury, o Brizola
28
que estavam lá. Às vezes, correspondência.” Esses vínculos entre o lado uruguaio e brasileiro,
sobretudo no que concerne ao estado do Rio Grande do Sul, são patentes no relato de Vladimir
Fagúndez, que tece comentários acerca dessa peculiaridade de um exílio vivido sem que houvesse uma
marcante distância cultural, visto a proximidade espacial, social e cultural de ambos os países,
29
principalmente entre os uruguaios e os sul rio-grandenses.
A título de conclusão, torna-se necessário, ainda, tecer alguns comentários sobre a noção de
rede, que auxilia na compreensão de elementos que conectavam e possibilitavam a cooperação entre
aqueles que necessitavam sair do país ou também reingressar em território nacional, no contexto
supracitado, e os agentes fronteiriços que auxiliavam nesta empreitada. Para tanto, acredita-se que
alguns aspectos referentes às análises de redes de migração possam ser úteis à compreensão da
dinâmica estudada no presente trabalho, ainda que se trate de lógicas e processos, em muitos sentidos,
distintos.
Ao analisar a incorporação da abordagem das redes sociais às pesquisas de migração
internacional, no final da década de 1980, Gislene Santos afirma que os trabalhos que possuem o
mencionado enfoque evidenciaram que

[...] a migração internacional ocorre ancorada nos laços das redes pessoais de relações,
as quais, por sua vez, propiciam a circulação de informações e de pessoas, aliciando,
amenizando e facultando a travessia e o alojamento do migrante desde o seu lugar de
origem até o país de destino. Táticas e estratégias são acionadas entre os membros da
rede, possibilitando que pessoas circulem e habitem em diferentes lugares, fundando
30
um uso do território que não se conforma aos limites físicos das fronteiras nacionais.

25
Entrevista concedida por Estoecel Ribeiro Santana, 72 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de
2010.
26
Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.
27
Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.
28
Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.
29
Entrevista concedida por Vladimir Fagúndez, 61 anos, em Santana do Livramento, em 18 de dezembro de 2012.
30
SANTOS, Gislene Aparecida dos. Redes e território: reflexões sobre a migração. In: DIAS, Leila Christina;
SILVEIRA, Rogério Leandro Lima da (Org.). Redes, sociedades e territórios. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2005. p. 53.

344
A autora conclui também, ao analisar estudos que focalizam a maneira como se operacionalizam
processos de migração, e assentada em argumentos presentes nesses trabalhos, que “a rede social da
31
migração formou-se a partir de redes pessoais que existiam antes da ação migratória.” Nesse sentido,
no tocante à presente pesquisa, podemos inferir que os laços sociais existentes antes da eclosão do
golpe de 1964 mostraram-se de fundamental importância para a estruturação das redes de solidariedade
na fronteira estudada, que contaram com a participação de cidadãos brasileiros e uruguaios, tendo em
vista os já mencionados contatos existentes nas cidades geminadas.
Diferentes relações são experimentadas pelos membros que se conectam através da rede,
32
dentre as quais se destacam as relações de amizade e parentesco . Em relação a esta última, conforme
sustenta Douglas Massey, “são uma das mais importantes bases da organização social da migração e as
33
conexões familiares são um dos mais seguros laços dentro da rede.” Conforme se pode perceber,
através da análise das dinâmicas das redes de solidariedade na fronteira, as relações pessoais, dentre
elas as familiares, tiveram um papel de suma importância no auxílio prestado aos que ali buscavam
abrigo.
Seguindo ainda os referenciados estudos, Gislene Santos conclui que “pertencer à rede social
implica oportunizar recursos e informações, o que permite ao migrante amenizar as dificuldades de sua
34
travessia, desde a sua partida até a hospedagem no local de destino e a garantia do emprego.” Nesse
sentido, o auxílio prestado seja na passagem para o Uruguai, na acolhida de militantes em moradias na
cidade de Rivera, seja ainda na obtenção de um emprego – conforme relatado por Estoecel Santana –
evidencia a importância do papel desempenhado por essas redes fronteiriças de solidariedade. Sob essa
ótica, é emblemática a tentativa de Claudio Gutiérrez – que teve que sair do país, em função da
condenação pelo Superior Tribunal Militar, da qual foi vítima em outubro de 1969 – ao tentar criar uma
rede de apoio na fronteira Livramento-Rivera em 1972:

Estabelecer-me em Rivera, construir uma infra-estrutura para permitir a passagem de


militantes, sem nenhum contato e sem dinheiro, revelou-se uma tarefa impossível. Por
volta de junho, me convenci da inviabilidade de minha missão naquelas condições e
35
retornei a Montevidéu.

No relato supracitado, é patente a importância das mencionadas redes, uma vez que a atuação
solitária mostrava-se, muitas vezes, de difícil execução. Percebe-se, pois, a importância dos agentes
fronteiriços nesse contexto, que, de acordo com suas possibilidades, resistiram e burlaram os
mecanismos de vigilância e repressão da ditadura, seja através de uma postura de enfrentamento mais
explícita, seja através do auxílio aos que necessitavam.

Considerações finais
No presente artigo, buscou-se evidenciar que o Rio Grande do Sul, por ser um estado que
apresenta uma situação excepcional, acabava exigindo um permanente alerta e acompanhamento por
parte das forças de segurança. Nesse sentido, desde a deflagração do golpe de Estado, a fronteira
brasileira passou a ser vigiada, principalmente na divisa com o Uruguai, já que muitos daqueles que
foram perseguidos ou ameaçados pelo novo regime solicitaram asilo político neste país, ingressando no
mesmo através da fronteira gaúcha. Vale destacar que a atuação dos agentes fronteiriços de ambos os
países, tanto no tocante ao auxílio aos que por lá passavam, quanto na obtenção de recursos para que
esses permanecessem na fronteira, foi de vital importância diante da nova conjuntura política
atravessada pelo país. Nesse sentido, acredita-se que, para uma adequada compreensão desse
processo, é necessário atentar para os mencionados vínculos característicos do ambiente fronteiriço em
questão, que datam já dos momentos iniciais em que ocorreu o delineamento dessa fronteira.
Por fim, vale destacar que a região de fronteira do estado gaúcho, que era um espaço-chave no
mapa da mobilidade de militantes e, como decorrência, do aparato repressivo brasileiro, gradualmente,
passou a ter as suas contrapartes fronteiriças marcadas pelo clima de insegurança, resultante da
paulatina deterioração da democracia uruguaia, que culminou, em 1973, com o golpe de Estado no país
vizinho.

Referências Bibliográficas:

31
Ibid., p. 54.
32
Ibid., p. 67.
33
MASSEY, Douglas et al. Return to aztlan. Los Angeles: University of California Press, 1987. apud SANTOS. In:
DIAS; SILVEIRA, op. cit.,p. 53-54.
34
SANTOS. In: DIAS; SILVEIRA, op. cit., p. 55.
35
GUTIÉRREZ, Claudio. A guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999. p. 98.

345
ASSEF, Marlon. Retratos do exílio: solidariedade e resistência na fronteira. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2009.
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gemelas - Rivera (Uruguay) y Sant’Ana do Livramento (Brasil). Revista Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 2, n.
3, maio de 2008.
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346
Madres de Plaza de Mayo: o movimento que enfraqueceu o regime militar argentino
(1976 – 1983)

1
Arianne Chiogna
2
Bruna Cardoso

Resumo: O presente artigo tem como finalidade abordar a segunda fase da ditadura militar na Argentina.
Iniciando desde o contexto chave desencadeador da repressão contra o comunismo que foi a Guerra
Fria. O foco deste artigo é a formação do grupo Madres e Abuelas da Plaza de Mayo, onde as mães dos
desaparecidos tiveram repercussão internacional na busca dos seus entes queridos e como auxiliaram
no enfraquecimento do regime militar argentino.
Palavras–chave: Madres e Abuelas da Plaza de Mayo – Terrorismo de Estado – Argentina – Segurança
Nacional.

Em 1945, após seis anos de morte e destruição resultados na Segunda Guerra Mundial, a
Grande aliança (os EUA, a Grã-Bretanha e a URSS) conseguiu por fim derrotar as forças do Eixo
(Alemanha, Itália e Japão). Com o mundo abaixo de escombros no pós-guerra, restaram apenas dois
países em pé: os Estados Unidos da América e a União Soviética, as chamadas superpotências.
Pouco antes de deixar o cargo em julho de 1945, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill,
proferiu um discurso em Missouri, acompanhado pelo presidente dos Estados Unidos, Harry Truman.
Direcionado ao público americano e a opinião pública, Churchill dizia falar em nome pessoal e não em
posição oficial. Seu discurso simbolizaria a troca de mãos do centro imperial ao mesmo tempo em que,
3
impulsionava a transição no caminho da Guerra Fria .

Uma sombra desceu sobre o cenário até bem pouco iluminado pela vitória aliada.
Ninguém sabe o que a Rússia Soviética e sua organização comunista internacional
pretendem fazer no futuro imediato, ou quais os limites, se há, de suas tendências
expansionistas e de proselitismo. ... De Stettin, no Bálico, até Trieste, no Adriático, uma
cortina de ferro foi baixada por meio do continente Europeu. Atrás delas estão as
capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga,
Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas essas famosas cidades e as
populações a volta delas estão na esfera soviética, mas um controle intenso e cada vez
mais forte de Moscou. Só Atenas, com suas glórias imortais, é livre de decidir seu futuro
numa eleição observada pelos britânicos, americanos e franceses. ... Quaisquer que
sejam as conclusões que possam tirar desses fatos, e fatos realmente são, sem dúvida
não estará entre elas a de que essa é a Europa libertada que lutamos para conseguir,
4
nem que encerre os elementos essenciais de uma paz permanente .

De acordo com Magnoli, com seu discurso, Churchill ajudaria a dar um novo foco à política
internacional das nações ocidentais e a mudança do inimigo, que antes era o nazismo alemão e o
fascismo italiano, para ser a partir de então a União Soviética e os países aliados. Em fevereiro de 1947,
o embaixador britânico nos EUA comunicava, em Washington, a suspensão de ajuda inglesa para os
governos pró-ocidentais da Turquia e Grécia e solicitava que os EUA assumissem a sustentação daquela
posição estratégica na política balcânica. A Grã-Bretanha começava a sair de cena para dar espaço aos
EUA e a URSS no sistema de poder internacional
O discurso também ajudou a criar o imaginário que a URSS e a organização comunista
internacional tinham “tendência expansionista” derivado de um antagonismo inconciliável com o mundo

1
Graduanda do 7º semestre da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
ari.chiogna@gmail.com (51) 93445005
2
Graduanda do 7º semestre da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
bruucardoso@gmail.com (51) 94587863
3
PASCUAL, Alejandra Leonor, Terrorismo de Estado. Brasília: Editora UnB. 2004. p.36.
4
MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 36.

347
capitalista. Em março de 1947 na Conferência Interamericana para Manutenção da Paz e Segurança no
Continente, o presidente Truman proclamava a doutrina que levou seu nome e consistia na contenção do
5
expansionismo soviético e comunista .
Conforme a doutrina Truman, os EUA deveriam auxiliar as nações a se manter livres e manter
suas instituições políticas quando ameaçadas pelas tentativas de agressão, sobretudo por governos
6
totalitários . A doutrina é considerada o início das disputas geopolíticas da Guerra Fria, e foi aprofundado
com o anúncio do secretário de Estado, George Marshall, de um plano que visava o apoio econômico e
militar dos EUA à Grécia e à Turquia, bem como outros países europeus – tal apoio foi denominado de
7
plano Marshall .
A expressão Guerra Fria foi usada para refletir uma confrontação múltipla (econômica, política,
diplomática, cultural, de propaganda) entre as duas potências, que questionavam a maneira incessante a
8
distribuição mundial dos fluxos de influência e de poder .
Para reforçar a política anticomunista americana foi importante para o país se basear na
segurança nacional para conter a ideologia inimiga. De acordo com Pascual, a segurança nacional talvez
não soubesse muito bem o que estava defendendo, mas sabia muito bem de quem estava se
defendendo: do comunismo internacional. O comunismo estava onipresente e para lutar contra ele, era
necessário um conceito flexível; assim em qualquer lugar onde se descobrisse aparente manifestação
9
comunista, o Estado estaria presente para intervir na defesa da segurança nacional .
Os EUA atribuíam-se a missão de defender o mundo livre contra o comunismo, como já haviam
feito contra o nazismo e o fascismo; consideravam que existia uma ameaça comunista em qualquer país
que deixasse de ser favorável a eles. Transmitiam aos demais países a ideia de sua incapacidade de se
defenderem sozinhos do comunismo e a necessidade de se aliarem ao plano de segurança americano,
pois a sua segurança e a segurança dos EUA eram inseparáveis. Era necessário que aceitassem a
concepção de que o mundo estava dividido em dois blocos: o mundo comunista e o mundo das nações
10
livres do Ocidente; deviam acreditar que o destino do país estava associado ao destino americano .
A Doutrina de Segurança Nacional teve grande influência ideológica e teórica no fundamento
dos regimes cívico-militares na América Latina, justificando a emergência e o protagonismo das Forças
Armadas no cenário político latino-americano dos anos 60 em diante. Refletindo a lógica bipolar da
Guerra Fria e as novas estratégias de dominação dos EUA sobre a América Latina, a Doutrina de
Segurança Nacional se disseminou através das Academias e Escolas de Guerra, formando quadros
especializados a partir de preceitos básicos: a lógica da bipolaridade, a delimitação de zonas de
influência pelas superpotências, a satanização do inimigo, a introdução da ideia de que o Estado e a
11
nação correm riscos com o comunismo e necessitam agir de acordo com a política anticomunista . Para
as ditaduras de Segurança Nacional, a identificação de um “inimigo interno” é a justificativa para explicar
os fracassos políticos governamentais, prejudiciais pela necessidade de combater a subversão. O que
resulta na restrição da liberdade e dos direitos individuais e sociais. Sendo assim, a militarização do
Estado se apresenta como a única forma de resistir a um “império do mal” crescente na Ásia, África e
ameaçador na América. A melhor forma de obter eficiência ao combater a subversão seria ampliar a
ação e o controle sobre a sociedade. O controle ao “mal maior” explicava muitas coisas. As críticas feitas
pela oposição eram consideradas como antipatrióticas e atenuava contra os “interesses da nação”. Logo
um Estado forte, autoritário, estável e militarizado era considerado o melhor contra os inimigos
comunistas. A segurança na América Latina foi fortemente vinculada à segurança norte-americana e
constituíram uma guerra contra revolucionária iniciada nos anos 60, emoldurada pela Doutrina de
Segurança Nacional e implementadas através de políticas de terrorismo de Estado, particularmente em
ditaduras emergentes no Brasil (1964), Uruguai (1973), Chile (1973), Argentina (1976), além da Bolívia e
12
do Paraguai .
A partir da administração Kennedy, a Doutrina de Segurança Nacional passou a ter uma
incidência especial sobre o continente latino americano. Coincidiu essa orientação, com o processo

5
MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 37.
6
PASCUAL. Op. Cit. p. 38.
7
XAVIER, Fernanda Ollé. Episódios da Guerra Fria: seu início meio e fim. In: Revista Diálogo e interação. V. 04,
2010. p. 06.
8
MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 39.
9
PASCUAL. Op. Cit., p. 39.
10
COMBLIM apud PASCUAL. Op. Cit., p. 40.
11
PÁDROS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai (1968-
1985): do pachecato à ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 2005. p. 184.
12
PÁDROS. Op. Cit., p. 186.

348
revolucionário cubano e a identificação do avanço do inimigo comunista na região, bem como pelo
aprofundamento das contradições socioeconômicas do decorrente aumento das tensões sociais e da
contestação do status quo. Durante a administração Johnson, Nixon e Ford a ênfase na segurança
se tornou o objetivo central e se impôs em detrimento das práticas democráticas, reforçando o
autoritarismo e a mecanismos repressivos considerados mais eficientes para impedir o avanço do
“inimigo interno/externo” estabelecendo as coordenadas de enquadramento social e político necessário
para o alinhamento da nova ordem econômica adequada ao reordenamento capitalista do pós-guerra. O
advento, consolidação e extensão da Guerra Fria combinados com o crescimento dos movimentos de
libertação nacional na América Latina e, especialmente, com a Revolução Cubana (sobretudo após a
incorporação de Cuba ao bloco soviético) fizeram com que os Estados Unidos considerassem a América
13
Latina em estado de alerta .
De acordo com Fernando Henrique Cardoso, o fato da reorganização dos países segundo a
ideologia de Segurança Nacional se caracteriza como um regime autoritário burocrático, onde a
instituição militar como um todo assume poder para reestruturar a sociedade e o Estado. O regime
autoritário burocrático, também se difere das ditaduras de Vargas e Perón, onde o poder é tomado para
14
manter um ditador à frente do Estado. .
Entre as ditaduras de Vargas e Perón seguem interessantes comparações no âmbito populista.
Ambos tinham os mesmos inimigos (oligarquias da cada país), as mesmas ameaças (o comunismo),
uma base política estabelecida por um Pacto Social com a burguesia detentora dos meios de produção e
o proletariado, dono da força produtiva. Nacionalismo, estatização e leis trabalhistas também podem ser
15
pontos comparativos entre os dois ditadores . Já o autoritarismo burocrático, como tipo de regime que
impõe regras de exclusão política em benefício do setor privado da economia. Os interesses econômicos
predominantes favorecem a acumulação de capital através do controle de força de trabalho, para um
desenvolvimento capitalista bem-sucedido e urgente, passando rapidamente pela fase inicial de
“decolagem” econômica na qual, segundo estratégias contrarrevolucionárias de W. W. Rostow há uma
16
possibilidade maior de ocorrer à revolução social .
A Argentina da década de 1970 encontrava-se em grande instabilidade política. Com o retorno
de Juan Domingo Perón do exílio em 20 de junho de 1973, era visto por alguns setores populares como
“a volta dos bons tempos” para o país. Com a renúncia do presidente Héctor José Cámpora neste
mesmo ano, foram convocadas e realizadas eleições presidenciais. A chapa Perón-Perón com J. D.
Perón candidato a presidência e sua esposa Isabelita Perón como vice, venceu as eleições com 62%
dos votos. Perón, no poder, tentou realizar alianças e apoios políticos em alguns setores – o que
conseguiu em partes. Porém sua presidência foi breve, com sua morte em 1º de julho de 1974, Isabel
assumiu a presidência da Argentina. Em 1975 o país continuava com graves problemas econômicos e
sociais. A confederação Geral Trabalhista negociava um aumento digno aos sindicatos. Nesse momento
assumia o cargo de Ministro da Economia, Celestino Rodrigo, que agravou a frágil situação econômica,
denominada “rodrigazo”. Assim, o país viu uma inflação acelerada dia após dia, e o rodrigazo dizimara
17
aumento de 40% que os sindicatos haviam tido naquele ano
A presidente Isabel acabou por romper algumas importantes alianças que Perón tinha
construído, tendo assim, em sua base de sustentação poucos aliados incondicionais. No entanto a
oposição articulava-se de forma considerável. Entre os grandes opositores estava o general Jorge Rafael
Videla, nomeado pela presidente como novo comandante-chefe do exército, que além de não apoiar à
sucessão de Perón por Isabel, impunha prazos para o final da crise política e econômica culminada no
rodrigazo. Além de Videla, os comandantes da marinha e da aeronáutica também se posicionavam
18
contra a presidente .
Em março de 1976, os militares argentinos deram um golpe na presidente Isabel Perón, que foi
presa pelos comandantes militares que usaram a afirmação de que tinham sido forçados a dar o golpe
19
para defender a nação argentina . De acordo com a mensagem da Junta de Comandantes das Forças

13
PADRÓS Op. Cit., p. 188
14
CARDOSO, Fernando Henrique. Os regimes autoritários na América Latina. In. COLLIER, David (Coord.). O
Novo Autoritarismo na América Latina. Tradução de Marina Teixeira Viriato de Medeiros. Rio de Janeiro. Paz e
Terra, 1982. p. 43.
15
GLIK, Monica Sol. Ordem e Progresso, Civilização e Barbárie. Perón, Vargas e Positivismo. (Argentina-Brasil,
1930-1955). In Revista PerCursos. V. 07. N. 2. Santa Catarina. 2006. p. 4
16
CARDOSO, Op. Cit., p. 50.
17
FREITAS, Bruno Cordeiro Nojosa; SOUZA, Francisco Iderlan Meneses. O coro dos descontes: O ato de
contestar e resistir na ditadura militar argentina. Revista Ameríndia. V. 04. Curitiba. 2007. p. 01.
18
FREITAS;SOUZA, Op. Cit, p. 02.
19
PASCUAL, Op. Cit., p. 49.

349
Armadas para a população em 29 de março de 1976, os militares se validaram na ideologia de
Segurança Nacional para validar o golpe.

Esgotadas todas as instâncias de mecanismos constitucionais, superada a possibilidade


de retificação dentro do marco das instituições... a impossibilidade da recuperação de
um processo por suas vias naturais, chega ao fim uma situação que lesa a nação e
compromete seu futuro... Nosso povo tem sofrido uma nova frustração. Perante um
vazio de poder e a falta de uma estratégia global que, dirigida pelo poder político,
combatesse a subversão: a carência de soluções para problemas básicos da nação,
cuja consequência tem sido o incremento permanente de todos extremismos; [...] Tendo
se traduzido numa irreparável perda de grandeza e fé; as Forças Armadas, no
cumprimento de uma obrigação irrenunciável, assumiram a condução do Estado [...]
Esta decisão tem o objetivo de acabar com o desgoverno, a corrupção e o flagelo
subversivo e está dirigido unicamente contra quem tem delinquido ou cometido abusos
20.
de poder. É uma decisão pela pátria

Sob a vigência da Segurança Nacional, para erradicar a subversão e suas causas, foi instaurado
a ideia de que teria sido deflagrada a terceira guerra mundial – guerra contra o comunismo internacional
21
-, que determinou toda a ação aplicada na Argentina de 1976 a 1983 .
Após o golpe, grande parte da população recebeu como alívio a intervenção militar, acreditando
nas afirmações dos líderes no sentido em que o objetivo do golpe era de fato o reestabelecimento da
ordem e da democracia no país e que atuariam respeitando as normas vigentes.
O plano executado pelas Forças Armadas fundava-se na repressão clandestina, na negação de
informações, no terror e na apresentação de uma fachada de respeitabilidade e paz, numa tentativa de
22
criar uma máscara enquanto eram usados métodos repressores clandestinos à margem da lei .
A caça às bruxas ao comunismo se intensificou logo após o golpe. Durante o regime não houve
determinação precisa sobre o que é ser subversivo em normas específicas. O significado deveria ser
buscado nos discursos dos próprios militares quando falavam sobre os inimigos. Os termos mais
utilizados eram: ser inimigo ideológico, ser de esquerda, ser não argentino, ser judeu, ou um ser
23
irrecuperável .
O trato da repressão contra os subversivos pode ser notado também em números, de acordo
com os arquivos da Comissão Nacional Sobre Desaparecimento de Pessoas na Argentina (CONADEP),
constam denúncias de aproximadamente 600 pessoas desaparecidas antes de 1976. Contudo foi a partir
do golpe que o sequestro foi “institucionalizado” como forma de ação das
Forças Armadas. Desde então milhares de pessoas foram ilegitimamente privadas da liberdade em todo
24
o país .
Em 1979, a Assemblea Permanente por los Derechos Humanos registrou 5.818 casos
documentados. O Ministério do Interior contava com 3.447 denúncias até o mesmo ano. A Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em visita à
Argentina, em setembro de 1979, recebeu 5.580 denúncias, das quais muitas não estavam incluídas em
listas anteriores. Já a CONADEP recebeu 8.960 reclamações. Nenhuma das pessoas em que o nome
constava nessas listas foi vista novamente com vida. Contudo organizações dos direitos humanos
calculam que o número seja infinitamente maior, podendo chegar a 30 mil desaparecimentos, se fossem
25
incluídas pessoas que após sair do cativeiro se omitiram ao realizar denuncias .

O método de desaparecimento forçado de pessoas era usado de forma indiscriminada,


foram sequestrados e torturados tanto membros de grupos armados como seus
familiares, amigos, colegas, militantes de partidos políticos, sacerdotes ou laicos
comprometidos com os problemas dos pobres, ativistas, estudantes, sindicalistas... mas
também um grande número de pessoas sem nenhuma ligação a práticas sindicais ou
políticas. Houve casos de pessoas sequestradas porque seu nome constava em alguma
26
agenda telefônica de um dos desaparecidos .

Houve também um caso de um grupo de doze adolescentes de dezesseis anos da Escuela

20
PASCUAL, Op. Cit., p. 48.
21
PASCUAL, Op. Cit., p. 49.
22
PASCUAL, Op. CIt., p. 58.
23
PASCUAL, Op. Cit., p. 50.
24
COMISSIÓN apud PASCUAL, Op. Cit., p. 64.
25
MIGNONE apud PASCUAL, Op. Cit., p. 64.
26
PASCUAL, Op, Cit., p. 69.

350
Nacional de Educación Técnica Nº 1, foram sequestrados e enviados a um centro clandestino de
detenção e torturados por causa de um incidente com um professor que também era oficial da Marinha.

Com o término das aulas, havia um clima de alegria na escola, o citado professor
reclamou pelo barulho e os alunos não se submeteram as suas ordens, sendo expulsos
da escola. Os pais dos alunos protestaram perante as autoridades militares, pedindo a
reintegração dos estudantes. As autoridades ‘advertiram’ que finalizassem com seus
pedidos ou ‘se arrependeriam’. Dias depois, grupos de encapuzados, fortemente
27
armados, sequestraram estudantes em seus domicílios .

A tortura foi um elemento comum na metodologia empregada. Segundo a CONADEP quase na


totalidade das denúncias recebidas pela Comissão, mencionam-se atos de tortura. Nos relatos estão
refletidos os terríveis sofrimentos psíquicos e físicos das vítimas, como relata Miguel D’Agostino, caso Nº
3901: “Se ao sair do cativeiro me tivessem perguntado: Torturaram-te muito? Teria respondido: sim, os
três meses sem parar... Se a pergunta me é formulada hoje posso lhes dizer que logo completarei sete
28
anos de tortura ”.
As torturas em feitas na maioria das vezes nos Centros Clandestinos de Detenção que existiram
aproximadamente 340 ao longo do território Argentino e constituíram na base material indispensável para
a política de desaparecimentos. Foi nesses Centros Clandestinos que mulheres e homens foram
ilegitimamente privados da sua liberdade em estadias que duraram anos ou então nunca mais
29
retornaram . Aos poucos foram circulando notícias de desaparecimento de amigos, familiares, vizinhos
que tinham sido levados de suas casas ou local de trabalho por um grupo de pessoas armadas e
desconhecidas e que sua família não conseguia achá-los. As autoridades negavam tê-lo detido e
afirmavam desconhecer o paradeiro do sequestrado. As poucas pessoas que retornavam normalmente
não faziam nenhum tipo de comentário sobre as experiências durante o cativeiro e se mantinham em
30
silêncio absoluto .
Esta onda de repressão brutal invade a Argentina na década de setenta e termina de paralisar as
estruturas legais que poderiam ter auxiliado na diminuição do impacto causado a população pela
violação dos direitos humanos. Contudo, em meio aos conflitos formaram-se grupos de direitos humanos
buscando frear as violações cometidas aos direitos do homem. Inicialmente dentro destes “grupos”,
todos colaboravam inclusive com outros organismos ao mesmo tempo, existia uma grande solidariedade
entre os grupos. Entretanto havia diferentes formas de manifestações: “La diferencia entre organismos
se Manifestaba em la elección de la estrategia a seguir: cuánta prudência em la denuncia y la difusion?
31
Qué demandar ou reclamar? Com quem Hablar? ”
Nesta situação, com base em manifestações públicas o movimento “Madres de Plaza de Mayo”
ganhou grande destaque na Argentina, bem como em todo o cone sul e consequentemente uma
repercussão mundial. Mais tarde deste grupo sairá outro movimento conhecido como “Abuelas da Plaza
de Mayo”.
A grande questão que unia todas essas mulheres era o grande vazio político deixado pelo
desaparecimento de seus entes queridos. Na busca por resposta uniram-se, indo contra o regime e
arriscando suas próprias vidas. Inicialmente todas já tinham feito a tradicional busca pelos despachos
nos organismos oficiais, contudo não encontravam maiores esclarecimentos. Azucena Villaflor De Vicenti
uma das mães do movimento, certa vez diante da falta de informações declarou:

Madres, así no conseguimos nada. Nos mientem em todas partes, nos cierram todas las
puertas. Tenemos que salir de este laberinto infernal que nos lleva a recorrer inútilmente
despachos oficiales, cuarteles, Iglesias y juzgados. Tenemos que ir directamente a La
Plaza de mayo y quedarnos allí hasta que nos den una respuesta. Tenemos que llegar a
cien, doscientas, mil madres, hasta que nos vean, hasta que todos se entern y El proprio
32
Videla se vea obligado a recerbirnos y darnos una respuesta .

As reuniões familiares tiveram inicio um pouco antes do golpe de estado, em fevereiro de 1976,
27
SÁBATO, Ernesto. Nunca Mais: informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas na
Argentina. L&PM. Porto Alegre. 1984. p. 244.
28
SÁBATO, Op, Cit., p. 16.
29
SÁBATO, Op, Cit., p. 41.
30
PASCUAL, Op, Cit., p. 59.
31
JELIN, Elizabeth. Víctimas, familiares y ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la palabra. Cadernos
Pagu, v. 29. 2007. p. 37.
32
GORINI apud GUERIN, Mariángeles. Memória e conformação da identidade nos integrantes dos movimentos de
“Madres y Abuelas de Plaza de Mayo”. Dissertação (Mestrado em História), UnB. Brasília. 2010. p.68.

351
contudo sua concorrência só foi aumentando ao decorrer da repressão. Muito antes de fazerem parte do
movimento de Madres da Plaza de Mayo, algumas mulheres chegaram a participar de encontros de
outras organizações familiares de desaparecidos políticos, porém algumas “Madres” sentiam-se
incomodadas, pois mesmo existindo uma discussão de tarefas a serem levadas adiante, as questões
principais seguiam apenas nas mãos de um grupo da comissão. Esta “diferenciação” no trato das
políticas administrativas se é assim que podemos chamar, fomentou a necessidade de realizar algo
33
diferente por parte das mães . Sendo assim surge um novo grupo com diferentes manifestações que
serviram para diferenciar as “Madres” dos outros movimentos de direitos humanos, mais que isso,
auxiliando na identificação do grupo aos olhos da sociedade. A primeira iniciativa do grupo foi a marcha
ao redor da pirâmide da Plaza de Mayo, consequentemente mais tarde esta atividade marcaria a
identidade o nome do movimento até os dias atuais. Assim como assinalou Gorini, a decisão de realizar
o encontro na praça foi exclusiva do grupo de mulheres. No inicio das atividades a praça era usada como
34
lugar de encontro para trocar informações obtidas e organizar as atividades .
Mais tarde, em consequência do estado de sítio que viria impossibilitar reuniões de mais de três
pessoas em áreas públicas, as “Madres” deixaram de ficar sentadas nos bancos da praça e marcharam.
Inicialmente esta marcha não tinha o significado que o protesto iria adquirir, começaram a fazer a
chamada ronda para poder continuar se reunindo na Plaza de Mayo. As reuniões na praça era uma
forma de chamar atenção do governo e da sociedade para a questão dos desaparecidos, esperava que
35
se fazendo presentes o governo fosse ouvir as questões e poderiam trazer alguma resposta .
Para os militares, a aparição das “Madres” não só os surpreendeu como também colocou em
dúvida as suas representações, segundo eles a única explicação possível era que o surgimento deste
grupo fosse uma tática ou uma nova estratégia política do grupo considerado subversivo. Logo os
militares demoraram em compreender o erro de acreditar que donas de casa não poderiam formar este
36
tipo de movimento . Sendo assim, na quinta-feira de 18 de agosto de 1977 as Madres começaram sua
primeira marcha de protesto ao redor da pirâmide da Plaza de Mayo, o que inicialmente era um espaço
para troca de informações e “desabafos”, virou um local simbólico, onde recordavam e manifestavam a
37
dor da ausência de seus filhos .
Intencionalmente ou não, o grupo de mães tinha uma identidade em comum, pois chegaram a
definir e encarnar a uma comunidade de oposição ao
estado ditatorial como também a própria máquina estatal. As mães foram recebendo mais consciência e
perceberam que o fato de serem vistas ajudava muito em suas reivindicações, a partir desta nova
mentalidade procuraram por se fazer mais visíveis, como consequência surgiu mais um novo símbolo
para a identidade do grupo: “los pañuelos”, enquanto se organizavam para assistir como grupo à
peregrinação anual à Basílica de Guadalupe surgiu a ideia de lenços, mais como uma ideia de
38
diferenciação, assim criaram um novo elemento que marcaria o grupo .
Após a consolidação do grupo, o número de mães que buscavam seus filhos e netos crescia
cada vez mais, e foi chegado o momento de separação devido a quantidade de integrantes que havia no
grupo. Sendo assim ficou decidido que as “Abuelas” ficariam encarregadas de procurar os netos – que a
39
estimativa fica em cerca de 500 crianças desaparecidas -, enquanto as “Madres” seguiram com o
objetivo inicial de buscar por seus filhos. Porém o vínculo que ainda unia tanto “Madres” quanto
“Abuelas” era bem intenso, pois a luta tinha iniciado no grupo das Madres.
Os objetivos do grupo foram modificando-se no decorrer das diversas lutas, e como,
consequência direta das mudanças do contexto. Durante o período de transição da ditadura para a
democracia, a questão dos detidos desaparecidos apresentou-se novamente como um problema para a
consecução dos objetivos das Forças Armadas. Onde os militares tentaram garantir a não revisão judicial
das ações levadas adiante, durante a guerra contra la subversión, portanto procuraram o
estabelecimento de acordos com partidos políticos que se tinham agrupado na multipartidária, agora uma
outra questão começava-se a questionar “o que iam fazer o grupo de Madres e Abuelas no contexto
40
democrático? ” Dentro desse sentido as Madres decidiram fazer pública sua posição naquilo que diz
respeito à continuação da luta pela democracia.
Tendo em vista o estudo realizado, podemos concluir que a segunda fase da repressão militar na

33
GORINI apud GUERIN, Op. Cit., p. 60.
34
GORINI apud GUERIN, Op. Cit., p. 67.
35
GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 68.
36
GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 70.
37
GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 71.
38
GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 73.
39
PADRÓS, Op. Cit., p. 638.
40
GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 80.

352
Argentina foi a mais violenta do cone sul, em termos de terrorismo de Estado, se apoiando na ideologia
de Segurança Nacional contra o inimigo interno/externo do comunismo. Nesta luta os militares argentinos
não tiveram receio em abusar dos poderes que passaram a possuir pós-golpe. Dando inicio a uma série
de violências e atentados, o principal deles contra a liberdade e os direitos humanos. Deixando feridas
mal cicatrizadas até hoje na sociedade Argentina. Em tempo onde o paradeiro dos subversivos era
negado pelas autoridades, um grupo de mães unidas pela ausência de seus filhos e de respostas sobre
o destino dos mesmos. Decidiram assim, unir-se para buscar informações, surgindo o Madres de Plaza
de Mayo , um movimento encabeçado por mulheres que compartilhavam da mesma dor e não tiveram
medo de arriscar suas vidas nas mãos do regime. Nesta procura, muitas mães sofreram agressões ou
também desapareceram. A repercussão internacional do movimento foi um dos motivos pelo
enfraquecimento do regime.
Mesmo com a chegada da democracia, muitas Madres e Abuelas continuaram atuantes e
viraram referência internacional na luta por justiça e na busca contínua dos direitos humanos,
esquecidos durante a ditadura na América Latina.

Referências Bibliográficas:
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(Coord.). O Novo Autoritarismo na América Latina. Tradução de Marina Teixeira Viriato de Medeiros. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
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Rio Grande do Sul, 2005.
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XAVIER, Fernanda Ollé. Episódios da Guerra Fria: seu início meio e fim. In: Revista Diálogo e interação.
V. 04, 2010.

353
O Grupo Clamor e a atuação em redes na defesa dos Direitos Humanos frente as
ditaduras do Cone Sul

1
Guilherme Barboza de Fraga

Resumo: O presente artigo visa analisar a constituição de uma rede integrada de defesa dos direitos
humanos no final da década de 1970 a partir do estudo da documentação do Clamor. O grupo atuou de
1978 a 1991 com os seguintes objetivos: denunciar as arbitrariedades cometidas pelas ditaduras de
Segurança Nacional, dar abrigo aos refugiados e auxiliar na localização de desaparecidos políticos.
Assim, apresenta-se a rede composta a partir dos contatos do grupo e analisa-se como a ação do grupo
com outros organismos congêneres constituiu forte resistência ao aparelho repressivo das ditaduras do
Cone Sul por meio de uma atuação além-fronteiras.
Palavras-chave: Clamor – ditaduras – rede – direitos humanos.

Abstract: This article aims to analyze the creation of an integrated network of human rights in the late
1970s from the study of documentation Clamor. The group acted from 1978 to 1991 with the following
objectives: to denounce the arbitrarinesses committed by the dictatorships of National Security, to give
shelter to refugees and assist in locating missing politicians. Thus, presents the network of contacts from
the group and analyzes as a group action with other bodies congeners was strong resistance to the
repressive apparatus of the dictatorships of the Southern Cone through a cross-border operation.
Key-words: Clamor – dictatorships – Network – human rights.

Este texto analisa a constituição de uma rede integrada de defesa dos direitos humanos a partir
da análise dos documentos e da trajetória do grupo Clamor. Diferente do artigo apresentado na I Jornada
de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos que faz uma apresentação do grupo a partir de ações
empreendidas ao longo de sua existência, o presente trabalho amplia a análise percebendo a ação do
Clamor dentro de uma atuação conjunta com organismos congêneres com o objetivo de por fim ao
Terrorismo de Estado vigente nas ditaduras do Cone Sul. Para tanto, este artigo apresenta,
primeiramente, o grupo Clamor e, logo depois, a rede constituída a partir do grupo para, em seguida,
abordar como se deu a relação com outras entidades pela análise do Seminário promovido pelo Clamor
em 1985 e por ações empreendidas no exterior em parceria com outras organizações.

Inclinando os ouvidos aos clamores contra a repressão


Em 1978, ano de início das atividades do grupo Clamor, os países do Cone Sul eram
governados por ditaduras militares. Em um cenário de Guerra Fria, tais ditaduras apoiaram-se nas
premissas da Doutrina de Segurança Nacional percebendo a política como um conflito planetário, uma
verdadeira guerra, cujo fim seria a destruição total e permanente do adversário. Para tanto, recorreram
ao Terrorismo de Estado, um modo de governar mediante o uso da intimidação. Torturas,
desaparecimentos forçados, exílios, desterros, banimentos, utilização de pressões, chantagens,
2
demissões laborais, intervenção nos meios de comunicação de massa com o uso da censura e de
propaganda sistemática do regime foram alguns métodos utilizados na difusão de uma cultura do medo e
criação de um cenário de silêncio, desconfiança, alienação e terror permanente, evitando ou limitando
manifestações contestatórias.
Nessa conjuntura, diversos grupos, entidades, organizações e indivíduos passaram a denunciar
as violações dos direitos humanos cometidas por esses regimes repressivos e a dar apoio aos
perseguidos políticos. No Brasil, ganhou destaque uma ala progressista da Igreja Católica buscando ser
a voz daqueles que tiveram sua voz silenciada. A atuação engajada desse clero progressista teve
influência das mudanças promovidas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), das Conferências Episcopais

1
Graduado em História (Licenciatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
guilhermebarbozadefraga@hotmail.com
2
Em todos os países do Cone Sul, os golpes de Estado que impuseram as ditaduras de Segurança Nacional
foram apoiados por importantes meios de comunicação.

354
3
Latino-americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979) , do surgimento e difusão da Teologia da
4
Libertação, da criação da CNBB e do início dos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s).
Desde a nomeação de dom Paulo Evaristo Arns, a Arquidiocese de São Paulo passou a ser estruturada
na tentativa de acolher os que não tinham mais a quem recorrer em busca de asilo político. E o número
de refugiados estrangeiros só aumentou em meados da década de 1970 com o aumento do
autoritarismo nos países vizinhos.
Foi nesse momento que surgiu o CLAMOR (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os
países do Cone Sul). As reuniões de estruturação do grupo – ocorridas após solicitações de exilados
argentinos – foram organizadas pelos três membros fundadores: Jan Rocha, Luiz Eduardo Greenhalgh e
Jaime Wright.
A jornalista inglesa Jan Rocha morava no Brasil desde 1969, era correspondente internacional
do jornal The Guardian e da rádio BBC de Londres e casada com o advogado brasileiro Plauto Tuiuti da
Rocha. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh era referência entre os familiares de presos políticos
5
brasileiros e também militava na luta pelos direitos humanos. O pastor presbiteriano Jaime Wright vivera
de perto a violência do sistema repressivo brasileiro – em setembro de 1973, seu irmão Paulo Stuart
Wright foi desaparecido pelo regime. Wright era filho de missionários estadunidenses, sempre esteve
engajado na defesa dos direitos humanos e foi companheiro de dom Paulo Evaristo Arns em diversos
projetos.
Assim, a jornalista, o advogado e o pastor engajados em causas solidárias, usaram sua atividade
profissional como militância em prol dos direitos humanos. Desde o início, perceberam a necessidade de
6
articular-se com a Igreja Católica, que funcionaria como “guarda-chuva institucional” garantindo
proteção ao grupo. Desse modo, Greenhalgh, Rocha e Wright procuraram o cardeal-arcebispo de São
Paulo e famoso pela atuação a favor dos direitos humanos em sua arquidiocese. O projeto do Clamor
encaixava-se perfeitamente na estrutura solidária montada em sua arquidiocese. Assim, o Clamor foi
incorporado à Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, criada em
1976, tornando-se um anexo da Comissão com intuito de cuidar da grande quantidade de estrangeiros
que acorriam à Cúria Metropolitana em busca do amparo do cardeal-arcebispo.
O nome Clamor surgiu nas primeiras reuniões e foi escolhido por ser forte, mobilizador e ter o
mesmo significado em português, inglês e espanhol, por conter a palavra amor e as letras L e A, de
América Latina. O nome fez o pastor lembrar um texto bíblico, o salmo 88, que se tornou lema do grupo:
“Inclina os teus ouvidos ao meu clamor.” O símbolo do Clamor – uma vela acesa atrás das grades – veio
de um cartão de Natal recebido por Greenhalgh do preso político Manuel Cirilo de Oliveira Neto e
simbolizava a busca de esperança aos prisioneiros e perseguidos pelos sistemas repressores.
Os objetivos do grupo foram estabelecidos: dar assistência aos refugiados que buscavam auxílio
7
na Cúria e não eram reconhecidos pelo ACNUR ; divulgar as denúncias recebidas após confirmação de
8
sua veracidade ; e o estabelecimento de contatos com entidades nacionais e internacionais de defesa
dos direitos humanos para a formação de uma rede:

CLAMOR tem por objetivo a defesa dos direitos humanos na América Latina,
especialmente nos países do Cone Sul.
(...) É interesse do CLAMOR estreitar vínculos com órgãos congêneres para cooperação
mútua.
A perspectiva do CLAMOR é cristã, ecumênica, sem filiação partidária e seus objetivos
9
são humanitários.

A presença do pastor Jaime Wright no grupo garantiu a concessão de uma verba periódica junto
ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI) que agrupava, à época, cerca de 500 milhões de fiéis de igrejas
protestantes, ortodoxas e anglicanas e tinha um setor específico de direitos humanos para a América
Latina.
3
As duas Conferências tiveram importante papel para ajustar o discurso do Concílio Vaticano II à realidade latino-
americana de capitalismo dependente com a confirmação da “opção preferencial pelos pobres” e a tendência de
uma teologia centrada na libertação social e não mais na salvação eterna individual. Cf. SALEM, Helena (Org.).
A Igreja dos oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981. p. 39 a 42.
4
Criada em outubro de 1952, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) foi promovida e inspirada por
dom Hélder Câmara, um dos bispos mais famosos da “ala progressista” da Igreja.
5
Ao lidar com clientes torturados e presos de forma arbitrária, o trabalho do advogado tinha um caráter afetivo,
pois desempenhava uma função humanitária e estabelecia uma ligação entre os presos e suas famílias.
6
LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 35.
7
O comissariado da ONU não acolhia, por exemplo, militantes envolvidos na luta armada.
8
O meio utilizado para difundir tais denúncias foi a publicação de boletins não periódicos distribuídos em três
idiomas: português, espanhol e inglês. Cerca de 1.500 boletins eram distribuídos a cada edição, sendo 500 em
cada língua.
9
CLAMOR, nº 1, Ano I, junho de 1978, capa.

355
Dada a grande quantidade de trabalho, logo o grupo recebeu dois reforços oriundos da
Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo: a freira
10
estadunidense Michael Mary Nolan e o padre canadense Roberto Grand-Maison, então coordenador
da Pastoral de Direitos Humanos da Comissão e engajado na Ação Católica Operária (ACO) e na
Juventude Operária Católica (JOC). Com o aumento da demanda de trabalho, em 1979, o quadro de
voluntários precisou ser ampliado e mais dois integrantes da Comissão Arquidiocesana foram recrutados
11
para o Comitê: o advogado Fermino Fecchio e a química Thereza Brandão .
Após um desentendimento interno, que levou à saída de Jaime Wright do grupo em abril de
1984, foram incorporadas ao grupo: a psicóloga e psicanalista Maria Auxiliadora Arantes, ex-presa
política; Maria Aparecida Horta, ex-presa política e esposa de Luiz Eduardo Greenhalgh; e Inge Schilling,
mãe de Flávia Schilling, brasileira que foi prisioneira política no Uruguai de 1972 a 1980. Os dois últimos
reforços do grupo foram a leiga católica Lilian Azevedo e o frei maltês João Xerri.
Além desses membros já nominados, cabe ressaltar a importância da participação dos familiares
dos integrantes do Clamor em seu apoio estratégico ao grupo. Merecem destaque a missionária
presbiteriana Alma Jane Wright, esposa do pastor, e Plauto Tuyuty Rocha, esposo da jornalista Jan
Rocha.
É importante salientar que, durante a ditadura brasileira, alguns grupos sociais utilizaram as
brechas legais para fazer oposição ao regime, entre eles advogados, jornalistas, familiares de presos
políticos, militantes de esquerda, leigos e religiosos católicos e protestantes. Esses grupos de oposição
tinham no Clamor seus representantes, pois nele havia uma jornalista (Jan Rocha), advogados (Luiz
Eduardo Greenhalgh, Fermino Fecchio e Plauto Rocha), familiares de presos políticos (Jaime Wright e
Inge Schilling), militantes de esquerda (Cida Horta e Maria Auxiliadora Arantes), leigos católicos (Thereza
Brandão e Lilian Azevedo), religiosos católicos (dom Paulo, Pe. Roberto, Ir. Michael e Frei João) e
religiosos protestantes (Jaime e Alma Wright). Ou seja, o Clamor foi, ao mesmo tempo, uma reação
cidadã aos excessos cometidos pelos governos ditatoriais e um reflexo da oposição existente na ditadura
brasileira engajada na causa solidária de defesa dos direitos humanos nos países vizinhos que, da
mesma forma, sofriam dura repressão.

