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Direito Público
Revista Oficial do Programa de Mestrado em Direito Constitucional da
Escola de Direito de Brasília – Instituto Brasiliense de Direito Público
Diretores
Elton José Donato – Dalide Correa
Editor‑Chefe
Paulo Gustavo Gonet Branco (IDP/DF)
Editora‑Adjunta
Ana Carolina Figueiró Longo (IDP/DF)
Conselho Editorial
Aline Sueli de Salles Santos (UFTO), Alvaro Ricardo de Souza Cruz (PUC-MG), Alvaro Sanchez Bravo (Univ. de Sevilha), Ana Paula
Barcelos (UERJ), Augusto Aguilar Calohrro (Univ. de Granada-ES), Daniel Antonio de Moraes Sarmento (UERJ), Fernando Araújo (Univ.
de Lisboa-PT), Francisco Balaguer Callejón (Univ. de Granada-ES), Francisco Fernandez Segado (Universidad Complutense de Madrid),
Gilmar Ferreira Mendes (IDP), Gustavo José Mendes Tepedino (UFRJ) Ingo Wolfgang Sarlet (PUCRS), Joaquim Brage Camazano
(Universidade Européia de Madrid), Jorge Octávio Lavocat Galvão (USP), Julia Maurmann Ximenes (IDP-DF), Lauro Gama Jr. (PUC-RJ),
Luciano Mariz Maia (UFPB), Marinella Araujo (PUC-MG), Pierdomenico Logroscino (Università degli Studi di Bari), Valerio de Oliveira Mazzuoli
(UFMT), Vladmir Oliveira da Silveira (PUC-SP)
ISSN: 1806‑8200
1. Direito público
CDU 342
CDD 341
Boa leitura!
Assunto Especial
Âmbito de Proteção do Direito Indígena
Doutrinas
1. O Direito de Consulta aos Povos Indígenas à Luz da Teoria Geral
dos Direitos Fundamentais
Julianne Holder da Câmara Silva Feijó........................................................9
2. Pluralismo Jurídico e Integração: Ordens Indígenas na América Latina
e Neoconstitucionalismo
Mateus de Oliveira Fornasier e Thiago dos Santos da Silva.......................33
Jurisprudência
1. Acórdão na Íntegra (STF)...........................................................................60
2. Ementário..................................................................................................71
Parte Geral
Doutrinas
1. O Ativismo Judicial Contemporâneo no Supremo Tribunal Federal e
nas Cortes Estrangeiras
Carlos Alexandre de Azevedo Campos......................................................78
2. A Garantia da Ordem Pública Como Fundamento da Prisão Preventiva
Bruno Cunha Weyne...............................................................................104
Jurisprudência
Acórdãos na Íntegra
1. Tribunal Regional Federal da 1ª Região...................................................133
2. Tribunal Regional Federal da 2ª Região...................................................140
3. Tribunal Regional Federal da 3ª Região...................................................144
4. Tribunal Regional Federal da 4ª Região...................................................153
5. Tribunal Regional Federal da 5ª Região...................................................159
Ementário
1. Administrativo.........................................................................................163
2. Ambiental...............................................................................................166
3. Constitucional.........................................................................................173
4. Penal/Processo Penal..............................................................................176
5. Processo Civil e Civil...............................................................................183
6. Trabalhista/Previdenciário.......................................................................186
7. Tributário................................................................................................192
Seção Especial
Doutrina Estrangeira
1. Notes for an Economy of Moral Disagreements in Unequal Societies
Jairo Neia Lima e Fernando de Brito Alves..............................................199
Clipping Jurídico...............................................................................................235
Resenha Legislativa...........................................................................................240
Índice Alfabético e Remissivo..............................................................................244
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A Direito Público é uma publicação conjunta da Escola de Direito do IDP
e a IOB, e é a revista oficial do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da
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pelo corpo discente do Instituto. O programa de Mestrado do IDP e a linha edi-
torial da revista contemplam as seguintes linhas de pesquisa: a) Constituição:
Articulações e Relações Constitucionais; e b) Direitos Fundamentais e Processos
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mica, estudos analíticos e resenhas na área do Direito Público, consignando-se
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Assunto Especial – Doutrina
Âmbito de Proteção do Direito Indígena
Submissão: 20.07.2015
Decisão Editorial: 27.08.2015
Comunicação ao Autor: 27.08.2015
RESUMO: A Constituição brasileira de 1988, estendendo o seu manto protetor sobre as minorias
étnicas nacionais, reconheceu a sua importância para a formação da identidade do povo brasilei‑
ro, dedicando capítulo exclusivo à proteção dos indígenas, revelando a intenção do constituinte de
garantir a sua reprodução física e cultural, abandonando o fantasma da integração. Para tanto, a
Constituição previu alguns direitos instrumentais, tais como direitos territoriais, usufruto exclusivo
dos recursos naturais e o direito de consulta quando determinados empreendimentos econômicos
pretendam se instalar em terras indígenas. O direito de consulta surge, assim, como um direito
fundamental das comunidades índias por atrelar-se a sua reprodução física e cultural, inarredável da
materialização da dignidade indígena. Nesse contexto, o presente ensaio se debruçará sobre o direito
de consulta aos povos indígenas, analisando-o à luz da teoria geral dos direitos fundamentais, que
revela um direito misto, encerrando características de verdadeiro direito de participação, ao mesmo
tempo em que exige uma prestação por parte do Estado brasileiro, que, apesar de se manter incons‑
titucionalmente inerte nesses quase trinta anos de Constituição, apresenta regulação específica a
partir do momento em que incorporou ao ordenamento jurídico nacional, com status de lei ordinária,
documentos internacionais dedicados à regulação do processo consultivo. O descumprimento siste‑
mático dessas normas, além de ferir o direito subjetivo das populações indígenas, ainda desprestigia
e desacredita o País em suas relações internacionais, em uma verdadeira vergonha nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Povos indígenas; direito de consulta; teoria geral dos direitos fundamentais.
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ABSTRACT: The Brazilian Constitution of 1988, extending its protective mantle on national ethnic
minorities, recognized its importance for the formation of the identity of the Brazilian people, dedi‑
cating entire chapter to the protection of indigenous, revealing the intention of the constituent to
ensure their physical and cultural reproduction, abandoning the integration of the ghost. Therefore the
Constitution foresaw some instrumental rights, such as land rights, exclusive use of natural resources
and the right to consultation when certain economic enterprises wishing to settle on Indian lands.
The consultation of law arises, as well as a fundamental right of Indian communities by tying up their
physical and cultural reproduction, unwavering materialization of indigenous dignity. In this context,
this paper will look at the right of consultation of indigenous peoples, analyzing it in the light of the
general theory of fundamental rights, which reveals a mixed right, ending features of genuine right of
participation, while requiring a provision by the Brazilian State, although remaining inert unconstitu‑
tionally these nearly thirty years of Constitution has specific regulation from the moment he entered
the national legal system, with status of ordinary law, international documents devoted to regulation
of the consultative process. The systematic breach of these standards and injured subjective right
of indigenous peoples also discredits and discredits the country in its international relations, in a real
national disgrace.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Os direitos culturais na perspectiva da teoria geral dos direitos fundamen‑
tais; 2 O direito de consulta aos povos indígenas; 2.1 A consulta como um direito fundamental à
prestação; 2.2 A consulta como um direito fundamental de participação; 2.3 O direito de consulta na
Convenção nº 169 da OIT; Conclusões; Referências.
INTRODUÇÃO
Desde a década de 70 debate-se a viabilidade da construção do comple-
xo hidrelétrico de Belo Monte, no Rio Xingu, Estado do Pará, e a causa ganhou
notoriedade internacional em 1989, quando lideranças indígenas se reuniram
no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira, no Pará, para pro-
testar contra o empreendimento. Os indígenas temiam que se repetisse em Belo
Monte o mesmo quadro social e ambiental desastroso evidenciado na constru-
ção das hidrelétricas de Tapajós, Tucuruí e Balbina, empreendimentos realiza-
dos à total revelia das comunidades índias afetadas.
Em 2008, no mesmo local, fora realizado o II Encontro dos Povos In-
dígenas do Xingu, com os mesmos propósitos. Nesse meio tempo, lideranças
indígenas denunciaram no cenário internacional o descaso com que o Estado
brasileiro vem tratando a questão indígena no País, fazendo letra morta dos dis-
positivos constitucionais destinados à proteção da reprodução física e cultural
das minorias nacionais.
A mídia alardeia diuturnamente noticias quanto à problemática de Belo
Monte, revelando que copiosamente os interesses sociais e ambientais de mino-
rias nacionais, teoricamente protegidas, em um Estado teoricamente democrá-
RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 9-33, jul-ago 2016
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tico, sucumbem à força esmagadora dos interesses econômicos, tudo avalizado
pelo Estado brasileiro, pela Suprema Corte do País e pelo órgão indigenista,
que, oficialmente, deveria zelar pelos interesses dos índios, mas age de encon-
tro às suas reivindicações e aos seus clamores.
Todos os conflitos em torno da hidrelétrica de Belo Monte gravitam em
torno da não observância de direitos constitucionalmente assegurados aos in-
dígenas, principalmente quanto ao direito de consulta às comunidades impac-
tadas, um direito que visa a promover a dignidade dos povos indígenas e a
concretização do princípio democrático.
Nesse contexto, o presente ensaio visa a demonstrar, à luz da teoria geral
dos direitos fundamentais, a relevância do direito de consulta para as comuni-
dades indígenas, revelando a sua aptidão para materializar a dignidade humana
em seu favor, possibilitando a participação dos mesmos nos processos decisó-
rios que possam lhes afetar, consubstanciando verdadeiro direito fundamental
dos índios, ainda que não inscrito no art. 5º da Constituição.
Demonstraremos o caráter misto do direito de consulta, que, além de
consubstanciar verdadeiro direito fundamental à participação, realizador do
princípio democrático e da cidadania indígena, representa, ainda, um direito
fundamental à prestação, tanto jurídica quanto material, exigível do Estado bra-
sileiro como um direito subjetivo das comunidades indígenas que devem ver o
seu direito satisfeito, nem que seja pela via judicial.
Por fim, encerraremos com uma análise detalhada do procedimento
consultivo regulado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do
Trabalho, incorporada ao nosso ordenamento jurídico com o status de lei ordi-
nária, devendo ser observado pelo Estado brasileiro a fim de que se mantenha
dentro da constitucionalidade e em cumprimento de suas obrigações assumidas
na ordem internacional perante as demais Nações soberanas.
1 SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 39.
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como um direito fundamental, indispensável à realização da personalidade do
ser humano em um contexto de pluralidade social.
No segundo pós-guerra, de maneira incipiente, mas já com a caracte-
rística da universalidade, os direitos culturais ganham espaço na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 19482, como direitos
necessários à realização do bem-estar do ser humano. Posteriormente, em 19 de
dezembro de 1966, ampliando o elenco de proteção aos direitos culturais pre-
vistos na Declaração Universal fora firmado o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais3, revestido da roupagem de tratado internacio-
nal, contendo preceitos jurídicos vinculantes para os seus signatários4.
Em 10 de dezembro de 2008, fora aprovado um importante instrumento
de fiscalização e controle do cumprimento dos preceitos constantes no referi-
do pacto: O Protocolo facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Econômi-
cos, Sociais e Culturais, consolidando a capacidade processual dos indivíduos
na esfera internacional, que poderão peticionar junto ao Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU)
quando violados os seus direitos constantes no Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Podendo, inclusive, o Comitê requisitar5 ao
Estado-parte a adoção de medidas urgentes, a fim de evitar violações irrepará-
veis desses direitos6.
No Brasil, o momento histórico de fundamentalização dos direitos cul-
turais remonta à redemocratização do País, no final da década de 80, quando
as minorias ganharam visibilidade política e social, revelando a diversidade
cultural formadora da identidade do povo brasileiro, uma diversidade dupla-
mente merecedora de proteção, tanto por corresponder às origens da formação
cultural do País como por representar o direito de diversas minorias nacionais
em se reproduzir culturalmente, mantendo as suas origens e tradições, livre de
qualquer imposição forçada de um paradigma cultural monista.
2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos fora provada a unanimidade por 48 Nações, sem ressalvas,
e oito abstenções (Bielo-Rússia, a então Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, a então URSS,
África do Sul e Iuguslávia).
3 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991, e definitivamente incorporado ao
nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992.
4 PIOVERSAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva,
2010. p. 178.
5 Idem, p. 189.
6 Outro instrumento internacional apto a ser manejado pelas populações indígenas em face da inobservância
de seus direitos culturais por parte do Estado brasileiro seria demandar junto à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, com competência, inclusive, para levar a causa ao julgamento perante à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, conforme a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de
São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992,
definitivamente incorporado ao nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro
de 1992.
RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 9-32, jul-ago 2016
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Ampliando os horizontes de proteção à cultura, a Constituição Federal
(CF) de 1988 optou por conferir especial tratamento a grupos culturais espe-
cíficos, especiais, que historicamente contribuíram, e ainda contribuem, com
a sua riqueza cultural para a formação da identidade do povo brasileiro, tais
como indígenas e quilombolas7. Ainda concedeu reconhecimento e proteção
as manifestações dos diversos grupos participantes do processo civilizatório na-
cional, o que incluiria a cultura erudita e imigrante (italiana, japonesa, alemã,
entre outras)8.
Saliente-se que a cultura consiste em uma atitude humana que impregna
de valores um objeto natural (bens da natureza, que existem por si só) ou social
(comportamentos, atividades, produtos e interesses característicos de um povo),
em uma verdadeira transformação da realidade9. Só o homem cria cultura, que
é algo construído (atribuição de valores a objetos naturais e sociais). Antropolo-
gicamente, todos os artefatos e criações da obra humana são cultura, mas nem
toda essa expressão cultural está abarcada pela proteção constitucional10.
A Constituição ampara a cultura no sentido de referência à identidade, à
ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira11.
De fato, afora o capítulo reservado à cultura, a Constituição Federal de 1988
ainda dedicou um capítulo exclusivo para tratar da questão indígena12, bem
como assegurou direitos territoriais às comunidades quilombolas13, tombando
todos os seus sítios e documentos históricos (art. 216, § 5º), revelando a impor-
tância que o constituinte atribuiu à participação desses grupos na formação da
matriz cultural brasileira.
Ao reservar um capítulo dedicado aos povos indígenas, a Constituição
Federal de 1988 pretendia mais do que regular a situação dos índios no Brasil,
objetivava dar proteção aos seus interesses e assegurar direitos essenciais à re-
produção física e cultural dessas comunidades, reconhecendo que vivem um
estilo de vida tradicional, com cultura, línguas, tradições e religiosidade que
lhes são peculiares, diversos da sociedade envolvente e que por ela deveriam
ser respeitados e protegidos contra qualquer forma de dominação ou imposição.
A Constituição brasileira rompe com a tradição histórica de compreender
o ser indígena como uma situação transitória, fadada à incorporação ao estilo
7 Ainda reconheceu a importância de proteger a cultura popular brasileira, que, no dizer de José Afonso, trata-se
das manifestações culturais das diversas camadas do povo, não apresentando, pois, uniformidade (Op. cit.,
p. 76).
8 SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2001, p. 85.
9 Idem, p. 32.
10 Idem, p. 34-35.
11 Idem, p. 114.
12 Capítulo VIII, inserido no Título VIII – “Da Ordem Social”, arts. 231 e 232.
13 Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
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de vida “dominante”, transformando-o em autêntico cidadão brasileiro, perden-
do, com isso, o seu status de indígena e todos os direitos correlatos. Abandonan-
do o paradigma de assimilação, ao reconhecer as tradições culturais indígenas
como um direito e um dever de proteção do Estado, a Constituição Federal asse-
gurou ao índio o direito a continuar sendo índio, sem o fantasma da aculturação
forçada que pairou no ordenamento jurídico pátrio desde a época colonial14.
O Brasil é uma nação por demais cosmopolita, formada, ao longo de sua
evolução histórica, por uma diversidade cultural imensurável. Diversos foram
os povos indígenas, africanos e europeus que aqui conviveram e se misturaram,
deixando a sua marca indelével na formação da identidade brasileira. Se fosse
possível resumir o povo brasileiro em uma única palavra, certamente seria di-
versidade a palavra mais apropriada.
Ensina José Afonso da Silva15 que, para entendermos a preocupação da
Constituição em proteger as referências culturais dos diversos grupos formado-
res do povo brasileiro, seria necessário um enquadramento da Constituição no
contexto histórico do processo civilizatório nacional, voltando-se para os três
principais grupos étnicos responsáveis pela nossa miscigenação: índios, negros
e portugueses. Lembra, ainda, o autor que esses grupos, por si só, já apresenta-
vam variações étnicas internas16, somados, ainda, aos imigrantes alemães, ita-
lianos e japoneses responsáveis por introduzir novas matizes culturais a partir
da segunda metade do século XIX, o que nos leva a concluir, por tanto, que a
miscigenação brasileira se deu entre grupos deveras diversificados, resultando
em uma mistura genética e cultural única, formadora da identidade brasileira.
Reconhecendo essa nossa característica, e almejando conceder prote-
ção jurídica a essa riqueza cultural, a CF, em seu art. 215, § 1º, determinou
que “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional”, além de promover “defesa e valorização do patrimônio cultural bra-
sileiro” e “valorização da diversidade étnica e regional” (art. 215, § 3º, I e V). Em
sequência, em seu art. 216, a Carta afirma que “constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
14 Maiores informações quanto ao paradigma da assimilação ou integração, vide: FEIJÓ, Julianne Holder da C.
S. A capacidade civil indígena. Revista Direitos Fundamentais e Justiça, v. 8, n. 28, p. 223 (A 2), jul./set.
2014.
15 SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2001, p. 75.
16 Os diversos povos indígenas que se espalhavam pelo Brasil quando de sua colonização se originavam de
quatro grandes grupos étnicos: Os Caraíbas, os Jês, os Tupis e os Maruaques; por sua vez, os negros africanos
escravizados trazidos para o Brasil se originavam de dois grupos étnicos: Os Bantos e os Sudaneses.
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Dessa novidade constitucional algumas consequências relevantes se fa-
zem notar. De início – relembrando que a Constituição não se trata de um do-
cumento neutro17, mas constituído à luz de valores relevantes para a sociedade
brasileira18 –, temos que a proteção à reprodução física e cultural dos povos
indígenas foi uma opção clara e cristalina do legislador constituinte, isso por-
que proporcionar meios e condições jurídicas e materiais para a manutenção
e o respeito à diversidade étnica e cultural representa uma forma de efetivar a
igualdade entre os diversos componentes do povo brasileiro, concretizando a
dignidade em seu favor.
O pluralismo é uma realidade brasileira, e a diversidade de grupos so-
ciais, econômicos, étnicos e ideológicos que aqui convivem conduziu o legis-
lador constituinte à opção por uma democracia pluralista (opção clara desde
o seu preâmbulo), o que significa acolher uma sociedade conflituosa, conce-
dendo-lhe a satisfação das múltiplas necessidades e antagonismos que encerra,
dedicando-se, a ordem constitucional, à construção do equilíbrio entre esses
interesses diversos. Cada demanda, oriunda dos variados grupos integrantes da
sociedade brasileira, deverá ser atendida, dentro de suas especificidades e no
interior do sistema de valores constitucionais, a fim de que a Constituição logre
obter legitimidade, concretizando o princípio democrático, materializando a
dignidade humana para todos.
No capítulo dedicado aos indígenas, art. 231, caput, a Carta inicia reco-
nhecendo aos “índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tra-
dições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”,
revelando a intenção de garantir a reprodução cultural dos povos indígenas,
inarredável de sua reprodução física. Em seu art. 210, § 1º, a Constituição as-
segura que o “ensino fundamental regular será ministrado em língua portugue-
sa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem”, deixado claro a intenção de
manter e reproduzir os hábitos culturais dos gentios, inclusive por meio do di-
reito básico à educação.
A Carta vai mais além e garante meios que viabilizem essa reprodução
física e cultural dos índios: assegura os seus direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente habitam, bem como as necessárias ao seu bem-estar e às
suas atividades produtivas, além de garantir o usufruto exclusivo dos recursos
naturais presentes em suas terras (art. 231, §§ 1º e 2º).
17 Citando decisão histórica do Tribunal Constitucional alemão, no caso Lüth, em 1958, Vide: BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO,
Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais.
Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 177.
18 PIOVERSAN, Flávia. Op. cit., 2010, p. 21.
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Tais direitos são instrumentais, visam a alcançar o objetivo maior de ga-
rantir a reprodução física e cultural dos indígenas, propiciando as condições
materiais que satisfaçam o seu bem-estar e a sua dignidade. Somente assegu-
rando a possibilidade de o indígena praticar as suas tradições, a sua cultura e
a sua religiosidade (sem que isso acarrete qualquer perda de direitos) é que se
concretiza o valor dignidade humana, basilar em nossa ordem constitucional,
para as diversas comunidades indígenas que convivem no território brasileiro.
Assegurar a igualdade entre os integrantes do povo brasileiro significa, antes de
tudo, reconhecer a diversidade (o pluralismo social), concedendo-lhe meios de
se reproduzir sem qualquer imposição de homogeneização.
Do exposto, nos deparamos com alguns valores fundamentais para um
Estado Democrático de Direito: dignidade humana, igualdade e pluralismo.
Opções políticas feitas pelo legislador constituinte que se traduzem em princí-
pios constitucionais que passam a influenciar toda a ordem jurídica e a limitar
e direcionar a atividade dos Poderes Públicos, de modo que não só existe um
direito subjetivo de cada índio e de cada comunidade indígena19, à reprodu-
ção cultural e à identidade étnica (acepção subjetiva dos direitos fundamentais)
oponível ao Estado e à sociedade, como passa a existir um dever do Estado de
tomar medidas tendentes a proteger e concretizar tais direitos (acepção objetiva
dos direitos fundamentais) que se convertem em verdadeiros princípios direcio-
nadores da atividade estatal.
Por oportuno, saliente-se que, apesar de não inscrito no art. 5º da Cons-
tituição, o direito à reprodução cultural não perde o seu status de fundamen-
talidade, correspondendo a um verdadeiro direito materialmente fundamental,
posto que indispensável a realização da dignidade humana para relevantes seg-
mentos sociais. Não seria a inscrição no rol de direitos constante no art. 5º da
Constituição que identificaria um direito como fundamental, mas a sua aptidão
para promover a dignidade humana, não sendo, pois, aquele rol taxativo20. Se-
riam fundamentais aqueles direitos que, caso negados aos indivíduos, se estaria
retirando a sua dignidade enquanto ser humano.
De fato, a nossa Suprema Corte21 já se posicionou pela não taxatividade
dos direitos fundamentais elencados no art. 5º da Carta Magna, reconhecendo
como materialmente fundamental o direito não inscrito em seu rol. Com efeito,
19 Os direitos indígenas possuem uma expressão coletiva, dado que são titularizados por cada comunidade
enquanto grupo, haja vista a forte noção do coletivo presente nas diversas culturas indígenas espalhas pela
América. Dessa forma, o direito à reprodução cultural afeta não só o índio isoladamente considerado, como
toda a comunidade ao qual ele pertence, enquanto ser coletivo, bem como a todos os povos indígenas em
geral.
20 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., 2000, p. 160.
21 Julgamento da ADIn 939, DJ 18.03.1994, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que o princípio
da anterioridade tributária, previsto no art. 150, III, b, da CF, constituía um direito ou uma garantia individual
fundamental, ainda que não inscrito no art. 5º da Constituição.
RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 9-32, jul-ago 2016
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o próprio art. 5º, em seu § 2º, aduz que “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte”, deixando bem claro o caráter aberto daquele rol de direitos.
Ainda à luz da teoria geral dos direitos fundamentais, observamos que os
direitos culturais reunidos na Constituição Federal de 1988 se apresentam em
duas facetas, uma individual, titularizada por cada indivíduo alvo dessa prote-
ção, como cada índio ou outro integrante de um grupo étnico específico, que
possui o direito de exigir o respeito à sua identidade étnica e cultural, não só
do Estado, mas de toda a coletividade, exercitando a sua liberdade individual
de reprodução étnica e cultural, um direito negativo, de primeira dimensão
(reinterpretado sob as premissas democráticas dos direitos sociais, de segunda
dimensão, que alargaram o sentido das liberdades liberais originárias)22.
Outra de natureza coletiva, um direito fundamental de terceira geração,
titularizado por todo o povo brasileiro, de ver respeitado e protegido nosso
patrimônio cultural. Um direito que reivindica uma postura ativa dos Poderes
Públicos que deve proporcionar os meios jurídicos e materiais necessários à
realização dos direitos culturais, por meio de leis que tutelem o bem jurídico e
de políticas públicas de sua efetivação concreta.
22 Essa liberdade ainda poderá ser exercida coletivamente pelas comunidades indígenas, no que José Afonso
chama de direitos individuais de expressão coletiva (Curso de Direito constitucional positivo. 24. ed. São
Paulo: Malheiros, 2005), tanto é assim, que a Constituição, em seu art. 232, assegura a qualquer índio, ou
a suas comunidades, legitimidade para ingressar no Poder Judiciário na defesa de seus direitos e interesses.
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A terra ocupada tradicionalmente pela comunidade, onde o índio nas-
ceu e se criou e onde os seus antepassados se encontram sepultados, promove
um resgate histórico e espiritual que conecta o indígena à sua “mãe terra” de
uma maneira tal que a realização de sua dignidade se encontra dependente
da manutenção desse vínculo. Dessa forma, a única maneira encontrada pelo
ordenamento de promover a reprodução física e cultural dos índios foi garantir
os direitos territoriais às comunidades indígenas23.
Dessa forma, se a ordem constitucional garantiu a posse permanente dos
índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, não seria muito democrá-
tico permitir que empreendimentos econômicos de grande porte, tais como a
mineração e a exploração energética24, fossem avalizados em suas terras (cons-
titucionalmente deferidas) sem que lhes fosse oportunizado se manifestar a res-
peito e influenciar na decisão dos Poderes Públicos quanto à viabilidade, ou
não, do empreendimento.
Assim, fazendo jus ao princípio democrático, a Carta assegurou o direito
de consulta sempre que grandes empreendimentos econômicos pretendam se
instalar nas terras indígenas, de modo que seja oportunizado aos habitantes des-
sa terra participação na tomada da decisão que lhes afetará por demais, além de
fornecer informações acerca do empreendimento e promover o entendimento
entre Estado/comunidade/empresa. Negar essa consulta, além de inconstitucio-
nal, seria antidemocrático.
Pois bem, investigando mais a fundo, temos, então, que o direito de con-
sulta apresenta natureza de direito fundamental, posto que inarredável da digni-
dade indígena, uma vez que pretende ouvir a manifestação dos próprios índios
quanto a empreendimentos altamente impactantes e ambientalmente degradan-
tes que se pretendem instalar em suas terras.
A consulta representa um forte instrumento democrático que a Consti-
tuição depositou entre o rol de direitos fundamentais dos povos indígenas, vol-
tados à materialização de sua dignidade. A consulta visa a afastar os compor-
tamentos históricos consagrados pelo Estado brasileiro que sempre ignorou as
necessidades e os interesses dos povos indígenas, ou porque os consideravam
incapazes de responder por si mesmos ou porque os consideravam às margens
da sociedade brasileira.
23 A Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, aprovada em 13.09.2007, pela Assembleia-
-Geral da ONU, em Nova York, também ressalta a importância dessa ligação do indígena com sua terra e
com os recursos naturais, assegurando como direitos de os indígenas não ser forçosamente assimilados e nem
destituídos de sua cultura.
24 Ressalte-se que tanto os recursos minerais quanto os potenciais de energia hidráulica constituem bens da
União, podendo a sua exploração ser concedida a terceiros, observados os requisitos constitucionais (art. 176,
caput e § 1º, somado ao art. 20, VIII e IX, da Constituição Federal).
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Indo mais além, seria um direito fundamental de feição mista, uma vez
que configura claramente um direito à prestação, jurídica e material, e de parti-
cipação. Nos debruçaremos melhor sobre cada uma dessas qualificações.
25 Paulo Gustavo Gonet chama a atenção que, quanto aos direitos de participação, não existe um consenso
na doutrina se realmente seria uma terceira classificação, ao lado dos direitos de defesa e de prestação, ou
se estaria incluído naqueles. Salienta, ainda, que tanto Canotilho como Alexy não consideram os direitos
de participação como um terceiro grupo. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional
e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 151.
26 No final do século passado, Georg Jellinek desenvolveu a teoria dos quatro status que um indivíduo poderia
se encontrar em face do Estado: status passivo, status negativo, status ativo e status positivo.
27 Exemplo que tomamos emprestado de Paulo Gustavo Gonet (Op. cit., p. 144).
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vo para o destinatário da norma (direitos originários à prestação), como temos
aqueles direitos cuja efetividade depende de uma intermediação legislativa.
Para essa segunda categoria de direitos prestacionais, a eficácia da norma
constitucional fica dependente de uma ação normativa do Poder Legislativo,
antes da qual não se tem um direito subjetivo exigível de pronto dos Poderes
Públicos, bem como resta limitado pela reserva do financeiramente possível.
Entramos, então, na seara da discricionariedade administrativa, possuindo o
gestor da coisa pública um razoável grau de liberdade nas escolhas que realiza-
rá. Ao Judiciário não é dado extrair direitos subjetivos das normas constitucio-
nais de eficácia limitada28, mas apenas das prestações postas nas normas que
as disciplinam. Restando, como controle jurisdicional, a inconstitucionalidade
por omissão.
Os direitos de participação seriam aqueles que oportunizam a participa-
ção do indivíduo na tomada de decisões relevantes para o País, basicamente os
direitos políticos, exercidos pelos cidadãos.
Fornecidas essas informações básicas, voltemos à questão do direito à
consulta. Claramente a consulta se coloca como um direito à prestação material
que exige uma atuação normativa do legislador.
A própria exploração dos recursos minerais, potenciais hidrelétricos e
energéticos em terras indígenas, depende de uma atuação normativa por par-
te do legislador para que possa ocorrer constitucionalmente. Isso porque o
art. 176, § 1º, exigiu uma legislação específica a regular tais empreendimentos,
como condição para que ocorram em território índio.
Saliente-se que essa regulação ainda não fora providenciada pelo legisla-
dor, existindo apenas projetos de leis29 dedicados à mineração em terras indíge-
nas que tramitam há décadas no Congresso Nacional sem obter a devida apro-
vação, o que acaba por inviabilizar a realização dessa empreitada. No entanto,
28 José Afonso da Silva estrutura as normas constitucionais, segundo o seu grau de eficácia, em três grupos: as
normas de eficácia plena (aptas a produzir a plenitude de seus efeitos de imediato); as normas de eficácia
contida (normas que, apesar de nascerem aptas a produzir os seus efeitos de imediato, podem ter o seu
alcance restringido por meio de legislação ulterior); e as normas de eficácia limitada (normas que somente
terão sua eficácia completa a partir de uma regulação legal posterior, exigida pela Constituição). Vide:
Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2008. passim.
29 A proposta que tramita hoje na Câmara dos Deputados (PL 1.610/1996) e que se destina a tratar
especificamente da questão mineraria em terras índias foi iniciada pelo Senador Romero Jucá, tendo sido
aprovada na respectiva Casa Legislativa, e seguiu à Câmara dos Deputados, onde tramita a mais de 10
anos. Em 2007, foi substituída por uma proposta do Governo, quando, então, fora instituída uma comissão
especial para analisar o assunto, tendo sido, simplesmente, abandonada a discussão acerca do Estatuto das
Sociedades Indígenas (PL 2.057), que também intentava regular a questão da mineração. Passado alguns
meses, já em 2008, a comissão apresentou uma contraproposta substitutiva, encabeçada pelo seu então
Relator, o Deputado Eduardo Valverde. Atualmente, agora sob a relatoria do Deputado Edio Lopes, a Câmara
se articula no intento de promover uma consulta aos povos indígenas acerca do próprio PL da mineração, em
um total de dez encontros previstos para o segundo semestre de 2015.
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o complexo hidrelétrico de Belo Monte avança em sua conclusão, afrontando
todos os direitos constitucionais deferidos às comunidades indígenas e com o
total respaldo de nossa Corte Suprema e do órgão indigenista.
Entre as exigências constitucionais que deveriam estar contempladas nes-
sa legislação específica30, a fim de que se possa explorar minério, potenciais
hidrelétricos e energéticos em terras indígenas, está a consulta às comunida-
des impactadas. Então temos um direito fundamental dos indígenas (direito a
ser consultado), de obter uma prestação material do Poder Público (realizar a
consulta antes de qualquer empreendimento adentrar suas terras), que está na
dependência de uma prestação jurídica do Poder Legislativo (lei específica), re-
gulando o procedimento de consulta de modo a fazer surgir um direito subjetivo
das comunidades de serem consultadas.
Poderíamos até supor estar inviabilizado tal direito consultivo em face
da omissão do nosso Parlamento em regular a questão; no entanto, quanto ao
processo de consulta, o ordenamento brasileiro apresenta sim a regulação es-
pecífica: A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
convenção sobre povos indígenas e tribais em países independentes, firmada
em Genebra, em 1989, que, entre outras coisas, disciplina o direito de consulta
às comunidades indígenas ante a possibilidade de qualquer fato que possa lhes
afetar diretamente, desde medidas legislativas até a presença de empreendi-
mentos econômicos em suas terras31, tendo sido devidamente ratificada (Decre-
to Legislativo nº 143/2002) e incorporada ao nosso ordenamento jurídico por
meio do Decreto nº 5.051, de 2004.
Por ter sido devidamente incorporada à nossa ordem jurídica com status
de lei ordinária, a Convenção nº 169 da OIT deve ser chamada a incidir sempre
que empreendimentos econômicos possam afetar comunidades indígenas, de-
vendo ser realizado o processo consultivo previamente e em cumprimento de
todos os termos postos pela referida norma.
É de se salientar que a exploração de recursos minerários, potenciais
hidrelétricos e energéticos em terras indígenas, ainda carece de regulação espe-
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22 D���������������������������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – DOUTRINA
cífica para que possam se realizar constitucionalmente. Mas quanto à consulta,
essa ausência normativa não terá o condão de afastar a realização do procedi-
mento, dado que já existe a regulação da matéria.
Com efeito, nenhum daqueles empreendimentos supracitados poderia
estar ocorrendo em terras indígenas ante a ausência da legislação específica;
entretanto, o Estado brasileiro sistematicamente vem desconsiderando essa exi-
gência constitucional. Os títulos minerários são concedidos em terras indígenas
pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM)32, e o complexo hi-
drelétrico de Belo Monte avança olvidando os direitos constitucionais dos indí-
genas, descumprindo os compromissos assumidos quando do início das obras.
No passado, as hidrelétricas de Tapajós, Tucuruí e Balbina foram concluídas
sem realizar o procedimento consultivo exigido pela Constituição33.
O Estado brasileiro, ao adotar tais comportamentos – além de enfraque-
cer a força normativa de nossa Constituição34, negligenciando direitos funda-
mentais que ele deveria promover, faltando com o seu papel democrático de
Estado provedor, fazendo letra morta de dispositivos constitucionais –, ainda
descumpre os compromissos internacionais que assumiu perante outras Nações
soberanas, sofrendo, inclusive, retaliações nesse sentido35-36. Com efeito, os Es-
tados que ratificam obrigações no plano internacional passam a se submeter à
autoridade das instituições internacionais quanto à tutela e à fiscalização do
cumprimento dessas obrigações no plano nacional37.
Aliás, frise-se que a Constituição brasileira elegeu, em seu art. 4º, II, a
prevalência dos direitos humanos como princípio fundamental a reger as suas
relações internacionais. Nada mais coerente, portanto, que assuma compromis-
sos internacionais voltados a equacionar problemas envolvendo a concretiza-
32 FEIJÓ, Julianne Holder da C. S. Exploração de petróleo em terras indígenas: à procura de um marco legal.
Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 5, n. 9, p. 167-168, jul./dez. 2010.
33 Instituto Socioambiental. A dívida de Belo Monte. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/sites/blog.
socioambiental.org/files/blog/pdfs/placar_geral_integrado_belo_monte.pdf>. Acesso em: 17 maio 2015.
34 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris Editor,
1991. p. 21.
35 Em setembro de 2010, a ONU emitiu um relatório chamando a atenção do Brasil pelo desrespeito aos direitos
humanos dos povos indígenas e, sobretudo, pela inobservância do direito de consulta dos povos afetados
pelo Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, no Rio Xingu, Estado do Pará. Maiores informações, vide: FEIJÓ,
Julianne Holder da C. S. Op. cit., 2014, p. 67 (A2).
36 Da mesma maneira, o Brasil fora denunciado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
por descumprimento de direitos fundamentais dos povos Yanomamis, em Roraima, tanto pela ausência de
políticas públicas e desrespeito à vida, liberdade e integridade desses índios, quando da abertura da BR
210, nos idos do Regime Militar, como pela chacina de Haximu, promovida por garimpeiros contra os índios
Yanomamis, ao total descaso do Governo brasileiro. A denúncia ocasionou um verdadeiro “puxão de orelha”
pela Comissão Interamericana ao Estado brasileiro e uma série de recomendações que ainda quedam sem
cumprimento (PIOVERSAN, Flávia. Op. cit., 2010, p. 322-323).
37 PIOVERSAN, Flávia. Op. cit., 2010, p. 9.
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ção dos direitos humanos; a falta de coerência está em não realizar o que se
comprometeu.
Inclusive, em um Estado Democrático de Direito temos como muito forte
o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, não sendo ad-
mitido que um princípio fundamental, dedicado a guiar a ação internacional do
Estado brasileiro, seja descumprido sistematicamente. O princípio fundamental
é o princípio estruturante, destinado ao Estado, ostentando máxima efetivida-
de e aplicação imediata, não podendo ser olvidado. Por outro lado, garantir a
primazia dos direitos humanos vai mais além do que a simples elaboração de
normas internacionais, tutelando-os, implica assegurar a plena integração des-
sas normas no âmbito da ordem jurídica interna38.
Saliente-se, por fim, que também a Declaração da ONU sobre os direitos
dos povos indígenas39 assevera a necessidade de realizar um processo consulti-
vo às comunidades indígenas antes da realização de qualquer empreendimento
econômico em suas terras ou a adoção de medidas legislativas. O instrumento
ainda ressalta o direito à autodeterminação dos povos indígenas e a sua liber-
dade e independência na tomada de decisões acerca de seus modos de viver e
se desenvolver.
Ressalte-se que o Brasil, juntamente com 142 países40, votou a favor da
Declaração, devendo manter o compromisso firmado perante a ordem interna-
cional, de modo a não perder prestígio e credibilidade frente às outras Nações.
Apesar de não ter força vinculante, a Declaração deve servir de orientação na
realização de políticas públicas, na tomada de decisões judiciais e na adoção
de medidas legislativas pelo Estado brasileiro, já que reflete o seu compromisso,
assumido perante os demais Estados nacionais, para com os povos indígenas.
Destaque-se uma forte tendência da doutrina mais moderna41 em reco-
nhecer aos tratados de direitos humanos assinados pelo País o status de norma
constitucional, por encerrarem direitos materialmente fundamentais, integrando
o bloco de materialidade constitucional, muito embora não estejam escritos no
texto maior. No Brasil, essa posição se arrima no § 2º do art. 5º da Constitui-
38 Idem, p. 40.
39 Aprovada pela ONU em 13.09.2007, em Nova York, durante sessão do Fórum Permanente da ONU para
assuntos indígenas, o documento é fruto dos trabalhos de uma comissão específica sobre as populações
indígenas, criada pela ONU em 1982. O texto reflete as reivindicações atuais dos povos indígenas do mundo,
principalmente quanto ao seu relacionamento com os Estados nacionais, bem-estar e autodeterminação.