A rede integrada de defesa dos direitos humanos


Tendo entre seus integrantes representantes de diferentes grupos que se opuseram à ditadura, o
Clamor atuou na tentativa de impedir e denunciar o avanço da repressão estatal (e multinacional) sobre a
população que procurava refúgio. Sua atuação foi possível graças a um trabalho conjunto com
organismos congêneres para colaboração mútua, união capaz de garantir eficácia às ações de um grupo
pequeno e dotado de uma estrutura bastante simples. A articulação entre grupos, entidades e ativistas
interessados em denunciar as arbitrariedades dos regimes de Segurança Nacional e em garantir auxílio
aos exilados políticos culminou na criação, provavelmente involuntária, de uma espécie de rede informal
e internacional de defesa dos direitos humanos.
Em uma concepção simples, porém eficaz, rede pode ser definida como a “identificação de
12
sujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum.” Assim, a identificação de
sujeitos interessados na defesa dos direitos humanos, articulando em prol desse objetivo, indica a
formação de uma rede. Ela se estabelece a partir de relações ou ligações sociais entre um conjunto de
indivíduos ou entidades – os quais podem nunca ter se encontrado pessoalmente, mas estabelecem
contatos com relativa frequência – que possuem uma mesma situação sistêmica antagônica a ser
combatida e transformada: a situação de repressão vigente nos países do Cone Sul. O principal motivo
da articulação em rede está na necessidade de “ganhar visibilidade, produzir impacto na esfera pública e
13
obter conquistas para a cidadania.”
Portanto, o sucesso do Clamor está diretamente relacionado à rede na qual o grupo inseriu-se e
ajudou a constituir. Por meio dos boletins, atas de conferências, correspondências, relatórios de ações e
informações prestadas pelos membros do grupo Clamor foi possível reconstituir a rede integrada de

10
Graduada em Administração de Empresas e Ciências Sociais pela Saint Mary´s College cf.
<http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=36431&idModulo=8758>
Acesso em 28/03/2012.
11
O engajamento de Thereza e sua família fez sua casa ser “visitada” pelos agentes do Cenimar (Centro de
Informações da Marinha), em abril de 1964, por oferecer refúgio a duas amigas cariocas procuradas pela
repressão. Desde 1975, atuou na Comissão de Justiça e Paz e poucos anos depois se tornou a representante
da Igreja Católica junto ao CBA (Comitê Brasileiro pela Anistia). Cf. MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel
(orgs.). Pela democracia, contra o arbítrio. A oposição democrática do golpe de 1964 à campanha das Diretas já.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 286-287.
12
SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v.
21, n.1, p. 109-130, jan./abr. 2006. p. 113.
13
Idem.

356
direitos humanos responsáveis por tantas denúncias de arbitrariedades cometidas pelos militares nas
ditaduras da América Latina, por garantir asilo a perseguidos políticos de diversos países e por auxiliar
na busca por desaparecidos e seus filhos.
Caracterizar e reconstruir uma rede corresponde a um trabalho que lida com inevitáveis
imprecisões. No caso dessa pesquisa, a situação não é diferente, pois a reconstituição completa da rede
da qual fazia parte o Clamor é tarefa de difícil execução dado o grande espaço de atuação do grupo e
sua longa duração. Além disso, o fato de o grupo ter encerrado suas atividades há mais de vinte anos
traz a possibilidade de caírem no esquecimento grupos ou indivíduos que estabeleceram poucos
contatos ou contatos pontuais com o Comitê. Da mesma forma, nem todas as entidades e colaboradores
do grupo podem estar contemplados na documentação seja por sigilo, cautela, omissão, esquecimento
ou outros motivos.
A partir da pesquisa realizada é possível reconstituir, mesmo com alguma cautela, a rede
14
integrada de direitos humanos na qual o Clamor estava inserido :

14
Autoria de Guilherme Barboza de Fraga.

357
Vale ressaltar que essa rede representa aquela na qual o Clamor inseriu-se e com quem o grupo
interagiu ao longo de toda a sua trajetória – a figura pode não incluir todos os elos possíveis, mas
corresponde aos elos identificáveis nas fontes consultadas. Assim, a rede ora apresentada faz alusão ao
conjunto de organismos que estabeleceu contatos com o Clamor garantindo o sucesso de suas ações,
não dando conta, necessariamente, da totalidade de instituições atuantes na defesa dos direitos
humanos para os países do Cone Sul nas décadas de 1970 e 1980.
Essa rede integrada, constituída de maneira informal, permitiu localizar crianças, filhas de
15
militantes políticos presos e/ou assassinados pelas ditaduras latino-americanas. A atuação em rede
permitiu, também, difundir campanhas pela libertação de presos políticos, como ocorreu com o caso dos
Flávios brasileiros – Flávio Koutzii, Flávia Schilling e Flávio Tavares – que se encontravam presos pelas
ditaduras argentina e uruguaia.

Rompendo o círculo vicioso da violência


Correspondências, contatos telefônicos, viagens coletivas, seminários e congressos
internacionais estão entre as atividades realizadas coletivamente pelas entidades que integraram a rede
de defesa dos direitos humanos.

15
Entre os casos mais conhecidos nos quais o Clamor interviu estão a localização de Mariana Zaffaroni Islas e dos
irmãos Anatole e Victoria Julien Grisonas. Tais casos e outras denúncias apresentadas pelo Clamor foram
abordados no artigo publicado na 1ª Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos: “A solidariedade
não tem fronteiras: o grupo Clamor e a busca por desaparecidos políticos no Cone Sul”. O presente artigo,
utilizando novas fontes, busca apresentar a ação do Clamor no contato com outras entidades de defesa dos
direitos humanos optando por valorizar a atuação coletiva em detrimento da análise de casos específicos.

358
Preocupado em estabelecer um contato bem próximo com outros organismos de direitos
humanos para debater sobre o papel e atuação desses, o Clamor organizou o “Seminário sobre o Papel
das Entidades de Direitos Humanos na Atual Conjuntura Política, Social e Econômica dos Países do
16
Cone Sul”, em São Paulo, entre os dias 22 e 25 de fevereiro de 1985.
O Seminário reforçou o interesse em manter a articulação em rede como forma de continuar
atingindo os objetivos de defender os direitos humanos frente ao terrorismo de Estado, além de analisar
novos problemas como a questão da impunidade dos responsáveis pela aplicação da política repressiva
e a necessária educação para os direitos humanos como forma de impedir a repetição dessas práticas.
Dom Paulo, em sua intervenção, ressaltou a exigência de lembrar e registrar o que aconteceu para evitar
o esquecimento: “Deve-se publicar tudo o que passou, termos programas escolares de direitos humanos
fundamentais. Se não, nós, da América Latina, vamos de uma ditadura a outra, e cada geração, menos
17
de uma geração, se esquece do que aconteceu...”
Expressando reivindicações políticas concretas num período em que partidos políticos e
movimentos sociais eram silenciados em suas manifestações públicas, as entidades de defesa dos
direitos humanos exerceram o papel de oposição possível, sendo alternativa de contestação dentro da
sociedade civil. Foi por meio de um serviço à causa popular e democrática praticando a solidariedade a
favor dos reprimidos pelo regime ditatorial que o Clamor e a rede representaram uma resistência ao
sistema repressivo. Por utilizar ações públicas destinadas a revelar as atuações mais repudiáveis e
secretas implementadas pelo regime e por defender valores humanitários de caráter universal que
18
transcendiam posições políticas particulares , as entidades contribuíram para o desgaste moral das
ditaduras de Segurança Nacional por meio de um discurso de solidariedade capaz de atingir amplas
camadas da sociedade.
No caso específico do Clamor, sua composição explicitou a ação cidadã/civil das diversas
camadas da sociedade brasileira que demonstrou publicamente seu descontentamento com o regime na
figura de jornalistas, advogados, familiares de vítimas, militantes de esquerda, religiosos católicos e
protestantes. Na prática, as organizações de defesa dos direitos humanos substituíram os partidos –
limitados em sua ação política – desenvolvendo, contudo, suficiente autonomia em relação a seus
objetivos. Elas apareceram como a resposta possível em um período no qual as instituições
democráticas tiveram sua atividade restringida. Além disso, sua ação enfatiza a legitimidade dos meios
19
pacíficos na luta política. Para Mario López Martínez, a ação decidida e constante das organizações
não-governamentais de direitos humanos e sua forma de trabalho fundamentado em metodologias não-
violentas acabaram por causar grande dano a muitas ditaduras devido a sua influência maior sobre a
20
sociedade do que outras formas de resistência. O objetivo da não-violência é romper o “círculo vicioso”
da violência com um “círculo virtuoso” dando origem a uma sociedade democrática que saiba resolver
21
seus conflitos de forma pacífica, sem o uso da violência. Por isso mesmo,

la no violencia se nutre de personas – no ingenuas – sino resueltas, empreendedoras e


inquietas, (...) sujetos que obedezcan a la voz de su conciencia, gentes que ejerzan su
poder para cambiar las injusticias del mundo, personas empoderadas que sean
desobedientes frente a la abyección, objetores de conciencia respecto del mal, que no

16
Participaram do Seminário diversas entidades argentinas (Abuelas, Asociación Madres de Plaza de Mayo,
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, Comisión de Familiares de Detenidos Desaparecidos y
Presos por Razones Políticas, Liga Argentina por los Derechos del Hombre, Movimiento Ecuménico por los
Derechos Humanos e SERPAJ), chilenas (Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos, FASIC,
SERPAJ e Vicaría de la Solidariedad), uruguaias (Comisión Paz y Bien, Familiares de uruguayos desaparecidos
en Argentina e SERPAJ), paraguaias (CIPAE e Comisión Permanente de Familiares de Desaparecidos y
Asesinados), brasileiras (CBS, CJP-SP, Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e
Marginalizados de São Paulo e Movimento de Justiça e Direitos Humanos), a Asamblea Permanente de
Derechos Humanos da Bolívia e o grupo Vivir do Peru. Também estiveram presentes dom Paulo Evaristo Arns,
Belela Herrera do ACNUR e representantes da FEDEFAM, SIJAU e AALA. Além dessas organizações, várias
outras, impossibilitadas de enviarem representantes, deixaram sua mensagem de adesão e apoio ao Seminário
como a Anistia Internacional, Comissão Chilena de Direitos Humanos, Comisión Episcopal de Acción Social
(CEAS), Fundação Lelio Basso, Madres y Familiares de Procesados por la Justicia Militar del Uruguay e
Washington Office on Latin America (WOLA). Após o Seminário, o Clamor lançou um editorial de imprensa com
uma síntese das discussões e conclusões do encontro. Cf. CLAMOR, Editorial, [s.d.], p. 2-3 e 11.
17
Ibid., p. 2.
18
EHRLICH, Hugo Frühling. Represion politica y defensa de los derechos humanos. Chile: Chile y America:
CESOC, 1986. p. 18.
19
Ibid., p. 33.
20
LÓPEZ MARTINEZ, Mario. Transiciones y reconciliaciones: cambios necesarios en el mundo actual. In:
RODRÍGUEZ ALCÁZAR, Francisco Javier [ed.]. Cultivar la paz. Granada: Universidad de Granada, 2000. p. 61.
21
Ibid., p. 98-99.

359
22
crean en la “obediencia debida” (por simple obediencia).

Sem fronteiras para a ação solidária


Questionado por intervir, pessoalmente ou por meio do Clamor, em casos de violações dos
direitos humanos nos países vizinhos, dom Paulo respondia que a solidariedade não tem fronteiras. Mas
a repressão também não respeitava limites territoriais e atingia mesmo quem utilizava métodos não-
violentos como instrumento de resistência. Não ter fronteiras para a repressão faz caracterizar como
ameaça todo indivíduo que divergir das crenças, instituições, religião e valores apregoados pela
civilização ocidental. Não ter fronteiras para a solidariedade indica prestar ajuda humanitária
independente de crenças, instituições, religião e valores.
Assim como a repressão, as ações solidárias do Clamor e das entidades que atuaram em
conjunto com o grupo não limitaram sua atuação às fronteiras definidas, conforme balanço realizado pelo
grupo em seu quinquenário:

“Solidariedade não tem fronteiras” foi a frase que transformamos em “slogan” para
mostrar que se por um lado as forças da repressão não respeitavam fronteiras,
invadindo países vizinhos para violar direitos humanos, então porque não deveria a
solidariedade fazer a mesma coisa na defesa dos mesmos direitos? A frase tem
significado bem mais amplo, na verdade, porquanto também significa que – além das
fronteiras geográficas – a solidariedade não pode ser limitada por barreiras políticas,
23
religiosas, ideológicas, raciais, sociais, econômicas e linguísticas.

A solidariedade sem fronteiras praticada pelo Clamor sempre ocorrer com máxima cautela, pois,
mesmo com o guarda-chuva institucional da Igreja Católica, qualquer atitude equivocada poderia pôr a
perder outras conquistas, contribuindo, inclusive, para o recrudescimento da repressão. Por isso, as
ações foram executadas em sigilo até o momento correto de expor a denúncia. Essa estratégia era
24
chamada pelo grupo de “teologia das brechas” ou, ainda, de acordo com o Pe. Roberto Grand-Maison,
25
de “pastoral da sanfona” , pois a ousadia do grupo aumentava e diminuía de acordo com as “brechas”
permitidas em cada momento específico da repressão. E foi em meio a essas brechas, sempre com o
apoio firme de dom Paulo, que o grupo participou de ações no exterior, quase sempre em conjunto com
outras organizações.
Em outubro de 1979, o Clamor recebeu a denúncia da detenção clandestina de Sigifredo Alberto
Arostegui Valdez, preso na divisa do Brasil com a Argentina, no dia 21. Sigifredo era um uruguaio
residente na Argentina que havia colaborado com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
26
OEA fornecendo dados de cidadãos uruguaios desaparecidos na Argentina. As autoridades da fronteira
negavam a detenção. Sabedores do quanto obter informações sobre uma detenção era garantia de
evitar o desaparecimento permanente do indivíduo, o grupo enviou Plauto Rocha à região para descobrir
o paradeiro de Sigifredo. O advogado do Clamor localizou o rapaz preso no Regimento das Forças
Armadas em Posadas, na Argentina. Com posse da informação, dom Paulo apelou junto ao embaixador
27
suíço em Buenos Aires visto Sigifredo estar sob a proteção do ACNUR. A Anistia Internacional também
participou da intensa campanha pela libertação do uruguaio que só ocorreu no dia 3 de setembro de
28
1980.
Em janeiro de 1987, o Clamor realizou uma viagem ao Chile em conjunto com a Comissão de
Justiça e Paz de São Paulo (CJP-SP) e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) de Porto
Alegre e articulada com a Vicaría de la Solidariedad e grupos de familiares de presos, mortos e
desaparecidos políticos chilenos. Participaram da viagem: Fermino Fecchio pelo Clamor; Belisário dos
Santos Júnior, Margarida Genevois e Márcia Jaime pela CJP-SP; Jair Kirschke e Augustino Veit pelo
MJDH. Os representantes de entidades foram recepcionados, no Chile, pelo embaixador brasileiro,
Jorge Ribeiro, que havia preparado uma reunião na embaixada com diversos membros da oposição a
29
Pinochet. O embaixador brasileiro organizou, ainda, um encontro da comitiva brasileira com o Ministro
do Interior chileno a quem foram levadas denúncias de agressão a ativistas de direitos humanos do país.
30
Depois disso, os brasileiros visitaram presos condenados à morte , grupos de familiares de

22
Ibid., p. 99-100.
23
CLAMOR, nº 15, dezembro de 1983, p. 5.
24
Ibid., p. 7.
25
Informações prestadas em entrevista concedida ao autor em 08/07/2011.
26
CLAMOR, nº 9, Ano II, março de 1980, p. 2.
27
Ibid., p. 4.
28
CLAMOR, nº 12, Ano III, dezembro de 1980, p. 17.
29
Diferentemente do início da década de 1970, quando o golpe de Estado foi gestado na embaixada brasileira, o
atual embaixador chegou a abrir os portões da embaixada para manifestantes perseguidos pela polícia.
30
O motivo da condenação à morte foi o envolvimento no atentado contra Pinochet.

360
presos e de desaparecidos políticos e a prisão feminina Cárcere San Miguel. Nos relatos, Jair Krischke
recorda de uma jovem prisioneira de 19 anos que trazia nos braços um bebê, fruto de um estupro
durante as sessões de torturas. Chamou a atenção de Krischke o nome da criança, inscrito no babador:
Pablo Salvador. “Pablo por Neruda e Salvador por Allende”, exaltava a presa política mostrando
resistência mesmo em situação tão delicada. A saída dos ativistas brasileiros da prisão, após apurar a
situação das presas e levar-lhes mensagens de ânimo, foi acompanhada por canções da Unidad Popular
cantadas pelas prisioneiras. O último dia da visita contou com uma homenagem aos que haviam sido
mortos. Os representantes brasileiros reuniram-se com familiares das vítimas em frente ao Estádio
Nacional de Santiago – importante centro de detenção e tortura da ditadura chilena – para uma rápida
31
manifestação logo desbaratada pelas forças de repressão.

Considerações finais
Ao encerrar suas atividades, o grupo fez um balanço positivo de seu trabalho:

A história do CLAMOR prova uma coisa: pessoas que se unem em torno de um objetivo
claro, definido, e que põem todas as suas energias a serviço desta causa tão nobre
quanto a dignidade e a integridade da pessoa humana podem remover as montanhas
do medo, da indiferença e da opressão. Nosso grupo soube superar dificuldades para
32
manter o ideal à altura das necessidades da solidariedade.

O Clamor surgiu sem a pretensão de ser uma entidade permanente. Ao contrário, desde o início,
o trabalho do grupo era visto como uma atividade temporária, para ocorrer apenas enquanto a atuação
das demais entidades existentes no Cone Sul tivessem suas funções limitadas pela repressão. Ou seja,
nascido em um país que vivenciava sua longa e contraditória abertura política, o Clamor preencheu uma
lacuna em caráter emergencial, buscando garantir o suporte ao trabalho dos organismos congêneres.
Depois de atingidos seus objetivos, o grupo encerrou suas atividades em 1991, propositalmente, no dia
10 de dezembro, dia internacional dos direitos humanos. Naquele ano, mesmo as duradouras ditaduras
chilena e paraguaia já haviam devolvido o poder aos civis e o grupo, após organizar toda a sua extensa
documentação, decidiu que havia chegado a hora de parar. Com a democracia em vigor no Cone Sul, as
entidades de defesa dos direitos humanos recuperaram o espaço perdido e não precisavam mais do
Clamor como porta-voz. Poderiam, agora, trabalhar sozinhas, sem medo de sofrer represálias.
À repressão, o Clamor respondeu com solidariedade. Enquanto as ditaduras unidas ocuparam-
se com o uso da força e da violência para aniquilar adversários, o Clamor e demais grupos trabalharam
em conjunto para denunciar a opressão, oferecer resistência e restituir identidades e memórias mutiladas
pelos regimes repressores. Ao invés de utilizar o conflito para enfrentar o regime repressivo, o apelo à
solidariedade foi o recurso para mobilizar e angariar apoios. E, se houve uma operação internacional de
repressão existiu, também, uma rede internacional de defesa dos direitos fundamentais da pessoa
humana na qual o Clamor representou um importante e decisivo elo.

Fontes
Arquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul. Disponível no Centro
de Documentação e Informação Científica – CEDIC / PUC-SP.
Entrevistas com Jan Rocha, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, Thereza Brandão, Fermino
Fecchio, Luiz Eduardo Greenhalgh, Pe. Roberto Graind-Maison e Jair Krischke.
Fundo Omar Ferri. Disponível no Acervo da Luta contra a Ditadura no Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul.

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Alegre: Editora Suliani, 2009.

31
As informações sobre a visita ao Chile, em janeiro de 1987, foram prestadas por Jair Krischke em entrevista ao
autor no dia 18 de abril de 2012.
32
CLAMOR, Clamor: uma história de solidariedade, 10 de dezembro de 199, p. 5-6.

361
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362
X – Outras experiências de repressão e resistência
à ditadura

363
364
A democracia brasileira não foi doada: a resistência na ditadura civil militar brasileira

*
Diorge Alceno Konrad

(...) Por isso cuidado meu bem


Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós...
(Como nossos pais, Belchior)

A Princesa Isabel já figurou em nossos livros de História como “A Redentora”, aquela que, por ter
assinado a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, “libertou” os escravos brasileiros. Quando seu papel
protagonista na abolição foi sendo questionado, sobretudo pelos movimentos negros e “desde que
Zumbi passou a ser reconhecido como símbolo da luta antiescravista brasileira, foi reconsiderada parte
de nossa visão de história, não feita por heróis, mas tendo o Quilombo dos Palmares como
personificação e síntese da luta dos negros”, levando-se em consideração “os mais de 300 anos de
1
escravidão em nosso País” e “500 anos de luta pela liberdade e contra o preconceito” .
A retomada da defesa de Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga
de Bragança Bourbon e Orléans em papel de destaque para a liberdade dos escravos, em historiografia
que retoma a importância da princesa no processo abolicionista tem como exemplo a obra de Eduardo
Silva. Na “crise final da escravidão”, através de um “quilombo abolicionista”, se restaura a imagem da
Princesa Isabel com um novo tipo de liderança do processo, “com documentação civil em dia e,
principalmente, muito bem articulados politicamente. Não mais os poderosos guerreiros do modelo
anterior, mas um tipo novo de liderança, uma espécie de instância de intermediação entre a comunidade
2
de fugitivos e a sociedade envolvente”. Para o historiador, o quilombo do Leblon, que tinha como
idealizador o português José de Seixas Magalhães, “ajudava os fugitivos e os escondia na chácara do
Leblon com a cumplicidade dos principais abolicionistas da capital do Império, muitos deles membros
proeminentes da Confederação Abolicionista”, contando com “contava a proteção da própria Princesa
Isabel”, a qual “também protegia fugitivos em Petrópolis”, pois “todo o esquema de promoção de fugas e
alojamento de escravos foi montado pela própria Princesa Isabel”, participando do “ jogo político da
3
transição” .
Aqui, não se trata de negar o abolicionismo, cujos interessados maiores eram os próprios
escravos, em luta por sua liberdade muito antes do nascimento sejam de caifazes, sejam de liberais,
seja da própria Princesa. O historiador Mário Maestri, em mais de uma obra, defendeu que “foi a
abolição da escravatura, não a ação republicana que pôs fim à Monarquia”, através da “conjunção do
movimento abolicionistra radicalizado com as massas servis”m caracterizando a abolição como uma
4
Revolução .
Muito antes da Princesa Isabel ter retomado seu papel ativo na abolição, ao menos em parte da
historiografia, nossa “ciência social” defendeu outros protagonistas que saíam da seara individual: os
interesses imperialistas ingleses pelo fim do tráfico com a intenção de ex-escravos tornarem-se
consumidores de suas mercadorias “made in England”; os “progressistas” fazendeiros do Oeste Paulista,
incentivadores da mão de obra imigrante, especialmente a italiana.
Na primeira assertiva, Nelson Werneck Sodré chegou a destacar que “uma das condições que
influíram no nascimento e no desenvolvimento da burguesia brasileira – a condição essencial – foi o
aparecimento do imperialismo”. Assim, para o historiador, “desde a abertura dos portos, com o fim do
regime do monopólio comercial, a economia brasileira estava integrada na economia mundial e o
mercado interno estava, a partir de então, ligado ao mercado externo”, gerando efeitos no Brasil, a
medida que o século XIX avançava: “na sua primeira metade, dependentes da economia inglesa, éramos

*
Professor Associado do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Doutor em
História Social do Trabalho pela UNICAMP.
1
Esta hipótese já foi desenvolvida em KONRAD, Diorge Alceno. Na senzala a resistência, no quilombo a
liberdade: a obra de Clóvis Moura. In. QUEVEDO, Júlio; DUTRA, Marua Rita Py (orgs.). Nas trilhas da negritude:
consciência e afirmação. Discutindo a Lei 10.639/3. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2007, p. 116.
2
Ver: SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura. Disponível em:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_EduardoSilva_Camelias_Leblon
_abolicao_escravatura.pdf. Acesso em 15 set. 2013.
3
Idem.
4
Cf. Uma história do Rio Grande do Sul: República Velha. Vol. 3. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2001, p. 10.

365
clientes de seus banqueiros; na segunda metade, não apenas isso, também área de aplicação de seus
capitais”. Assim, Sodré desenvolverá a questão, demonstrando o fim da escravidão e a introdução da
5
imigração como parte deste processo de desenvolvimento capitalista no Brasil .
Em relação ao protagonismo dos fazendeiros do Oeste Paulista, Antonio Carlos Galdino
sintetizou em sua tese de doutorado as principais defesas presentes na historiografia, em passagem de
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, desenvolvida pelo artigo “O movimento republicano de
Itu: os fazendeiros do Oeste Paulista e os pródromos do movimento republicano” de Emília Viotti da
Costa (Revista de História, n. 20, 1954), bem como “a significativa produção historiográfica e sociológica
nas décadas de 1960 e 70, que consagrou ‘os fazendeiros do Oeste Paulista’ como um objeto de
pesquisa autônomo em relação ao problema específico do republicanismo”, reforçando a tese da
“suposta mentalidade mais progressista dos cafeicultores do Oeste Paulista em relação aos escravos e
imigrantes europeus”, conduzindo, assim, “inúmeras pesquisas e debates”. Galdino elenca ainda, entre
outros, na defesa desta tese, o artigo “Condições sociais da industrialização em São Paulo”, escrito por
6
Fernando Henrique Cardoso e publicado na Revista Brasiliense (n. 28, 1960) .
A historiografia, mesmo que ainda oculte e a academia reforce esta obliteração, já sabe há
tempos da obra de Clóvis Moura, falecido em 2003. Foi o historiador, sociólogo, jornalista e poeta, um
dos que mais no ensinou sobre a relação entre a escravidão em nosso passado histórico e a relação
7
com o racismo contemporâneo .
Em seu clássico e pioneiro Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, cuja
primeira edição foi publicada em 1959, Clóvis Moura afirma que o quilombo foi a unidade básica de
resistência do escravo, enquanto, o quilombola“era o elemento que, como sujeito do próprio regime
escravocrata, negava-o material e socialmente, solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava a
8
estratificação social existente” .
Sabemos que o fim da escravidão no Brasil perpetuou a dominação de uma classe dominante de
maioria branca que se metamorfoseou de senhor de escravo para uma incipiente burguesia agrária, que
transformou o trabalho assalariado, um avanço histórico, em novas formas de discriminação, colocando
os descendentes de escravos nos salários mais baixos, quando tiveram acesso a ele, no desemprego,
no subemprego. Esta é a herança mais perversa do "medo branco" (termo apropriadamente referendado
9
pela historiadora Célia Marinho de Azevedo ), em relação à maioria negra do Brasil, a fim de que esta
não tivesse, com o fim da escravidão, a igualdade social, econômica, política e cultural.
Em Rebeliões da Senzala Clóvis Moura afirma: “as revoltas dos escravos, como apresentamos
neste livro, formaram um dos termos de antinomia dessa sociedade”. Ou seja, não há como entender a
dominação do modo de produção escravista no Brasil sem estudar o seu antônimo, a resistência de
classe perpetrada pelos próprios escravos. Para Moura, que alarga esse entendimento mais ainda, as
revoltas não foram apenas um dos termos dessa antinomia. Pelo contrário, “foram um dos seus
elementos mais dinâmicos, porque contribuíram para solapar as bases econômicas desse tipo de
sociedade”, criando “as premissas para que, no seu lugar, surgisse outro tipo” de sociedade. Assim,
completa o autor, “as lutas dos escravos, ao invés de consolidar, enfraqueceram aquele regime de
10
trabalho, fato que, aliado a outros fatores, levou o mesmo a ser substituído pelo trabalho livre” .
Em Rebeliões de senzala, Clóvis Moura mostrou as diversas formas dessa resistência que, para
o autor, vistas em seu conjunto, representaram a luta de classes fundamental para se entender a
destruição da escravidão, fundamentalmente, pela ação histórica dos próprios escravos. Evidentemente,
neste processo de luta contra a escravidão, a luta escrava, bem explica o autor, não se deu apenas pela
resistência escrava, mas foi ela que dinamizou as outras formas e contradições que puseram fim ao
modo de produção.
Ao fazer a resistência, mesmo que inconscientemente, os escravos criavam as condições para a
projeção de um novo modo de produção assentado em uma forma em que o trabalhador não era mais

5
Ver. SODRÉ, Nelson Werneck. História da burguesia brasileira. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 134 a 153,
especialmente 134-135.
6
Galdino mostra que Emília Viotti reveria esta posição mais tarde, em Da senzala à Colônia, quando “passou
a sustentar a existência de uma diferença entre os fazendeiros do Oeste paulista e do Vale do Paraíba em termos de
comportamento e não de mentalidade, particularmente nos seus trabalhos sobre o tema da escravidão e a transição
para o trabalho livre em São Paulo”. Ver: GALDINO, Antonio Carlos. Campinas, uma cidade republicana: política e
eleições no Oeste Paulista (1870-1889). Tese de Doutorado. Campinas: IFCH-UNICAMP, p. 5-6.
7
As passagens a seguir encontram-se de forma ampliada em KONRAD, 2007, op. cit., p. 117, passim.
8
Estas considerações conclusivas não são apresentadas na primeira edição de Rebeliões de senzala,
lançada peal Edições Zumbi, em 1959. Conferi-las em MOURA, Clóvis. Rebeliões de senzala: quilombos,
insurreições e guerrilhas. 4 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 269 e 271.
9
Cf. AZEVEDO, Célia Marinho M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
10
Grifos nossos. As considerações acima se encontram em MOURA, Clóvis, Rebeliões da Senzala. 4 ed.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 269.

366
sim uma simples mercadoria. Vendedor da sua força de trabalho em forma de trabalho assalariado.
Dessa forma, continua Clóvis Moura, o escravo rebelde possibilitava os novos níveis de desajuste, pois,
ao retardar o processo de produção, criava condições para o desenvolvimento de pólos intermediários
que empurravam toda a sociedade para novas formas de convivência social, cultural e econômica.
Somam-se a isso as contradições geradas pelas formas coloniais de produção e de intercâmbio da
economia mundial, o que contribuía para acelerar a pressão internacional para o término de formas de
produção colonial e escravista. Afinal, o mercado capitalista em expansão necessitava a ampliação do
número de consumidores de seus produtos. Assim o quilombola não era um termo morto ou negativo,
mas, fundamentalmente, ativo e dinâmico, influenciando também o movimento abolicionista em suas
diversas matizes, a fim de que o Brasil transitasse da mão-de-obra escrava para a assalariada.
É justamente esta a inovação central da obra de Clóvis Moura, em contraposição a uma
historiografia tradicional que apenas apresenta o escravo como elemento positivo da sociedade
escravista, no qual o escravo aceitou passivamente a sujeição que lhe era imposta pelos senhores de
escravos. Para Moura, mesmo quando a resistência era passiva, ela contribuía, no geral, para a luta
contra a própria escravidão.
Para Clóvis Moura, esta resistência veio de várias formas: as formas passivas: a) o suicídio, a
depressão psicológica (o banzo); b) o assassínio dos próprios filhos ou de outros elementos escravos; c)
a fuga tradicional; d) a fuga coletiva; e e) a organização de quilombos longes das cidades; as formas
ativas: 1) as revoltas cotidianas pela tomada do poder; 2) as guerrilhas nas matas e estradas; 3) a
participação em movimentos não escravos; 4) a resistência armada dos quilombos às invasões
11
repressoras; e 5) a violência pessoal ou coletiva contra senhores ou feitores .
Não se trata de, então, de desperceber a Princesa Isabel, os interesses do imperialismo inglês
ou os fazendeiros do Oeste Paulista no fim da escravidão, muito menos do abolicionismo, mas entender
o eixo principal do processo de lutas de classes antiescravista. Se os ex-escravos não se constituíram
em poder político e governo após a abolição, este sim ainda é um problema a ser mais bem explicado
pela historiografia. Mas negar seu protagonismo na luta antiescravista ainda tem sido a marca mais
contundente de nossa historiografia, outro silenciamento dos vencidos, parafraseando o que já disse
12
Edgard de Decca há alguns anos em torno de outros projetos de revolução presentes em 1930 .

A Resistência Também é Historiográfica

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
(Cálice – Chico Buarque)

Dissemos tudo isto até aqui, para compararmos com outro momento do processo histórico
brasileiro, sem corrermos o risco do anacronismo: a resistência durante toda a Ditadura Civil-Militar no
Brasil.
Desde que o ditador Errnesto Geisel passou a ser “protagonista” da “distensão”, e outro ditador,
João Baptista Figueiredo foi alçado como artífice da “abertura”, se reforça a ideia de “transição pelo alto”
entre a Ditadura e a Democracia pós-1985 em nosso País. Isto é, o Golpe de 1964 instaurou a Ditadura
e nossas classes dominantes e as Forças Armadas golpistas e os generais de plantão, quando lhes foi
conveniente, “decidiram” terminar com o Terrorismo de Estado. Desta “transação política, resultou o
governo da “Nova República” e de José Sarney (1985-1990), antigo líder no Congresso do Partido
Democrático Social, o PDS, nascido com o DNA da ARENA.
Assim, a resistência à Ditadura e o processo da luta de classes, nesta estratégia argumentativa,
são deslocados da História, transformando em elementos principais outros “fatores” históricos que
explicam o fim da Ditadura de Segurança Nacional. Assim, o “Regime Militar”, termo eufemístico
cunhado pelos próprios ditadores, numa das vertentes argumentativas, vai ter os personagens de Geisel
e Figueiredo, somando-se com a “eminência parda” Golbery do Couto e Silva e os “sorbonnistas”, como
aqueles que decidiram realizar a transição, como se a História continuasse a ser a ação de indivíduos
que tomam ou mudam de posição conforme os seus desejos políticos e individuais; na outra ponta,
aparece a oposição consentida, nucleada no Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, transformado
em Partido com a volta do pluripartidarismo restrito de 1980.
Muitos dirão que resgatar a luta de classes e os conflitos sócio-políticos para entender a o fim da
Ditadura Civil-Militar pós-1964 é uma “história militante”. Mesmo que ainda seja preferível, no caso deste

11
Idem, p. 273.
12
Ver: DECCA, Edgar de. 1930: o silêncio dos vencidos. Memória, história e revolução. 5 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1992

367
artigo, uma “história militante”, não se trata, por obviedade de reforçar tal “reducionismo”. A “história vista
de baixo” quando não percebe as formas de dominação e de poder, também oblitera o processo, sendo
tão problemática quanto uma história de heróis ou uma construção histórica que dá ao “Estado” o papel
de sujeito do processo, neste caso, transformando o aparato jurídico-político em personificação social, tal
como sempre fez a historiografia de fundo liberal.
Evidenciar os movimentos sociais e políticos que resistiram à Ditadura Civil-Militar no Brasil
(1964-1985) é colocar em patamar diferente aquilo que já foi adiantado por Caio Navarro de Toledo,
quando argumentou que o Golpe de 1964 foi um Golpe contra a incipiente democracia política brasileira,
contra as reformas políticas e sociais em debate durante o Governo de João Goulart; contra a politização
das organizações dos trabalhadores, camponeses e estudantes e contra o rico debate cultural e
intelectual que vivia o país. Para levar adiante um golpe de direita contra as reformas de base e a
democracia e uma ditadura das classes dominantes, e seus ideólogos, civis ou militares, como já disse o
autor, foi preciso destruir as organizações políticas e reprimir os movimentos sociais de esquerda e
13
progressistas .
Aqui, sem negar-se a priori, a complexidade da luta de classes durante a Ditadura, a qual
evidencia as contradições mais profundas do processo de Golpe, da Ditadura em si e da “transição
democrática”, dar prioridade ao tema da resistência é deslocar do eixo secundário para o eixo principal a
explicação sobre nossos 21 anos de Terrorismo de Estado perpetrado pelas nossas classes dominantes
em aliança com o capital estrangeiro e, sobremaneira, com os interesses norte-americanos em nosso
País.
Trata-se de dizer mais sobre Caparaó e as primeiras tentativas de resistência guerrilheira ao
arbítrio; de entender o significado mais profundo do descontentamento da chamada classe média
readicalizada que marcha na passeata dos Cem Mil, em 1968; de se aprofundar o significado da
Guerrilha do Araguaia e da tática política do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no mais longevo
movimento armado de resistência à Ditadura, bem como perceber a luta de outras organizações como a
Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o
Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o Partido Operário Comunista (POC), a VAL-PALMARES, o
Comando de Libertação Nacional (Colina), a Ala Vermelha do PCdoB e tantas outras organizações da
luta armada, bem como a resistência pacífica e institucional, seja do Partido Comunista Brasileiro (PCB),
seja do MDB e, no final da Ditadura, no Partido dos Trabalhadores (PT), do Partido Democrático
Trabalhista (PDT) ou do próprio PMDB, entre outros.
A Ditadura Civil-Militar brasileira, sempre é bom reforçar, foi marcada pela Doutrina de
Segurança Nacional e pelo Terrorismo de Estado, Suas marcas foram a “Operação Limpeza” contra os
movimentos sociais camponeses e sindicais, sobretudo no imediato pós-Golpe, mas insuficiente para
aplacar a resistência, necessitando-se do Ato Institucional nº 5 (AI-5) de 13 de dezembro de 1968, bem
como dos aparelhos de terror como o Destacamento de Operações de Informações-Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), o Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de
Informações da Marinha (CENIMAR), o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), a Operação
Bandeirantes (OBAN), o Serviço Nacional de Informações (SNI) e os Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS), assim como a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), tudo coordenado pelo
14
Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN) .
Este amplo aparato do Terrorismo de Estado resultou nas prisões, na tortura, na censura, no
exílio, nos assassinatos e nos desaparecimentos, exemplificados pelo extermínio da Luta Armada e pela
morte de muitos que não partilhavam desta estratégia, como Vladimir Herzog e Manuel Filho, ou pela
Chacina da Lapa, em 1976, assim como os atentados terroristas que explodiram bancas de revista e que
levaram a carta-bomba que vitimou a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Lydia
Monteiro da Silva, além do enigmático atentado do Riocentro. Somou-se a isso a Operação Condor, mas
todas elas ineficientes para impedir a crise da política econômica da Ditadura que levou ao fim do
“milagre econômico”, assim como ao fim da censura; a crise política e a vitória do MDB em 1974; mas
especialmente a volta dos movimentos sociais e políticos através das Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs), da luta pela moradia e pela terra (CONAM e MST), bem como a mobilização nas ruas de
estudantes, das greves operárias do ABC e de tantas outras categorias de trabalhadores, todas elas no
processo de luta Pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, na Luta pela Constituinte Livre e Soberana e na

13
Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In. REIS FILHO, Daniel
Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar. 40 anos depois (1964-
2004). Bauru: Ed. da USC, 2004, p. 67-68; do mesmo autor, cf. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia”.
In. Revista Brasileira de História. Dossiê Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964), v. 24, n. 47. São Paulo: ANPUH-
CNPQ, jan. a jun. de 2004, p. 13-28
14
Ver mais sobre isso em: FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem
e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.

368
luta pelas “Diretas Já”.
Se a historiografia não evidenciar tudo isso e a própria resistência, aí sim abrirá mão de entender
as contradições mais profundas da Ditadura Pós-1964, não deixando, portanto, de fazer uma “história
militante”.

A Resistência contra a Ditadura Civil-Militar Brasileira

(...) Cai o rei de Espadas


Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai, não fica nada.
(A Cartomante - Ivan Lins)

A resistência a Ditadura já começou imediatamente após o Golpe e qualquer levantamento


factual responde a isso. Se na conjuntura de início de 1964, quando o Governo João Goulart
regulamentava a lei de remessa de lucros e realizava Comício da Central do Brasil , contraposto pela
ação político-ideológica dos Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais-Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IPES-IBAD), pelas marchas da Família, com Deus, pela Liberdade e pelo próprio Golpe
Civil-Militar de março, as lutas sociais e políticas já demonstravam o avanço da luta de classes no Brasil,
não seria apenas o 31 de março que poria fim a elas, mesmo que a tentativa de uma nova rede de
15
legalidade, a exemplo de 1961, tenha sido derrotada .
Em 9 de abril, foi Decretado o Ato Institucional, o qual conferiu ao presidente da República
poderes discricionários para cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos. Um dia depois, a
sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que seria declarada extinta em outubro, foi
simbolicamente incendiada por defensores da Ditadura. Em 9 de novembro, por sua vez, foi sancionada
a Lei n. 4.464 (Lei Suplicy) proibindo atividades políticas estudantis. De imediato, a resistência dos
estudantes se iniciou, com a UNE e as Uniões Estaduais passando a atuar na clandestinidade. Ainda em
dezembro de 1964, Nara Leão, Zé Keti e João do Vale denunciavam no show Opinião o aumento da
escalada de arbítrio, somando-se a líderes partidários e dos movimentos sociais e políticos, os mais
perseguidos nos meses que se seguiram ao Golpe.
1965 iniciou com os Ato Institucional número 2, extinguindo os partidos existentes e conferindo
ao Ditador de plantão, naquele momento Castelo Branco, poderes para cassar mandatos eletivos e
suspender direitos políticos, e número 3, estabelecendo eleição indireta para governadores e terminou,
em outubro, com o decreto de recesso do Congresso Nacional, ainda em outubro. Mas, as
manifestações e o início da guerrilha anunciava o que os ditadores iriam enfrentar. Ainda em março,
enquanto Castelo Branco era vaiado em aula inaugural na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), protestos anti-ditadura ocorriam na Universidade de Brasília (UnB) e no Fundão, também no Rio
de Janeiro, somando-se a tentativa guerrilheira comandada pelo coronel Jeferson Cardim, quando 23
16
homens tomaram a cidade de Três Passos, no Rio Grande do Sul .
No ano seguinte, a Ditadura passou a perseguir alguns de seus apoiadores de 1964. Em junho,
Ademar de Barros foi afastado do governo de São Paulo e cassado, ao mesmo tempo em que o MDB
decidiu não apoiar a "eleição presidencial indireta", ação que colocava por terra a esperada eleição de
1966 que, segundo a esperança de alguns, devolveria o poder aos civis. Da eleição indireta, em outubro,
saiu o Ditador Costa e Silva, somando-se com a cassação dos mandatos de vários deputados federais
mais um recesso do Congresso. A resposta, no mesmo mês, foi o lançamento da Frente Ampla,
antiditadura, unindo João Goulart, Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, estes dois últimos, defensores
do Golpe de 1964. Antes disso, ocorrera o 28º Congresso da UNE, já o segundo na ilegalidade, num
convento em Belo Horizonte e o protesto nacional estudantil se setembro, o que fez a UNE eleger o dia
22 como o Dia Nacional de Luta contra a Ditadura. Como resultado, a polícia invadiu a Faculdade de
Medicina da UFRJ e expulsou os estudantes com extrema violência, no episódio conhecido como o
Massacre da Praia Vermelha.
Em 1967, quando foi outorgada a Constituição da Ditadura e sancionada a lei de censura da
imprensa e a nova Lei de Segurança Nacional (LSN), logo jornalistas e artistas passaram a denunciar o
aumento do controle e da repressão, tanto que, em novembro, a Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), apoiadora do Golpe de 1964, condenou as prisões de clérigos que se opunham à

15
Em relação ao Rio Grande do Sul, no processo histórico de 1961 a 1964, abordando a luta de classes entre
a Legalidade e o Golpe, ver: KONRAD, Diorge Alceno; LAMEIRA, Rafael Fantinel. Campanha da Legalidade, luta de
classes e Golpe de Estado no Rio Grande do Sul (1961-1964). In. Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Disponível
em:
http://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/23249/18242.
16
Sobre a tomada de Três Passos e a ação comandada por Cardim, consultar: SILVA, José Wilson da. O
tenente vermelho. 3 ed. Porto Alegre, Tchê, 1987.