40 Votaram contra o documento: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, muito embora esses dois
últimos tenham posteriormente aderido ao feito em 2009 e 2010, respectivamente. A quase totalidade da
América Latina, com exceção da Colômbia, que se absteve, votou favoravelmente ao documento. Maiores
informações: Unesco. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e
respostas. Brasília, 2008. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001627/162708POR.
pdf>. Acesso em: 29 jun. 2015.
41 Defendem essa abertura constitucional: Jorge Miranda, Canotilho, José Afonso da Silva, Cançado Trindade,
Konrad Hesse, dentre outros ilustres constitucionalistas. Vide: PIOVERSAN, Flávia. Op. cit., 2010, p. 43-85.
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ção Federal brasileira, a chamada cláusula de abertura, e, apesar de não lograr
adesão majoritária por parte dos Ministros da Suprema Corte, nela encontrou
alguns adeptos42.
Por fim, saliente-se que a chamada cláusula de abertura, encerrada no
art. 5º, § 2º, da Constituição brasileira, ao consagrar o status de materialidade
constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, não está a criar
nenhuma novidade jurídica no direito ocidental; pelo contrário, apenas está
embarcando na nova tendência constitucional. De fato, as Constituições do
Peru, da Argentina, da Venezuela e da Nicarágua asseguram hierarquia cons-
titucional aos tratados de direitos humanos, restando ao Brasil reconhecer a
amplitude do alcance de seu dispositivo de abertura43.
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irá afetar diretamente, configurando uma verdadeira afronta ao princípio demo-
crático e a sua liberdade e autodeterminação. Se não fosse imprescindível a sua
realização, não estaria exigida expressamente em um dispositivo constitucional.
A consulta consubstancia um instrumento de intermediação política en-
tre os Estados independentes e as comunidades indígenas neles existentes, re-
presentando uma importante ferramenta da efetivação dos seus direitos funda-
mentais, garantindo o direito da comunidade de se autodeterminar, escolhendo
o seu destino, resguardando a posse plena dos autóctones sobre as suas terras e
sobre a exploração exclusiva dos recursos naturais existentes, bem como satis-
faz o direito à preservação de sua cultura, suas crenças e suas tradições a partir
do momento que propicia aos indígenas a escolha de querer, ou não, que seu
modo de vida seja devassado e misturado ao modus vivendi “civilizado”.
Esse foi o raciocínio que norteou a Conferência das Nações Unidas para
o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, e
que deu origem à Agenda 21 da ONU44 cujo item 26.3, prevê a necessidade dos
Governos e das organizações intergovernamentais reconhecerem que as terras
das comunidades indígenas devem ser protegidas contra atividades ambiental-
mente insalubres ou consideradas inadequadas social e culturalmente pela co-
munidade indígena, consagrando o direito dos grupos tribais em se autodeter-
minar, escolhendo as suas prioridades, em perfeita sintonia com o estabelecido
no art. 7º, item 1, da Convenção nº 169/OIT45.
Muito se tem falado até aqui sobre esse direito de autodeterminação dos
povos indígenas. De fato, em torno da questão grandes debates já foram trava-
dos no cenário internacional, de modo que hodiernamente já se solidificou o
entendimento de que essa autodeterminação não corresponderia à soberania na
seara internacional ou a independência frente aos Estados nacionais.
Os povos indígenas não são nações politicamente independentes, mas
devem ter assegurada a liberdade de gestão interna, de escolha de seus proces-
sos e modo de vida sem que sofram as imposições déspotas do passado, quando
o Estado tomava decisões por demais impactantes sem levar em consideração
os interesses e as necessidades dos indígenas. Tais políticas geraram impactos
44 Em 1992, representantes de 170 países reuniram-se no Rio de Janeiro, na Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como “Rio 92”, cuja finalidade era discutir a crise
ambiental e a sobrevivência da humanidade no Planeta. Dessa conferência resultou a Agenda 21, documento
internacional de compromissos ambientais e recomendações para um novo modelo de desenvolvimento
(o desenvolvimento sustentável), enfatizando a importância da educação ambiental como estratégia de
sobrevivência da humanidade.
45 In verbis: “Art. 7º [...] 1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades
no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças,
instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de
controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses
povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento
nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. [...]”
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tão desastrosos que, em muitos casos, conduziram à dizimação de comunida-
des inteiras ou a sua drástica redução. Foram retiradas forçadas dos indígenas
de suas terras originárias, construção de rodovias que cortaram ao meio terras
indígenas, construção de hidrelétricas que os desalojaram, concessão de títulos
minerários e exploração de petróleo em suas terras, entre inúmeras outras medi-
das tomadas pelo Estado brasileiro, à total revelia dos índios, que prejudicaram
comunidades inteiras.
Os arts. 3º e 4º da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos
povos indígenas, além de reconhecer a autodeterminação, salientando a sua
liberdade na busca do desenvolvimento econômico, social e cultural, ainda
esclarecem que o direito à autodeterminação está relacionado ao direito dos
povos indígenas ao autogoverno e à autonomia no que diz respeito a seus as-
suntos internos e locais. Não se confundindo com a autodeterminação dos Es-
tados soberanos. Como bem já esclareceu o Supremo Tribunal no caso da de-
marcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol46, as comunidades indígenas
não possuem soberania, as suas terras não correspondem a territórios no sentido
político da expressão, consubstanciando uma realidade sociocultural.
Dessa forma, a consulta surge como uma medida a garantir que as de-
cisões que possam afetar os povos indígenas não sejam mais tomadas à sua
revelia, como historicamente ocorreu, não só no Brasil, mas em todos os países
americanos que negligenciaram os seus indígenas por séculos. Daí a nota da
fundamentalidade que constitui o direto de consulta: incluir os indígenas nas
decisões que lhes afetem, permitindo-lhes participação política e voz na toma-
da de decisões, cumprindo o princípio democrático, único caminho para lhes
assegurar uma vida em dignidade.
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a referida concessão com o vício da inconstitucionalidade, posto que a própria
Carta Fundamental prevê a oitiva das comunidades impactadas como requisito
para a realização dessas atividades em suas terras, e o faz no intuito de assegu-
rar o direito dos indígenas à continuidade física e cultural, a exclusividade do
uso de suas terras e dos recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência.
Portanto, inegável que o exercício do direito de consulta gera o direito
das comunidades indígenas a dizer “não”. O importante é permitir à tribo que
descida o seu próprio destino, fazendo valer as suas garantias constitucional-
mente asseguradas; do contrário, o direito à consulta, previsto na Convenção
nº 169 da OIT e em nossa Carta Constitucional, cairia no vazio, seria uma mera
formalidade a ser cumprida, sem, contudo, alcançar a finalidade de permitir
que a comunidade índia participe dos atos decisórios que lhes afetam.
O art. 6º da Convenção nº 169 da OIT traz uma “cláusula geral” de
consulta, onde são identificados os seus elementos essenciais: 1) A consulta
deve ocorrer quando medidas legislativas ou administrativas devam afetar a
comunidade; 2) sempre deverá ser prévia a tomada de qualquer decisão; 3) A
legitimidade da consulta depende da participação das instituições representati-
vas dos povos interessados; 4) Deve ser de boa-fé; 5) Os resultados e produtos
da consulta devem refletir na decisão final.
Quanto ao primeiro item, não podemos olvidar que a obrigatoriedade da
realização da consulta atinge inclusive a atividade legislativa, estando os proje-
tos de leis voltados aos indígenas sujeitos a consultar as comunidades indígenas
do País, visto que a elas interessa sobremaneira. Deve ser realizada previamente
à promulgação da lei, uma vez que a intenção da Convenção é consagrar a
consulta como um instrumento de participação dos silvícolas nas decisões mais
importantes que afetam os seus interesses.
Neste particular, o Tribunal Constitucional colombiano se manifestou por
diversas vezes pela inconstitucionalidade do decreto que regula o procedimen-
to de consulta, por não ter ele realizado previamente uma consulta sobre o seu
próprio conteúdo47. A Colômbia é o País que possui a mais vasta jurisprudência
relacionada à efetivação da cláusula geral de consulta prevista no Convenção
nº 169 da OIT, principalmente quanto à necessidade de sua observância na
ceara legislativa48.
Entre as maiores conquistas das comunidades tradicionais obtidas junto à
Corte Constitucional do País estão a interpretação da Convenção nº 169 como
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parte do bloco de constitucionalidade, segundo uma lógica da materialidade
constitucional, e o reconhecimento de que o direito de consulta consubstancia
um direito fundamental das comunidades indígenas e tribais.
Já, no Equador, as comunidades indígenas consideram tão lesiva a le-
gislação interna, também promulgada sem observar o devido processo de con-
sulta, que se negam, inclusive, a participar de processo consultivo por ela re-
gulado, estando, atualmente, questionando a sua legitimidade junto à Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)49.
Quanto à exigência de que a consulta se dê mediante a participação das
instituições representativas dos povos envolvidos, percebe-se a nítida inspira-
ção multicultural e pluriétnica da Convenção, indicando a sua sintonia com as
mais modernas correntes de preservação e reprodução de culturas e tradições
etnicamente diferenciadas, reconhecendo não só a autonomia desses povos,
o seu direito de autodeterminação, como também significa o reconhecimento
jurídico da representação dessas comunidades segundo os seus costumes e as
suas tradições.
Caciques, Xamãs, Conselhos de anciãos, associações, não importa, terá
legitimidade aquelas instituições representativas reconhecidas pela comunida-
de, com poder para falar em nome dela e tomar decisões. Na Bolívia, além da
legitimidade da representação, exige-se, ainda, a ratificação do acordo firmado
pela respectiva comunidade, de forma a assegurar que o conteúdo da decisão
tomada corresponde realmente aos interesses do grupo.
Importante salientar que a Fundação Nacional do Índio (Funai) não pos-
sui essa prerrogativa, pois que se trata de instituição integrante da estrutura
indireta da Administração Pública, não possuindo legitimidade para intervir no
processo de consulta em nome de qualquer comunidade indígena, a não ser a
fim de elaborar parecer ou facilitar a aproximação entre o Governo e os índios.
Outrossim, conforme o abalizado entendimento do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (muito embora não seja o posicionamento assumido pela
Suprema Corte no caso da hidrelétrica de Belo Monte50), o único competente
49 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem por objetivo promover a observância e a proteção
dos direitos humanos na América, alcançando todos os Estados signatários da Convenção Americana de
Direitos Humanos de 1969 (Pacto São José da Costa Rica) e Estados-membros da Organização dos Estados
Americanos (OEA), tendo legitimidade para encaminhar reclamações contra os casos de violação aos direitos
humanos qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos possui,
ainda, legitimidade para submeter causas ao julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
50 A referida decisão daquele TRF fora derrubada pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal, em decisão
monocrática da então Presidente Ministra Ellen Gracie, que, além de permitir a realização da consulta pelo
Ibama, ainda reconheceu a validade do Decreto nº 788/2005, que autorizou a construção do complexo
hidrelétrico Belo Monte sem consultar as comunidades impactadas. Vide: FEIJÓ, Julianne Holder da C. S. Op.
cit., 2014, p. 67 (A1). Posteriormente, em 13 de agosto de 2012, o citado TRF determinou a paralisação
da obra até que fosse realizado o procedimento de consulta. Novamente, em decisão monocrática de 27 de
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para a realização da consulta prévia é o Congresso Nacional, haja vista que a
Constituição lhe deferiu a atribuição de autorizar a exploração minerária e o
aproveitamento dos recursos hídricos e energéticos em terras indígenas, não
sendo, sequer, possível a sua delegação51. Além do mais, a consulta prévia con-
substancia um dever da Casa Legislativa, e não uma mera faculdade, vez que,
além de estar determinada na Constituição como requisito para a exploração
minerária e energética em território aborígene, também integra o leque de direi-
tos fundamentais dessa gente.
O Instituto Socioambiental (ISA)52 ainda alerta que se na decisão final não
estiverem refletidas as opiniões debatidas nas reuniões, estas não poderão ser
consideradas como um processo de consulta, vez que não cumpriu a sua fina-
lidade institucional. Neste aspecto, narra o ISA que a legislação boliviana é a
única empenhada em tornar o processo de consulta um verdadeiro instrumento
de negociação, condicionando o seu produto final ao consenso dos envolvidos
no processo consultivo, diferentemente do que faz seus vizinhos latinos que
entendem que a palavra final consiste em ato unilateral do Governo, reduzindo
o direito fundamental dos índios à consulta em uma mera formalidade a ser
cumprida, acabrunhando a própria força normativa da Carta Constitucional.
CONCLUSÕES
Preocupada em proteger a identidade étnica e cultural dos diversos gru-
pos participantes do processo civilizatório nacional, a Constituição Federal bra-
sileira dedicou um capítulo à proteção dos direitos culturais, entendidos não só
como o direito individual de acesso à cultura, mas também à tutela, de titula-
ridade coletiva, às referências, à memória e aos modos de fazer e de viver de
grupos culturalmente singulares, tais como os indígenas e quilombolas.
agosto de 2012, o STF suspendeu a decisão daquela Corte, agora na presidência do Ministro Ayres Britto.
Prosseguindo Belo Monte de vento em polpa.
51 Conferir a jurisprudência da Corte: “[...] A questão jurídica controvertida nesse tópico diz respeito se o
Congresso Nacional pode delegar a oitiva das comunidades indígenas afetadas. A Constituição não oferece
uma resposta conclusiva. É preciso examinar-se a questão em conformidade com os princípios que regem
a defesa das comunidades indígenas. A primeira constatação que se tem da mera leitura do § 3º do
art. 231 da CF/1988 é a obrigatoriedade da consulta às comunidades indígenas afetadas. A hipótese não é
de faculdade do Congresso Nacional. O constituinte ordenou que sejam ‘ouvidas as comunidades afetadas
para que participem da definição dos projetos que afetarão suas terras e seu modus vivendi’. A consulta se
faz diretamente à comunidade envolvida com o projeto de construção. Não há se falar em consulta à Funai a
qual poderá emitir parecer sobre o projeto, mas não substitui a vontade dos indígenas. Portanto, a consulta
é intuito personae. Essa problemática não está sendo discutida neste agravo, mas sua abordagem esclarece
a intenção do legislador no tema do aproveitamento dos recursos naturais em terra indígena. Assim como a
comunidade indígena não pode ser substituída por outrem na consulta, o Congresso Nacional também não
pode delegar o ato. É o Congresso Nacional quem consulta, porque é ele que tem o poder de outorgar a obra.
Quem tem o poder tem a responsabilidade pelos seus atos. [...]” (TRF 1ª R., Ag 2006.01.00.017736-8/PA,
5ª T., Relª Desª Fed. Selene Maria de Almeida, DJ 05.02.2007, p. 147).
52 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Consulta livre, prévia e informada na Convenção nº 169 da OIT. Disponível
em: <http://www.socioambiental.org/inst/esp/consulta_previa>. Acesso em: 10 ago. 2010.
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Dedicada a garantir a reprodução física e cultural dos povos indígenas, a
Carta estruturou uma série de direitos voltados à satisfação de suas necessidades
mais latentes, tais como a posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam
e o usufruto exclusivo das riquezas naturais nelas existentes, condicionando a
exploração dos recursos minerais, dos potenciais hidrelétricos e energéticos à
observância de requisitos expressos, entre eles o dever de realizar consulta aos
povos impactados.
O direito dos povos indígenas de serem consultados, sempre que algum
empreendimento pretenda se instalar em suas terras, surge como um direito
fundamental das comunidades índias relacionado à realização da sua dignidade
e do princípio democrático, ao viabilizar a sua autodeterminação e liberdade,
possibilitando a sua inclusão na tomada de decisões que lhes afetem.
O direito de consulta surge, assim, como um direito fundamental, não
inscrito no art. 5º da Constituição, de natureza híbrida, posto que encerra em
si tanto um direito à participação política como um direito à obtenção de uma
prestação do Estado, jurídica e material. O direito de consulta, ao ter sido regu-
lado pela Convenção nº 169 da OIT, incorporada ao nosso ordenamento como
lei ordinária, torna-se um direito subjetivo das populações indígenas que se
vejam às voltas com a exploração dos recursos minerais e energéticos em suas
terras.
Negar a realização de tal direito, além de inconstitucional, é antidemo-
crático, reduzindo a credibilidade do País frente às outras nações junto as quais
se obrigou em instrumentos como a Convenção nº 169 da OIT e a Declaração
das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, além de enfraquecer
a força normativa da Constituição ao negligenciar uma exigência expressa. O
Brasil precisa começar a efetivar os direitos constitucionais dos povos indíge-
nas, bem como precisa cumprir as obrigações que assumiu no cenário interna-
cional, principalmente quanto à observância dos direitos humanos, de modo a
concretizar o status de Estado Democrático de Direito.
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Assunto Especial – Doutrina
Âmbito de Proteção do Direito Indígena
Submissão: 30.03.2016
Decisão Editorial: 30.05.2016
Comunicação ao Autor: 30.05.2016
RESUMO: Este artigo objetiva abordar o novo constitucionalismo da América Latina, o qual foi trans‑
formado de maneira pontual e vanguardista – afastando aos poucos o Direito da figura institucional
do Estado e devolvendo às nações dos povos originários a sua autodeterminação. A hipótese que se
apresenta é de que o neoconstitucionalismo tem a capacidade de se coadunar à ideia de integração
de ordens jurídicas (estatais e não estatais), havendo já experiências esparsas disso. Contudo, o
potencial apresentado não se revela como uma concretização dessas possibilidades de integração
intercultural, dado que a incipiência desse movimento faz com que a sua fixação como paradigma
ainda carece de muita atividade de afirmação. O trabalho é dividido em três momentos: 1) aborda‑
gem da crise que se apresenta ao Estado moderno, focando-se na relativização da soberania estatal
e no afastamento do Estado como detentor do monopólio de produção normativa; 2) debate acerca
da coexistência de diferentes ordens jurídicas, estatais e não estatais; 3) argumentação sobre o novo
constitucionalismo latino-americano. A metodologia utilizada é sistêmico-construtivista.
ABSTRACT: The presented hypothesis is that neoconstitutionalism has the ability to be consistent
with the idea of integration of (state and non-state) legal orders, having already sparse experiences
about it. This article aims to approach the new constitutionalism in Latin America, which has trans‑
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formed it a timely fashion, avant-garde way – taking the Law gradually away from the institutional
figure of the State, giving back to the nations of indigenous peoples the right to self-determination.
However, its shown potential is not revealed as an embodiment of these intercultural integration
possibilities, as the incipient nature of this movement makes its fixation as a paradigm still lacks a
lot of claim activity. The work is divided into three stages: 1) approach to the crisis of the Modern
State, focusing on the relativization of sovereignty and the departure of the State as the holder of
normative production monopoly; 2) discussion about the coexistence of different legal, state and
non-state orders; 3) argument on the New Constitutionalism in Latin American. The methodology
used is systemic-constructivist.
INTRODUÇÃO
A contemporaneidade, especialmente no segundo pós-guerra, tem de-
monstrado reviravoltas no que tange aos paradigmas postulados na Modernida-
de, motivo pelo qual muitos têm denominado esse período com terminologias
que buscam expressar uma mudança de era: pós-modernidade (Jean-François
Lyotard, Walter Benjamin e outros) ou, ainda, Modernidade Líquida (Zygmunt
Bauman), e outros termos que buscam afirmar que a rigidez unívoca dos postu-
lados da Modernidade estão ruindo frente aos anseios da fluidez e da comple-
xidade da sociedade atual.
Um dos paradigmas modernos de univocidade que enfrenta crises de
várias ordens é a figura do Estado-nação, em sua versão westfaliana, como ente
soberano, com autoridade inquestionável sobre os seus súditos e dentro de seu
território, espaço impenetrável ao estrangeiro não autorizado, o estranho. Nessa
mesma senda, o Estado-nação como detentor do monopólio da produção nor-
mativa e de identidades está sendo significativamente relativizado. A ideia de
nação adstrita à figura institucional do Estado foi sustentada, durante os anos, de
forma artificial, tolhendo as diferenças, sob o arquétipo da igualdade. Àqueles
que não abraçavam a igualdade restava o afastamento do Estado, a prisão ou,
mesmo, o sacrifício.
O continente americano, especificamente a América Latina, foi coloniza-
da pela Espanha e por Portugal, sendo ao continente transplantado o paradigma
europeu vigente – de Estado soberano. Nesse processo, os povos originários,
erroneamente chamados de “índios”, foram, quando não destruídos totalmente,
lentamente assimilados pela cultura europeia e “branqueados”, restando apenas
pequenos contingentes com identidades originais. Sequer as divisas naturais
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entre os povos originários foram respeitadas, com nações tendo os seus espaços
redefinidos pelos marcos cartográficos dos territórios estatais.
O presente trabalho pretende abordar um processo recente que tem to-
mado a América Latina e lhe transformado de maneira pontual, vanguardistas.
Um novo constitucionalismo aflora no espaço latino-americano, afastando-se
da figura institucional do Estado e devolvendo às nações dos povos originários
a sua autodeterminação, lhes afastando da forçada tutela estatal, demovendo os
mesmos de uma subcategoria humana.
O trabalho será dividido em três momentos. No primeiro deles, será
abordada a crise que se apresenta ao Estado moderno. A discussão pretende ser
focada na relativização da soberania estatal, no afastamento do Estado como
detentor do monopólio de produção normativa e da violência legítima, bem
como da quebra da identificação entre as noções de pertencimento e de identi-
dade da figura estatal em razão da hipercomplexidade contemporânea.
No segundo momento, será debatida a pluralidade de centros emissores
de normatividade jurídica que emergem em razão da complexidade que somos
apresentados, ou seja, a coexistência de diferentes ordens jurídicas, estatais e
não estatais, sem hierarquia entre si. Pretende-se, com isso, reconhecer no plu-
ralismo jurídico a possibilidade de observação de integrações e convergências
entre tais ordens, sendo superado o monismo estatal.
Já, no terceiro e último momento, coadunando os dois primeiros pontos
do trabalho, busca-se versar acerca do movimento com ideias avançadas que
tem tomado a América Latina, o novo constitucionalismo latino-americano.
Nesse último trecho do raciocínio que aqui se tece, a busca principal é pela res-
posta ao problema central desse trabalho, qual seja, compreender se esse cons-
titucionalismo de vanguarda, com reconhecimento de plurais ordens jurídicas
e empoderamento das nações originárias, é uma forma de compatibilização da
multiculturalidade ao sistema jurídico na ordem constitucional.
A hipótese que se apresenta ao problema descrito é de que o neoconsti-
tucionalismo latino-americano, movimento político, jurídico e teórico de múl-
tiplas formas de manifestação, tem a capacidade de se coadunar à ideia de
integração de ordens jurídicas (estatais e não estatais), havendo já experiências
esparsas (mas nem por isso sem importância), sendo que algumas delas serão
aqui esboçadas. Contudo, o potencial apresentado não se revela como uma
concretização dessas possibilidades de integração intercultural, dado que a in-
cipiência desse movimento faz com que a sua fixação como paradigma ainda
carece de muita atividade de afirmação.
A metodologia aqui utilizada é sistêmico-construtivista, a partir da qual
se parte com a ideia de que a complexidade da sociedade funcionalmente di-
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ferenciada faz nela emergirem sistemas comunicativos de códigos, programas
e funções diversas, o que impede a possibilidade de uma normatividade e de
uma descrição omniabarcadora da sociedade. Nesse sentido, cada sistema co-
municativo (sendo que Direito, Política, Economia, Ciência e Religião represen-
tam bons exemplos seus) observa o entorno (constituído pelos demais sistemas),
sendo aberto à sua cognição, mas com organização interna fechada, o que faz
com que cada sistema, por sua fez, reorganize o que observa do entorno a partir
da sua própria autopoiese (entendida, principalmente, como autorreferência).
O Direito seria, assim, um sistema comunicativo autopoiético, cujo có-
digo binário pode ser descrito como “em conformidade ao direito/contrário ao
direito”; o seu programa, por sua vez, é o conjunto de todas as decisões ante-
riores tomadas (judiciais, doutrinárias, interpretações de leis, etc.) para cum-
prir a função precípua do sistema, qual seja, a estabilização de expectativas
normativas na sociedade. Contudo, apesar de tal sistema ainda ser, na maioria
dos países ocidentais, fundamentalmente influenciado pelo princípio moderno
da soberania, entende-se que esta faz parte apenas do programa de decisões
do Direito, e não de sua estrutura fundamental. É com isto que se pode afirmar
que não apenas o Estado produz Direito: outras organizações também o fazem.
Por fim, o método de abordagem deste trabalho é o monográfico, centra-
do na sua temática específica e delimitado à América Latina. A sua técnica de
pesquisa, nesse compasso, é bibliográfica.
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numa norma, podemos acrescentar: o direito estatal-legislativo se tornou o cri-
tério único e exclusivo para a valoração do comportamento social do homem.
Isto sucedeu pelo fato de, na época moderna, o Estado ter não só emergido e se
imposto sobre todas as outras organizações de tipo político, como também ter se
tornado o portador dos valores morais, desautorizando e substituindo a Igreja (a
saber, as instituições religiosas em geral).
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que elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e ideias podem,
sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. (Hall, 2005, p. 17)
Ou seja, fica visível que a defesa por um direito plural tem interesse que
aqueles indivíduos que não chegam ao Direito do Estado se sintam represen-
tados e se compreendam internos ao sistema jurídico. Esse pluralismo tem o
condão de evidenciar que o Estado não é a fonte única e exclusiva de todo o
Direito, oportunizando a “produção e aplicação normativa centrada na força e
na legitimidade de um complexo e difuso sistema de poderes, emanados diale-
ticamente da sociedade, de seus diversos sujeitos, grupos sociais, coletividades
ou corpos intermediários” (Wolkmer, 2010, p. 3).
Boaventura de Sousa Santos, ao falar sobre essas expressões jurídicas
marginalizadas, faz uso do termo Pasárgada, em referência ao poema homô-
nimo de Manuel Bandeira, em que Pasárgada figura como a cidade ideal.
Boaventura fez uma extensa pesquisa de campo nas favelas do Rio de Janeiro,
denominando-as de Pasárgada para manter incólumes os lugares.
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Pasárgada é uma comunidade densamente povoada, no seio da qual se estabele-
ceu uma teia muito complexa de relações sociais entre os habitantes e entre estes,
individualmente, e a comunidade no seu todo, algumas das quais têm origem
em contratos e outros negócios jurídicos que envolvem a propriedade, a posse
e direitos reais vários sobre a terra e as habitações individualmente apropriadas.
Tais relações têm uma estrutura homológica das relações jurídicas. (Sousa Santos,
1988, p. 13-14, grifo nosso)
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mente, na política e no Direito tanto se reafirma, quando possível e necessário
(processamento de crimes que estejam dentro das possibilidades persecutórias
dos Estados; tributação e regulação de entes e fatos que não sejam capazes de se
eximir dessa lógica). (Fornasier; Ferreira, 2015, p. 399)
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O pluralismo jurídico no continente latino-americano, naquilo que tange
ao empoderamento e à participação das comunidades de povos originários, se
deu pela via do constitucionalismo (conforme se argumentará mais ao final des-
te trabalho). Destarte, a ressalva que Marcelo Neves levantou, em 1993, sobre
os intrincamentos bloqueantes entre o direito estatal e os “direitos socialmente
difusos” tentou ser superada com a previsão constitucional, inclusive, de juris-
dições indígenas.
Para evitar tautologias posteriores, não se pretende, nesse momento, in-
gressar na discussão do novo constitucionalismo latino-americano. Entretanto,
é oportuno introduzir uma decisão paradigmática, no Judiciário brasileiro, que
evidencia que o pluralismo jurídico pode se coadunar tranquilamente ao Di-
reito Estatal. Em decisão sem precedentes, o Tribunal de Justiça do Estado de
Roraima, ao apreciar a Apelação Criminal nº 0090.10.000302-0, manteve sen-
tença proferida pelo Juiz da Comarca de Bonfim, que “deixou de apreciar o mé-
rito da denúncia do Órgão Ministerial, representante do Estado, para declarar a
ausência in casu do direito de punir estatal, em face do julgamento do fato por
comunidade indígena” (Brasil, 2013, grifos nossos). Trata-se do primeiro caso
de reconhecimento de jurisdição indígena no ordenamento jurídico brasileiro,
o que se pretende retomar no último ponto do presente trabalho.
O que se visualiza, com o reconhecimento do pluralismo jurídico por
meio de fenômenos do constitucionalismo, é uma espécie de “endosso” do
Estado ao pluralismo jurídico. Porém, a complexidade atual abarca mais pos-
sibilidades do que se pode prever, o que pode gerar um engessamento das al-
ternativas criadas, no momento que são trazidas para a Constituição. Ademais,
para além das ordens reconhecidas pelos Estados no novo constitucionalismo,
há ordens jurídicas não estatais transnacionais, as quais trilham um caminho
absolutamente paralelo ao estatalismo, já que atuam na esfera jurídica privada.
O Jurista alemão Gunther Teubner (2012) destaca a existência de um
processo em crescimento, no qual os regimes transnacionais têm se espalhado
de forma global, os chamados códigos voluntários de conduta das corporações
transnacionais, autocompromissos adotados voluntariamente por tais empresas.
“A pesada crítica pública disseminada globalmente pela mídia e as ações
agressivas de movimentos de protesto e de organizações não governamentais
(ONGs) da sociedade civil forçam várias corporações transnacionais a desen-
volver códigos corporativos ‘voluntariamente’” (p. 110).
Os ordenamentos jurídicos transnacionais têm se disseminado na con-
temporaneidade. Um exemplo desse modelo é a lex mercatoria, nas palavras
da Marcelo Neves, citado por Fornasier (2013, p. 352) como: “Ordem jurídico-
-econômica mundial no âmbito do comércio internacional, cuja construção e
reprodução ocorre primariamente mediante contratos e arbitragens decorrentes
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de comunicações e expectativas recíprocas estabilizadas normativamente entre
atores privados”.
Outros exemplos de juridicização transnacional são: a normatização do
mercado laboral em relação às empresas e aos sindicatos (Rogowski, 2000); as
normas supranacionais de padronização técnica e de autocontrole profissional;
a defesa dos direitos humanos; os mecanismos jurídicos de proteção ambiental;
e as regulações esportivas de nível global, chamada de lex sportiva (Neves,
2009).
Pode-se afirmar, assim, que o pluralismo jurídico independe da chan-
cela do Estado, como é o caso das ordens transnacionais; todavia, quando há
uma aproximação estatal com expressões jurídicas dotadas de pluralidade, a
possibilidade de conflitos – de intricamentos bloqueantes – entre o “direito ofi-
cial” e os “direitos socialmente difusos” se apresenta relativizada, afrouxando
as amarradas institucionais do ente estatal e descriminalizando o “Direito de
Pasárgada”, evidenciando a tentativa de redução da hipercomplexidade que a
pós-modernidade apresenta.
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Raquel Z. Yrigoyen Fajardo (2010) estabeleceu uma linha de tempo para
melhor analisar o processo do constitucionalismo pluralista na América Latina,
e, segundo a autora, “monoculturalidad y monismo jurídico son puestos en
cuestión, progresivamente, por los tres ciclos del horizonte del constitucionalis-
mo pluralista, desde finales del s. XX a la fecha” (p. 2).
O primeiro ciclo de reformas constitucionais evidenciado por Fajardo
(2010), o constitucionalismo multicultural, abrange os textos constitucionais
entre 1982 e 1988 e está marcado pela emergência do multiculturalismo e de
novas demandas indígenas. As constituições surgidas nesse ínterim introduzi-
ram na norma positivada o conceito de diversidade cultural, bem como o reco-
nhecimento da configuração multicultural e multilíngue da sociedade, além do
direito, individual e coletivo, à identidade cultural e alguns direitos indígenas
específicos. Destacam-se as constituições da Guatemala, em 1985, e Nicará-
gua, em 1987, em que há o reconhecimento de ambos os Estados quanto à sua
configuração multiétnica, multicultural e multilíngue. Fajardo (2010) destaca,
ainda, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 1988, que
antecedeu em um ano a Convenção nº 169 da OIT sobre os direitos indígenas,
mas já possui abordagens aproximadas aos direitos dos referidos povos. A au-
tora destaca, ainda, que nesse último ciclo em questão não há um reconheci-
mento explícito do pluralismo jurídico por esses textos constitucionais, caso da
Constituição brasileira, que dispensou apenas dois artigos (art. 231 e art. 232),
sob o capítulo Dos Índios, para a discussão indigenista.
No segundo ciclo, o constitucionalismo pluricultural, abrangido entre
1989 e 2005, “las constituciones afirman el derecho a la indentidad y diver-
sidad cultural [...] y desarrollan además el concepto de ‘nación multiétnica/
multicultural’ y ‘Estado pluricultural’” (Fajardo, 2010, p. 9). É nesse ciclo que o
“pluralismo y la diversidad cultural se convierten en princípios constitucionales
y permiten fundar derechos indígenas así como de afrodescendientes y otros
colectivos”.
As constituições surgidas dentro do lapso temporal desse ciclo incorpo-
raram os novos direitos indígenas pela adoção da Convenção nº 169 da OIT,
de 1989, como a oficialização dos idiomas indígenas, da educação bilíngue
multicultural, das terras, das consultas e de outras formas de participação po-
pular. Ademais, esse marco introduz fórmulas de pluralismo jurídico “mediante
el reconocimiento de autoridades indígenas, el derecho consuetudinario y fun-
ciones jurisdicionales o de administración de justicia, quebrando la tradición
decimónica del monismo jurídico” (Fajardo, 2010, p. 9). Merecem destaque os
textos constitucionais da Colômbia, em 1991, bem como as reformas consti-
tucionais do México, em 1992, do Peru, em 1993, da Argentina, em 1994, do
Equador, em 1998, e da Venezuela, em 1999.
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Parece importante destacar alguns pontos principais dos textos citados
supra, como forma de demonstrar o teor descolonial que apresentam. É o caso
do preâmbulo da Constitución Política de la República de Colombia, que pre-
vê um “marco jurídico, democrático y participativo”. O art. 1º já estabelece a
Colômbia como uma república descentralizada, democrática, participativa e
pluralista, com previsão posterior (art. 103) de formas de participação popular
para o exercício da soberania do povo. Também é interessante ressaltar a previ-
são, no art. 246 do mesmo texto constitucional, de que “las autoridades de los
pueblos indígenas podrán ejercer funciones jurisdicionales dentro de su ámbito
territorial, de conformidad com sus proprias normas e procedimentos, siempre
que no sean contrarios a la Constitución y leyes” (Colômbia, 1991).
Ou seja, em 1991 a Colômbia reconheceu, constitucionalmente, o plu-
ralismo jurídico no anseio de evitar marginalizar o “direito socialmente difuso”
emergente das inúmeras nações originárias presentes no território colombiano.
Cabe destacar, também, a Constitución de la República Bolivariana de
Venezuela, posterior à colombiana, já que promulgada em 1999, mas que apro-
fundou na inovação institucional, já que o seu preâmbulo outorga à referida
constituição o “fin supremo de refundar la República para estabelecer una so-
ciedad democrática, participativa y protagónica, multiétnica y pluricultural”,
prevendo, ainda, a cooperação pacífica entre as nações constituintes do Esta-
do, dando início ao reconhecimento de plurinacionalidades nos países latino-
-americanos. Assim como a constituição colombiana, a Carta da Venezuela
prevê formas de participação popular e estabelece uma espécie de cotas para
membros indígenas entre os deputados eleitos.
O terceiro ciclo apontado por Fajardo (2010) é chamado de constitucio-
nalismo plurinacional e é compreendido entre os anos de 2006 e 2009, com
base em dois processos constituintes sul-americanos, na Bolívia e no Equador,
inseridos no contexto da aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os
direitos dos povos indígenas (entre 2006 e 2007).
“Estas constituciones se proponen una refundación del Estado, iniciando
con el reconocimiento explícito de las raíces milenarias de nuestros pueblos,
pueblos ignorados en la primera fundación republicana, y se plantean el reto
histórico de dar fin al colonialismo” (p. 10).
Nessas cartas, os povos indígenas são reconhecidos não apenas como
culturas diferentes, mas como nações originárias ou nacionalidades com au-
todeterminação ou livre determinação, configurando, assim, os Estados como
plurinacionais. Nesse mesmo sentido,
[...] As novas constituições surgidas no âmbito da América Latina são do ponto de
vista da filosofia jurídica, uma quebra ou ruptura com a antiga matriz eurocêntri-
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ca de pensar o Direito e o Estado para o continente, voltando-se, agora, para re-
fundação das instituições, a transformação das ideias e dos instrumentos jurídicos
em favor dos interesses e das culturas encobertas e violentamente apagadas da
sua própria história; quiçá, observa-se um processo de descolonização do poder
e da justiça. (Machado; Wolkmer, 2011, p. 377-378)
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composto por magistrados eleitos com critérios de plurinacionalidade e com
representação do sistema indígena originário campesino. E, por fim, o art. 289,
que garante autonomia e autogoverno aos povos originário.
O interesse intrínseco do presente trabalho de pesquisa nas recentes car-
tas constitucionais latino-americanas é buscar a resposta para a pergunta dei-
xada no título do trabalho, bem como na sua terceira parte: Se o movimento
neoconstitucionalista de vanguarda e descolonizador tem o interesse em reco-
nhecer as diferenças e promover a interculturalidade ou se mostra como um
“Governo das Minorias” e/ou um pagamento de dívida social histórica?
Faz-se necessário recuperar a decisão sem precedentes proferida na Ape-
lação Criminal nº 0090.10.000302-0, que, pela primeira vez no ordenamen-
to jurídico brasileiro, interpretou o art. 57 do Estatuto do Índio com base no
art. 231 da Constituição brasileira. O Estatuto do Índio, instituído pela Lei
nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, é um caso de legislação infraconstitu-
cional “atemporal” no Brasil. É atemporal em razão de que fora promulgada du-
rante uma Ditadura Militar, marcadamente nacionalista, porém com previsões
ousadas considerando um governo antidemocrático. É o caso do art. 57, base da
decisão paradigmática, que prevê que “será tolerada a aplicação, pelos grupos
tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplina-
res contra seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante,
proibida em qualquer caso a pena de morte” (Brasil, 1973).
No caso específico comentado, um indígena da comunidade Manoá, ter-
ra indígena Manoá/Pium, na região da reserva Raposa Serra da Lua, praticou
homicídio contra outro indígena, da mesma tribo, no ano de 2009. Após o fato,
os Taxauas (caciques) das tribos Manoá e Pium reuniram-se com membros das
comunidades, impondo ao indígena acusado algumas penas, entre as quais a
construção de uma nova casa para a esposa da vítima, além da proibição de
ausentar-se da comunidade sem permissão.
Posteriormente, os Taxauas de várias comunidades que compartilham
a reserva Raposa Serra da Lua reuniram-se, inclusive na presença de represen-
tantes da Funai, estabelecendo ao acusado a retirada da comunidade Manoá,
devendo permanecer na comunidade Wai Wai por cinco anos, cumprindo o re-
gimento do Povo Wai Wai, aprender a sua língua e o seu costume, participando
de trabalho comunitário, além dos eventos desenvolvidos pela referida comu-
nidade. Foi garantido ao acusado espaço de terra junto à comunidade Wai Wai
para produzir; entretanto, está proibido de comercializar todo tipo de produtos
sem permissão da comunidade e de seu Taxaua, vedado ao acusado “desautori-
zar” o Taxaua dos Wai Wai, praticando atos sem o seu conhecimento.
A despeito da punição imposta pelos próprios indígenas, o Ministério
Público do Estado da Roraima apresentou denúncia em face do acusado, postu-
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lando a sua condenação pela prática do crime incurso no art. 121, § 2º, inciso
II, do Código Penal, ou seja, homicídio qualificado por motivo fútil. Recebida a
denúncia e instruído o feito, o Juiz de Primeiro Grau, ao prolatar a sua sentença,
acatando manifestação do Procurador Federal responsável pela Seção Indíge-
na, entendeu por declarar a ausência do direito de punir do Estado, em razão
do prévio julgamento e condenação dentro dos costumes e das tradições da
comunidade indígena a qual pertence o acusado. Interposta apelação criminal,
foi mantida, em sua totalidade, a sentença, reafirmando, no Tribunal de Justiça
de Roraima, a compreensão demonstrada pelo Juízo de Primeiro Grau, pela
impossibilidade de o Estado imputar penalmente indígena já julgado com base
nos costumes de sua comunidade.
Importante salientar a excepcionalidade do caso no Direito brasileiro,
já que não há reconhecimento literal de jurisdição indígena no ordenamen-
to jurídico, diferente de outros Estados latino-americanos, como demonstrado
anteriormente. O texto constitucional brasileiro é entendido como presente no
início do processo neoconstitucionalista, que, na América Latina, desaguou no
novo constitucionalismo latino-americano. O que se visualizou foi o primeiro
caso de reconhecimento das autoridades indígenas para julgarem os seus pares
conforme os seus ritos e procedimentos próprios, sem a imposição do direito
oficial pelo Estado ou, ainda, necessidade de ratificação da prática oficiosa pelo
ente estatal.
O ineditismo presente no caso tem a sua vez em razão de uma interpre-
tação do art. 57 do Estatuto dos Índios, colacionado supra, em conjunto com o
art. 231 da Constituição Federal de 1988, que reconhece aos índios a sua orga-
nização social, seus costumes, suas línguas, suas crenças e suas tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, estabelecendo
a competência da União para demarcação e proteção desses espaços. A com-
preensão conjunta do texto legal e da previsão constitucional foi suficiente para
que o Juiz de Primeiro Grau, bem como o Desembargador Relator, entendessem
pelo afastamento do direito de punir do Estado.
É propício colacionar parte das justificativas, tanto do Juiz Singular quan-
to do Desembargador Relator, que, contrariando a prática dogmática que do-
mina os Tribunais brasileiros, afastaram o direito de punir estatal considerando
que o reconhecimento de jurisdição indígena sobre seus pares reforça o Estado
e aproxima o direito socialmente difuso dos indígenas Manoá do direito oficial
estatal. Visualizemos, assim, trecho em que o Juiz de Primeiro Grau manifesta-
-se acerca desse fortalecimento do Estado:
Muito maior que o reconhecimento do direito de punir seus pares, as comuni-
dades indígenas sentirão muito mais fortalecidas em seus usos e costumes, fator
de integração e preservação de sua cultura, haja vista que o Estado estará sinali-
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zando o respeito ao seu modo de viver e lhe dar com as tensões da vida dentro
da comunidade. Há quem pense e diga que haja o temor da repercussão social
da fragilização do Estado ou o potencial recrudescimento da violência dentro
das comunidades indígenas. Digo o inverso, o Estado não estará fragilizado, pois
caso as comunidades indígenas não julguem seus pares, mantém-se o Direito de
Punir Estatal, de forma subsidiária. Enfim, não se enfraquece de forma alguma o
Poder Estatal, mas ao inverso, fortalece-se a atividade jurisdicional ao se reconhe-
cer uma excepcionalidade que deve ser tratada de forma distinta, afinal o Estado
não é absolutista. (Brasil, 2013, grifos nossos)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nação, cultura, etnia, tribo e outros são termos usados para definir a
identidade de um povo ou uma sociedade. A modernidade encerrou na figura
do Estado, uma instituição política, esses sentimentos de pertença, na busca
pela criação de uma fidelidade entre os seus cidadãos. Esse paradigma perdurou
por extensos cinco séculos, ainda que com algumas revoltas, todas silenciadas
pela força do Leviatã.
Como demonstrado no primeiro capítulo do presente trabalho, o mo-
nopólio jurídico e identitário do Estado se apresenta em crise, sendo que as
identidades e o pertencimento locais, e mesmo as de cunho globalizado, têm
dominado a pós-modernidade. Naquilo que tange ao sistema do Direito, o reco-
nhecimento de uma pluralidade de manifestações jurídicas socialmente difusas,
que Boaventura de Sousa Santos chama de o “Direito de Pasárgada”, estão em
processo de afirmação em todo o mundo.
Na América Latina, notadamente um “caldeirão cultural”, são imensas as
diferenças culturais existentes, já que convivem em um mesmo espaço geográ-
fico descentes da colonização europeia, uma infinidade de nações indígenas
originárias, descendentes da escravidão e, obviamente, a miscigenação de toda
essa multiculturalidade. E, justamente, na América Latina um movimento de
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origem “descolonial” ou pós-colonial vem atuando no interesse de integração
intercultural e reconhecimento das diferenças existentes entre toda a população
latino-americana, em uma forma de implementar garantia aos direitos humanos
e enfatizar que essas diferenças não excluem um processo dialogal entre a po-
pulação.
Esse movimento emancipatório, que reconhece a pluralidade de centros
emissores de juridicidade difusos na sociedade, vem sendo chamado de novo
constitucionalismo latino-americano, com um percurso histórico de cerca de
trinta anos, surgido a partir do neoconstitucionalismo do segundo pós-guerra,
mas que tomou ares de um constitucionalismo transformador a partir de sua
deglutição pelos indígenas andinos e da Mesoamérica.
Em nosso trabalho de análise das cartas constitucionais dos países latino-
-americanos conseguimos identificar alguns diferentes ciclos desse neoconstitu-
cionalismo, que possuem um horizonte comum, desembocando em um reconhe-
cimento da plurinacionalidade de muitos desses Estados, com o empoderamento
das comunidades campesinas e dos povos originários americanos e a instituição
de jurisdições indígenas, autogovernos a esses povos e, na Bolívia, um Tribunal
Constitucional plurinacional, eleito com base no pacto intercultural.
Nosso objetivo inicial era o de identificar se esse movimento constitu-
cionalista paradigmático, utilizando do pluralismo jurídico, possui finalidades
de integração intercultural, pela garantia de direitos aos povos, desde sempre
marginalizados, ou se poderia se caracterizar como uma vingança institucional
e um “Governo das Minorias”. Com efeito, não identificamos esse desiderato
no movimento neoconstitucional latino-americano, ainda que se possa visuali-
zar um estranhamento com o “Norte” e os seus descentes, o que é compreensí-
vel. Em verdade, o novo constitucionalismo latino-americano tem as suas bases
no reconhecimento, no respeito e na afirmação das diferenças multiculturais em
nosso continente, o que passa, obviamente, pela expulsão de toda e qualquer
segregação, o que inclui o preconceito e afastamento dos filhos dos coloniza-
dores.
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RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 33-59, jul-ago 2016
Assunto Especial – Acórdão na Íntegra
Âmbito de Proteção do Direito Indígena
3377
EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Su-
premo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julga-
mento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o pedido
formulado no habeas corpus, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 20 de junho de 2001.
RELATÓRIO
O Senhor Ministro Sepúlveda Pertence: Habeas corpus preventivo impe-
trado em favor de Jerônimo Pereira da Silva, índio macuxi da Aldeia de Maturuca,
TI Raposa Serra do Sul, Estado de Roraima, apontando-se como ameaça de
62 D��������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – ACÓRDÃO NA ÍNTEGRA
coação a sua intimação para prestar depoimento à CPI destinada a investigar a
ocupação de terras públicas na Região Amazônica, em audiência a ser realiza-
da em Boa Vista, na sede da Assembleia Legislativa daquele Estado.
Essa a fundamentação e o consequente pedido de habeas corpus formu-
lados pela ilustre Subprocuradora Geral da República Ela Wiecko de Castilho
e Procuradora Regional da República, Deborah Duprat de Britto Pereira, na
qualidade de integrantes da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal:
“O art. 218 do CPP, de aplicação no âmbito das Comissões Parlamentares de
inquérito, autoriza a condução coercitiva da testemunha faltosa, o que evidencia
a possibilidade concreta de o paciente vir a sofrer coação em sua liberdade de
locomoção.
O ato coator, por seu turno, reveste-se de flagrante ilegalidade, na medida em
que afronta os dispositivos constitucionais que conferem proteção específica aos
povos indígenas (arts. 231, 215 e 216), como se verá.
II – DO ATO COATOR
A Constituição de 1988 representa uma clivagem em relação a todo o sistema
constitucional pretérito, ao reconhecer o Estado brasileiro como pluriétnico, e
não mais pautado em pretendidas homogeneidades, garantidas ora por uma pers-
pectiva de assimilação, mediante a qual instala-se, sub-repticiamente, na alma
dos diferentes grupos étnicos, novos gostos e hábitos, corrompendo-os e levando-
-os a renegarem a si próprios, eliminando o específico de sua identidade, ora
submetendo-os forçadamente a uma invisibilidade.
Se se trata de novo padrão a ser necessariamente observado, e não de meros
arquétipos platônicos, impõe-se estabelecer a exata compreensão do novel valor
que irá pautar as condutas dos diversos atores sociais.
À vista desta comunidade nacional, a qual, a despeito da procura de um destino
comum, orienta-se pelo respeito à heterogeneidade da regulamentação ritual da
vida, assegurando aos seus diferentes grupos formadores os modos próprios de
criar, fazer e viver (art. 216, II, CF), bem como os de se auto-referirem e conce-
berem os demais (ib, I) avultam em significado os princípios da liberdade e da
igualdade.
Liberdade como essência do próprio homem, que lhe permite instaurar novos
processos, escolhendo fins e elegendo os meios necessários para a sua realiza-
ção. É a consciência de sua determinação a nota específica do homem. A igual-
dade, por seu turno, pressupõe a alteridade. Não houvesse o ego e o alter seria
impensável a alternativa binária básica entre identidade e diferença. Mas, para
que haja igualdade na alteridade, impõe-se não só respeito, mas compreensão
dos códigos e valores que orientam o outro, sem fundar-lhes em uma lógica que
lhes é estranha, porque do ego.
DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – ACÓRDÃO NA ÍNTEGRA........................................................................................... 63
Comunicação e identidade, assim, são termos que se exigem e se complementa,
pois a compreensão do outro dá-se necessariamente num relacionamento dialó-
gico, mantida obstinadamente viva a não identidade de um com o outro.
Dentre esses grupos étnicos, mereceram especial atenção do legislador cons-
tituinte os povos indígenas, certamente em razão do seu caráter originário na
formação da nação brasileira. Foi-lhes assegurada a ocupação das terras tradi-
cionalmente ocupadas na constatação de que as mesmas seriam indispensáveis à
sua existência física e cultural.
A autonomia dos povos indígenas, contudo, não se esgota no reconhecimento de
um território no qual permaneçam, nem tampouco a ele se limita. Equivocada
seria a leitura que se fizesse exclusivamente a partir do art. 231 da Constituição,
a pretender que o reconhecimento dos seus usos, costumes e tradições se desse
apenas no âmbito do território que lhes foi outorgado, por ser este o objeto es-
pecífico de regulação do dispositivo invocado. Evidencia o art. 216 da CF que,
enquanto grupo formador da sociedade brasileira, os índios têm direito, em suas
relações com os demais segmentos constituintes desta nação, a deles exigir ob-
servância aos seus modos de criar, fazer e viver (inciso II) e, muito mais, fazer-
-lhes ver como a eles – índios – se representam os modos de criar, fazer e viver
desta sociedade que integram, de modo diferenciado (inciso II).
Resulta desta análise que, a par de lhes reconhecer o direito a uma existência
diferenciada, a Constituição outorgou aos próprios índios o direito a dizer em
que consiste esta diferença. Categorizar, como vinha fazendo o legislador a partir
de sua própria perspectiva, os índios como ‘aculturados’ ou ‘selvagens’ revela
preconceito etnocentrista e não mais encontra guarida no texto constitucional,
na medida em que, ao admitir-se como multiétnica a sociedade brasileira, nega-
-se a possibilidade de que um de seus grupos formadores venha a dizer o que
são ou como são os demais, por tal atitude importar em domínio de um único
segmento étnico, o que antagoniza, em absoluto, com a própria noção de multi
ou plurietnicidade.
Ademais, ter contato com uma sociedade não significa necessariamente compar-
tilhar a pauta valorativa que a orienta.
É nessa perspectiva que se revela a ilegitimidade do ato coator.
Primeiramente, por impor ao índio que saia de seu território e compareça para
depor a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, quando o texto constitucional
lhe assegura a permanência em suas terras. Longe de representar um confinamen-
to, é certo que a saída de um índio de suas terras é sempre um ato de opção, de
vontade própria, não podendo se apresentar como uma imposição, salvo hipó-
teses excepcionalíssimas de cometimento de delitos ou situações de risco para a
própria comunidade. A propósito, o § 5º do art. 231 da CF.
Ademais, indispensável se faz a adoção de cautelas tendentes a assegurar que não
haja agressão aos seus usos, costumes e tradições. Não há como se desconhecer
que a inquirição de uma testemunha se faz segundo códigos próprios de quem
64 D��������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – ACÓRDÃO NA ÍNTEGRA
interroga, códigos esses não necessariamente compartilhados pelo depoente. Por
outro lado, tudo aquilo que é dito também o é sob uma ótica diferenciada de
vida, o que reclama correta tradução e compreensão. Tanto mais se revela neces-
sária a cautela quando é certo que o depoente está passível de responsabilidade
criminal por falso testemunho.
Desta forma, a oitiva de um índio, para o fim declinado no ato coator, deve dar-
-se:
a) na área indígena onde se encontra o índio, em dia e hora previamente
acordados com a comunidade;
b) com a presença de representante da Funai e de um antropólogo com co-
nhecimento desta mesma comunidade.
Ressalte-se, por último, para que não pairem dúvidas, que o paciente é Presiden-
te do Conselho Indígena de Roraima, organização exclusivamente formada por
índios, o que não altera, como antes ressaltado, em absolutamente nada o direito
que lhe assiste.
III – DO PEDIDO
Em razão da ameaça concreta de constrangimento à liberdade de locomoção do
paciente, requer-se a concessão da ordem para:
a) liminarmente lhe ser assegurado o não comparecimento à audiência desig-
nada para o dia 20.06.2000, às 14h00, no Edifício da Assembleia Legislati-
va do Estado de Roraima, em Boa Vista;
b) garantir que a sua inquirição se dê na área indígena que habita, com as
cautelas antes declinadas.”
VOTO
O Senhor Ministro Sepúlveda Pertence (Relator):
I
Conheço do pedido.
Firmou-se no Tribunal a admissibilidade do habeas corpus que é de
sua competência originária (v.g., HC 32678, 05.08.1953, Mário Guimarães,
RFor. 151/375; HC 71261, 11.05.1994, Pertence, RTJ 160/522; HC 71039,
07.04.1994, Brossard, RTJ 169/511 etc.) – quando se questiona da legitimidade
da intimação para depor em comissões parlamentares de inquérito (v.g., Plená-
rio, HC 71193, 06.04.1994, Pertence, DJ 23.03.2001; HC 71261, 11.05.1994,
Pertence, RTJ 160/521; HC 71039, 07.04.1994, Brossard, RTJ 169/511).
No HC 71193, consignei na ementa – DJ 23.03.2001:
“Habeas corpus: cabimento em caráter preventivo, contra ameaça de constrangi-
mento à liberdade de locomoção, materializado na intimação do paciente para
depor em CPI, que contém em si a possibilidade de condução coercitiva da tes-
temunha que se recusa a comparecer, como no caso se pretende ser direito seu.”
II
No mérito, depois de expor os fundamentos da impetração, opinou nes-
tes termos o Senhor Procurador-Geral da República:
“12. O ato de intimar determinada pessoa para prestar depoimento em Comissão
Parlamentar de Inquérito não constitui, só por si, motivo suficiente que possa
evidenciar, quanto a ela, a ocorrência de ameaça ao seu status libertatis, uma vez
66 D��������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – ACÓRDÃO NA ÍNTEGRA
que é necessário para que se legitime o acesso à proteção jurisdicional do Estado
a comprovação de situação de ofensa, direta ou indireta, atual ou iminente, a
direitos ou a garantias assegurados pela ordem jurídica e correlacionados com
a liberdade de locomoção (nesse sentido: HCML 80427/PE, Rel. Min. Celso de
Mello, in DJ de 13.09.2000, p. 21).
13. Eis que, conforme o art. 58, § 3º, da Constituição Federal, as Comissões
Parlamentares de Inquérito detêm o poder instrutório das autoridades judiciais,
nem maior, nem menor que o dessas, de modo que às Comissões podem opor-
-se os mesmos limites formais e materiais oponíveis aos juízes, dentre os quais
os derivados de direitos e garantias previstos no ordenamento (nesse sentido: HC
79.244/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, in DJ de 24.03.2000,
p. 38).
14. No caso dos indígenas, muito embora a legislação pátria não disponha ex-
pressamente sobre limites para a sua intimação ou inquirição, tais atos devem
pautar-se por cautelas de modo a não violarem as normas constitucionais prote-
tivas deste grupo étnico.
15. Como bem observaram as impetrantes, a legislação anterior continha refe-
rências expressas à integração ou assimilação inevitável do silvícola, no entanto,
com o advento da atual Carta Magna sobreveio nova mentalidade que assegura
espaço para uma interação entre esses povos e a sociedade, protegendo, inclu-
sive, a diversidade cultural dos povos indígenas, cujos valores passaram a ser
objeto de tutela constitucional, nos termos do que dispõe os arts. 215, 216 e 231.
16. Deste modo, a convocação de um índio cara prestar depoimento em local
diverso de suas terras coage a sua liberdade de locomoção, na medida em que,
sendo vedada pela Constituição da República a remoção dos grupos indígenas
de suas terras, salvo exceções nela previstas (CF/1988, art. 231, § 5º), deve-se tal
direito ser estendido não só ao grupo, mas ao indivíduo que o compõe, uma vez
que tal norma visa a proteger não só a posse e o usufruto das terras originaria-
mente dos índios, mas a identidade cultural do grupo indígena, que deslocado
a perderia.
17. Assim, deve-se estender a tutela constitucional de proteção do grupo indí-
gena quanto à remoção de suas terras, expondo-o a influência de uma cultura
dominadora, ao componente deste grupo, ainda mais quando este pode ser con-
duzido coercitivamente, se não cumprir o ato de intimação, e, por não ser inte-
grado a uma nova diversidade cultural, sujeitar-se aos malefícios de um choque
de interesses e valores.
18. Claro que se deve observar que tal direito de permanência na terra não
é absoluto, uma vez que não só limitado pelas exceções previstas no § 5º do
art. 231 da Lei Maior, mas por direitos e garantias constitucionais outros em
conflito, como seria o caso da prisão em flagrante ou por ordem escrita funda-
mentada (CF/1988, art. 5º, LXI).
DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – ACÓRDÃO NA ÍNTEGRA........................................................................................... 67
19. De outro lado, cabe evidenciar que o colhimento de depoimento de índio,
que não incorporou ou compreende as práticas e modos de existência comuns
ao ‘homem branco’, sem as devidas cautelas, ocasionaria, muito provavelmente,
em virtude do conflito entre as identidades culturais e do desconhecimento da
lei, o cometimento pelo silvícola de ato ilícito, passível de comprometimento do
seu status libertatis, dentre ele o crime de desobediência, desacato, ou, como
observado pelas impetrantes, a própria infração de falso testemunho. E, como
consequência, o ato de intimação para depor também estaria maculado pela
pecha de ameaçador ao direito de ir e vir, o que também dá ensejo à presente
tutela jurídica.
Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal pelo deferimento do pedido,
para que seja assegurado ao paciente prestar depoimento na área indígena onde
se encontra e com as devidas cautelas, de modo a não ocorrer agressão aos seus
usos, costumes e tradições.”
O parecer é irretocável.
Na mesma linha, José Afonso da Silva1 a meu ver, situou com precisão
o reconhecimento constitucional da identidade cultural das comunidades indí-
genas.
“O art. 231” – assinala o mestre – “reconhece a organização social, cos-
tumes, línguas, crenças e tradições dos índios, com o que reconhece a existên-
cia de minorias nacionais e institui normas de proteção de sua singularidade
étnica, especialmente de suas línguas, costumes e usos. A propósito, a Consti-
tuição fala em populações indígenas (art. 22, XIV) e comunidades indígenas ou
dos índios (art. 232), certamente como comunidades culturais, que se revelam
na identidade étnica, não propriamente como comunidade de origem que se
vincula ao conceito de raça natural, fundado no fator biológico, hoje superado,
dada a “impossibilidade prática de achar um critério que defina a pureza da
raça”. Nem é comunidade nacional que não é redutível a fatores particulares ou
parciais, porque se integra de todos, enquanto realização do princípio do Estado
nacional, traduzindo, no nosso caso, a unidade comunitária dos brasileiros que
envolve a todos”.
E depois de definir o sentido étnico com o qual cabe referir-se a nações
indígenas, conclui
“Enfim, o sentido de pertinência a uma comunidade indígena é que identifica o
índio. A dizer, é índio quem se sente índio. Essa auto-identificação, que se funda
no sentimento de pertinência a uma comunidade indígena, e a manutenção dessa
identidade étnica, fundada na continuidade histórica do passado pré-colombiano
que reproduz a mesma cultura, constituem o critério fundamental para a identi-
1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. Malheiros, p. 826 e ss.
68 D��������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – ACÓRDÃO NA ÍNTEGRA
ficação do índio brasileiro. Essa permanência em si mesma, embora interagindo
um grupo com outros, é que lhe dá a continuidade étnica identificadora. Ora, a
Constituição assume essa concepção, p. ex., no art. 231, § 1º, ao ter as terras ocu-
padas pelos índios como ‘necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições’. A identidade étnica perdura nessa reprodução
cultural, que não é estática; não se pode ter cultura estática. Os índios, como
qualquer comunidade étnica, não param no tempo. A evolução pode ser mais
rápida ou mais lenta, mas sempre haverá mudanças e, assim, a cultura indígena,
como qualquer outra, é constantemente reproduzida, não igual a si mesma. Ne-
nhuma cultura é isolada. Está sempre em contacto com outras formas culturais. A
reprodução cultural não destrói a identidade cultural da comunidade, identidade
que se mantém em resposta a outros grupos com os quais dita comunidade in-
terage. Eventuais transformações decorrentes do viver e do conviver das comu-
nidades não descaracterizam a identidade cultural. Tampouco a descaracteriza
a adoção de instrumentos novos ou de novos utensílios, porque são mudanças
dentro da mesma identidade ética.”
PLENÁRIO
EXTRATO DE ATA
Habeas Corpus nº 80.240-1
Proced.: Roraima
Relator: Min. Sepúlveda Pertence
Pacte.: Jerônimo Pereira da Silva
Imptes.: Ela Wiecko Volkmer de Castilho e outra
Coator: Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI para inves-
tigar a ocupação de terras públicas na Região Amazônica)
Luiz Tomimatsu
Coordenador
VOTO
VISTA
O Senhor Ministro Marco Aurélio – Este habeas corpus tem como objeto
ato da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ocupação de
terras públicas na Região Amazônica que implicou a intimação do Paciente,
indígena, para comparecer perante a Comissão como testemunha. A inicial,
redigida com insuplantável esmero, busca revelar o direito do Paciente de ser
ouvido na área indígena, em dia e hora previamente acordados, com a presença
de representante da Fundação Nacional do Índio – Funai e de um antropólogo
com conhecimento da vida na comunidade.
Na sessão em que começado o julgamento, o Ministro Sepúlveda
Pertence pronunciou-se pela concessão do habeas, reportando-se não só ao pa-
recer da Procuradoria Geral da República em tal sentido, como também à lição
de José Afonso da Silva sobre o alcance do art. 231 do Diploma Básico. Entende
Sua Excelência que o trato da matéria sob o ângulo constitucional obstaculiza
a mencionada intimação.
Estão em jogo valores diversos e que, portanto, hão de ser sopesados. De
um lado, consoante a regra geral decorrente do § 3º do art. 58 da Constituição
Federal, as comissões parlamentares de inquérito têm poderes de investigação,
podendo intimar aqueles que surjam como envolvidos em fatos a serem objeto
de apuração. De outro, observa-se o tratamento especial conferido aos índios.
A Carta preserva a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e
tradições dos índios, consideradas as peculiaridades reinantes, objetivando o
respeito à cultura indígena. Há de extrair-se da Carta Política a maior eficá-
cia possível, ante o fim colimado. Procede a conclusão da inicial, em que se
enfatiza: “a saída de um índio de suas terras é sempre um ato de opção, de
vontade própria, não podendo se apresentar como uma imposição, salvo hi-
póteses excepcionalíssimas de cometimento de delitos ou situações de risco
para a própria comunidade”. Retorno ao início deste voto. Contrapondo os va-
lores em questão, sobressai o relativo à preservação dos costumes indígenas. E
aí transparece em segundo plano o referente à audição de pessoas no âmbito
da casa em que instalada a comissão parlamentar de inquérito, sem que isso
implique prejuízo para a atividade desta. Contando as comissões com melhor
estrutura, podem muito bem proceder a tal audição na região em que situada
a comunidade indígena, cabendo as precauções aventadas na inicial. Isso não
70 D��������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ASSUNTO ESPECIAL – ACÓRDÃO NA ÍNTEGRA
resulta no esvaziamento da importância de tal comissão, mas na racionalidade
do desenvolvimento dos trabalhos em harmonia com o texto constitucional.
Em síntese, o poder de investigação encerrado no preceito da Carta abrange, é
certo, o de intimar pessoas para comparecimento ao local designado, sem, no
entanto, importar em ato impositivo, em se tratando da audição de indígena.
Aliás, os veículos de comunicação têm revelado o deslocamento, em diligência,
de membros de comissões parlamentares de inquérito, o que se dirá quando
isso decorre da própria norma constitucional. Acompanho o Ministro Sepúlveda
Pertence, deferindo o habeas corpus nos termos em que pleiteado.
PLENÁRIO
EXTRATO DE ATA
Habeas Corpus nº 80.240-1
Proced.: Roraima
Relator: Min. Sepúlveda Pertence
Pacte.: Jerônimo Pereira da Silva
Imptes.: Ela Wiecko Volkmer de Castilho e outra
Coator: Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI para inves-
tigar a ocupação de terras públicas na Região Amazônica)
Luiz Tomimatsu
Coordenador
Assunto Especial – Ementário
Âmbito de Proteção do Direito Indígena
3384 – Tutela do direito à vida de indígenas – tutela idêntica à dos demais brasileiros –
proteção constitucional à cultura indígena
“É de natureza civil, e não criminal [...], a tutela que a CF, no caput do art. 231, cometeu à União, ao
reconhecer ‘aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’, não podendo ser ela confundida com o
dever que tem o Estado de proteger a vida e a integridade física dos índios, dever não restrito a estes,
estendendo-se, ao revés, a todas as demais pessoas. Descabimento, portanto, da assistência pela
Funai, no caso.” (STF – HC 79.530 – 1ª T. – Rel. Min. Ilmar Galvão – J. 16.12.1999 – DJ de 25.02.2000)
Submissão: 26.06.2015
Decisão Editorial: 19.10.2015
Comunicação ao Autor: 19.10.2015
RESUMO: A expansão do poder judicial tem sido reconhecida como fenômeno mundial. Cortes Su‑
premas e Constitucionais têm se tornado, cada vez mais, atores relevantes dos sistemas políticos
nos quais inseridas. Muitas de suas decisões são rotuladas como “ativismo judicial”. Este artigo
ocupa-se de algumas dessas “experiências ativistas”, com destaque maior para o Supremo Tribunal
Federal. A conclusão é a de o exame de legitimidade dessa atuação ativista exigir a consideração do
ambiente político e institucional envolvente.
ABSTRACT: The expansion of judicial power has been recognized a worldwide phenomenon. Supre‑
me and Constitutional Courts have become, more and more, important players in political systems.
Many decisions are labelled “judicial activism”. This paper is about some “activit experiences”, spe‑
cially, the Brazilian Supreme Court. The conclusion is the legitimacy of the judicial activism must be
examined considering the political and institutional environment.
KEYWORDS: Judicial activism; Constitutional and Supreme Courts; Brazilian Supreme Court; funda‑
mental rights; politcs.
RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 78-103, jul-ago 2016
DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – DOUTRINA....................................................................................................................... 79
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos do século XX e, com mais destaque, neste século XXI,
houve alteração quantitativa e qualitativa do espaço ocupado pelo Supremo
Tribunal Federal no cenário sociopolítico brasileiro. A Corte foi reinventada em
diferentes aspectos: na abrangência dos temas julgados – temas de alta volta-
gem política e moralmente hipercontroversos ao lado de muitas questões não
tão importantes assim; no tipo de argumentos de decisão – redução progressiva
do positivismo formalista para a adoção de uma metodologia mais criativa e
orientada a valores; no alcance das decisões – julgamentos que repercutem
sobre todo o sistema político e por toda a sociedade; na própria afirmação da
identidade institucional – os ministros passaram a defender como nunca, in-
clusive fora dos autos, o valor de suas funções e a relevância do Supremo1. Ao
avanço das decisões do Supremo sobre os outros poderes e as questões sociais
mais relevantes dá-se o nome de ativismo judicial.
O propósito deste texto é apresentar, em apertada síntese, o ativismo
judicial praticado por Cortes de algumas partes do mundo e, particularmente,
pelo Supremo Tribunal Federal. Buscarei expor conceitos a fim de fomentar o
debate normativo em torno do tema, fixando premissas para que se possa discu-
tir a legitimidade do ativismo judicial do Supremo. O texto é dividido, a seguir,
em três partes. Na primeira (I), apresento conceitos que compõem o vocabulário
do debate. Na segunda (II), abordo algumas experiências estrangeiras de ativis-
mo judicial. Na terceira (III), examino importantes decisões ativistas do Supre-
mo em dois eixos temáticos: processo político-eleitoral e proteção de direitos
fundamentais. Por fim, conclusões, tendo em vista o debate sobre a legitimidade
do ativismo judicial.
1 ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo na política: a construção da supremacia judicial no Brasil. Revista
de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: FGV, v. 250, p. 5, 2009.
2 Existem anotações no sentido de que Schlesinger, na verdade, não teria criado o termo, mas o tomou de
empréstimo de Thomas Reed Powell, seu colega de Harvard: GREEN, Craig. An intellectual history of judicial
activism. Emory Law Journal, v. 58 (5), n. 19, p. 1203, 2009.
RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 78-103, jul-ago 2016
80 D������������������������������������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – DOUTRINA
Revista Fortune, v. XXXV, nº 1, no mês de janeiro de 1947. O artigo de Schle-
singer avaliou a Suprema Corte de 1947, formada quase inteiramente por juízes
nomeados por Roosevelt. O autor classificou os juízes da Corte em: (i) juízes
ativistas com ênfase na defesa dos direitos das minorias e das classes mais po-
bres – Justices Black e Douglas; (ii) juízes ativistas com ênfase nos direitos de
liberdade – Justices Murphy e Rutledge; (iii) juízes campeões da autorrestrição
– Justices Frankfurter, Jackson e Burton; e (iv) juízes representantes do equilíbrio
de forças (balance of powers) – Chief Justice Fred Vinson e o Justice Reed.
Schlesinger apresentou o termo “ativismo judicial” exatamente como
oposto à “autorrestrição judicial”. Para o autor, os juízes ativistas substituem
a vontade do legislador pela própria porque acreditam que devem atuar ativa-
mente na promoção das liberdades civis e dos direitos das minorias, dos desti-
tuídos e dos indefesos, “mesmo se, para tanto, chegassem próximo à correção
judicial dos erros do legislador”. Ao contrário, os juízes “campeões da autor-
restrição judicial” têm visão muito diferente a respeito das responsabilidades da
Corte e da natureza da função judicial: a Suprema Corte não deve intervir no
campo da política, e sim agir com “deferência à vontade do legislador”3. As di-
vergências eram, enfim, uma disputa sobre o lugar da Suprema Corte no sistema
de governo norte-americano. Eis a síntese de sua análise:
O grupo Black-Douglas acredita que a Suprema Corte pode cumprir um papel
afirmativo em promover o bem-estar social; o grupo Frankfurter-Jackson advoga
uma política de autorrestrição judicial. Um grupo é mais preocupado com o em-
prego do poder judicial em favor da própria concepção de bem social; o outro
com expandir o campo de liberdade de conformação dos legisladores, mesmo
se isso significar sustentar conclusões que eles particularmente condenam. Um
grupo considera a Corte como instrumento para alcançar resultados sociais de-
sejados; o segundo como instrumento para permitir que os outros poderes de go-
verno alcancem os resultados que o povo deseja, sejam bons ou ruins. Em suma,
a ala Black-Douglas parece estar mais preocupada em resolver casos particulares
de acordo com as próprias pré-concepções sociais; a ala Frankfurter-Jackson com
preservar o judiciário em seu espaço estabelecido, mas limitado no sistema ame-
ricano.4
3 SCHLESINGER JR., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune, v. 35 (1), p. 75/77, 1947.
4 SCHLESINGER JR., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune, v. 35 (1), p. 201, 1947.
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rantem a própria participação política dos indivíduos”5, ou seja, Schlesinger não
negou o ativismo em absoluto; entretanto, não o aceitava como rotina institu-
cional da democracia norte-americana.
5 SCHLESINGER JR., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune, v. 35 (1), p. 208 e 212, 1947.
6 WHEELER, Fiona; WILLIAMS, John. “Restrained activism” in the High Court of Australia. In: DICKSON, Brice
(Ed.). Judicial activism in common law Supreme Courts. New York: Oxford University Press, 2007. p. 19.
7 LINDQUIST, Stefanie A. The scientific study of judicial activism. Minnesota Law Review, v. 91 (6), p. 1752,
2007.
8 SUNSTEIN, Cass. Radicals in Robes. New York: Basic Books, 2005. p. 42.
9 ROOSEVELT III, Kermit. The myth of judicial activism: making sense of Supreme Court decisions. New Haven:
Yale University Press, p. 3 et seq.
10 Disponível em: <http://www.osconstitucionalistas.com.br/entrevista-luis-roberto-barroso-nao-tenho-nenhum-
orgulho-do-volume-de-processos-que-o-supremo-julga>.
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próprio alvo”11. Não obstante, aposto na utilidade do termo ativismo judicial.
Acredito que o fim da indeterminação conceitual representa uma necessidade
teórica e prática. Minha primeira tarefa, neste texto, é formular uma definição
que possa criar as condições iniciais para a identificação das decisões ativistas
do Supremo. Para tanto, primeiramente, sistematizarei as principais característi-
cas do ativismo judicial segundo se pode constatar pela observação da postura
adjudicatória das principais Cortes constitucionais. Na sequência, apresentarei
a proposta conceitual, destacando tratar-se de prática que responde a diferentes
fatores e se apresenta por múltiplas dimensões.
11 JUSTICE, William Wayne. The two faces of judicial activism. In: O’BRIEN, David M. (Ed.). Judges on judging.
Views from the Bench. 8. ed. New York: W. W. Norton & Company, 2008. p. 259.
12 YOUNG, Ernest A. Judicial activism and conservative politics. Colorado Law Review, 73 (4), p. 1161, 2002.
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compõem o centro do debate e não o acerto ou o erro de mérito constitucional
ou moral das decisões judiciais. O ativismo judicial, como destaca Wojciech
Sadurski, “é necessariamente uma noção relacional”13, de modo que as relações
entre as instituições puramente políticas e as Cortes constituem sua essência.
Tal noção foi muito bem compreendida por Ernest A. Young. Segundo
o autor, deve-se reconhecer a absoluta independência do significado do termo
em relação à correção ou não de decisões particulares: “Correção de mérito
e assertividade institucional [são] questões separadas”, e a noção de ativismo
judicial deve envolver apenas a questão da “alocação da autoridade de tomada
de decisões dentro de um sistema judicial e entre esse sistema e outros partici-
pantes do governo”14. Discutir o ativismo judicial não é discutir se determinada
decisão é correta ou não, pois isso é contingente, e sim o quanto de autoridade
constitucional e epistêmica a Corte tinha para tomar essa decisão.
13 SADURSKI, Wojciech. Rights before Courts. A study of Constitutional Courts in Postcommunist States of
Central and Eastern Europe. Dordrecht: Springer, 2008. p. 87.
14 YOUNG, Ernest A. Judicial activism and conservative politics. Colorado Law Review, v. 73 (4), p. 1162/1164,
2002.
15 Cf. ROOSEVELT III, Kermit. The myth of judicial activism: making sense of Supreme Court decisions. New
Haven: Yale University Press, p. 3 et seq.
16 Cf. CANON, Bradley C. A Framework for the analysis of judicial activism. In: HALPERN, Stephen C.; LAMB,
Charles M. Supreme Court activism and restraint. Lexington: Lexington Books, 1982. p. 385; BARAK,
Aharon. The judge in a democracy. New Jersey: Princeton University Press, 2006. p. 266.
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judicial17. Da mesma forma, o que é considerado ativismo judicial nos Estados
Unidos, não o é na Alemanha, na Itália ou no Brasil18. A identificação e a avalia-
ção do ativismo judicial não podem, portanto, ser desvinculados das estruturas
constitucionais que, em lugares e em épocas distintas, disciplinam a dinâmica
de funcionamento dos poderes e as relações entre indivíduos e Estado, tampou-
co das práticas jurídico-culturais, políticas e sociais contemporâneas. O estudo
comparativo é de muita relevância, mas com os devidos filtros.
17 Sobre a relevância do contexto histórico na identificação de decisões ativistas, cf. YOUNG, Ernest A. Judicial
activism and conservative politics. Colorado Law Review, v. 73 (4), p. 1169-1170, 2002.
18 Para Georg Vanberg (The politics of constitutional review in Germany. New York: Cambridge University Press,
2005. p. 173), “o impacto do controle de constitucionalidade variará através das Cortes, do tempo e mesmo
através das questões decididas pela mesma Corte”.
19 Sobre essa análise, cf. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do STF. Rio
de Janeiro: Forense, 2014. p. 99-148.
20 CROSS, Frank B.; LINDQUIST, Stefanie A. Measuring judicial activism. New York: Oxford University Press,
2009. p. 32: o ativismo judicial é um “conceito multifacetado”.
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transforma a identificação do ativismo judicial em uma empreitada mais com-
pleta e segura.
21 Laurence Tribe (The invisible Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 45) diz que a discussão
sobre o papel da Suprema Corte norte-americana na interpretação da Constituição e na interferência sobre as
ações dos outros poderes “é tão velha quanto a própria nação”.
22 Sobre a frequência do termo em artigos de law reviews e em jornais, cf. KMIEC, Keenan D. The origin and
current meanings of “judicial activism”. California Law Review, v. 92 (5), p. 1442-1443, 2004.
23 Sobre o histórico de discussão nessas audiências em torno do ativismo judicial e das orientações ideológicas
dos juízes, cf. TOOBIN, Jeffrey. The nine. Inside the secret world of the Supreme Court. New York: Anchor
Books, 2007; PETTYS, Todd E. Judicial discretion in constitutional cases. Journal of Law & Politics, v. 26 (1),
p. 128-143, 2011.