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Ditadura e que se manifestaram contra a repressão ainda em agosto.
Um ano depois, a Ditadura, não conseguindo impedir a resistência e os protestos, começa a
construir o Golpe dentro do Golpe. Ainda em abril, foi extinta a Frente Ampla e 68 municípios são
enquadrados como territórios de segurança nacional. Em 21 de junho, no Rio de Janeiro, a repressão
desencadeia a “Sexta-Feira Sangrenta’, quando a Polícia Militar reprimiu a passeata por mais verbas no
Rio. Depois de várias horas de luta de rua, o saldo foram 28 mortos.
Além disso, a atitude do Terrorismo de Estado estimular os grupos para-militares, como o
Comando de Caça aos Comunistas (CCC) que, em São Paulo, depredou o teatro onde era apresentada
a peça Roda Viva, de Chico Buarque, agredindo diversos artistas. Somou-se a isso, em julho, o atentado
a bomba contra a sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), bem como, a bomba na livraria
Civilização Brasileira, engajada na oposição, em setembro, o atentado, em Recife, à casa de D. Helder
Câmara, vitimando seu secretário e a bomba no Teatro Opinião, Rio de Janeiro, em dezembro.
Como reação a repressão, em 1968, estudantes ampliaram seus espaços de manifestação
pública. Ainda em março, quando o secundarista Édson Luís de Lima Souto foi morto pela Polícia Militar
no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, 50 mil pessoas compareceram ao enterro, enquanto a
UNE decretou greve geral. O resultado foram os protestos estudantis por todo o País, momento em que
a repressão matou mais três, no Rio e em Goiânia. O 4º aniversário do Golpe resulta em 30 feridos,
quando o Exército ocupou o Centro do Rio, já no início de abril.
No dia seguinte à “Sexta-Feira Sangrenta”, intelectuais fizeram passeata de protesto,
estimulando para que, no dia 26, ocorresse a Passeata dos 100 mil, a maior manifestação de rua até
então contra a Ditadura. Em 4 de junho, nova passeata estudantil reuniu 30 mil no Rio de Janeiro. Como
resposta, o general Eurico Garrastazu Médici, então chefe do SNI, sugeriu um novo Ato Institucional para
aumentar a repressão. Ainda, em 19 de julho, a 9ª assembléia da CNBB condenou a falta de liberdade
no Brasil. Em São Paulo, em 2 de outubro, ocorreu a Batalha da Maria Antonia, confronto entre alunos
da Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e grupos de extrema-direita e armados da
Universidade Mackenzie, ocasião em que o secundarista José Guimarães foi morto pela Polícia Militar. A
luta estudantil de 1968 ainda culminaria com o Congresso da UNE de Ibiúna, no interior de São Paulo,
quando cerca de 1.240 estudantes de todo o País foram presos, quando participavam do 30º Congresso
da clandestina entidade. Depois da prisão, aumentaram os protestos por todo o Brasil, com a palavra-de-
ordem "A UNE somos nós, nossa força, nossa voz!", com passeatas estudantis em diversas cidades.
As manifestações de rua de 1968 também foram a senha para novas greves operárias. Em 16 de
abril, 15 mil metalúrgicos de Contagem, em Minas Gerais, iniciam a greve por aumento de 10% nos
salários. Três meses depois, em 17 de julho, a greve atingirá metalúrgicas de Osasco, em São Paulo,
com ocupação da Cobrasma, quando os operários deixam a fábrica sob a mira de metralhadoras do
Exército. Neste meio tempo, no Primeiro de Maio, em São Paulo, trabalhadores jogaram pedras no
governador e apoiador da Ditadura, Abreu Sodré, tomando o palanque da Praça da Sé e fazem um dos
protesto mais simbólicos contra a Ditadura. Depois das greves operárias de Minas Gerais e São Paulo,
em outubro, ocorreu a Greve do Cabo, em Pernambuco, com cerca de 10 mil canavieiros parados.
A Ditadura de Segurança Nacional não poderia tolerar tanta resistência ao seu projeto. O
pretexto para maior fechamento da Ditadura (ainda em novembro, no dia 22, o governo criou o Conselho
Superior de Censura), que não continha as manifestações de rua veio com o discurso antimilitarista do
deputado do MDB, Márcio Moreira Alves, contra a invasão recém ocorrida da UnB. No dia 13 de
dezembro, a Câmara dos Deputados rejeitou por 216 votos a 141 o pedido de licença para processar o
deputado. O AI-5 será decretado neste mesmo dia, com nova onda de cassação de mandatos e
ampliação da censura. Como resultado imediato, no dia 22, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros
músicos são presos na Boate Sucata, Rio de Janeiro, enquanto no dia 30, saía a primeira lista de
17
cassações, encabeçada por Márcio Moreira Alves. Findava o ano que não terminou .
Mas não bastava o AI-5. Em 1969, o Ato Institucional nº 10, por exemplo, imporá aposentadoria
para professores universitários por todo o Brasil, enquanto o AI-14 estabeleceu a pena de morte e o
Decreto-Lei n. 898 fixou o "inimigo interno" como alvo da "Segurança nacional". Não bastasse isso, a
Ditadura cassou mais trinta e três mandatos de deputados, suspendeu as eleições (no AI-7, ainda
durante o Governo do Ditador Costa e Silva), estabeleceu a censura prévia de livros e revistas pelo
decreto-lei n. 1.077, em 1970, bem como a edição dos “decretos reservados”, a partir de novembro de
1971. O AI-5, assim, abriu guarida para a criação do CIE e do CISA, em 20 de maio, e a criação da
OBAN, também o gérmen da consolidação do Terrorismo de Estado do “sistema CODI-DOI”, o qual se
consolidará com o decreto n. 68.447 , de 30 de março de 1971, o qual reorganizou o CENIMAR. Somou-
se a isso a inauguração da Escola Nacional de informações, já em 1972, bem como a Lei 5.786, que
tornou mais repressiva a Lei de Segurança Nacional, decretada em 27 de junho de 1972.
O golpe dentro do golpe era a senha também para o auge da Ditadura Civil-Militar no Brasil,

17
Sobre 1968 como o ano que não terminou, ver: VENTURA, Zuenir. 1968 - O ano que não terminou. 14 ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

370
simbolizada pela posse do ditador Emílio Garrastazu Médici, em 30 de outubro de 1970. Com Médici na
linha de frente, a repressão esmagará a guerrilha urbana e iniciará o combate à Guerrilha do Araguaia,
comandado pelo PC do B, terminando com os últimos focos de resistência apenas em 1975, já no
Governo do Ditador Ernesto Geisel, mesmo que, em dezembro de 1973, a Ditadura já tivesse obtido a
sua maior vitória, desarticulando a coluna vertebral dos três destacamento de resistência do maior
movimento de resistência armada.
O AI-5 não veio sem resistência e ela foi intensa, especialmente pelas diversas estratégias de
luta armada. Pouco mais de um mês depois da sua decretação, Carlos Lamarca, capitão do Exército, e
mais três militares levaram para a guerrilha da VPR um caminhão de armas, do quartel de Quitaúna, em
São Paulo, seguida da primeira ação armada de Lamarca na VPR, com a expropriação de duas
agências bancárias em, também em São Paulo, em 9 de maio de 1969. A ação da VPR será seguida, em
15 de agosto de 1969, através da reação da ALN, com a tomada da Rádio Nacional, em São Paulo, e a
leitura do manifesto contra a Ditadura. A resistência armada à Ditadura, nos meses seguintes à
decretação do AI-5 não arrefeceu. Em 18 de abril de 1970, cinco mil soldados realizam ação no Vale do
18
Ribeira, em São Paulo, contra o foco guerrilheiro dirigido pela VPR e por Carlos Lamarca . Numa ação
ousada, os guerrilheiros romperam o cerco de vinte dias, seguindo em direção à capital.
Menos de um mês depois, um comando do MR-8 e da ALN sequestrou o embaixador norte-
americano Charles Elbrick, sendo trocado por quinze presos políticos, com repercussão intensa e
internacional. Somaram-se a eles, em 1970, os sequestros do cônsul japonês Nobuo Okushi (trocado por
cinco presos políticos), do embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben (trocado
por quarenta presos políticos) e do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher (trocado por setenta
presos políticos). A reação da Ditadura será imediata, antes de terminar setembro, a OBAN captura e
assina na tortura Virgílio Gomes da Silva, o “Jonas” da ALN, um dos comandantes militares do sequestro
de Elbrick. Alguns dias depois, em 4 de novembro, Carlos Marighela, dirigente da ALN foi executado pela
ação do delegado Sérgio Fleury, na alameda Casa Branca, em São Paulo. A Ditadura não poupará
esforços para derrotar a resistência armada e, em 16 de janeiro de 1970, nas dependências do DOI-
CODI do Rio de Janeiro, trucida com empalamento o jornalista e dirigente comunista do PCBR, Mário
Alves. Uma semana depois será preso Joaquim Câmara Ferreira, novo comandante da ALN. Em um sítio
clandestino, comandado pelo delegado Fleury, depois de intensa tortura, morreu no mesmo dia. Ainda no
final de 1970, Eduardo Leite, o Bacuri, da ALN, também é executado pela equipe de Fleury, tendo as
19
orelhas decepadas, os olhos vazados e os dentes arrancados na tortura . A ação para a eliminação
física dos seus oponentes não tinha limites: em 20 de janeiro de 1971, o deputado cassado Rubens
Paiva foi sequestrado e desaparecido no Rio de Janeiro, depois de passar pelo DOI-CODI.
A resposta da resistência também será dada. Em 15 de abril de 1971, foi executado, em São
Paulo, o presidente da ULTRAGÁS, Albert Boilesen, financiador da tortura na OBAN, com o costume de
20
assistir as próprias sessões de tortura . A execução de Boilesen foi uma resposta ao assassinato do
operário Devanir José de Carvalho, então ex-militante da Ala Vermelha do PCdoB e dirigente do MRT,
ocorrido em 7 de abril de 1971, depois de ser metralhado e imobilizado dois dias antes na rua Cruzeiro,
no bairro Tremembé, em São Paulo, e levado para o DEOPS e torturado pessoalmente pelo delegado
Fleury e sua equipe.
A execução de Boilesen fará com que a Ditadura não dê trégua a perseguição, prisões, torturas,
mortes e desaparecimentos. Em 14 de maio de 1971, foi preso Stuart Angel, jovem militante do MR-8,
assassinado exatamente quatro meses depois de intensas torturas no CISA, na base aérea do aeroporto
21
do Galeão, no Rio de Janeiro . As ações de um oficial do Exército na resistência armada à Ditadura
eram intoleráveis. Assim, 17 de setembro de 1971, após perseguição intensa, a Ditadura executará, em
Ipupiara, no sertão baiano, Carlos Lamarca, juntamente com o operário José Campos Barreto, o
Zequinha, ambos já militando no MR-8.
O recrudescimento da repressão à luta armada também terá consequenecias nos grupos
guerrilheiros. Se ainda em janeiro de 1969, logo após o AI-5, a direção do PCdoB elaborará o

18
A VPR será destroçada definitivamente em 05 de janeiro de 1973, com o Massacre da Chácara São Bento,
quando a equipe do delegado Fleury ataca a organização em Paulista, Pernambuco, com o auxílio do agente
infiltrado cabo Anselmo.
19
A ALN será derrotada aos poucos pela repressão, culminando, entre outros: com a execução de do
estudante de Geologia da USP, Alexandre Vanuchi Leme, morto em 17 de março de 1973, após 24 horas de torturas
no DOI-CODI de São Paulo; assassinato de Ronaldo Mouthr Queiroz, também em São Paulo, em 6 de abril do
mesmo ano; eliminação, sob torturas, no DOI-CODI paulista, Luís José da Cunha, em 13 de julho; assassinato de
Helber Gomes Goulart, em 18 de julho de 1973.
20
Sobre este momento histórico da Ditadura, recomenda-se o filme Cidadão Boilesen, dirigido por Chaim
Litewski. Brasil, 2009, 92’.
21
Sobre a trajetória de Stuart Angel, bem como a busca de sua mãe pelo corpo do filho, resultando no
assassinato de sua progenitora, ver o filme Zuzu Angel, dirigido por Sérgio Rezende. Brasil, 2006, 110’

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22
documento “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil” , definindo a sua tática de resistência
armada contra a Ditadura, estabelecendo o movimento rural armado de resistência, pois o Partido já
concentrava parte de sua militância há cerca de três anos, no Bico do Papagaio, região entre os estados
de Maranhão, Pará e atual Tocantins.
Como resposta do Terrorismo de Estado, ainda 12 de abril de 1972, cerca de cinco mil soldados
do Exército, Aeronáutica e Polícia Militar atacaram moradores do sul do Pará, local da área da base
guerrilheira, levando os militantes do PCdoB à resistência em armadas, começa a Guerrilha do Araguaia,
a qual enfrentará a ditadura por mais de três anos. Como resultado, três meses depois, foi presa e
23
executada pelo Exército, com uma bala na cabeça, aos 22 anos, a militante Maria Lúcia Petit . O PCdoB
também será atacado nas cidades: em 25 de dezembro de 1972, o dirigente partidário e ex-deputado
estadual Lincoln Cordeiro Oest, preso cinco dias antes pelo DOI-CODI, foi executado no Rio de Janeiro;
para não ficar atrás, em 31 de dezembro, após quatro dias de tortura, no o DOI-CODI de São Paulo
assassina Carlos Danieli. O objetivo óbvio da repressão era desarticular as ligações do Partido com a
base guerrilheira no Araguaia.
Em 1973, com o aprofundamento da crise do “Milagre Econômico”, resultando em rearticulação
social da Igreja Católica, através da organização das CEBs em oposição à Ditadura e aumento da ação
da oposição consentida, através do MDB, ainda o Terrorismo de Estado fará a ação mais intensa para
derrotar a Guerrilha do Araguaia. Após duas expedições fracassadas em dois anos de ação na região,
em sete de outubro, o Exército iniciou a terceira e última campanha contra a Guerrilha do Araguaia, com
o lema “sem uniformes e sem prisioneiros”. A repressão terá seu momento culminante no natal desse
24
mesmo ano, quando os três destacamentos guerrilheiros foram desarticulados . Dois anos depois, em
Primeiro de janeiro de 1975, reconhecendo a derrota no Araguaia, o Comitê Central do PCdoB aprovará
a “Mensagem aos Brasileiros”, propondo a Constituinte livremente eleita, a abolição de todos os atos e
leis de exceção e a Anistia geral. A estratégia principal na luta contra a Ditadura mudará para a ação
25
institucional .
As torturas, praticadas no Brasil desde os primeiros dias do Golpe e negadas pela Ditadura
começam a repercutir em nível internacional. Em 21 de junho de 1970, o Brasil ganha o tricampeonato
de futebol no Méxixo, revertendo em propaganda política e ideológica para Médici e as marcas de
“Brasil: ame ou deixe-o” e “Ninguém segura esta Nação!”, mas, um mês depois, a Comissão
Internacional de Juristas, em Genebra, denunciou para a Organização dos Estados Americanos (OEA),
as torturas praticadas no Brasil. As denúncias de tortura, que naquele momento já eram feitas pela
Anistia Internacional, serão fundamentais para que a CNBB começasse a sua crítica à Ditadura que
apoiava até então. Em 13 de fevereiro de 1971, Dom Aloísio Lorsheider e Dom Ivo Lorsheiter foram
eleitos presidente e secretário-geral da CNBB, colocando uma ala francamente progressista na direção
da maior entidade dos católicos do Brasil.
Como resultado político maior da crise econômica, em 1974, ocorreu a vitória do MDB nas
eleições, tendo como resposta da Ditadura a chamada “Distensão”, já no governo do Ditador Ernesto
Geisel. Porém, a distensão na acaba com a repressão. 18 de março, Davi Capistrano, dirigente do PCB
foi morto sob tortura. Em 26 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nas
dependências do II Exército, em São Paulo, desencadeando ampla mobilização social na missa de
sétimo dia, reunindo cerca de oito mil pessoas e resultando no rompimento da censura da imprensa.
Somou-se a isto, 19 de agosto de 1975, o lançamento de bombas pela Aliança Anticomunista Brasileira
(AAB) na OAB e ABI do Rio de Janeiro, e no Centro de Estudos Brasileiros (CEBRAP), em São Paulo.
Não satisfeita, a Ditadura ainda eliminará o operário Manuel Fiel Filho, no mesmo local, em 17 de janeiro
do ano seguinte, enquanto no Massacre da Lapa, ação coordenada pelo II Exército de São Paulo, são
fuzilados integrantes do Comitê Central do PCdoB, como Pedro Pomar e Ângelo Arroio, em 16 de
dezembro, depois matando na prisão João Batista Drumond, bem como a posterior prisão e tortura de

22
Este documento será reforçado por outro, “Proclamação da União pela Liberdade e Pelos Direitos do
Povo”, distribuído para a população camponesa da região.
23
Em 1996, Maria Lúcia será a primeira guerrilheirado Araguaia a ter seu corpo identificado. Jaime e Lúcio
Petir, seus irmãos, também foram mortos na Guerrilha.
24
Nessa ação e nos meses seguintes, são presos e posteriormente executados os seguintes guerrilheiros
oriundos do Rio Grande do Sul: o estudante Cilon Cunha Brum, Simão ou Comprido, nascido em São Sepé; o
operário José Humberto Bronca, o Zeca Fogoió, nascido em Porto Alegre; Paulo Mendes Rodrigues o Paulo,
nascido em Cruz Alta. João Carlos Haas Sobrinho, o Juca, nascido em São Leopoldo, comandante médico-militar
havia sido morto em combate, em 30 de setembro de 1972 e também se encontra como desaparecido político até
hoje. Sobre os gaúchos no Araguaia, ver: SOUZA, Deusa Maria de Caminhos cruzados: trajetória e
desaparecimento de quatro guerrilheiros gaúchos no Araguaia. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS,
2006. Da mesma autora, cf. Lágrimas e lutas: a reconstrução do mundo de familiares de desaparecidos políticos do
Araguaia. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2011.
25
Três meses depois, no aniversário do Golpe de 1964, o ditador Geisel fará a primeira referência pública à
Guerrilha do Araguaia.

372
26
Elza Monnerat, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Joaquim de Lima e Maria Trindade, a caseira da Lapa, . O
Ditador Geisel ainda terá no currículo de seu governo o recesso do Congresso Nacional, em Primeiro de
abril de 1977, somando-se com a edição do “pacote de abril”.
Nada isso impedirá a continuidade da resistência à Ditadura, mesmo que por outras formas que
não a luta armada, haja vista a derrota histórica e final desta, já em 1975. Em 7 de julho de
1975, aparece o semanário Movimento (O Pasquim já vinha fazendo sua crítica política à Ditadura desde
27
1969 ), desde o início sofrendo forte censura, por defender as lutas democráticas, antiimperialistas e
populares, sobretudo por abordar temas como a Constituinte e a dívida externa. Em 9 de janeiro de
1977, o 4º Congresso Brasileiro de Magistrados fará apelo pró-Estado de direito, enquanto que em 8 de
fevereiro do mesmo ano, a 15ª assembléia da CNBB divulgará texto crítico à Ditadura. Em 28 de abril
será a vez da assembléia geral da ABI pedir anistia geral.
A conjuntura destas mobilizações e os atos repressivos do ditador Ernesto Geisel estimularão a
retomada dos movimentos sociais e o retorno dos mesmos às ruas. Em 19 de maio de 1977, no dia
nacional de luta estudantil pela Anistia, as punições cotidianas na UNB, deflagram uma greve estudantil.
Pouco depois, 4 de junho, quando a repressão desencadeou-se sobre o 3º Encontro Nacional dos
Estudantes, em Belo Horizonte, Minas Gerias, prendendo oitocentos, jornalistas da ABI assinaram por
liberdade de informação, crítica e opinião.
No mês seguinte, o 29º Congresso da Sociedade Brasileira da Proteção à Ciência (SBPC),
também se manifestará contra a repressão aos estudantes, pois a Polícia Militar de Brasília havia
prendido duzentos estudantes na UnB. A repressão em Brasília estimulará a greve dos estudantes da
USP, no início de agosto, enquanto Goffredo da Silva Teles, professor de direito da mesma Universidade,
lerá a “Carta aos Brasileiros”, clamando pelo estado de direito e defendendo a Constituinte. Em 20 de
setembro, a Polícia Militar de São Paulo, comandada pelo coronel Erasmo Dais, bloqueou o campus da
USP para impedir o 3º Encontro Nacional dos Estudantes e, dois dias depois, invadiu a PUC-SP,
prendendo oitocentos estudantes e queimando gravemente duas universitárias, levantando o protesto do
cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Depois disso, não há mais como segurar boa parte dos
estudantes brasileiros na resistência: ainda em 23 de agosto, acontecerá o Dia Nacional de Luta dos
mesmos contra a Ditadura. Ainda em setembro, como resultado, a Convenção extraordinária do MDB
defenderá a Constituinte Ampla e a Anistia.
Em 1978, que iniciou com 1º Congresso da Mulher Metalúrgica de São Bernardo, em 12 de
março, na Assembléia popular de sete mil pessoas, foi criada em São Paulo, o Movimento do Custo de
Vida, chamado depois de Movimento Contra a Carestia, um marco dos movimentos sociais urbanos e
28
populares na resistência à Ditadura . O País verá o auge do movimento pela Anistia iniciado ainda em
29
1975 , o que também estimulará os operários e o movimento sindical retornar as greves, pois o arrocho
salarial imposto aos trabalhadores desde 1973, bem como um período de aumento rápido da inflação,
acarretará em greves econômico-políticas. Em 12 de maio, explode a greve de mil e seiscentos
operários da Saab-Scania, em São Bernardo do Campo, por aumento de 20% nos salários. Quatro dias
depois a greve chega à Volkswagen do ABC Paulista, a maior fábrica do país, com 46 mil operários,
fazendo o Tribunal Regional do Trabalho declará-las ilegais. O efeito será contrário: elas se alastrarão
até a capital do estado. Depois de quase um mês de luta sindical, várias empresas do ABC darão a seus
empregados aumentos de 5 a 15%.
Em junho de 1978, no dia 7, em São Paulo foi fundado em São Paulo, o Movimento Negro
30
Unificado (MNU), um marcos do Movimento Negro em resistência à Ditadura . Quatro dias depois, as
greves que atingiam até então o sindicalismo privado, chegará nos Hospital das Clínicas de São Paulo,
paralisando sete mil trabalhadores da área da saúde. Em agosto, os professores estaduais de São

26
Também ainda não estão esclarecidas estão as razões das mortes de dois dos líderes da Frente Ampla,
todas ocorridas em momentos próximos, entre 1975 e 1976: Juscelino Kubitschek morreu em acidente de carro, na
via Dutra, em circunstâncias misteriosas, em 22 de agosto do ano seguinte. Seu sepultamento terá uma silenciosa
manifestação contra a Ditadura, com presença de cerca de trinta mil presentes; em 6 de dezembro do mesmo ano,
morreu de ataque cardíaco, na Argentina, João Goulart, o único Ex-Presidente a morrer no exílio em nossa História.
O enterro em São Borja, também terá trinta mil presentes. Ambos os casos são investigados sob a suspeita de
fazerem parte da Operação Condor.
27
Outro semanário importante foi Opinião, que, censurado pela Ditadura, deixou de circular em 23 de abril de
1977.
28
Em 27 de agosto de 1978, o Movimento do Custo de Vida reunirádez mil pessoas na Praça da Sé, em São
Paulo, após coletar 1,3 milhão de assinaturas. O protesto resultará em intensa repressão na capital.
29
Em 2 de novembro, ocorreu o Congresso pela Anistia, em São Paulo, resultando no Comitê Brasileiro pela
Anistia (CBA). Rapidamente, formam-se CBAs na maioria dos estados, organizados por bairros, escolas e
categorias profissionais, transformando a Luta pela Anistia em campanha nacional.
30
Como resultado, em 20 de novembro, o Movimento Negro elegerá a data da morte de Zumbi dos Palmares,
como Dia Nacional da Consciência Negra. Para o Movimento, o 13 de Maio e a Princesa Isabel não serão mais
datas simbólicas de sua redenção.

373
Paulo, iniciarão vinte e três dias de greve, a primeira após 1964, enquanto em setembro, no dia primeiro,
será a vez dos bancários de São Paulo, com sua primeira greve geral desde o Golpe. A Ditadura tenta
impedir as greves através da Portaria nº 3.337, visando proibir as articulações intersindicais e a Lei Anti-
greve de três de outubro, mas no dia, quando o industrial Cássio Scatena, ex-integrante do Comando de
Caça aos Comunistas (CCC), assassinou o operário Nélson de Jesus, na indústria Alfa, em São Paulo,
por reclamar do salário, a fábrica iniciou outra greve, agora de protesto.
A mudança da “distensão’ de Geisel para a “abertura” de Figueiredo, que tomará posse em 15 de
março de 1979, não resultará em doações democráticas do ditador. Pelo contrário: a pressão do CBA e
das centenas de comitês pelo Brasil afora, além dos comitês de exilados, é que levará ao decreto da
Anistia, em 28 de agosto. A pressão pela volta à democracia resultará no decreto que porá fim ao
bipartidarismo, ainda que a Ditadura impeça a legalidade dos partidos comunistas, como o PCdoB e o
PCB. Muito menos a Ditadura de Figueiredo deixará de lado a repressão, sendo enigmática a frase do
Ditador: “Quem for contra a Abertura, eu prendo e arrebento!”. Em 27 de agosto de 1980, uma carta-
bomba explodirá na sede da OAB, no Rio de Janeiro, matando a secretária Lydia Monteiro. Desde o
início daquele ano, diversas bombas explodiram no País, sobretudo atingindo bancas que vendiam
jornais e revistas de oposição. Os grupos terroristas e paramilitares de direita, sem ação efetiva contra
eles por parte da Ditadura, agiam aberta e/ou clandestinamente contra a redemocratização. Em 1981,
em 30 de abril, integrantes do DOI-CODI do I Exército explodiram acidentalmente a bomba dentro do
automóvel, antes do planejado atentado para o show de música alusivo ao Primeiro de Maio, no Rio
Centro, no Rio de Janeiro. A “armação” da Ditadura para responsabilizar a esquerda logo se mostrou
como um grande farsa. Depois disso, a Ditadura tratou de buscar apenas a eleição de seus candidatos,
31
como nas eleições para governadores, em 1982 , bem como impedir as Diretas para Presidente,
respondendo aos movimentos políticos iniciados em 1983. Como resposta, a Emenda das “Diretas Já”
foi derrotada no Congresso, um ano depois, em 25 de abril.
A vitória das eleições indiretas, em 1984, entretanto, não impediu a derrota da Ditadura e o
término dos vinte e um anos de terrorismo de Estado no Brasil. E isto é o mais significativo naquele
processo histórico de resistência, iniciado ainda nos primeiros dias de 1964. E coube papel decisivo
nesse processo ao protagonismo dos movimentos sociais e políticos de oposição que foram se
construindo ao longo dos anos, os quais se ampliaram na fase final da Ditadura, especialmente a partir
de 1979.
Foi naquele ano, com a ampliação das greves, de diversos tipos e categorias, que uma boa parte
dos brasileiros reencontrou o caminho para a reivindicação de direitos e de ampliação das mobilizações.
Com quase cem participantes, entre o Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Fortaleza, a greve de fome de
presos políticos contra a Anistia limitada, iniciada em 22 de julho de 1979, durou 23 dias e resultou na
condenação da OAB ao projeto de anistia do ditador Figueiredo. Foi a senha para que, em 14 de agosto,
vinte mil fossem às ruas no Rio pela anistia ampla, geral e irrestrita, mas ainda mobilização insuficiente
para a Anistia ampla, geral e irrestrita. Ainda em agosto, Figueiredo sancionou a Anistia, parcial, limitada
e recíproca, uma conquista importante, mas limitada, haja vista que colocou no mesmo pacote a isenção
dos ditadores, torturadores e do Estado brasileiro em relação aos crimes praticados até então. De
qualquer forma, parte dos presos políticos conquistou a liberdade, enquanto os exilados voltaram para o
País e a militância clandestina retornou à atuação política legal. Finalmente, João Amazonas, Luiz Carlos
Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes e tantos outros poderão continuar sua luta oposicionista em
território nacional.
A luta política pela anistia tinha correspondência nas lutas econômicas contra a Ditadura, pois os
trabalhadores foram os principais responsáveis para pagar a conta da política econômica, mais ainda
com a crise decorrente, sobretudo a partir de 1973. Em 30 de julho de 1979, a greve de oitenta mil
operários da construção civil de Belo Horizonte, resultou em um morto e cinquenta feridos. Uma semana
depois, os professores estaduais da Bahia também pararam o trabalho, sendo seguidos, depois de mais
sete dias pelos bancários de Belo Horizonte, MG e pela greve nos canaviais de Pernambuco, em 2 de
setembro, a primeira da categoria em onze anos. No meio delas, ocorreu, em 31 de agosto, o 1º
Congresso da Mulher Metalúrgica de São Paulo.
A ampliação dos movimentos grevistas vai se transformando rapidamente em greves políticas
contra a Ditadura, pois era assim que a Ditadura tratava os diversos movimentos. E os trabalhadores não
poderiam ficar restritos à compreensão de que faziam apenas greves econômicas: não havia mais como
derrotar a política econômica da Ditadura de Segurança Nacional no Brasil, sem derrotar a própria
Ditadura. Em finais de outubro 1979, a greve dos metalúrgicos de Belo Horizonte, de Contagem e de
Betim, em Minas Gerais será seguida pela parede dos metalúrgicos de São Paulo e Guarulhos,

31
Nas eleições de 15 de novembro de 1982, a oposição, em conjunto, conquista a maioria na Câmara dos
deputados, mesmo que não tenha conseguido eleger a maioria dos governadores, excetuando-se alguns estados de
oposição, como o Rio de Janeiro, que elegerá 15/11 - A oposição, em conjunto, conquista maioria na Câmara dos
deputados Leonel Brizola.

374
declarada ilegal pelo governo Figueiredo. A repressão não cedia e, em um piquete na metalúrgica
Sylvania, em São Paulo, a Polícia Militar matou a tiros o líder operário católico Santo Dias da Silva,
resultando em um protesto de mais de 10 mil no enterro. Ainda em setembro, a greve metalúrgica atinge
nove cidades do Rio de Janeiro. Cada vez mais mobilizada, os metalúrgicos de várias partes do País
continuarão fazendo greves, como em outubro, na greve metalúrgica da Belgo-Mineira e na greve de
doze mil, na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, no Rio de Janeiro.
No final de 1979, outra categoria que volta ativa às greves foi a dos bancários. Em 5 de
setembro, os bancos de Porto Alegre são fechados pela greve que resulta na intervenção no Sindicato e
em cinco prisões. Ali, nascia a liderança política de Olívio Dutra. A greve de Porto Alegre levou os
bancários a pararem o trabalho no Rio de Janeiro e em São Paulo, também com novas intervenções nos
sindicatos, prática recorrente desde o Golpe de 1964. Mas a Ditadura não tinha mais como evitar as
manifestações cada vez mais massivas nas ruas do País: em 5 de dezembro, os quebra-quebras de
trens no Rio de Janeiro e São Paulo, que seriam repetidos em 10 de abril de 1980, contra os trens na
Zona Leste de São Paulo, demonstravam as péssimas condições da mobilidade urbana nos grandes
centros populacionais brasileiros.
1979 também terá outra marca: em 29 de novembro, ocorreu a tomada simbólica da sede da
UNE, no Rio de Janeiro. Um dia depois, os estudantes enfrentaram o ditador Figueiredo, em
Florianópolis. Tudo isto no contexto da primeira eleição direta na UNE, ocorrida dias antes, em 3 de
outubro. Dali em diante, a Ditadura não conseguirá mais tirar a maioria dos estudantes brasileiros das
ruas, como no ano seguinte, em 21 de março, com o protesto contra a decisão da Ditadura em demolir a
sede histórica da UNE, no prédio incendiado pelos golpistas, ainda em 1964. A mobilização estudantil
somente se ampliará. No ano seguinte, em 13 de outubro, ocorrerá o 32º Congresso da UNE, em
Piracicaba, em São Paulo. No encontro, será eleito como presidente Aldo Rebelo. Dois anos depois, em
30 de setembro, após a gestão de Javier Alfaya, o 34º Congresso da UNE, realizado em Piracicaba, São
Paulo, elegeu uma mulher, Clara Araújo, como presidente da entidade máxima dos estudantes do Brasil.
A conjuntura dês greves não mudará no início da década. Em 16 de março de 1980, iniciou
a greve dos portuários de Santos, em São Paulo. Duas semanas depois, começou a grande greve de
trezentos e trinta mil metalúrgicos no ABC paulista, além de outras quinze cidades de São Paulo. Em
São Bernardo, durante quarenta e um dias. O movimento grevista conseguirá o feito político de pautar a
política brasileira. No décimo sétimo dia da greve, o Ministério do Trabalho interviu nos sindicatos, mas
não conseguiu terminar com a greve. Nessa conjuntura, se tornava cada vez mais nacional a liderança
política de Luíz Inácio ”Lula” da Silva, operário que, ainda em 10 de fevereiro, junto com outros
sindicalistas, intelectuais, líderes rurais e religiosos, havia criado, no colégio Sion, em São Paulo, o PT.
32
Em 19 de abril, treze líderes grevistas do ABC, entre eles Lula, foram presos e enquadrados na LSN .
Como a greve não terminava, uma semana depois, novas prisões de líderes grevistas aconteceram no
ABC. A repressão gera o seu contrário, o aumento da resistência. Em Primeiro de Maio, em São
Bernardo, centro e vinte mil trabalhadores foram para a greve, no contexto de ocupação da Polícia Militar
do centro da cidade. Após muita tensão e pressão, o governo foi derrotado e uma manifestação
gigantesca ocorre, antecedendo a histórica concentração no estádio da Vila Euclides. Em 5 de
maio, terminou, após trinta e cinco dias, a greve dos metalúrgicos em Santo André. Apenas seis dias
depois, depois de diversos choques entre piqueteiros e a Polícia Militar, os metalúrgicos de São
Bernardo voltaram ao trabalho, após a greve de um mês e onze dias, no movimento que desafiou a
Ditadura de Segurança Nacional. Alguns meses depois, 24 de novembro, por sua vez, foi a vez dos de
sete mil operários Greve pararem as obras da usina de Tubarão, no Espírito Santo.
Em 1980, os trabalhadores rurais e os movimentos indígenas também ampliaram suas
resistências, alguns deles sendo assassinados pela repressão. Em 29 de maio daquele ano,
foi assassinado Raimundo Ferreira, o Gringo, líder dos posseiros de Conceição do Araguaia, no Sul do
33
Pará. A ação dos grileiros levou quatro mil pessoas a um ato de protesto no enterro . Em 6 de junho de
1980, foi morto José Ribeiro, líder dos indígenas Apuriña. Em 8 de novembro, posseiros da gleba
Marabá, também no Pará, mataram nove jagunços que tentavam expulsá-los da terra. A ampliação da
luta pela terra levou à celebração, no Recife, da Missa dos Quilombos, com versos de Dom Pedro
Casaldáliga e a música de Milton Nascimento, em 22 de novembro. Seis dias depois, Mário Juruna,
cacique Xavante, viajou à Holanda para presidir o juri do Tribunal Bertrand Russel, abordando o
32
Em 25 de fevereiro de 1981, a Justiça Militar condenou Lula e mais dez sindicalistas do ABC. Mais tarde, as
penas serão revogadas. Em 7 de agosto, após quinze meses, terminou a intervenção no Sindicato, quando Jair
Menegueli foi eleito presidente.
33
No ano seguinte, em 13 agosto, ocorrerá o choque de posseiros de São Geraldo do Araguaia, no Pará, com
agentes da Polícia Federal. Já em 1982, em 16 de abril, posseiros ocuparam a fazenda Santa Cruz, em Conceição
do Araguaia, resultando em um morto e vinte e quatro feridos. Em 3 de novembro, em outro choque, dessa vez entre
posseiros e pistoleiros, novamente em Conceição do Araguaia, quatro trabalhadores rurais foram mortos e mais dez
ficaram feridos, transformando a região em uma das principais áreas de conflitos agrários do País. A região do
Araguaia retomava as lutas pela terra, uma das heranças políticas deixadas pela Guerrilha, uma década antes.

375
34
genocídio indígena . Uma semana antes do natal de 1980, flagelados saquearam a Feira de Pedra
Branca, no Ceará. A fome também se tornava, cada vez mais, motivo pra protestos contra a Ditadura,
como quase dois anos depois, em 20 de agosto, quando dois mil flagelados saquearam Senador
Pompeu, também no Ceará. No mesmo ano, em 20 de dezembro, será a vez de quatro mil flagelados da
seca saquearem comida em Campo Alegre, na Bahia. No ano seguinte, em 4 de abril, no Largo 13 de
Maio, na periferia de São Paulo, uma passeata de desempregados terminou em saque de
supermercado. Foi o início de uma onda de centenas de ações similares que se estenderá até o Rio de
Janeiro, como em 11 de abril, quando dezenas de desempregados saquearam caminhão de comida, no
Centro do Rio. Em 1983, em 12 de agosto, foi a vez de cem famílias flageladas da seca invadirem o
Palácio da Luz, sede do governo cearense. Dois dias depois, mil flagelados da seca saquearam comida
de posto da COBAL, em Canindé, também no Ceará, seguida por outros saques em Quixeramobim, no
mesmo estado e em Mossoró, no Rio Grande do Norte. No estado potiaguar, em 20 de setembro, duas
35
mil mulheres , impedidas de se alistar nas frentes de trabalho, levaram dez toneladas de alimentos, em
São Miguel. Uma semana depois, flagelados da seca saquearam armazém em Jardim das Piranhas, no
mesmo estado, prenúncio da grande greve de 45 mil canavieiros, iniciada 4 de outubro. Depois disso, já
em 1984, em 11 de fevereiro, flagelados atacaram a Feira de Ibimirim, em Pernambuco, em 14 de
fevereiro, dois mil flagelados atacaram armazém em Senador Pompeu, no Ceará, enquanto em Icó, no
mesmo estado, ocorreu enfrentamento com a Polícia Militar. Poucos dias depois, ainda em fevereiro, em
Pernambuco, uma passeata de cinco mil flagelados, em Afogados da Ingazeira, mobilizou trabalhadores
e pequenos agricultores por recebimento de salários nas frentes de trabalho e, em Águas Claras,
duzentos flagelados da seca levam vinte toneladas de comida, enquanto que, em 8 de março, três mil
flagelados saquearam o comércio de Arapiraca, em Alagoas
Nessa conjuntura de final da Ditadura, o movimento grevista não cederá, Ainda, em 28 de abril
de 1981, ocorreu a greve de sessenta mil médicos, no Dia Nacional de Protesto da categoria. Dois
meses depois, a greve dos médicos do Rio de Janeiro resultará na intervenção no Sindicato, com prisão
de seu presidente. As mobilizações sociais serão de todas as ordens. Antes dos médicos, os conflitos
urbanos já haviam marcado o novo ano, como no novo quebra-quebra dos trens suburbanos da Zona
leste de São Paulo, em 6 de fevereiro. Em 9 de abril, os quebra-quebras se repetirão em São Paulo. Em
20 de agosto, foi a vez de quebra-quebras de setecentos e cinquenta ônibus, em Salvador, após ato
36
contra alta da tarifa . Ainda em fevereiro de 1981, em Campinas, São Paulo, no Congresso de
professores do ensino superior, foi criada a Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior
37
(ANDES), depois da mobilização nacional da categoria .
O operariado brasileiro também continuará mobilizado, sobretudo na conjuntura de ampliação da
crise econômica. Em 4 de maio de 1981, a greve na Fiat do Rio barrou centenas de demissões
anunciadas. Em 6 de julho será a vez da greve de nove mil trabalhadores contra quatrocentas
demissões na fábrica na Ford do ABC paulista. Como resultado da greve, a categoria conquistou a
comissão de fábrica. Em 10 de agosto, a Mercedes Benz demitiu cinco mil e duzentos trabalhadores em
um dia. Indignados, os operários arrombaram o portão da fábrica. Em 4 de março de 1982, a greve de
cinco mil trabalhadores contra demissões no estaleiro Mauá, em Niterói, no Rio de Janeiro, marcou o
início do novo ano. No dia 10, inicia a Greve na COFERRAZ, fábrica de Santo André, em São Paulo,
que fechou sem pagar os operários. O movimento resultará na ocupação da fábrica pelos trabalhadores,
em 6 de abril. Ainda em abril, alguns dias depois, iniciou a greve em seis estaleiros navais de Niterói.
Em 7 de junho, milhares de garimpeiros de Serra pelada, no Pará, rebelaram-se contra a interrupção da
lavra manual de ouro, invadindo o garimpo, bloqueando estradas e tomando armas após invadirem
delegacias. Cinco dias depois, reconquistaram o direito à lavra.
A ampliação da reorganização da classe trabalhadora resultará, em 21 de agosto de 1982, em
Praia Grande, São Paulo, com cinco mil delegados de 1.126 entidades, na realização da Conferência
Nacional das Classes Trabalhadoras (CONCLAT), a qual elegeu a Comissão Pró- CUT. Um ano depois,
também em agosto, no dia 26, ocorrerá o início do Congresso de fundação da Central Única dos
Trabalhadores (CUT), em São Bernardo, o qual deliberará, no dia 31, na fundação da Central de

34
Em 7 de junho de 1982, ocorrerá a Primeira Assembléia Nacional das Nações Indígenas, em Brasília, com
a participação de duzentos delegados. Outra mobilização indígena importante se dará em 27 de março de 1984,
quando os Txukahamãe, liderados pelo cacique Raoni, bloquearam a BR-80 e fizeram m doze reféns, exigindo seu
território ao norte do Parque do Xingu, no Mato Grosso. Em 2 de maio, este levante dos Txukahamãe derrubará o
presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
35
A luta das mulheres brasileiras no final da Ditadura, resultou, em 25 de novembro de 1983, no Primeiro
Encontro Nacional da Mulher, em Belo Horizonte. Minas Gerais.
36
Depois disso, em 28 de outubro de 1983, outro quebra-quebra destruirá vários trens em São Paulo, bem
como outro ocorrerá em 30 de janeiro de 1984.
37
Em 18 de novembro de 1982, iniciou a greve nacional de um mês de professores e funcionários das
universidades federais, um marco da reorganização dos docentes e técnico-administrativos das Instituições Federais
de Ensino Superior (IFES) contra a Ditadura.

376
trabalhadores mais ativa e de oposição nos anos finais da Ditadura.
Ainda em 1982, a luta pela moradia, que continuou durante toda a Ditadura, entrará em novo
patamar para a organização dos movimentos sociais urbanos e populares. Em 17 de janeiro, em S.
Paulo, ocorrerá o Congresso de fundação da Confederação Nacional das Associações de Moradores
(CONAM). 16 de julho, sem-tetos ocuparam quase seis casas no Centreville, em Santo André, em São
Paulo, demonstrando o vigor da luta pela moradia no Brasil. Em paralelo, a luta pela terra não dava
tréguas à Ditadura. Em 12 de março, os sem-terra de Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul,
deixaram seu acampamento no rumo da conquista de um assentamento. Dali em diante, a repressão
não conseguirá mais impedir a mobilização dos sem-terra para sua organização política. Tanto que, em
de 21 a 24 de janeiro de 1984, no Encontro Nacional de Cascavel, no Paraná, foi fundado o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), acúmulo maior da luta pela reforma agrária contra a
38
Ditadura . Neste mesmo ano, em 13 de maio, ainda ocorrerá a greve de quatro mil canavieiros, na
região de Rio Verde, sul de Goiás e, dois dias depois, na greve de dez mil bóias-frias, em Guariba, São
Paulo, iniciando três meses de lutas nas áreas de plantação de cana e de laranja entre a região paulista
e mineira, resultando em violentos choques com a repressão e diversos incêndios de canaviais. Em 18
de maio, a onda grevista chegou aos doze mil bóias-frias de Sertãozinho, também em são Paulo, a maior
região produtora de açúcar do País. Muitos outros movimentos se seguiriam na luta de resistência dos
camponeses brasileiros: em 30 de julho, os canavieiros de Campos, no Rio de Janeiro entraram em
greve; em 10 de agosto mais uma vez os canavieiros de Sertãozinho paralisaram; em 16 de setembro,
ocorrerá a primeira greve geral dos canavieiros de Pernambuco após 1964, reunindo duzentos e
quarenta mil trabalhadores, seguidos por trinta mil do Rio Grande do Norte e centro e vinte mil da
39
Paraíba, no mesmo mês e em outubro . O renascimento sindical dos trabalhadores do campo, através
da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) estava consolidado. A mobilização
camponesa e dos sem-terras, por sua vez, terá marco simbólico com o “Grito do Campo”, realizado no
Rio Grande do Sul em 2 de outubro, e que reunirá quarenta mil pessoas contra a política agrícola da
Ditadura.
Nas cidades, as lutas e as resistências dos trabalhadores urbanos também não arrefeceram nos
anos finais da Ditadura. Ainda, em 1983, já no terceiro dia do ano, iniciou a greve dos quarenta e oito mil
servidores federais do Rio Grande do Sul. Em 27 de abril será a vez da greve dos metalúrgicos da
Grande Porto Alegre, sobretudo parando as fábricas de Canoas, cidade operária importante da região
metropolitana. Em 31 de maio, a greve na saúde pública de São Paulo paralisará totalmente a área em
vinte e nove cidades e parcialmente em mais cinquenta. Em 17 de junho, o protesto de funcionários de
estatais no Rio, reunindo seis mil trabalhadores, se ampliará para o Rio Grande do Sul, para o Pará, para
São Paulo e para o Distrito Federal. Todo esse acúmulo de mobilizações e greves de trabalhadores
resultará, em 21 de julho, na primeira greve geral nacional após o Golpe de 1964, obtendo êxito parcial e
contando com forte repressão da Ditadura, tendo como exemplos as intervenções nos sindicatos dos
Metroviários e Bancários de São Paulo. No final do ano, em 6 de novembro, será a vez da greve de vinte
mil mil sapateiros de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, bem como, dois dias depois, de nova greve
40
dos metalúrgicos do ABC paulista, paralisando sessenta mil operários da categoria . No ano seguinte,
outras greves mobilização o movimento sindical brasileiro, como: em 15 de maio, com a greve de trinta e
sete mil professores das universidades, com duração de oitenta e quatro dias; em 4 de junho, ocorreu
a greve de trinta mil professores de Pernambuco; em 18 de junho, a greve dos trabalhadores na
Previdência Social paralisou o atendimento em Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Goiás e Rio
Grande do Sul; em 19 de junho, se realizou a segunda greve história da CSN contra a Ditadura,
ocorrendo a ocupação simbólica da usina; em 29 de julho, iniciou a greve de sete mil na Siderúrgica
ACESITA, em Timóteo, Minas Gerais; em 9 de agosto, sete mil grevistas ocuparam a EMBRAER, em
São José dos Campos; em 22 de agosto, começou a greve dos motoristas e cobradores de ônibus que
parou Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; dois dias depois, a greve de petroquímicos paralisou
Camaçari, na Bahia; em 17 de setembro, onze mil metalúrgicos da COSIPA ocuparam a usina, em
Cubatão, São Paulo; em 7 de dezembro, a Greve Geral nacional de vinte e quatro horas parou o Banco
do Brasil em todo o País. Por fim, já nos estertores da Ditadura, em 1º de fevereiro de 1985, se realizou
a greve de vinte e dois mil nas indústrias de calçados de Franca, em São Paulo, com intervenção no
sindicato, resultando em oitenta feridos pela ação repressiva da Polícia Militar, enquanto que, quatro dias
depois, vinte e oito mil vigilantes de São Paulo paralisaram seus trabalhos.
A luta operária e do movimento sindical, dos movimentos sociais e populares, não poderia deixar
de resultar em nova retomada de luta política contra a Ditadura. Em 27 de novembro de 1983, ocorreu

38
De 29 a 31 de janeiro de1985, o MST realizou seu 1º Congresso Nacional, em Curitiba, Paraná
39
Os canavieiros de Ribeirão Preto, ainda farão greve de vinte e oito mil na região, em mobilização iniciada
em 4 de janeiro de 1985, a última da Ditadura.
40
Em 2 de abril de 1984, dez mil metalúrgicos de São José dos Campos, em São Paulo também entraram
em greve, na principal paralisação do último ano da Ditadura.

377
o primeiro comício pró-diretas, reunindo 10 mil pessoas no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Em 12
de janeiro do ano seguinte, em um comício que reuniu sessenta mil em Curitiba, oficialmente iniciou a
Campanha das “Diretas-Já” e o uso do amarelo como sua cor-símbolo. A resposta da Ditadura foi o
lançamento da candidatura a presidente de Paulo Maluf. A resposta da oposição foi o comício que reuniu
41
trezentas mil pessoas, na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro . São Paulo dará exemplo para
o resto dom Brasil. Outro comício pró-Diretas, reuniu duzentas e cinquenta mil pessoas em Belo
Horizonte, em 2 de fevereiro; em 21 de março, uma passeata de trezentos mil se realizará no Rio de
Janeiro; uma prévia para o 10 de abril, quando o comício de um milhão e duzentas mil pessoas pelas
defenderão as Diretas-Já, na Candelária; em 12 de abril, aconteceu o comício pró-Diretas, em Goiânia,
reunindo duzentas e cinquenta mil pessoas; mas, o maior deles ainda viriam no mesmo mês: no dia 16,
um milhão e milhão setecentas mil pessoas se reuniram no Anhangabaú, em São Paulo. Era o auge do
Movimento pelas Diretas-Já. Tanto que, dois dias depois, o ditador Figueiredo decretou estado de
emergência no Distrito Federal. A maior mobilização de rua desde o início da Ditadura, e que reuniu
milhões de brasileiros (como no panelaço ocorrido em várias cidades na véspera da votação da emenda
das Diretas, em 24 de abril), entretanto, não resultou em vitória da emenda das Diretas, que não passou
na Câmara dos Deputados, pois, com 298 votos a favor, 65 contra e 112 ausências, obteve 22 votos a
menos que os dois terços exigidos. Dialeticamente, a Ditadura saía vencedora, pois impedia as eleições
42
diretas para presidente, mas saía derrotada politicamente do episódio .

Conclusão
A Ditadura terminará em 15 de março de 1985, não sem antes ocorrer uma vitória parcial das
classes dominantes. A derrota das “Diretas Já’, o maior movimento de massas desde o Golpe de 1964
no Brasil, foi um prenúncio que levou, em 15 de janeiro de 1985, a eleição indireta para a Presidência de
Tancredo Neves e José Sarney (ex-líder do PDS, embrionário da ARENA, no Congresso e articulador do
Golpe que depôs Jango) no Colégio Eleitoral, vencendo o candidato da Ditadura, Paulo Maluf.
A partir de então, os partidos comunistas, a UNE e as centrais sindicais conquistariam a
legalidade. Ao menos institucional e politicamente a Ditadura estava derrota.
Apesar disso tudo e da resistência intensa, através da ação e mobilização dos movimentos
sociais e populares de oposição à Ditadura, tal qual o protagonismo dos escravos cem anos antes, a
correlação de forças impediu que tais movimentos se transformassem em pode político para chegar ao
Executivo do País, em 1985. A “Nova República”, com Sarney a frente, neste aspecto, como dizia
Florestan Fernandes na época, foi uma “transição pelo alto”. Assim, como fora a República de 1889, com
Floriano Peixoto a frente. Marcas das nossas “metamorfoses” políticas ao longo da História da formação
43
sócio-econômica brasileira .

41
Este comício ganhou notoriedade internacional, haja vista que aTV Globo ignorou o que se passava,
situação que logo mudará.
42
Ainda em 27 de junho, um comício no Rio de Janeiro tentou relançar a luta pelas Diretas já, mas a Ditadura
seria derrotada de forma indireta, com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985,
por quatrocentos e oitenta votos, contra cento e oitenta votos para Paulo Maluf e dezessete abstenções.
43
A ideia de ‘metamorfoses” nas transformações históricas, na dialética de continuidades e rupturas, a partir
do sociólogo francês Robert Castel, foi defendida pelo autor sobre 1930, em sua tese de doutorado. Cf. O fantasma
do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937). Campinas: IFCH-
Unicamp, 2004.

378
Mulheres vítimas da Ditadura Militar: luta e afirmação de gênero e os Direitos Humanos

1
Giselda Siqueira da Silva Schneider

Resumo: O presente artigo visa analisar a história das mulheres durante a Ditadura Militar no Brasil,
através da consideração de como tais foram vítimas: mulheres desaparecidas e mulheres mães na
busca pelos seus filhos, e se seria possível uma comparação com as Mães da Praça de Maio na
Argentina. Verificar o que oficialmente construiu-se acerca dessa história, como tais mulheres
manifestaram-se diante dessa situação. O que pretende-se é verificar como a história dessas mulheres
foi retratada, e quais avanços houve em relação a consolidação dos direitos humanos.
Palavras-chave: Gênero – História das Mulheres – Ditadura Militar – Direitos Humanos.

Abstract: This article aims to analyze the history of women during the military dictatorship in Brazil,
through the consideration of how these victims were: women missing women and mothers in the search
for their children, and whether it would be possible to compare with the Mothers of the Plaza de Mayo in
Argentina. Check what officially was constructed about this story, such as women expressed themselves
in this situation. What is intended is to see how the story was portrayed these women, and what
advances there have regarding the consolidation of human rights.
Keywords: Gender - Women's History - Military Dictatorship - Human Rights.

O intento de trabalhar com a história das mulheres “pressupõe o domínio de categorias


2
analíticas para o entendimento das relações de gênero, perpassadas por relações de poder.” E ao
analisar essa história das mulheres, sua participação nos grupos de oposição às ditaduras militares,
essas categorias multiplicam-se em importância.
Certamente as representações acerca da mulher atravessaram os tempos e estabeleceram o
pensamento simbólico da diferença entre os sexos, hierarquizando a diferença, transformando-a em
desigualdade. “Determinou-se aos homens o espaço público, político, onde se centraliza o poder”, de
3
outra forma, “à mulher o privado e seu coração, o santuário do lar”. Tais limites em relação à
feminilidade, sem dúvida, foram determinados pelos homens.
Essa distinção entre o público e o privado vem a estabelecer a separação do poder. Este
silêncio sobre a história das mulheres advém de sua não participação na arena pública, espaço da
política por excelência. E por isso que a história da repressão durante o período da ditadura militar é uma
história de homens, tendo a mulher militante política sido excluída do jogo de poder, pois não foi
encarada como sujeito histórico.
Exatamente diante disso que pretende-se pautar a discussão acerca da história das mulheres
vítimas da ditadura militar, as desaparecidas e às que viveram em busca de seus filhos desaparecidos. E
finalmente, verificar como os direitos humanos veio a pautar tal situação.

1. A Ditadura Militar no Brasil: contexto histórico


A Ditadura Militar foi o período da política brasileira em que os militares governaram o país, entre
1964 a 1985. Essa condução política teve como características: a falta de democracia, a supressão de
direitos constitucionais, a censura, a perseguição política e a repressão àqueles que se colocavam numa
posição contrária ao regime militar.
Esse período ditatorial inicia-se com a tomada o poder pelos militares que depuseram o então
presidente João Goulart. Em 9 de abril foi decretado o Ato Institucional Número 1 (AI-1), que cassa
mandatos políticos de opositores ao regime militar e tira a estabilidade de funcionários públicos.
Estiveram ainda no poder nesse período, Castelo Branco (1964 a 1967), Costa e Silva (1967 a 1969),
Médici (1969 a 1974), Geisel (1974 a 1979) e Figueiredo (1979 a 1985).
No poder os militares tomaram medidas autoritárias, ou seja, limitaram as várias formas de
liberdade dos brasileiros e reprimiram as manifestações e lutas a favor da democracia. Iniciando então a
1
Mestranda do PPGH/UPF, sob a linha de pesquisa Política e Cultura, bolsista Capes. Especialista em Direito do
Trabalho e Previdenciário pela Uniritter. Bacharel em Direito pela PUCRS.
2
COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. História em Revista, Pelotas, v. 10, p. 1-10, dez,
2004, p. 1.
3
Ibidem.

379
perseguição a qualquer pessoa que se opusesse as determinações do regime, por meio de diferentes
4
mecanismos: prisões, exílios, torturas e morte.
Pode-se afirmar que como regra geral, as ditaduras buscaram estreitar, no plano econômico, a
associação com seus aliados do capital externo, sob tutela militar nacional, e incorporaram plenamente a
estratégia norte-americana de contenção do comunismo, sintetizada na Doutrina de Segurança Nacional.
Essa doutrina, idealizada no Brasil especialmente pelo general Golbery do Couto e Silva, principal
teórico do regime, assentava-se na tese de que o inimigo da pátria não era mais externo, e sim interno.
Para enfrentar esse novo desafio, era urgente estruturar um novo aparato repressivo por meio da
5
integração completa dos organismos de segurança .
Por isso foi montada em São Paulo em 1969, a Operação Bandeirante (Oban), composta por
efetivos do Exército, Marinha, Aeronáutica, Delegacias Estaduais de Ordem Política e Social (Dops),
Departamento de Polícia Federal, Força Pública, Guarda Civil e até por civis paramilitares.
Tal experiência foi aprovada pelo regime, que resolveu estender seu formato a todo o país, nascendo
então o Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna, o temível
DOI-Codi. Este, com dotações orçamentárias próprias e chefiado por um alto oficial do Exército, o órgão
assumiu o primeiro posto na repressão política no país.
Porém, os Dops e as delegacias regionais da Polícia Federal, bem como o Centro de
Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar)
mantiveram ações repressivas independentes, prendendo, torturando e eliminando opositores.
Com base nessa Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura militar brasileira decretou sucessivas Leis
de Segurança Nacional sob a forma de Decretos-Leis (DL, uma em 1967 (DL 314) e duas em 1969 (DL
510 e DL 898), de conteúdo draconiano, que funcionaram como pretenso marco legal para dar cobertura
jurídica à escalada repressiva. De maneira geral dessas três versões da Lei de Segurança Nacional
indicava que o país não podia tolerar antagonismos internos e identificava a vontade da nação e do
6
Estado com a vontade do regime.
A ditadura militar no Brasil atravessou pelo menos três fases distintas:

A primeira estendeu-se do golpe de Estado, em abril de 1964, à consolidação do novo


regime. A segunda começou em dezembro de 1968, com a decretação do Ato
Institucional no 5 (AI-5), e desdobrou-se nos chamados anos de chumbo, quando a
repressão atingiu seu mais alto grau. A terceira e última fase abriu-se com a posse do
general Ernesto Geisel, em 1974, que iniciou uma lenta abertura política, mantida
7
durante o governo Figueiredo até o fim do período de exceção, em 1985.

No entanto, ao longo dos 21 anos de regime, em nenhum momento a sociedade brasileira


deixou de manifestar seu sentimento de oposição. Houve resistência, como a luta das organizações de
esquerda que foi marcada pela clandestinidade e perseguição, ademais houveram várias organizações
que aos poucos foram sendo desarticuladas pela ditadura. Vejamos como foi isso em relação às
mulheres.

2. A ditadura militar e as Mulheres


8
“Falar sobre mulheres significa falar das relações de poder entre homens e mulheres” . E para
identificá-las como sujeitos políticos é necessário analisar as intrincadas ralações de gênero, de classe,
de raça e de geração, além de falar do desmerecimento feminino, pois se, historicamente, o feminino é
entendido como subalterno e deixado de fora da história, pois que sua presença não fora registrada.
Numa perspectiva lógica, libertar a história é então, falar de homens e mulheres numa relação igualitária.
Importa considerarmos gênero na perspectiva de Joan Scott,

Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se relaciona
simplesmente ás idéias, mas também às instituições, às estruturas, as práticas
cotidianas, como os rituais, e tudo o que constitui as relações sociais. O discurso é o
instrumento de entrada na ordem do mundo, mesmo não sendo anterior à organização
social, é dela inseparável. Segue-se, então, que o gênero é a organização social da
diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói o
sentido desta realidade. A diferença sexual não é causa originária da qual a organização

4
WASSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Augusto Barcelos (Org.). Ditaduras Militares na América Latina.
Porto Alegre: Ed. Ufrgs, 2004, p. 34.
5
MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Org.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo:
Caros, 2010, p. 20.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
8
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007, p. 137.

380
social poderia derivar: ele é antes, uma estrutura social móvel que deve ser analisada
9
nos seus diferentes contextos históricos.

Dessa forma, falar de mulheres não é somente relatar os fatos em que elas estiveram presentes,
mas reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos. Conforme Michel Foucault, “é fazer uma
arqueologia do feminino; desconstruir a história da história feminina para reconstruí-la em bases mais
10
reais e igualitárias, analisar as práticas discursivas e não discursivas que representam o feminino”.
Nessa análise assevera Ana Maria Colling,

A história da repressão durante a ditadura militar e assim como a oposição a ela é uma
história masculina, assim como toda a história política, basta que olhemos a literatura
existente sobre o período. As relações de gênero estão aí excluídas, apesar de
sabermos que tantas mulheres, juntamente com os homens, lutaram pela
redemocratização do país.Ousar adentrar o espaço público, político, masculino, por
excelência foi o que fizeram estas mulheres ao se engajarem nas diversas organizações
11
clandestinas existentes no país durante a ditadura militar.

2.1 Mulheres desaparecidas


O golpe militar de 1° de abril de 1964, institucionalizou a detenção, a prisão e o sequestro, o
banimento, a tortura, o assassinato e o desaparecimento, deixando um legado sinistro: entre mortos e
desaparecidos políticos, uma legião incontável de militantes (homens, mulheres), presos e torturados e
histórias de vida truncadas.

A política de repressão é praticada quando o poder político, aliado ao poder policial e


militar, outorga-se o direito sobre o corpo, a mente, a vida e a morte dos cidadãos.
Exercer continuadamente atos que sustentam essa política é um gesto que, aos poucos,
torna-se sobre-humanamente desumano, e apaga, devagar, a repugnância inata ao
12
crime.

Embora pouco evidenciado salientado, ao longo da história do Brasil, a luta de resistência das
mulheres foi recorrente. E dessa maneira também durante a ditadura civil-militar, implantada com o golpe
de 1964, as mulheres também foram protagonistas, como militantes da resistência e como organizadoras
da sociedade civil para o retorno do país à democracia.
A obra Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino, com a finalidade de
homenagear mulheres brasileiras que resistiram à tirania do poder e o enfrentaram, resgata a memória
13
de mulheres vítimas da ditadura militar brasileira.
A publicação conta com o registro da vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contra
a ditadura, este livro inclui o testemunho de 27 sobreviventes que narram com impressionante coragem
as brutalidades das quais foram alvo, incluindo quase sempre torturas no âmbito sexual, alguns casos de
partos na prisão e até episódios de aborto.
A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR)
responsável por tal publicação, expressa que abrir os arquivos da ditadura que assolou o nosso país
entre 1964 e 1985, e dando voz às suas vítimas e construindo um relato alternativo ao "oficial" sobre o
período, concretiza uma atitude de justiça histórica.

Fazer esse exercício de forma a garantir espaço às vozes femininas que lá estiveram é
não apenas se comprometer com a construção de uma narrativa histórica mais
completa e complexa possível, mas principalmente reconhecer o fundamental papel
14
feminino nas lutas de resistência à ditadura.

Infelizmente o corpo feminino, sempre objeto de curiosidade, tornou-se presa do desejo maligno
do torturador e ficou à deriva em suas mãos. Com a autorização de seus superiores e mandantes a
torturar, o servidor torturador incorporou ingredientes próprios e piores ao ato que, por delegação, lhe foi
solicitado e previamente permitido, diante da desculpa do cumprir ordens.
A mulher foi destituida de seu lugar feminino, de mulher, de mãe, não encontrando nos porões
da ditadura qualquer trégua. O lugar de cuidadora e de mãe foi vulnerado com a ameaça permanente

9
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação & Realidade. Porto Alegre: UFRGS,
1990, p. 15.
10
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
11
COLLING, Op. Cit., p. 6.
12
Idem, p. 28-29
13
MERLINO;OJEDA, Op. Cit., 2010.
14
MERLINO; OJEDA, Op. Cit., 2010.

381
aos filhos também presos ou sob o risco de serem encontrados onde estivessem escondidos. Não
bastasse, o aviltamento da mulher que acalentava sonhos futuros de maternidade foi usado pelos
torturadores com implacável vingança, questionando-lhe a fertilidade após sevícias e estupros. Sem
dúvida, a devastação da tortura não tem parâmetros materiais. E tais testemunhos tem o propósito
permitir que se saiba o que ocorreu em nosso país, para que não volte a ocorrer.

2.2 Mulheres Mães de filhos desaparecidos


E nesse contexto de resistências surge um importante movimento, denominado Guerrilha do
Araguaia entre os anos 1972 a 1975, na região do Araguaia, no Bico-do-Papagaio, que situava-se entre
os estados do Tocantins, Pará e Maranhão. A orientação e direção do movimento ficou por conta do PC
do B, o Partido Comunista do Brasil.
Importa que desse episódio, houveram muitos desaparecidos políticos brasileiros, entre eles
José Huberto Bronca, militante guerrilheiro gaúcho, filho de Ermelinda Mazzeferro Bronca. Essa mulher e
mãe lutou até seus últimos dias de vida a procura do corpo de seu filho desaparecido.
O jornal Zero Hora do dia 14 de dezembro de 2003, na seção de Anúncios Fúnebres e
Religiosos um obituário em especial chamava atenção, relatava a vida de uma mulher falecida no dia 10
de dezembro de 2003 aos 97 anos: Ermelinda Mazzaferro Bronca. O obituário de quase meia página
descrevia uma mãe que dedicou mais de vinte anos de sua vida na busca do corpo do filho morto na
Guerrilha do Araguaia, episódio sangrento da Ditadura Militar do Brasil.

[...] Ermelinda Mazzaferro Bronca, uma mãe que se tornou símbolo da busca por
desaparecidos do regime militar, morreu no dia 10, aos 97 anos, 20 dos quais dedicados
a encontrar o corpo do seu filho [...] Ermelinda lutava pelo direito de sepultar seu filho
15
desde 1979 [...].

Ao fim do obituário a frase: “morreu sem realizar seu grande sonho”, ou seja, o sonho de dar
uma sepultura digna a seu filho José Huberto Bronca, o “Zé”, que foi militante guerrilheiro no Araguaia,
tendo sua provável morte ocorrido em 1974. Ermelinda viu seu filho pela última vez em abril de 1966,
depois disso em 1970 por ocasião da morte de seu marido Huberto Átteo Bronca, Ermelinda recebe uma
carta do filho lamentando a morte do pai, depois disso nunca mais Ermelinda obteve contato com o filho.
16
Dona Ermelinda só vai obter novas notícias do filho em 1979 pela Revista História Imediata , por onde
toma conhecimento de que José Huberto Bronca esteve presente na Guerrilha do Araguaia.
Ermelinda foi uma mulher que rompe paradigmas e adentra no espaço público por meio da luta e
uso da palavra. A palavra pública, como fator de poder, que até aquele momento não fazia parte de seu
cotidiano começa a ganhar forma através de depoimentos prestados a entidades e organismos
internacionais em Defesa aos Direitos Humanos; em discussões realizadas nas viagens feitas a São
Paulo e Rio de Janeiro juntamente com as outras mães e familiares de desaparecidos; e ao postular
representada pelo advogado Luis Eduardo Greenhalgh, processo judicial contra o estado pela
responsabilização dos desaparecimentos de seu filho na Guerrilha do Araguaia.
Sua luta pode ser resumida: a pedidos de ajuda a políticos e entidades para que intercedessem
a seu favor na busca pelo seu filho; tentativas judicialmente documentadas; correspondências enviadas
e recebidas de Guerrilheiros que sobreviveram a Guerrilha do Araguaia; e as correspondências trocadas
entre as mães do Araguaia.
Através da documentação deixada por Ermelinda e em cartas com outras mães pode-se
perceber que essas mulheres travaram uma longa e árdua luta na busca por qualquer que fosse o
resquício de informações deixado por seus filhos, e na certeza da morte, exigiam os respectivos corpos,
todas sem exceção suplicavam pelo corpo, pelo direito de enterrar os filhos.
Em todas cartas, jornais, petições a justiça, cartões, declarações o pedido é o mesmo,
“queremos dar uma sepultura digna a nossos filhos”. A preocupação com a questão do corpo perpassa
qualquer discussão a respeito dos mortos e desaparecidos políticos na ditadura militar. O que
contemporaneamente vem sendo discutido e analisado, além de temas como indenizações, abertura de
arquivos, punição ou revanchismo todos interligados à questão do corpo.
As ações empreendidas por tais mães começam a ter forma através de depoimentos prestados a
diversas entidades e organismos internacionais em Defesa aos Direitos Humanos, ou ainda em
discussões realizadas entre os familiares dos desaparecidos com mães de todo o território brasileiro.
Como resultado disso tudo fora um processo judicial contra o estado pela responsabilização dos filhos
desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
As cartas solicitando ajuda aos políticos, entidades ou pessoas com alguma influência se tornou
um hábito. E entre as mãe isso estabeleceu um circuito de informações a respeito do Araguaia e da

15
Trecho extraído da Zero-Hora de 14 de dezembro de 2003, da Seção Anúncios Fúnebres e Religiosos.
16
DÓRIA, Palmério, et ali. História Imediata. A Guerrilha do Araguaia. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.

382
busca pelos filhos: enviavam e recebiam entre si jornais, panfletos cartazes, notícias sobre o processo
judicial. Pelas cartas fica evidente que agiam em grupo mesmo em estados diferentes, não tinham a
Praça de Maio, para protestarem unidas, protestaram então documentamente (cartas).
Essas mães demonstraram a luta por igualdade e exercício da cidadania, com um agir político, a
partir de uma característica estritamente feminina, a maternidade, muito utilizada como argumento de
dominação às mulheres. A história de Ermelinda e outras tantas mães como protagonistas no palco
político da história da ditadura militar.

2.3 Um estudo comparado: Mães da Praça de Maio


As Mães da Praça de Maio foram inseridas na luta quando seus filhos e netos, ativistas na luta
contra a ditadura na Argentina, começaram a desaparecer. Eram donas de casa, se ocupavam dos
afazeres do lar e, em sua grande maioria, não compreendiam em profundidade o motivo da luta de seus
filhos. Elas iam à delegacia e não obtinham respostas e na igreja, ouviam dos padres que eram seus
filhos e netos os próprios culpados pelos desaparecimentos.
As ausências foram ficando cada vez mais constantes, mais filhos sumiam, mais mães
choravam. No dia 26 de abril de 1976, sábado, as mães se uniram para chorarem juntas na “Plaza de
Mayo”, centro de Buenos Aires. Os filhos deixaram de pertencer a apenas uma mãe, a maternidade foi
socializada.
Como a concentração de pessoas era proibida, passível de prisão, o país estava sob uma
ditadura, então a polícia as dispersou. As mães se foram, mas retornaram numa quinta-feira. Já que não
podiam ficar paradas, começaram a circular em torno da praça. Inacreditavelmente, essa manifestação
circular perdura até os dias de hoje. Toda quinta-feira essas mães se reúnem e circulam. Não existe, por
parte delas, a esperança de reencontrarem seus filhos e netos com vida. O que permanece é o espírito
de luta por justiça.

3. Na perspectiva dos Direitos humanos


Historicamente foi com o surgimento da Organização das Nações Unidas em 1945, e da
consequente aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que o Direito
Internacional dos Direitos Humanos começa a aflorar e a solidificar-se de forma definitiva, gerando, por
consequência, a adoção de inúmeros tratados internacionais destinados a proteger os direitos
fundamentais dos indivíduos.
Trata-se de uma época considerada como verdadeiro marco divisor do processo de
internacionalização dos direitos humanos. Pois, antes disso a proteção aos direitos do homem estava
mais ou menos restrita apenas a algumas legislações internas dos países, como a inglesa de 1684, a
americana de 1778 e a francesa de 1789.
Mais especificamente no caso brasileiro, o processo de incorporação do Direito Internacional dos
Direitos Humanos e de seus importantes instrumentos é conseqüência do processo de democratização.
O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito
brasileiro foi a ratificação, em 1º de fevereiro de 1984, da Convenção sobre a Eliminação de todas as
formas de Discriminação contra a Mulher. A partir dessa ratificação, inúmeros outros relevantes
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram também incorporados pelo Direito
Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988.
Assim, a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram
ratificados pelo Brasil, dentre eles:

Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; a


Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
em 28 de setembro de 1989; a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de
setembro de 1990; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro
de 1992; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de
janeiro de 1992; a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de
1992; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
17
Mulher, em 27 de novembro de 1995.

Vemos assim que o processo de democratização possibilitou, a reinserção do Brasil na arena


internacional de proteção dos direitos humanos, embora relevantes medidas ainda necessitem ser
adotadas pelo Estado brasileiro para o completo alinhamento do país à causa da plena vigência dos
direitos humanos.
No tocante a questão de gênero, com o objetivo de dar voz às mulheres, abrir espaço na
participação política direta ou por meio de representação real é que surgiram os movimentos feministas.
17
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos no ensino superior, 2001, p. 1.

383
As ações desses movimentos são entendidas como lutas, por reconhecimento, pela reorganização da
liberdade conscientizada e desconstrução das estereotipações de gênero.
O papel ativo das mulheres se dá especialmente em relação à legitimidade e necessidade da
luta feminista por direitos humanos. Tal luta não é pontual, se dá em várias esferas, seja dentro da
família, nas relações econômicas e, especialmente, no aprimoramento da participação cidadã, tratando
tanto do protagonismo das mulheres nas decisões coletivamente vinculantes quanto da democratização
de todos os espaços sociais.
Apesar dos avanços conquistados pelos movimentos feministas na luta pelo direito de serem
diferentes quando a igualdade as descaracteriza, mas de serem iguais quando a diferença as inferioriza,
percebemos que ainda há muito a se avançar. Dados mostram que a desigualdade entre homens e
mulheres persiste nos mais diversos espaços, ainda tão resistentes à ocupação feminina. Portanto a luta
por uma história das mulheres, na ótica de gênero, só terá significado a partir da constante participação
democrática das mulheres em defesa dos seus próprios direitos.

Considerações finais
Na tentativa de dar visibilidade à história da mulher, constata-se que as relações entre feminino e
masculino são socialmente construídas, portanto culturais e históricas. E, por consequência não se pode
falar da mulher sem falar nas relações entre homens e mulheres.
Na ditadura militar brasileira, a mulher militante não era apenas uma opositora ao regime, era
também uma presença que subvertia os valores estabelecidos, que não atribuíam à mulher espaço para
a participação política.
Para uma história das mulheres é necessário que a história seja entendida como resultado de
interpretações que têm como fundo relações de poder, pois esse caráter de construção da história nos
permite desconstruir e reinventar a história, inclusive o papel dos homens e das mulheres na sociedade.
Assim a história passa a ser vista como um campo de possibilidades para vários sujeitos historicamente
constituídos, lugar de lutas e de resistências.
Contar essas histórias favorece a ampliação da participação feminina em todas as dimensões da
sociedade e, assim contribui para o fortalecimento da igualdade entre os sexos e da democracia em
nosso país.

Fontes consultadas
Acervo Pessoal de Ermelinda Mazzaferro Bronca, depositado no AHRS: Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul. Doado em 2005 por Maria Helena Mazzaferro Bronca filha de Ermelinda. Consultado em 2012.

Referências Bibliográficas:
COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. História em Revista, Pelotas, v. 10, p. 1-
10, dez, 2004.
______. A resistência da mulher à Ditadura Militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
BOURDIEU, Pierre. Observações sobre a história das mulheres. In: DUBY, G. PERROT, Michelle. As
Mulheres e História. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
DÓRIA, Palmério, et ali. História Imediata. A Guerrilha do Araguaia. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1979.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______. Microfísica do poder. 23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos no ensino superior, 2001. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_dh_ensino_superior.pdf. Acesso em
fev de 2013.
MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. Bauru, SP: Edusc, 2000.
MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Org.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São
Paulo: Caros, 2010.
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Unesp, 1998.
SOUSA. Deusa Maria. Caminhos Cruzados: Trajetória de e desaparecimento de
quatro guerrilheiros gaúchos no Araguaia. Dissertação de Mestrado, Unisinos, 2006.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação & Realidade. Porto Alegre:
UFRGS, 1990.

384
VAINFAS, Ronaldo. Os Protagonistas Anônimos da História: Micro- História. Rio de Janeiro: Campus,
2002.
WASSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Augusto Barcelos (Org.).Ditaduras
Militares na América Latina. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2004.
WOOLF, Virgínia. Kew gardens; O status intelectual da mulher; Um toque feminino na ficção; Profissões
para mulheres. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

385
Uma Visão sobre a Ação Popular (AP): do Socialismo Humanista ao Maoísmo.

1
Cleverton Luis Freitas de Oliveira

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de compreender os aspectos internos e externos à Ação Popular
(AP) que levaram às transformações pelas quais passou a organização durante sua trajetória. Buscamos
entender o surgimento da AP em seu contexto (1962-1963), a partir da Juventude Universitária Católica
(JUC), e as transformações sofridas durante a ditadura civil-militar, até sua identificação com o maoísmo
e a incorporação da maioria de seus membros ao PCdoB (1973). Além disso, buscamos traçar, sempre
que possível, um paralelo entre os níveis nacional e estadual da organização. Para isso, primeiramente
analisaremos o contexto de surgimento da AP e sua ideologia, denominada socialismo humanista,
formulada em seu Documento-Base (Lima, 1979). Em seguida, trataremos das modificações ocorridas
no país em decorrência do Golpe Civil-Militar de 1964, e como a AP reagiu a tais modificações. Por fim,
trataremos das últimas discussões internas da AP em torno da incorporação ao PC do B.
Palavras-chave: Ação Popular – Ditadura Civil-Militar – Socialismo Humanista.

Abstract: This study aims to understand the internal and external aspects of Popular Action (PA) that led
to transformations which has the organization during his career. We seek to understand the emergence of
the PA in its context (1962-1963), from the Catholic University Youth (CUY), and the transformations
during the civil-military dictatorship until his identification with Maoism, and the incorporation of most of its
members the PCdoB (1973). Furthermore, we seek to bring, where possible, a parallel between the
National and State levels of the organization. For this, first we analyze the context of the emergence of
the PA and its ideology, called humanistic socialism, formulated in its Document-Base (Lima, 1979). Then
treat the changes occurring in the country due to the Civil-Military Coup of 1964, and as the PA reacted to
such changes. Finally, we will discuss the latest internal discussions of the PA, about the merger of the
PCdoB.
Keywords: Popular Action, Civil-Military Dictatorship – Humanist Socialism.

Radicalização da JUC e formação da AP


O surgimento da Ação Popular (AP), em 1962, está fortemente ligado ao processo de
radicalização política e ideológica pelo qual passavam os militantes da Juventude Universitária Católica
(JUC). Esta organização fazia parte da Ação Católica (AC), criada no Brasil em 1935. A AC, em sua fase
inicial, defendia um nacionalismo de direita, tendo alguns líderes oriundos da Ação Integralista Brasileira.
A JUC foi organizada nacionalmente por volta de 1950, tendo como ideal a criação de uma elite
acadêmica católica que espalharia as doutrinas da Igreja. Percebe-se que, na sua formação, a JUC
centrava-se em uma concepção bastante conservadora da Igreja Católica e da Sociedade, bem como do
seu papel nestes espaços. Segundo Ridenti, “a predisposição seria valorizar a ordem e a harmonia
social, acatar as estruturas e as instituições existentes, cujos eventuais problemas estariam nas falhas
2
das pessoas que as compõem” .
A JUC, porém, passou por um processo de transformação. Influenciados por pensadores como
Jacques Maritain e pelo pontificado do Papa João XXIII. Confrontando-se com as desigualdades sociais
gritantes no Brasil e com o aumento na mobilização política dos trabalhadores, seus militantes passaram
a questionar suas posições de passividade. Já no início da década de 1960, alguns militantes da JUC
começaram a formular ideias que levavam à construção de uma terceira via, negando o capitalismo
desigual e a inércia dos cristãos diante dele, mas também o comunismo, tido como anticristão e
representado principalmente pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Neste sentido, vitórias
como a Revolução Cubana em 1959 e, mais tarde, a independência da Argélia (1962), influenciaram
também esta ala da JUC que se formava.
Paulatinamente, setores da JUC se voltavam para os problemas temporais e “os destinatários da
salvação passavam a ser as massas humanas, cuja plena realização estaria obstruída pelas estruturas
3
econômicas, sociais e políticas existentes, que urgia modificar” . Herbert José de Souza, conhecido

1
Graduando em História Bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
2
RIDENTI, 2002, p. 3.
3
Ibid., p. 5.

386
como Betinho, militante da JUC e fundador da Ação Popular, proferiu em 1962, portanto, pouco antes da
fundação da AP, um documento intitulado Juventude cristã hoje:

Há, no entanto uma outra atitude fundamental de nossa geração: a adesão ao drama do
homem, de todos os homens, a luta pela universalização concreta da Redenção
colocada, não no plano de uma visão dualista, mas de uma concepção do homem como
um todo, indissociável, organicamente definido. Quebramos definitivamente a
perspectiva aristocrática e classista da Salvação e nos voltamos à perspectiva universal
do Cristianismo: todos os homens e o homem todo são objeto de amor e da Salvação. O
Cristianismo é incompatível com qualquer perspectiva que de qualquer forma faça um
4
homem senhor e outro escravo [...].

Neste trecho, percebe-se claramente a visão humanista que predominava neste setor da JUC de
concepção mais à esquerda frente a ala mais tradicional deste setor. Porém, como destaca Ridenti, este
humanismo “já não era apenas cristão, vinha mesclado com um esboço de análise das classes de
5
inspiração marxista [...]” . Este pensamento constituía a gênese da ideologia da AP em sua fase inicial,
que ficou conhecida como Socialismo Humanista da Ação Popular. Esta ideologia, formulada no
Documento-Base da AP, será discutida adiante. Ao perceber o desenvolvimento desta radicalização de
um determinado setor da JUC, o episcopado reagiu limitando as possibilidades de ação política dos
militantes e, até mesmo, expulsando alguns membros mais radicais. Frente a essa situação, e
impulsionados também pelos movimentos sociais – em especial o movimento estudantil, no qual a JUC
tinha amplo engajamento – estes setores à esquerda da JUC formaram, juntamente com outras forças
não católicas, a Ação Popular, com o objetivo de ampliar sua atuação política para além dos limites
impostos pela hierarquia católica.

Surgimento da Ação Popular e o Socialismo Humanista:


A Ação Popular surge, então, a partir da confluência entre grupos à esquerda da JUC, militantes
de igrejas protestantes e, ainda, os chamados “independentes”, que na sua maioria eram jovens não
cristãos voltados ao pensamento socialista. Já no seu início a AP tinha como base principal o movimento
estudantil. Esta característica a organização herdou principalmente da esquerda da JUC, que na década
de 1960 já participava, segundo Arantes e Lima, das convenções das esquerdas para a indicação de
6
nomes para concorrer à presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) . Porém, desde o início a
organização já realizava contatos com os movimentos operário e camponês, revelando suas intenções
revolucionárias e uma leitura socialista que fazia da Revolução Brasileira.
No ano de 1963, em seu primeiro Congresso, foi aprovado o Documento-Base da AP, no qual os
militantes expunham a ideologia que a organização adotava. Esta ideologia ficou conhecida como
Socialismo Humanista da Ação Popular, muito claramente por apresentar uma junção entre aspectos do
humanismo cristão, herdado da JUC, e de alguns conceitos oriundos do pensamento marxista.
A análise deste Documento-Base traz informações importantes para a compreensão da AP nesta
7
fase. A AP assumia, com esse escrito, um “combate pelo homem” , e afirmava:

Nesse sentido, quando falamos de capitalismo e socialismo, não nos interessa um


sistema abstrato de relações econômicas, mas uma possibilidade concreta de realização
do homem dentro do processo de socialização em cujo sentido a história
8
inelutavelmente se move.

Neste trecho é possível identificar a influência do pensamento humanista cristão, na ideia de


realização do homem. Porém, também é possível perceber uma influência socialista, quando se fala do
processo de socialização em que a história se move inelutavelmente. Mais adiante, o Documento afirma
categoricamente esta influência socialista quando assume a perspectiva do socialismo como
humanismo, enquanto crítica de uma alienação capitalista e do movimento real de sua superação. A AP,
portanto, rejeitava a necessidade da ditadura do proletariado, alegando que, quando aplicada pela
9
Revolução de Outubro de 1917, ela teria mostrado “suas limitações e seus riscos” . Da mesma forma,
10
negava a chamada “concepção materialista da ‘consciência-reflexo’” e a “concepção idealista que

4
In LIMA, 1979, p, 108, 109.
5
RIDENTI, 2002, p. 10.
6
LIMA e ARANTES, 1984, p. 34.
7
In LIMA, 1979, p. 118.
8
Ibid., p. 120.
9
Ibid., p. 126.
10
Ibid., p. 129.

387
11
atraiçoa as responsabilidades históricas concretas pela fuga para o abstrato” . Assumia, assim, uma
12
terceira via denominada “concepção realista da consciência” .
Com esse discurso, a AP fazia a crítica à política da URSS, representada no Brasil pelo
revisionista Partido Comunista Brasileiro, e demonstrava solidariedade às tentativas autônomas de
construção do socialismo, principalmente à Revolução Cubana de 1959.
Por fim, a AP fez uma opção prática por uma política de preparação revolucionária que consistia,
basicamente, em uma “mobilização do povo, na base de desenvolvimento de seus níveis de consciência
13
e organização [...]” , firmada na luta contra a dupla dominação: capitalista (nacional e internacional) e
feudal. Além disso, assume a prioridade do trabalho com as organizações operárias e camponesas. Com
base nesta política de preparação revolucionária, a AP atuou no Movimento de Educação de Base
(MEB), projeto da Igreja Católica e do Ministério de Educação que visava principalmente a alfabetização
de agricultores. Nesse setor, alguns membros da AP atuaram também no sistema de alfabetização
desenvolvido no Recife pelo educador Paulo Freire. A organização atuou ainda na fundação da
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em 1963, o que a aproximou ainda
mais de setores camponeses. Embora a AP continuasse sendo predominantemente formada por
estudantes, estas aproximações contribuíram para a diversificação de seus quadros, caso, por exemplo,
de Manoel Conceição dos Santos, aluno do MEB, que se tornou líder camponês e, mais tarde, dirigente
14
da AP .
As ligações da AP com o MEB, com a CONTAG e, ainda, com a Superintendência para a
Reforma Agrária (SUPRA), revelam que, apesar do seu discurso revolucionário, a organização integrou
os esforços reformistas do Governo João Goulart, acompanhando as tendências dos movimentos de
massas da época. Na realidade, a AP via nos projetos reformistas do governo – representados
principalmente pelas reformas de base – uma alternativa para desenvolver sua política de preparação
revolucionária.
No Rio Grande do Sul, nessa fase em questão, a AP atuava principalmente na defesa das
Reformas de Base e no movimento estudantil, exercendo hegemonia na União Estadual dos Estudantes
(UEE) e em parte dos centros acadêmicos da UFRGS. Ademais, a AP atuou na alfabetização de adultos
15
em Porto Alegre através do método Paulo Freire e do Movimento de Educação de Base .
Com o Golpe Civil-Militar de 31 de Março de 1964 a situação da AP iria mudar drasticamente.
Como organização de esquerda, automaticamente passaria à ilegalidade e, sistematicamente, a
perseguição às suas lideranças aumentaria.

O significado do Golpe Civil-Militar para a AP


O Golpe Civil-Militar que ocorreu no Brasil em março de 1964 tem, entre vários aspectos, um
sentido geopolítico e outro econômico. O primeiro, porque se insere em um contexto de Guerra Fria, e o
segundo, porque é também um golpe de classe. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ganha força a
polarização mundial, onde os Estados Unidos da América representam o mundo capitalista e a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas representam o mundo “comunista”. Com o tempo, a Guerra Fria
definia-se muito mais como uma guerra de influências, e os EUA tratavam de garantir sua dominação
imperialista em todo o território latino-americano. Ficava claro, na ótica dos Estados Unidos, que “o
16
controle da segurança interna equivalia ao controle da ‘subversão comunista’” . Para efetivar este
controle, desenvolveu-se nas escolas de guerra norte-americanas a Doutrina de Segurança Nacional, e
logo esta foi incorporada e incrementada pela Escola Superior de Guerra do Brasil. Com isso, como
destaca Wasserman, o exército “se colocava como protagonista de objetivos determinados (fins),
17
estratégias definidas (meios) e iluminado por uma ideologia, a Segurança Nacional” . Deste modo, o
Golpe Civil-Militar, que implantou a Ditadura de Segurança Nacional, tinha um caráter de classe,
antipopular.
O Golpe, porém, não foi um feito exclusivo dos militares. Nele tiveram participação ativa variados
setores civis, desde grandes empresas transnacionais até setores leigos da direita católica. O principal
núcleo por meio do qual os empresários participaram da conspiração contra João Goulart foi o complexo
constituído pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto de Ação Democrática
(IBAD). Por meio dessas instituições, cujas direções participavam civis e militares, empresários nacionais
e estrangeiros financiaram a propaganda política que vinculava João Goulart ao comunismo
internacional e contribuía para difundir o medo do socialismo. Segundo Wasserman, empresas como a

11
Ibid., p. 132.
12
Ibid., p. 132.
13
Ibid., p. 142.
14
RIDENTI, 2002, p. 21.
15
Ver: DIAS, 2011.
16
WASSEMAN, 2004, p. 29.
17
Ibid., p. 30.

388
Coca-Cola, IBM, Esso, General Motors, além de diversas empresas nacionais como a Varig e ainda
setores da Igreja, contribuíram diretamente, por meio de financiamento, para as conspirações contra
18
Goulart e os movimentos sociais do Brasil . Deste modo, se reafirma o caráter classista e antipopular do
Golpe.
A Ação Popular, assim como qualquer organização política de esquerda do período, sofreu
profundas crises e transformações com o Golpe Civil-Militar. Esta situação foi agravada ainda pelos
fortes vínculos que a organização mantinha, em certas áreas, com o Governo de João Goulart. Mas a AP
iniciou sua reorganização ainda em 1964, e no ano seguinte aprovou a Resolução Política de 1965, que
enfatizava a necessidade da luta armada revolucionária, aproximando a AP da visão cubana. Na sua
primeira fase de atuação, entre 1962 e 1964, a AP havia se organizado em um sistema de
coordenações, demonstrando forte influencia cristã. Em 1965, a AP passa a organizar-se em comandos,
19
o que ressalta o fortalecimento da influencia da Revolução Cubana sobre a organização após o Golpe .
Apesar de assumir a necessidade da luta armada, a AP não tomou iniciativas formais neste
sentido, a não ser por um atentado contra a vida de Costa e Silva em 1966, na época Ministro da Guerra
e indicado pelo regime como sucessor de Castelo Brando na Presidência da República. Este atentado,
todavia, teria sido realizado sem o conhecimento da Direção Nacional, e acabou colaborando, conforme
20
cita Ridenti, para o questionamento da influência cubana sobre a organização .
No Rio Grande do Sul, neste período, a AP passou também por cisões internas, acompanhando
o processo que a organização vivia em nível nacional. Porém, permaneceu atuando, principalmente, na
organização de passeatas e protestos contra o regime e os acordos entre o Ministério da Educação e a
21
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, conhecidos como MEC-USAID .
A Ação Popular, destarte, havia sobrevivido ao Golpe Civil-Militar, mas a nova condição de
clandestinidade já causava profundas modificações na organização. Tais mudanças significaram a
relativa perda da influência cristã sobre a AP, e a intensificação do debate acerca da adesão ao
marxismo-leninismo. Além disso, com o atentado ocorrido em 1966, aprofundou-se a contraposição entre
22
setores foquistas , que influenciados pela Revolução Cubana acreditavam na possibilidade de iniciar a
revolução a partir de grupos armados localizados em regiões rurais, com o apoio essencial dos
camponeses, e setores que defendiam a guerra popular prolongada, influenciados pelo pensamento de
Mao Tsé Tung e pela Revolução Cultural Chinesa.

O Debate Teórico e Ideológico e a predominância do Maoísmo


Sistematicamente foi ocorrendo, no seio da AP, um processo de polarização ideológica.
Formaram-se então duas correntes: a Corrente 1, que defendia a guerra popular prolongada e
influenciada pela Revolução Chinesa, e a Corrente 2, resistente ao maoísmo, e que era categorizada
como foquista. A primeira corrente tinha como principal líder Jair Ferreira de Sá, e a segunda, Vinícius
23
Caldeira Brant e Altino Dantas . A Corrente 1 elaborou seus princípios em um documento denominado
Esquema dos Seis Pontos. Em torno desta questão, foram elaborados textos para o debate dos
militantes, que se aprofundavam no conhecimento do marxismo e de suas diversas correntes.
Quando a Corrente 1 obteve maioria na organização, porém, o debate foi cortado pela expulsão
das principais lideranças da Corrente 2. Lima e Arantes narram esta decisão, tomada pelo plenário da
Reunião Ampliada, como prejudiciais ao amadurecimento da AP, pois com isso a organização não pôde
beneficiar-se “do aprofundamento e do confronto das ideias, inclusive de algumas críticas corretas que
24
eram feitas ao “Esquema dos Seis Pontos” pela “Corrente 2” .
Com a vitória teórica interna, a Corrente 1 reorganizou a AP em comitês, coerentemente com
sua orientação maoísta, e colocou em prática a política de integração dos militantes. Tal política que
tinha como objetivo o início de uma guerra popular prolongada a partir de militantes infiltrados nas
fábricas e zonas rurais, de onde estes se encarregariam de organizar as lutas de operários e
camponeses. Esta política ganhou ainda mais força e organização após a decretação do Ato Institucional
número cinco, em Dezembro de 1968, que concluía o processo de institucionalização da Ditadura de
Segurança Nacional e aumentava ainda mais a repressão a todo tipo de oposição.

18
Ibid., p. 33,34.
19
RIDENTI, 2002, p. 19.
20
Ibid., p. 24.
21
DIAS, 2011, p. 86.
22
Foquismo é como ficou conhecida teorização a respeito da prática revolucionária cubana, e consiste na ideia de
que é possível desencadear a revolução a partir de grupos armados localizados em regiões rurais, com o apoio
indispensável dos camponeses. Também é caracterizada por defender a submissão do aspecto político ao
militar dentro da organização revolucionária. (Ver: GUEVARA, Ernesto. A Guerra de Guerrilhas. São Paulo:
Edições Populares, 1982).
23
RIDENTI, 2002, p. 26.
24
LIMA e ARANTES, 1984, p. 72.