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Decisões da Suprema Corte podem ser identificadas como ativistas desde
os primórdios da prática da judicial review e algumas são tão relevantes que
transformaram não só o perfil da Corte, mas também a sociedade norte-ame-
ricana. Pode-se falar em uma “pré-história do ativismo judicial”. Refiro-me às
decisões Marbury v. Madison, Dred Scott v. Sandford e Lochner v. New York.
A primeira representou a afirmação histórica do poder da Suprema Corte de
exercer a judicial review e repercutiu, para sempre, em seu papel no arranjo
político-institucional estadunidense. A segunda procurou resolver a controvér-
sia da escravidão nos Estados Unidos, mas apenas exacerbou a divisão entre
o Norte antiescravagista e o Sul escravagista, acelerando a eclosão da Guerra
Civil que transformaria, definitivamente, o país.
A terceira é o marco da chamada “Era Locnher”, a primeira das três fases
de ativismo judicial, normalmente, destacadas pelos autores. A segunda é a
Corte Warren; a terceira, a Corte Rehnquist.
Em Lochner, a Suprema Corte declarou inconstitucional lei estadual por
meio da qual se assegurou jornada máxima de trabalho em favor de padeiros. A
Corte entendeu que o legislador não poderia interferir nas relações contratuais de
trabalho por violação à cláusula do devido processo legal24. Os votos vencidos,
de dois dos mais importantes juízes da história da Suprema Corte, John Marshall
Harlan e Oliver Holmes, revelam que o ativismo judicial de Lochner se destacou,
fundamentalmente, em duas dimensões. A primeira foi que a Suprema Corte de-
fendeu um direito absoluto de contratar sem previsão expressa no texto constitu-
cional, apenas o deduzindo de norma constitucional muito vaga e indeterminada
como a do devido processo legal. Holmes condenou a visão político-libertária da
Corte em razão de essa ideologia não decorrer da própria Constituição.
A segunda manifestação ativista foi o fato de a Corte Lochner ter interfe-
rido em caso legislativo de política pública que, por sua natureza e conteúdo,
exigia deferência à capacidade epistêmica do legislador25. A Suprema Corte
agiu com o máximo rigor no julgamento da “veracidade das estimativas empí-
ricas” da lei, ou seja, das conclusões empíricas que motivaram a formulação
da lei. Não reconheceu ao legislador de Nova Iorque o que Robert Alexy de-
nomina de margem de ação epistêmica do tipo empírico, isto é, que cabe ao
legislador, prima facie em uma democracia, dizer dos fatos relevantes e dos
resultados práticos pretendidos que dirigem as ações legislativas restritivas de
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direitos26. O ativismo de Lochner, portanto, não levantou apenas objeções de
natureza democrática, mas também questões ligadas à temática das capacida-
des institucionais.
A Corte Warren foi o grande momento jurisprudencial norte-americano
dos direitos e liberdades civis do século XX. Para tanto, a Corte negou que
a Constituição tivesse uma natureza estática e a enxergou como “documento
vivo” (living document), cujos significados deveriam ser sensíveis às mudanças
sociais. A dimensão de interpretação criativa da Constituição para afirmação de
direitos fundamentais opostos ao Estado fez da Corte Warren única no sistema
político norte-americano e para o debate moderno sobre o ativismo judicial.
A primeira grande decisão da Corte Warren – talvez a mais importante
da história da Suprema Corte27 – data de 1954 e foi, claro, Brown v. Board of
Education, um caso de segregação racial no ensino público28. Superando
Plessy29 de 1896, e a odiosa doutrina separate but equal, a Corte julgou incons-
titucional a segregação racial em escolas públicas por violação da equal pro-
tection clause. No histórico voto de Warren, ficou assentado que a segregação
racial produzia uma sociedade desigual, contrária ao propósito igualitário da
XIV Emenda e, por isso, seria inconstitucional. Firme na ideia de living Consti-
tution, a Corte Warren conferiu, àquela altura dos acontecimentos sociais e po-
líticos, nova interpretação à cláusula constitucional da equal protection of laws
no sentido de declarar qualquer política de segregação racial inconstitucional.
A decisão recebeu forte reação dos estados sulistas.
A Corte também tomou decisões ativistas no campo penal, assegurando
diferentes garantias aos acusados de crimes: Mapp v. Ohio30, Gideon31, Miranda
v. Arizona32. A Corte Warren ainda impôs limitações às leis de “segurança na-
cional”, típicas da McCharthy Era33; e depois, interveio, pautada na equal pro-
tection clause, nas delimitações inadequadas dos distritos eleitorais e na distri-
buição desproporcional dos assentos legislativos federais, estaduais e locais (a
ideia de one person, one vote) nos destacados Reapportionment Cases34. Ainda,
na hipercontrovertida Griswold v. Connecticut35, opôs ao legislador estadual
26 ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoría de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho
Constitucional, v. 66, p. 50/53, 2002.
27 HORWITZ, Morton J. The Warren Court and the Pursuit of Justice. New York: Hill and Wang, 1998. p. 15.
28 347 U.S. 483 (1954).
29 Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896).
30 367 U.S. 643 (1961).
31 Gideon v. Wainwright, 372 U.S. 335 (1963).
32 Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966).
33 Cole v. Young, 351 U.S. 536 (1955); Pennsylvania v. Nelson, 350 U.S. 497 (1956); Yates v. United States,
354 U.S. 298 (1957).
34 Baker v. Carr, 369 U.S. 186 (1962); Reynolds v. Sims, 377 U.S. 533 (1964).
35 381 U.S. 479 (1965). Hipercontrovertida não em seu resultado, mas por sua doutrina de afirmação do direito
constitucional e fundamental à privacidade. Essa doutrina seria depois utilizada pela Corte Burger para afirmar
o direito ao aborto.
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um direito constitucional à privacidade para julgar inconstitucional lei que es-
tabelecia a proibição do uso de contraceptivos por casais casados, base para a
decisão em Roe v. Wade sobre o aborto36.
Enquanto o conjunto de decisões da Corte Warren revela interpretação
criativa e evolutiva de normas constitucionais vagas e indeterminadas, dotadas
de alta carga valorativa, com o fim de avançar posições de liberdade funda-
mental e igualdade social, a terceira fase marcante de ativismo judicial da Su-
prema Corte possuiu direção oposta. Superar os precedentes ativistas e liberais
da Corte Warren tornou-se uma obsessão do Partido Republicano e de seus
presidentes mais conservadores, Richard Nixon e Ronald Reagan. Se a Corte
Warren foi uma revolução constitucional, esses presidentes deram início a uma
contrarrevolução constitucional. As principais nomeações desses presidentes
culminaram na chamada Corte Rehnquist.
Com Willian Rehnquist, como Chief Justice, e juízes ultraconservado-
res como Antonin Scalia, que logo se tornaria o líder intelectual do origina-
lismo na Suprema Corte, Clarence Thomas, e as aposentadorias de Brennan e
Marshall, últimos remanescentes do bloco liberal da Corte Warren, a Suprema
Corte passou a praticar o que foi batizado de ativismo judicial conservador.
Principalmente, entre 1993 e 2002, a Corte Rehnquist praticou o chamado
“Novo Federalismo”. Avançando programas lançados pela cruzada conserva-
dora de Reagan e pautada na interpretação original da Constituição (originalis-
mo), ela aumentou o poder dos estados em detrimento do Congresso Nacional
e do próprio Judiciário Federal.
Bush v. Gore foi a grande marca desse período. Em uma das decisões
mais controvertidas de sua história e por meio de divisão de votos que
espelhou não só uma divisão ideológica, sobretudo partidária, a Suprema
Corte, pautada na equal protection clause da XIV Emenda, definiu, por 5
a 4, os rumos da eleição presidencial de 2000, assegurando a George W.
Bush a vitória. Essa decisão retratou bem como a maioria da Suprema Corte,
naquele momento, havia avançado no sentido dos propósitos do Partido
Republicano e das forças políticas conservadoras do país37. No embate en-
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tre a Corte Rehnquist e o legado da Corte Warren, assistiu-se ao combate
ativismo versus ativismo38.
II.2 Itália
Após o fim da 2ª Grande Guerra, com a permanente omissão do Parla-
mento italiano em atualizar a legislação ordinária produzida durante o regi-
me fascista, e o trabalho passivo e conservador da Corte de Cassação, a Corte
Constitucional acabou assumindo um papel político-reformista e substituiu o
legislador “na modernização e na democratização do ordenamento jurídico
italiano”39. Para tanto, a Corte desenvolveu um arsenal de sentenças não or-
todoxas que se tornou o traço distintivo de sua jurisprudência ativista. Para
adequar o velho ao novo, o autoritário ao democrático, o juiz constitucional ita-
liano, muitas vezes, extrapolou a função de revelar o que dizem as disposições
normativas para manipular os sentidos das leis, adicionando novos significados
normativos ou substituindo os já existentes.
Sobre essas sentenças não ortodoxas, a dogmática constitucional tem de-
senvolvido uma tipologia muito influente: as chamadas sentenças manipulati-
vas – sentenças que resultam na transformação do significado da lei, mas sem
alteração formal do texto normativo. Dentre as espécies de sentenças manipu-
lativas, destaca-se a das sentenças aditivas. Por meio destas, a Corte reconhece
a inconstitucionalidade da lei “na parte em que não prevê algo que deveria
prever”40 e supre a lacuna, adicionando o significado normativo faltante. Como
disse Augusto Cerri, “a decisão aditiva pressupõe uma ‘lacuna axiológica’”41, de
modo que a declaração de inconstitucionalidade da omissão deve ser lógica e
estruturalmente ligada à superação do estado omissivo.
Exemplo claro desse ativismo da Corte foi a Sentença nº 190, de
10.12.1970. Estava em julgamento a legitimidade constitucional do art. 304,
§ 1º, do Código de Processo Penal de 1930, que permitia a participação ativa
do Ministério Público nos interrogatórios dos acusados durante a instrução cri-
minal, mas não previa sequer a presença dos defensores dos acusados. A Corte
concluiu haver grave violação do direito de defesa previsto no art. 24, § 2º, da
Constituição. Para corrigir esse desequilíbrio, incluiu “a presença do defensor
38 Michael C. Dorf (No litmus test: law versus politics in the twenty-first century. Lanham: Rowman & Littlefield,
2006. p. 5), em tom jocoso: “[...] o ativismo judicial está morto; longa vida ao ativismo judicial”.
39 GROPPI, Tania. A justiça constitucional em Itália. Sub Judice: justiça e sociedade, Lisboa, v. 20/21, p. 74,
2001. Augusto Martín de La Vega (La sentencia constitucional em Italia. Madrid: CEPC, 2003. p. 232) cita
a figura do “reformismo jurisprudencial” e a Corte como um “motor das reformas”.
40 ZAGREBELSKY, Gustavo. La giustizia costituzionale. 2. ed. Bologna: Il Mulino, 1988. p. 298: “As sentenças
aditivas são utilizadas [...] quando uma disposição tem alcance normativo menor do que constitucionalmente
deveria ter”.
41 CERRI, Augusto. Corso di giustizia costituzionale. 4. ed. Milano: Giuffrè, 2004. p. 242.
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no interrogatório” em vez de excluir o Ministério Público. A decisão final foi um
“adicionar” de elemento à norma preexistente.
II.3 Colômbia
A Corte Constitucional da Colômbia é considerada paradigma do ativis-
mo judicial na América Latina e uma das Cortes mais ativistas do mundo. Desde
que iniciou as atividades, a Corte tem acumulado amplo respeito popular, en-
volvendo-se e deixando-se envolver nas principais questões políticas e sociais
do País. A Corte tem sido bastante ativista, principalmente, em dois campos
de ação: o controle das práticas políticas e das ações dos Poderes Executivo e
Legislativo, e a promoção dos direitos fundamentais, sociais e econômicos42.
Com relação ao primeiro campo, a Corte Constitucional tem buscado tor-
nar efetivas as qualidades de eficiência, responsabilidade e responsividade do
sistema político de poderes separados que a Assembleia Constituinte procurou
implementar. Recusando a característica de centralização de poder no governo
central, marca do regime constitucional anterior e que tanta desconfiança e
desprezo causou aos cidadãos colombianos no passado, o constituinte de 1991
procurou o equilíbrio entre os poderes. Dois casos particulares demonstram essa
postura: o controle das declarações, pelo Executivo, de estado de exceção43, e
o controle da reforma constitucional para permitir reeleições presidenciais44.
Quanto ao segundo campo, o dos direitos fundamentais, sociais e eco-
nômicos, a Corte tem tido participação fundamental no avanço da proteção e
promoção de direitos no País, seja tutelando diretamente esses direitos, seja
guiando a legislação e as decisões das instâncias judiciais inferiores. A Corte
assegurou, entre outros direitos: igualdade religiosa em face de privilégios da
Igreja Católica45, proteção da identidade social, cultural e econômica das co-
munidades nativas46, a descriminalização do consumo de drogas47 e da eutaná-
sia (homicidio por piedad)48, inconstitucionalidade da exigência de licença para
o exercício do jornalismo49, a licitude do trabalho sexual e os direitos básicos
42 YEPES, Rodrigo Uprimny. A judicialização da política na Colômbia: casos, potencialidades e riscos. SUR –
Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 6, p. 54, 2007.
43 Sentencia nº C-300, de 01.07.1994; Sentencia nº C-466, de 18.10.1995; Sentencia nº C-027,
de 02.02.1995 (julgamento parcial); Sentencia nº C-122, de 12.03.1997; Sentencia nº C-122, de
01.03.1999 (julgamento parcial); Sentencia nº C-802, de 02.08.2002 (julgamento parcial); Sentencia
nº C-327, de 29.04.2003.
44 Sentencia nº C-1040, de 19.10.2005; Sentencia nº C-141, de 26.02.2010.
45 Sentencia nº C-027, de 05.02.1993.
46 Sentencia nº T-380, de 13.09.1993; Sentencia nº SU-510, de 18.09.1998; Sentencia nº SU-039, de
03.02.1997.
47 Sentencia nº C-221, de 05.05.1994.
48 Sentencia nº C-239, de 20.05.1997.
49 Sentencia nº C-087, de 18.03.1998.
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das prostitutas, inclusive trabalhistas50, a proibição de o legislador criminalizar
todas as hipóteses de aborto51. Em todas essas decisões, principalmente na ques-
tão do aborto, a Corte tem procurado dirigir a atividade legislativa.
No campo dos direitos sociais, o ativismo judicial da Corte não é quan-
titativo nem qualitativamente inferior. A Corte tem decidido em favor da reali-
zação efetiva dos direitos sociais e econômicos, principalmente nos seguintes
temas: direito à saúde52, direito aos serviços de seguridade social53, proteção do
idoso54, extensão de benefícios de pensão e aposentadoria em respeito à isono-
mia55, tratamento igual entre empregados sindicalizados e não sindicalizados56,
objeção de incidência tributária sobre o consumo de bens de primeira neces-
sidade (proteção do mínimo vital)57, intervenção na indexação dos salários dos
servidores públicos58.
Espetacularmente ativistas são as decisões da Corte por meio das quais
declara o denominado “estado de coisas inconstitucional”: aponta a existência
de violação massiva e contínua de direitos fundamentais, decorrentes de falhas
e omissões sistêmicas e estruturais, vindo a determinar ordens flexíveis dirigidas
a uma pluralidade de atores políticos e sociais com o fim de superar esse estado
de inconstitucionalidade. Com isso, a Corte interfere na formulação e imple-
mentação de políticas públicas. Os dois casos mais conhecidos são o do sistema
carcerário59 e o do “deslocamento” de pessoas em razão da violência interna60.
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com mais de sessenta anos de vida, deve ser dividida em dois períodos distintos:
“antes e depois da criação dessa câmara constitucional da Corte Suprema”61.
Com ampla estrutura de acesso e de ações constitucionais, a Sala IV tem
exercido um interessante ativismo judicial em favor de direitos fundamentais,
máxime diante da omissão dos outros poderes. Entre muitas decisões, a Corte
exigiu provas de concursos públicos em braile62, o direito dos deficientes visuais
de levar seus cães-guias em taxis63 e em ônibus64. A Corte ainda estendeu a
previsão legal de acesso livre de idosos a serviços de transporte de ônibus aos
serviços prestados por trens65, expandiu a liberdade de imprensa66, de religião67,
a igualdade de gênero68, a proteção de prisioneiros69 e assentou o direito a mor-
rer sem dor70.
A Sala IV tem promovido uma transformação do arranjo político costa-
-riquenho, exercendo assertivamente a função de horizontal accountability, im-
pondo limites aos outros poderes de governo, especialmente ao Parlamento. Em
2003, a Sala tomou sua decisão mais conhecida em declarar inválida emenda
constitucional ao art. 132 da Constituição (Ley nº 4.349), que vigorava desde
1969 e proibia a reeleição presidencial71. O impacto da decisão sobre a dinâ-
mica dos poderes foi enorme.
II.5 Índia
A experiência indiana é espetacular porque mostra ao mundo que, mes-
mo na ausência de arranjos institucionais relevantes, a própria Corte Constitu-
cional pode estabelecer-se como agente de mudanças sociais. O acesso direto
e facilitado à jurisdição constitucional da Suprema Corte indiana não decorre
do esquema constitucional em si, mas foi elaborado pela própria jurisprudência
da Corte ante o déficit institucional vigente, viabilizando a si mesma o papel
de enfrentar os poderes políticos em favor de diferentes grupos desprotegidos
61 WILSON, Bruce M. Claiming individual rights through a constitutional court: the example of gays in Costa
Rica. International Journal of Constitutional Law, v. 5 (2), p. 242.
62 Sala Constitucional, Resolução nº 00567-1990.
63 Sala Constitucional, Resolução nº 08559-2001.
64 Sala Constitucional, Resolução nº 17528-2007.
65 Sala Constitucional, Resolução nº 15666-2009.
66 Sala Constitucional, Resolução nº 02313-1995 (dispensa de diploma para jornalista).
67 Sala Constitucional, Resolução nº 06428-2001.
68 Sala Constitucional, Resolução nº 02196-1992; Resolução nº 03435-2002; Resolução nº 02129-2008;
Resolução nº 12548-2008.
69 Sala Constitucional, Resolução nº 03684-2004; Resolução nº 07484-2000; Resolução nº 04576-1996.
70 Sala Constitucional, Resolução nº 05788-1998.
71 Sala Constitucional, Resolução nº 02771-2003.
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e minoritários, como os cidadãos indianos mais pobres, crianças, mulheres e
homossexuais72.
A estratégia foi a instituição da denominada Public Interest Litigation
(PIL), prática por meio da qual a Suprema Corte minimizou exigências de legi-
timidade para assegurar um acesso amplíssimo à sua jurisdição quando envol-
vidos casos de violação a direitos fundamentais e de justiça social, admitindo
não só petições individuais em defesa própria, mas também de organizações da
sociedade civil e de defesa dos direitos humanos em favor de terceiros, máxime
dos mais pobres. A Índia tem uma população estimada em 1,2 bilhões, com
37% vivendo abaixo da linha da pobreza, segundo dados oficiais, sendo mar-
cante o imenso grau de desigualdade social e econômica. Essa grande parcela
pobre da sociedade não possui recursos para litigar nas Cortes e estaria fora do
alcance da proteção judicial se não fosse a formulação da PIL pela Suprema
Corte73.
Com a PIL, é irrelevante se o peticionante é a parte cujo direito foi viola-
do ou se pertence à classe de pessoas prejudicadas, ou seja, não há o requisito
do interesse próprio para o acesso à Corte. Qualquer cidadão ou organização
da sociedade civil, mesmo por meio de cartas74, pode levar à Suprema Corte
casos de violação de direitos fundamentais em favor de grupos pobres e margi-
nalizados. Importa apenas estar presente a necessidade de proteção de direitos
constitucionais e de promoção de justiça social. Exemplos paradigmáticos são
as decisões voltadas a assegurar o direito à alimentação aos indianos mais po-
bres e que sofrem de fome sistemática.
72 BAAR, Carl. Social action litigation in India: the operation and limits of the world’s most active judiciary.
In: JACKSON, Donald W.; TATE, C. Neal (Ed.). Comparative judicial review and public policy. Westport:
Greenwood Press, 1992. p. 75-77.
73 BHAGWATI, P. N. Judicial activism and public interest litigation. Columbia Journal of Transnational Law,
v. 23 (3), p. 561-577, 1985: o autor, ex-Chief Justice da Suprema Corte, é considerado o pai desta estratégia
e um dos responsáveis pela introdução do ativismo judicial na Corte.
74 Cf. People’s Union for Democratic Rigths v. Union of India 3 S.C. 235 (1982).
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75 STF, ADIn 4.277/DF, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, J. 05.05.2011, DJ 14.10.2011.
76 Entre outras, cf. STJ, REsp 1.026.981/RJ, 3ª T., Relª Nancy Andrighi, J. 04.02.2010, DJ 23.02.2010.
77 STF, ADPF 54/DF, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, J. 12.04.2012.
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ADPF 54/DF era de interpretação conforme a constituição aos arts. 124, 126 e
128, todos do Código Penal (crime de aborto), de modo a torná-los compatíveis
com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e com os direi-
tos fundamentais à liberdade e à saúde da gestante e, assim, afastar a ilicitude
da “interrupção voluntária da gravidez de feto anencéfalo”.
O “risco” de efeito aditivo de possível sentença de procedência fez sur-
gir questionamentos sobre o cabimento da ação, o que foi então discutido em
sede de questão de ordem78. O Procurador-Geral arguiu que o dispositivo penal
interpretado gozava de univocidade de significado, de forma que, além de não
caber interpretação conforme a Constituição, eventual sentença de procedên-
cia importaria em clara atividade legiferante. Essas questões imporiam o não-
-conhecimento da ação naquele estágio de julgamento. A proposta de não-
-conhecimento da ação encontrou apoio de quatro Ministros – Eros Grau, Cezar
Peluso, Carlos Velloso e Ellen Gracie –, todos destacando o “instransponível
óbice” do legislador negativo kelseniano. A atuação do Supremo implicaria vio-
lação a separação de poderes, além de ser “profundamente antidemocrático”.
Contudo, a maioria da Corte conheceu e julgou procedente o pedido. Al-
guns ministros, inclusive o relator, Ministro Marco Aurélio, disseram que o fato
é atípico, não havendo que se falar em crime de aborto nem em punição. Os
Ministros Luiz Fux e Gilmar Mendes, no entanto, falaram em lacuna do Código
Penal. Fux disse de uma “lacuna normativa” que requer “recurso à equidade
integrativa”, enquanto Gilmar Mendes, pensando nas limitações tecnológicas
da época de confecção da lei penal, reconheceu “omissão legislativa não con-
dizente com o espírito do Código Penal e incompatível com a Constituição”.
Sem embargo, sob essa perspectiva, a decisão inovou na ordem jurídica infra-
constitucional em superar a lacuna dita por Luiz Fux e Gilmar Mendes.
Se a norma de decisão foi, de fato, resultado de interpretação conforme a
Constituição, de redução teleológica orientada a valores do tipo normativo ou
de puro e simples reconhecimento da falta de subsunção por atipicidade mate-
rial, é questão colocada sob a perspectiva do intérprete e do raciocínio herme-
nêutico desenvolvido, mas não é suficiente para encerrar a análise de ativismo
da decisão. Essa análise requer se leve em conta as transformações promovidas
pela decisão sobre a estrutura legal do tipo penal e de suas excludentes de ilici-
tude. Por essa perspectiva de análise, é possível identificar uma sentença aditiva
de significados normativos que “criou” hipótese nova de não-punibilidade da
prática “conhecida” como aborto. Uma sentença aditiva de garantia.
78 STF, ADPF-QO 54/DF, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 31.08.2007; cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de
direito constitucional contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 381-382.
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O caráter marcadamente moral e altamente polêmico dessas questões,
impensáveis para a Corte e a sociedade de outrora, mostra que o Supremo vem
desempenhando o papel descrito por Aharon Barak de encurtar a distância entre
os valores da Constituição e as grandes transformações sociais em torno dos
direitos fundamentais. Diante do vácuo de consenso parlamentar sobre a ques-
tão79, o Supremo permitiu a mudança de conteúdo dos valores constitucionais
como reflexo das mudanças dos conceitos e crenças básicas da sociedade80. Para
Barak, “o direito de uma sociedade é um organismo vivo”, e o papel do juiz é
“entender o propósito” desse “direito” e ajudá-lo a alcançar esse propósito81.
Com decisões da espécie, o Supremo desenvolve linha decisória que o
aproxima da lendária Corte Warren na defesa de direitos de liberdade e de
igualdade: a evolução dos sentidos das normas constitucionais na direção das
grandes transformações sociais contemporâneas. Trata-se de relevantíssima ta-
refa, reconhecida pelo Ministro Ayres Britto como o “avanço da Constituição
de 1988 no plano dos costumes” e da qual o Supremo não pode se furtar. Como
disse o Ministro Joaquim Barbosa, há situações nas quais surge “descompasso
entre o mundo dos fatos e o universo do Direito” e isso porque o último “não foi
capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças sociais” e é, “preci-
samente nessas situações, que se agiganta o papel das Cortes constitucionais”82.
A questão aqui é saber até que ponto se apresenta legítimo o Supremo
substituir-se ao legislador em avançar essas posições de direitos. Como diferen-
ciar impasses e omissões legislativas de decisões parlamentares efetivamente
tomadas sob a forma de “não decidir”? Este é o grande desafio. A aceitação
social progressiva do homossexualismo, assim como a evolução tecnológica
na identificação de casos de impossibilidade de vida ultrauterina configuram
transformações sociais e fáticas capazes de revelar tanto o atraso deliberativo no
plano legislativo quanto a necessidade de tomada de posições mais afirmativas
por parte do Supremo. A interpretação constitucional deve considerar não só o
texto constitucional em si, mas também o ambiente envolvente.
79 REIS, Jane. Retrospectiva 2008: direito constitucional. Revista de Direito do Estado, v. 13, p. 16, 2009.
80 BARAK, Aharon. Proportionality: constitutional rights and their limitations. New York: Cambridge University
Press, 2012. p. 65.
81 BARAK, Aharon. The judge in a democracy. New Jersey: Princeton University Press, 2006. p. 3. Cf. BALKIN,
Jack M. Constitutional Redemption. Political Faith in an unjust world. Cambridge: Harvard University Press,
2011.
82 As citações são extraídas de seus votos no “caso da união homoafetiva”.
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O Supremo julgou inconstitucionais os índices de desempenho eleitoral
estabelecidos na Lei nº 9.096/199583. De acordo com a lei, os partidos políticos
deveriam, em cada eleição para a Câmara dos Deputados, obter, no mínimo,
5% dos votos apurados, não computados os brancos e nulos, em pelo menos
um terço dos Estados e ainda o mínimo de 2% do total de votos em cada estado,
para que pudessem ter direito ao pleno funcionamento parlamentar e consec-
tários (participação no rateio do Fundo Partidário, tempo de propaganda parti-
dária gratuita, formação de bancadas e de suas lideranças). Em unanimidade, o
Supremo considerou essas condições excessivas e desproporcionais.
A Corte concluiu não ter o legislador, mesmo dentro do campo discricio-
nário de concretização do sistema político proporcional, autoridade para res-
tringir em medida tão desproporcional o funcionamento parlamentar dos par-
tidos políticos. Segundo o relator, Ministro Marco Aurélio, essas “cláusulas de
desempenho eleitoral” são exorbitantes e desarrazoadas, debilitam as agremia-
ções minoritárias e, por isso, são inconstitucionais por violarem o modelo pro-
porcional de nosso sistema político, o pluralismo político-partidário e o próprio
princípio democrático. Para Gilmar Mendes, as normas violaram o princípio da
“reserva legal proporcional, que limita a própria atividade do legislador na con-
formação e limitação do funcionamento parlamentar dos partidos políticos”.
O Tribunal aplicou princípios muito abstratos e indefinidos como razões
objetivas suficientes para declarar a nulidade de exercício concreto de ampla
capacidade jurídica e epistêmica do legislador na definição de critérios de de-
sempenho eleitoral que julgou adequados ao aperfeiçoamento do processo po-
lítico brasileiro. Isonomia, proporcionalidade, razoabilidade, pluripartidarismo,
democracia, embora amplamente abstratos e indefinidos, ganharam, no discur-
so do Supremo, concretude normativa rigorosa para tornar nulo o livre exercício
de conformação normativa feita pelo legislador sobre como deve funcionar o
nosso sistema político. Com efeito, a decisão buscou, na proteção das minorias
partidárias, a fonte de legitimidade de tal prática metodológica e decisória.
No importante e famoso caso da “fidelidade partidária”84, o Supremo
discutiu se o abandono, pelo parlamentar, da agremiação partidária pela qual
se elegeu teria como consequência imediata a legitimação do partido de origem
a reivindicar a respectiva vaga, o que implicaria, necessariamente, a perda do
mandato. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em resposta à consulta sobre o
tema, relatada pelo Ministro Cesar Asfor Rocha85, consagrou tese favorável aos
partidos políticos que, com base na resposta, protocolaram junto ao Presidente
83 STF, ADIn 1.351/DF, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, J. 07.12.2006, DJ 29.06.2007.
84 STF, MS 26.602/DF, Pleno, Rel. Min. Eros Grau, J. 04.10.2006, DJ 17.10.2008; STF, MS 26.603/DF,
Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, J. 04.10.2006, DJ 19.12.2008; STF, MS 26.604/DF, Pleno, Relª Min.
Cármen Lúcia, J. 04.10.2006, DJ 03.10.2008.
85 Consulta nº 1.398/2007 – Classe 5º; Resolução nº 22.526, de 27.03.2007.
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da Câmara inúmeros pedidos de vacância em desfavor dos deputados “infiéis”
e de posse imediata dos suplentes. Os pedidos foram indeferidos e os partidos
foram ao Supremo em defesa das vagas.
A questão apresentou-se altamente problemática diante da ausência
de disposição constitucional expressa no sentido pleiteado pelos partidos. Ao
contrário, a Constituição, nos arts. 55 e 56, disciplinou as regras de perda de
mandato parlamentar sem ao menos chegar perto da hipótese de infidelidade
partidária. Na realidade, tal previsão estava presente no art. 152, parágrafo úni-
co, da Constituição de 1967, com a redação dada pela EC 1/196986, mas foi
revogada pela EC 24/1985. Como lembrou o Ministro Ricardo Lewandowski
ao votar, essa última emenda constitucional foi editada dentro do “clima de
redemocratização que imperava no País” em 1985, e teria sido exatamente esse
“espírito de redemocratização” a influência para o constituinte de 1988 não
incluir a perda do mandato pela infidelidade partidária no rol de hipóteses do
art. 55 da Constituição.
Contudo, apesar da falta de previsão constitucional clara e inequívoca,
a maioria da Corte legitimou a regra constitucional da perda do mandato par-
lamentar em razão da prática de infidelidade partidária. Para a Corte, dentro
do sistema de “representação proporcional para a eleição de deputados e ve-
readores, o eleitor exerce a liberdade de escolha apenas entre os candidatos
registrados pelo partido político”, de modo que “o destinatário do voto é o
partido político” o qual viabiliza a candidatura eleitoral. O candidato eleito, por
sua vez, vincula-se ao programa e ao ideário do partido pelo qual foi eleito e
abandoná-lo significa, em última análise, afastar-se da escolha feita pelo eleitor.
A “fidelidade partidária [seria] corolário lógico-jurídico do sistema constitucio-
nal vigente, sem necessidade de sua expressão literal”.
O Supremo construiu a decisão conjugando o sistema eleitoral propor-
cional (art. 45, caput), o monopólio partidário das candidaturas aos cargos ele-
tivos (art. 14, § 3º, V) e a essencialidade dos partidos para a concretização do
princípio democrático e da representação política do povo (art. 1º, parágrafo
único). Dessa “mistura”, os Ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes concluí-
ram, respectivamente, pelo indisputável “caráter intrinsecamente partidário do
sistema político brasileiro” e pela vivência de “uma democracia de partido”.
Essas conclusões ratificaram a premissa lançada pelo Ministro Asfor Rocha, na
consulta respondida pelo TSE no sentido de, segundo a Constituição de 1988,
86 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Com a Emenda
nº 1, de 1969. Artigos 118-153, § 1º. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, t. IV, 1987. p. 616: “A Emenda
Constitucional nº 1, de 1969, acertadamente constitucionalizou a regra jurídica ou estatutária de ligação ao
partido. [...] Quem deixa o partido sob cuja legenda foi eleito perde o mandato, porque a regra jurídica, a esse
respeito, é regra jurídica constitucional”.
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“a democracia representativa, no Brasil, muito se aproxima[r] da partidocracia
de que falava [...] Maurice Duverger”87.
Como concluiu o Ministro Gilmar Mendes, a regra da perda do man-
dato pela infidelidade partidária seria extraída da “inteireza da Constituição”,
dispensada qualquer enunciação constitucional expressa. O exame dos votos
vencedores revela não ter sido a decisão pautada em qualquer dispositivo cons-
titucional mais específico, e sim resultado do “raciocínio estrutural” sobre a
Constituição e o tipo de governo representativo por ela estabelecido. Os votos
vencidos dos Ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, por sua vez,
demonstram as dificuldades do raciocínio vencedor.
Na linha do que defendia, no passado, o Ministro Moreira Alves88,
Ricardo Lewandowski negou proeminência à abordagem sistemática da Car-
ta para privilegiar a taxatividade do rol de hipóteses estabelecida nos arts. 55
e 56 e a não-inclusão da infidelidade partidária nesse dispositivo. O Ministro
Joaquim Barbosa, igualmente, condenou a opinião da maioria como sendo uma
construção sistemática pautada em “princípios supostamente implícitos na nos-
sa Constituição”. Para ele, tal construção é inadmissível na medida em que o
constituinte de 1988, nos arts. 55 e 56, teria disciplinado “conscientemente a
matéria” e teria feito “a opção deliberada de abandonar o regime de fidelidade
partidária que existia no sistema constitucional anterior”.
Ambas as decisões revelaram preocupação do Supremo com a higidez
do processo eleitoral, tanto em relação à necessária natureza inclusiva des-
se processo, como quanto ao seu aperfeiçoamento ético. A questão posta é,
mais uma vez, saber se o Tribunal ultrapassou limites: no caso da cláusula de
barreira, se a ausência de deferência aos cálculos empíricos do legislador foi
adequada; no caso da fidelidade partidária, se a correção ética da conduta im-
plementada justificaria o papel quase de reformador da Constituição assumido
pelo Tribunal. O debate é sobre os limites decisórios do Supremo sob o ângulo
de sua legitimidade democrática. Em ambos os casos, a falta de deferência ao
legislador e o grau de desconsideração ao texto constitucional posto indicam ter
o Tribunal ultrapassado os limites de sua atuação democrática.
CONCLUSÃO
Entre democracia e constitucionalismo, o tema da expansão da atuação
judicial, no Brasil, vem ganhando fôlego na medida em que se verifica a ascen-
87 Com efeito, para o clássico autor francês Maurice Duverger (Instituciones politicas y derecho constitucional.
Trad. Jesús Ferrero. Barcelona: Ariel, 1962. p. 115), “na prática, os eleitores exercem suas escolhas senão
no interior dos limites traçados pelos partidos; escolhem entre os candidatos, porém, não escolhem aos
candidatos”.
88 STF, MS 20.927/DF, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, J. 11.10.1989, DJ 15.04.1994.
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100 P���������������������������������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – DOUTRINA
são institucional cada vez mais marcante do Supremo Tribunal Federal. Como
demonstram os casos analisados, o Supremo tem momentos de falta de deferên-
cia ao legislador quando declara inconstitucional lei sem que o vício seja claro
ou manifesto (“caso da cláusula de barreira”), e também de criação de regra
constitucional, por conta própria, em sentido oposto ao que se pode extrair
mais diretamente do próprio texto constitucional, apenas pautado em princípios
vagos e fluídos (“caso da infidelidade partidária”). Sem deferência à autoridade
constitucional e epistêmica do legislador, Cortes constitucionais acabam repre-
sentando uma ameaça aos sistemas políticos e democráticos em que inseridas.
De outro lado, o Tribunal tem estado atento às transformações sociais e
fáticas marcantes de nosso tempo. Por meio de interpretações modernizantes89,
tem percebido e levado em conta o fenômeno da aceitação social progressiva
de posições jurídicas (“caso da união homoafetiva”), bem como as evoluções
científico-tecnológicas (“caso do aborto de fetos anencefálicos”) quando do re-
conhecimento de direitos fundamentais ignorados pelo legislador. Envolvidos
dilemas morais altamente complexos, o Tribunal não tem enxergado a inércia
legislativa como uma efetiva tomada de posição pelo não reconhecimento des-
ses direitos, e sim como uma postura de “não decidir” a matéria, em um jogo de
transferência de custos políticos e compartilhamentos de autoridade.
As diferentes experiências ativistas retratadas neste artigo revelam que
compartilhamentos de autoridade constitucional, transferência de custos po-
líticos, blind spots e déficits de representatividade parlamentar compõem a
gramática do processo de reconhecimento das condições políticas de atuação
dos tribunais. É comum que o ativismo judicial de Cortes seja politicamente
construído. Muito do prestígio contemporâneo das Cortes constitucionais ou
supremas encontra raízes nas próprias decisões políticas, formais e informais,
comissivas e omissivas, de empoderamento dos órgãos judiciais como “árbitros
neutros” e dotados de expertise própria para tomada de decisões cruciais, mes-
mo eventualmente impopulares90. Descritivo e prescritivos dialogam no ponto.
É chegado o momento, portanto, de evoluírem-se os discursos descritivos
e críticos da atuação do Supremo e de nosso sistema de controle de constitu-
89 David Strauss (The modernizing mission of judicial review. The University of Chicago Law Review, v. 76,
p. 859-907, 2009) defende uma “abordagem modernizante” da interpretação constitucional, voltado a
reconciliar a judicial review e a democracia, segundo a qual o intérprete constitucional, quebrando as barreiras
da inércia legislativa, antecipa tendências na opinião pública e, por outro lado, recua se descobrir que avaliou
mal essas tendências, de forma que sempre estará remetido a como evoluem o processo democrático e o
sentimento popular.
90 GRABER, Mark A. A new introduction to American constitutionalism. New York: Oxford University Press,
2013. p. 138: “Talvez, cidadãos deveriam estar preocupados com agentes eleitos que ‘corram da luz do
dia’, escondendo seus objetivos políticos e comprometimentos constitucionais ao apoiar a judicial review e
outras práticas que ‘atraem menos atenção’ que legislação. ‘Legisladores’ que, ‘dissimuladamente, transferem
responsabilidade por escolhas divisórias a atores menos responsáveis’, cientistas políticos apontam, ‘levantam
preocupações substanciais sobre a transparência e responsividade do processo legislativo”.
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cionalidade vis à vis a dinâmica de nossas instituições políticas. Em ambos os
discursos, as duas arenas não podem ser avaliadas isoladamente, como se Di-
reito e política fossem realidades tão distantes que não se comunicam. Cortes
constitucionais ou supremas, assim como seus comportamentos decisórios, não
podem ser explicados ou avaliados em isolamento, com distanciamento dos
contextos político, histórico, ideológico e institucional condicionantes. O pen-
samento juriscêntrico apenas favorece a supremacia judicial, não cabendo, ao
jurista, simpatia apriorística a nenhum dos lados do debate.