389
A Integração na Produção
O movimento de Integração na Produção foi iniciado sistematicamente pela AP no ano de 1969.
Além de organizar os operários e camponeses e iniciar a guerra popular prolongada, o movimento tinha
o objetivo de proletarizar os militantes. Isso se daria a partir do convívio direto e diário destes com
operários e camponeses. Ridenti ressalta que esta política condizia com os três preceitos de Ho Chi
25
Minh: viver junto, comer junto e trabalhar junto . Por meio desta política, a AP tentava extinguir suas
heranças pequeno-burguesas, pois acreditava que seria necessário, para dirigir a guerra popular
prolongada, tornar-se uma organização predominantemente operário-camponesa.
Há muitas discordâncias em relação à política de integração na produção. Contudo, cabe afirmar
que há aqueles que a consideram boa, ou necessária no momento, e há os que a consideram, como
26
Herbert José de Souza, um retrocesso .
Após a decretação do AI-5, ocorreram diversas prisões de militantes da AP em todo o país, e em
várias regiões a organização ficou bastante desarticulada em decorrência dessa prática. Foram
enviados, então, militantes de outros Estados para as regiões desarticuladas, com a missão de integrar-
se à produção e rearticular o trabalho da AP. O Rio Grande do Sul foi uma das regiões que ficou
desarticulada e, por isso, foram enviados para o Estado Antônio Ramos Gomes e Nilce Azevedo
Cardoso, militantes da AP de São Paulo. Nilce descreve a integração na produção, que viveu no ABC
paulista e em Porto Alegre, como uma fase de grandes aprendizados para sua vida. Relata, por exemplo,
que no ABC era comum a morte de bebês, e que no RS os riscos de acidentes e mutilações eram
27
constantes . Em depoimento à Cristiane Dias, Nilce afirma que:

A integração na produção foi uma excelente política adotada pela AP, pois [...] os
militantes iam estar ao lado dos trabalhadores, porque os intelectuais dão a direção do
28
movimento, mas quem faz a revolução são os operários e camponeses! .

A partir deste depoimento, reafirma-se a duplicidade na qualificação da política de integração na


produção. Apesar disto, a política de integração na produção foi mantida pela organização, que
caminhava cada vez mais na direção do Maoísmo. Isto a aproximava também do Partido Comunista do
Brasil, caracterizado por sua linha maoísta e suas aproximações com a China. Como forma de
demonstrar o avanço de posições marxista-leninistas de linha maoísta na organização, a AP passa a se
chamar, no ano de 1971, Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APML do B). A incorporação de fato
da maioria dos militantes da AP ao PCdoB aconteceria em 1973. Porém, antes disso, a AP no Rio
Grande do Sul foi praticamente dissolvida, dada a intensidade da repressão que se abateu sobre seus
militantes.

A atuação repressiva à AP no RS

O ano de 1972 marca, no Rio Grande do Sul, a desarticulação quase completa da Ação Popular.
Já reorganizada em 1969 com a ajuda de militantes de outras regiões, a AP no RS não resistiu à
sucessão de prisões feitas pela polícia política da ditadura, o DOPS.
No dia 11 de Abril de 1972 foi presa, em um ponto secreto delatado por outro preso, Nilce
Azevedo Cardoso, militante transferida de São Paulo para o RS após o AI-5, e que se encarregava dos
contatos com os operários pertencentes à organização. Nilce foi fortemente torturada por agentes do
29
DOPS em Porto Alegre e da Operação Bandeirantes em São Paulo , e suas memórias encontram-se no
Relatório Azul de 2011 da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul, assim como em diversos outros materiais. Neste depoimento publicado pelo Relatório
Azul de 2011, Nilce relata que, apesar de serem presos quase todos os integrantes da AP no Rio Grande
do Sul em 1972, nenhum operário da organização foi preso:

Tinha muita gente da Ação Popular sendo presa no sul. A maior queda no sul ocorreu
em 1972. Bom, aí foram caindo um por um. E aí caiu todo mundo, menos os operários,
nenhum deles foi preso, pois só eu sabia como encontrá-los.

No ano de 1972, o Departamento Central de Informações da Secretaria de Segurança Pública do


Estado do Rio Grande do Sul elaborou um documento intitulado “Atividades da APML do B no Rio
25
RIDENTI, 2002, p. 30.
26
Ibid., p. 32.
27
In VIOLA e PIRES, 2011, p. 154-156.
28
In DIAS, 2011, p. 166.
29
In VIOLA e PIRES, 2011, p. 11-22 (complemento que acompanha a edição de 2011 do Relatório Azul, onde
houve erros na impressão do depoimento de Nilce).

390
Grande do Sul”, como forma de fazer uma “relação dos elementos que, de uma maneira ou de outra,
30
estabeleceram sua participação na organização subversiva APML do B [...] em nosso Estado” . No total,
o documento apresenta 77 nomes de envolvidos nas ações da AP no Estado, desde dirigentes regionais
e nacionais, até profissionais liberais que contribuíram financeira e logisticamente para a organização.
Como se vê, o esforço dispendido na repressão aos militantes da AP no RS foi grandioso, o que
revela por si só a importância que adquiriam os trabalhos da organização diante das instituições
repressivas, e o grande poder repressivo do qual dispunha o Estado de Segurança Nacional.

A Incorporação da APML do B ao PCdoB


No início da década de 1970, as discussões em torno da incorporação ou não da AP ao PC do B
se intensificaram e, pela última vez, a organização passou por um processo de debate teórico e cisão.
Desta vez a luta interna se organizou em torno de uma maioria, identificada ideologicamente com o PC
do B, e uma minoria, resistente à tal fusão. A maioria, porém, decidiu em Congresso pela incorporação
ao PC do B. Segundo Ridenti, a luta em torno da questão prosseguiu e, no início de 1973, havia duas
organizações que reivindicavam a sigla APML. A primeira era a antiga minoria, expulsa da organização. A
segunda era constituída pela antiga maioria, que caminhava para a incorporação completa ao PC do B.
Em maio de 1973, foi divulgada uma circular denominada “incorporemo-nos ao PCdoB”, e a APML
finalmente se uniu ao Partido Comunista do Brasil. Mesmo assim, a antiga minoria seguiu os esforços
31
para reorganizar a APML, que resistiu até 1981 como entidade nacional, embora muito enfraquecida .

Considerações finais
Neste trabalho, foi possível analisar as transformações pelas quais passou a Ação Popular,
desde sua fundação em 1962 até seu completo desaparecimento em 1981, sempre que possível
estabelecendo paralelos entre a organização nacional e a AP do Rio Grande do Sul. Também foi possível
compreender a abrangência da ação repressiva do Estado de Segurança Nacional sobre as
organizações de oposição, por meio da análise desta repressão sobre a AP. Obviamente, este trabalho
não abrange, nem tem esta intenção, toda a história da AP no Brasil ou mesmo no Rio Grande do Sul.
Processos importantes, como o Esquema de Fronteira no RS, não foram abordados pelo fato de que o
objetivo central do trabalho era observar as transformações pelas quais a AP passou durante sua
trajetória, e os aspectos internos e externos à organização que influenciaram estas transformações, bem
como traçar um paralelo entre os níveis nacional e estadual da organização.

Fontes pesquisadas:
Acervo documental da Secretaria de Segurança Pública, disponível no Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul. Em especial, o documento “atividades da APML do B no Rio Grande do Sul”, localizado no Fundo
Secretaria de Segurança Pública, Subfundo Departamento Central de Informações.
Documento-Base da Ação Popular, publicado em anexo ao livro de LIMA, Luiz Gonzaga de Souza.
Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma interpretação. Petrópolis:
Vozes, 1979, p. 118-144.
Documento produzido por Herbert José de Souza em 1962, publicado em anexo ao livro de LIMA, Luiz
Gonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma
interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, p.108-117.
Depoimento de Nilce Azevedo Cardoso, publicado na edição da COMISSÃO DE CIDADANIA E
DIREITOS HUMANOS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011, p. 147-158
(acompanha complemento com o depoimento completo contido entre as páginas 3 e 27).

Referências Bibliográficas:
DIAS, Cristiane Medianeira Ávila. Ação Popular (AP) no Rio Grande do Sul: 1962-1972. 2011,
Dissertação de Mestrado, PPGH, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo.
GUEVARA, Ernesto. A Guerra de Guerrilhas. São Paulo: Edições Populares, 1982.
LIMA, Haroldo; ARANTES, Aldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: Alfa-Omega,
1984.

30
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Departamento
Central de Informações / Atividades da APML do B no Rio Grande do Sul.
31
RIDENTI, 2002, p. 39-42.

391
LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: Hipóteses para uma
interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979.
RIDENTI, Marcelo. Ação Popular: cristianismo e marxismo. In REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI,
Marcelo (orgs.) História do marxismo no Brasil, 5. Partidos e organizações dos anos 20 aos 60.
Campinas: ed. Da UNICAMP, 2002, p. 213-282.
WASSERMAN, Claudia. O império da Segurança Nacional: O golpe militar de 1964 no Brasil. In
WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (orgs.). Ditaduras militares na América
Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
VIOLA, Ion Eduardo Annes; PIRES, Thiago Vieira. Nilce Azevedo Cardoso: relembrar é preciso. In
COMISSÃO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO
GRANDE DO SUL. Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul,
2011, p. 147-158 (3-27 do complemento anexo ao relatório).

392
A mudança de posicionamento da Igreja na Ditadura e a Repressão a Padres em São
Luís- MA.

1
Marcos Paulo Teixeira

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar os principais fatos que desencadearam a Ditadura Civil
Militar no Brasil, bem como a mudança de posicionamento e o aumento da repressão contra a Igreja
Católica. Por fim analisar o enquadramento de alguns padres nas leis de segurança nacional.
Palavras-chave: Ditadura Civil Militar – Igreja Católica – Leis de Segurança Nacional.

Abstract: This article aims to analyze the main events that triggered the Civil-Military Dictatorship in
Brazil, as well as the change of positioning and increased repression against the Catholic Church. Finally
analyze the framework of some priests in national security laws.
Keywords: Civil-Military Dictatorship – Catholic Church – National Security Laws.

Introdução
Em 1964, o Brasil assistiu a uma das mais dramáticas crises em sua história republicana
quando, em março do mesmo ano, os militares, com apoio de civis, depuseram o então presidente João
Goulart. O país entraria num dos períodos mais conturbados de sua história política. O papel principal
dos militares é sempre colocado em pauta. Nas discussões historiográficas recentes, podemos perceber
uma mudança no que confere a participação dos civis na composição do Golpe. O certo é que mesmo
num primeiro momento, com o apoio da classe média, Igreja Católica e setores conservadores,
observamos num momento posterior que esses mesmos grupos começam a fazer uma oposição ao
Regime. Ao analisarmos a dinâmica repressiva dos militares, é possível identificar que mesmo setores
que apoiaram a “Revolução”, num segundo momento chegam a sofrer repressões do mesmo regime que
ajudaram a legitimar.

Prelúdios do Golpe
Várias correntes analisam o Golpe por diferentes óticas. Algumas levantam questões principais
dos acontecimentos Pré-Golpe, alicerçando as pesquisas nas frustradas tentativas de tomada de poder
pelos militares e pela direta. Jorge Ferreira (2001) pontua três momentos específicos dessas crises.
Começando pelo ano de 1954, quando por uma forte pressão da direita encabeçada pela UDN e por
setores militares , levou o então presidente, Getúlio Vargas a cometer suicídio. Com esse ato há um
2
recuo das forças que defendiam o golpe, tendo em vista a comoção nacional diante do acontecido.
Em 1955, a candidatura de Juscelino Kubitschek a presidência recebeu varias criticas, a principal
era a respeito da aliança de seu partido com o PTB partido de seu futuro vice João Goulart, ex-ministro
do trabalho de Vargas. Mais uma vez os protestos eram encabeçados pela UDN, apoiando até mesmo
um boicote às eleições de 1955. As eleições acabaram acontecendo e foram vencidas por Juscelino,
sendo eleito também João Goulart para a vice-presidência. Mesmo com a vitória, criara-se um impasse e
a possibilidade real de Juscelino não assumir o cargo. Vários setores queriam que a constituição fosse
seguida, respeitando o resultado das eleições. Porém, a direita juntamente com alguns setores do
exército tramavam um golpe. Diante de uma crise militar e um possível golpe, um grupo ligado ao
general Henrique Teixeira Lott, Ministro de guerra, juntamente com outros generais, que defendiam a
3
posse de Juscelino, interviram no processo politico garantindo através do contragolpe a defesa da

1
Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC
(Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação,
Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sob
coordenação da prof. Drª Monica Piccolo.
2
Para uma análise mais aprofundada sobre o momento das crises de 1954, 1955, 1961, consultar, FERREIRA,
Jorge. Crises da Republica: 1954, 1955, 1961. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. O Brasil
Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964.
3
Jorge Ferreira aponta que neste momento houve uma preocupação em promover uma saída legal ao golpe; o
General Henrique Teixeira Lott chama então, o vice-presidente do senado e o presidente da câmara, indicando
assim outro civil para ocupar a presidência.

393
legalidade e a posse do então presidente eleito.
Outro momento analisado pelo autor foi à crise gerada pelo renúncia de Jânio Quadros. As
eleições para a presidência e a vice, não ocorriam de maneira casada; candidatos de ambos os cargos
concorriam separadamente. Jânio foi eleito presidente e João Goulart vice. O problema é que o país se
encontrava numa situação financeira complicada. De fato Jânio tentou lidar com as pressões do cargo,
porém como pontua André Villela (2005), sua renúncia estaria ligada a falta de base parlamentar no seu
governo e a coloca como um dos “gestos mais dramáticos da história do país, pelos efeitos políticos
4
imediatos e de longo prazo”. No contexto da renúncia de Jânio Quadros surge novo impasse pelos
setores conservadores, juntamente com o exército, por não aprovarem a posse do vice, João Goulart,
gerando assim uma nova crise, que acabou desembocando na “campanha da legalidade”. Para a
resolução do problema foi encontrada uma solução de compromisso, uma emenda na constituição;
colocando o sistema parlamentarista em vigência no país, garantindo assim a posse de Jango, atuando
com poderes reduzidos, tendo como primeiro-ministro Tancredo Neves. Esse enfraquecimento gerado
pelo parlamentarismo permaneceria em seu governo. Até mesmo quando Jango consegue a antecipação
do plebiscito para restaurar o sistema presidencialista, acabaria por não deixa-lo realizar seus principais
planos.
Para alguns autores as reformas sociais propostas por Jango poderiam de certa forma
reformular o desenvolvimento brasileiro no sentido de construir uma sociedade menos desigual.
Segundo André Villela (2005), Jango quis implementar uma politica que tinha como ponto central três
5
objetivos principais: conciliar crescimento econômico aliado a reformas sociais e o combate a inflação.
Durante todo seu governo um ponto importante que chama a atenção foi à participação doa
movimentos populares, todos eles segundo Daniel A. Reis (2001), dotaram-se de um programa em
comum, a luta pelas Reformas de Base. O problema colocado pelo mesmo autor foi que todas essas
reformas acabaram por ir de encontro a outros interesses que não eram os dos trabalhadores e sim de
uma elite conservadora que já havia dado vários sinais de que não apoiaria certas reformas. Assim
quando Jango anuncia que pretende realizar suas reformas de base, tendo como principal levante a
reforma agrária, dentro dos quartéis já se ensaiava o golpe que se anunciava. Toda a estruturação é
percebida em torno do governo de João Goulart, tanto da direita e às vezes da própria esquerda, as
pressões foram enormes, a sua posição ideológica e os rumos que ele está disposto a tomar fizeram
com que as forças armadas assumissem uma postura diferente das outras ocasiões. A última cartada
contra a Democracia foi dada em março de 1964. Com elementos diferentes de outras oportunidades, as
forças conservadores alinhavam-se ao exército e creditando a esses agora o papel de defensores da
legalidade, da constituição e da ordem.

Inicio da Repressão
No Brasil, desde os primeiros dias após o golpe, a repressão foi incessante por parte dos
militares, principalmente por quem representasse uma “ameaça”, por menor que fosse ou de fato nem
existisse para a “segurança da nação”, eram tidos como subversivos, criminosos. Alguns setores da
sociedade brasileira apoiaram o regime; classe média, empresários, técnicos, Igreja Católica, alguns
trabalhos, como o de Dreifuss, mostram o quão foram importantes às participações dos civis para o
“sucesso” da imposição do regime.
O medo por parte de alguns setores nacionais e até mesmo internacionais de uma ameaça
comunista representou um papel importante na composição do golpe, tendo em vista que muitas vezes
utilizou-se desse “medo” para desestabilizar o governo de João Goulart. Vários foram os interesses de
determinados setores por essa “repulsa” a ameaça vermelha e uma possível revolução no país. O
Exército, principal elemento no golpe, detinha um interesse principalmente no que confere a sua
essência; a direita, na figura da UDN, demonstrava a muito o desejo pelo fim do mandato de Jango.
Uma importante discussão sobre a participação dos civis no golpe está presente na obra de
René Dreifuss (1987). O historiador uruguaio destaca a presença notável de civis, reunidos e atuando
6
nos complexos (IPES/IBAD) , que foram responsáveis pela desestabilização do governo Joao Goulart.
Eram os chamados técnicos; mostra ainda o papel dos empresários e tecno-empresários que após o
golpe ocuparam posições chaves nas administrações e ministérios, concluindo assim uma participação
7
bastante efetiva de setores civis.

4
VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio.
Economia Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
5
VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio. Economia
Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
6
O IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o IBAD, Instituto Brasileiro da Ação Democrática; constituem
um complexo responsável pela campanha de desestabilização do governo de João Goulart. Com a imposição
do Regime vária de seus principais empresários ocuparam cargos chaves no governo.
7
Em sua obra, “1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder e golpe de classe”. René Dreifuss analisa a

394
Logo nos primeiros dias do golpe ficou demonstrada uma divisão dentro do próprio Exército.
Existiam dois pontos de vista a respeito da “Revolução”, como aponta Thomas Skidmore (1988). Duas
frações com projetos distintos dentro do exército: a chamada linha de “Sorbonne”, uma linha mais
"moderada”, encabeçado pelo primeiro presidente do golpe Castelo Branco:

Oficiais estreitamente ligados à Escola Superior de Guerra (ESG), instituição


patrocinada pelos militares, cujos cursos de um ano atraíam igual número da elite militar
e civil. Outros conhecidos oficiais da Sorbonne eram os generais Golbery do Couto e
Silva, Cordeiro de Farias, Ernesto Geisel e Jurandir de Bizarria Mamede. Este grupo,
mais moderado do que a linha dura, defendia a livre iniciativa (embora considerando
também necessária a existência de um governo forte), uma política externa
anticomunista, a adoção preferencialmente de soluções técnicas e fidelidade à
democracia, achando, no entanto, que a curto prazo o governo arbitrário se impunha
como uma necessidade. A coesão desses oficiais da Sorbonne resultou das
experiências comuns que viveram na FEB, durante a Segunda Guerra Mundial; na ESG
(não só como estagiários, mas, sobretudo como professores); e em cursos em
instituições militares do exterior, especialmente nos Estados Unidos. Esses oficiais
ficaram mais tarde conhecidos como castelistas e desempenhariam importante papel em
8
subseqüentes governos militares.

Em defesa de ideais contrários à linha de Sorbonne, a chamada “Linha Dura” era encabeçada
pelo militar que chefiou as primeiras semanas do golpe, Costa e Silva, que viria a ser o segundo
presidente do regime, como pontua Ronaldo Costa Colto (1999):

Eles não querem apenas o papel de mero moderador do passado recente, o ciclo
intervenção militar-substituição de governantes-volta aos quarteis. Como na crise da
renuncia de Jânio Quadros, por exemplo, que resultou em parlamentarismo e Goulart
presidente. Agora querem o poder político e a permanência do movimento. Querem
governar. Governo forte autoritário. É a “Linha Dura”, direita da direita militar, cuja
9
disputa com os moderados vai permear todo o longo ciclo autoritário.

O Brasil atravessava um momento de intensa atividade politica. Setores de esquerda


demonstravam descontentamento e anseio de mudanças na conjuntura do país. Como essas mudanças
se processariam era a duvida que pairava sobre a população. Todas essas melhorias e transformações
10
estavam contidas nas Reformas de Base , que tomaram conta do momento politico anteriores ao golpe.
Grande era a pressão pelas reformas, uma principal chamava bastante atenção, tanto de setores
conservadores quanto os da esquerda, a Reforma Agraria que tinha como fundamento básico distribuir a
terra de maneira menos injusta, fazendo com que fosse utilizada por uma parcela maior da população. O
problema residia na questão da terra pertencer a grandes latifundiários que acabavam influenciando
diretamente na politica nacional; não somente Reforma Agraria entrou em pauta, varias outras reformas
foram exigidas por setores sociais almejando um país menos injusto. Exemplo disso era a Reforma
Universitária numa espécie de democratização desse direito e colocando a mesma a favor de interesses
nacionais. Neste contexto das reformas a participação efetiva dos trabalhadores assustou muito as
parcelas conservadoras e a classe média, como aponta Daniel Aarão Reis (2001):

As camadas médias percebiam que um processo radical de distribuição de renda e


poder por certo afetariam suas tradicionais posições e seus relativos privilégios naquela
sociedade brutalmente desigual. Disseminava-se assim uma sensação de que o mundo
poderia virar de ponta a cabeça: um campo fecundo para todo tipo de agitação
11
conservadora.

Podemos verificar o forte peso que as campanhas de desestabilização causaram no governo de


João Goulart, um papel especial é dedicado ao complexo IPES/IBAD, duas instituições que segundo
René Dreifuss (1987), deteve um papel importante na deposição de Jango. Estes dois complexos eram
responsáveis pela campanha anticomunista e por fortes denúncias direcionadas ao governo de Jango,
como pontua Jorge Ferreira (2003):

participação dos civis tanto na conjuntura da deposição do presidente João Goulart, como também na ocupação
de cargos chaves no governo Militar.
8
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo A Tancredo 1964 – 1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
9
COUTO, Ronaldo Costa. Historia indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro: Record, 1999.
10
Um conjunto de medidas que visavam a alteração em diversas estruturas no país, afim de garantir um maior
desenvolvimento, juntamente com justiça social.
11
REIS, Daniel Aarão. O Colapso do colapso do populismo ou a proposito de uma herança maldita. In:
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2001.

395
Ao mesmo tempo, grupos políticos, empresariais e militares articulavam-se em
instituições para conspirarem contra o governo de maneira mais organizada. A primeira
dela foi o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES. Fundado no inicio de 1962,
inicialmente, publicava livretos, patrocinava palestras, financiava viagens de estudantes
aos Estados unidos e ajudava a sustentar organizações estudantis, femininas e
operárias conservadoras. Em finais do mesmo ano, grupos mais conservadores
reorientaram o órgão no sentido de derrubar o governo... Outra organização era o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o IBAD. Igualmente sob orientação da CIA,
subvencionou diretamente candidaturas conservadoras nas eleições de 1962, todas
comprometidas em defender o capital estrangeiro, condenar a reforma agrária e recusar
12
a politica externa independente.

Segundo o autor Daniel Aarão Reis (2001), no governo de Joao Goulart, pode-se observar que a
estrutura montada pela direita foi precisa no sentido de desestabilizar seu governo, pois ao observarmos
as propostas tanto no Plano Trienal quanto nas Reformas de Base, observa-se uma tentativa de garantir
um desenvolvimento de maneira mais justa, o que o Jango não contava era com o aparato que já estava
sendo gestado para que seu mandato fosse interrompido. Interessante é mostrar o papel desempenhado
pelos trabalhadores nas reinvindicações por melhorias na condição de vida.
Esse processo acabou fazendo com que a burguesia, ligada ao capital internacional, Direita,
Militares, Igreja Católica e classe média ficassem receosas das mudanças oriundas dessas possíveis
Reformas. Tanto o exercito como as forças conservadoras estavam agora com a legitimidade, eram
agora defensores da legalidade, levando assim ao Golpe Civil-Militar; pautado no autoritarismo,
repressão, cassações de direitos políticos, desaparecimento de presos, torturas e até mesmo mortes
dentro das instituições criadas pelo próprio regime.

“Sorbornne” e “Linha Dura”: disputas pelo controle do Regime e da Repressão.


Ao analisarmos a linha sucessória dentro do regime militar é possível identificar as mudanças
ocorridas na “Revolução” em virtude dos dois principais grupos do exército. Como já foi citada, a
repressão começou desde os primeiros dias depois de instaurado o golpe, num primeiro momento
tentou-se impedir uma resistência maior por parte tanto dos sindicatos como por pessoas que
exercessem cargos políticos ou influencia nesse campo. Começava assim um dos períodos mais duros
de repressão no Brasil. Os órgãos foram sendo criados sistematicamente para garantir que a lei e a
ordem, segundo os preceitos da Exercito, fossem respeitadas a qualquer custo e preço. Toda a ossatura
da repressão foi sendo montada no sentido de garantir que alguns órgãos fossem responsáveis pelo
controle das atividades contra o regime.
Na obra de Carlos fico (2003) fica evidente que a repressão não começou somente depois do AI-
5. O que os militares, principalmente aos ligados a linha Dura, almejavam já algum tempo eram maiores
poderes para fazê-la de modo mais sistematizado. Demonstra também a dificuldade na desmontagem de
todo esse aparato na “abertura” politica. O ponto central de sua obra insere-se no contexto da
organização dos aparelhos repressores, numa conjuntura bem complexa:

O SNI, as DSIs e todos os demais órgãos de informação compunham a comunidade de


informações, isto é, dados sobre quaisquer questões ou pessoas de interesse do
regime. A produção de tais informações supunha uma rotina bastante regulamentada,
que impunha classificações quanto a fidedignidade e veracidade das fontes normas
rígidas de sigilo. Quase todo documento produzido pela comunidade recebia uma
13
classificação de sigilo: “reservado”, “confidencial” ou “secreto”.

A crítica maior do autor acima citado é com relação à maneira com que esses documentos eram
preparados, tendo em vista que a maioria desses aparelhos foi criada para vigiar e fazer fichas
apontando a posição ideológica, quando na verdade muitas vezes não passava de suposição. O simples
fato de certa pessoa participar de uma reunião, já a colocava como suspeita. O que o autor pontua como
técnicas de suspeição, levantando ainda que dentro desse contexto é fácil imaginar que todas essas
fichas com falsas informações poderiam ser utilizados para impugnar candidaturas de desafetos do
Regime. A Doutrina de Segurança Nacional balizou toda a estruturação do golpe, como aponta Nilson

12
FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia
Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do
século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.
13
FICO, Carlos. Espionagem, polícia politica, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar
e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

396
Borges (2009), “a Doutrina de Segurança Nacional serviu como base ideológica do sistema implantado
14
em 1964 e contribuiu para a formação do aparato de informações da nova ordem institucional” . Na
transição do governo Castelo branco para o do segundo general do Regime, Costa e Silva, há uma
mudança significativa na efetivação da Doutrina de Segurança Nacional, como aponta Nilson Borges
(2009):

Em 13 de dezembro de 1968, o general-presidente Costa e Silva baixa o ato institucional


nº 5, resultado de uma crise entre câmara dos deputados e o próprio governo, cujas
medidas consolidam a Doutrina de Segurança Nacional e transformam o Brasil num
Estado de segurança interna absoluta. No período subsequente, soba égide do AI-5 e
como o General Médici na presidência da republica, a dinâmica do regime será violenta
mediante a articulação dos diversos aparatos repressivos disponíveis e a serviço do
15
terrorismo estatal.

A conjuntura de transição na presidência de Castelo à Costa e silva e, em virtude da doença do


último, para Médici, colocou a frente do país forças que creditavam num maior aumento da repressão
contra a subversão uma saída para continuidade do Regime. Neste sentido o aumento da repressão faz-
se nos anos subsequentes. AI-5 representou o ápice da repressão por parte do Regime Militar, as
denúncias se multiplicavam, porém, nenhuma resposta era dada a sociedade sobre esses
acontecimentos; o que o autor Padrós classifica ao falar das Doutrinas de Segurança Nacional, quanto
do Terror de Estado:

Em nome da defesa da civilização ocidental e do sistema democrático, a DSN procurou


desviar atenções sobre o crescente mal- estar de uma população cada vez mais
atingida pelo crescente desequilíbrio da distribuição de renda. Diante dos primeiros
sinais de resistência contra esse quadro, a DSN legitimou, em nome do capital
internacional e dos seus aliados locais, o uso do Terror de Estado. Tudo justificado com
o discurso da defesa da ordem, da estabilidade político-social, da nação ameaçada pelo
16
“comunismo”, das liberdades e da civilização ocidental.

O medo imposto tanto pela DSN quanto o TED balizaram toda a conjuntura do golpe. Impondo
medo e receio na sociedade com o objetivo de desestabilizar qualquer reação por parte da mesma.

Igreja Católica: do apoio ao Golpe a critica ao Regime Militar


A relação da Igreja com o Regime foi significativa. O principal elemento de seu posicionamento
17
observou-se nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” , ainda na campanha de
desestabilização do presidente João Goulart. Dois autores num ensaio conjunto analisam as mudanças
pelas quais a Igreja passou durante o Regime. Lucilia de Almeida Neves Delgado e Mauro Passos
(2009) abordam a colocação das lutas pelos direitos humanos e sociais como fatores principais dessas
mudanças ocorridas na igreja.
A igreja não constitui um bloco hegemônico nele existentes diversos movimentos que se
divergem e praticas que são influenciadas pelas ligações de seus membros com diferentes classes
sociais. No contexto do golpe a Igreja esta inserida principalmente na luta contra o comunismo, pela
ordem e pelas autoridades constituídas, isso explica o fato de seu apoio ao golpe.
Dois eventos principais mudaram o posicionamento da Igreja com relação às questões sócias e
principalmente os direitos humanos. No Brasil, o ano de 1968 é apontado como a virada da relação da
Igreja Católica com o regime como aponta a obra “Brasil: Nunca mais” (1985):

O ano de 1968 pode ser apontado como marco dessa virada por inúmeras razões: foi
um momento de manifestações de protestos e repressão policial condenada pelos
cristãos; foi o ano da decretação do AI-5; foi o período em que se iniciaram as primeiras
experiências de constituição das comunidades eclesiais de base; e também foi o ano de
Medellín. Naquela conferencia do episcopado latino-americano (CELAM), as injustiças

14
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins do
século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.p.31.
15
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins do
século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.p.39,40.
16
PADRÓS, Enrique Serra. (2007). América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Revista
Historia e Lutas de Classe, ano 3- edição nº 4. Pag.49.
17
Mobilização organizada pela Igreja Católica com a participação da classe média a fim de criticar a
“radicalização” e uma possível Revolução Comunista no Brasil, rezavam em nome lei ordem, família.

397
sociais cada vez mais graves, que se faziam presentes em todos os países
representados, levaram os bispos a afirmar, na resolução final: “não basta refletir, obter
maior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas
18
tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação.”

O projeto “Brasil: nunca mais” é alicerçado principalmente em processos do Superior Tribunal


Militar e caracteriza-se como uma obra de denúncia aos direitos humanos e contra a tortura empregada
fortemente nos anos do regime. Com a escalada da repressão nos anos de 1968, a decretação do AI-5,
a Igreja passa também a ser perseguida, principalmente pelas criticas feitas pelos clérigos contra o
Regime. No mesmo livro é possível identificar vários processos pelos quais clérigos foram acusados de
crimes contra a Segurança Nacional.
As fichas do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), um dos aparelhos repressores na
ditadura, constituem um elemento de grande relevância na pesquisa sobre esse tema, tendo em vista
que as mesmas eram utilizadas para obter e registrar informações a respeito de pessoas “suspeitas”. No
APEM (Arquivo Público do Estado do Maranhão) encontram-se boa parte dessas documentações.
A respeito da Igreja, foram encontrados documentos que destacam a participação de alguns
padres envolvidos, aos olhos dos militares, em questões da Segurança Nacional. Em virtude de suas
atividades, alguns tiveram seus nomes relacionados a fichas no Dops e também chegaram a enfrentar
processos na justiça. Como ainda não foram catalogados, muitos ainda estão em caixas “avulsas”, como
foi o caso das fichas do Dops em que se encontram os nomes de cinco padres e oito civis.
Entre a relação das fichas que envolvem os padres, existe uma que trata do fato de que Ladislau
Papp, de nacionalidade húngara, estaria utilizando-se de um jornal da cidade para tecer criticas contra o
Regime, bem como de praticar atos subversivos, como consta na ficha do mesmo: “ANOTAÇÕES:
19
escreveu vários artigos no Jornal Pequeno , procurando fazer agitação, no que muitas vezes conseguiu
20
seu intento.”
Os outros documentos, tanto os relacionados aos clérigos quanto aos civis, aponta o nome de
outro padre, infelizmente não há indícios de sua ficha; Daniel Constant Jouffe foi o responsável pela
investigação a todos os outros, tudo está relacionado a ele. Em primeiro porque os nomes foram citados
por conta de uma lista de endereços encontrados em sua residência e ainda é acusado de subversão.
Ainda na documentação a respeito dos padres, duas fichas chamam atenção, pois as mesmas
contem os respectivos crimes aos quais eles foram submetidos a julgamento. Foram os casos de Xavier
Gilles de Maupou, de nacionalidade francesa, este chega a ter duas fichas, uma com informações bem
detalhadas, a outra, porém está incompleta e Antônio Monteiro Xavier, que tem somente uma ficha,
possuindo as duas uma ligação. Os dois padres em questão são acusados de cometer os mesmos
crimes, vejamos a “OCORRÊNCIA” descrita na ficha de Antônio Monteiro Xavier:

Incursos nos artigos 23, 25, 39, incisos I, V e 45, incisos I, II decreto lei de Nº 898 de
29/09/79. Pela subdelegacia da policia federal do estado. Inquérito iniciado em 04.08.70
terminado em 18/08/70 quando foi encaminhada a auditoria militar. O sacerdote em tela
foi julgado e absolvido, juntamente com o Pe. X.G. M, sendo que ambos eram vigários
de São Benedito do Rio Preto local onde foram acusados de praticar os crimes já
21
citados.

Ao analisarmos o decreto-lei Nº 898, os artigos e os incisos que os clérigos foram acusados,


pode-se observar que são todos crimes contra a Lei de Segurança Nacional, como o artigo 23: “Art. 23.
Tentar subverter a ordem ou estrutura político-social vigente no Brasil, com o fim de estabelecer ditadura
22
de classe, de partido político, de grupo ou indivíduo. Pena: reclusão, de 8 a 20 anos.” ; como também o
“Art. 25. Praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva. Pena: reclusão, de 5 a
15 anos. Parágrafo único.
Se, em virtude deles, a guerra sobrevém. Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em
23
grau máximo. ”
O último padre, Rogério Dubois, tem em sua ocorrência apenas a questão de seu endereço ter
sido encontrado com o Pe. D.C.J., igualmente a ficha de cinco dois oito civis. Sobre estes, todos são
18
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.p.148.
19
Jornal da Ilha de São Luís- MA. Não há mais nenhuma referência?
20
Caixa avulsos DOPS (APEM), SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de
fichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.
21
Caixa avulsos DOPS (APEM), SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de
fichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.
22
Decreto-lei Nº 898, De 29 De Setembro De 1969. Define os Crimes Contra a Segurança Nacional, a Ordem
Politica e Social Estabelecem Seu Processo e Julgamento e da Outras Providencias.
23
Decreto-lei Nº 898, De 29 De Setembro De 1969. Define os Crimes Contra a Segurança Nacional, a Ordem
Política e Social Estabelecem Seu Processo e Julgamento e da Outras Providencias.

398
professores e alguns chegam a ter como complemento na ficha o status universitário. Nas fichas dos
cinco consta o seguinte texto, como também na do padre Rogério Dubois; “ANOTAÇÕES: este nome
24
consta na relação de endereções do Pe D.C.J, suspeito de exercer atividades subversivas.” Todos
datam de 1971, e alguns apresentam um complemento, tratando de alguns terem seguido para a (EDAL)
Equipe de Docentes para a América Latina.
Através da documentação é possível observar de que maneira alguns clérigos demonstram seu
descontentamento com o Regime. Do outro lado percebe-se uma única resposta, a repressão. Sempre
categorizada pelos aparelhos criados para este fim demonstra a organização que os militares tiveram
para criar e pôr em prática a Doutrina de Segurança Nacional.

Conclusão
É necessário observar como o golpe de 1964 foi sendo projetado. Quais atores políticos
detinham o poder no país? Pela primeira vez poderíamos sonhar com um país menos injusto, em alguns
aspectos, ou pelo menos que caminhasse a passos largos neste sentido. Em março de 1964, o Exército,
juntamente com foras conservadoras e apoio de alguns setores civis, em nome de uma radicalização
fantasiosa, mergulharia o país em dias de plena escuridão. Deixando a democracia de lado, vários
setores da sociedade sofreram com as prisões, torturas e desmandos de um Regime que se baseava na
Lei de Segurança Nacional, a guerra agora era contra um inimigo que poderia ser qualquer pessoa que
tentasse contra os militares. A igreja que apoiara o golpe, em nome principalmente da ordem e da moral,
num segundo momento vê a real situação critica do país, mergulhado em um caos social imenso. Ao
passar a criticar as condições sociais e politicas, passa a criticar o próprio regime e passa a sofrer com a
perseguição, seus clérigos também são atingidos por prisões, perseguições e ate mesmo torturas. O
regime mostrava sua verdadeira face, deixando o país marcado por elevados índices de concentração
de renda e uma sociedade marcada pelo desrespeito com os direitos comuns ao cidadão num Estado
democrático.

Referências Documentais:
Documentação Arquivos DOPS/MA. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão
(APEM); SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de fichário do DOPS.
Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.
Referências Bibliográficas:
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e
movimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.
COUTO, Ronaldo Costa. Historia indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro: Record, 1999.
DELGADO, Lucilia Neves. PASSOS, Mauro. Catolicismo: direitos sociais e direitos humanos (1960-
1970) In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-
Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.
DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder, e golpe de classe. Rio de janeiro:
vozes, 1987.
FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais
em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.
FERREIRA, Jorge. Crises da Republica: 1954, 1955, 1961. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia
Neves. O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe
civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.
FICO, Carlos. Espionagem, polícia politica, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.
FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro:

24
Caixa avulsos DOPS (APEM). SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de
fichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.

399
Record, 2004.
PADRÓS, Enrique Serra. (2007). América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado.
Revista Historia e Lutas de Classe, ano 3- edição nº 4. pag.49.
REIS, Daniel Aarão. O Colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita. In:
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: civilização Brasileira,
2001.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo A Tancredo 1964 – 1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio.
Economia Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

400
De Ditadura em Ditadura: o jogo duro das elites dominantes sobre o cidadão comum
(1930-1964)

1
Adriana Picheco Rolim

Resumo: As similaridades e continuidades das ditaduras Vargas e civil-militar de 1964, cuja


perseguição, prisão e tortura pelos órgãos de repressão de ambos os governos, ao militante Carlos
Marighella, deputado eleito pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) em 1945 e cassado em 1947 expõe
algumas das similaridades do interstício ditatorial do Estado brasileiro; fato analisado nas próximas
linhas juntamente com o esforço de construir a “imagem marginal” de um dos mais importantes
representantes dos movimentos populares ao longo do século.
Palavras-chave: Carlos Marighella, Revolução de 30, Ditaduras Vargas e civil-militar de 1964.

Abstract: The similarities and continuities of dictatorships Vargas and civil-military of 1964, whose
persecution, imprisonment and torture by law enforcement agencies of both Governments, the militant
Carlos Marighella, Member elected by the PCB (Brazilian Communist Party) in 1945 and impeached in
1947 some of the exposed by similarities of dictatorial Brazilian State interstice; actually parsed in next
lines together with the effort to build the "marginal image" of one of the most important representatives of
popular movements throughout the century.
Keywords: Carlos Marighella, Revolution 30, dictatorships Vargas and civil-military of 1964.

Introdução
O cenário político, por vezes, apresenta-se como um teatro de marionetes, manipulando por fios,
ao gosto do manipulador, toda uma sociedade, seja por um interesse claro em defesa própria ou por
objetivos protecionistas e inerentes ao bem comum, “uma pessoa que se entregou à política, já não se
pertence a si própria e tem de obedecer a outras que não as santas leis de sua natureza” (ZWEIG, 1946,
2
pag.27) . O jogo de informações referentes aos diversos movimentos revolucionários sejam os de lutas
de classes, de diferenças ideológicas ou da luta armada, movimento contra a ditadura civil-militar de
1964, etc., são tão complexos quanto às informações conhecidas sobre seus protagonistas, sempre
envoltos em discussões diversas, oscilando entre o banditismo e o heroísmo. A memória da luta e da
dedicação idealista em que muitos sujeitos viveram em determinados períodos de nossa história,
devotando suas vidas, seja ao partido comunista ou a causa operária, por acreditar em uma mudança
efetiva no cenário político, pautada por ideais, é que torna justificável a busca do entendimento acerca
de tais movimentos e seus personagens. Sufocados e/ou impedidos, sejam por interesse estrangeiros,
3
no caso estadunidense como a “caça as bruxas”, o Marcathismo , em relação com o comunismo
soviético, ou por maquinações nacionais ligadas a interesses de poder, é que retardou a possibilidade de
popularização de ideias socialistas em determinadas épocas e porque não, o seu próprio entendimento
como ideal.
A apresentação deste artigo como tentativa de análise sobre as permanências e rupturas dos
ideais revolucionárias e seu tratamento por parte das autoridades governantes, nas ditaduras de Getúlio
Vargas, a partir do golpe de 1930 e na ditadura civil-militar instaurada a partir de 1964, enquanto força
legitimada no combate aos inimigos do regime, ocultando a luta pelos direitos do homem e de sua
cidadania. Um olhar sobre estes estados ditatoriais e suas faces pode vislumbrar a trajetória do militante
Carlos Marighella, o dito "inimigo n° 1 da ditadura militar” e “velho conhecido da ditadura Vargas” que
lutou e resistiu às prisões e perseguições a que foi submetido e a construção do mito de "marginal"
construído pela propaganda de direita para ser combatido. Militante dedicado ao Partido Comunista
4
esteve praticamente toda a sua vida política (1935-1969) na clandestinidade. Sua participação desde a
intentona comunista de 1935 até a ruptura com o PCB e a fundação da ALN (Aliança Libertadora

1
Graduanda em História – 6° semestre. Universidade Norte do Paraná- UNOPAR. Modalidade EAD.
2
Maria Stuart, Stefan Zweig, 1946, pág.27
3
Política iniciada em 1951, em decorrência da Guerra Fria, entre EUA e URSS, pelo senador norte-americano
Joseph McCarthy, cujo intuíto era perseguir pessoas favoráveis ao comunismo.
4
Com a ANL de Luis Carlos Prestes, mesmo que não explicitamente, com o PCB em 1936 e a ALN em
1968(Edson Teixeira da Silva Júnior em “Carlos, a Face Oculta de Marighella”).

401
Nacional) demonstra a sua persistência para lutar contra às injustiças sociais e às políticas com
influência autoritária e imperialista.

Sobre as lutas de classes desde 1930


Mesmo as épocas de opressão são dignas de respeito, pois são a obra, não dos
homens, mas da humanidade, e portanto da natureza criadora, que pode ser dura, mas
nunca é absurda. Se a época que vivemos é dura, temos o dever de amá-la ainda mais,
de penetrá-la com nosso amor, até que tenhamos afastado as enormes montanhas que
5
dissimulam a luz que há para além delas. (PAUWELS E BERGIER, 1946 pag.8).

O golpe de 1930, ou “Revolução de 1930”, atribuído em parte pela historiografia, apoiou-se nas
agitações do tumultuado final dos anos 20, com greves em muitos setores da indústria e serviços, fruto
6
do descontentamento dos trabalhadores e da agitação de velhos anarquistas , de novos comunistas e
das condições sócio-históricas, impulsionando a busca por seus direitos embasados nas massas
7
populares. A Lei Celerada , lei dos “combates ideológicos”, que proibiu reuniões, censurou a imprensa e
calou a voz da oposição, além de colocar o PCB (Partido Comunista Brasileiro) na ilegalidade.
Longa e controversa é a trajetória da luta de classes no Brasil, questões sociais são complexas e
tendem a não serem levadas a sério por diversos governos. Delimitar os anseios das classes
trabalhadoras diante do patronato, que ora reivindica melhorias, ora os apoia é um tanto curiosa.
Interessante esta dualidade dentro do movimento operário que por diversas vezes esteve perto de
articular-se como classe e não o fez, entre outros, pela aparente falta de compreensão intelectual e/ou a
ausência de próprias lideranças e ainda pela inabilidade às massas e seus interesses.
A velha questão de patrões em busca de mão de obra barata, tendo em vista o lucro e dos
trabalhadores em busca de melhores condições de vida e trabalho, atravessou gerações desde o
advento do capitalismo nascido sob a bandeira da revolução industrial. Vozes não foram ouvidas além
dos muros das fábricas, nem como uma forma de sobrevivência social e intelectual, nem onde a
cidadania se efetiva através da reivindicação da condição humana, da condição como trabalhador, que
participa do contexto de produção, apoderando-se assim do seu próprio trabalho e vivenciando sua
própria estrutura. Sem a articulação das massas e suas lideranças, o movimento operário não poderia
transcender às suas ideias nem ganhar as ruas com a força necessária. Sua existência sempre foi de
luta e enfrentamento às várias políticas e policias que não compreendiam a complexidade do movimento,
como sendo de cunho não apenas político, mas também social. Confundido muitas vezes como
desordem, foi tratado como tal, como caso de polícia, que culminou em repressões e uso de forças
abusivas, por parte de governos apavorados com o “terror vermelho”.
8
“Terra, pão e liberdade”..., com este lema a Aliança Nacional Libertadora lançou sua política
proletária para dominar a cena política do país. Apoiada por militares, uma classe burguesa com ideias
de esquerda, porém sem o total apoio e organização do campesinato e do operariado, lançaram-se no
9
que culminou na Intentona Comunista de 1935, contra o Partido Integralista , de aspirações fascistas e
lema moralista, “Deus, pátria e família”.
Carlos Marighella assistiu a este episódio e a outros que viriam depois. Comunista convicto
passou por duas ditaduras, com prisões, que o perseguiram furiosamente, até acabar assassinado pelo
10
delegado do DEOPS, Sérgio Fernando Paranhos Fleury, após as prisões dos freis dominicanos , numa
emboscada covarde, cujo intuito não era fazer de Marighella prisioneiro. “Na noite de terça-feira da
semana passada, surpreendido numa armadilha, cercado por quase quarenta policiais, Marighella não
11
se rendeu. E foi aniquilado...” (VEJA, 1969, pg.22) . Pode-se notar claramente, que a intenção não era
de capturar Marighella, e sim matar o mito da guerrilha urbana, cujo objetivo era produzir o
enfraquecimento dos grupos de esquerda, no intuito de desarticular os mesmos.
O perseguido da Era Vargas (1930-1945) e “inimigo n° 1” da ditadura civil-militar (1964-1985)
parece ser uma imagem construída no interesse em combater os inimigos do regime e os grupos de
esquerda, por parte da elite militar no poder, que transformaram a vida e a militância de Carlos

5
“O Despertar dos Mágicos: Introdução ao realismo Fantástico”, Louis Pauwels e Jacques Bergier,1947, pag.8.
6
As ideias anarquistas vieram na bagagem de muitos imigrantes europeus no início do século XX, mormente os
italianos.
7
Lei criada em 1927, no governo de Washington Luís, a fim de reprimir movimentos do bloco operário, suprimindo
os direitos de organização de classe ou representação social, tornado possível à repressão aos movimentos
sociais e reivindicatórios, como exemplo o movimento da baixa oficialidade conhecido por “tenentismo”.
8
ANL, partido criado no Rio de Janeiro em 1935, tendo Luís Carlos Prestes como presidente honorário.
9
Ação Integralista Brasileira, partido de tendência fascista fundado em abril de 1933.
10
Para as prisões dos freis Fernando de Brito, Yves do Amaral Lebauspin, entre outros, ver Jacob Gorender em
“Combate nas trevas”, pag. 172 e 174.
11
Revista Veja, Acervo Digital, reportagem de capa, 12 de novembro de 1969, pag. 22 a 31. Disponível em:
http.://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx

402
Marighella em uma “vida bandida”. Um olhar mais atento sobre a vida do personagem, despido das
possíveis bases de preconceito, intolerância e rancor, possibilitam vislumbrar um líder, que poderia ter
seguido uma militância pacífica. Fez a opção pela luta armada, diante das condições históricas impostas
pelo Estado e pela sociedade; refletindo, também, ao que parece ser mais uma particularidade de sua
personalidade ou a falta de uma perspectiva conciliatória, que a clandestinidade lhe deu de presente.
Para o povo, trabalhador descontente ou para aqueles que vislumbravam uma sociedade mais
igualitária, a imagem de Marighella poderia transformá-lo em um mito popular e consequentemente,
despertar interesses maiores sobre suas reivindicações e, talvez, popularizá-lo. O resgate dos
depoimentos de pessoas próximas a Marighella, companheiros de militância e familiares, pode-se
compreender o homem comum com suas atitudes e convicções. De sua infância e adolescência, na
Bahia, ao seu despertar para os problemas sociais, vivenciados no bairro em que cresceu, seja
auxiliando vizinhos com problemas do dia a dia ou crianças com problemas de aprendizado até a sua
12
popularidade entre os presos na organização do dia a dia do “Coletivo” nas prisões de Fernando de
Noronha e da Ilha Grande. Disciplinado e extremamente engajado em seus ideais na luta por um Brasil
13
melhor, era visto por seus companheiros como o "melhor comunista" . A trajetória deste homem que se
fizera militante comunista em 1934, simpático a ANL de Luís Carlos Prestes, no levante de 1935, a
ruptura com o PCB em 1968, a fundação da ALN até a sua morte em 1969, abre a possibilidade de se
vislumbrar um Mariguella forjado pela convicção de lutar.

O PCB
No decorrer da história do homem, desde a servidão passando pela escravidão até a Revolução
Industrial, pouca coisa mudou para o trabalhador, acrescentaram-se alguns trocados a menos aqui e
algumas horas a mais acolá, porém as mentalidades acerca das relações trabalhistas permanecem.
Restou revolta e protestos, mal traduzidos, nas lutas que se seguiram durante anos, ou através deles,
perdidos ou mal representados.,
14 15
O PCB foi fundado no Brasil no ano de 1922, após o triunfo da revolução proletária na URSS ,
e como partido novo, com intenções voltadas às classes trabalhadoras e camponesas, aspirando formar
uma organização operária politicamente unida, objetivando ter a adesão total das massas para chegar
ao poder, desestruturando o velho sistema, para horror da sociedade burguesa, efetivando assim, a
revolução do proletariado.

O fantasma do comunismo não tinha o aspecto sinistro e capiroto que a grande


imprensa e o governo pintavam. O PCB era uma organização incipiente, que tentava
assumir o controle do movimento operário, ainda sob a combalida liderança dos
16
anarcossindicalistas. (MEIRELLES, 2005 pag. 75) .

Não constitui tarefa demasiadamente pesada compreender o assombro causado a uma


sociedade, pautada por modelos moralistas, católicos, em regra baseada em uma cultura europeia,
ligada ao capital estrangeiro, diante das ideias “novas” que propuseram divisão de bens e dos lucros de
forma igualitária; capaz de garantir diferentes empoderamentos, mormente com o ganho de espaço
social e adeptos.
O Partido Comunista Brasileiro, de legalidade curta, formou-se na ilegalidade, com suas ações
sendo vigiadas e reprimidas pelos órgãos de segurança. O movimento não efetivou lutas operárias com
apoio total das massas, devido a vários fatores, um deles, de grande relevância, foi o fato da classe
operária não ter plena consciência e instrução suficiente para marcar a sua própria identidade, muitas
vezes não compreendendo o que significava ser “comunista” ou o que o movimento significava e até sua
própria inserção nele. Em meados da década de 1930 esta causa foi encabeçada por lideranças
operárias, trazendo em suas vozes, os clamores da insatisfação dos trabalhadores. Formaram-se
lideranças dentro do meio operário, que logo foram absorvidas por intelectuais simpáticos ao movimento.
No Rio, os sindicatos mais bem estruturados continuavam sob controle anarquista, mas
era visível o crescimento e a popularidade dos comunistas. Além de se espelharem
numa experiência bem-sucedida, a Revolução Russa de 1917, ainda contavam com o
apoio psicológico e material de uma nação empenhada em exportar para outros países
17
seu vitorioso modelo político. (MEIRELLES, 2005 pg. 75) .

12
Organização implantada nas prisões de Fernando de Noronha e Ilha Grande, de um conjunto de regras e tarefas
para a convivência e militância dos presos políticos.
13
Como disse Noé Gertel em depoimento a Edson Teixeira da Silva no livro “Carlos, a face oculta de Marighella”,
2009, pag. 384.
14
Partido Comunista Brasileiro.
15
Bloco de países comunistas da antiga União Soviética.
16
“1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, 29005, pag. 75.
17
“1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, 2005, pag.75

403
18
O quadro da vitória proletária na Revolução Russa trouxe a visão de que a revolução socialista
poderia trazer novos ventos ao cenário político-social, muitos estrangeiros, imigrantes europeus,
trabalhadores com mais qualificação e engajamento político que os trabalhadores brasileiros,
desembarcaram no Brasil, como mão de obra para as fábricas, e trouxeram na bagagem ideários
revolucionários. Estes voltados para reformas de base, agrária e social. Há revoluções em nome do
povo, para o povo e pelo povo, quando deveria ser com o povo ou de total apoio do povo, isto pode
confundir a identidade dos movimentos sociais. O partido comunista recebia recursos externos, a nível
monetário e intelectual; em teoria o PCB seria o braço do partido soviético no Brasil, com um modelo de
liderança proletária, que inspirava ser capaz de efetivar a causa operária brasileira. Foram precisos
alguns anos entre legalidades breves e clandestinidade longeva, em desafio às coragens, valores e
conceitos das principais lideranças, para que se questionassem o real valor deste modelo soviético para
o Brasil. Superar estes interesses para passar a outras mãos significaria não efetivar assim, uma
adaptação do pensamento marxista, para transformá-lo em poder político, voltado aos problemas e
interesses da sociedade brasileira? Será que seríamos subjugados a outro país cuja situação estaria
distante do contexto da sociedade do período supracitado? Sem uma adaptação clara, por parte do PCB,
da doutrina marxista, para uma solução brasileira em termos de conscientização operária, instrução e
organização social e política, o PCB continuaria um partido distante, sem a adesão das massas,
possivelmente atendendo a ideais soviéticos, sem uma nacionalidade brasileira, ou legitimação nacional.
Com a chamada “Guerra Fria” (1946/1989), a causa proletária soviética e o imperialismo
estadunidense entraram em conflito, na tentativa de se firmarem como potências, hostilidade esta que se
inicia com o fim da 2° Grande Guerra, em busca de favorecimento dos interesses de cada um. Do PCB
e a sua estruturação e sustentação, podemos dizer que seus membros contribuíam monetariamente com
19
o partido, em complementação ao que era enviado pela URSS . Os membros do partido viajavam para
China, Cuba ou URSS, entre outros lugares, para treinamento, aperfeiçoamento e para partilharem suas
experiências de militância, em intercâmbio cultural-ideológico.

Sobre 1964
Há muitos debates envolvendo este período controverso, debates estes que são parte pertinente
para a tentativa de reconstrução dos fatos e acontecimentos. Após o golpe civil-militar de 1964, com a
perseguição aos inimigos do regime, estudantes politicamente engajados, lideranças operárias e
partidárias, simpatizantes da causa, que militavam contra o regime, entendiam que mudanças eram
necessárias dentro do seio da sociedade. Imbuído de práticas, engajamento e idealismo, muito em voga
à época, e de certa impetuosidade, própria àqueles tempos, panfletaram e picharam. Foram presos,
foram expulsos de universidades e diretórios acadêmicos, foram despedidos, cassados e empurrados
para a clandestinidade; acabaram “tragados”, “consumidos”, até desaparecerem da cena social.
No grande turbilhão das ebulições culturais à época, com mudanças de caráter cultural e de
costumes no mundo a fora, a procura por quebrar ou subverter regras vigentes era de todo sedutora. Na
luta por mudanças sociais e melhor distribuição da riqueza e em nome da construção de um país melhor,
acabaram por aderirem ao socialismo, pelo operariado e sob lideranças mais experientes nos
movimentos de esquerda, aderiram à luta armada pela revolução, após o golpe de 1964.
Operariado e campesinato não eram, em sua totalidade, efetivamente de esquerda ou
comunista, clamavam por melhores condições de vida, trabalho e renda, o que vinha de encontro com a
doutrina comunista e de seus disseminadores, com melhor distribuição da riqueza produzida e, quiçá,
com base na doutrina marxista, o povo no poder.
Revoluções para tomada de poder há muito são conhecidas, as de 1930 com a tomada de poder
por Getúlio Vargas e sua política populista, e a de 1964 com uma junta militar, amparada por parte da
sociedade brasileira ante ao pavor do comunismo, uma epidemia, propaganda desencadeada pela
política estadunidense, são exemplos. Com o apoio de governos e capital estrangeiros, que brigavam
por território longe de suas fronteiras, o governo brasileiro esqueceu-se das liberdades e, aparentemente
de seus próprios direitos, de soberania e autonomia, lançando mão da força em demasia, lutando contra
uma condição que na verdade deveriam defender, em nome da cidadania.
20
Sendo 1935, uma revolta de cunho comunista e contingente militar tenentista , para a
implantação de ideias socialistas em solo brasileiro, os golpes de 1930 e de 1964 tem em comum o fato
de serem revoluções em nome dos rumos políticos do país, envolvendo militares e a ameaça do

18
Revolução socialista em 1917, com a participação das massas operárias, camponesas e lideranças que
implantou o sistema comunista na Rússia do czar.
19
Para o envio de dinheiro soviético, “Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag.
270 e 271.
20
Sobre o Brasil ser o país latino-americano de maior contingente comunista nos quartéis, “Marighella: O
Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag. 81.

404
comunismo. Desde antes de 1930 tanto socialistas, anarquistas e comunistas, não se apaziguaram em
21
uma união, ou criaram uma frente forte, nem mesmo com o BOC , em que o operariado e o
campesinato, fossem a voz como movimento, totalizando seus ideais numa melhor estruturação da
sociedade como um todo. A esquerda e seus componentes foram presos, nestes contextos, empurrados
para a ilegalidade, para a marginalidade, ludibriando o direito de existir.

As elites sempre viram o tempo como antídoto para certos males. Com o passar dos
anos, riquezas de má origem eram contempladas com a graça da purificação. Todos
sabiam que a impunidade e o esquecimento transformava dinheiro sujo em dinheiro
22
bom" ( MEIRELLES,2005, pag. 139) .

A perda de memória de uma sociedade é tão antiga quanto sua história. Ela absolve governos,
apaga testemunhos e enaltece interesses no instante vivido. Quanto mais passa o tempo, menos se
guardam na memória os vícios de maus governos que representaram interesses de uma minoria e nada
ofereceram para a maioria. Oposição de outrora, situação de hoje e vice-versa. Muda-se de ideal tão
rápido, que os fatos ocorridos e os males produzidos à sociedade, tornam-se controversos. Nos idos de
1964, a luta da esquerda parecia algo muito isolado, tão isolado quanto suas vidas nos aparelhos. Foi
tão combatida e perseguida como "luta bandida" que não obteve tempo de crescer, amadurecer e
efetivar-se na luta pelo socialismo, naquele momento. Parece difícil divulgar ideias às escondidas, a
propaganda acaba por circular em seu próprio meio, criar seus críticos entre vizinhos, não expandindo
ideais além das fronteiras dos aparelhos.
As propagandas governamentais entravam nos lares da classe média pelos televisores e
periódicos, alcançando uns cem números de pessoas, estavam diretamente em seus lares. Ninguém
queria ser sequestrado, nem morto, nem roubado por um grupo de jovens liderados por “comunistas
23
fanáticos”, neste domínio de propaganda, também experimentado por Vargas com o DIP , podia-se
determinar o que divulgar, alterar datas e lugares, nomes e profissões, e pior, pensamentos e opiniões,
afim de doutrinar.
A “propaganda militar” de 64, que talvez prevaleça ainda nos dias atuais, propõe que a luta
armada era composta de jovens estudantes de classe média-alta, “mimados”, que não tinham o que
fazer somente abalar a ordem e estabelecer a anarquia no país. Esta propaganda omitiu o fato de estes
jovens assumiram uma luta política em nome do povo, seguindo lideranças que há muito faziam parte
deste contexto, e que em decorrência de uma vida quase sempre ilegal, pressupunham uma situação
que lhes dava a condição de se mobilizar em tempos difíceis.

Carlos Marighella, comunista


As elites, que governaram o nosso país nos golpes 1930 e 1964, voltaram-se sempre para o tão
perseguido Partido Comunista e seus quadros, que mesmo acostumados na ilegalidade e confinados em
velhos jargões encabeçados por propagandas por parte de governos, lutavam com unhas e dentes para
implantar sua política e inserir-se no contexto político vigente. A sociedade civil, que agregou o pavor ao
comunismo, ao medo de perder suas posições, apoiou regimes de exceções ou ditadores, que
defendiam a moral e os bons costumes, disfarçando interesse caudilhos, evitando por muitos meios
ludibriar a articulação política de vários segmentos desta mesma sociedade.
Carlos Marighella, líder revolucionário, comunista e controverso, não era um operário, seu pai
sim, mais tarde montou uma oficina mecânica, “dono de seu ofício”, trabalhava em casa, sua mãe era
dona de casa, “trabalhadora do lar”, e dos filhos, Carlos foi o que mergulhou nos livros do conhecimento,
transcendeu a visão da classe operária e tornou-se um intelectual comunista.
Se buscarmos entender a complexa trajetória do homem “comum” em seu tempo e no espaço,
senhor de sua época, não podemos, neste caso, dispensar a participação efetiva dos militantes do PCB,
a articulação e dedicação por parte de seus integrantes, filiados ou simpatizantes, que na sua maioria
“vestiram a camisa” da doutrina comunista, incorporando às suas vidas a disciplina dos conceitos,
engajados e organizados até no seio familiar, sendo que havia famílias inteiras, comunistas. O fato de
lançar-se em lideranças políticas, para a propagação de sua diretriz, não deixa de significar que
almejavam transpor os muros da doutrina, e fazer parte da vida pública.
Em seu tempo, Marighella dedicou sua vida ao PCB, na convicção de, e tinha muita, construir
um país mais justo, acreditou firme neste propósito. Queria justiça e divisão de riquezas, queria estudo e
dignidade ao povo. Como deputado estadual em 1946 propôs mudanças que para a época eram
revolucionárias. Propôs “livre exercício dos cultos religiosos”, criticou o artigo da constituição onde o

21
Bloco Operário camponês.
22
“1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, pag.39.
23
Departamento de Imprensa e Propaganda, criado em 1939, órgão público servia para a fabricação da imagem
de Getúlio Vargas e de órgão censurador de manifestações contrárias a ele.

405
24
matrimônio contava “vínculo indissolúvel”, lamentou a falta de mulheres na constituinte , entre outros, e
claro, não foi ouvido. Anseios tão recorrentes naqueles períodos, de 1930 e 1964, onde o socialismo era
evidente, como triunfo sobre as mazelas do povo, ou do trabalhador. Passou pelas prisões do Estado
Novo, sofreu torturas, que provavelmente o moldaram em suas convicções, foi perseguido pela ditadura
civil-militar de 1964, sem nunca perder a força de lutar, levou isto ao pé da letra, optou pela luta armada
e morreu com este ideário.
A trajetória deste personagem, que começou sua vida partidária cedo, foi preso, resistiu aos
seus inquisidores, viveu, quase sempre, uma rotina clandestina, rompeu com o partido comunista por
divergir com o engessamento do mesmo, é que nos dá compreensão dos fatos históricos, tão obscuro
para a maioria ainda perambulando por estereótipos projetados, no intuito de resguardar interesses
pessoais e frear a evolução natural de acontecimentos, para a construção e vivência da democracia pelo
povo brasileiro. A ruptura com o PCB deu-se no entendimento de Marighella, quando o partido assumiu
uma posição conservadora, de não aderir à luta armada, ao qual Mariguella acreditava ser o caminho.
Figura respeitada, por sua dedicação ao partido, é que neste “racha”, agruparam-se junto a ele, velhos
comunistas, na procura de uma forma efetiva e real de inverter o quadro político.
Seu engajamento na militância política anterior a sua entrada no partido, fruto da vontade de
mudar o contexto social e inerente ao ser humano é que coloca sua fé em um ideal. Na prisão, Carlos
Marighella já mostrara sua liderança, organizou o Coletivo, um conjunto de regras com o intuito de
organizar o dia a dia dos presos, sem perder suas convicções ou se distanciar do ideai revolucionário. A
militância não o tornou um cego, ele vislumbrou, antes, a necessidade do PCB se preocupar mais com a
conjuntura política e problemas de ordem social brasileiros, quando sugeriu que o partido mudasse o
25
nome de Partido Comunista Brasileiro para Partido Comunista do Brasil , distanciando-se do modelo
soviético, em uma aproximação maior com a realidade do povo brasileiro. Previu também o golpe de
1964, e temia que o partido não estivesse preparado, estava certo (SILVA JÚNIOR, 2009, pag. 114).
Antevera o suicídio de Vargas, onde novamente, o PCB não percebeu a realidade da situação (SILVA
JÚNIOR, 2009, pag.95), acreditando que seu sucessor pudesse dar carta branca a existência e militância
do Partido Comunista.
A partir da morte de Stálin e da divulgação de seus crimes, que abalaram profundamente
Marighella e os membros do PCB, ocorreu uma busca de identidades, como o “partidão” não acreditava
em pegar nas armas para derrubar o governo militar, Marighella, defendia ser esta a única saída, foi
expulso do partido por suas divergências, criando uma dissidência, o Agrupamento Comunista,
mostrando que seus ideais não mudaram e sim suas ações, levando junto outros simpatizantes, e
posteriormente este agrupamento tornou-se a ALN (Aliança Libertadora Nacional), em alusão com a ANL
de 1935, que definitivamente fizeram a opção pelas armas e por “ações terroristas”. Marighella foi um
herói para a esquerda e o inimigo forte para a ditadura civil-militar de 1964. Sua morte em 1969, com
algumas versões que ainda se discute quando surgem novos debates, é unânime, foi covarde e mostra o
quanto os órgãos de repressão temiam o homem, o possível mito que poderia vir a se tornar. Não teve
tempo de se defender, foi assassinado pela polícia, numa emboscada atrapalhada, que deveria proteger
seus direitos como preso, quebrando o frágil o elo que separa o ato legal do ilegal.

Considerações Finais
Nos dois processos históricos, de 1930 e 1964, pode-se notar a continuidade de manter um
regime pela força, ao qual a democracia não se faz plena. Ignorando-se o clamor popular e vestindo
velhos costumes com a roupagem necessária a se manter a ordem vigente, ao qual somente poucos se
privilegiam das leis em vigor. O passar dos anos, que produzem distanciamento dos episódios, não
garantem a possibilidade de compreensão dos fatos e da herança legada por estas duas ditaduras- a
varguista e a civil-militar de 1964- que se instauraram como ordem suprema, consumindo ou
“desaparecendo” com os direitos do cidadão. Getúlio Vargas, no intuito de quebrar a política do “café
com leite”, cuja base assentava-se nas alianças capitaneadas por Minas Gerais e São Paulo, privou
diversos grupos de suas manifestações de cidadania, utilizou-se da supressão de direitos, da tortura,
impondo uma ditadura disfarçada. Em 1964, após o golpe militar, na equivocada tentativa de se manter
a ordem na sociedade, repete-se o episódio de abuso de autoridade sobre o cidadão comum e seu
direito de ser contra a imposição de outra ditadura, com perseguições e assassinatos legalizados pelo
Estado. Foi o que ocorreu em 1930 e em 1964: legaram à morte de diversos cidadãos, graças a uma
propaganda governamental, que buscou marginalizar parte da sociedade. Atualmente ainda se colhem
os frutos; com uma cultura coxa, humilhada em termos de nacionalidade e que cultiva o péssimo hábito
de esquecer seus algozes.

24
“Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag.173 e 174.
25
O PCB adotava uma linha mais vinculada a doutrina soviética. Somente após a morte de Stálin é que alguns
movimentos de esquerda adotaram a linha maoista e cubana.

406
Buscamos consolidar nossa democracia, sendo preciso, ainda, muita coragem para encarar
nosso passado e nos reconciliarmos com ele. Para tal devemos ressuscitar os mortos, sem que estes
ofendam os vivos. Sendo um dever encararmos nossa história para a construção do futuro. O
esclarecimento de fatos e a desmistificação de mocinhos e bandidos como necessidade de consolidação
expositiva daqueles tempos tão obscuros darão- assim acreditamos- a luz ao palco dos verdadeiros
heróis; que florescem através dos debates, sobre “mitos e homens comuns”. Por ser através do diálogo
fundamentado, despido de “pré-conceitos”, a construção possível de determinadas trajetórias, ou de toda
uma geração que de alguma forma, seja na derrota ou na forma vitoriosa de resistência, interferiu nos
26
fatos e concretizou suas lutas e reivindicações, que aos quartéis, delegacias e ramificações ,
representavam a fuga à ordem e justiça, capitaneadas pelos representantes do Estado de plantão.

Fontes Pesquisadas:
ESTRATÉGIA PARA O TERROR, Revista Veja/Acervo Digital, São Paulo, 12 de novembro de 1969, vol.
Semanal, n°62, pag.22 a 31. Disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Revisão
bibliográfica: acesso em 07/08/2012.
MORTO O CHEFE DA GUERRILHA MARIGUELA, Folha de São Paulo/ Acervo Folha, São Paulo, 05 de
novembro de 1969, Primeiro Caderno, pag1. Disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/1969/11/05/2/
EXPOSIÇÃO DE ACERVO DO GUERILHEIRO REVOLUCIONÁRIO CARLOS MARIGHELLA, Memorial
da Resistência, São Paulo, visita em 08/03/2010.

Referencias Bibliográficas:
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2012.
ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges. História da Vida Privada: Vol. 5.2° edição. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, o, 1987.
ARNS, Dom Paulo Evaristo. Prefácio Projeto Brasil Nunca Mais- Um relato para a História. 11° edição.
Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1985.
BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História, Cinco séculos de um país em construção. São Paulo: editora
Leya, 2010.
DOSSIÊ DITADURA, Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). Comissão de Familiares
de Mortos e Desaparecidos Políticos. 2°. edição São Paulo, IEVE- imprensa oficial, 2009.
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MAGALHÃES, Mário. Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo. 1° edição. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2012.
MEIRELLES, Domingos. 1930- Os órfãos da revolução. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.
MIRANDA, Nilmário e Tibúrcio, Carlos. Dos Filhos Deste Solo: Mortos e desaparecidos políticos durante
a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. 2° edição. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2008.
SILVA Junior, Edson Teixeira da. Carlos, A Face Oculta de Marighella.1° edição.São Paulo: Editora
Expressão Popular, 2009.
PAUWELS, Louis e BERGIER, Jacques. O Despertar dos Mágicos- Introdução ao realismo fantástico.
São Paulo: Editora Difusão Européia do Livro, 1969.
ZWEIG, Stefan. Maria Stuart. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1946.

26
Dos órgãos de segurança nacionais, casa de detenção, quartéis, delegacias, sítios usados pela repressão.
“Brasil Nunca Mais”, Don Paulo Evaristo Arns,1985.

407
408
XI – Políticas de memória e Justiça de Transição

409
410
Direito de memória e perpetração da violência: o papel da identificação e ressignificação
dos espaços de tortura e resistência na justiça de transição

1
Christine Rondon Teixeira

Resumo: As identificações públicas das estruturas da repressão onde houve violação de Direitos
Humanos são estratégicas para a realização do direito à memória, que integra um dos quatro eixos
centrais da Justiça de Transição. A investigação dos limites e perspectivas de tais identificações mostra
que a ressignificação destes espaços – que são de memória por excelência – pode criar condições para
o desenvolvimento de uma consciência coletiva que auxilie nos avanços necessários em prol da
democracia. No bojo desta transformação, situa-se a ciência de que as violências e os autoritarismos
institucionais estão fortemente vinculados ao restolho ditatorial que a desmemória e a impunidade
ajudam a perpetrar.
Palavras-chave: ditadura – democracia – memória – violência – espaço público.

Introdução
A falta ou a perda da memória coletiva nos povos e nações pode gerar perturbações graves da
2
identidade coletiva e determinar os rumos de toda uma sociedade. Por isso a memória passou a ser um
interesse de classe e um objeto de disputa. Com as memórias da ditadura civil-militar brasileira ocorre o
mesmo: de um lado, existem ainda hoje forças interessadas na manutenção da impunidade e na
administração vantajosa do entulho ditatorial; de outro, forças comprometidas com a realização da
democracia e com a Justiça de Transição.
Quanto mais nos afastamos temporalmente dos fatos históricos que compuseram o quadro
brasileiro de 64 a 85, mais turva fica a memória coletiva da repressão e mais difícil parece ser
correlacionar os problemas de nossa democracia incompleta com a ausência de uma efetiva justiça
transicional. A questão da violência institucional, por exemplo, jamais é abordada de forma relacionada
com as heranças ditatoriais, com nossa cultura política militarizada e com as posturas autoritárias de
desrespeito aos Direitos Humanos.
A referida Justiça de Transição é compreendida pela ONU como o conjunto de abordagens,
mecanismos e estratégias, jurídicas e não jurídicas, destinadas a enfrentar o legado de violência dos
3
regimes autoritários . Para tanto, centrada principalmente nos elementos da memória e da verdade, ela
se alicerça em quatro pilares: a reparação das vítimas; a responsabilização dos agentes públicos que
cometeram crimes de lesa-humanidade; a reforma das instituições que colaboraram com as violações de
4
direitos no regime e a garantia do direito à memória e à verdade .
As identificações e publicizações dos espaços onde houve tortura e resistência são estratégicos
para a realização do direito à memória e, portanto, para a efetivação da justiça transicional. As
experiências levadas a cabo especialmente por setores da sociedade organizados na pauta da memória,
5
verdade e justiça dão conta de que o georreferenciamento possui o condão de despertar a curiosidade e
a consciência das pessoas para a concretude do nosso passado autoritário e de seus efeitos presentes.
A possibilidade de ressignificação destes espaços, que outrora representavam estruturas da repressão,
criam ambientes propícios à apropriação crítica do lugar e da história.
O exercício da memória auxilia na luta pela superação das violências que atravessaram o marco
democrático e reforça o compromisso do Estado e da sociedade com os valores da democracia. A
construção de memoriais em locais que serviram à repressão para violação de Direitos Humanos
ultrapassa a conhecida dimensão museológica comumente centrada na ideia de simples coleções. Estes

1
Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS – Coordenadora do Comitê Carlos de Ré – da Verdade
e da Justiça / RS - Assessora Jurídica Popular na ONG Acesso- Cidadania e Direitos Humanos. E-mail:
chrisrondon@yahoo.com.br
2
GOFF, Jacques Le. História e Memória. 5ed. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 421.
3
Conforme documento “UN Security Council- The rule of law and transitional justice in conflict and post-
conflict societies. Report Secretary-General”, produzido pelo Conselho de Segurança da ONU - S/2004/616.
4
ANNAN, Kofi. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito.
5
O Comite Carlos de Ré, a exemplo de outros comitês distribuídos por todo o país, que se organizam em rede
nacional, promove a identificação pública sistemática de aparelhos utilizados pela repressão na época da
ditadura civil-militar brasileira na cidade de Porto Alegre.

411
espaços, que já são de memória por excelência, cumprem importante papel na revelação de processos
sociais e, por consequência, na construção da nossa memória coletiva e de nossa cultura política.
Não é por acaso que o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) definiu a
identificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática de violações de Direitos Humanos
como objetivo estratégico para a realização do direito à memória. Se de um lado é sabido que não
apenas o presente resulta do passado, mas também o passado depende parcialmente do presente, na
6
medida em que é apreendido no presente e responde a seus interesses ; de outro, há que se concluir
pela indispensabilidade de uma disputa pela narrativa histórica para que possamos, de forma consciente,
superar o restolho ditatorial incrustado em nossa cultura política e instituições frouxamente democráticas.
As identificações públicas e os processos de ressignificação, longe de esgotarem estes objetivos
próprios de qualquer transição democrática, constituem uma política de memória importante para a
construção de uma memória e de uma identidade coletivas. A ausência de uma transição efetiva,
alicerçada na memória e na verdade, traz prejuízos que extrapolam o recorte temporal do regime civil-
militar brasileiro e geram novas formas de opressão, que são percebidas com maiores contrastes nos
centros urbanos

Direito à memória e crimes do estado


Muitos dos esforços engendrados no sentido de efetivar a Justiça de Transição vêm sendo
tachados de revanchistas. Inobstante às graves violações de direitos humanos cometidas na época – e
seus efeitos ainda presentes na memória das vítimas e no cotidiano do povo brasileiro – o que mais
chama a atenção é a repercussão negativa que o levantamento destes fatos vem tendo junto à opinião
pública, o que já demonstra a necessidade de ampliação dos debates referentes à justiça transicional e
ao direito à memória e à verdade.
Não foram poucos os que acusaram estudiosos e militantes que atuam em defesa da
consolidação de nossa democracia de passadistas. Neste ponto, é mais do que oportuna a resposta
oferecida por Maria Rita Kehel, que atualmente integra a Comissão Nacional da Verdade:

O Brasil é passadista sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para terminar de
vez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É passadista porque teme
romper com o passado. A complacência e o descaso com a política nos impedem de
seguir em frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivência
silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, dentro de nosso Estado
7
frouxamente democratizado .

Para além da passividade do povo, chama a atenção a quantidade de pessoas que vêm se
dedicando a combater o chamado discurso “revanchista”. Esta é mais uma forma de expressão da nossa
democratização incompleta. Tal postura pode ser atribuída à baixa, ou quase nula, quantidade de
informações concretas da época ditatorial disponível à população. Além disso, a criação de esteriótipos
do novo inimigo social, as constantes tentativas de vincular nossos medos e insatisfações a causas
rasas e imediatistas, aliada à banalização da violência, sempre apresentada de forma desvinculada das
instituições oficiais do Estado, aumentam a imagem de um completo isolamento histórico do passado
autoritário do nosso país com os problemas do nosso cotidiano.
Esta anestesia, reforçada por uma Lei de Anistia pactuada entre as elites vinculadas ao regime,
mas que imprime uma falsa aparência de acordo bilateral e de superação, amortece todas as criticas
sobre o restolho ditatorial ainda presente em nossa realidade. Os valores e práticas que alicerçaram a
ditadura civil-militar brasileira estão assustadoramente presentes nas estruturas oficiais do Estado,
incluindo o Poder Judiciário, que mantém muitos dos privilégios impostos naquele tempo, e na ação
policial, truculenta e impregnada de práticas antidemocráticas.
Isso sem mencionar a perseguição de movimentos sociais erigida na lógica da extermínio dos
pensamentos, ideologias e projetos que destoam da lógica dominante. Da mesma forma estudantes que
protestaram na USP em 2010 foram expulsos da universidade com base em um decreto da época da
8
Ditadura , dirigentes do MST são comumente acusados (e condenados) por supostas operações que

6
GOFF, Jacques Le. História e Memória. 5ed. São paulo: Unicamp, 2003. p. 51
7
KEHL, Maria Rita. Tortura, por que não? O Estado de São Paulo. Em 31 de maio de 2010.
8
Em 2010, seis estudantes da USP que protestaram contra a falta de vagas na moradia estudantil e, conforme
deliberação em assembleia, revezaram a ocupação de uma sala usada para fins administrativos, foram expulsos
da Universidade com base em um decreto de 1972, criada, portando, à época da ditadura civil-militar brasileira,
mas ainda vigente no Regimento Geral da USP. O despacho administrativo publicado no Diário Oficial da União
pode ser conferido no seguinte link: http://uspemgreve.blogspot.com.br/2011/12/rodas-expulsa-6-estudantes-da-
usp.html

412
9
integram um plano maior de dominação . São criados os novos perigos a combater. A ação policial
violenta também costuma escolher seus alvos, vitimando especialmente os grupos sociais que carregam
o esteriótipo do “inimigo social” reforçado pela grande mídia e pelos grupos que lhe dão sustenção.
Conforme o professor José Carlos Moreira da Silva Filho, a atuação violenta das forças de
segurança pública hoje está relacionada à ausência de políticas de memória e de responsabilização dos
agentes públicos que cometeram crimes de violação de Direitos Humanos durante a ditadura civil-militar.
A inexistência de julgamentos ajuda a fortalecer a imutabilidade da cultura organizacional que alimenta a
pactuação silenciosa com a perpetração destas violações dentro do marco democrático. In verbis:

A possibilidade de julgamento de agentes públicos por violações de direitos humanos,


inclusive por violações praticadas em regimes democráticos, é fundamental para a
mudança da cultura organizacional do Estado. Os julgamentos contribuem para reforçar
os valores que não compactuam com as práticas criminosas do estado e para inibir as
tradicionais neutralizações. O papel preventivo do julgamento e da responsabilização
desses crimes vai muito além da prevenção nos crimes comuns, pois no crimes do
estado as motivações e as ações dos agentes individuais não se separam das
motivações e neutralizações presentes na instituição estatal.
Outro ponto importante de conexão entre o tema da justiça de transição e dos crimes do
Estado está na relação existente entre a atuação violenta e letal das forças de
segurança pública e a ausência de políticas de memória, de publicização de
documentos públicos, de transparência das instituições públicas e de responsabilização
10
dos agentes que cometeram crimes do Estado .

A prevalência de uma história oficial que ignora as graves violações de direitos cometidas
durante o regime civil-militar – violações que ainda lançam seus efeitos em nossa sociedade e
instituições – nos anestesia e nos impede de compreender a importância das medidas de transição.
Neste contexto, o resgate da memória se mostra indispensável para superação da cultura política
autoritária que está no cerne dos crimes do Estado. O crescente apoio popular às posturas truculentas
da polícia dá o alerta:

O apoio popular aos abusos da polícia sugere a existência não de uma simples
disfunção institucional, mas de um padrão cultural muito difundido e incontestado que
11
identifica a ordem e a autoridade ao uso da violência.

Este padrão cultural, que se alimenta da desmemória, culminou na alarmante situação com a
qual nos deparamos hoje no Brasil: “estamos imersos em uma cultura política caracterizada pela pouca
12
adesão da população aos valores democráticos e às instituições políticas” . A forte resistência à
democratização e à expansão da cidadania se manifesta pela inércia social, pela falta de participação na
vida pública e pela complacência com métodos violentos que deveriam ser estranhos a um regime
democrático.
Em estudo comparado, Antony Pereira destacou que no Brasil, no Chile e na Argentina os
13
diferentes processos de transição para a democracia produziram diferentes legados autoritários .
Portanto, as práticas autoritárias que sobreviveram em nossa democracia devem ser estudadas e

9
Em agosto de 2011, o júri popular condenou os dirigentes do MST Valdecir de Oliveira, José Cenci e Antônio
Cosserin de Oliveira a 15 anos de prisão por conta do assassinato de Pedro Milton da Luz Pedroso, morto por
um tiro de espingarda disparado na presença de sua mulher e do filho que, à época (em 2001), contava com 12
anos de idade. O tiro, contudo, foi disparado por um quarto integrante do movimento, na ausência dos
condenados acima arrolados, já falecido, e, conforme relatos das próprias testemunhas, foi precedido de uma
discussão de cunho pessoal, configurando motivação que sequer se relaciona com o MST. Todavia, a
promotoria sustentou que, por se tratar de um dia de ação engendrada pelo conjunto do movimento para
retomada de lotes do assentamento de Jóia que foram indevidamente comprados por pessoas que jamais
pertenceram ao movimento, cabia aos dirigentes a responsabilidade por qualquer acontecimento ocorrido
naquele lapso temporal, ainda que tal fato fosse complemente desvinculado dos objetivos centrais da ação. A
promotoria insinuou, ainda, que enquanto dirigentes do MST os três réus são perigosos. Incitou o júri a temê-los,
uma vez que estão fortemente articulados em um plano maior de tomada de poder que desrespeita os valores
da propriedade e da família.
10
FILHO, José Carlos Moreira da Silva. Crimes do Estado e Justiça de Transição. Criminologia e Sistemas
Jurídico-penais Contemporâneos. P 61e 62. porto alegre: Edipucrs, 2012.
11
CALDEIRA. Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania e São Paulo. P 133.
12
ARTURI, Carlos Schmidt. A Cultura Política da Linha-Dura Militar: Os “Ideiais Traídos” do general Sylvio Frota in
BAQUERO, Marcello (org). Cultura(s) Política(s) e Democracia no Século XXI na América Latina. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2011. p. 245.
13
PEREIRA, Antony P. Ditadura e Pressão. O Autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. São Paulo: Paz e terra, 2010. p. 239

413
enfrentadas à luz das análises históricas pertinentes e em atenção a esta cultura política de repressão
que vem sendo reforçada desde o regime civil-militar brasileiro.
A forte ligação entre os crimes do Estado cometidos hoje e falta de informações – reforçada pela
impunidade – referente às violações de direitos humanos do nosso passado ditatorial remetem à
importância da Justiça de Transição para a consolidação da democracia. Resta, então, saber em que
medida das identificações públicas das estruturas da repressão, enquanto política estratégica de
memória, podem auxiliar nesta tarefa.

Espaço e Memória
O papel que as imagens espaciais desempenham na memória coletiva é explicado por Maurice
Halbwachs através da relação existente entre os espaços e a (re)construção dos pensamentos. Os
espaços físicos desafiam a temporalidade na medida em que guardam impressões, apreendem e criam
memória. A representação do lugar se alicerça no fato de que não há memória coletiva que não aconteça
em um contexto espacial. Nas exatas palavras de Halbwachs:

[...] o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às
outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível
retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos
circunda. É ao espaço, ao nosso espaço – espaço que ocupamos, por onde passamos
muitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossa
imaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que
devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamente tem de se fixar para que
14
essa ou aquela categoria de lembranças reapareça.

Estando o espaço impregnado de memória e de dispositivos para reativação de determinadas


categorias de lembranças, os signos do lugar assumem importante papel na manutenção ou alteração
do estado de coisas existente, influenciando no comportamento dos grupos sociais que experimentam o
contato com suas representações materiais. As homenagens espaciais a personalidades responsáveis
por crimes de Estado são formas de perpetrar a cultura autoritária, impedindo sua completa superação.
Como bem refere Halbwachs, em seguimento ao raciocínio supra esposado, “a memória que garante a
15
permanência desta situação se baseia na permanência do espaço [...]” .
A intensa relação existente entre a memória coletiva e as representações espaciais do passado
é inegável. Com relação à época da ditadura, que é o foco de nossa análise, muitas são as referências
simbólicas espalhadas pelas cidades no sentido de exaltar nossos ditadores, divorciando suas imagens
da repressão que protagonizaram no passado recente do país. Gerações que não viveram diretamente
as atrocidades do período tiveram – e continuam tendo – suas rotinas marcadas pelas inúmeras vezes
que cruzaram maquinalmente por estas ruas, escolas e praças, privados de análises mais acuradas
sobre a história de seu país.
A significação negativa de espaços é uma tentativa bem-sucedida de heroificar os agentes
repressores e passar uma borracha nas violações de direitos humanos que, em sua maioria, ainda não
foram apuradas e levadas a conhecimento público. A completa inversão de valores está representada
nas placas que nomeiam ruas, praças e escolas. Está impressa nos convites anuais para a
comemoração da “revolução de 64”. Não são raras as avenidas “Castelo Branco”, as praças “Geisel” e
os monumentos públicos erguidos para homenagear, quase que saudosamente, os ditadores de ontem,
que parecem estar vivos no cimento destas construções, como se a qualquer momento pudessem voltar
e subverter nossa ordem para tornar-nos subversivos.
Os veículos de comunicação e os espaços públicos têm o poder fomentar o processo de
alienação, pacificação e neutralização da sociedade diante das violações de direitos humanos que
atravessaram o marco democrático. São estes, aliás, efeitos comuns da desmemória e da deturpação do
passado resultante de uma disputa de narrativa que ainda privilegia a chamada versão dos vencedores.
Por outro lado, estes mesmos instrumentos podem auxiliar no processo de democratização da memória,
ampliando o espectro de contato social com as ressignificações necessárias à compreensão do período
da repressão, identificação do restolho ditatorial e enfrentamento das violências de hoje.
As mesmas pessoas diariamente bombardeadas por notícias que conduzem à banalização da
violência e ao rechaçamento de medidas transicionais, apresentadas como revanchitas e atentatórias à
Lei de Anistia, não possuem acesso a informações efetivas do período da ditadura. Não raro duvidam da
veracidade de fatos. A falta de informação traz confusões comuns que impossibilitam a qualificação dos
debates referentes ao tema.
A exemplo, inobstante às inúmeras críticas repetidas pelos opositores com relação à instauração

14
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 170.
15
Ibidem. p. 172.

414
de uma Comissão Nacional da Verdade, parece estar pouco claro à população qual é o verdadeiro
objetivo desta Comissão. Também não se trata de revanchismo. Não se trata de uma comissão de
Justiça para julgamento daqueles que cometeram crimes em nome do Estado na época da ditadura.
Cuida-se, isso sim, de um instrumento que possibilitará a efetivação do direito à verdade. Nas palavras
de Paulo Abrão e Marcelo Torelly:

Talvez, através da Comissão da Verdade seja possível a efetivação do direito pleno à


verdade histórica, com a apuração, localização e abertura dos arquivos específicos dos
centros de investigação e repressão ligados diretamente aos centros de comandos
militares: o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica); e CIE (Centro
de Informações do Exército) e o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Para
que, assim, sejam identificadas e tornadas públicas as estruturas utilizadas para a
prática de violações aos direitos humanos, suas ramificações nos diversos aparelhos de
Estados e outras instâncias da sociedade, e sejam discriminadas as práticas de tortura,
morte e desaparecimento, para encaminhamento das informações aos órgãos
16
competentes .

Nós, brasileiros, não temos ideia do exato funcionamento ou mesmo das simples localização dos
aparelhos repressores do Estado. A identificação do espaço físico tem importante papel no resgate da
história real do período – que vem sendo reiteradamente negada ao nosso povo brasileiro.
Nas palavras do professor José Carlos Moreira da Silva Filhos, “a justiça só pode ser feita
através de uma política de memória, de um projeto que reconheça nas injustiças do passado, quando
17
confrontadas, a base segura de uma cultura democrática” . Portanto, não há exagero na afirmação de
que a Justiça de Transição, através, principalmente, do exercício da memória, é um caminho essencial
para a realização de nosso Estado Democrático de Direito. Ao fazer esta relação, Gabriel Merheb Petrus
destacou que:

[...] o direito à memória e à verdade apresenta-se como uma chave dialética que abre,
ao mesmo tempo, duas portas aparentemente opostas. Conecta com o passado, na
medida em que constitui, como preceitua a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, um “direito de caráter coletivo que permite à sociedade ter acesso à
informação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos”. Mas também
rompe com o passado, medida que possibilitaria às instituições do estado que se
18
envolveram na repressão converterem-se de fato à democracia [...].

A citação atribuída à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) diz respeito ao “caso
Ignacio Ellacuría y Otros”, no qual foi destacado que o direito à memória e à verdade possui caráter
19
coletivo e é essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos . Não há dúvidas de que o
direito à memória e à verdade é internacionalmente reconhecido, sendo invocado, inclusive, nas razões
de julgamento da CIDH.
Os espaços públicos não podem ser construídos ou signifcados a partir da violação do direito à
memória e à verdade. Se as figuras que se tornaram públicas em razão das atrocidades que cometeram
devem ser lembradas, isso deve ser feito em atenção ao verdadeiro histórico que construíram. A
homenagem aos ditadores, na contramão do que se proclama através de medidas transicionais, tende a
apagar o desconforto que seus nomes deveriam evocar à população, que continua sofrendo cegamente
os efeitos da repressão e do autoritarismo ainda não superado.
Ao tratar das simbologias urbanas através das modulações espaciais, Manuel Castells afirmou

16
ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdwell; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Repressão e
Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos Sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e
Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de
Estudos Sociais, 2010. p. 39.
17
FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de
Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: Repressão e Memória Política no
Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. SANTOS,
Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; TORELLY, Marcelo D. Brasília: Ministério
da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 212.
18
PETRUS, Gabriel Merheb. A Justiça de Transição como Realização do Estado Democrático de Direito:
Caminhos para a Desconstrução Político-Jurídica do Legado Autoritário no Brasil. In: Revista Anistia Política e
Justiça de Transição. jan./jul. 2010. TORELLY, Marcelo D. (Coord.). Brasília: Ministério da Justiça, Comissão
de Anistia, 2010. p. 282.
19
Comissão Interamericana de Direitos humanos. Caso Ignacio Ellacuría y otros. Informe 126/99 de 22 de
dezembro de 1999. p. 224.