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Parte Geral – Doutrina
A Garantia da Ordem Pública Como Fundamento da Prisão Preventiva
The Guarantee of Public Order as the Basis of Preventive Detention
Submissão: 26.06.2015
Decisão Editorial: 27.08.2015
Comunicação ao Autor: 27.08.2015
RESUMO: O artigo tem como objetivo estudar a garantia da ordem pública como fundamento da
prisão preventiva, buscando compreender o significado e o alcance dessa expressão em matéria de
medidas cautelares no processo penal. Para realizar tal tarefa, examina-se, de início, o conceito de
ordem pública e a sua projeção no campo jurídico. Em seguida, é traçado um esboço histórico do
contexto em que foi elaborado o Código de Processo Penal brasileiro (1941). Num terceiro momento,
explicita-se a evolução da legislação processual penal quanto à prisão para a garantia da ordem
pública. Ao final, investigam-se as posições doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema.
ABSTRACT: The article aims to study the guarantee of public order as the basis of preventive deten‑
tion, seeking to understand the meaning and scope of this expression in the context of the precau‑
tionary measures in criminal procedure. In order to accomplish such task, at first it is examined the
concept of public order and its projection in the legal field. Then a historical sketch of the context in
which it was elaborated the Brazilian Code of Criminal Procedure (1941) is made. In a third moment,
one exposes the evolution of criminal procedural legislation with regard to the prison for the guaran‑
tee of public order. Finally, it is investigated the doctrinal and jurisprudential positions on the subject.
SUMÁRIO: Introdução; 1 A ordem pública e sua projeção no campo jurídico; 2 O contexto histórico da
elaboração do Código de Processo Penal de 1941; 3 A ordem pública no atual cenário da legislação
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processual penal pátria; 4 A prisão preventiva para a garantia da ordem pública na doutrina e na
jurisprudência; 4.1 A crítica doutrinária quanto à ausência de natureza cautelar; 4.2 Casos que não
justificam a prisão preventiva segundo o STF e o STJ; 4.3 O risco de reiteração delitiva e a periculo‑
sidade do agente; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Entre as hipóteses previstas no art. 312 do Código de Processo Penal
brasileiro1, autorizadoras da decretação da prisão preventiva, a “garantia da
ordem pública”, de longe, aparece como a mais invocada pelos nossos juízes
e tribunais. Essa afirmação verifica-se, sem dificuldade, por exemplo, a partir
de simples consulta pelo termo “garantia da ordem pública” na pesquisa de
jurisprudência do sítio do Superior Tribunal de Justiça, aparecendo só no ano
de 2014 (01.01.2014 a 31.12.2014) nada menos do que 1.607 processos julga-
dos, ao passo que, utilizando-se na consulta as outras hipóteses autorizadoras
da prisão preventiva – a saber: a “aplicação da lei penal”, a “conveniência da
instrução” ou a “garantia da ordem econômica” – emergem, respectiva e pali-
damente, 643, 186 e 2 ocorrências.
Esses dados são reveladores: a maioria dos indivíduos presos preventiva-
mente no Brasil – antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória
– está nessa condição por representarem, segundo o juiz da causa, uma ameaça
à “garantia da ordem pública”. Acontece que a lei processual penal brasileira
não fornece qualquer significado para a expressão, a qual se encontra somente
enunciada no art. 312, inexistindo maiores esclarecimentos sobre em que casos
uma pessoa (indiciado, acusado) constituiria uma ameaça para a ordem pública
a ponto de ensejar a necessidade de sua salvaguarda através do recurso à segre-
gação antecipada.
À primeira vista, poder-se-ia pensar que a missão de construir um signi-
ficado para tal expressão tenha sido assumida pela doutrina e pela jurisprudên-
cia. Embora ambas tenham se dedicado a essa tarefa, percebe-se que tem sido
demasiado difícil fixar-lhe um significado único. Além de diversos critérios já
haverem sido propostos desde a elaboração do Código de Processo Penal – vi-
gente desde 1941 –, a “garantia da ordem pública” enfrenta os mesmos dilemas
semânticos de vagueza e de indeterminação de outros modelos jurídicos tradi-
cionais, como “princípios gerais de direito”, “bons costumes”, “bem comum” e
“moralidade pública”.
1 “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica,
por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da
existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011)”
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Ora, se nem a jurisprudência nem a doutrina demonstram, com plena
segurança, o que significa a mencionada expressão, corre-se o sério risco de as
custódias processuais serem arbitrárias, voluntaristas e, dessa forma, ilegais, o
que implica uma clara violação de direitos e garantias fundamentais, como a
liberdade, a presunção de inocência e o devido processo legal.
Diante desse cenário, o presente trabalho tem como objetivo estudar a
garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva, a fim de
compreender o significado e o alcance dessa expressão em matéria de medidas
cautelares no processo penal.
Para realizar tal tarefa, esta pesquisa divide-se do seguinte modo: em pri-
meiro lugar, é analisado o conceito de ordem pública e a sua projeção no cam-
po jurídico; em segundo lugar, perquire-se o contexto histórico de elaboração
do Código de Processo Penal de 1941, buscando-se esclarecer a lógica do seu
modelo normativo; em terceiro lugar, é explicitada a evolução do tratamento
dado pela legislação processual penal à prisão para garantia da ordem pública
desde a elaboração do referido código até o seu cenário atual; por último, in-
vestigam-se as críticas da doutrina à prisão nessa hipótese, em especial quanto
à ausência de natureza cautelar, bem como os critérios rejeitados e aceitos, no
âmbito dos Tribunais Superiores, para fins de sua decretação.
2 Nesse sentido, Vigo (2010, p. 188) reconhece que tanto o legislador, que define a sua obra com natureza de
ordem pública, quanto os juízes, que invocam tal expressão em suas decisões, “não se preocupam plenamente
com o seu conceito, fundamento e alcance; com isso, pode-se entender por que razão se consolidou, nos
tribunais argentinos, a prática de renúncia explícita à possibilidade de sua definição (El derecho, 103-437)”.
3 Para Vigo (2010, p. 206), “vale lembrar que nem toda ordem pública terá projeção no campo jurídico;
porém, mesmo aquela parte [as dimensões não-jurídicas, de modo particular o ético social], vedada aos
juristas, favorece o cumprimento das normas jurídicas, de onde não devem estas, em princípio, contradizê-
-la. Os juristas devem conhecer a ordem pública não-jurídica, para assim entender melhor e impulsionar o
aperfeiçoamento da ordem jurídica e, com isso, favorecer a obtenção do bem da sociedade política”.
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De início, convém precisar o alcance e o significado de cada uma das
palavras que compõem a expressão em apreço.
Compreendendo a sociedade como sistema, isto é, como um conjunto
de elementos sociais – de cunho sociológico, psicológico, econômico e político
– que se inter-relacionam de maneira regular e estável (organização), Moreira
Neto (1988, p. 139) considera que ordem é o “pré-requisito funcional da orga-
nização”, “no sentido de condição básica indispensável para o funcionamento
de uma sociedade [...]. Em outros termos, a ordem é a disposição interna que
viabiliza uma organização”. Ainda que à luz de outra perspectiva, Vigo (2010,
p. 192) afirma que a “ordem supõe coordenação, uma certa redução da plura-
lidade à unidade, a vinculação regulada pela obtenção do fim comum, o que
tem razão de bem”. Em todo caso, percebe-se que ordem diz respeito à organi-
zação, à coordenação, à harmonização ou à regulação de algo.
Já o termo “público” identifica-se com “político”. Segundo Vigo (2010,
p. 193), a polis dos gregos equivale à res-publica dos romanos e, com ambas as
palavras, refere-se a uma multidão de homens que se agruparam segundo certas
leis para alcançar algo em comum. Nessa perspectiva, em seu atual significado,
o público opõe-se ao privado, vinculando-se ao comum, notório e exterior às
partes de determinada sociedade. Equivale ao emprego do termo “político” no
sentido daquilo que é referente aos interesses e às atividades comuns aos mem-
bros de certa sociedade4.
Feitas essas considerações, interessa perquirir o que os juristas têm enten-
dido pela expressão “ordem pública” e como se dá o seu emprego nos ramos
específicos do Direito5.
O modo mais geral de se compreender ordem pública “consiste na acei-
tação ou na observância dos padrões do sistema jurídico da sociedade”. É o que
se lê no tratamento dado à expressão no Dicionário Enciclopédico de Teoria e
de Sociologia do Direito: “Em geral, onde existe um desconhecimento popular
em relação à lei, ou uma falha da polícia em sua tarefa, pode-se falar em au-
sência de ordem pública. Nesse sentido, o conceito equivale à existência do
sistema jurídico” (Arnaud et al., 1999, p. 554).
Por seu turno, Moreira Neto (1988, p. 142) define a ordem pública como
o “pré-requisito de funcionamento do sistema de convivência pública”. Isso
porque, para que todos possam exercer tranquilamente a sua respectiva liberda-
de individual na convivência pública – isto é, naquela que concerne às relações
4 Tal autor adverte, contudo, que o termo “político” só pode ser considerado semelhante a “público” quando
não é usado num sentido mais restrito, vinculado ao poder político, ao seu exercício e à sua obtenção ou
conservação (Vigo, 2010, p. 193).
5 A análise do termo sob a ótica do direito processual penal será reservada à seção 4 deste trabalho.
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que os indivíduos travam entre si, independentemente do Estado e de outras
instituições a que pertençam (nas ruas, nas praças, no trabalho, nas fábricas,
nas salas de aula, nos estabelecimentos abertos ao público, nos locais de diver-
sões, nas lojas, nas estradas, nas praias etc.) –, é preciso que “se estabeleça uma
nova organização mínima em que se observe, obrigatoriamente, uma ordem
ética mínima”6 (Moreira Neto, loc. cit.). Esta última é o que se denomina ordem
pública.
O referido autor admite que a noção de ordem pública é muito extensa
e variável, precisamente porque a convivência pública é polifacética e cam-
biante. Mas, para ele, tudo se resolve com a distinção metodológica que propõe
entre a acepção material (ou descritiva) e a acepção formal (ou normativa) de
ordem pública.
No sentido material, a ordem pública “é uma situação de fato, ocorrente
numa sociedade, resultante da disposição harmônica dos elementos que nela
interagem, de modo a permitir-lhe um funcionamento regular e estável, assecu-
ratório da liberdade de cada um” (Moreira Neto, 1988, p. 143). Trata-se, assim,
da ordem pública enquanto situação de convivência pacífica e harmoniosa da
população ou enquanto estado de paz social. Moreira Neto (1988, p. 144) ad-
verte que, muito embora não seja errado definir materialmente a ordem pública
como “situação e o estado de legalidade normal” (De Plácido e Silva), é insufi-
ciente, pois “a ordem jurídica engloba outros elementos que lhe são essenciais
e que a tornam não só mais ampla como qualitativamente distinta da legalidade
positiva”.
A propósito, Vergottini (1999, p. 851) esclarece que, no direito público,
defende-se há muito a concepção material de ordem pública, semelhante àque-
la que vigora na política. Ela é concebida, ao mesmo tempo, como circunstân-
cia de fato e como fim do ordenamento político e estatal7. Aliás, é nesse sentido
que a expressão é usada no direito administrativo e no direito penal, “como si-
nônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal
e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados pelas opções de base
que disciplinaram a dinâmica de um ordenamento”. Tal autor acrescenta que,
nessa hipótese, a ordem pública “constitui objeto de regulamentação pública
6 “É necessário dispor-se a convivência pública de tal forma que o homem, em qualquer relação em que se
encontre, possa gozar de sua liberdade inata, agir sem ser perturbado, participar de quaisquer sistemas
sociais que deseje (econômico, familiar, lúdico, acadêmico etc.), sem outros impedimentos e restrições que
não os necessários para que essa convivência se mantenha sempre possível, sem outra obrigação que de
observar a normatividade que lhe é imposta pela ordem jurídica constituída para todo o polissistema e
admitida como o mínimo necessário para assegurar, na convivência, a paz e harmonia indispensáveis.”
(Moreira Neto, 1988, p. 142)
7 Ressalte-se que o autor antes admite, contudo, que se fala de ordem pública “com significados completamente
diferentes em hipóteses dificilmente conciliáveis com um sistema orgânico de conceitos” (Vergottini, 1999,
p. 851).
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para fins de tutela preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva”, tendendo a
jurisprudência a ampliar a concepção material para incluir “a execução normal
das funções públicas ou o funcionamento das instituições como a propriedade,
de importância publicitária (ordem legal constituída)”.
Em relação ao direito constitucional, vale lembrar que a Constituição
Federal de 1988 dispõe sobre a ordem pública em três ocasiões específicas. A
primeira está prevista no art. 34, que arrola as exceções que autorizam a inter-
venção da União nos Estados e no Distrito Federal, entre as quais a do inciso III,
para “pôr termo a grave perturbação da ordem pública”. A segunda disposição
constitucional repousa no art. 136 do Título V (Da Defesa do Estado e das Ins-
tituições Democráticas), que autoriza o Presidente da República a, depois de
ouvir os Conselhos da República e da Defesa Nacional,
decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais
restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave
e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes
proporções na natureza.
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É nesse sentido que se emprega a ordem pública no direito privado8 e no
direito internacional. No primeiro, ela assume o papel de limite ao exercício da
autonomia contratual. Porém, adverte Vergottini (1999, p. 851) que, como já
existem limites precisos que derivam de minuciosa disciplina normativa ad hoc,
essa noção “coincide com os princípios diretivos gerais deduzidos das próprias
opções constitucionais que não influiriam senão de modo geral e indireto na
autonomia privada”. Assim, no direito privado, a ordem pública, como limite o
exercício de direitos, apresenta-se como uma noção residual que é difícil de de-
finir de forma precisa; trata-se de um limite que atua quando não existem outros
(específicos) e que tende a coincidir com a exigência, por via integrativa, do
núcleo de princípios caracterizadores da Constituição do Estado, mas que não
raro “coincide com a exigência também de um núcleo de valores e de critérios
extrajurídicos que fogem a uma possível predeterminação objetiva”.
No direito internacional privado, a ordem pública indica as situações
em que o uso de uma norma estrangeira, realizável em termos abstratos, para
regulamentar relações internas, chocar-se-ia concretamente com os princípios
fundamentais do ordenamento jurídico (Vergottini, 1999, p. 851). Nesse caso,
o seu conceito “serve de padrão ao meio pelo qual os tribunais de um Estado
estabelecem a divisão entre os contratos, leis e julgamentos de um outro Estado
que eles querem empregar” (Arnaud et al., 1999, p. 554). Como limite para a
aplicação das leis, dos atos e das sentenças de outro país, bem como de quais-
quer declarações de vontade, é que o art. 17 da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro dispõe que tais normas não terão eficácia se ofenderem “a
soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes” (grifos nossos). A or-
dem pública representa, portanto, limite de caráter excepcional, na medida em
que derroga o funcionamento normal das vinculações entre os ordenamentos9.
No direito internacional público, todavia, a ordem pública é utilizada
em sentido diverso, em referência às relações entre Estados no âmbito da comu-
nidade internacional. Uma vez que os princípios constitucionais dessa comu-
8 É no sentido formal que se fala em “disposições de ordem pública” ou “leis de ordem pública” (por exemplo,
cf. arts 122; 606, parágrafo único; 1.125; e 2.035, parágrafo único, do Código Civil de 2002). A tal respeito,
após demonstrar as dificuldades enfrentadas pela doutrina para esclarecer a compreensão do que seja ordem,
José Delgado assevera que são leis de ordem pública: as constitucionais; as processuais; as administrativas;
as penais; as de organização judiciária; as fiscais; as de polícia; as que protegem os incapazes; as que tratam
de organização de família; as que estabelecem condições e formalidades para certos atos e as de organização
econômica (atinentes ao salário, à moeda, ao regime de bem) (STJ, SEC 802 US 2005/0032132-9, Corte
Especial, Rel. Min. José Delgado, J. 17.08.2005, DJ 19.09.2005).
9 “No caso indicado, a ordem pública dita internacional é, na realidade, um limite derivado direta e
exclusivamente do sistema constitucional que deveria operar o adiamento, quando a norma chocasse com
os princípios de tal sistema. Mas existem limites de ordem pública originados em princípios fundamentais
da comunidade internacional. Contudo, como os ordenamentos estatais se apropriam de tais princípios
constitucionalizando-os, pode-se dizer que eles acabam também por impor-se como limites internos: trata-se,
porém, de limites gerais que operam sempre, mesmo independentemente de hipóteses de dilação no quadro
do direito internacional privado.” (Vergottini, 1999, p. 852)
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nidade refletem o standard moral em que se moldam os comportamentos inte-
restatais, constituem eles a “ordem pública internacional” e se impõem como
limite inderrogável à atividade pactual e à praxe consuetudinária interestatal
(Vergottini, 1999, p. 852).
Conclui Moreira Neto (1988, p. 147), diante das duas acepções de ordem
pública, que há entre elas, além das diferenças, uma complementaridade e uma
interação. Enquanto a acepção formal indica o dever ser, o que se deseja ver
realizado na sociedade e, em particular, no sistema de convivência pública,
a acepção material revela o ser, o que se pôde realizar, o que ocorre, de fato,
na convivência pública. De outro lado, enquanto a ordem pública formal age
como um molde para que a realidade rebelde se contenha em seus limites abs-
tratos, a ordem pública material (realidade histórico-cultural) age para informá-
-la das vigências espontâneas e das limitações pragmáticas, ou seja:
O sistema social da convivência pública apresenta uma ordem pública real – a
situação – e uma ordem pública ideal – os princípios superiores de toda a socie-
dade, que se interagem e se complementam na dinâmica juspolítica.
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pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto
de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um
mal-avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos
excessos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o
influxo de um mal-compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais
ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita
aplicação da justiça penal.
[...]
Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco, referin-
do-se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto pre-
liminar, advertia que elas certamente iriam provocar o desagrado daqueles que
estavam acostumados a aproveitar e mesmo abusar das inveteradas deficiências
e fraquezas da processualística penal até então vigente. A mesma previsão é de
ser feita em relação ao presente projeto, mas são também de repetir-se as palavras
de Rocco: “Já se foi o tempo em que a alvoroçada coligação de alguns poucos
interessados podia frustrar as mais acertadas e urgentes reformas legislativas”.
E se, por um lado, os dispositivos do projeto tendem a fortalecer e prestigiar a
atividade do Estado na sua função repressiva, é certo, por outro lado, que assegu-
ram, com muito mais eficiência do que a legislação atual, a defesa dos acusados.
[...]
A prisão preventiva, por sua vez, desprende-se dos limites estreitos até agora
traçados à sua admissibilidade. Pressuposta a existência de suficientes indícios
para imputação da autoria do crime, a prisão preventiva poderá ser decretada
toda vez que o reclame o interesse da ordem pública, ou da instrução criminal,
ou da efetiva aplicação da lei penal. Tratando-se de crime a que seja cominada
pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a 10 (dez) anos, a de-
cretação da prisão preventiva será obrigatória, dispensando outro requisito além
da prova indiciária contra o acusado. A duração da prisão provisória continua a
ser condicionada, até o encerramento da instrução criminal, à efetividade dos
atos processuais dentro dos respectivos prazos; mas estes são razoavelmente di-
latados. (grifos nossos)
Nesse mesmo sentido, Lopes Junior (2011, p. 84) diz que a origem da
ordem pública remonta à Alemanha da década de 1930, “período em que o
nazifascismo buscava exatamente isto: uma autorização geral e aberta para
prender”.
O contexto histórico do Brasil dessa época era o Estado Novo (1937-
-1945), que se inicia quando Getúlio Vargas, com o suporte das Forças Arma-
das e da maior parte das elites, promove um golpe de Estado, nascendo uma
ditadura autoritária. Para Fausto (2001, p. 25), a instituição do Estado novo
representou a derrota dos liberais e a vitória dos ideais autoritários, defendidos,
entre outros nomes, por Oliveira Viana, Francisco Campos e Azevedo Amaral.
Os intelectuais autoritários identificaram-se com o regime por suas caracterís-
ticas mais evidentes: o carisma presidencial, a supressão da democracia repre-
sentativa e do sistema de partidos e a ênfase na hierarquia, em detrimento de
mobilizações sociais, ainda que controladas.
A ênfase do discurso do pensamento autoritário, como sublinha Fausto
(2001, p. 58), voltava-se à figura carismática do presidente, que assumira o
papel de encarnar a nação e de ligar os fios do tecido social, de baixo para
cima. O ideal do Estado Novo é ter um chefe de Estado que, em vez de liderar
um partido, seja uma autoridade que se ponha acima de grupos de qualquer
natureza, “de modo a poder dirigir a nação do alto, agindo como uma força
de agregação e unificação e não como uma força de desagregação e luta”. Tais
ideias, de Oliveira Viana (apud Fausto, 2001, p. 59-60), expressam, com clare-
za, o culto do Estado como a única instituição capaz de elevar o país ao nível
de uma verdadeira nação:
A subordinação dos interesses dos indivíduos, do grupo, do clã, do partido ou
da seita ao interesse supremo da coletividade nacional – da Nacionalidade –
exprime-se, para cada cidadão, na vida de todos os dias, pela capacidade de
obediência e disciplina, pelo culto do Estado e de sua autoridade. Há lugar aqui
para este raciocínio: o sentimento nacional forte gera a subordinação do indiví-
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duo ao grupo; esta subordinação gera a obediência ao Estado; a obediência ao
Estado gera a força, a grandeza, o domínio. (grifos do autor)
10 “Diversos autores apontam que a ausência de significado para a expressão garantia da ordem pública no
Brasil não se trata de um lapso inocente do legislador de 1941. Segundo afirmam, o Código brasileiro,
elaborado por Francisco Campos durante o período o Estado Novo (Era Vargas), tem profunda influência da
legislação italiana de 1930, vigente durante o fascismo (Código Rocco). Concluem que foi medida intencional
do legislador brasileiro (inspirado pelo fascismo italiano) ter deixado a expressão garantia da ordem pública
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Processual Penal de 1941, nada mudou desde então no que tange à permissão
para a decretação da prisão provisória para a garantia da ordem pública.
Convém salientar, nesse sentido, que, embora prevista desde 1941 no
processo penal brasileiro a possibilidade de se determinar a custódia cautelar
para assegurar a ordem pública, não existe uma indicação legislativa no CPP
sobre o que esta é ou quando se encontra ameaçada. Isso sem mencionar que,
mesmo se valendo da divisão proposta por Moreira Neto em “ordem pública
material” e “ordem pública formal”, tampouco existe no CPP apenas um uso da
expressão. Embora, nos arts. 312 e 42411, a ordem pública aproxime-se da sua
utilização pelo direito administrativo, enquanto situação de convivência pací-
fica (material), o art. 781 – segundo o qual “as sentenças estrangeiras não serão
homologadas, nem as cartas rogatórias cumpridas, se contrárias à ordem públi-
ca e aos bons costumes” – aproxima-se do seu emprego pelo direito internacio-
nal, enquanto conjunto de princípios fundamentais de certa sociedade (formal).
A única definição legal que se tem para o conceito de ordem pública está
contida no art. 2º do Decreto nº 88.777/1983, o qual regulamenta as Polícias
Militares e o Corpo de Bombeiros Militares, aprovado pelo então Presidente
João Figueiredo. No entanto, como se pode observar a seguir, não se foi muito
além da já explicitada e insuficiente noção de ordem pública como convivência
harmoniosa e pacífica:
Art. 2º Para efeito do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, modificado
pelo Decreto-Lei nº 1.406, de 24 de junho de 1975, e pelo Decreto-Lei nº 2.010,
de 12 de janeiro de 1983, e deste Regulamento, são estabelecidos os seguintes
conceitos:
[...]
19) Manutenção da Ordem Pública – É o exercício dinâmico do poder de polícia,
no campo da segurança pública, manifestado por atuações predominantemente
ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir ou reprimir eventos que violem
a ordem pública.
[...]
21) Ordem Pública – Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento
jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os ní-
veis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa
e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou
condição que conduza ao bem comum.
‘em aberto’, pois isto possibilitaria (e ainda possibilita) maior intervenção do poder público na liberdade de ir
e vir dos indivíduos.” (Pereira, 2010, on-line)
11 “Art. 424. Quando a lei local de organização judiciária não atribuir ao presidente do Tribunal do Júri o preparo
para julgamento, o juiz competente remeter-lhe-á os autos do processo preparado até 5 (cinco) dias antes do
sorteio a que se refere o art. 433 deste Código.”
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Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a reabertura de-
mocrática, com a consequente superação do período de ditadura militar no
Brasil, muito se debateu, entre os estudiosos do processo penal, sobre uma re-
leitura do CPP à luz dos princípios consagrados na mencionada Carta, em es-
pecial quanto às exigências constitucionais a respeito da prisão e da liberdade
provisória.
Como um dos frutos desse debate, o Projeto de Lei nº 4.208/2001, que
deu origem à ainda recente Lei nº 12.403/2011 – a qual, como se sabe, re-
formulou a sistemática da prisão cautelar – propôs uma nova redação para o
art. 312 do Código de Processo Penal, nos termos seguintes:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada quando verificados a existên-
cia de crime e indícios suficientes de autoria e ocorrerem fundadas razões de que
o indiciado ou acusado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à
execução da sentença ou venha a praticar infrações penais relativas ao crime or-
ganizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consi-
deradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa. (grifos nossos)
12 Como Coordenador da Comissão, figurou o Ministro Hamilton Carvalhido, e, como Relator, Eugênio Pacelli de
Oliveira.
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-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 –, em todas essas perspectivas, encontra-
-se definitivamente superado.
A incompatibilidade entre os modelos normativos do citado Decreto-Lei nº 3.689,
de 1941, e da Constituição de 1988 é manifesta e inquestionável. E essencial. A
configuração política do Brasil de 1940 apontava em direção totalmente oposta
ao cenário das liberdades públicas abrigadas no atual texto constitucional. E isso,
em processo penal, não só não é pouco, como também pode ser tudo. O Código
de 1941 anunciava, em sua Exposição de Motivos, que “[...] as nossas vigentes
leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou
confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias
e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária,
decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade...”. Ora, para
além de qualquer debate acerca de suposta identidade de sentido entre garantias
e favores, o que foi insinuado no texto que acabamos de transcrever parece fora
de dúvidas que a Constituição da República de 1988 também estabeleceu um
seguro catálogo de garantias e direitos individuais (art. 5º).
13 Eis o teor do anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal acerca da decretação da prisão preventiva:
“Art. 544. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica,
por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da
existência do crime e indício suficiente de autoria. § 1º A prisão preventiva jamais será utilizada como forma
de antecipação da pena. § 2º A gravidade do fato não justifica, por si só, a decretação da prisão preventiva.
§ 3º A prisão preventiva somente será imposta se outras medidas cautelares pessoais revelarem-se
inadequadas ou insuficientes, ainda que aplicadas cumulativamente”.
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doutrina e a jurisprudência pátrias têm entendido por “garantia da ordem públi-
ca” em tal caso? São basicamente essas as questões de que se ocupará adiante.
14 Cumpre esclarecer, no entanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há muito consolidou posição
“no sentido de que a prisão cautelar não viola o princípio constitucional da presunção de inocência, conclusão
essa que decorre da conjugação dos incisos LVII, LXI e LXVI do art. 5º da CF” (HC 71.169, 1ª T., Rel. Min.
Moreira Alves, J. 26.04.1994, DJ 16.09.1994). No mesmo sentido no âmbito do STF: HC 68.037, 2ª T., Rel.
Min. Aldir Passarinho, J. 10.05.1990, DJ 21.05.1993; HC 68.499, 2ª T., Rel. p/o Ac. Min. Néri da Silveira,
J. 18.06.1991, DJ 02.04.1993; HC 71.402, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, J. 19.05.1994,
DJ 23.09.1994; STF, RHC 108.440, 1ª T., Relª Min. Rosa Weber, J. 03.04.2012, DJe 17.04.2012.
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justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são ins-
trumentos a serviço do instrumento processo”. Se essa característica básica – a
instrumentalidade “qualificada” ou ao “quadrado” (servir ao processo) – desa-
parece, a prisão não é cautelar nem constitucional. Assim, a prisão preventiva
para garantia da ordem pública nada tem a ver com os fins puramente cautela-
res e processuais que marcam e legitimam esses provimentos: “Trata-se de grave
degeneração transformar uma medida processual em atividade tipicamente de
polícia, utilizando-as indevidamente como medidas de segurança pública”.
Lima (2003, p. 155), por sua vez, entende que, quando decretada para
a garantia da ordem pública, a prisão preventiva deixa de ser uma medida de
natureza cautelar, recaindo sobre o imputado uma presunção de periculosida-
de baseada unicamente na suspeita do delito cometido, o que equivale a uma
presunção de culpabilidade. As prisões preventivas, portanto, “mostram-se ile-
gítimas, representando uma execução provisória (ou antecipada da pena), cuja
principal finalidade seria a prevenção frente aos sujeitos perigosos ou suspeitos,
contrariando o princípio da nulla poena sine iudicio”.
A referida autora vai mais além, para sustentar que, além de ser um me-
canismo meramente punitivo, a custódia preventiva para a garantia da ordem
pública perde os seus objetivos na medida em que, enquanto na teoria é tida
como excepcional e de curta duração, na prática passa a ser uma medida au-
tomática, adquirindo, inclusive, feição administrativa em virtude do abuso de
sua decretação pelos julgadores. São mitigados, por conseguinte, “direitos e
garantias constitucionais em nome de um sistema penal que prima pelo repres-
sivismo”. Os seus pressupostos “têm um caráter arbitrário, potestativo e não
cognoscitivo; não suscetíveis de refutação, referindo frequentemente algo ima-
ginário e não concreto” (Lima, 2003, p. 155).
Nessa mesma esteira, Tourinho Filho, (2010, p. 849-850) afirma que a
decretação da custódia preventiva como garantia da ordem pública “é ines-
gotável fonte de excesso e de iniquidade”. E mesmo que, às vezes, seja tolerá-
vel, como na hipótese em que o indiciado ou o acusado continuam com sua
atividade criminosa, a medida coercitiva perde, nesse caso, às escâncaras, o
seu caráter cautelar, transmudando-se numa espécie de medida de segurança
sem respaldo constitucional. Para o citado autor, a ordem pública nada tem a
ver com o processo: “Há cem léguas de distância entre ela e a garantia de um
processo justo”, e a prisão preventiva em seu nome era admitida numa época
totalitária, ao tempo em que a presunção de inocência não havia sido guindada
à posição de cláusula pétrea da nossa Lei Fundamental15.
15 “Se o criminoso demonstrou profunda insensibilidade moral, por que prendê-lo preventivamente? Se toda
prisão provisória há de apresentar, necessariamente, caráter cautelar, se a cautela está em prevenir possíveis
danos que a liberdade do imputado possa causar ao processo condenatório, indaga-se: que reflexo poderá
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Dessa maneira, saliente-se, ainda, que defender que a segregação pre-
ventiva para garantia da ordem pública não tem caráter cautelar significa reco-
nhecer sua incompatibilidade com a ordem constitucional, por violar os direitos
e garantias individuais. Além de unânimes nesse ponto, os autores que se filiam
a tal posição também criticam o caráter polissêmico da expressão “garantia da
ordem pública” e a consequente inexistência de critérios racionais para contro-
lar o seu uso por parte dos juízes e tribunais.
Apenas para ilustrar, Mendes e Branco (2013, p. 559) afirmam que o con-
ceito de garantia da ordem pública é demasiado impreciso e provoca grande
insegurança na doutrina e na jurisprudência, “tendo em vista a possibilidade
de se exercer, com esse fundamento, um certo e indevido controle da vida
social”. Igualmente, Lopes Junior (2011, p. 70 e 82) assevera que a garantia da
ordem pública, “por ser um conceito vago, indeterminado, presta-se a qualquer
senhor, diante de uma maleabilidade conceitual apavorante”. Segundo ele, o
grande problema é que, diante da “anemia semântica” do art. 312, “uma vez
decretada a prisão, os argumentos ‘falsificados’ pela construção linguística são
inverificáveis e, portanto, irrefutáveis”.
No mesmo passo, Tourinho Filho (2010, p. 847) diz o seguinte:
“Comoção social”, periculosidade do réu”, “crime perverso”, “insensibilidade
moral”, “os espalhafatos da mídia”, “reiteradas divulgações pelo rádio ou televi-
são”, “credibilidade da Justiça”, “idiossincrasia do juiz por este ou aquele crime”,
tudo absolutamente tudo, se ajusta àquela expressão genérica “ordem pública”.
[...] E a prisão preventiva, nesses casos, não passará de uma execução sumária.
Decisão dessa natureza é eminentemente bastarda, malferindo a Constituição da
República. O réu é condenado antes de ser julgado. E se for absolvido? Ainda que
haja alguma indenização, o anátema cruel da prisão injusta ficará indelével para
ele, sua família e o círculo de sua amizade.
recair sobre o processo o fato de o réu haver cometido crime grave, gravíssimo, de grande repercussão? Não
se pode falar em prisão preventiva sem estar com as vistas voltadas ao princípio da presunção de inocência.
Do contrário, para que serviria esse princípio? Se é dogma constitucional, todos devem respeitá-lo. Se houver
desejo de encher as nossas cadeias, o problema não é difícil, é facílimo: basta rasgar a Magna Carta ou
mandá-las às favas... Na hipótese de ‘preservação da ordem pública’, a prisão preventiva não tem nenhum
caráter cautelar. Ela não acautela ‘o processo condenatório a que está instrumentalmente conexa’. Que espécie
de dano a liberdade do réu pode causar ao processo se o crime foi cometido com requintes de perversidade? O
que ela tutela não é o processo condenatório, diz Romeu Pires de Campos Barros: é a própria ordem pública.”
(Tourinho Filho, 2010, p. 850)
16 Emblemática é a manifestação do Ministro Ayres Britto no seguinte julgamento: “[...] segundo ressaltei
em julgamentos anteriores, tenho buscado, a partir da Constituição Federal, um conceito seguro de ordem
pública. Minha âncora, de longa data, tem sido o art. 144 da Constituição, e nem assim consigo sentir-
-me absolutamente tranquilo quanto a uma tentativa de formulação conceitual da matéria. [...] Avanço no
raciocínio para dizer que a expressão ‘ordem pública’, justamente, é a que me parece de mais difícil formulação
conceitual. Como a Constituição fala de ‘preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
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toridades judiciais têm se valido cotidianamente dessa expressão para justificar
as mais diferentes situações de prisão preventiva, como, por exemplo: em vista
da repercussão social provocada pelo delito (clamor público); para tutelar a
credibilidade do Poder Judiciário; para proteger a integridade física do próprio
agente; a fim de evitar o perigo de reiteração criminosa; e diante da periculo-
sidade do agente17. Apesar disso, pode-se estabelecer, pelo menos no âmbito
dos Tribunais Superiores, o atual entendimento sobre o que não se deve e o que
se deve entender por garantia da ordem pública. Essa tarefa, a ser realizada a
seguir, além de fornecer critérios para uma interpretação da referida hipótese
autorizadora, pode evidenciar em que casos e sob que condições, segundo o
STF e o STJ, ela não violaria os direitos e garantias fundamentais.
4.2 Casos que não justificam a prisão preventiva segundo o STF e o STJ
Basicamente, observam-se três hipóteses em que o STF e o STJ nega,
reiterada e veementemente, a possibilidade de decretação da prisão preventiva
para a garantia da ordem pública, a saber: quando ela estiver lastreada somente
(1) na gravidade em abstrato do crime; (2) no clamor público e/ou na credibili-
dade da Justiça; e (3) na proteção do próprio agente.
(1) Em relação à gravidade em abstrato do delito, ressalte-se que a nova
redação dada pela Lei nº 12.403/2011 ao art. 315 do Código de Processo Penal
dispõe que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva
será sempre motivada. Parece não haver dúvidas, aliás, de que esse dispositivo
é uma exigência do art. 5º, LXI, e do art. 93, IX, da Constituição Federal, no
sentido de que as decisões do Poder Judiciário devem ser fundamentadas, o que
se mostra especificamente claro em se tratando de medidas extremas.
Além do mais, de acordo com os arts. 282, § 6º, 310, II, e 312 do CPP,
as prisões preventivas são medidas excepcionais que só se justificam em casos
extremos, apenas podendo ser impostas quando existir prova da existência do
crime, indícios suficientes de autoria, e para garantir a ordem pública e econô-
mica, a aplicação da lei penal e a conveniência da instrução criminal, e quando
não houver outros instrumentos menos radicais, que, no caso brasileiro, são as
medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP. Portanto, além da existência
patrimônio’, fico a pensar que ordem pública é algo diferente da incolumidade do patrimônio, como é algo
diferente da incolumidade das pessoas. É um tertium genus. Mas o máximo que consegui até agora foi este
conceito negativo: ‘ordem pública’ é bem jurídico distinto da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (STF,
HC 101.300/SP, 2ª T., Rel. Min. Ayres Britto, J. 05.10.2010, DJe 18.11.2010). No Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, lê-se trecho de decisão no mesmo sentido: “‘Ordem pública’ é um requisito legal amplo,
aberto e carente de sólidos critérios de constatação, facilmente enquadrável em qualquer situação” (TJRS,
RSE 70006880447, 5ª C., Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, J. 29.10.2003).
17 A título de exemplo, Pereira (2010, on-line) apresenta diversas decisões das Cortes brasileiras nesse sentido.
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do delito e da convergência dos indícios em direção ao acusado, é preciso de-
monstrar concretamente a necessidade premente da custódia antecipada.
Nessa perspectiva, a jurisprudência do STF e do STJ é pacífica no sentido
de que a mera gravidade abstrata do delito não é suficiente para concluir pela
periculosidade social do agente18. O juiz precisa respaldar-se em fatos con-
cretos para afirmar que o status libertatis do agente implica um risco efetivo à
sociedade, nunca em conjecturas ou ilações abstratas.
(2) Quanto ao clamor público e/ou credibilidade da Justiça, a jurisprudên-
cia dos Tribunais Superiores vem rechaçando categoricamente a possibilidade
de decretação de prisão preventiva com base exclusivamente nessas hipóteses.
Nesse passo, o Ministro Carlos Ayres Brito diz que o STF já firmou o entendi-
mento de não se prestam para preencher o conteúdo da “ordem pública” o uso
de expressões fortemente retóricas ou emocionais, além do apelo à credibilida-
de da justiça ou ao clamor público, “seja porque não ultrapassam o campo da
mera ornamentação linguística, seja porque desbordam da instrumentalidade
inerente a toda e qualquer prisão provisória, antecipando, não raras vezes, o
juízo sobre a culpa do acusado”19.
Acerca do clamor público, Delmanto Junior (2001, p. 184-188) chama a
atenção para o fato de que, numerosas vezes, “não é o crime, em tese cometido,
que gera a chamada ‘vigorosa reação social’, mas sim a desmedida dramatiza-
ção e até mesmo alteração da versão dos fatos pela imprensa”. Segundo ele, tal
dramatização – que visa mais a aumentar a audiência televisiva ou radiofônica,
ou, ainda, o número de leitores de periódicos com a finalidade de valorizar
o espaço para a propaganda, do que realmente informar, de forma isenta, o
ocorrido – é o que leva, muitas vezes, ao clamor público, que não se verificaria
na sua ausência. Além disso, ressalta que, embora a opinião publicada possa
identificar-se com a opinião pública, é demasiado difícil a tarefa do juiz de
distinguir se a revolta da sociedade decorre do choque que o crime causou no
meio social, por si só, ou se essa vingança do inconsciente popular é conse
quência da exploração e da distorção dos fatos pela mídia20.