415
20
que “o espaço está carregado de sentido” . Conclui, a partir desta constatação, que as estruturas
21
simbólicas exercem influência sobre as práticas sociais . De forma mais relacionada aos objetivos do
presente estudo, o professor José Carlos Moreira da Silva Filho ressalta que “a memória não diz respeito
22
apenas ao tempo, mas também ao espaço” , constatação que nos remete, mais uma vez, aos
ensinamento de Maurice Halbswachs:

Não é somente a relação entre o homem e a coisa, é o próprio homem que


supomos ser imóvel e não mudar, quando pensamos nos direitos dos homens
23
sobre as coisas.
24
As estruturas espaciais, enquanto receptoras e transmissoras de práticas ideológicas , devem
ser utilizadas a favor da realização do direito à memória e à verdade. Por isso, a identificação de
estruturas relacionadas ao nosso passado autoritário e a ressigificação dos espaços utilizados para
exaltar as práticas repressivas que buscamos superar deve ser conscientemente pensada no sentido dar
forças à consolidação da democracia.
É precisamente nisso que reside a importância de destacar que o Programa Nacional de Direitos
Humanos 3 (PNDH3) definiu a identificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática de
violações de Direitos Humanos como objetivo estratégico para a realização do direito à memória. O valor
das identificações públicas foi amplamente reconhecido neste documento enquanto política estratégica
de proteção aos Direitos Humanos.
Partindo da premissa de que não há memória coletiva que não aconteça em um contexto
25
espacial e considerando a estreita relação entre a falta de uma efetiva transição democrática e a
perpetração da violência institucional – bem como da conivência da sociedade com tal realidade –, passa
a ser possível desenhar uma forte conurbação entre esta violência e a necessidade de identificação
pública dos espaços que foram palco de violações de direitos humanos durante a repressão. Isso porque
o objetivo da justiça transicional de secar as raízes da violência institucional e incentivar a construção de
uma memória histórica que auxilie na efetiva superação das mazelas herdadas de nossa ditadura civil-
militar passa pela realização de políticas de memória.
As identificações públicas e os processos de ressignificação, longe de esgotarem estes objetivos
próprios de qualquer transição democrática, constituem uma política de memória importante para a
construção de uma memória e de uma identidade coletivas. O reconhecimento do potencial benefício da
utilização destes espaços para a conscientização da sociedade e consolidação da democracia auxilia no
argumento de que é necessário aumentar este tipo de ação em todo o país.

A identificação pública dos espaços de tortura e resistência como política de memória: as


experiências do comitê Carlos de Ré e do memorial de resistência de São Paulo
Visto que é preciso consolidar políticas de memória para romper com o forte movimento massivo
de pactuação com as violências institucionais de hoje e para superar o abismo que a falta de
informações cria entre os problemas de nossa democracia inconclusa e a falta de uma efetiva justiça
transicional, passamos a defender algumas estratégias práticas para auxiliar neste processo. A partir da
já esposada importância dos espaços e representações espaciais no processo de formação da
identidade e da memória coletiva, deve-se pensar nos lugares de memória por excelência como pontos
radiadores de valores e ideologias, capazes de fornecer elementos indispensáveis para a apreensão
crítica da história.
Apesar de a responsabilidade pela realização destas identificações ter sido declinada no PNDH-
3 à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, à Casa Civil da Presidência
da República, ao Ministério da Justiça e à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da
República, o que vemos, na prática, é que tais iniciativas vêm sendo protagonizadas por setores
organizados da sociedade civil. Dois grandes exemplos de identificações que criaram possibilidades
educativas e culturais a partir da publicização e da ressignificação de estruturas são os atos públicos

20
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 304.
21
CASTELLS, loc. cit.
22
FILHO, José Carlos Moreira da Silva. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da
Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: Repressão e Memória
Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal.
SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; TORELLY, Marcelo D. Brasília:
Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais,
2010. p. 201.
23
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 173.
24
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p.307.
25
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Editora Centauro, 2006. p. 170

416
26
sistemáticos realizados pelo Comitê Carlos de Ré- da Verdade e da Justiça e a construção do Memorial
da Resistência de São Paulo.
Em 2007, a partir da mobilização em torno da renovada defesa de uma justiça de transição
efetiva e verdadeira, grupos militantes de São Paulo, especialmente o Forum Permanente de ex-Presos
e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, se voltaram para a ressignificação do prédio onde
antigamente funcionava o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo –
27
DEOPS/SP . Ampliando a função preservacionista anteriormente destinada ao espaço, o projeto incluiu
a ocupação da estrutura com atividades de referência em memória, como coleta permanente de
testemunhos, exposições e visitações guiadas para estudantes.
A inciativa, apoiada pelo Governo do Estado de São Paulo, criou um verdadeiro centro de
memória viva que é referência para todo o país. Além de georreferenciar uma estrutura da repressão,
que permite dizer que o memorial é, por sua própria identificação, um lugar de memória por excelência, o
projeto ultrapassou a perspectiva tradicional de museologia se transformou em um centro de memória
viva em constante diálogo com a população:

O novo projeto museológico do Memorial da Resistência de São Paulo foi inaugurado


em 24 de janeiro de 2009, e sua principal característica está na articulação entre a
utilização de um lugar de memória por excelência (o edifício que pertenceu ao
DEOPS/SP), o potencial educativo com a musealização desse lugar (a exposição de
longa duração e demais programas) e as memórias de cidadãos que foram
perseguidos,presos e torturados nesse lugar por sua militância política (a resistência).
[…] O fato de o Memorial ocupar parte do espaço prisional – a carceragem,quatro celas,
o corredor principal e o corredor para banho de sol – permite ao visitante o contato direto
com um local extremamente simbólico e carregado de signiicados. Para Pierre Nora
(1984),os lugares de memória são lugares materiais (e imateriais) onde a memória
social se apoia e pode ser captada pelos sentidos; são lugares uncionais onde se apoia
essa memória coletiva, e são simbólicos, onde a memória coletiva se revela. Esses
lugares – documentos/monumentos – são construções históricas e coletivas que têm a
potencialidade de revelar processos sociais. Porém,entendemos que para que os
lugares de memória – como o DEOPS/SP – exerçam uma função social contemporânea,
precisam ser trabalhados sob uma perspectiva museológica processual.

Os efeitos positivos do projeto bem sucedido são destacados por alguns de seus coordenadores:

A importância dessas atividades está em sua capacidade de possibilitar o tratamento de


temas muito diversos, envolvendo desdobramentos da exposição de longa duração para
outras propostas relacionadas ao controle, repressão e resistência nos mais diferentes
suportes; têm atraído públicos bastante diversificados e ainda vêm transformando o
público em visitante assíduo, que participa das inúmeras atividades educativas e
culturais realizadas pelo Memorial da Resistência com regularidade.
Contribuir para a formação de cidadãos conhecedores e críticos em relação à história do
Brasil republicano, promovendo a sensibilização e a conscientização sobre a
importância do exercício da cidadania, da democracia e dos direitos humanos, é o
28
desafio cotidiano do Programa de Ação Educativa do Memorial da Resistência .

Na mesma linha, confrontado com a premente necessidade de ampliar, democratizar e


instrumentalizar os debates sobre as violações de Direitos Humanos cometidas em nome do regime civil-
militar brasileiro, bem como de despertar a consciência das pessoas no sentido da não repetição destes
crimes, empoderando-as de seu passado e reforçando nosso compromisso com a democracia, o Comitê
Carlos de Ré realizou a identificação de diferentes locais de tortura utilizados pela repressão na cidade
de Porto Alegre. O primeiro local a ser identificado foi a antiga sede da Dopinha, sito na Rua Santo
Antônio, nº 600, onde funcionava uma estrutura clandestina do DOPS.
A Dopinha, que outrora foi um aparelho clandestino da ditadura civil-militar, onde houve,
comprovadamente, tortura e morte, assim como a antiga sede do DEOPS em São Paulo, é um local de
memória por excelência. O conhecido “Casarão da Santo Antônio” ganhou notoriedade em razão da
tortura e do assassinato do Sargento Manoel Raimundo Soares, que mais tarde ficou conhecido como

26
O Comitê Carlos de Ré é o comitê gaúcho da memória, verdade e justiça. Fundado em junho de 2011, congrega
pessoas e organizações, partidários e não-partidárias, no objetivo de unir esforços para disputar a consciência
da sociedade atentando para a importância da justiça de transição no processo de construção da democracia e
de superação dos valores autoritários perpetrados por instituições oficiais do Estado.
27
ARAÚJO, Marcelo Mattos; NEVES, Kátia Regina Felipini; MENEZES, Caroline Grassi Franco. O Memorial da
Resistência de São Paulo e os desafios Comunicacionais in Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da
Justiça. – N. 3(jan. / jun. 2010). – Brasília : Ministério da Justiça , 2010. p. 234.
28
Ibidem. P. 239.

417
29
“caso das mãos amarradas” . Após a identificação pública, com adesivagem que denunciava as antigas
funções do local, o Comitê Carlos de Ré apresentou publicamente o projeto de construção do “Memorial
Ico Lisboa”, um centro de memória viva que em seu nome resgata a história e presta homenagem ao
lutador Luiz Eurico Tejera Lisboa, que foi o primeiro desaparecido político que teve seu corpo encontrado
30
no país .
A identificação da Penitenciária Feminina Madre Pelletier, por sua vez, além de promover este
importante georreferenciamento, criou diversos espaços de conscientização do papel das mulheres na
resistência, especialmente por ter sido construído coletivamente com as mulheres em situação de prisão
hoje e com a Coordenadoria Penitenciária de Mulheres da Susep. O processo de oficinas preparatórias
para o ato promoveu uma interlocução entre diferentes grupos de mulheres que, em diferentes
momentos históricos, foram desafiadas a superar o machismo para exercer protagonismo. O
reconhecimento mútuo não apenas aproximou, mas auxiliou no processo de conscientização de um
grupo para a crueldade da realidade do outro.
Muitas apenadas atuais, em conversas com ex-presas políticas que estiveram no Madre Pelletier
durante a ditadura civil-militar, tiveram seu primeiro contato com a temática da repressão graças à
iniciativa de identificação do lugar. Narraram experiências próprias e situações atuais de tortura que
remontam a práticas incompatíveis com os valores democráticos. Tomando consciência da importância
de resgatar esta história, escreveram de próprio punho, após algumas assembleias internas, um projeto
de ressignificação das celas antigamente utilizadas para as presas políticas, onde atualmente funciona
um canil da Brigada Militar.
A partir destes exemplos percebe-se que, enquanto política de memória, as identificações
públicas e os processos de ressignificação têm valor ainda não mensurado, ou mesmo imensurável na
concretização da Justiça de Transição. Da mesma forma que são reconhecidos os efeitos nefastos da
exaltação de agentes da repressão através de homenagens em nomes de ruas e monumentos públicos,
está cada vez mais forte a demonstração do potencial benefício da utilização destes espaços para a
conscientização da sociedade.

Conclusão
O exercício da memória, através do conhecimento dos fatos históricos que marcaram o período
da repressão, auxilia na luta pela superação das violências institucionais perpetradas ao longo destes
anos e reforça o compromisso do Estado e da sociedade com os valores democráticos. O incentivo a
políticas de memória que permitam a referenciação geográfica da história e sua captura cinestésica
potencializa as possibilidades transformadoras da ocupação educativa e criativa dos lugares.
O espaço “é sempre uma conjuntura histórica e uma forma social que recebe seu sentido dos
31
processos sociais que se exprimem através dele” e, mesmo por isso, ele não apenas reflete certa
conjuntura histórica, mas também produz efeitos específicos sobre as demais estruturas da organização
social. Não é por acaso qu a produção dos espaços geralmente é pensada a partir de determinados
interesses hegemônicos. A disputa pela história é uma das facetas deste jogo, não restando a menor
dúvida de que há muitos interesses ocultos sob o véu do esquecimento e das “verdades oficiais”
cunhadas sobre ele.
A superação de todas as heranças da ditadura civil-militar que são incompatíveis com os valores
democráticos, especialmente da violência do Estado, depende de ações comprometidas com a
efetivação da Justiça de Transição. Dentro disso, a identificação pública e a ressignificação das
estruturas onde houve violação de Direitos Humanos por parte da repressão contribui para a realização
do direito à verdade e à memória. Definitivamente, os efeitos dos lugares podem tanto influenciar
positivamente na consolidação das estruturas democráticas quanto negativamente no processo de

29
ROSA, Susel Oliveira. A Biopolítica e a Vida “Que se Pode Deixar Morrer”. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. p. 88-
117.
30
O projeto, que propõe uma gestão compartilhada entre comitês da sociedade civil, universidades gaúchas e
Secretarias de Direitos Humanos do Município, Estado e Federação, já conta com importantes apoios. Em
diferentes reuniões realizadas com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, com o Governo do Estado do Rio
Grande do Sul e com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República surgiu a proposta de
formalização de um convênio para desapropriação do Casarão da Rua Santo Antônio nos seguintes moldes: fica
o jurídico de desapropriação por conta da Prefeitura, que também arcará com 50% dos custos provenientes,
cabendo os 50% restantes ao Governo do Estado do RS e reforma e manutenção do prédio por conta da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidênca da República. O compromisso da prefeitura já foi publicamente
assumido pelo então prefeito, Sr. José Fortunati, diante da imprensa, em reunião com o Comitê Carlos de Ré.
Os compromissos do Governo do Rio Grande do Sul e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República foi manifestado em reuniões reservadas com o Comitê Carlos de Ré, que tratou diretamente com o
Governador Tarso Genro e com a Ministra Maria do Rosário.
31
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 539.

418
deturpação e de esquecimento do passado.

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da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1997.

419
Inicio de la Política Reparatoria como Política Pública

1
María Teresa Piñero

Resumen: Las principales leyes reparatorias argentinas se gestaron a principios de la década del 90,
durante el gobierno de Carlos Menem. Un gobierno que llevó adelante políticas neoliberales y otorgó
indultos a los jefes militares presos por crímenes de lesa humanidad. Sin embargo, esta política ha sido
exitosa y se ha caracterizado por su generosidad y amplitud. El objetivo de esta ponencia es explicar en
qué consiste dicha política. Primero se pasa revista a las leyes 24.043, 24.411 y 25.914 que otorgaron
una indemnización económica a las víctimas de las violaciones a los derechos humanos cometidas por
las fuerzas armadas y de seguridad.Luego se define a la política reparatoria como política pública y se
analiza cómo logró tener éxito pese a un contexto incierto y complicado. Se examinan sus diferentes
etapas en tanto política pública no tradicional. Para ello, se utilizaron fuentes primarias, entrevistas a
protagonistas y beneficiarios. Se consultó también a autores que han analizado las políticas públicas.
Palabras-clave: Reparación – Indemnización - violaciones a los derechos humanos – Desaparecidos -
Presos políticos

Abstract: The main Argentine reparatory laws started at the beginning of the 90’, during Carlos Menem’s
government. This government implemented neoliberal policies and indulted the military junta leaders
convicted for crimes against humanity. Nevertheless, this policy has been successful and is known by its
extent and generosity. The purpose of this paper is to explain what the reparatory policy is. First, 24.043,
24.411 and 25.914 laws granting monetary compensation to victims of human rights violations committed
by armed and security forces are described. Then, the reparatory policy is defined as a public policy. It is
analyzed how it has been a successful policy although a complicated and uncertain context. Its different
stages are examined as a non-traditional public policy. For this paper, primary sources, as interviews to
actors and beneficiaries, are employed. Also authors studying public policies have been consulted.
Keywords: Reparation - monetary compensation - human rights violations - disappeared-political
prisoners

I. Introducción
Este trabajo se propone examinar cómo se inició en Argentina la política reparatoria en tanto
política pública. Las principales leyes reparatorias se gestaron a principios de la década del 90, durante
el gobierno de Carlos Menem. Fue este gobierno el que llevó adelante políticas neoliberales que
completaron las políticas iniciadas durante el gobierno militar. Fue ese mismo gobierno el que otorgó
indultos a los jefes militares presos por crímenes de lesa humanidad. Pese a ello, esa política ha sido
exitosa y se caracteriza por su generosidad y amplitud.
La política reparatoria abarca una serie de medidas, no sólo económicas, que procuran
desagraviar, reparar los daños perpetrados por las graves violaciones a los derechos humanos
cometidas por el gobierno militar (1976-1983) y los grupos paramilitares, y atender las necesidades que
ellas originaron. En este trabajo nos referiremos sólo a las leyes que han otorgado indemnizaciones.
La política reparatoria, es decir, las leyes 24.043, 24.411, 25.914 y su aplicación, otorgaron una
indemnización económica a las víctimas de las violaciones a los derechos humanos cometidas entre
1974 y 1983.
Se considera que una política pública es el conjunto de objetivos, decisiones y acciones que
lleva a cabo un gobierno para solucionar los problemas que en un momento determinado los ciudadanos
2
y el propio gobierno considera prioritarios .
En este sentido, la política reparatoria del Gobierno Nacional puede considerarse una política
1
Como viuda de Angel Georgiadis, asesinado en 1977 por la dictadura en la cárcel de La Plata, me correspondió
el beneficio de la ley 24.043. Cuando se sancionó la ley 24.411, destinada a familiares de desaparecidos y
asesinados por el gobierno militar, la Dirección de DDHH me notificó que mi expediente había pasado para el
beneficio de ley 24.411 (no se suma). Previamente, en el gobierno de Alfonsín recibí el benefició de la ley
23.466. Por lo tanto, hablo desde el conocimiento de los beneficiarios.
2
Tamayo Sáez, Manuel. “El análisis de las políticas públicas”, en Bañón, Rafael y Carrillo, Ernesto (comps.) La nueva
Administración Pública, Alianza Universidad, Madrid, 1997.

420
pública, cuyos resultados han ido retroalimentado el proceso reparatorio. Cada paso permitió el paso
subsiguiente: Causa Birt, Decreto 70, Ley 24.043, Ley 24.411.
En la primera parte de este trabajo se pasa revista a las leyes que instituyeron indemnizaciones
a las víctimas o a sus familiares y en la segunda, se analiza la implementación de esas leyes como
política pública.
Para este trabajo, se ha recurrido a fuentes primarias, tanto a entrevistas a integrantes de la
Secretaría de Derechos Humanos de esos años, como a beneficiarios de las leyes. Se ha consultado
también bibliografía de autores que han reflexionado sobre el tema y sobre las políticas públicas.

II. Política Reparatoria


1. Antecedentes
La Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (CONADEP) creada en diciembre de
1983 con la finalidad de realizar “investigaciones sobre desaparecidos y violaciones a los derechos
humanos” recomendó en su informe final:

…que se dicten las normas necesarias para que los hijos y/o familiares de personas
desaparecidas durante la represión reciban asistencia económica: becas para estudio;
asistencia social; puestos de trabajo. Asimismo que se sancionen las medidas que se
estimen convenientes y que concurran a paliar los diversos problemas familiares y
3
sociales emergentes de la desaparición forzada de personas .

El gobierno de Alfonsín dictó una serie de normas de carácter reparatorio vinculadas al ámbito
laboral a fin de reintegrar a trabajadores despedidos por causas políticas o gremiales. Algunas de estas
leyes fueron: la ley 23.053 (reincorporación al servicio exterior de la Nación), la 23.117 (reincorporación a
empresas del Estado), la 23.238 (reincorporación de docentes), la 23.523 (reincorporación de bancarios)
y la 23.278 (para efectos previsionales). Todas esas leyes no fueron fruto de la planificación del gobierno
nacional, sino producto de la presión que ejercieron los afectados.
La Ley 23.466 instituyó una pensión no contributiva para los familiares de personas
desaparecidas en situación forzada entre el 24 de marzo de 1976 y el 10 de diciembre de 1983.
4
Asimismo, la ley No 23.852 del 27 de septiembre de 1990 eximió de del servicio militar obligatorio a
quienes hubieran experimentado la desaparición de padres o hermanos, con anterioridad al 10 de
diciembre de 1983.

2. Decreto 70/91
El Código Civil argentino establece la obligación de reparar económicamente y mide en dinero no
la vida o la libertad, sino las consecuencias o el valor del perjuicio sufrido. Por ello, muchas personas que
estuvieron detenidas a disposición del PEN iniciaron demandas. Algunas fueron resueltas
satisfactoriamente en tribunales de primera instancia, como fue el caso del expresidente Carlos Menem,
preso durante el gobierno militar, y otras fueron rechazadas. Estos afectados recurrieron a la Suprema
Corte, que automáticamente las denegó por aplicarles el instituto de la prescripción.
En 1989, un grupo de personas que no tuvieron satisfacción a sus demandas de reparación
elevaron su reclamo ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (caso Birt), invocando el
derecho de acceso a la Justicia. En ese contexto, se logró una solución amistosa que reconoció el
derecho a una reparación por parte del Estado Argentino y el 10 de enero de 1991 el Poder Ejecutivo
dictó el Decreto 70 por el que adoptó la decisión de reparar a aquellas personas detenidas a disposición
del P.E.N. hasta el 10 de diciembre de 1983, hubieran iniciado juicio para indemnización daños y
perjuicios antes del 10 de diciembre de 1985 y hubiera sido declarada prescripta la acción por sentencia
firme. El Gobierno advertía que, de no adoptarse esta medida, el país podría ser sancionado
internacionalmente, lo que autorizaba al PEN a dictar normas de sustancia legislativa. Establecía que la
autoridad de aplicación era el Ministerio del Interior, que debía comprobar en forma sumarísima el
cumplimiento de los recaudos legales exigidos. El beneficio se debía abonar en efectivo.

3. Ley 24.043
Pocos meses después, el 27 de noviembre de 1991 se sancionó la ley 24.043 (véase Anexo) que
otorgaba un beneficio a las personas que hubieran estado a disposición del Poder Ejecutivo Nacional
durante la vigencia del estado de sitio, o siendo civiles hubiesen sufrido detención en virtud de actos
3
Informe Nunca Más. Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas, Editorial Eudeba, 2ªedición, Buenos
Aires, 1984.
4
En la actualidad, esta medida ha perdido vigencia por la abolición del servicio militar obligatorio.

421
emanados de tribunales militares.
Esta Ley había estado gestándose a lo largo de más de un año. Elaboró el proyecto de la Ley
24.043 el Dr. Rodolfo Ojea Quintana, ex abogado del MEDH y asesor del Diputado López Arias, de Salta,
quien presentó el proyecto de Ley. El debate parlamentario fue evitado intencionalmente para evitar que
la discusión entre las distintas fuerzas políticas trabara su aprobación.

4. Ley 24.321
La Ley de Ausencia por Desaparición Forzada (véase Anexo), sancionada el 11 de mayo de
1994, faculta la declaración de ausencia por desaparición forzada de toda aquella persona que hasta el
10 de diciembre de 1983 hubiera desaparecido involuntariamente del lugar de su domicilio o residencia
sin que se tenga noticia de su paradero. La Secretaría de Derechos Humanos emite el certificado que
deja constancia de la existencia de la presentación de la denuncia sobre la desaparición forzada de una
determinada persona. Esta Ley creó la figura de “ausente por desaparición forzada” y fue consensuada
con los organismos de derechos humanos, a fin de para poder sancionar la Ley 24.411, ya que los
organismos se oponían a declarar la presunción de fallecimiento.
Alicia Pierini describe: “No había antecedentes en la legislación nacional ni en el derecho
5
comparado, entonces había que crear la figura desde cero” . Esta Ley es innovadora, pues es la primera
de este tipo en el mundo, y abrió el camino para la Convención Internacional contra la Desaparición
Forzada de Personas, aprobada en diciembre de 2006.

5. Ley 24.411
Promulgada a fines de 1994, la Ley 24.411 (véase Anexo) establece un beneficio a los
causahabientes de las personas desaparecidas o fallecidas como consecuencia del accionar represivo
con anterioridad al 10 de diciembre de 1983. También el Dr. Ojea Quintana redactó el proyecto de esta
Ley. Prácticamente no tuvo debate parlamentario, ni divulgación.
Esta Ley provocó un gran debate. Los organismos de derechos humanos y algunos familiares
de los detenidos-desaparecidos se resistieron a cobrar una indemnización en el marco de la ausencia de
verdad y justicia, pues parecía que se estuviese comprando su silencio y resignación. De hecho, la
Asociación Madres de Plaza de Mayo, conducida por Hebe de Bonafini, equiparó el cobro de la
indemnización a prostituirse. Actualmente, el debate ha desaparecido y casi todos los familiares han
cobrado la indemnización. Años después, la Ley 24.823 (véase Anexo) modificó y complementó las
lagunas de la Ley 24.411.

6. Ley 25.914
La ley 25.914, llamada “ley de hijos”, fue sancionada en 2004, impulsada por el Presidente
Kirchner. Está destinada a las personas nacidas durante la privación de la libertad de sus madres, o
hubiesen permanecido detenidas en relación a sus padres, siempre que cualquiera de éstos hubiese
estado detenido y/o desaparecido por razones políticas.
El beneficio consiste en el pago de una suma equivalente a veinte veces la remuneración
mensual de los agentes Nivel A, Grado 8. Prevé también a los hijos que fueron apropiados.

III. La política reparatoria como política pública


1. Actores Intervinientes
1.1. Secretaría de Derechos Humanos
La Ley establecía que la autoridad de aplicación era la Dirección de Derechos Humanos
dependiente del Ministerio del Interior, continuación de la Subsecretaría de Derechos Humanos creada
inmediatamente después de la presentación del Informe “Nunca Más” y de la disolución de la CONADEP.
Con la Reforma del Estado de 1990, la Subsecretaría había bajado de rango, a Dirección de Derechos
Humanos, razón por la cual había renunciado el Dr. Frugoni Rey. Luego, la Dirección quedó a cargo de
un director que no tenía ni antecedentes, ni interés en derechos humanos.
6
En febrero de 1991 asumió la Dirección la Dra. Alicia Pierini , quien había sido defensora de
presos políticos durante los años 70, y tuvo a su cargo la implementación del decreto 70/91.

5
Guembe, María José. La experiencia argentina de reparación económica de graves violaciones a los derechos
humanos. Buenos Aires, 2004 (mimeo) (Publicado actualmente por Oxford University Press.
6
Alicia Pierini se desempeñaba, al momento de su designación, como abogada en el Ministerio de Justicia, a
cargo de un programa de Atención Jurídica Gratuita. Previamente, había sido responsable de Programa del
Movimiento Ecuménico por los Derechos Humanos.

422
1.2. Otros actores
El Presidente de la Nación tomó la decisión de llegar a una solución amistosa y abonar las
indemnizaciones.
La Dirección de Derechos Humanos del Ministerio de Relaciones Exteriores, llevaba adelante la
relación con la CIDH. En ese momento estaba a cargo de Zelmira Regazzoli. Se debe destacar el papel
desempeñado por Regazzoli, que también había sido presa política y tenía una mirada desde los
derechos humanos. Facilitó la decisión por su empuje y su relación personal y partidaria con el
Presidente.
El Ministerio del Interior, a través de la Dirección de Derechos Humanos, era la autoridad de
aplicación y debía aprobar los expedientes.
El Ministerio de Economía, por otra parte, debía autorizar los pagos.
Los proyectos de leyes y su posterior sanción fue obra del Poder Legislativo: la Cámara de
Diputados y la de Senadores.
Otros actores que intervinieron fueron los organismos de derechos humanos, algunos aprobaron
la política, otros la cuestionaron y todos reclamaron que los detenidos-desaparecidos tuvieran un
tratamiento jurídico diferente al establecido.

2. La toma de decisión
Durante 1990 el Gobierno no había formulado ninguna política de derechos humanos. En enero
de 1991 esa situación cambió ante el reclamo de la CIDH. Si bien había varias opciones: demorar, aducir
prescripción, etc., el Gobierno adoptó la decisión de reconocer la demanda. Menem apoyó la decisión de
llevar adelante un programa amplio de reparación a presos políticos. Esta decisión fue una decisión de
raíz en dos aspectos. En primer lugar, fue una decisión política que no tuvo en cuenta ningún estudio de
factibilidad y se basó principalmente en el registro de la experiencia personal del Presidente ya que,
como preso político, había logrado beneficiarse con la reparación a la que consideraba justa y legítima.
No se puede dejar de señalar también que en 1989 habían tenido lugar los polémicos indultos
que otorgó el Presidente Menem a los jefes de las Juntas Militares condenados por la Cámara Federal.
Esos indultos suscitaron la reprobación de buena parte de la población y, sobre todo, de las víctimas de
las violaciones a los derechos humanos, algunas de las cuales resultaban beneficiados con estas leyes.
De alguna manera, se compensaban así perjuicios y beneficios.
Asimismo puede decirse que la decisión de acceder a la reparación fue una decisión de raíz,
sobre la cual se fue construyendo toda la Política Reparatoria posterior. El Presidente tomó una decisión
y estableció un objetivo.

3. Análisis de Factibilidad
Para analizar la factibilidad de una política se han de identificar todas las restricciones reales o
potenciales, separarlas de los obstáculos ficticios, evaluar su importancia para diferentes estrategias de
ejecución y estimar los costos y beneficios del relajamiento de las restricciones que no sean
7
absolutamente fijas.
Sin embargo, para decidir el Decreto 70 no se llevó a cabo ningún estudio de factibilidad, ni
tampoco para las Leyes 24.043 y 24.411.
Por lo que se refiere a la factibilidad económica, no se consultó al Ministerio de Economía. Nadie
había analizado tampoco qué cantidad de recursos financieros eran necesarios para solventar los pagos
del Decreto 70 y la Ley 24.043, porque no se sabía cuántos eran los posibles beneficiarios. El Gobierno
iba a enfrentar un problema desconocido por la cantidad de potenciales beneficiarios, nuevo, con un alto
grado de incertidumbre sobre su desarrollo posterior, los costos de las acciones para afrontarlo, el
compromiso de recursos futuros y los resultados de la intervención.

4. Implementación de la política reparatoria


Cuando ingresó la Dra. Pierini en la Dirección, encontró una Dirección degradada, con 22
personas, muchas de ellas castigadas y con sumarios internos y otro grupo pequeño que provenía del
trabajo de la CONADEP.
La Dirección no tenía ninguna política y estaba en proceso de desguase. Funcionaba en el ex-
Nuevo Banco Italiano, un local con principio de desalojo. En 1991 la Dirección de DDHH no tenía
estructura, ni edificio, ni personal capacitado, ni el mínimo equipamiento. No contaba con caja chica.
Empezó sin nada, para la Ley 24.043 no había decreto reglamentario, ni circuito administrativo.

7
Majone, Giandomenico Evidencia, argumentación y persuasión en la formulación de políticas, Fondo de Cultura
Económica, México, 1997.

423
La situación objetiva mostraba que había una omnipresencia de restricciones: económicas,
políticas, institucionales, administrativas, tecnológicas. Existían limitaciones de espacio, de recursos
humanos, de información. Era necesaria una sucesión de actividades para ensamblar los distintos
elementos: recursos financieros, recursos humanos, normas, decisiones y capacidades administrativas.
Todos estos elementos estaban en manos de diferentes actores relativamente independientes entre sí.
Había que poner en marcha una decisión, es decir, se debía realizar un proceso donde se debía tomar
multitud de decisiones.
Si bien se había adoptado un objetivo claro –la reparación–, no se había tenido en cuenta la
complejidad del problema que se debía encarar.
La decisión inicial no fue más que el pistoletazo que marcó el inicio del juego. Debido a esa
complejidad la implementación fue avanzando de manera incrementalista, gradualmente, con gran
esfuerzo y voluntad política de ir sorteando los obstáculos. El primer obstáculo sorteado fue obtener un
espacio en el edificio de la calle Moreno 711, en el quinto piso y un sector del sexto.
Para conseguir personal idóneo que estuviera en condiciones de atender a los posibles
beneficiarios, se recurrió a los organismos de derechos humanos, como el MEDH y Familiares.
Asimismo, Emilio Mignone, del CELS, envió a una abogada, con alta motivación pues su hermano
estaba desaparecido.
Muchos inconvenientes se resolvieron en forma pragmática. Uno de ellos fue la carencia de caja
chica para gastos menores, absolutamente necesarios para el desenvolvimiento de la actividad cotidiana.
Con alguien de suma confianza, se fingió un contrato laboral y el monto mensual se derivaba a los pagos
menudos. No era la solución óptima, pero era la viable, que exigió creatividad y una fuerte decisión de
alcanzar la meta. No se aceptó la restricción y se buscó la forma de sortearla.
La falta de información, es decir, el desconocimiento del listado de los presos a disposición del
PEN, se obtuvo por el interés y compromiso de empleados del Ministerio del Interior que habían
compartido la militancia política con la Dra Pierini. En ese momento se supo cabalmente que los presos a
disposición del PEN habían sido 10000. Por lo que se refiere a la Ley 24.411, fue de fundamental
importancia la colaboración también de funcionarios del Ministerio del Interior que encontraron los
biblioratos de 18000 hábeas corpus. Esto facilitó la prueba.
Se necesitaba gestionar intergubernamentalmente, es decir, conseguir el apoyo de algunos
actores políticos y burocráticos para resolver los problemas que se iban presentando. La gestión tuvo
éxito gracias a la capacidad de la Directora de llegar a acuerdos con determinados actores para que los
llevasen a efecto.
Así la Directora convenció y motivó a diferentes actores a que participaran en el proceso. Por
ejemplo, consiguió que prestaran computadoras otras dependencias del gobierno, ya que a cargo de
ellos estaban funcionarios con quienes había relación personal, o bien habían estado presos, o bien
habían luchado contra el gobierno militar.
Para obtener recursos para pagar al personal, Claudia Bello, que había pasado a ser Secretaria
de la Función Pública, colaboró pagando al personal de la Dirección con horas cátedra del Instituto
Nacional de Administración Pública.
La estructura de funcionamiento la armaron los administradores gubernamentales, quienes
ayudaron también a conseguir algunos contratos.
El decreto reglamentario fue redactado en la Dirección y se tardó un año para que lo firmase el
8
Ministro del Interior y la Dirección de Asuntos Jurídicos. El 24 de junio de 1992 se reglamentó mediante
el decreto 1023/92, que establecía que la solicitud del beneficio se debía presentar en la Dirección
Nacional de Derechos Humanos del Ministerio del Interior y debía contener una declaración jurada
firmada por el beneficiario o sus derecho–habientes en la que se manifestase que había sido privado de
su libertad por disposición del PEN, o en razón de actos emanados de tribunales militares durante el
período comprendido entre el 6 de noviembre de 1974 y el 10 de diciembre de 1983. Se creó un
formulario para los peticionantes.
Para la Dirección representó un salto de calidad institucional el encuentro de la Asociación
Abuelas de Plaza de Mayo con el Presidente, gestionado por la misma Dirección con la colaboración de
Claudia Bello. En ese encuentro las Abuelas pidieron al Presidente que otorgara mayor jerarquía a la
Dirección, lo que permitió contar con una estructura diferente. Así, en agosto de 1992 Pierini asumió
como Subsecretaria y en noviembre se creó la Comisión Nacional por el Derecho a la Identidad
(CONADI). Con esa nueva estructura, se organizó la Unidad Ejecutora de la 24.043 y se pudo incorporar
a otro administrador gubernamental para que se hiciera cargo de dicha Unidad.
Un punto de veto tiene lugar cuando se necesita que un actor individual dé su consentimiento a
una acción. Ello ocurrió cuando Gustavo Béliz fue Ministro del Interior (de diciembre de 1992 a agosto de
1993), ya que el Ministro del Interior debía firmar el trámite administrativo para habilitar el pago y Béliz se

8
En ese momento, José Luis Manzano.

424
negó a firmar. Ese año significó un año de parálisis, de retraso, no se avanzó y nadie logró cobrar la
indemnización.
No se obtuvo el consenso de uno de los actores principales y el proceso de implementación no
pudo seguir adelante. Se interrumpió. La intervención del Ministro Béliz era indispensable para que
avanzara la política. El resultado de su falta de colaboración podría haber equivalido al fracaso, pero sólo
significó un retraso considerable.
9
En 1994 asumió Carlos Ruckauf como Ministro del Interior, pero Ruckauf tampoco quería firmar
salvo que hubiera una resolución conjunta con el Ministerio de Economía acordando un circuito mixto.
Armar el circuito administrativo fue sumamente dificultoso.
Por pedido de Claudia Bello también, a fines de 1993, el Dr. Horacio Liendo, del Ministerio de
Economía, se ocupó del tema y resolvió que el pago de la Ley 24.043 se podía efectuar en bonos.
Asimismo Liendo creó el circuito administrativo, que terminaba en la Caja de Valores. Explicó que no
había que preocuparse por el presupuesto nacional porque los bonos no formaban parte de él.
Para Alicia Pierini, en ese momento el retraso representaba el fracaso del programa. Tomó la
decisión de que, si para fines de 1994 ningún beneficiario llegaba a completar el trámite y cobrar,
renunciaría, por lo cual encaró las dificultades con decisión e inventiva.
Ruckauf fue entonces el primer ministro que firmó los pagos. Cabe mencionar que el mismo
Ministro, que también había estado preso, había cobrado su indemnización.
El primer pago de la Ley 24.043 se pudo realizar entre junio y diciembre de 1994, después de
que se hubiese establecido la resolución conjunta.
Para analizar las restricciones que tuvo que hacer frente la Política Reparatoria, se debe incluir
la dimensión del tiempo. Transcurrió suficiente tiempo, desde 1991 hasta diciembre de 1994, para lograr
eliminar los obstáculos y restricciones.
Para que todos los beneficiarios aprovechasen las infaltables recomendaciones, se inventaron
los “paquetes” llamados globales. Para pasar al Ministerio de Economía se hacía en grupos de 25 casos,
así si existía un recomendado, arrastraba a 24 casos más. Este procedimiento fue idea de un
administrador gubernamental.
Por otra parte, las diferentes situaciones llevaron a ampliar por vía de interpretación el campo de
cuestiones que se fueron reparando. Una de esas situaciones fue la de quienes habían estado
detenidos-desaparecidos en campos clandestinos de detención. Su tratamiento significó un enorme
esfuerzo para hallar la prueba pertinente. Por razones de equidad y recomendaciones de foros
internacionales, debían equipararse por vía analógica esas situaciones a las contempladas en la Ley
24.043. Sin embargo, se encontraron resistencias en la Unidad de Auditoría Interna y en Asuntos
Jurídicos porque consideraban que no estaban suficientemente probados los delitos. Pero había
cambiado la situación de la Dirección, contaba con reconocimiento y contratos para el personal.
Las leyes reparatorias tuvieron varias prórrogas: la Ley 24.436, la 24.906 y la 24.499. Por otra
parte, la Ley 23.823 es aclaratoria de la 24.411.
Los problemas más complejos, las políticas más ambiciosas están en manos de personal de
ventanilla, que debe resolver, en cada caso concreto, los defectos de la formulación de la Ley, la
vaguedad y la imprecisión de la información. Pero el personal de la Subsecretaría son, en su mayor
parte, militantes de derechos humanos, por lo que suelen atender a los solicitantes de manera
personalizada y cuidadosa y de igual forma buscan resolver cada trámite y búsqueda de pruebas.
Las medidas de desempeño señalan cómo se está actuando, es decir, cuáles son las destrezas
y dónde se necesita mejorar. Si bien en septiembre de 2002 se presentó la Carta Compromiso con el
Ciudadano, donde se explican las características de las diferentes políticas de la Secretaría, los servicios
que prestan, los atributos medidos y los estándares, dentro de la Secretaría hay resistencia a dichas
mediciones. En una entrevista con personal de la Secretaría, manifestaron que no hay ninguna
evaluación de desempeño, ya que se prioriza el aspecto cualitativo y no el desempeño. Tampoco
encontramos medidas de carga de trabajo. Pero, sí habría una medida tácita de eficacia, relacionada con
la calidad del desempeño, con el efecto deseado, desde el punto de vista de los beneficiarios. La
medición de desempeño es parte de un proceso más amplio de evaluación.
10
Alicia Pierini dio algunas cifras. Explicó que para la Ley 24.043 se habían presentado a la fecha
del Informe 9840 personas, de los cuales ya se habían abonado 7423 casos y 830 se habían denegado.
Los restantes 1587 solicitudes estaban en espera de documentación o en trámite de pago. A partir de la
prórroga se presentaron 2792 casos más. El Estado había pagado más de 700 millones de dólares.
Más de mil millones de dólares han sido invertidos por el Estado Nacional para indemnizar a los
ex presos políticos y perseguidos por la dictadura, si se suman los montos que recibieron los
beneficiarios del decreto 70/91, de la ley 24.043, sus prórrogas, equiparaciones, y los pagos que por
cumplimiento de sentencias judiciales se hicieron en otros casos.
9
Ruckauf fue ministro del Interior desde agosto de 1993 a enero de 1995.
10
Pierini, Alicia. 1989-1999 Diez Años de Derechos Humanos. Ministerio del Interior, Buenos Aires.

425
5. Evaluación de la política reparatoria
La evaluación forma parte de la vida de cualquier organización, aunque suceda de manera tácita,
y consiste en que sus integrantes y los sectores sociales afectados por esa política, identifiquen y midan
los efectos de las acciones individuales y del conjunto.
En lo que se refiere a la política reparatoria, se puede observar una resistencia a efectuar
evaluaciones en forma expresa. Es posible que esa resistencia esté relacionada con las dificultades que
tiene la sociedad argentina de analizar el pasado reciente y, en particular, la clase política para afrontar
ese debate, seguramente como consecuencia de la actuación de cada fuerza política durante la
dictadura y el gobierno de Isabel Perón, y de la rendición de cuentas no realizada. Últimamente se
observa que esta situación empieza a mostrar signos de cambio.
Sin embargo, la retroalimentación de la política reparatoria y las sucesivas prórrogas a las leyes
se pueden considerar una evaluación implícita. La política pública reparatoria no sólo ha continuado, sino
se ha incrementado. Se extendió a los sucesos de José León Suárez, los fusilamientos de 1956, a los
asesinatos de Trelew, las víctimas del Plan Cóndor, los menores víctimas del terrorismo de Estado, los
presos del CONINTES, etc. Además, varias provincias han instituido pensiones para los ex detenidos
políticos.
Otra evaluación implícita es también el fortalecimiento institucional que ha registrado la actual
Secretaría de Derechos Humanos. Posee un edificio nuevo, un presupuesto propio y un organismo
desconcentrado, el Archivo Nacional de la Memoria, que depende de la Secretaría. Tiene más personal
con mayor especialización y capacitación. Se han creado tres direcciones nacionales y dos
subsecretarías de Estado.
Por lo que se refiere a los sectores sociales afectados, hay una demanda importante por parte de
las personas que debieron exiliarse durante el gobierno militar de que se sancione la ley del exilio.
Tamayo Saez nos habla de un proceso cíclico donde la evaluación es la última fase del proceso
de la política pública y también la primera, ya que el análisis de los resultados puede iniciar una nueva
política. Los tipos de evaluación, anticipativa, de la evaluabilidad de la política, de necesidades, de
contexto, de implantación de procesos, de la eficacia/impacto, de la calidad, que propone son difíciles de
aplicar al contexto de la política reparatoria, porque es evidente el vacío de información.
Ante esta ausencia de material, hemos tratado de medir el grado de eficacia de la política
reparatoria, es decir, si produjo el efecto deseado en los beneficiarios. La eficacia es la capacidad de
hacer concretas o reales las metas programadas. Para lo cual, hemos recogido los juicios de algunos de
ellos.
Una ex-presa manifestó que la indemnización significó una verdadera reparación y también un
reconocimiento del Estado, por la privación de su libertad y por su militancia.
Una hija de una persona asesinada por el gobierno militar explicó que de ningún modo era una
reparación, porque nada podía reparar la muerte de su padre. Pero consideraba que esa indemnización
era una presencia de su padre, porque si él hubiera estado vivo, seguramente su presencia la hubiera
ayudado de varias maneras.
Una hija de una detenida-desaparecida contó que su familia no conocía ningún referente que
estuviera interiorizado de las alternativas de las reparaciones, ni tampoco tenían contacto con ninguna
organización de derechos humanos para pedir apoyo. Sin embargo, logró beneficiarse con la reparación
después de 10 años de trámites, a través de profesionales que ya estaban a cargo de otros casos más
difíciles de probar. Gracias a la compensación que recibió pudo estabilizar un poco su vida, pese a que
recibió bonos post default que se cobran mensualmente y no como los demás beneficiarios que pudieron
cobrar el total en un solo pago si así lo deseaban.
Todos los entrevistados, tanto beneficiarios como Alicia Pierini y el personal de la Secretaría,
estuvieron de acuerdo en que la reparación no puede reparar la pérdida, pero es un reconocimiento del
Estado a las víctimas y al dolor y sufrimiento de sus familias.
Por otra parte, se ha de señalar que la política reparatoria argentina ha marcado un hito por la
envergadura y la extensión de la cobertura. La experiencia argentina constituye un referente a nivel
mundial en esta materia.

IV. Conclusiones
Los cuatro pilares con que el gobierno define a su política de derechos humanos son: memoria,
verdad, justicia y reparación. Los tres primeros fueron la demanda de la sociedad civil, de los afectados y
de sus familiares desde que comenzaron las violaciones a los derechos humanos. El cuarto, la
reparación, es producto, sobre todo, de la respuesta que dio el Estado.
En la Política Reparatoria se combinaron lo mejor de la decisión inicial y lo mejor de la iniciativa
de ventanilla. El éxito del inicio de la Política Reparatoria se debió, en gran medida, a la adaptación

426
mutua entre el plan de acción generado por la conducción –la Directora y los administradores
gubernamentales– y las condiciones y capacidades del personal. Existió una “implementación
adaptativa”.
El diseño de la Política Reparatoria se fue haciendo sobre la marcha, en el transcurso de la
implementación, ya que no se había previsto la secuencia de acciones necesarias. Pese a ello, se puede
decir que fue y sigue siendo una política exitosa. Como termina Marjone, podemos citar a Max Weber
que recuerda que, a lo largo de la historia, “el hombre no habría alcanzado lo posible, si una y otra vez
11
no hubiese buscado lo imposible” . Como finaliza, para el éxito de esta política fue necesario el análisis
frío y la persuasión, tanto la pasión, como la perspectiva. Ambas estuvieron presentes.

Bibliografía
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Administraciones Públicas, 1994.
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Lindblom, Charles “La ciencia de ‘salir del paso’”, en Aguilar Villanueva, Luis (comp.) La Hechura de las
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Majone, Giandomenico Evidencia, argumentación y persuasión en la formulación de políticas, Fondo de
Cultura Económica, México, 1997.
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(comp.) La hechura de las políticas, Miguel Angel Porrua, México.
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Pierini, Alicia. 1989-1999 Diez Años de Derechos Humanos. Ministerio del Interior, Buenos Aires.
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conceptos”, Revista Política y Gestión, Vol. 2, Buenos Aires, 2001
Tobelem, Alain Sistema de Análisis y Desarrollo de la Capacidad Institucional (SADCI). Manual de
Procedimientos, 1992.
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(comps.) La nueva Administración Pública, Alianza Universidad, Madrid, 1997.
Guembe, María José. La experiencia argentina de reparación econòmica de graves violaciones a los
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Ammons, David, “Medidas de desempeño en los gobiernos estatales y locales”, en Losada i Marrodán
(ed.), ¿De Burócratas a Gerentes? Las ciencias de la gestión aplicadas a la administración del Estado,
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nueve países desarrollados”, Gestión y Política Pública, Vol. IV, Nº 1, México, primer semestre, 1995.
Nirenberg, Olga et al., Evaluar para la transformación. Innovaciones en la evaluación de programas y
proyectos sociales, Paidós, Buenos Aires, 2000.