18 No STF, por exemplo, cf. HC 121.183/SP, 2ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, J. 13.05.2014, DJe
05.06.2014; e HC 115.434/SP, 1ª T., Rel. Min. Roberto Barroso, J. 10.12.2013, DJe 14.02.2014. No STJ,
cf. HC 243.717/BA, 5ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, J. 28.08.2012, DJe 05.09.2012; AgRg-HC 127.876/MG,
6ª T., Relª Min. Assusete Magalhães, J. 04.12.2012, DJe 18.12.2012; e HC 281.226/SP, 5ª T., Rel. Min.
Jorge Mussi, Rel. p/o Ac. Min. Moura Ribeiro, J. 06.05.2014, DJe 15.05.2014.
19 HC 111.244/SP, 2ª T., Rel. Min. Ayres Britto, J. 10.04.2012, DJe 26.06.2012. No mesmo sentido no âmbito
do STF, cf. HC 111.244/SP, 2ª T., Rel. Min. Ayres Britto, J. 10.04.2012, DJe 26.06.2012; e HC 100.012/PE,
1ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, J. 15.12.2009, DJ 26.02.2010. No STJ, cf. HC 284.887/MG, 6ª T.,
Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, J. 19.08.2014, DJe 02.09.2014; e HC 281.226/SP, 5ª T., Rel. Min. Jorge
Mussi, Rel. p/o Ac. Min. Moura Ribeiro, J. 06.05.2014, DJe 15.05.2014.
20 Vale advertir que, apesar de prevalecer na jurisprudência que a repercussão social intensa (clamor público)
provocada pela gravidade do crime não pode, por si só, autorizar a privação cautelar da liberdade sob o
manto da garantia da ordem pública, há quem discorde dessa posição, não para sustentar que o juiz possa,
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Já acerca da credibilidade da Justiça e das instituições, Lopes Junior
(2011, p. 89) argumenta que se trata de uma falácia, pois “nem as instituições
são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um
instrumento apto para esse fim”. Nesse caso, ademais, trata-se de uma função
metaprocessual, incompatível com a natureza cautelar da medida. Ressalta, de
outro lado, com alicerce nas palavras de Eros Grau no voto proferido no Habeas
Corpus nº 95.009-4/SP, que
o combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do
Judiciário), seja através da polícia, como se lê nos incisos do art. 144 da Consti-
tuição, quanto do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promo-
ver a ação penal pública (art. 129, I).
simplesmente com base no anseio da população por justiça ou a partir de notícias sensacionalistas veiculadas
em jornais e em revistas, determinar a custódia provisória, “mas sim no sentido de que deve ser admitida
a prisão preventiva em hipóteses de real e inequívoco abalo social provocado pela prática de crimes de
extrema gravidade, visando-se, destarte, não apenas ao restabelecimento do sossego social, como também
à própria credibilidade das instituições, sobretudo do Judiciário” (Avena, 2012, p. 928). Nesse mesmo
passo, Nucci (2012, p. 660) afirma o seguinte: “Crimes que ganham destaque na mídia podem comover
multidões e provocar, de certo modo, abalo à credibilidade da Justiça e do sistema penal. Não se pode,
naturalmente, considerar que publicações feitas pela imprensa sirvam de base exclusiva para a decretação da
prisão preventiva. Entretanto, não menos verdadeiro é o fato de que o abalo emocional pode dissipar-se pela
sociedade, quando o agente ou a vítima é pessoa conhecida, fazendo com que os olhos se voltem ao destino
dado ao autor do crime. Nesse aspecto, a decretação da prisão preventiva pode ser uma necessidade para a
garantia da ordem pública, pois se aguarda uma providência do Judiciário como resposta a um delito grave,
envolvendo pessoa conhecida (autor ou vítima). Se a prisão não for decretada, o recado à sociedade poderá ser
o de que a lei penal é falha e vacilante, funcionando apenas contra réu e vítimas anônimas. O clamor público
não é o fator determinante para a decretação da prisão preventiva, embora não possa ser, singelamente,
desprezado, como se não existisse”.
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do Estado do que solto nas ruas, onde pode ser objeto de vingança de terceiros,
não autoriza a decretação da custódia preventiva: “Cabe ao indiciado ou ao
réu procurar a melhor maneira de se proteger, se for o caso, mas não se pode
utilizar da custódia cautelar para esse mister”.
Da mesma forma, os Tribunais Superiores entendem que a prisão pre-
ventiva não se presta a tutelar a integridade física do acusado, inclusive porque
protegê-la é dever da atividade não jurisdicional de segurança pública. No STF,
o Ministro Joaquim Barbosa já asseverou que a necessidade de preservar a inte-
gridade física do agente em face da revolta popular que o crime ocasionou não
é capaz de sustentar a prisão preventiva, pois “ninguém pode ser preso para sua
própria proteção”21. A posição do STJ caminha na mesma linha: “A invocação
da necessidade de se assegurar a integridade física do próprio acusado não
constitui fundamentação idônea”22.
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os mesmos estímulos relacionados. Trata-se, por vezes, de criminosos habituais,
indivíduos cuja vida é uma sucessão interminável de ofensas à lei penal: con-
tumazes assaltantes da propriedade, por exemplo. Quando outros motivos não
ocorressem, o intuito de impedir novas violações determinaria a providência.
23 STF, HC 111.244/SP, 2ª T., Rel. Min. Ayres Britto, J. 10.04.2012, DJe 26.06.2012. No mesmo sentido no
STF: HC 118.955/PR, 2ª T., Relª Min. Cármen Lúcia, J. 11.03.2014, DJe 20.03.2014; HC 90.398/SP, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, DJ 18.05.2007.
24 STJ, HC 256.699/RJ, 6ª T., Rel. Min. Og Fernandes, J. 04.04.2013, DJe 16.04.2013.
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da vítima, continuaram a efetuar disparos de arma de fogo em sua direção, bem
como pela reiteração delitiva25.
Além do modus operandi, também se costuma recorrer à folha de ante-
cedentes criminais do imputado para avaliar a sua periculosidade. Nesse sen-
tido, no HC 103-330/MG (STF), o Ministro Luiz Fux, após relatar o cenário
fático do caso (de estelionato), sustenta que a folha de antecedentes criminais
do acusado “indica que há diversas investigações, antigas e recentes, além de
uma condenação por crime da mesma espécie, havendo risco ponderável de
reiteração delitiva”. Isso, somado ao fato de que, apesar de citado por edital – o
que acarretou a suspensão do processo e do prazo prescricional –, o acusado
permanece em local incerto e não sabido por mais de seis anos, torna o decreto
prisional idôneo26. Também recorrendo à folha de antecedentes criminais, a
Ministra Laurita Vaz, no HC 280.563/RS (STJ), argumenta que, no caso, a prisão
cautelar do paciente encontra-se devidamente fundamentada na garantia da
ordem pública ante a possibilidade concreta de reiteração delitiva, “porque é
reincidente e possui antecedentes, tendo condenação definitiva por crime de
roubo e três registros de condenação por delitos de furto”27.
Diante disso, perceba-se que a necessidade de garantia da ordem pública
só pode ser verificada quando as circunstâncias do caso concreto, refletidas
no modus operandi empregado na prática criminosa – ou, também, pela fo-
lha de antecedentes –, demonstram a periculosidade do agente e/ou o risco de
reiteração delitiva. Desse modo, a gravidade abstrata do delito não basta para
concluir pela necessidade da prisão. É imperioso, frise-se, amparar-se em ele-
mentos concretos para se sustentar a periculosidade do agente e/ou o risco de
reiteração delitiva.
Uma vez apontados os dados concretos capazes de evidenciar um desses
critérios, segundo o STF e o STJ, nada impede que a medida extrema de constri-
ção da liberdade venha a ser imposta ao indiciado ou ao acusado, e isso mes-
mo que este possua condições subjetivas favoráveis, como bons antecedentes,
primariedade, profissão definida e residência fixa28. Nesses casos e sob essas
condições, inexistiria violação a direitos e garantias fundamentais.
25 STJ, RHC 42.177/ES, 5ª T., Relª Min. Regina Helena Costa, J. 27.05.2014, DJe 02.06.2014.
26 STF, HC 103-330/MG, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, J. 21.06.2011, DJe 09.08.2011.
27 STJ, HC 280.563/RS, 5ª T., Relª Min. Laurita Vaz, J. 25.03.2014, DJe 31.03.2014.
28 “A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a primariedade, a residência fixa e a ocupação
lícita não possuem o condão de impedir a prisão cautelar, quando presentes os requisitos do art. 312 do
Código de Processo Penal, como ocorre no caso” (STF, RHC 116.469/MT, 2ª T., Rel. Min. Teori Zavascki,
J. 19.11.2013, DJe 03.12.2013). Em igual sentido no STJ: “É cediço o entendimento desta Corte no sentido
de que a existência de condições pessoais favoráveis não impede a manutenção da segregação cautelar,
quando presentes os requisitos legais, como se dá na hipótese dos autos” (RHC 47.255/MG, 5ª T., Rel. Min.
Marco Aurélio Bellizze, J. 27.05.2014, DJe 09.06.2014).
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É importante destacar, por fim, que parte da doutrina critica duramente o
decreto de prisão preventiva com fundamento nos critérios acima explicitados.
Lopes Junior (2011, p. 90), nesse sentido, afirma que a prisão sob o argumento
do risco de reiteração delitiva atende não ao processo penal, mas sim a uma
função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e ao fundamento
daquele. Ironiza que, além de um diagnóstico impossível de ser feito, “salvo
para os casos de vidência e bola de cristal”, é flagrantemente inconstitucional,
porque “a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela
permanece intacta em relação a fatos futuros”. E desenvolve a mesma crítica
em seguida:
A prisão para garantia da ordem pública sob o argumento de “perigo de reitera-
ção” bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja
do que pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o processo,
está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisí-
vel). Além de inexistir um periculosômetro (tomando emprestada a expressão de
Zaffaroni), é um argumento inquisitório, pois irrefutável. Como provar que ama-
nhã, se permanecer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser
feita, tão impossível como a afirmação de que amanhã eu o praticarei. Trata-se de
recursar o papel de juízes videntes, pois ainda não equiparam os foros brasileiros
com bolas de cristal. (grifo no original)
CONCLUSÃO
Apesar de todas as críticas, a prisão preventiva para a garantia da ordem
pública permanecerá existindo no ordenamento jurídico brasileiro sem critérios
legais definidos sobre o seu significado e sobre o seu alcance, até porque, como
dito, na oportunidade que se teve de extirpá-la ou de precisá-la nas reformas
legislativas, optou-se por não fazê-lo.
Isso não significa, contudo, que se deve aceitar acriticamente a falta de
um critério seguro para se saber quando um indivíduo pode ser preso preven-
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tivamente com alicerce nessa hipótese autorizadora. Ao contrário, conferindo
tamanho poder ao juiz, com um fundamento “em aberto” para a prisão preven-
tiva, a lei abre margem para a promoção de prisões ilegais e arbitrárias e, por
consequência, para graves violações a direitos e garantias fundamentais. Aliás,
não se pode olvidar que a garantia da ordem pública como fundamento da pri-
são preventiva é uma herança do Código Rocco, de viés claramente autoritário,
elaborado num período em que os interesses individuais subordinavam-se aos
de tutela da coletividade, justificando-se uma série de intervenções do Poder
Público na liberdade de ir e vir dos indivíduos.
Não obstante, revela-se precipitado abandonar a “garantia da ordem pú-
blica” sem substituí-la por um fundamento melhor e que se proponha ao mesmo
fim29. E isso não só porque se concorda com a correção da maioria das decisões
proferidas com base nela, mas, sobretudo, porque não é necessária uma bola
de cristal nem um periculosômetro para se inferir, com razoável grau de confia-
bilidade, que, em situações extremas, capazes de provocar profunda intranqui-
lidade social – seja pelo modus operandi (ousado, reprovável, repugnante etc.),
seja pela extensa folha de antecedentes, por exemplo, no caso de o indivíduo já
ter sido condenado ou responder por vários crimes da mesma espécie –, torna-
-se indispensável a prisão antes do trânsito em julgado da condenação criminal.
Com efeito, faz-se um juízo de periculosidade (e não de culpabilidade) sobre o
futuro, mas com base em fatos pretéritos – jamais com base em meras ilações ou
conjecturas, desprovidas de base empírica – que indiquem a probabilidade real,
iminente, de que, caso seja solto, o indiciado ou o acusado voltará a delinquir.
Ainda que não se concorde com todas as críticas doutrinárias, elas cer-
tamente são de grande importância para chamar a atenção dos Magistrados
– e também da sociedade – para o terreno nebuloso e delicado em que entra
quando entende ser o caso de se decretar uma prisão em face de perigo à ordem
pública, impondo, de certa forma, um “dever de vigilância”, para que se evite a
banalização e o uso desarrazoado dessa hipótese autorizadora.
Em outras palavras, para decretarem uma prisão com fundamento na ga-
rantia da ordem pública, os juízes e os tribunais devem tomar muita cautela e
29 É importante ressaltar que a prisão provisória sob o argumento do “risco de reiteração delitiva” é admitida
no direito comparado. A título ilustrativo, o art. 503.2 da Ley de Enjuiciamiento Criminal (Espanha) autoriza
a prisão cautelar, “para evitar el riesgo de que el imputado cometa otros hechos delictivos. Para valorar la
existencia de este riesgo se atenderá a las circunstancias del hecho, así como a la gravedad de los delitos
que se pudieran cometer”; o art. 274 do Codice di Procedura Penale (Itália), por sua vez, admite a prisão
“quando, per specifiche modalità e circostanze del fatto e per la personalità della persona sottoposta alle
indagini o dell’imputato, desunta da comportamenti o atti concreti o dai suoi precedenti penali, sussiste il
concreto pericolo che questi commetta gravi delitti con uso di armi o di altri mezzi di violenza personale o
diretti contro l’ordine costituzionale ovvero delitti di criminalità organizzata o della stessa specie di quello
per cui si procede”; o art. 204 do Código de Processo Penal Português autoriza a custódia quando houver
“perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este
continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas”.
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apontar, com franqueza e robustez argumentativa, em que elementos baseiam
sua convicção sobre o risco de reiteração delitiva e/ou sobre a periculosidade
do agente, nunca desviando o olhar do caso concreto, pois é essa exigência
que permite o necessário controle sobre a legalidade da medida. Somente à luz
dessa análise voltada para as circunstâncias de cada caso é que se torna possível
impor limites ao arbítrio do julgador e, por conseguinte, pensar uma interpreta-
ção e uma aplicação do instituto compatível com a Constituição.
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Parte Geral – Jurisprudência
3386
EMENTA
PENAL E PROCESSUAL PENAL – ATIVIDADE CLANDESTINA DE RADIODIFUSÃO –
DESCLASSIFICAÇÃO DA DENÚNCIA – INVIABILIDADE – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
– INAPLICABILIDADE – AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS – VALOR DO DIA-
MULTA – MÍNIMO LEGAL
1. Os fatos descritos na denúncia, consistentes em manter em fun-
cionamento a estação clandestina Rádio Aliança, sem a licença da
Anatel, correspondem ao tipo do art. 183 da Lei nº 9.472/1997.
Não procede a pretensão de desclassificação para o art. 70 da Lei
nº 4.117/1962, ocorrente quando, existindo licença de funcionamen-
to, o exercício da outorga se dá de modo irregular.
2. O art. 183 da Lei nº 9.472/1997 define crime de perigo abstrato,
cujo bem jurídico tutelado é a segurança dos meios de comunicação.
A instalação e a utilização de aparelhagem em desacordo com as
exigências legais, ou de forma clandestina, podem causar sérios dis-
túrbios por interferência em serviços regulares de comunicações e em
navegação aérea ou marítima.
3. A certeza da materialidade do delito foi demonstrada pela sen-
tença, com a representação da Anatel, o termo de qualificação de
atividade clandestina, o auto de apreensão e o parecer técnico de
estação não outorgada. A autoria também ficou evidenciada, afirman-
do ainda o apelante, em inquérito policial, que era o proprietário da
rádio clandestina.
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4. O valor do dia-multa, todavia, deve ser reduzido de 1/10 para 1/30
SM do tempo do fato, para guardar coerência com os parâmetros da
pena, postos no mínimo legal.
5. Provimento parcial da apelação.
ACÓRDÃO
Decide a Turma dar parcial provimento à apelação, à unanimidade.
4ª Turma do TRF da 1ª Região.
Brasília, 17 de maio de 2016.
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Desembargador Federal Olindo Menezes (Relator): –
Antônio Humberto Ferreira apela de sentença da Vara Federal de Patos de
Minas/MG, que o condenou a 2 (dois) anos de detenção, em regime aberto,
com substituição, e 10 dias-multa, na razão de 1/10 (um décimo) – SM vigente à
época dos fatos, pela prática do delito previsto no art. 183 da Lei nº 9.472/1997.
Pugna pela absolvição, alegando inexistência da materialidade por au-
sência de laudo pericial e porque não foi comprovado o dano causado pelo
aparelho de radiodifusão.
Pede a desclassificação da conduta para o art. 70, caput, da Lei
nº 4.117/1962, e sustenta também a não comprovação da autoria, ao argu-
mento de que não há prova de que o aparelho de radiodifusão lhe pertencesse,
requerendo, ainda, a aplicação dos princípios da insignificância e do in dubio
pro reo (Cf. peça de fls. 372-386).
O órgão do Ministério Público Federal, nesta instância, em parecer fir-
mado pelo Procurador da República Luiz Francisco F. de Souza (fls. 426-437),
opina pelo provimento do recurso.
VOTO
O Exmo. Sr. Desembargador Federal Olindo Menezes (Relator): – Não
procede a pretensão de desclassificação da conduta para o tipo previsto no
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art. 70 da Lei nº 4.117/1962, ocorrente quando, existindo licença de funciona-
mento, o exercício da outorga se dá de forma irregular.
A imputação dá conta de que o apelante manteve em funcionamento a
estação clandestina Rádio Aliança, sem a licença da Anatel, o que corresponde
à conduta descrita ao tipo previsto no art. 183 da Lei nº 9.472/1997, no que
andou bem a sentença em emendatio libelli. O preceito típico-incriminador
assim estabelece:
Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação:
EMENTA
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE RITO ORDINÁRIO – CEF – CONCILIAÇÃO –
EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO DE QUITAÇÃO – DOCUMENTO QUE SE RETIRA NA AGÊNCIA – ÔNUS
DO MUTUÁRIO – HIPÓTESE DE ASTREINTES NÃO CONFIGURADA – IMPROVIMENTO
1. Cuida-se de agravo de instrumento objetivando a reforma da deci-
são que indeferiu o requerimento de aplicação de multa processual
relativamente à CEF, por supostamente não ter fornecido o ofício de
quitação do financiamento imobiliário.
2. Após a homologação da conciliação realizada no âmbito do Nú-
cleo Permanente de Solução Consensual de Conflitos desta Corte, o
agravante se comprometeu a pagar determinado valor pecuniário e,
em seguida, a CEF iria expedir ofício de quitação de modo a permitir
a baixa da hipoteca incidente sobre o imóvel.
3. Pelo o que se pode aferir nas contrarrazões, o procedimento de en-
trega do ofício em questão não é feita nos autos, tampouco é enviado
direto ao Cartório, mas o mutuário deve se dirigir à agência e buscar
seu documento de quitação.
4. De fato, a agravada providenciou a expedição do ofício, sendo que
provavelmente, por motivo de falha na comunicação, o agravante
não conseguiu receber o referido documento de modo a apresentá-lo
no Cartório de Registro de Imóveis.
5. Não se pode imputar à recorrida a demora no recebimento do
ofício para o fim de liberação do gravame incidente sobre o imóvel,
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não restando configurado que a hipótese seria de exigibilidade das
astreintes estabelecidas no acordo celebrado.
6. Agravo de instrumento conhecido e improvido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas,
decide a Sexta Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região,
por unanimidade, conhecer e negar provimento ao agravo de instrumento, nos
termos do voto do Relator.
Rio de Janeiro, 27.04.2016 (data do Julgamento).
RELATÓRIO
1. Cuida-se de agravo de instrumento interposto por Valdomiro Pires da
Silva, em ação de rito ordinário, objetivando a reforma da decisão exarada pelo
Juiz da 8ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que indeferiu o requerimento de apli-
cação de multa processual relativamente à Caixa Econômica Federal.
2. Em sede recursal, o agravante narra que, em março de 2013, foi rea-
lizada audiência no Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução
de Conflitos desta Corte, ocasião em que houve conciliação entre as partes.
Alega que a CEF se comprometeu a entregar o ofício de quitação para baixa da
hipoteca no RGI a partir da efetiva quitação, sendo certo que, com auxílio de
familiares, quitou o valor do financiamento do imóvel em abril de 2013. Aduz
que a Caixa tinha até 15 de julho de 2013 para expedir o referido ofício, o que
não ocorreu. Sustenta que, em 09.08.2013, compareceu à CEF e solicitou, por
escrito, a baixa da hipoteca, o que novamente não ocorreu. Argumenta que,
diversamente do que sustenta a agravada, não houve a expedição do ofício de
baixa de hipoteca. Ao final, requer a reforma da decisão para o fim de reconhe-
cer a multa processual contra a CEF.
3. Apresentada as contrarrazões, o Ministério Público Federal, na quali-
dade de custos legis, manifestou-se pela sua não intervenção.
4. Não houve necessidade de solicitar as informações ao Juízo de origem.
É o relatório. Peço dia.
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Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Relator
VOTO
1. Conheço do agravo de instrumento porque presentes seus pressupos-
tos de admissibilidade.
2. A decisão guerreada foi exarada antes da entrada em vigor do novo
Código de Processo Civil.
3. Como relatado, cuida-se de agravo de instrumento objetivando a refor-
ma da decisão que indeferiu o requerimento de aplicação de multa processual
relativamente à Caixa Econômica Federal, por supostamente não ter fornecido
o ofício de quitação do financiamento imobiliário.
4. A decisão combatida foi assim exarada:
“Indefiro o pedido de aplicação de multa requerido pelo Autor às fls. 561/562 e
578, uma vez que o documento trazido aos autos pela CEF foi extraído de seus re-
gistros oficiais, razão pela qual tal documento goza da presunção de veracidade
própria dos documentos públicos, não tendo o exequente em qualquer momento
apresentado provas que comprovem o contrário.
Deste modo, tais documentos são prova suficiente do cumprimento do acordo
avençado.
[...]”
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL – TRIBUTÁRIO – JULGAMENTO MONOCRÁTICO – AUTORIZADO PELO
ART. 557 DO CPC – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA – NÃO INCIDÊNCIA – TERÇO
CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS – AVISO-PRÉVIO INDENIZADO – OFENSA AO ART. 103-A DA
CF/1988 E OFENSA À CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO – INOCORRÊNCIA – RECURSO
IMPROVIDO
1. Tratando-se de matéria julgada pelo STF, viável o julgamento mo-
nocrático, conforme autoriza o art. 557 do CPC.
2. Não procede a alegação de ofensa ao art. 103-A do Constituição
Federal. Descabida, também, a alegação de que houve ofensa à cláu-
sula de reserva de plenário, insculpida no art. 97 da Constituição,
uma vez que a decisão ora atacada baseou-se em jurisprudência pa-
cificada do Superior Tribunal de Justiça, que por sua vez apoia-se em
precedentes do Supremo Tribunal Federal.
3. Não incide contribuição previdenciária sobre o pagamento do avi-
so-prévio indenizado e o terço constitucional de férias gozadas ou
indenizadas. O STJ pacificou o entendimento, no REsp 1230957/RS,
em julgamento sujeito ao regime do art. 543-C do CPC.
4. Inexistindo fundamentos hábeis a alterar a decisão monocrática,
nega-se provimento aos agravos legais.
DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – JURISPRUDÊNCIA......................................................................................................... 145
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, de-
cide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por
unanimidade, negar provimento ao agravo legal, nos termos do relatório e voto
que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
São Paulo, 12 de abril de 2016.
Hélio Nogueira
Desembargador Federal
RELATÓRIO
Trata-se de agravo legal interposto pela União Federal, contra deci-
são monocrática proferida que, nos termos do art. 557 do CPC e da Súmula
nº 253/STJ c/c o art. 33 do RI/TRF-3ª Região, integrada aos declaratórios de
fls. 454/456, deu parcial provimento à apelação fazendária para anular a sen-
tença na parte referente ao abono pecuniário de férias e o 13º salário proporcio-
nal sobre ao aviso-prévio indenizado, ante seu caráter extra petita. Deu parcial
provimento ao reexame necessário para declarar a incidência da contribuição
previdenciária sobre os valores pagos a título de décimo terceiro salário e ho-
ras extras e declarar a não incidência da contribuição previdenciária sobre os
valores pagos nos primeiros 15 dias antecedentes ao auxílio-doença e a título
de aviso-prévio indenizado, férias indenizadas, terço constitucional de férias e
auxílio-creche, bem como, para que eventual compensação, sujeita à apuração
da administração fazendária, seja realizada somente com contribuições pos-
teriores de mesma destinação e espécie, observados a prescrição quinquenal,
o trânsito em julgado, as instruções normativas da Receita Federal do Brasil e
o demais disposto aqui. Pela sucumbência recíproca, os honorários e despe-
sas devem ser proporcionalmente distribuídos e compensados, nos termos do
art. 21 do Código de Processo Civil.
A agravante, em síntese, sustenta a impossibilidade do julgamento mono-
crático, nos termos do art. 557 do CPC. Pugna pelo reconhecimento da incidên-
cia da contribuição social previdenciária incidente sobre o terço constitucional
de férias e o aviso-prévio indenizado, ante seu nítido caráter remuneratório.
Alega ainda ofensa aos arts. 97 e 103-A da CF/1988.
Postula a reconsideração da decisão agravada ou, em caso de não aco-
lhimento, a apresentação dos recursos em mesa para a apreciação da Primeira
Turma.
É o relatório.
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Apresento o feito em mesa.
VOTO
Depreende-se da atual redação do art. 557 do CPC, que o critério para se
efetuar o julgamento monocrático é, tão somente, a existência de jurisprudência
dominante, não exigindo, para tanto, jurisprudência pacífica ou, muito menos,
decisão de Tribunal Superior pela sistemática do art. 543 do mesmo Código.
Ainda que assim não se entenda, a apresentação do recurso em mesa,
submetendo-se a decisão monocrática ao crivo do órgão colegiado supre even-
tual desconformidade do julgamento singular com o art. 557 do Código de
Processo Civil, restando, portanto, superada esta questão. Nesse sentido: (STJ,
AgRg-REsp 1222313/SC, Rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª T., Julgado em 16.05.2013,
DJe 21.05.2013); (STJ, AgRg-AREsp 276.388/RS, Rel. Min. Mauro Campbell
Marques, 2ª T., Julgado em 11.06.2013, DJe 17.06.2013); (STJ, AgRg-REsp
1359965/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª T., Julgado em 16.05.2013,
DJe 31.05.2013); (STJ, AgRg-REsp 1317368/DF, Rel. Min. Antonio Carlos
Ferreira, 4ª T., Julgado em 18.06.2013, DJe 26.06.2013).
Desse modo, não procede a alegação da agravante quanto à ofensa ao
disposto no art. 103-A do Constituição Federal.
Descabida, também, a alegação de que houve ofensa à cláusula de re-
serva de plenário, insculpida no art. 97 da Constituição, uma vez que a decisão
ora atacada baseou-se em jurisprudência pacificada do Superior Tribunal de
Justiça, que por sua vez apoia-se em precedentes do Supremo Tribunal Federal.
No mais, não vislumbro nos argumentos trazidos pela agravante motivos
que infirmem a decisão monocrática ora atacada, razão pela qual retomo seus
fundamentos nos pontos agravados:
“Trata-se de apelação e remessa oficial em face de sentença de fls. 354/356-v.
que julgou extinto o processo, nos termos do art. 267, inciso VI, do Código de
Processo Civil, em face da falta de interesse de agir, no tocante ao pedido de não
incidência da contribuição previdenciárias sobre os valores recolhidos a título de
auxílio-acidente e auxílio-doença. Por isso, julgou improcedente o pedido dedu-
zido, com resolução do mérito, nos termos do art. 269, I, do Código de Processo
Civil, com relação a não incidência da contribuição previdenciária sobre auxílio-
-creche, décimo terceiro salário proporcional sobre o aviso-prévio indenizado,
adicional de hora extra. Noutro giro, julgou procedente o pedido deduzido, nos
termos do art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil, para afastar a incidência
da contribuição previdenciária sobre os valores pagos pela impetrante, a título
de abono pecuniário de férias, férias indenizadas, terço constitucional de férias,
aviso-prévio indenizado e o auxílio-doença pago pela empresa nos primeiros
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quinze dias de afastamento do empregado, aos empregados, reconhecendo-se o
direito à compensação dos valores recolhidos indevidamente nos últimos cinco
anos, em face da prescrição, corrigidos monetariamente pela taxa Selic, com
parcelas vincendas da contribuição sobre a folha de salários, após o trânsito em
julgado, sem prejuízo da fiscalização do procedimento de compensação pela
Receita Federal. Custas na forma da lei. Indevida a verba honorária. Sentença
sujeita ao reexame necessário.
Apela a União/Fazenda Nacional. Inicialmente, requer o reconhecimento de que
a sentença extrapolou o pedido no que se refere ao abono pecuniário de fé-
rias e o 13º salário proporcional sobre o aviso-prévio indenizado, nos termos do
art. 128 do CPC. Sustenta a incidência da contribuição previdenciária sobre o
terço constitucional de férias, nos primeiros quinze dias de afastamento por mo-
tivo de doença, aviso-prévio indenizado. Busca o reconhecimento da falta de
interesse de agir com relação às férias indenizadas.
A impetrante apresenta contrarrazões do recurso de apelação às fls. 390/406.
Sem interposição de recurso de apelação pela impetrante, subiram os autos ao
TRF 3ª Região.
O Ministério Público Federal manifesta-se nos autos, opinando pelo afastamen-
to da preliminar suscitada nas razões de apelação, bem como o desprovimento
do recurso da União e do reexame necessário, para a confirmação da sentença
(fls. 411/416).
Dispensada a revisão, por ser matéria predominantemente de direito, na forma
regimental.
É, no essencial, o relatório. Decido.
Nos termos do caput e § 1º-A do art. 557 do CPC e da Súmula nº 253/STJ, o re-
lator está autorizado, por meio de decisão monocrática, a negar seguimento ou
dar provimento ao recurso voluntário e à remessa oficial, nas hipóteses de pedido
inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com a jurisprudência
dominante da respectiva Corte Regional ou de Tribunal Superior.
O caso comporta decisão na forma do art. 557 do CPC.
[...]
Da contribuição social sobre a folha de salários
O art. 195, inciso I, alínea a, da Constituição Federal, estabelece, dentre as fontes
de financiamento da Seguridade Social, a contribuição social do empregador, da
empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidente sobre a folha
de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer
título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício.
Na redação original do dispositivo, anterior à EC 20/1998, a contribuição em tela
podia incidir apenas sobre a folha de salários. Vê-se, pois, que a ideia que per-
meia a hipótese de incidência constitucionalmente delimitada para a contribui-
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ção social em exame é a abrangência daquelas verbas de caráter remuneratório
pagas àqueles que, a qualquer título, prestem serviços à empresa.
O contorno legal da hipótese de incidência da contribuição é dado pelo art. 22,
inciso I, da Lei nº 8.212/1991:
Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social,
além do disposto no art. 23, é de: I – vinte por cento sobre o total das remu-
nerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos
segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, des-
tinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gor-
jetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decor-
rentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer
pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos
da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho
ou sentença normativa. (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 26.11.1999).
Claramente, portanto, busca-se excluir a possibilidade de incidência da contri-
buição sobre verbas de natureza indenizatória. Tanto é assim, que a tentativa de
impor a tributação das parcelas indenizatórias, levada a cabo com a edição da
MP 1.523-7 e da MP 1.596-14, restou completamente afastada pelo STF no jul-
gamento da ADIn 1.659-6/DF, bem como pelo veto ao § 2º do art. 22 e ao item
b do § 8º do art. 28, ambos da Lei nº 8.212/1991, dispositivos incluídos pela Lei
nº 9.528/1997.
Contudo, a definição do caráter salarial ou indenizatório das verbas pagas aos
empregados não pode ser livremente atribuída ao empregador, o que impõe a
análise acerca da natureza jurídica de cada uma delas, de modo a permitir ou
não sua exclusão da base de cálculo da contribuição social em causa.
Do aviso-prévio indenizado e o terço constitucional de férias indenizadas
Não incide contribuição previdenciária sobre o pagamento do aviso-prévio inde-
nizado e o terço constitucional de férias gozadas ou indenizadas.
O STJ pacificou o entendimento, no REsp 1230957/RS, em julgamento sujeito ao
regime do art. 543-C do CPC:
‘PROCESSUAL CIVIL – RECURSOS ESPECIAIS – TRIBUTÁRIO – CONTRIBUI-
ÇÃO PREVIDENCIÁRIA A CARGO DA EMPRESA – REGIME GERAL DA PRE-
VIDÊNCIA SOCIAL – DISCUSSÃO A RESPEITO DA INCIDÊNCIA OU NÃO
SOBRE AS SEGUINTES VERBAS: TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS;
SALÁRIO-MATERNIDADE; SALÁRIO-PATERNIDADE; AVISO-PRÉVIO INDE-
NIZADO; IMPORTÂNCIA PAGA NOS QUINZE DIAS QUE ANTECEDEM O
AUXÍLIO-DOENÇA – 1. Recurso especial de Hidro Jet Equipamentos Hidráu-
licos Ltda. 1.1 Prescrição. O Supremo Tribunal Federal ao apreciar o RE
566.621/RS, Tribunal Pleno, Relª Min. Ellen Gracie, DJe de 11.10.2011), no
regime dos arts. 543-A e 543-B do CPC (repercussão geral), pacificou enten-
dimento no sentido de que, “reconhecida a inconstitucionalidade art. 4º, se-
gunda parte, da LC 118/2005, considerando-se válida a aplicação do novo
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prazo de 5 anos tão-somente às ações ajuizadas após o decurso da vacatio
legis de 120 dias, ou seja, a partir de 9 de junho de 2005”. No âmbito desta
Corte, a questão em comento foi apreciada no REsp 1.269.570/MG (1ª S., Rel.
Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 04.06.2012), submetido ao regime do
art. 543-C do CPC, ficando consignado que, “para as ações ajuizadas a partir
de 09.06.2005, aplica-se o art. 3º, da Lei Complementar nº 118/2005, con-
tando-se o prazo prescricional dos tributos sujeitos a lançamento por homo-
logação em cinco anos a partir do pagamento antecipado de que trata o
art. 150, § 1º, do CTN”. 1.2 Terço constitucional de férias. No que se refere
ao adicional de férias relativo às férias indenizadas, a não incidência de con-
tribuição previdenciária decorre de expressa previsão legal (art. 28, § 9º, d, da
Lei nº 8.212/1991 – redação dada pela Lei nº 9.528/1997). Em relação ao
adicional de férias concernente às férias gozadas, tal importância possui na-
tureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do em-
pregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribui-
ção previdenciária (a cargo da empresa). A Primeira Seção/STJ, no julgamento
do AgRg-EREsp 957.719/SC (Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJe de 16.11.2010),
ratificando entendimento das Turmas de Direito Público deste Tribunal, ado-
tou a seguinte orientação: “Jurisprudência das Turmas que compõem a Pri-
meira Seção desta Corte consolidada no sentido de afastar a contribuição
previdenciária do terço de férias também de empregados celetistas contrata-
dos por empresas privadas”. 1.3 Salário-maternidade. O salário-maternidade
tem natureza salarial e a transferência do encargo à Previdência Social (pela
Lei nº 6.136/1974) não tem o condão de mudar sua natureza. Nos termos do
art. 3º da Lei nº 8.212/1991, “a Previdência Social tem por fim assegurar aos
seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de inca-
pacidade, idade avançada, tempo de serviço, desemprego involuntário, en-
cargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam econo-
micamente”. O fato de não haver prestação de trabalho durante o período de
afastamento da segurada empregada, associado à circunstância de a materni-
dade ser amparada por um benefício previdenciário, não autoriza conclusão
no sentido de que o valor recebido tenha natureza indenizatória ou compen-
satória, ou seja, em razão de uma contingência (maternidade), paga-se à se-
gurada empregada benefício previdenciário correspondente ao seu salário,
possuindo a verba evidente natureza salarial. Não é por outra razão que,
atualmente, o art. 28, § 2º, da Lei nº 8.212/1991 dispõe expressamente que o
salário-maternidade é considerado salário de contribuição. Nesse contexto, a
incidência de contribuição previdenciária sobre o salário maternidade, no
Regime Geral da Previdência Social, decorre de expressa previsão legal. Sem
embargo das posições em sentido contrário, não há indício de incompatibili-
dade entre a incidência da contribuição previdenciária sobre o salário-mater-
nidade e a Constituição Federal. A Constituição Federal, em seus termos, as-
segura a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações (art. 5º,
I). O art. 7º, XX, da CF/1988 assegura proteção do mercado de trabalho da
mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei. No que se refere
ao salário-maternidade, por opção do legislador infraconstitucional, a transfe-
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rência do ônus referente ao pagamento dos salários, durante o período de
afastamento, constitui incentivo suficiente para assegurar a proteção ao mer-
cado de trabalho da mulher. Não é dado ao Poder Judiciário, a título de inter-
pretação, atuar como legislador positivo, a fim estabelecer política protetiva
mais ampla e, desse modo, desincumbir o empregador do ônus referente à
contribuição previdenciária incidente sobre o salário-maternidade, quando
não foi esta a política legislativa. A incidência de contribuição previdenciária
sobre salário-maternidade encontra sólido amparo na jurisprudência deste Tri-
bunal, sendo oportuna a citação dos seguintes precedentes: REsp 572.626/BA,
1ª T., Rel. Min. José Delgado, DJ de 20.09.2004; REsp 641.227/SC, 1ª T., Rel.
Min. Luiz Fux, DJ de 29.11.2004; REsp 803.708/CE, 2ª T., Relª Min. Eliana
Calmon, DJ de 02.10.2007; REsp 886.954/RS, 1ª T., Relª Min. Denise Arruda,
DJ de 29.6.2007; AgRg-REsp 901.398/SC, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin,
DJe de 19.12.2008; REsp 891.602/PR, 1ª T., Rel. Min. Teori Albino Zavascki,
DJe de 21.8.2008; AgRg-REsp 1.115.172/RS, 2ª T., Rel. Min. Humberto
Martins, DJe de 25.09.2009; AgRg-Ag 1.424.039/DF, 2ª T., Rel. Min. Castro
Meira, DJe de 21.10.2011; AgRg-EDcl-REsp 1.040.653/SC, 1ª T., Rel. Min.
Arnaldo Esteves Lima, DJe de 15.09.2011; AgRg-REsp 1.107.898/PR, 1ª T.,
Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 17.03.2010. 1.4 Salário-paternidade.
O salário-paternidade refere-se ao valor recebido pelo empregado durante os
cinco dias de afastamento em razão do nascimento de filho (art. 7º, XIX, da
CF/1988, c/c o art. 473, III, da CLT e o art. 10, § 1º, do ADCT). Ao contrário
do que ocorre com o salário-maternidade, o salário-paternidade constitui
ônus da empresa, ou seja, não se trata de benefício previdenciário. Desse
modo, em se tratando de verba de natureza salarial, é legítima a incidência de
contribuição previdenciária sobre o salário-paternidade. Ressalte-se que “o
salário-paternidade deve ser tributado, por se tratar de licença remunerada
prevista constitucionalmente, não se incluindo no rol dos benefícios previ-
denciários” (AgRg-EDcl-REsp 1.098.218/SP, 2ª T., Rel. Min. Herman
Benjamin, DJe de 9.11.2009). 2. Recurso especial da Fazenda Nacional.