11
“Politics as a Vocation”, en H.H. Gerth y C. Wright Mills (comps), From Max Weber, Oxford University Press,
Nueva York, 1946, p.128.

427
Memória política ou políticas da memória?
Memória, verdade e justiça a trinta anos do fim da ditadura na Argentina (1983-2013)

1
Nicholas Rauschenberg

Resumo: O presente trabalho busca discutir, a partir de uma breve reconstrução histórica dos dois ciclos
de justiça transicional na Argentina, alguns posicionamentos sobre a atualidade do debate sobre
memória política. O primeiro ciclo, logo depois do término da ditadura (1976-1983), se refere à
elaboração do informe Nunca Más (1984) e ao julgamento público à junta militar (1985). O segundo ciclo
tem início em 1997 com os “juízos pela verdade”, com a anulação das leis de indulto em 2003 e com a
retomada dos julgamentos que se estendem até a atualidade com as chamadas “megacausas”. Porém,
não faltaram opiniões contrárias à retomada da justiça penal: entre elas, Beatriz Sarlo acusa o governo
de forjar um metarrelato histórico-político, e Claudia Hilb acusa que o excesso de justiça inibe a verdade
e a reconciliação. Procuramos defender que a justiça não só contribui para a verdade, senão também à
exemplaridade (Todorov).

Introdução
Como explica Iván Orozco (2005, p. 19), “a justiça transicional vem a ser um campo de batalha e
negociação entre razões memoriosas e razões esquecidiças (olvidadizas)”. Sempre com o foco do
conflito em como olhar o passado a partir do presente, a justiça transicional envolve inúmeros atores
sociais com demandas e perspectivas diferentes: de vítimas, criminosos, advogados e juízes até
jornalistas e políticos. A justiça transicional é o lugar onde se confrontam o universalismo dos direitos
humanos e o relativismo das éticas contextuais sempre “oportunamente” resgatadas por atiçadas
defesas prontas para justificar atos boçais. Também é o lugar das normas abstratas e das medidas
concretas das políticas para a paz e reconciliação, por um lado, e a justiça penal, por outro. A pesar de
haver muitas definições de justiça transicional, é inegável que seu objetivo é a passagem de um estado
de exceção a um estado democrático, onde este deve exigir a melhor aplicação de verdade e justiça
possível. Para González, existem dois caminhos que aparentemente são excludentes: por um lado, o
caminho do direito penal com julgamentos e devidas punições, por outro, o caminho do que ele chama
de “justiça transicional” que parece restrita às estratégias públicas de reconciliação, mas que excluem o
caminho pelo direito penal (González 2012, p. 131). No entanto, no caso argentino, ambas formas se
combinaram gerando inúmeros debates e desentendimentos.
É possível dividir o caso argentino de justiça transicional em dois ciclos. O primeiro se refere ao
esforço do governo de Alfonsin que, uma vez terminada a ditadura (1976-1983), articulou uma comissão
da verdade, a Conadep, com claros fins de levar os chefes do fracassado regime militar à justiça penal
comum. O relatório final da Conadep, conhecido como Informe Nunca Más (CONADEP 2012), foi
publicado massivamente já em 1984 e distribuído em todas as escolas e centros comunitários. Até em
bancas de jornal era possível comprá-lo. Esse informe foi utilizado como prova nos julgamentos à junta
militar no ano seguinte. A principal polêmica em relação ao uso do informe Nunca Más como prova, foi o
silenciamento do pertencimento político dos sobreviventes e testemunhas, mostrando um claro
direcionamento do testemunho a uma finalidade: refutar a “teoria dos dois demônios” que defendia que
houve uma guerra onde os fins justificavam os meios, quer dizer, os militares defendiam sua “guerra
suja” através de uma suposta e improvável equiparação de forças com o “inimigo”. Uma vez refutada
essa teoria, cinco dos nove acusados, entre eles Videla, foram severamente condenados à prisão (ver
Vezzetti 2002 e Crenzel 2008).
O segundo siclo não teve um início notoriamente marcado por uma iniciativa política. Foram
setores da sociedade civil que exigiram do poder público o conhecimento do paradeiro dos
desaparecidos e o esclarecimento sobre os crimes do terrorismo de estado. Os assim chamados “juízos
pela verdade” iniciados em 1997 foram fruto do trabalho coletivo de diversas pessoas, familiares de
desaparecidos políticos e organizações de direitos humanos que usaram a justiça para investigar o
paradeiro das vítimas, mesmo sem a possibilidade de julgar os culpáveis.
A partir de 1998 descobriu-se uma verdadeira brecha nas leis de impunidade: o sequestro dos
bebes nascidos em cativeiro não estava contemplado nas disposições da anistia” (Filippini 2011, p. 25), o
que permitiu aos ativistas de direitos humanos desenvolver novas estratégias que pudessem passar da
mera averiguação da verdade a uma instância penal. Em 2001 foram declaradas por um juiz
1
UNLP/UBA – nicholasrauschenberg@yahoo.com.br

428
improcedentes as leis de impunidade sancionadas entre 1987 e 1990, mas ainda houve rearranjos
judiciais que impediam o acesso à justiça penal para julgar e condenar repressores. Foi só em 21 de
agosto 2003, dois meses depois da assunção do Presidente Nestor Kirchner, que foi promulgada a lei
25.779 que declara nulas as leis de Obediência Devida e Ponto Final. Depois de 2006, impulsado pelo
poder executivo, os juízos se intensificaram, abarcando cada vez mais repressores.
Diferentemente do Julgamento à Junta Militar nos anos 1980, o foco dos julgamentos atuais,
embora abranja centralmente militares e agentes de segurança, progressivamente tem sido a
investigação também de “muitos civis que participaram de modos diversos, como sacerdotes, juízes e
ex-ministros” (Filippini 2011, p. 26). Ou seja, a cumplicidade civil passou a ser sistematicamente alvo de
investigações da justiça neste segundo ciclo de justiça transicional. Neste sentido, um caso
paradigmático foi a condenação do ex-ministro de economia do regime militar, José Alfredo Martínez de
Hoz. Empresário de uma tradicional família oligárquica, Martínez de Hoz foi um dos grandes
responsáveis pela destruição do patrimônio público, debilitamento do setor trabalhista com forte
concentração de poucas empresas privilegiadas ligadas a grupos próximos ao governo ditatorial,
estatização de dívidas privadas e transferência de grandes margens de lucro a favor de certos bancos e
grupos financeiros nacionais e extrangeiros (ver Castellani 2009, p. 111 e Yanzón 2011, p. 148). A
acusação penal que recai sobre ele e seu ex-vice-ministro Albano Harguindeguy, contudo, remete
pontualmente ao sequestro extorsivo que durou mais de cinco meses dos empresários algodoeiros
Federico Gutheim e seu filho Miguel que foram obrigados a assinar contratos de exportação com
comerciantes ingleses e chineses residentes em Hong Kong que beneficiavam negócios privados
vinculados a agentes da ditadura. Essa condenação abriu caminho para processar os civis cúmplices do
2
regime cívico-militar. Além dessa domesticação da política e economia pelo terror, a aliança entre
militares e grupos econômicos se fez ainda mais nítida quando se descobriu que “eram os próprios
empresários das grandes companhias que solicitavam o ‘serviço’ da ditadura para erradicar dirigentes ou
delegados gremiais de seus estabelecimentos” (Shapiro 2002, p. 366).
Outra diferença entre o processo dos anos 1980 e o atual é a ampliação dos conceitos jurídicos
de tormento e tortura, ambos considerados crimes de lesa humanidade. No primeiro período, o tormento
era o “submarino” (afogamento) ou a aplicação de picana elétrica (normalmente no sexo do prisioneiro),
ou golpes (com paus etc.), violência sexual etc. Hoje em dia, contudo, é possível falar de um conceito
amplo de tortura, que inclui também as condições de detenção (ver Rafecas 2010 e Versky 2012). Outra
mudança considerada um avanço da nova fase processual a partir de 2003 foi a ênfase colocada na
violência sexual que, acredita-se, foi aplicada contra todos os prisioneiros, especialmente sobre as
mulheres, muitas das quais foram tidas como escravas sexuais. Nos novos julgamentos, muitas
mulheres se animaram a contar em audiências públicas os abusos sexuais e as diversas violências
perpetradas pela condição de gênero (Yanzon 2011, p. 151). A violência de gênero e os delitos contra a
integridade sexual relatados por diversas testemunhas, ao serem considerados como crimes de lesa
humanidade devido à sistematicidade de seu uso como modo de tortura, abrem diversas possibilidades
de processamentos e condenações a perpetradores que ficariam impunes (Varsky 2012, p. 83). No
entanto, a mudança primordial do primeiro ao segundo ciclo foi a centralidade da testemunha para provar
os atos criminosos. Sem dúvida havia outras provas sempre que possível, mas os relatos eram
praticamente a condição de existência de um processo. Por isso, passou-se a destacar os relatos em
primeira pessoa e não mais aqueles relatos que comprovavam os fatos da sistematicidade do terrorismo
de Estado, predominantemente em terceira pessoa (ver Varsky 2011).
A partir de 2003, as causas judiciais abertas foram atomizadas em razão das atividades de um
determinado centro clandestino de detenção, a partir do qual operavam diversos atores, de diferentes
forças de segurança e hierarquias. Deste modo, os acusados são submetidos a juízo oral e público,
coletivamente, ou seja: um juízo oral pode envolver várias causas judiciais contra vários imputados. A
junção de várias causas num único julgamento público centralizado chama-se “megacausa”. O total de
acusados em todas as causas gira em torno de mil e trezentos. Durante o processo da “megacausa”
conhecida como “Primeiro Corpo do Exército”, por exemplo, foram reconhecidas judicialmente
aproximadamente mil vítimas e foram condenados quase cem dos acusados, entre eles, “militares do
Exército e da Força Aérea, integrantes de forças de segurança, inteligência e serviços penitenciários,
desde o chefe máximo, o ex-ditador Rafael Videla, até os torturadores” (Rafecas 2011. p. 165). Outras
causas conhecidas como “Club Atlético”, “El Banco” y “El Olimpo” abarcam em torno de trezentas vítimas
e vinte acusados. O juízo oral mais abarcativo é a “megacausa” ESMA, com cinquenta acusados e
seiscentas e cinquenta vítimas (idem). Outra megacausa, mas na província de Córdoba, conhecida como
3
“La Perla”, ainda em julgamento público, tem quarenta e quatro acusados . Esta megacausa está
composta por outras dezoito causas judiciais, conta com novecentas e oitenta e três testemunhas, e
investiga-se o ocorrido a quatrocentas e quinze vítimas.
2
Jornal Página 12, 28 de abril de 2010, link: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-144762-2010-04-28.html
3
Ver Jornal Página 12 de 24/12/2012, link: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-210521-2012-12-24.html

429
Essas “megacausas” só puderam e podem ser preparadas com a providencial preparação das
testemunhas. Como o processo abrange, como já foi mencionado, além de civis que colaboraram com a
repressão, também militares e agentes de segurança de hierarquia inferior, com raras exceções, a única
prova que resta são os depoimentos de diversas testemunhas que sobreviveram ou que vêm lutando por
justiça de parentes desaparecidos. Infelizmente, os agentes de menor hierarquia no aparato repressor,
muitas vezes, tinham documentação falsa ou simplesmente usavam apelidos em suas tarefas ilegais, o
que dificulta sua identificação por parte da justiça penal (Yasón, 2011, p. 152). A preparação das
testemunhas implica orientá-las e fornecer-lhe previamente elementos diante do momento inusual de ter
de declarar num julgamento público. Além de eventual ajuda psicológica e de proteção policial, a
testemunha recebe quase sempre suas próprias declarações anteriores, por exemplo, aquelas
declaradas na Conadep ou em causas anteriores em que também testemunhou. Com o avanço sem
precedentes das causas julgadas atualmente, é comum surgirem novas testemunhas durante os debates
públicos ou em declarações diante da promotoria. Um exemplo se deu no julgamento da causa
conhecida como “Massacre de Fátima”, que constitui a megacausa “Primeiro Corpo do Exército” da
Capital Federal, onde se analisa o fuzilamento de um grupo de prisioneiros políticos. Nesta causa foi
preciso recorrer ao testemunho de um sobrevivente que havia sido citado em muitos relatos, mas cuja
confirmação era imprescindível (ver Varsky 2011).

Negacionismo subterrâneo. Verdade versus justiça?


No caso argentino, parece que a década menemista (1989-1999) com a impunidade a
repressores e continuísmos em política econômica com a ditadura militar potencializou o que Michael
Pollak (1989) chamou “memória coletiva subterrânea” que se opõe a uma memória organizada que,
mesmo sendo coletiva, é “enquadrada”, isto é, direcionada para um determinado fim num certo contexto,
prevalecendo nela um recorte arbitrário devidamente justificado. Essas memórias subterrâneas tendem a
ser “guardadas em estruturas de comunicação informais e passam desapercebidas pela sociedade
englobante” (Pollak 1989, p. 8). Se, por um lado, com os “juízos pela verdade” iniciados em meados dos
anos 1990, pôde-se ver um modo de “enquadramento” e elaboração da memória (Adorno 1962) que
visavam mesmo num longo prazo objetivamente a justiça, outro setor da sociedade parece surpreso com
os desdobramentos dos julgamentos atuais. Se analisarmos os discursos que se contrapõe à política da
memória na Argentina atual, desconfiaremos da intencionalidade política que eles possam esconder.
Antes que memória subterrânea, poderíamos chamar esses fenômenos de “esquecimento subterrâneo”:
é a repulsa a lembrar e, quando não resta outra alternativa, lembrar sem lembrar dos avanços em
matéria de justiça transicional. O que quero chamar aqui de “esquecimento subterrâneo” é uma forma de
negacionismo de certa forma “ilustrado”, já que provém inclusive de celebridades intelectuais como
Beatriz Sarlo e inúmeros jornalistas dos grandes grupos midiáticos. Esse negacionismo subterrâneo
sempre acusa a memória oponente de estar impregnada de “esquecimento” (intencional), de ser
“ideológica” e parcial. Esse negacionismo parece no fundo querer ignorar que houve um genocídio e
insiste em comparar e equiparar a ação militar à ação armada insurgente. Em Os abusos da memória,
Todorov (2000) explica que a memória é necessariamente uma seleção. Contudo, o que implicaria um
abuso da memória ou do esquecimento senão uma justificação ou a acusação de uma justificação
indevida? Como veremos, comparar para justificar e exemplificar pode trazer armadilhas.
No dia oito de novembro de 2012, Alejandro Katz, dono da prestigiosa editora Katz, publicou um
4
artigo no jornal La Nación, terceiro principal em circulação na Argentina, intitulado Políticas de la
memória que más bien buscan el olvido. No artigo, Katz questiona a política em torno da memória do
terrorismo de Estado nos anos 1970 levada adiante pelo atual governo desde 2003. No mesmíssimo 8
de novembro (o famoso 8N), organizações de direita convocaram seus simpatizantes (ao todo
5
compareceram no Obelisco da capital portenha cerca de 20.000 pessoas brancas e bem vestidas ) para
um panelaço ou “cacerolazo” contra o governo de Cristina Kirchner, reivindicando a não reforma da
constituição (re-reeleição, “liberdade” para comprar dólares e “não” à Lei de Meios Audiovisuais que
regula o setor limitando monopólios), o que contou com inúmeras agressões a jornalistas que não
representavam os interesses dos organizadores dessa marcha. O único grupo de imprensa não agredido
se limitou aos jornalistas do assim chamado – e poderoso – Grupo Clarín, que vive uma batalha judicial,
como vimos, e uma disputa midiática contra o atual governo que desembocou na elaboração e
promulgação da “Lei de Meios”, ou Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual em 2009. A lei, que é
referência para a multiplicidade de vozes e um estímulo sem precedentes para produções audiovisuais

4
Para ler o artigo, acessar: http://www.lanacion.com.ar/1524456-politicas-de-la-memoria-que-mas-bien-buscan-el-
olvido (Todas as traduções do espanhol ao português são minhas).
5
Como antropólogo fui à marcha e o cântico que mais se ouvia dessas pessoas enfurecidas era: “el que no salta
es negro K!”, ou seja, “aquele que não pula é um negro kirchnerista”. Sobre o racismo argentino ver Ratier
(1972), Margulis e Urreti (1998), Solomianski (2003) e Belvedere (2007).

430
locais (ver Baranchuk 2011), tem um artigo, o 161, que prevê o fim dos monopólios. Isso irrita, claro, o
Grupo Clarín, que também possui o jornal La Nación onde Alejandro Katz publicou seu artigo, já que
esse grupo de multimeios detém mais de 300 meios, sendo destes mais de 240 canais de televisão
através do absoluto monopólio da TV a cabo (empresa Cablevisión). Por tanto, o clima do 8N, era
alimentado por uma consigna de “liberdade” de mercado alentada por um monopólio comunicativo que
vê na Lei de Meios, juntamente com uma série de políticas do atual governo, entre elas, as políticas da
memória por meio da justiça penal e de redistribuição através de políticas sociais, seus interesses mais
consolidados desmoronarem. Não surpreende que, nesse clima aguerrido, os jornalistas desse grupo,
juntos com seus sócios da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), se digam perseguidos pelo
governo, afirmando que sua liberdade de imprensa (ou de empresa) está ameaçada.
Em seu provocador artigo, ao denunciar o governo atual de fazer uma política da memória que,
por um lado, glorifica a militância do passado e, por outro, julga e condena os repressores (militares,
civis, eclesiásticos, etc.), além de espalhar monumentos à memória e ao terrorismo de estado pelo país,
Katz quer fazer crer que, com isso, a intenção do governo é produzir um “relato” (ou “metarelato”), quer
dizer, uma versão única da história que, orientada por um imperativo moral vitimizante, estabeleça o bem
e o mal numa perspectiva histórica, vista do presente, e sirva de referência para um juízo político-
ideológico da cidadania comum. Assim, para Katz, relembrar ou rememorar significa selecionar eventos
cuja carga semântica só é possível de entender se nos detivermos em sua intenção meramente política
e ideológica. Aquilo que ficou excluído da “seleção” de fatos memoráveis se deve a uma manipulação
política maniqueísta estimulada exclusivamente pelo governo, que cria seu “relato”, ou seja, sua história
oficial com apelo moral para se legitimar no poder. O alvo de suas críticas é o fato de o governo não ter
processado também, além dos militares, os assim chamados terroristas, tanto os Montoneros quanto os
do ERP. É como se o governo ocultasse intencionalmente as ações ilegais de violência que os grupos
guerrilheiros tinham perpetrado. Contudo, como cimos acima, ambas guerrilhas já haviam sido
massacradas e desmanteladas antes do início da ditadura de 1976 (ver Anguita e Caparrós 2006, e
Novaro e Palermo 2010), a pesar da famosa contra-ofensiva montonera de 1978 que foi duramente
reprimida (ver Gillespie 2008). Para Alejandro Katz, a política da memória “oficial” se converteu “no lugar
do gozo que proporciona a cólera de quem não esquece”, atribuindo ao governo uma intenção de
revanchismo e vingança, dada sua suposta continuidade com o projeto político peronista. O rancor
provocaria, assim, um desapego em relação à justiça, que se transforma, longe da verdade, em
continuadora do conflito que se arrasta pela história. Deste modo, conclui Katz, essa política facciosa do
rememorar é, antes, uma política do esquecimento a partir da qual o governo quer consolidar a sua
hegemonia retórica. Portanto, de acordo com Katz, há esquecimento onde o relato da memória aspira à
exaltação do próprio sofrimento e do sofrimento daqueles que são semelhantes, à celebração do
irrecuperável, à glorificação de um passado de suposto sacrifício compartilhado: “a memória da desgraça
é a memória do ódio”. O lugar do discurso de Katz pressupõe um governo autoritário, ao qual sem
dúvida ele fervorosamente se opõe. No entanto, como é possível constatar em vários âmbitos de
produção de conhecimento, é o próprio governo que conforma e estimula a maior diversidade de
discursos, seja com espaços de discussão, bolsas de pesquisa, congresos acadêmicos, filmes, TV digital
aberta etc. Basta ir numa livraria, das muitas que há na cidade de Buenos Aires, por exemplo, e
comparar a grande diversidade de posicionamentos teóricos e políticos em relação à história recente. O
negacionismo subterrâneo de Katz carrega exemplarmente o ódio da direita atual que segue presa à
velha argumentação militar sustentada pela teoria dos dois demônios e que ignora as vantagens e
normativas da justiça penal transicional.
Seguindo o mesmo tom “opositor” de Alejandro Katz, o politólogo e colunista ultraconservador do
6
jornal La Nación, Emilio Cárdenas , publicou um artigo que ilustra bem como um “abuso da memória”
pode servir de justificativa. Tal como Katz, Cárdenas é contra a retomada dos julgamentos aos
repressores da última ditadura. O argumento de Cárdenas retoma o caso do pós-guerra alemão, onde os
julgamentos dos crimes do nazismo geraram um desentendimento entre soviéticos, por um lado, e
franceses, ingleses e norte-americanos, por outro. Para estes deveria haver, apesar de tudo, um “devido
processo penal”, com a presunção de inocência garantida caso não fosse possível provar crimes para
um determinado imputado. No entanto, para os soviéticos, os julgamentos seriam uma mera formalidade
para constatar o que “todos” já deveriam saber: os líderes alemães são culpados. Se os primeiros
demandavam uma corte imparcial e separada da política, os soviéticos viram no julgamento uma
possibilidade de legitimar sua propaganda política, usando as atrocidades nazistas para ocultar seus
próprios campos de concentração e execuções de inimigos políticos. O que quer advertir Cárdenas é
que a retomada da justiça transitória na Argentina desde 2003, além de revanchista, não cumpre regras
básicas do assim chamado “devido processo” pela via penal ao não considerar a presunção de inocência
dos acusados, insinuando que os novos processos são persecutórios e têm uma intenção política e
6
Para ver o artigo de Cárdenas de 24/01/2013: http://www.lanacion.com.ar/1548408-los-delitos-de-lesa-
humanidad-deben-ser-probados

431
ideológica definida de antemão. Como vimos, muitos réus que são processados são absolvidos que não
se prova o envolvimento, além do fato que as condenações ponderam as penas quando se prova a
participação secundária. Mas a argumentação de cárdenas por meio da comparação tendenciosa é típica
da oposição argentina atual que ora chama o governo de ditadura, ora de nazista ou ora de stalinista.
Longe de impressionar, elas só mostram como opera o negacionismo já mencionado: só um governo
autoritário pode fazer um julgamento sumário para legitimar uma ideologia, e esse governo foi a ditadura
de Videla que entregou a empresa Papel Prensa ao Grupo Clarín.
Um terceiro caso de colunista desse jornal que assume uma postura opositora ao governo atual
é Beatriz Sarlo. Em 2005 publicou Tiempo pasado. Cultura de la memória y giro subjetivo, onde se
constrói, talvez pela primeira vez, a questão do “relato kirchnerista” da história com base na política da
memória. Como vimos acima, se no primeiro ciclo de justiça transicional deu-se ênfase nos discursos
testemunhais em terceira pessoa para constatar os fatos da repressão e provar a sistematicidade de
excessos permanentes de violência estatal, no segundo ciclo, depois de mais de vinte anos de terminada
a ditadura, a repetição e reelaboração do discurso de vítimas e testemunhas deslocou a ênfase da
terceira para a primeira pessoa. Esta “primeira pessoa” já não precisa esconder ou omitir seu
pertencimento político, já que a “teoria dos dois demônios” ficou claramente refutada, pelo menos por
parte da justiça e boa pate da opinião pública. A esse giro “testemunhal” deve somar-se a ampliação do
conceito de tortura, como exposto acima, e a responsabilidade dos relatos que passaram a ser a prova
primordial, juntamente com uma série de documentos e investigações. Dito isto, o que Sarlo pretende é
uma “desmitificação” do discurso testemunhal. Essa preminência da primeira pessoa é chamada por
Sarlo de “retórica testemunhal”, e se baseia em sua interpretação particular de Walter Benjamin que diz
que “o presente da enunciação é o tempo base do discurso”, o que “implica ao narrador em sua história
e a inscreve em uma retórica da persuasão” (Sarlo 2005, p. 64). Para Sarlo, isso rompe a cristalização
inabordável (encantada moralmente) dos discursos testemunhais: são discursos.
Essas narrações testemunhais (militantes, intelectuais, políticas etc.) não seriam, segundo Sarlo,
a única fonte de conhecimento: “só uma fetichização da verdade testemunhal poderia outorgar-lhes um
peso superior ao de outros documentos. [...] Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e na
lembrança do vivido pretenderia estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal” (ibid, p. 62). Essa
ingenuidade consiste em como essa ordem discursiva, especificamente testemunhal e, claro, em
primeira pessoa, se move “pelo impulso de fechar os sentidos que se escapam; não só se articulam
contra o esquecimento, mas também lutam por um significado que unifique a interpretação” (ibid, p. 67).
Essa acumulação de detalhes dada através da multiplicidade de “eus testemunhas” tende a unificar o
sentido da história em questão. Essa unificação, que de certa forma não deixa de ser uma consciência
histórica ao estilo de um Sartre, é denominada por Sarlo “modo realista-romântico”. Este “modo”
encontra sua veracidade no sentido colectivo de sua enunciação. Nessa retórica da memória, o que
mostra Sarlo é que o detalhe individual tende a reforçar o “relato teleológico”: “se a história tem um
objetivo estabelecido de antemão, os detalhes se acomodam a essa direção” (ibid, p. 74).
Sarlo não está disposta a concordar com Benjamin em relação a seu messianismo. Benjamin, ao
negar certa vertente positivista e relativa da ciência histórica, se inclinaria por uma história que liberasse
“o passado de sua reificação, redimindo-o em um ato presente de memória”, que primaria por certo tipo
de continuidade (ibid, p. 78). Para Sarlo, esse errôneo messianismo é apenas um duplo anacronismo:
por um lado, haveria uma dimensão ética e, por outro, haveria uma clara contraposição ao fetichismo
documental do positivismo histórico: “olhar o passado com os olhos daqueles que o viveram, para poder
captar ali o sofrimento e as ruínas” (ibid, p. 78). Quer dizer: em vez de “fortalecer o anacronismo”, o
argumento de Benjamin, antes, buscaria dissolvê-lo (ibid, p. 79). Assim, para Sarlo, “a história não pode
simplesmente cultivar o anacronismo por livre opção, porque se trata de uma contingência que a golpeia
sem interrupções e está mantida por um processo de enunciação que, como se viu, é sempre presente”
(ibid, p. 79). É neste sentido que Sarlo se questiona a respeito de como pensavam os militantes em
1970. Seria necessário evitar se limitar somente à lembrança “que eles têm agora de como eram e como
atuavam”, já que se abandonaria a “pretensão reificante da subjetividade” que quer “expulsar a
subjetividade da história” (ibid, p. 83). Isso quer dizer, para Sarlo, que a “verdade” não é o resultado de
se submeter “a uma perspectiva memorialística que tem limites e nem, muito menos, a suas operações
táticas” (idem). Quem recorda hoje em dia de modo algum está retirado “da luta política contemporânea.
[...] As memórias se colocam deliberadamente no cenário dos conflitos atuais e pretendem atuar nele”
(idem). Através de uma crítica ao continuísmo messiânico Benjamin, portanto, Sarlo quer limitar o tipo de
continuidade que está em jogo no que ela chama de “retórica memorialística”: é uma construção
teleológica da história que só pode ser entendida analisando o presente dada sua natureza
exclusivamente discursiva. Ao rechaçar o messianismo benjaminiano que busca uma empatia com os
oprimidos, Sarlo adverte sobre os perigos da vitimização de certo uso intencionado presente no discurso
histórico. O exemplo que culmina esse raciocínio seria: “a ideia de direitos humanos não existia nas
décadas de 1960 e 1970 dentro dos movimentos revolucionários. E se é impossível (e indesejável)

432
extirpá-la do presente, tampouco é possível projetá-la ao passado” (ibid, p. 82). Este argumento era
muito usado na defesa militar em 1985 quando afirmava que os “subversivos” trocaram a luta armada
pelos direitos humanos para se vingar dos militares. Vezzetti (2002) e Crenzel (2008) observaram bem
esse giro na opinião pública: de uma ênfase na confrontação durante os anos de chumbo a uma
formação do discurso humanitário já a partir dos últimos anos do regime. Sem dúvida os processos
devem ser vistos pela justiça atual e devem desidealizar o passado para investigar crimes; contudo,
defender que a “retórica testemunhal” quer reviver ou “continuar” o passado é idealizar o presente.
A argumentação de Sarlo, sem dúvida muito mais elaborada que a de seus colegas de jornal
Alejandro Katz e Emilio Cárdenas, não seria tão insuficiente se ignorássemos o fato de que o debate
sobre a memória não é só histórico-filosófico, senão também jurídico e político. Sarlo parece
desconhecer as vantagens e contribuições da justiça transicional no marco do direito internacional à
própria história sobre o tempo sombrio da ditadura. E para isso ela desenvolve uma crítica da ideologia
do testemunho, elemento central dos julgamentos atuais. No entanto, ao tentar revelar o “caráter político”
das políticas da memória atual como contingência a ser superada, Sarlo parece querer hipostasiar certo
caráter literal da memória, só que restringindo esta, por um lado, a um plano exclusivamente discursivo
cujo pressuposto é uma idealização por parte de Sarlo em relação à realidade política da Argentina onde
a reconciliação pareceria ser total, mas onde o governo parece querer fazer um uso forçado dessa
memória para obter benefícios políticos e, por outro, esse mesmo governo encarnaria uma clara
continuação com o projeto político do passado. Referindo-se à geração política dos anos 1970, Sarlo
sugere que uma pós-memória, ou seja, uma memória da memória (ou vicaria) seria uma “correção
decidida da memória” (ibid, p. 145) para evitar que o mal nunca se repita, e não a tentativa de uma
“trabalhosa reconstrução” através da política. Portanto, Sarlo sugere uma continuidade clara entre a
política memorial atual, que inclui a justiça transicional, e a geração vítima do terrorismo estatal. Mas, se
a memória é dependente do presente, como ela pode constituir um projeto do passado? Para Sarlo, o
governo atual usa o passado em favor de fundamentar um discurso político para o qual a retórica
testemunhal dos direitos humanos é essencial, o que a meu ver remete a um maniqueísmo rudimentar. É
evidente que Sarlo se opõe ao governo e busca modos sofisticados de exercer sua posição e opinião
políticas, o que é legítimo. Mas considerar que há um duplo “uso da memória” (uma dupla literalidade),
principalmente considerando as posições da oposição em relação à justiça transicional que pregam a
total cancelação desse processo, desalenta o leitor que busca na memória política um modo de
exemplaridade, como Todorov.
Em vez de procurar na construção de um suposto “metarrelato” da história por parte do governo
atual uma “metaintencionalidade política”, como quer problematizar Sarlo, a meu ver a pergunta deveria
ser: “existe um modo para distinguir de antemão os bons e os maus usos do passado” (Todorov 2000, p.
29), tendo em vista a inevitável contingência da seleção de fatos da memória? Como sugere Todorov
(ibid, p. 31), o acontecimento recuperado pela memória pode ser lido de duas formas: a literal ou a
exemplar. Como modo de continuidade, a memória literal é limitada já que situa os fatos relembrados
como contíguos ao presente, onde é essencial conhecer as causas e as consequências desse
acontecimento. A literalidade não significa necessariamente a verdadeira revelação dos fatos, já que
estes podem permanecer intransitivos, não conduzindo para além de si mesmos (Todorov 2002, p. 30).
Por sua vez, a memória exemplar não dispensa a singularidade de determinado fato recuperado, já que,
como uma manifestação entre outras de uma categoria mais geral, serve de modelo para compreender
situações novas, permitindo ressalvas críticas situadas. Para Todorov, a memória literal, se levada
adiante de modo extremo, pode ser perigosa, devido a que os fatos rememorados são incomparáveis
entre si, enquanto que a memória exemplar é potencialmente liberadora (ibid, p. 31). O uso literal que
torna um velho acontecimento insuperável deriva numa submissão do presente ao passado, enquanto
que “o uso exemplar, ao contrário, permite utilizar o passado com vistas ao presente, aproveitando as
lições das injustiças para lutar contra as que se produzem hoje em dia” (Todorov 2002, p. 32). Todorov
considera que a justiça nasce da generalização de uma acusação particular, mas que é amplificada pela
exemplaridade do fato e suas consequências: “é a des-individualização o que permite o advento da lei”
(ibid. p. 33).
Pensando em comparações que servem de apoio a justificações em contextos de contingência
da memória política, Huyssen retoma de Paul Ricoeur (2004) as categorias de memória manipulada e
esquecimento comandado. Huyssen (2004) sugere uma comparação pontual entre a Argentina pós-
ditadura e a Alemanha do pós-guerra. Tendo como referência do caso argentino somente o primeiro ciclo
de justiça transicional (principalmente Vezzetti 2002), Huyssen destaca o papel do Estado argentino na
formação da memória pública (memória manipulada, na interpretação de Huyssen), mesmo que tenha
sido às custas de uma memória mais elaborada e com consequências judiciais em relação ao terrorismo
insurgente (esquecimento comandado, ou seja, referindo-se a omissão de pertencimento político das
vítimas e testemunhas no julgamento à junta militar). Sem dúvida, é possível discutir à exaustão com
Huyssen esta simplificação esquemática que, como mostramos acima, é mais complexa. Contudo,

433
embora considerando que o Holocausto se mantenha por si só como “marco zero em muitos estudos
sobre os traumas contemporâneos”, objetivo de Huyssen é discutir um episódio da história alemã que
parecia ter ficado na mais escura penumbra do esquecimento: os bombardeios aliados sobre 131
cidades alemãs no final da Segunda Guerra, com um saldo de 600.000 civis mortos e 3,5 milhões de
moradias destruídas.
Durante muito tempo, falar da guerra aérea parecia querer relativizar os crimes do Holocausto.
Se nos anos 1950 a direita alemã falava sobre o bombardeio de Dresden e da expulsão e deportação do
leste de volta à Alemanha, onde morreram milhares de alemães refugiados depois da guerra, a esquerda
falava de Auschwitz e do genocídio administrado. Como lembra Huyssen, os argumentos da esquerda
eram politicamente legítimos. A vitimização da Alemanha, vinculada a um discurso nacionalista
duradouro, era fundamentalmente reacionária e devia ser combatida para que o país chegasse a um
novo consenso em relação ao passado alemão. Desta vez, o preço político a pagar por essa vitória
discursiva foi o esquecimento da guerra aérea, o esquecimento de uma experiência traumática nacional
(ver Huyssen 2004, p. 12). No entanto, na última década, no contexto do repúdio da comunidade
internacional ao bombardeio norte-americano sobre o Iraque, o assunto da Luftkrieg (guerra aérea)
ganhou uma notoriedade pública, tanto através da literatura quanto dos meios de comunicação. Assim,
em termos de memória política, se no primeiro ciclo de justiça transicional argentino preferiu-se silenciar
o pertencimento político das vítimas da ditadura, na Alemanha do pós-guerra, os crimes contra a
população civil pareciam “justificados” pela política genocida nazista. Mas hoje, diante de uma
inquestionável sedimentação desde diversas áreas do conhecimento e tendências políticas sobre o
Holocausto, deixou de ser um incômodo tabu resgatar e elaborar a experiência de horror dos
bombardeios.
O amadurecimento geral tanto da sociedade civil quanto do poder judiciário também puderam
revelar, no segundo ciclo argentino, que as “justificações” que articulavam o primeiro ciclo poderiam ser
deixadas de lado, já que já não há uma ameaça latente de retorno da ditadura, como em 1985, e a
verdade mais abrangente e detalhada passa a ser de interesse geral e da justiça, dado que esta se
baseia em critérios universais e internacionais amplamente reconhecidos. A própria violência insurgente
dos anos 1970, que nunca deixou de ser considerada como tendo um caráter criminal, embora não
sejam crimes de lesa humanidade, vem sendo abordada em diversos estudos e filmes. Alguns exemplos
são o filme documentário de David Blaustein, Caçadores de utopias (2004), sobre os Montoneros, e os
livros Soldados de Perón. Uma história crítica sobre os Montoneros, de Richasd Gillespie (2008), Sobre
a violência revolucionária, de Hugo Vezzetti (2009), e Um inimigo para a nação, de Marina Franco
(2012), entre outros. Estes trabalhos revelam uma outra dimensão do imaginário daqueles anos que
nada têm a ver com a pretendida continuidade sugerida por Sarlo e Katz.
A partir do exemplo de Huyssen é possível afirmar que a comparação ilumina o entendimento do
caso alemão e de certa forma também o caso argentino, especialmente se observamos as
transformações do primeiro ciclo em relação ao segundo. No entanto, comparar pode revelar aspectos
de um negacionismo, especialmente aquele indicado acima: o negacionismo subterrâneo. É o caso da
politóloga argentina Claudia Hilb (2010). Autodenominada como pertencente à “geração dos 70”, mas
com todos seus estudos feitos na França, Hilb sugere, a partir de uma comparação com o processo de
transição da África do Sul, uma nova forma de política da memória que não seja “tão” voltada para a
justiça, embora ela reconheça claramente as vantagens de que haja devido julgamento, especialmente
em relação a crimes contra a humanidade. Sua tese se apoia numa articulação entre as noções de
perdão e reconciliação de Hannah Arendt. Segundo sua leitura, se o banal funcionário do mal, pensando
em Eichmann, não é passível de ser perdoado, é porque não pode propriamente ser considerado um
ator, já que demonstrou ser incapaz de se insertar no mundo comum através da ação livre. Somente
aqueles que “não sabem o que fazem” devido a que as consequências de seus atos excedem sua
capacidade de controlá-los e, assim, poderíamos acreditar que diante das consequências de seus atos,
queiram poder desfazê-las, só esses é que são suscetíveis de ser perdoados (Hilb 2010, p. 9). A
reconciliação tende a ser indissociável da compreensão. Somos capazes de nos reconciliar com o
mundo desde que o compreendamos. “Compreender é se reconciliar em ato”, diz Arendt (1953, Diário
Filosófico, apud Hilb 2010, p. 4). No entanto, compreender não é necessariamente perdoar, e perdoar
não tem porquê ser o oposto à reconciliação. Assim, explica Hilb, o perdão “é essa capacidade humana,
essa ação aparentemente impossível, ao alcance daqueles que compreendem e, compreendendo,
podem se reconciliar com o mundo e, então, eventualmente perdoar” (ibid, p. 4).
Como já mencionado, a intenção de Hilb é esboçar uma comparação entre o já conhecido caso
argentino e o caso sul-africano, a saber, os crimes atrozes do apartheid que tiveram ampla impunidade e
a formação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, em 1995. Se pensarmos nos três conceitos
fundamentais – memória, verdade e justiça – que perpassam a problemática da memória das justiças
transicionais, em ambos casos, segundo Hilb, verdade e justiça se excluem mutuamente. Na África do
Sul, a Comissão da Verdade e Reconciliação ficou responsável por recolher os relatos tanto de vítimas

434
quanto de vitimários. As vítimas de abusos, conta Hilb, que assim o demandassem, seriam ouvidas e
poderiam obter reparação. Aqueles perpetradores que voluntariamente solicitassem dentro de um prazo
estabelecido expor seus crimes à Comissão “seriam anistiados em caso de proceder à ‘plena exposição’
de seus crimes, desde que pudessem demonstrar que estes crimes estavam vinculados a algum objetivo
político” (Hilb 2010, p. 12). O que surpreendeu Hilb foi que “os principais interessados em falar a verdade
eram os próprios criminais” (idem). A anistia contemplava todas as graves violações de direitos humanos
desde 1960 até maio de 1994. “Durante 1888 dias e em 267 lugares diferentes, com cobertura mediática
permanente, a população sul-africana pôde conhecer, na voz e nas múltiplas línguas de vítimas e
vitimários, as histórias mais terríveis sob seus olhos” (idem). Seguindo sua leitura de Arendt, a
interpretação desse caso proposta por Hilb é que se instala com isso “uma economia do perdão”: os
vitimários tiveram de se expor em detalhes para ser anistiados. “Nem o mero arrependimento nem o
perdão [privado] foram condição para a anistia” (idem), senão o ato de reconhecer publicamente os
crimes.
Voltando à Argentina, Hilb cita o famoso caso do capitão Adolfo Scilingo que, depois de declara
na justiça, havia sido entrevistado por sua própria vontade pelo jornalista do diário Página 12, Horacio
Verbinsky, onde revelou que muitos dos presos políticos desapareciam jogados sedados ao mar durante
os famosos “voos da morte” (ver Verbinsky 1995). Uma vez na Espanha para declarar voluntariamente
diante do juiz Baltazar Garzón, foi detido e condenado a 640 anos de prisão por crimes de lesa
humanidade. Segundo Hilb, isso teria inibido por razões óbvias outros perpetradores a falar. Assim, na
Argentina, a ação da justiça teria provocado uma inibição na revelação da verdade já que os vitimários
se sentiram intimidados e não se apresentaram voluntariamente, deixando, claro, de contar detalhes
sobre as crianças nascidas nas prisões clandestinas que foram roubadas ou sobre o paradeiro dos
desaparecidos. Contudo, como vimos acima, Scilingo foi muito mais perseguido pelos militares que se
sentiam ameaçados chegando a ser preso através de uma causa inventada restando-lhe como último
recurso, depois de ter sua pensão cancelada e de ser ameaçado permanentemente, migrar à Espanha,
onde foi julgado e condenado pelos crimes vinculados ao terrorismo de estado. O governo do ex-
presidente Menem não o protegeu como testemunha e nem estimulou outros arrependidos a falar. A
justiça nesse momento lhes garantia plena impunidade se outros quisessem ter falado ou inclusive
publicado o que sabiam. Não é possível encontrar semelhanças válidas com o caso sul-africano: tanto o
trabalho da Conadep quanto dos “juízos pela verdade” podem ser considerados como “comissões da
verdade”, mas sem a versão dos perpetradores que preferiram omitir seu relato. Em ambas havia de fato
a intensão de encontrar a verdade dos fatos com clara esperança, contudo, de que houvesse justiça. No
caso sul-africano a justiça estava praticamente descartada de antemão, e o objetivo da comissão era
ritualizar publicamente o ato do perdão diante do relato do crime.
Na África do Sul, graças à ação da Comissão, explica Hilb, foi possível o começo da “nova
comunidade multiracial”, reconciliada. Infelizmente Hilb parece ter ignorado livros, relatos e artigos como
o de Fiona Ross (2006) sobre o silêncio irremediável das inúmeras vítimas de estupro e HIV-positivo,
mulheres que além de submetidas a violências físicas brutais e morais, se viam obrigadas
corajosamente a manter o silêncio “pelo bem e interesse da comunidade”. Para Ross, a Comissão de
Verdade e Reconciliação estava muito mais preocupada em individualizar seus 22.000 casos em vez de
rever, processar e julgar os crimes do Apartheid. O que Hilb chama “economia do perdão”, para Ross
seria uma “economia do negacionismo”. É muito ingênuo pensar que “a verdade” dos fatos, como quer
Hilb, seria contada sem esbarrar no negacionismo possibilitado tanto pela garantia de impunidade, por
um lado, quanto pelo terror das vítimas. Se considerarmos, seguindo Todorov, que o próprio ato de
rememorar é seletivo, quê economia linguística estaria em jogo nesses relatos que não poderiam
questionar a lógica profunda das atrocidades, dados os evidentes continuísmos presentes e persistentes
no estado racista? As “verdades” a que se refere Hilb só podem servir num processo de reconciliação
onde a opção pela justiça penal é impossível. A literalidade dos relatos acabam gerando uma
“exemplaridade” parcial e inclusive negativa, dado que a ordem social ainda privilegia a injustiça, seja
socioeconômica ou jurídica.
O uso da verdade sem justiça pode inclusive ser considerado pior que o público conhecimento
dos fatos porque não só garante a impunidade, mas também transforma a situação numa “nova ofensa
para a vítima” (Varsky 2011, p. 74). Para Carolina Varsky, o procedimento africano é totalmente imoral, já
que consiste numa troca da verdade pela impunidade (idem). Outro texto que mostra a quase ineficiência
das comissões de verdade e reconciliação é o artigo de Bosire (2006). A autora discute, em perspectiva
comparada com os países da África Subsaariana, tanto o fraco efeito reconciliador das comissões da
verdade quanto o fracasso da intervenção de qualquer tentativa de implementar uma política de direitos
humanos, o que garante uma total predominância de impunidade. Um dos motivos desse fracasso, além
da grande desigualdade socioeconômica, se deve à continuidade dos perpetradores, na maioria dos
casos, em posições de poder, seja em estados com democracias frágeis quanto em grandes empresas
com vínculos estruturais com o estado.

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Nesse sentido, o filósofo argentino Diego Tatián, em resposta à Claudia Hilb, procura refazer a
pergunta que orienta a argumentação da politóloga: “como fundar uma comunidade depois do crime?”.
Para Tatián (2012, p. 3), essa pergunta, considerando as evidentes diferenças entre os casos argentino e
sul-africano, deveria ser:

Quais ações jurídicas, políticas e narrativas é necessário que a sociedade argentina leve
adiante para compensar os efeitos do Terror que danificam – de modo irreversivelmente
profundo – os corpos, os vínculos e a própria vida de muitos de seus membros, tendo
em conta uma história específica de impunidades, de modo a criar as condições de
possibilidade de uma democracia mais extensa e mais intensa, ininterrompida no futuro,
ou seja, para impedir tanto como for possível o ressurgimento do Terror exercido desde
o Estado?

Para Tatián o processo judicial de modo algum obstrui a verdade, nem a compreensão e nem o
arrependimento. Tampouco o caminho da justiça impede que tanto repressores quanto guerrilheiros
possam rever sua própria ação; muito menos pode responsabilizar-se a justiça pelo fato de não se
conhecer o destino das vítimas desaparecidas. Se conhecer a verdade sem a devida ação da justiça
fosse uma solução realmente eficiente para criar uma comunidade, então, por que não adotar essa
estratégia política (a “economia do perdão”) para lidar com crimes comuns? E como teria reagido
Hannah Arendt ou a corte israelense que o condenou a morrer enforcado se Eichmann tivesse mostrado
arrependimento verdadeiro pelos crimes que cometeu no nazismo? Se existissem atos imperdoáveis,
seus perpetradores só poderiam obter perdão numa dimensão ética ou religiosa, mas não jurídica. Para
Tatián, o que diferencia a impunidade da anistia é a externalidade do perdão jurídico: se for uma vontade
daquele que porta o prejuízo será anistia, se for somente uma imposição do estado, será impunidade.

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