2.1 Preliminar de ofensa ao art. 535 do CPC. Não havendo no acórdão recor-
rido omissão, obscuridade ou contradição, não fica caracterizada ofensa ao
art. 535 do CPC. 2.2 Aviso-prévio indenizado. A despeito da atual moldura
legislativa (Lei nº 9.528/1997 e Decreto nº 6.727/2009), as importâncias pa-
gas a título de indenização, que não correspondam a serviços prestados nem
a tempo à disposição do empregador, não ensejam a incidência de contribui-
ção previdenciária. A CLT estabelece que, em se tratando de contrato de tra-
balho por prazo indeterminado, a parte que, sem justo motivo, quiser a sua
rescisão, deverá comunicar a outra a sua intenção com a devida antecedên-
cia. Não concedido o aviso-prévio pelo empregador, nasce para o empregado
o direito aos salários correspondentes ao prazo do aviso, garantida sempre a
integração desse período no seu tempo de serviço (art. 487, § 1º, da CLT).
Desse modo, o pagamento decorrente da falta de aviso-prévio, isto é, o aviso-
-prévio indenizado, visa a reparar o dano causado ao trabalhador que não
fora alertado sobre a futura rescisão contratual com a antecedência mínima
estipulada na Constituição Federal (atualmente regulamentada pela Lei
DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – JURISPRUDÊNCIA......................................................................................................... 151
nº 12.506/2011). Dessarte, não há como se conferir à referida verba o caráter
remuneratório pretendido pela Fazenda Nacional, por não retribuir o traba-
lho, mas sim reparar um dano. Ressalte-se que, “se o aviso-prévio é indeniza-
do, no período que lhe corresponderia o empregado não presta trabalho al-
gum, nem fica à disposição do empregador. Assim, por ser ela estranha à
hipótese de incidência, é irrelevante a circunstância de não haver previsão
legal de isenção em relação a tal verba” (REsp 1.221.665/PR, 1ª T., Rel. Min.
Teori Albino Zavascki, DJe de 23.02.2011). A corroborar a tese sobre a natu-
reza indenizatória do aviso-prévio indenizado, destacam-se, na doutrina, as
lições de Maurício Godinho Delgado e Amauri Mascaro Nascimento. Prece-
dentes: REsp 1.198.964/PR, 2ª T., Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de
04.10.2010; REsp 1.213.133/SC, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, DJe de
01.12.2010; AgRg-REsp 1.205.593/PR, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin,
DJe de 04.02.2011; AgRg-REsp 1.218.883/SC, 1ª T., Rel. Min. Benedito Gon-
çalves, DJe de 22.02.2011; AgRg-REsp 1.220.119/RS, 2ª T., Rel. Min. Cesar
Asfor Rocha, DJe de 29.11.2011. 2.3 Importância paga nos quinze dias que
antecedem o auxílio-doença. No que se refere ao segurado empregado, du-
rante os primeiros quinze dias consecutivos ao do afastamento da atividade
por motivo de doença, incumbe ao empregador efetuar o pagamento do seu
salário integral (art. 60, § 3º, da Lei nº 8.213/1991 – com redação dada pela
Lei nº 9.876/1999). Não obstante nesse período haja o pagamento efetuado
pelo empregador, a importância paga não é destinada a retribuir o trabalho,
sobretudo porque no intervalo dos quinze dias consecutivos ocorre a inter-
rupção do contrato de trabalho, ou seja, nenhum serviço é prestado pelo
empregado. Nesse contexto, a orientação das Turmas que integram a Primei-
ra Seção/STJ firmou-se no sentido de que sobre a importância paga pelo em-
pregador ao empregado durante os primeiros quinze dias de afastamento por
motivo de doença não incide a contribuição previdenciária, por não se en-
quadrar na hipótese de incidência da exação, que exige verba de natureza
remuneratória. Nesse sentido: AgRg-REsp 1.100.424/PR, 2ª T., Rel. Min. Her-
man Benjamin, DJe 18.03.2010; AgRg-REsp 1074103/SP, 2ª T., Rel. Min. Cas-
tro Meira, DJe 16.04.2009; AgRg-REsp 957.719/SC, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux,
DJe 02.12.2009; REsp 836.531/SC, 1ª T., Rel. Min. Teori Albino Zavascki,
DJ de 17.08.2006. 2.4 Terço constitucional de férias. O tema foi exaustiva-
mente enfrentado no recurso especial da empresa (contribuinte), levando em
consideração os argumentos apresentados pela Fazenda Nacional em todas
as suas manifestações. Por tal razão, no ponto, fica prejudicado o recurso
especial da Fazenda Nacional. 3. Conclusão. Recurso especial de Hidro Jet
Equipamentos Hidráulicos Ltda. parcialmente provido, apenas para afastar a
incidência de contribuição previdenciária sobre o adicional de férias (terço
constitucional) concernente às férias gozadas. Recurso especial da Fazenda
Nacional não provido. Acórdão sujeito ao regime previsto no art. 543-C do
CPC, c/c a Resolução nº 8/2008 – Presidência/STJ.’ (REsp 1.230.957, Rel.
Min. Mauro Campbell Marques, DJe 18.03.2014)
[...]
152 P����������������������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – JURISPRUDÊNCIA
Dispositivo
Ante o exposto, com fulcro no art. 557 do CPC e na Súmula nº 253/STJ c/c o
art. 33 do RI/TRF 3ª Região, dou parcial provimento à apelação fazendária para
anular a sentença na parte referente ao abono pecuniário de férias e o 13º salá-
rio proporcional sobre ao aviso-prévio indenizado, ante seu caráter extra petita.
Dou parcial provimento ao reexame necessário para declarar a incidência da
contribuição previdenciária sobre os valores pagos a título de décimo terceiro
salário e horas extras e declarar a não incidência da contribuição previdenciária
sobre os valores pagos nos primeiros 15 dias antecedentes ao auxílio-doença e
a título de aviso-prévio indenizado, férias indenizadas, terço constitucional de
férias e auxílio-creche, bem como, para que eventual compensação, sujeita à
apuração da administração fazendária, seja realizada somente com contribuições
posteriores de mesma destinação e espécie, observados a prescrição quinquenal,
o trânsito em julgado, as instruções normativas da Receita Federal do Brasil e o
demais disposto aqui.
Pela sucumbência recíproca, os honorários e despesas devem ser proporcional-
mente distribuídos e compensados, nos termos do art. 21 do Código de Processo
Civil.
Publique-se. Intimem-se. Decorrido o prazo legal, baixem os autos ao Juízo de
origem.”
Hélio Nogueira
Desembargador Federal
Parte Geral – Jurisprudência
3389
EMENTA
PREVIDENCIÁRIO – ADICIONAL DE 25% PREVISTO NO ART. 45 DA LEI Nº 8.213/1991
EXCLUSIVAMENTE PARA APOSENTADORIA POR INVALIDEZ – EXTENSÃO A OUTROS
BENEFÍCIOS – IMPOSSIBILIDADE
1. O que se pretende com o acréscimo percentual previsto art. 45 da
Lei nº 8.213/1991 é auxiliar financeiramente o segurado que, em face
da sua condição de inválido, não seja capaz de, por si só, realizar as
mais simples tarefas ordinárias sem o auxílio permanente de terceira
pessoa.
2. Desigualdade alguma há quando a legislação previdenciária trata
de majorar a aposentadoria por invalidez a todos os que, inativados
à conta deste evento (invalidez), necessitarem do auxílio de terceira
pessoa.
3. Inviável equiparar situações totalmente distintas, em que a necessi-
dade do amparo de terceira pessoa advém de causas dissociadas das
que motivaram a inativação, razão pela qual estender o percentual
a outros benefícios caracteriza indevida atuação do Poder Judiciário
como legislador positivo e viola o princípio da legalidade (arts. 5º, II,
e 37, caput, da Constituição Federal).
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, de-
cide a Egrégia 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unani-
midade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, votos e notas de
julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
154 P����������������������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – JURISPRUDÊNCIA
Porto Alegre (RS), 27 de janeiro de 2016.
RELATÓRIO
Lucia Becker Kretschmer interpôs recurso de apelação em face da sen-
tença na qual julgado improcedente o pedido de acréscimo de 25% (vinte e
cinco por cento) ao benefício de aposentadoria por idade que percebe, e que
está previsto no art. 45 da Lei nº 8.213, exclusivamente, para o valor da aposen-
tadoria por invalidez.
Com contrarrazões, subiram os autos para julgamento.
VOTO
A disciplina legal da matéria controvertida se encontra no art. 45 da Lei
nº 8.213, de 24 de julho de 1991, in verbis:
Art. 45. O valor da aposentadoria por invalidez do segurado que necessitar da
assistência permanente de outra pessoa será acrescido de 25% (vinte e cinco por
cento).
Parágrafo único. O acréscimo de que trata este artigo:
a) será devido ainda que o valor da aposentadoria atinja o limite máximo legal;
b) será recalculado quando o benefício que lhe deu origem for reajustado;
c) cessará com a morte do aposentado, não sendo incorporável ao valor da
pensão.
Prequestionamento
Para fins de possibilitar o acesso das partes às instâncias superiores, con-
sideram-se prequestionadas as matérias constitucionais e legais suscitadas nos
recursos oferecidos pelas partes, nos termos dos fundamentos do voto, deixando
de aplicar dispositivos constitucionais ou legais não expressamente mencio-
nados e/ou havidos como aptos a fundamentar pronunciamento judicial em
sentido diverso do que está declarado.
Em face do que foi dito, voto por negar provimento à apelação.
EMENTA
CIVIL E ADMINISTRATIVO – BEM PÚBLICO – OCUPAÇÃO POR PARTICULAR – NÃO
DEMONSTRAÇÃO – INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS – DESCABIMENTO
1. Versam os autos sobre pedido da União em desfavor do particular
no sentido de obter a resolução do contrato particular de cessão e
transferência de posse de imóvel, o pagamento das prestações venci-
das até o ajuizamento da ação e de indenização por perdas danos, em
razão dos prejuízos sofridos ante a ocupação ilegal do imóvel.
2. Sentença que julgou parcialmente procedente o pedido inicial,
para rescindir o contrato particular de cessão e transferência de direi-
tos de posse pactuado, bem como para condenar o réu ao pagamento
das prestações vencidas desde maio de 2000, no total de R$ 470,63
(quatrocentos e setenta reais e sessenta e três centavos), acrescidos de
juros e correção monetária.
3. Apelo da União pugnando a reforma da sentença apenas quanto ao
pedido de indenização por perdas e danos.
4. Sem a demonstração do dano provocado pela conduta do apela-
do (ocupação irregular de imóvel público), não há que se falar em
dever de ressarcimento. Precedente desta 3ª Turma (PJE 0800005-
42.2014.4.05.8303, J. em 26.11.2015).
5. Hipótese em que a União não logrou demonstrar os prejuízos (lu-
cros cessantes e danos emergentes) ocasionados por ocupação irre-
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gular de bem público, não tendo esta sequer sido comprovada, pois
nem mesmo o imóvel fora localizado para se fazer tal constatação.
6. Inaplicabilidade do disposto nos arts. 402, 884 e 885, todos do
Código Civil; no art. 1º, do Decreto-Lei nº 1.561/1977 e no art. 10,
da Lei nº 9.636/1998, diante da ausência de suporte probatório apto
a demonstrar o referido dever de indenizar.
7. Apelação desprovida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que figuram como partes as
acima identificadas,
Decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por una-
nimidade, negar provimento à apelação, nos termos do Relatório, do Voto do
Relator e das Notas Taquigráficas constantes dos autos, que passam a integrar o
presente julgado.
RELATÓRIO
Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro (Relator):
Cuida-se de apelação interposta pela União contra sentença que julgou
parcialmente procedente o pedido inicial da presente ação ordinária, para res-
cindir o contrato particular de promessa de cessão e transferência de direitos de
posse pactuado, bem como para condenar o réu ao pagamento das prestações
vencidas desde maio de 2000, no total de R$ 470,63 (quatrocentos e setenta
reais e sessenta e três centavos), acrescidos de juros de mora e correção mone-
tária.
A sentença deferiu, ainda, o pedido liminar de imissão na posse do imó-
vel indicado nos autos e julgou improcedente o pedido de indenização a título
de perdas e danos, condenando a parte demandada ao pagamento de honorá-
rios advocatícios fixados em R$ 1.000,00 (mil reais).
Em seu recurso, sustenta a União: a) a ocorrência de lucro cessante devi-
do à ocupação irregular do imóvel há mais de 14 anos, que, por ser tão patente,
chega a dispensar a produção de outras provas além das que constam nos au-
DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – JURISPRUDÊNCIA......................................................................................................... 161
tos; b) que a utilização arbitrária importou enriquecimento ilícito do apelado,
o que, nos termos do art. 884, do Código Civil, obriga à restituição do ganho
fraudulento.
Pugna pela reforma da sentença apenas quanto ao pedido de indeniza-
ção relativa às perdas e aos danos sofridos.
Contrarrazões às fls. 278/282.
É o relatório.
VOTO
Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro (Relator):
A matéria aqui devolvida diz respeito à pretensão de ressarcimento da
União em face de Bartolomeu Acioly Maciel, pelas perdas e danos sofridos, em
virtude de ocupação irregular de bem público cuja posse fora objeto de contrato
particular de cessão, que restou inadimplido pelo particular.
A sentença não merece retoques.
Inicialmente, verifico que, como registrado na sentença, a União não
logrou demonstrar os prejuízos (lucros cessantes e danos emergentes) ocasiona-
dos pela conduta de ocupação irregular de bem público imputada ao particular.
O que, por si só, já afasta a possibilidade de acolher o pleito indenizatório.
Nesse sentido, já decidiu este eg. Tribunal Regional Federal:
PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – CONSTRUÇÃO IRRE-
GULAR EM IMÓVEL DA UNIÃO – AUSÊNCIA DE PROVA DE PREJUÍZO MATE-
RIAL – INDENIZAÇÃO A TÍTULO DE PERDAS E DANOS EM FAVOR DA UNIÃO
– NÃO CABIMENTO – QUESTÃO JÁ EXAMINADA PELO ACÓRDÃO EMBAR-
GADO – INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE
NA DECISÃO RECORRIDA – REDISCUSSÃO DA MATÉRIA – IMPOSSIBILIDADE
– HIPÓTESES LEGAIS NÃO CARACTERIZADAS (ARTS. 535 USQUE 538 DO
CPC) – PRETENSÃO DE PREQUESTIONAMENTO – EMBARGOS IMPROVIDOS
1. Hipótese em que a parte embargante aponta suposta omissão no acórdão re-
corrido, em virtude de não haver se pronunciado explicitamente sobre os arts.
286 e 475-C do Código de Processo Civil, no que pertine à quantificação da
obrigação decorrente de ocupação irregular de imóvel de propriedade da União,
requerendo manifestação sobre os aludidos dispositivos legais para fins de pre-
questionar a matéria.
2. A questão abordada já foi examinada e resolvida pelo acórdão vergastado, o
qual reconheceu que o imóvel onde foram erguidas as barracas de praia são de
propriedade da União, sujeitando-se à prévia autorização do titular do domínio,
por meio da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, o que não ocorreu no
caso dos autos.
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3. Conforme consta da decisão recorrida, não é cabível a indenização pleiteada
pela União em seu apelo, a título de perdas e danos, tendo em vista que não se
comprovou “efetivo prejuízo material em desfavor do ente público, decorrente
da ocupação ilegal, capaz de autorizar o reconhecimento da referida condena-
ção”. Desta feita, não há que se falar em omissão em face do não pronunciamen-
to sobre dispositivos legais que tratam da quantificação da obrigação.
4. O Magistrado não está obrigado a julgar a questão a ele apresentada de acordo
com a interpretação normativa pretendida pelas partes, mas formará seu livre
convencimento fundamentando-o nos aspectos pertinentes ao tema e na legis-
lação que entender aplicável ao caso concreto, segundo a sua interpretação.
Assim, não configura omissão do julgado a alegada ausência de pronunciamen-
to expresso da Turma acerca dos dispositivos legais mencionados pelas partes,
quando se verifica que a decisão atacada enfrentou com precisão e clareza a
questão abordada.
5. “O intuito de prequestionamento da matéria, por si mesmo, não acarreta a ad-
missibilidade dos embargos declaratórios. Seria necessária a presença dos requi-
sitos específicos do recurso processual, inexistentes no caso em exame”. (EDAC
253232/CE, Rel. Des. Fed. Paulo Machado Cordeiro (Conv.), J. 28.11.2002, publ.
DJ de 01.02.2003, p. 538)
6. Inexiste omissão no julgado embargado, nos termos apontados pela embargan-
te, razão por que não merecem acolhida os presentes aclaratórios.
7. Embargos de declaração improvidos. (TRF 5ª R., 2ª T., EDAC 519048/01/CE,
Rel. Des. Fed. Francisco Barros Dias, DJe 08.08.2013) (grifei)
3393 – Bem público – box de feira municipal – mudança de local – reforma de prédio –
interesse público – prevalência
“Uso de bem público. Box em feira municipal. Reforma do prédio. Prevalência do interesse pú-
blico. 1. O uso de bem público, como ocorre no caso de espaços em mercados públicos, é fei-
to mediante autorização ou permissão, ato precário, unilateral e discricionário, que não confere
ao particular direitos perante a administração. 2. Havendo premente necessidade de reforma do
prédio onde funciona a feira municipal, a administração pode determinar, mediante prévia noti-
ficação, a transferência dos feirantes para outro local durante o período de execução das obras,
concedendo-lhes prazo razoável para a mudança. 3. Agravo conhecido e parcialmente provido.
Unanimidade.” (TJMA – Proc. 0002287-58.2015.8.10.0000 – (179770/2016) – Rel. Paulo Sérgio
Velten Pereira – DJe 29.03.2016 – p. 141)
3395 – Desapropriação – utilidade pública – laudo pericial – justo preço – juros compen-
satórios – observância
“Direito administrativo. Apelação. CPC/1973. Desapropriação por utilidade pública. Laudo pe-
ricial. Justo preço. Juros compensatórios. MP 700/2015. Doze por cento ao ano. 1. A sentença,
em ação de desapropriação por utilidade pública visando às obras no contorno de Cachoeiro de
Itapemirim/ES, declarou incorporada à propriedade do Departamento Nacional de Infraestrutura
de Transportes (DNIT) área de 15.551,58 m² da rodovia BR-482/ES, trecho Safra, mediante inde-
nização de R$ 318.377,54 (trezentos e dezoito mil, trezentos e setenta e sete reais e cinquenta e
quatro centavos) a sociedade empresaria do ramo de marmoraria, com juros compensatórios de
12% ao ano, a partir da imissão provisória na posse do imóvel, em 06.05.2008. 2. Acolhem-se as
conclusões de laudo pericial equilibrado e com metodologia clara para alcançar o justo preço na
desapropriação. Ao contrário da análise feita pelo DNIT, que encontrou valor muito baixo para o
metro quadrado, R$ 1,72, o laudo oficial considerou que a propriedade, conquanto rural, está em
perímetro urbano, próximo a um terminal intermodal e dentro de região que concentra importante
parque industrial, daí a estimativa de R$ 17,00/m². 3. ‘Segundo a jurisprudência assentada no STJ,
a Medida Provisória nº 1.577/1997, que reduziu a taxa dos juros compensatórios em desapropria-
ção de 12% para 6% ao ano, é aplicável no período compreendido entre 11.06.1997, quando foi
editada, até 13.09.2001, quando foi publicada a decisão liminar do STF na ADIn 2.332/DF, sus-
pendendo a eficácia da expressão ‘de até seis por cento ao ano’, do caput do art. 15-A do Decreto-
-Lei nº 3.365/1941, introduzida pela referida MP. Nos demais períodos, a taxa dos juros compen-
satórios é de 12% (doze por cento) ao ano, como prevê a Súmula nº 618/STF’ (REsp 1.111.829/SP,
Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe 25.05.2009, submetido ao regime dos recursos repetitivos do
art. 543C do CPC e da Resolução STJ nº 08/2008). 4. O próprio Poder Executivo, expropriante por
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excelência, consagrou os juros compensatórios de 12% nas desapropriações por utilidade pública,
ao editar a Medida Provisória nº 700, de 08.12.2015 – com prazo de vigência atualmente prorro-
gado para 17.05.2016 –, novamente alterando, para esse fim, a redação o art. 15-A do Decreto-Lei
nº 3.365/1941. 5. Não se aplica à hipótese a sistemática estabelecida pelo CPC/2015, art. 85, que
não vigorava na data da publicação da sentença, força dos arts. 14 e 1.046 e orientação adotada
no Enunciado Administrativo nº 7, do STJ. 6. Apelação desprovida.” (TRF 2ª R. – AC-RN 0001296-
50.2007.4.02.5002 – 6ª T.Esp. – Rel. Antonio Henrique Correa da Silva – DJe 03.05.2016 – p. 619)
Ambiental
3397 – Área de preservação – dano ao patrimônio público – terreno – tombamento – con-
flito de competência
“Conflito negativo de competência. Ação penal. Dano ao patrimônio público. Escavações em
terreno localizado em unidade de preservação histórica. Área de entorno de bem tombado pelo
Iphan. Tombamento realizado em data posterior à prática do delito. Competência da Justiça Esta-
dual. 1. Compete à Justiça Estadual, caso não haja lesão a bens, serviços ou interesses da União,
processar e julgar o delito de escavações em terreno localizado em área de entorno de bem tom-
bado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, mormente quando a prá-
tica do delito antecede a data do tombamento. 2. Conflito conhecido para declarar competente o
Juízo de Direito da Vara Especializada do Meio Ambiente e de Questões Agrárias de Manaus/AM,
ora suscitado.” (STJ – CC 145.337 – AM – (2016/0035578-4) – 3ª S – Rel. Min. Nefi Cordeiro –
DJe 19.04.2016)
3400 – Aterro sanitário – área urbana – saúde pública – aeronaves – risco – extinção de
atividades – transferência de operação – configuração
“Administrativo e processual civil. Agravo de instrumento em ação civil pública. Aterro sanitário
localizado em área urbana. Município de Teresina/PI. Demonstração de risco à saúde pública e à
segurança do trânsito de aeronaves. Determinação de extinção das atividades. Legalidade. Necessi-
dade de transferência das operações para local diverso configurada nos autos. 1. Demonstrado nos
autos, pela agravante, que a manutenção e a continuidade de Aterro Sanitário (‘lixão’) localizado
em área urbana do Município de Teresina/PI, configura fator de degradação do meio ambiente, ris-
co efetivo e potencial à preservação da saúde pública e agente catalisador do risco aviário (risco de
colisão de aves – no caso, principalmente urubus com aviões) que ocorre na Área de Gerenciamen-
to de Risco Aviário – Agra do Aeroporto Senador Petrônio Portella, principal do Estado do Piauí, o
provimento do pedido recursal é medida processual que se impõe. 2. Na espécie, a ocorrência de
‘risco aviário’ na área de operação aeroportuária é objeto de reconhecimento técnico pela Infraero
(Memorando nº 256/SBTE/2014), Anac (conforme informações de fls. 117/123, que refere o Ofício
nº 3120/2011/DRUM/Saianac, de 16.12.2011), Funasa (Parecer Técnico de fl. 146) e Comando
da Aeronáutica (Ofício nº 324/AJUR2/19269, de 21 de agosto de 2014 – fls. 368/369), elementos
de convicção que, na forma processual aplicável, recomenda a pronta oferta da jurisdição com
o escopo de preservar o resultado útil da Ação Civil Pública em curso no juízo de origem. 3. Por
Decisão de 30.12.2014, na SLS (Suspensão de Liminar e Sentença) nº 1972 (2014/0345374-6)/PI,
confirmada em AgRg-SLS (em 29.04.2015), foram suspensos pelo Superior Tribunal de Justiça os
efeitos da Decisão concessiva de tutela recursal antecipada que proferi nos autos. 4. Agravo de
instrumento a que se dá provimento, nos termos estabelecidos no voto condutor, cujos efeitos, no
entanto, ficam sobrestados até ulterior manifestação do Superior Tribunal de Justiça, em razão do
quanto decidido por esta Corte Superior no AgRg-SLS 1972 (2014/0345374-6)/PI.” (TRF 1ª R. –
AI 0065259-83.2014.4.01.0000 – Rel. Des. Fed. Kassio Nunes Marques – DJe 29.03.2016)
3402 – Dano ambiental – águas fluviais – lançamento de águas residuais – tarifa de esgoto
– adequação
“Ambiental. Processual civil. Violação do art. 535 do CPC. Fundamentação deficiente. Ausência
de prequestionamento. Súmula nº 211/STJ. Ação civil pública. Danos causados ao meio ambiente.
Cumulação de obrigação de fazer e de pagar quantia certa. Possibilidade. Precedentes. Súmula
nº 83/STJ. Equilíbrio econômico-financeiro. Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Súmu-
la nº 7/STJ. Sucumbência mínima. Necessidade de reexame de prova. Súmula nº 7/STJ. Dissídio
jurisprudencial. Ausência de cotejo analítico. 1. Cuida-se de Ação Civil Pública, proposta pelo
Ministério Público do Estado do Paraná, objetivando à condenação da Companhia de Saneamento
do Paraná – Sanepar a pagar indenização por danos ambientais em decorrência de lançamento de
águas residuais (esgotos) no Rio Paraná, bem como à adequação da tarifa de esgoto. 2. Da análise
detida dos autos, observa-se ainda que a Corte de origem não analisou, nem sequer implicitamen-
te, os arts. 6º da LICC, 21 do Decreto nº 82.587/1978 e 2º e 4º da Lei nº 6.528/1978. Logo, não foi
cumprido o necessário e indispensável exame da questão pela decisão atacada, apto a viabilizar a
pretensão recursal da recorrente, a despeito da oposição dos embargos de declaração. Incidência
da Súmula nº 211/STJ. Precedentes. 3. Em Ação Civil Pública ambiental é admitida a possibilida-
de de condenação do réu à obrigação de fazer ou não fazer cumulada com a de indenizar. Tal
orientação fundamenta-se na eventual possibilidade de que a restauração in natura não se mostre
suficiente à recomposição integral do dano causado. 4. Dessa forma, ao interpretar o art. 3º da Lei
nº 7.347/1985, deve ser dada à conjunção ‘ou’ valor aditivo, e não alternativo. Consequentemen-
te, deve-se reconhecer a possibilidade abstrata de cumulação da obrigação de fazer, consisten-
te na reparação do dano ambiental causado, com indenização pecuniária. Precedentes. Súmula
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nº 83/STJ. 5. Em sede de recurso especial, é vedada a apreciação do quantitativo em que autor
e réu saíram vencedores ou vencidos na demanda, bem como da proporção em que cada parte
ficou sucumbente em relação ao pedido inicial, por ensejar o revolvimento de matéria eminente-
mente fática, a provocar o óbice da Súmula nº 7/STJ. 6. O Tribunal de origem, soberano na análise
das circunstâncias fáticas e probatórias da causa, ao negar provimento à apelação, entendeu que
ficou comprovado o dano ambiental. Rever o fundamento adotado pelo tribunal de origem, para
desconsiderar a existência de dano ambiental, demandaria, necessariamente, revisão de matéria
fático-probatória, o que é vedado em sede de recurso especial. Incidência da Súmula nº 7/STJ.
7. O Tribunal de origem, com base em elementos fáticos concluiu a existência de desequilíbrio
econômico financeiro, que possibilite a cobrança do percentual de 80% dos valores das tarifas. Re-
ver este fundamento demandaria análise de matéria fático-probatória, inviável em sede de recurso
especial, ante o óbice da Súmula nº 7 desta Corte. 8. Não se pode conhecer do recurso pela alínea
c do permissivo constitucional, quando o recorrente não realiza o necessário cotejo analítico, bem
como não apresenta, adequadamente, o dissídio jurisprudencial. Apesar da transcrição de ementa,
não foram demonstradas as circunstâncias identificadoras da divergência entre o caso confrontado
e o aresto paradigma. Recurso especial conhecido em parte e improvido.” (STJ – REsp 1.212.723 –
(2010/0176549-0) – 2ª T. – Rel. Min. Humberto Martins – DJe 28.03.2016)
Constitucional
3404 – Ação direta de inconstitucionalidade – edição de texto normativo – Lei de Licita-
ções – possibilidade
“Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Preliminar de ilegitimidade
ativa de prefeito. Rejeitada. Edição de texto normativo que complemente a Lei de Licitações e con-
tratos pelo ente federativo. Possibilidade. Desde que não atentem contra a Constituição Federal.
1. O Prefeito Municipal consta entre os legitimados do art. 142 da Constituição Estadual, para pro-
posição de Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. É possível que entes federativos editem nor-
mas complementares à Lei de Licitação, contudo não podem contrariar os ditames constitucionais,
como a separação dos poderes. 3. Ação julgada procedente. 4. Liminar concedida para suspender
a vigência da Lei Municipal objeto da ADI.” (TJAP – Proc. 0001096-70.2015.8.03.0000 – TP – Rel.
Des. Carlos Tork – DJe 24.05.2016 – p. 25)
Penal/Processo Penal
3409 – Contrabando – cigarro – favorecimento real – desclassificação
“Direito penal. Contrabando. Cigarro. Art. 334, § 1º, b, do Código Penal, c/c art. 3º do Decreto-Lei
nº 399/1968. Desclassificação para o delito de favorecimento real (art. 349 do CP). Descabimento.
Corrupção de menor. Constituição definitiva do crédito tributário. Desnecessidade. Dosimetria da
pena. Circunstâncias do crime. Tipicidade. Prescrição retroativa pela pena concretizada. Extinção
da punibilidade. 1. A conduta do réu se subsume, com clareza, à forma assimilada de contraban-
do, prevista no § 1º, alínea b, do art. 334 do Código Penal, c/c art. 3º do Decreto-Lei nº 399/1968.
Inviável, portanto, a reclassificação para o delito capitulado no art. 349 do Código Penal. 2. A
constituição definitiva do crédito tributário não é condição objetiva de punibilidade para o de
contrabando. 3. A vetorial ‘circunstâncias’ do crime merece maior reprimenda, tendo em vista
a expressiva quantidade de cigarros apreendida em poder do réu, produto cuja comercialização
representa grave violação ao controle das importações e potencial prejuízo à saúde pública. 4. A
configuração do crime do art. 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente independe da prova
da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal (Súmula nº 500/STJ). 5. Caso concreto
em que o prazo extintivo da pretensão punitiva restou integralmente consumado para os crimes
de contrabando e corrupção de menores, motivo pelo qual deve ser reconhecida a aplicabilidade
do art. 107, IV, do Código Penal.” (TRF 4ª R. – ACr 0001099-15.2008.4.04.7004/PR – 8ª T. – Rel.
Des. Fed. Leandro Paulsen – DJe 01.04.2016)
3420 – Alienação judicial de imóvel – hasta pública – intimação do devedor por edital –
esgotamento das tentativas de localização
“Agravo regimental. Embargos de divergência. Alienação judicial de imóvel. Hasta pública, intima-
ção do devedor por edital. Esgotamento das tentativas de localização. Circunstância não verificada
na espécie. Acórdão embargado em consonância com a orientação da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça. Incidência da Súmula nº 168/STJ. Agravo regimental desprovido. 1. Consoante
entendimento pacificado no âmbito da eg. Segunda Seção, somente é válida a intimação do deve-
dor por edital, para ciência da alienação judicial de imóvel em hasta pública, nas hipóteses em que
tenham sido esgotadas as tentativas de sua localização, circunstância não verificada na espécie,
nos termos do acórdão proferido pelo Tribunal de origem. 2. Nos moldes da Súmula nº 168/STJ,
‘não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo
sentido do acórdão embargado’. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STJ – AgRg-ED-
-REsp 1.279.151 – (2014/0258632-6) – 2ª S. – Rel. Min. Raul Araújo – DJe 18.03.2016 – p. 459)
Trabalhista/Previdenciário
3423 – Ação acidentária – fratura da tíbia e da fíbula da perna esquerda decorrente de
uma partida de futebol – acidente do trabalho – não configuração – efeitos
“Apelação. Ação acidentária. Fratura da tíbia e da fíbula da perna esquerda decorrente de uma par-
tida de futebol, não resultante de acidente de trabalho. Infortúnio que não possui qualquer relação
com a atividade laboral. Prestação de natureza previdenciária. Sentença prolatada por magistrado
no exercício de competência federal delegada. Art. 108, inc. II e do art. 109, § 3º, ambos da CF.
Faculdade concedida ao Tribunal Regional Federal da 4ª região para apreciar e julgar a questão.
Não conhecimento. Declínio da competência. ‘[...] Inexistindo na comarca vara da Justiça Federal,
o juiz estadual é competente para conhecer e julgar os feitos que se refiram a benefício de natureza
previdenciária. No entanto, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área
de jurisdição do juiz de primeiro grau [...]’ (AC 2011.034584-3, de Curitibanos, Rel. Des. Luiz
Cézar Medeiros, J. 01.11.2011) (TJSC, Apelação Cível nº 2013.058537-1, de Forquilhinha, Rel.
Des. Carlos Adilson Silva, J. 23.06.2015).” (TJSC – AC 2015.038635-3 – Rel. Des. Luiz Fernando
Boller – DJe 18.12.2015)
3428 – Pensão por morte – menor sob guarda – dependência econômica – não compro-
vação – pagamento indevido
“Embargos infringentes. Previdenciário. Pensão por morte. Menor sob guarda. Não comprovação
da dependência econômica. Recurso provido. Prevalência do voto vencido. I – A controvérsia nos
presentes autos recai sobre a possibilidade de concessão da pensão ao menor sob guarda. II – O
benefício de pensão por morte encontra-se disciplinado pelos arts. 74 a 79 da Lei nº 8.213/1991 e
é devido ao conjunto de dependentes do segurado que falecer ou tiver morte presumida declarada.
III – O autor juntou: certidão da ação de guarda (Processo nº 689/2008), constando que foi dada
a guarda definitiva do autor, nascido em 09.06.2005, ao avô Waldomiro Gonçalves, por sentença
com trânsito em J. 21.01.2009; Certidão de casamento dos avós Waldomiro Gonçalves e Irraide
Voms Stein Gonçalves; Certidão de óbito da avó Irraide Voms Stein Gonçalves, em 01.01.2011;
Carta de concessão de pensão por morte ao avô Waldomiro Gonçalves, a partir de 01.01.2011.
IV – Em audiência houve a oitiva somente do avô, sendo que a parte autora abriu mão de produzir
outras provas. Em seu depoimento pessoal declarou que: ‘Em 1º de janeiro vai fazer dois anos que
a minha mulher faleceu. Estou recebendo a pensão por morte desde o falecimento dela no valor
de um salário mínimo. Cuidamos de João Gabriel desde o seu nascimento há cerca de sete anos.
A minha falecida mulher cuidava dele como filho. O marido da minha filha está preso e o menino
sempre ficou em casa desde pequeno’. V – Não há controvérsia sobre a qualidade de segurada da
falecida avó, tendo em vista a concessão da pensão por morte ao avô. VI – Em que pese a alteração
legislativa, inexistem óbices substanciais à inclusão do menor sob guarda como dependente do
guardião segurado, em face dos mandamentos constitucionais de proteção integral e prioritária à
criança e ao adolescente, inclusive com a garantia de direitos previdenciários (art. 227, § 3º, II, da
CF). Além disso, há de se prestigiar o acolhimento do menor, sob a forma de guarda, nos termos
do art. 227, § 3º, VI, da Magna Carta. VII – O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 33,
§ 3º, dispõe que ‘a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos
os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários’. VIII – Similitude entre os institutos da tutela
e da guarda, por se destinarem à proteção da criança ou adolescente que, por alguma das razões
legais, não tem, em sua família originária, a garantia dos direitos à vida e desenvolvimento plenos.
A finalidade protetiva permite incluir o menor sob guarda na expressão ‘menor tutelado’ do § 2º do
art. 16 da Lei nº 8.213/1991. IX – A possibilidade de inscrição do menor sob guarda, contudo, não
afasta a necessária comprovação da dependência econômica, em relação ao segurado guardião,
nas relações estabelecidas sob a égide da Medida Provisória nº 1.523, de 11.10.1996, e suas pos-
teriores reedições, que culminaram na Lei nº 9.528/1997. X – Extrai-se da inicial da ação de guarda
proposta pelo avô Sr. Waldomiro, em face do pai e da mãe do menor, que a genitora do autor
residia no mesmo endereço dos pais e do filho, podendo-se concluir que era a responsável pelos
seus cuidados. XI – Consulta ao Sistema CNIS da Previdência informa que a mãe do requerente
sempre exerceu atividade econômica e não há indícios de que possua qualquer incapacidade para
192 P�������������������������������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – PARTE GERAL – EMENTÁRIO
o trabalho. XII – Com a juntada da certidão de nascimento do autor, em nova consulta ao Sistema
Dataprev, verifica-se que o pai do requerente também sempre laborou, estando empregado até os
dias atuais, não havendo informação de que não contribua para a manutenção do filho menor.
XIII – O conjunto probatório não demonstra a dependência econômica do autor em relação à
falecida avó guardiã. XIV – Não comprovado o preenchimento dos requisitos legais para a con-
cessão de pensão por morte, o direito que persegue o requerente não merece ser reconhecido.
XV – Embargos infringentes providos. Prevalência do voto vencido. Tutela antecipada cassa-
da.” (TRF 3ª R. – EI 0021265-24.2014.4.03.9999/SP – 3ª S. – Relª Desª Fed. Tania Marangoni –
DJe 28.01.2016 – p. 165)
Tributário
3430 – Contribuição previdenciária – auxílio-doença – terço constitucional de férias –
não incidência
“Tributário. Agravo regimental no recurso especial. Contribuição previdenciária sobre auxílio-
-doença e terço constitucional de férias. Não incidência. Matéria apreciada sob o rito dos recursos
especiais repetitivos (1.230.957/CE e 1.358.281/SP). Agravo regimental desprovido. 1. É pacífica
a jurisprudência desta Corte pela não incidência de contribuição previdenciária sobre os valores
recebidos a título de auxílio-doença nos 15 primeiros dias de afastamento do segurado, bem como
sobre os valores recebidos como adicional de 1/3 de férias, uma vez que possuem caráter indeni-
zatório (REsps 1.230.957/CE e 1.358.281/SP julgados sobre o art. 543-C do CPC ). 2. Agravo Re-
gimental da Fazenda Nacional desprovido.” (STJ – AgRg-REsp 1.295.380 – (2011/0283059-3) – 1ª
T. – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – DJe 04.03.2016)
3432 – IPI – pessoa física – importação de veículo – uso próprio – princípio da não cumu-
latividade – aplicabilidade
“Constitucional e tributário. IPI. Pessoa física. Importação de veículo para uso próprio. Princípio da
não cumulatividade. 1. O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido da inexigibilida-
de de IPI na importação de veículo automotor, por pessoa física, para uso próprio, e da aplicabi-
lidade do princípio da não cumulatividade (RE 550.170-AgR/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,
1ª T., J. 07.06.2011, DJe 04.08.2011, entre outros). 2. Precedentes deste Tribunal. 3. Apelação a
que se dá provimento para conceder a segurança.” (TRF 3ª R. – AC 0009064-45.2014.4.03.6104/SP
– 4ª T. – Relª Desª Fed. Marli Ferreira – DJe 26.01.2016)
3434 – Parcelamento – suspensão do feito – requisitos da CDA – art. 2º, § 5º, da Lei
nº 6.830/1980 – observância
“Tributário e processual civil. Agravo de instrumento. Execução fiscal. Exceção de pré-executivi-
dade. Indeferimento. Parcelamento. Suspensão do feito. Requisitos da CDA (art. 2º, § 5º, da Lei
nº 6.830/1980). Observância. Manutenção in totum da decisão. 1. Agravo de instrumento mane-
jado contra decisão que indeferiu a Exceção de Pré-Executividade oposta nos autos de execução
fiscal, e que rejeitou o pedido de extinção processual fundamentado no parcelamento da dívida,
ratificando a validade da CDA. 2. A adesão a parcelamento é causa de suspensão da exigibilidade
do crédito e, em consequência, de suspensão do curso da execução – e não de sua extinção (art.
151, VI, do CTN). O executivo fiscal permanece suspenso até a satisfação integral do crédito (extin-
guindo-se a obrigação e a ação) ou até que haja descumprimento do parcelamento. Este é o enten-
dimento consolidado no STJ e nesta Corte Regional. 3. Analisando os autos, observa-se que a Exe-
cução Fiscal foi ajuizada em 15.02.2011 e que o pedido de parcelamento apenas foi recepcionado
em 30.12.2013, não havendo que se falar em extinção do feito. 4. A CDA regularmente constituída
é título que goza de presunção juris tantum de certeza, liquidez e exigibilidade. Presunção que
pode ser elidida apenas mediante apresentação de prova inequívoca pelo sujeito passivo ou por
terceiro a que aproveite (art. 204, caput e parágrafo único, do CTN). 5. In casu, estão presentes na
CDA todos os requisitos legais elencados no art. 2º, § 5º, da Lei nº 6.830/1980. Ademais, o crédito
foi apurado e constituído a partir da declaração de rendimentos confeccionada pelo próprio exe-
cutado. 6. Agravo de instrumento desprovido.” (TRF 5ª R. – AGTR 0003099-74.2015.4.05.0000
– (143430/PE) – 3ª T. – Rel. Des. Fed. Paulo Machado Cordeiro – DJe 14.03.2016)
Submissão: 21.03.2016
Decisão Editorial: 30.05.2016
Comunicação ao Autor: 30.05.2016
ABSTRACT: Traditionally, in political philosophy the main prerequisites for the construction of a
fair political community are related to a reasonable consensus on the conceptions of justice and
to the solutions of problems in moral disagreements. This paper aims to address issues related
to the economy of moral disagreement in unequal societies and it argues how consensus, while
a pre-modern ideal elevated to the condition of political dogma by political liberalism and public
choice, is insufficient as a structuring political category of a fair political community, since it excludes
dissent, and threatens democracy. The neoconstractualist model suggested by John Rawls or Jürgen
Habermas can reasonably explain how consensus and public debate are fundamental to choose
principles of justice in equal circumstances. On the other hand, in unequal societies, there are
previous issues related to the establishment of public spaces that turn consensus, in some cases,
impossible. By criticising the liberal tradition, this article concludes that an adequate formulation of a
radical democratic project informed by pluralism depends on the interpretation of the “difference” as
a condition of possibility of being.
INTRODUCTION
One of the main issues of the contemporary political philosophy is
related to the “sense of politics”. In the Western world, the understanding on
the meaning of politics has been traditionally reduced to the description or
statement for the validity of the democratic institutions and its capability on
offering an operative support to the Rule of Law for the production of substantive
consensus on fair means of organization1.
1 LAUVAUX, Philippe. Les grandes démocraties contemporaines. Paris: Press Universitaires de France, 1990,
p. 17.
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Some basic postulates present in this theoretical common sense can be
excerpted in the following statements: I) the connection between politics and
democracy in the Western world; II) the legitimation of the Rule of Law through
the existence of democratic institutions; III) the existing relationship between
substantive consensus and justice in the State organization.
Recently in Latin America, the “sense of politics” issue has been
reintroduced from experiences that antagonize the classical premises presented
above, mainly by conditions related: I) to the extinction of solidarity; II) to the
attribution of new meaning for democracy and its legitimating role in political
institutions; and III) to the acknowledgment of existence from unsurpassed limits
for consensus.
In this way, this paper approaches some issues related to the economy of
moral discordances in unequal societies and exposes how consensus, while pre-
modern ideal elevated to a condition of political dogma by the public liberalism
and the public choice, is insufficient as a political structuring category in a fair
community, as it excludes dissensus and threatens democracy.
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contemporaneity – and consequently of the conflict – brought to light a sort of
anthropological pessimism and the need for a new proposition for the pluralism.
Both the anthropological pessimism and the perspective that understand
conflicts as internal in the civil society raise a series of issues, ranging from the
possibility of common action to the impossibility of a substantive concept for
justice.
Moreover, the emphasis on differences and divergence has been fomenting
the extinction of solidarity. It also propitiated the progress of individualism, the
dissolution of forms of life (specially in the industrial society as class, gender,
status and family) and its replacement for even more inconsistent ones that are
yet to be invented.
Ulrich Beck7 considers the extinction of solidarity as an “anti-political
regression to the private matter”, “regression to the interiority” or “perplexity”
may be seen as a struggle for the political.
The system of individualism’s values contains an ethical proposal based
on the principle of duty to himself. The ethical principle of individualism is
totally conflicting with the traditional ethics, which regulates the duties and
ethical values in the social scope. Frequently, it induces the reduction of the
individualism to some sort of egotism. From the biopolitical point of view, the
innate conditions for the existence of humanity are threatened by this anti-
political regression to the private area.
The debility of the States is compensated by the strengthening of other
social agents (media, class associations, and social movements), competing with
the State itself. Consequently, the politicization of society converts the State into
a negotiating agent in which both the intern conflicts and political decisions are
permanently submitted to public discussion.
The regeneration of the political8 as a request from contemporary pluralist
democracies becomes evident by the increasing awareness that democracy is at
risk not only when the values embodied by it are insufficient but mostly when
the “[...] excess of consensus [...] masks a disquieting apathy”9.
In this way, politics would be characterized by dissolution of the
certainty indexes, a moment in which the people would experience a type of
indecisiveness related to the foundations of power, law, knowledge and the
relations between the self and the other10.
7 BECK, Ulrich. La democracia y sus enemigos: textos escogidos. Barcelona, Paidós, 2006.
8 MOUFFE, C. 2005.
9 Id., Ibid., p. 17.
10 LEFORT, Claude. Democracy and political theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988, p. 19.
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This description, although appropriate to explain the context of unequal
and complex societies, inflicts more difficulties for the solution of core political
issues related to the need for common action and for distribution of assets and
roles.
11 BECK, Ulrich. A política na sociedade de risco. Ideias. Campinas (SP), n. 1, 2010, p. 232.
12 ADORNO, Theodor W.; JONES, Michael T. Trying to understand Endgame. New German Critique, p. 119-150,
1982.
13 ELSTER, Jon. Marxismo, funcionalismo e teoria dos jogos: argumentos em favor do individualismo
metodológico. Lua Nova, São Paulo, june, 1989, n. 17, p. 163-204.
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simpler like games between “I” and the “others”. The simplest games of two
people are games with zero result, in which the gain of one is exactly the loss of
the other. This is the game category that always has a solution.14
Games that involve equality (in any meaning: equity, fair measurement,
distribution or assurance, etc.) are always games with zero result (the gain of one
is exactly the loss of the other).
Elster15 considers that, in (artificial) games, there are four different
possibilities of rational choices between two conflict-solving strategies, solids
in the solidary and selfish strategies: (A) universal cooperation – everybody uses
solidary strategies; (B) universal selfishness – everybody uses selfish strategies;
(C) free-rider – “I” use selfish strategies and the “others” use solidary strategies;
(D) sucker – “I” use solidary strategies and the “others” use selfish strategies.
In any possible combination between A, B, C, and D, excerpt repetitions, the
equality as a value has been presenting itself in a very efficient way in solving
the conflicts, both in the objective results achieved in real situations as in the
feeling of satisfaction that provokes in all individuals in situations of conflict.
Besides, equalitarian solutions are also more efficient in the decrease of violence
and revenge.
In other words, the utility of equality for democracy is bigger than other
values (political economists would phrase as follows: µ(I) > µ(x), also being
possible to establish a quanta for axiological equivalence of equality with other
values, although equality always has precedence over them in situations of
conflict)16. The value “equality” not only speaks about motivations or adopted
strategies (solidary or selfish ones) but, primarily, regarding the achieved results.
The ideal and rational individual is the one that chooses (justice values,
and even the “fair inequalities”) in the liberal egalitarianism and utilitarianism.
In the world of life, real individuals make the choice. They live in specific
contexts and are characterized by the absence of equality, democracy, justice,
etc., as in Brazil.
How do we choose in the “absence”? Boaventura de Sousa Santos,
when referring to the idea of philosophy of absence (more properly the absence
epistemology as premise of an absence sociology), states that
To identify what is missing and why it is missing, we shall fall back on a way of
knowledge that does not reduce the reality to what exists. What I mean is a way
of knowledge that aspires to a widened conception of realism, which included
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204 P������������������������������������������������������������������������������������DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – SEÇÃO ESPECIAL – DOUTRINA ESTRANGEIRA
suppressed, silenced or marginalized realities as well as emergent or imagined
realities. Once more, we can ask in a self-reflective manner if the knowledge
that identifies the absences is not after all the same that legitimated before the
conditions which lead to the suppression of the possibility for alternate realities,
which are now identified as absences. My answer is dual sided. First of all, we
will not know it until the consequences of this knowledge are not being evaluated
according to the capital of solidarity that they can create. Second, there will
always be unnoticed absences. These are the ones constituting the emptiness that
instead of being stigmatized by our horror vacui, should be faced with our full
benevolence.17
17 SANTOS, Boaventura Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez, 2001. p. 247.
18 Id., Ibid., p. 249.
19 We do not intend to quote the text from Knight and Johnson, although he is a reference in the contemporary
debate regarding democracy. See KNIGHT, Jack; JOHNSON, James. The Priority of Democracy: Political
Consequences of Pragmatism. Princeton University Press, 2011.
20 MOUFFE, C, 2005, p. 66 ss.
21 BARTHES, Roland. Mitologias. Translation by Hector Schmucler. Siglo Veintiuno Editores. México, DF/Madrid:
1980. p. 129.
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aptitude for the construction of the world to give meaning to a democratic
revolution.
Furthermore, a question remains: What is the meaning and value
of democracy? How much should democracy abdicate when facing other
constitutional values? Or even more, why democracy? Responding these
questions corresponds to present a thesis on fair outcomes of a political process,
because the constitutional democracy indicates a government subjected to
democratic conditions of equality in a way that collective decisions are taken by
structures or institutions which composition, procedure, etc. treat all members
of political community with the same objective conditions22.
There are many conceptions about democracy and each democratic
order organizes itself according to these particularities. In the same way, many
objections are placed to it, and from the nature of those exceptions, we can
deduce the mandatory disposition of democracy23.
Although democracy may be considered as an omnipresent ideal, “en
la medida que modela la persecución de todos los objetivos en los que hay
implicadas relaciones de poder”24, it cannot be considered as omnipotent, as
there are limitations of procedural and substantive natures that may be opposite
to it. Therefore, contemporary democracies have been developing a series of
mechanisms that can be able to ensure the control of public agenda directly by
the interested ones.
Far away from being a finished process, the increment of popular
participation techniques constitute a type of pulverization or pluralization of
the public sphere (to which Nancy Fraser25 calls “subordinated counter-public
spaces”), which are able to generate and reverberate the demands in more
general political spaces or forums, such as the Congress26.
In this way, the culture of contestation, the broadening of demands and
the hiperpolitization of masses cannot be seen as vices or inconveniences of
democratic regime. These characteristics are actually its virtues.
The main institutional difficulty of democracy is aggregating the individual
wishes (preferences) in a fair manner, either for majorities or minorities. This issue
involves the organization of an appropriate election system, the development
22 DWORKIN, Ronald. La lectura moral y la premise mayoritarista. In: KOH, Harold Hongju, SLYE, Ronald C.
(Orgs.) Democracia deliberative y derechos humanos. Barcelona: 2004. p. 115-117 (passim).
23 SHAPIRO, Ian. Aspiraciones grupales y política democrática. In: KOH, Harold Hongju, SLYE, Ronald C. (Orgs.)
Democracia deliberative y derechos humanos. Barcelona: 2004. p. 174.
24 Id., Ibid., p. 175.
25 FRASER, Nancy. Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy, in
CALHOUN, Craig (ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge: The MIT Press, 1992. p. 123.
26 MIGUEL, Luis Felipe. Representação Política em 3-D: elementos para uma teoria ampliada da representação
política. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 18, n. 51, 2003, p. 135.
RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 199-208, jul-ago 2016
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and increment of institutional ways of direct popular participation, besides the
culture of transparency and accountability.
Another argument, now with political nature, defending the representative
democracy, consists of the idea that this technique may correct the “dictatorship
of majorities”.
As there is no strict transitivity between the will of electorate and the
performance from the representative body, the Congress may legitimately resist
to the “force irrésistible au point de vue de la majorité”27. The classical theory
assumes that an Assembly tends to be more reasonable and less demagogic
regarding the interests and liberties of minorities than the eventual and specific
aggregation of the electorate.
We cannot agree with the argument in totum. As the main decision
techniques on Assemblies consist in the appliance (sort of incremented,
depending on the matter to be discussed) of the majority principle, is not
unusual that political majorities and minorities are formed in theirs decision-
-making processes.
The formation of majorities and minorities in the democratic system is
reasonable. The question is whether the consolidation of stable majorities will
produce spurious political monopolies. In this case, would be fairly reasonable
to have an external control of assembly decisions. In either way, in mature
democracies, the external control of the Legislative, including the legislative
process, is in the hands of Constitutional Courts, which the main task consist of
protecting the Constitution, the fundamental rights and the minorities.
According to Pietro Costa “the democracy of the modern ones indicates a
new political anthropology, a new view of the human being and its relation with
the political order”28 and finally indicates the individual has the main role (which
is at the same time origin and functional destination of the political order).
CONCLUSION
In political philosophy, is traditionally accepted that amongst the main
prerequisites to the construction of a fair political community there is a certain
consensus on the conceptions of justice and the solutions for coordination,
efficiency and stability of moral dissensus.
The fairness of a social organization will fundamentally depend on the
way the social positions, rights and fundamental duties are distributed, as well
as on the economic conditions from the several segments in society.
27 ARDANT, Philippe. Institutions politiques e droit constitutionnel. 11. ed. Paris, Librairie générale de droit et
de jurisprudence (L.G.D.J.), 1999. p. 172.
28 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba:
Juruá, 2010. p. 240.
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DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – SEÇÃO ESPECIAL – DOUTRINA ESTRANGEIRA......................................................................................... 207
We approached some issues related to the economy of moral discordances
in unequal societies, and how consensus, while pre-modern ideal elevated to
the condition of political dogma by the public liberalism and the public choice,
is insufficient as a political structuring category in a fair political community, as
it excludes the dissensus and threatens democracy.
If the neocontractualistic model suggested by John Rawls or by Habermas
may explain in a reasonably satisfactory manner how consensus and public
debate are essential for choosing the principles of justice in equal contexts. On
the other hand, in unequal societies issues from before the installation of public
space are placed, and which in some cases even preclude consensus itself.
Moreover, the main forms of liberal pluralism become involved to what
they call “the fact of pluralism”, and posteriorly they find the procedures to deal
with differences, which objective is really making those differences irrelevant
and relegate the pluralism to the private sphere, denying it.
In conclusion, by criticising the liberal tradition, an adequate formulation
of a radical democratic project informed by pluralism depends on the
interpretation of the “difference” as a condition of possibility of being.
REFERENCES
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Seção Especial – Teoria e Estudos Científicos
Embates Federativos pelas Participações nas Rendas de Petróleo*
LIvia Amorim
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, LLM em Tributação e Finanças de Petróleo
e Gás pelo CEPMLP – University of Dundee, Advogada e Pesquisadora no Centro de Estudos
em Regulação e Infraestrutura da FGV.
Submissão: 29.02.2016
Decisão Editorial: 07.04.2016
Comunicação ao Autor: 07.04.2016
Origem do texto: IDP – Brasília
ABSTRACT: After discovered oil reserves in the pre-salt, a huge federal dispute was triggered around
their government participation, assuming that would become public revenues bigger and more ex‑
pressive. In the absence of harmonization, Congress approved a reallocation of resources, currently
concentrated in two major states producing regions in favor of the state and municipal governments
* As opiniões aqui expressas são dos autores e não das instituições a que pertencem. Este artigo foi elaborado
com base em informações disponíveis até 20.02.2016. William Figueiro e Juliana Damasceno deram apoio
às pesquisas.
RDU, Porto Alegre, Volume 13, n. 70, 2016, 209-234, jul-ago 2016
210 P����������������������������������������������������������������������� DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – SEÇÃO ESPECIAL – TEORIAS E ESTUDOS CIENTÍFICOS
of the other units federated consumers, which would be applied even to the fields already granted
prior to the enactment of the new law. Justice temporarily halted the change. Meanwhile, internatio‑
nal oil prices plummeted and also dragged the amounts of such revenue share. Basic simulations that
have the lowest smaller cake and even your redistributed slices demonstrate unbearable financial
losses to rare governments of producing regions to generate tiny gains to other governments. The
Brazilian federation lacks vision and comprehensive strategy and daring of its structural issues, as
these will not be equated with changes in one of its revenues, and further decreasing and thus less
likely to remain for long.
Introdução
A agenda federativa no Brasil tem sido marcada por grandes polêmicas e
conflitos entre entes federados em torno da distribuição das rendas oriundas da
extração de petróleo e gás.
Há poucos anos, basicamente entre 2011 e 2013, embates intensos fo-
ram travados no Congresso Nacional, opondo, de um lado, a imensa maioria
dos representantes parlamentares eleitos pelos Estados que nada ou pouco pro-
duzem e, de outro, a minoria oriunda dos dois Estados que concentram a atual
extração (sendo fácil supor quem teria levado vantagem no voto).
O Executivo Federal preferiu se manter à margem dos debates parlamen-
tares, alegando ser uma questão federativa (como se a União não fizesse parte
da Federação). Quando muito, aquele Poder se empenhou mais junto ao Le-
gislativo para vincular recursos para áreas que considerava como prioritárias.
Nas disputas federativas, quando vetou a redistribuição de recursos em favor da
maioria não produtora, também optou por assistiu a tal veto ser derrubado pela
mesma maioria.
Mais uma vez, um impasse federativo foi parar no Poder Judiciário. Os
Estados produtores logo conseguiram uma liminar no Supremo Tribunal Federal
(STF) que manteve a fórmula anterior de distribuição de recursos entre entes
federativos e relativamente aos campos concedidos antes da edição da nova
lei. Na prática, nada mudou na divisão federativa dessa receita, porque até hoje
aquela Corte não julgou o mérito da matéria.
Um mero “cessar fogo” resultou das decisões provisórias da justiça, e a
“guerra” federativa só foi postergada. É possível que essa feroz disputa no Con-
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gresso para redividir as rendas de petróleo seja apenas uma ponta do iceberg
das questões ou polêmicas em torno do federalismo fiscal e que se avolumam
no País, embora não ganhe maior visibilidade ou consistência.
A drástica queda dos preços internacionais de petróleo desde meados de
2014 e, consequentemente, também das receitas a eles vinculados, bem assim
a dura recessão que também passou a assolar a economia brasileira na mesma
época, mudaram sensivelmente o cenário das disputas federativas. O tão espe-
rado e sonhado eldorado de receitas foi frustrado e retrocedeu a volumes arre-
cadados há quase uma década. Isso mudou o ímpeto de muitos consumidores,
mas também jogou Estados produtores em uma terrível crise em suas finanças,
porque, ainda que tenham preservado sua fatia de bolo por conta de liminar
judicial, por outro lado, viram esse bolo de recursos públicos encolher rápida
e drasticamente.
Neste contexto, o objetivo deste artigo é apontar alguns aspectos ins-
titucionais e fiscais dos debates federativos como forma de prestar subsídios
técnicos às decisões a serem tomadas em breve em torno das ações judiciais.
A estrutura do artigo é simples e envolve uma distinção entre as respectivas
considerações.
A questão básica a ser aqui analisada respeita: à luz da Carta Magna, o
pagamento da compensação financeira pela exploração do petróleo, que, por
doutrina, é um bem público, deveria ser revertido em benefício para a coletivi-
dade, sendo este o papel fundamental dos royalties?
Para tanto, este artigo foi divido nas seguintes seções: (i) aspectos insti-
tucionais da disputa federativas pelos royalties; (ii) arcabouço institucional da
distribuição federativa de rendas do petróleo – o art. 20, § 1º, da Constituição
Federal (CF); (iii) atual distribuição federativa das receitas não tributárias do pe-
tróleo; (iv) histórico do imbróglio jurídico envolvendo a partilha federativa dos
royalties; e (v) impactos fiscais da queda da arrecadação de participações e de
sua eventual redistribuição federativa.
1 Sobre as razões que levaram à alteração do critério de destinação da arrecadação do ICMS, um dos autores já
teve a oportunidade de se debruçar sobre o assunto em trabalho anterior:
“A articulação política da sucessão do IULC pelo ICMS na Assembleia Nacional Constituinte em 1988 causou
uma série de conflitos, especialmente em relação a perdas arrecadatórias da União e dos Estados – com
participação dos Municípios na arrecadação –, a tributação de fatos geradores atinentes aos lubrificantes,
combustíveis líquidos ou gasosos, a produção, importação, circulação, distribuição ou consumo. Emenda
apresentada pelo então parlamentar José Serra tornou conflituosa – situação que se projeta até hoje – a
sucessão em relação aos Estados produtores, vez que propunha sistemática arrecadatória diferenciada para
operações interestaduais que envolvessem lubrificantes e combustíveis: os recursos obtidos nessa operação
ficariam a cargo do Estado de destino e não do Estado de origem, como acontece nas demais operações.
As justificativas para essa mutação do critério de destinação dos recursos do ICMS não são claras e são
especialmente mistificadas em torno de declaração de voto do à época da constituinte Nelson Jobim no
julgamento do MS 24.312, que a associou à maior arrecadação dos Estados produtores em virtude do
recebimento das participações governamentais incidentes sobre a indústria do petróleo e gás. Nos debates da
Constituinte de 1987, o que se encontra registrado (e inclusive é mencionado no voto do Ministro Sepúlveda
Pertence no mesmo julgamento) como fundamento da alteração do critério da destinação é o fato de os
Estados produtores, em virtude da mobilização necessária à criação de infraestrutura para recebimento da
indústria, já receber investimentos maciços – de ordem pública e privada. Por essa razão, os Estados não
produtores ficariam alijados tanto dos investimentos quanto da arrecadação tributária gerada pela circulação
da riqueza natural, considerada como mercadoria para fins de incidência do ICMS” (AMORIM, Lívia. Histórico
da tributação do setor de petróleo e gás: da primeira República aos tempos atuais. Considerações sobre
arranjos federativos das receitas tributárias do setor. Universidade de Brasília, 2011. Disponível em: <http://
bdm.unb.br/bitstream/10483/3077/1/2011_LiviaMedeirosAmorim.pdf>. Acesso em: 27 out. 2015).
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co se voltou à discussão política de como deveriam ser partilhados os resulta-
dos e, dados os múltiplos interesses envolvidos e suas divergências essenciais,
não conseguiu alcançar um grau razoável de consenso, portanto, não sendo
capaz de chegar a um arranjo efetivo. Por outro lado, como já dito, o Texto
Constitucional não trazia clareza o suficiente para precocemente estabilizar as
pretensões em disputa. Dessa forma, o STF foi chamado, em dois momentos
distintos, para exercer o seu papel institucional de guardião da Constituição e
se pronunciar sobre o alcance interpretativo do art. 20, § 1º.
A questão ainda está pendente de julgamento no STF e a vigência dos
artigos alterados pela Lei nº 12.734/2012 está suspensa por uma liminar con-
cedida monocraticamente pela Ministra Cármen Lúcia. As alterações recentes
na conjuntura internacional do mercado de petróleo (com queda significativa
no preço do barril e uma previsão de estabilização do preço a longo prazo em
patamares substancialmente menores ao observado na época do anúncio das
descobertas do pré-sal – na casa dos US$ 90) e a crise que atravessa o setor de
petróleo e gás no País potencializaram as incertezas em torno dos resultados
dessa disputa.
Para uma melhor compreensão do estágio atual da disputa, o próximo
capítulo se dedicará a fazer um panorama das mudanças legislativas ocorri-
das em função da descoberta do pré-sal no que diz respeito à distribuição das
participações governamentais previstas com fundamento no art. 20, § 1º, da
Constituição de 1988.
2 Para fins deste artigo, foram comparados apenas os regimes de incidência dos royalties e da participação
especial, instrumentos que têm repasse previsto aos Estados e Municípios.
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3 A complexidade do modelo de partilha de produção adotado no Brasil levou a algumas especulações a respeito
de um eventual reembolso dos royalties pago pelo contrato por meio de custo em óleo. Tais debates levaram
inclusive à inserção dos §§ 1º e 2º do art. 42 da Lei nº 12.351/2010, os quais estabelecem, grosso modo,
que é “vedado, em qualquer hipótese, seu ressarcimento ao contratado e sua inclusão no cálculo do custo
em óleo”. Apesar de o modelo brasileiro ter adotado uma transação complexa nesse caso (ao estabelecer
que o contratado terá direito ao volume da produção correspondente ao valor pago de royalties em reais),
não se trata de um reembolso. Sobre esta questão, ver AMORIM, Lívia. Recover of royalties in the Brazilian
production sharing system: a neutral transaction? Rio Oil and Gas, 2014.
4 Pela dinâmica do contrato de partilha, o contratado incorre em todos os custos e riscos associados à exploração.
Caso tenha sucesso, os custos exploratórios incorridos serão reembolsados em produção ao contratado.
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se dá i) em terra ou em lagos, rios, ilhas fluviais e lacustres; ou ii) na plataforma
continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva.
Para os blocos outorgados sob o regime de concessão e sob o regime de
cessão onerosa, a lei ainda faz uma gradação dos critérios de distribuição: i) a
parcela irredutível dos 5% dos royalties segue um critério5; e ii) a parcela que
exceder os 5% dos royalties. Esse critério não se aplica aos blocos licitados sob
o regime de partilha de produção, em que os royalties são de 15% do valor
bruto da produção.
Essa lógica não foi alterada com as mudanças legislativas e disputas ju-
diciais ocorridas, mas os critérios de divisão dos royalties arrecadados foram
substancialmente afetados.
As Tabelas 1 e 2 consolidam os critérios de divisão federativa dos royalties
sob cada regime de outorga (concessão e cessão onerosa6) e sob os diferentes
marcos normativos (Lei nº 9.478/1997 em sua redação original e após as altera-
ções promovidas pela Lei nº 12.734/2012). A Tabela 4 ilustra quais os critérios
adotados para o regime de partilha da produção.
Regime de Concessão
Lei nº 9.478/1997
Lei nº 12.734/2012
(Redação anterior)
5 Como mencionado na Tabela 1, os royalties podem ser reduzidos pela ANP no edital do leilão caso os blocos
a serem outorgados sejam de campos marginais, mas essa redução nunca pode resultar em uma alíquota final
inferior a 5%.
6 Não foram comparados os critérios da partilha, uma vez que o regime não existia antes, mas foram
consolidados seus principais parâmetros de divisão na Tabela 4.
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• União: 20%
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Tabela 3 – Critérios de distribuição dos royalties arrecadados sob o regime de cessão onerosa
Cessão Onerosa
Lei nº 12.276/2010
(com a redação original da Lei nº 12.734/2012
Lei nº 9.478/1997)
Regime de Partilha
Lei nº 12.351/2010
(Redação dada pela Lei nº 12.734/2012)
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• Estados confrontantes: 22%
• Municípios confrontantes: 5%
Royalties: Plataforma con- • Municípios com instalações: 2%
tinental, mar territorial ou
ZEE • Fundo especial – Estados e Distrito Federal: 24,5%
• Fundo especial – Municípios: 24,5%
• União (Fundo Social): 22%
30/11/12
03/12/12
15/03/13
18/03/13
MPV Derrubada
Promulgação Veto MC
presidencial 592/12 do ADI 4917
Veto
Lei
Lei nºn.º 12.734/12
12.734/2012
7 Questiona-se, por exemplo, se a derrubada do veto pelo Congresso teria algum efeito sobre a medida provisória,
a exemplo da rejeição/revogação dos artigos da medida que tratam de questões tratadas pela derrubada do
veto, como a aplicação imediata das novas regras aos contratos já assinados.
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6 Impactos Fiscais da Redistribuição
A questão básica a ser aqui analisa é: quais serão os impactos sobre as
contas públicas estaduais e municipais dos que perderiam e dos que ganhariam
se vier a ser confirmada na justiça a redistribuição imposta pela maioria parla-
mentar?
Antes de se tratar da divisão da receita de participações, vale comentar
o tamanho desta, que passou a ser impactada por uma mudança expressiva de
cenário – os preços internacionais de petróleo. Este valor é decisivo para análise
porque determina o cálculo dos royalties (ainda que aí conte também a taxa de
câmbio) e decide também participações especiais (se os gastos com exploração
fossem constantes). A evolução de tais preços mostrou uma mudança radical de
cenário desde meados de 2014: passou-se anos acima da casa de US$ 100 por
barril, despencou e chegou ao início de 2016 abaixo de US$ 30, caindo para
níveis observados ao final do século passado. Pior, todas as projeções divulga-
das por especialistas desse mercado apontam que, diante da maior oferta de
petróleo no mundo, apostam que os preços seguiram essa tendência de baixa e
alguns esperam até queda para a casa de US$ 20 por barril.
Esse fator foi decisivo para comprimir radicalmente as receitas governa-
mentais de correntes de extração de óleo no Brasil, pois o cálculo dos valores
devidos toma por base os preços internacionais e a eles multiplicam taxa cam-
bial e, no caso dos royalties, produção8 – vide Tabela 1 a seguir.
8 As participações governamentais na extração de petróleo são apuradas e divulgadas pela ANP em página
específica de seu portal na Internet: <http://bit.ly/1Um4QV2>.
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A realidade de 2015 só não foi pior porque houve forte depreciação real
– a taxa média de 2014 era de R$ 2,66, e há expectativa no mercado de que
fique em R$ 4,20 em 2016. Já a produção de petróleo foi crescente, inclusive
já com entrada em vigor dos primeiros poços do pré-sal, mas muito longe do
boom que se prometia quando dos debates parlamentares e também nos últi-
mos anos, refletindo a crise crescente de governança da Petrobras (a produção
de 2,4 milhões de barris/dia em 2015 foi recorde histórico, mas superou em
apenas 18% a obtida cinco anos antes, frustrando as variações espetaculares
prometidas quando das descobertas do pré-sal)9.
Em 2015, foram arrecadados R$ 13,8 bilhões de royalties e R$ 10,7 bi-
lhões em participações especiais, que somaram R$ 24,5 bilhões. Foram 31% a
menos do que em 2014, sem descontar a inflação. O montante recolhido ficou
inferior até ao de 2011, em valores históricos.
Para dimensionamento econômico mais correto, cabe comparar com o
tamanho da economia: o total de participações em petróleo equivaleu a 0,42%
do PIB em 2015, a proporção mais baixa já registrada desde 2003 (ano em que
começou a ser paga a participação especial na forma corretamente prevista em
lei). O melhor ano foi o de 2008, quando se arrecadou 0,73% do PIB – naquele
ano, a produção era de 1,8 milhões de barris/dia e o preço médio do petróleo
era de cerca de US$ 90 (até 2015, a respectiva produção cresceu em 34%, mas
o preço caiu pela metade).
Outro aspecto importante na evolução histórica dessas receitas respeita
ao comportamento diferenciado entre participações especiais (a proporção de
0,38% do PIB em 2008 recuou para apenas 0,18% em 2015, ou seja, encolheu
mais do que a metade) e royalties (de 0,35% para 0,23% do PIB, entre 2008 e
2015, logo, com queda de um terço). Dada a base de cálculo de cada caso, a
explicação é que, a longo prazo, em tese, a queda de lucratividade na extração
de petróleo foi muito maior do que a redução dos seus preços internacionais.
É notória a crise de governança da Petrobras, que registrou o maior prejuízo
de sua história em 2014, mas é algo estranho ter variações tão díspares, e se
espera que a fiscalização da ANP esteja atenta quando efetua as cobranças. Há
um impacto federativo importante nessa evolução diferenciada e a que poucos
atentam: a parcela que cabia aos Estados produtores nas participações especiais
(40%) era muito maior do que em royalties (26,25%), assim como a do governo
federal (50% contra 30%), logo, aquelas duas esferas superiores de governo
sofreram muito mais com a queda mais acentuada da participação especial do
que as prefeituras das regiões produtoras (sempre considerado aqui a redistri-
buição anterior às mudanças legais recentes).
9 Para uma análise sobre a evolução recente das finanças da Petrobras antes do ápice de sua crise de
governança, vale ver AFONSO, José Roberto. Tributação versus subsídios: o caso da Petrobras. Nota Técnica.
Rio de Janeiro: IBRE FGV, maio 2014.
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Se o “bolo” dos recursos governamentais oriundos da extração de petró-
leo repentina e expressivamente ficou menor, o que dizer se ainda fosse adota-
da a redistribuição dos governos das regiões produtoras para as consumidoras
aprovada pelo Congresso e temporariamente suspensa pelo STF? O impacto
sobre as finanças estaduais e municipais que mais recebiam aquelas partici-
pações oriundas do petróleo seria ainda mais devastador porque a nova distri-
buição ampliaria e potencializaria a perda de receita decorrente da redução
dos preços internacionais de petróleo – ou seja, tanto o tamanho do “bolo” já
foi reduzido sensivelmente quanto a fatia que atualmente cabe aos governos
produtores pode ficar ainda menor pelo efeito da redistribuição em favor dos
governos consumidores.
A mudança para o regime da partilha, na verdade, também provocará ou-
tro efeito redutor no tamanho do “bolo” de receita a longo prazo, porque, nesse
caso, desaparece a participação especial, e todo óleo excedente pertencerá à
União, sendo que os royalties serão ampliados para compensar tal efeito, mas
sem garantir que sua maior alíquota cobrirá a perda daquela participação – sem
contar que os dois rateios entre governos não eram iguais.
Para avaliar o efeito redistributivo da legislação aprovada pelo Congresso
e suspensa pelo STF, menciona-se, inicialmente, a divisão proporcional entre as
diferentes esferas de governo. A Tabela 2 a seguir compara a situação vigente e
a proposta no início da transição e na posição definitiva. De um lado, os favo-
recidos pela redistribuição serão os governos que recebem cotas dos Fundos de
Participação: o ganho deles equivale a 45,25% do que se distribui atualmente a
título de royalties e a 30% de participação especial. De outro lado, os prejudica-
dos serão a União, em menor escala, porque perderá 10% do total dos royalties
pagos e apenas 4% do total da participação especial; os governos estaduais das
regiões produtoras, que perderão 6,25% e 20%, respectivamente; e as prefeitu-
ras das mesmas regiões, 29% e 6%, respectivamente.
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Fica evidenciado que os parlamentares não optaram por uma mudança
linear entre governos, regiões e participações, mas fizeram mudanças seletivas.
As porcentagens das reduções mostram que a redução imposta às finanças fede-
rais foi muito inferior à aplicada aos governos subnacionais de regiões produto-
ras. E isso apesar de a União dispor de uma arrecadação e um orçamento muito
superiores e assim poder facilmente compensar ou atenuar a perda na partilha
da receita de petróleo. Já no caso das regiões produtoras (inclusive aquelas
unidades confrontantes e afetadas), o corte no rateio imposto ao conjunto de
prefeituras foi muito maior no caso dos royalties que o aplicado aos Estados, no
caso das participações especiais –, não por acaso eram as participações (de) que
respectivamente cada uma das esferas de governo mais recebiam e dependiam.
Portanto, é possível verificar que não apenas a maioria esmagadora aprovou no
Congresso uma regra que lhe beneficiava como ainda optou, em contrapartida,
por impor um prejuízo maior aos governos estaduais e municipais das regiões
produtoras, altamente dependentes desses recursos, do que ao governo federal,
que, embora recebesse cotas pouco maiores do que as dos Estados produtoras,
pouco dependia dessa receita.
Um exercício simples é supor que, em 2015, os valores efetivamente dis-
tribuídos – R$ 13,8 bilhões de royalties e R$ 10,7 bilhões em participações es-
peciais – tivessem sido rateados integralmente segundo a nova fórmula de rateio
aprovada pelo Congresso e supondo que o STF não tivesse se oposto a sua apli-
cação imediata. A Tabela 3 abaixo mostra, na sua primeira parte, quanto efetiva-
mente foi arrecadado por cada governo ou bloco e, em seguida, qual montante
o mesmo teria recebido se aplicada a nova lei, no início e ao final da transição.
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Os governos estaduais e municipais das regiões produtoras viriam sua
receita de R$ 14 bilhões reduzida a apenas R$ 6,2 bilhões – ou seja, perderiam
56% do que atualmente recebem em royalties e participações especiais. Melhor
sorte teria a União, cuja receita de R$ 9,3 bilhões cairia para R$ 7,7 bilhões,
sendo reduzida em 17%.
Já o Fundo Especial, a ser repartido para os demais governos segundo os
critérios do FPE e do FPM, saltaria de apenas R$ 1,1 bilhões para R$ 10,7 bi-
lhões – ou seja, teria sua receita multiplicada em 9,5 vezes. Do lado dos gover-
nos produtores, vale lembrar que o nível estadual teria perdido R$ 3,3 bilhões,
ou 41% da receita de participações efetivamente recebida em 2015, e o nível
municipal, R$ 4,5 bilhões, ou 56% da mesma receita.
A leitura dos valores redistribuídos dá cores ainda mais nítidas à leitura
anterior, com porcentagens das cotas, sobre o caráter peculiar em que se pre-
tendeu aplicar a redivisão legal das receitas. Se tivesse sido aplicado em 2015,
de forma plena, o rateio definitivo da nova lei, os governos locais das regiões
produtoras teriam arrecadado exatos R$ 8 bilhões a menos, mas a União teria
perdido apenas R$ 1,6 bilhões. Ou seja, os poucos governos estaduais e muni-
cipais das regiões produtoras deveriam suportar um custo 2,7 vezes maior do
que o governo federal, e isso para poder beneficiar governos iguais a eles, mas
consumidores de óleo.
É possível concluir, à luz das evidências apresentadas, que a maioria se
fez valer de forma tão implacável que optou por nem prejudicar tanto o governo
de maior porte e, em tese, de maior poder. O pior é que esse processo imporia
grandes perdas para poucos governos em troca de gerar irrisórios ganhos para a
maioria dos outros governos – sobretudo por conta da pulverização decorrente
do rateio segundo os mesmos critérios aplicados ao FPE e ao FPM.
O mesmo exercício hipotético aqui descrito é aplicado ao Estado do Rio
de Janeiro, por ser de longe o mais dependente de receitas de petróleo e o mais
impactado por sua eventual redistribuição10. No caso do governo estadual, no
lugar dos R$ 5,3 bilhões que efetivamente recebeu em 2015, se aplicada a nova
legislação e em sua forma definitiva, receberia apenas R$ 3,0 bilhões. Em ter-
mos proporcionais, os R$ 2,2 bilhões que seriam perdidos em 2015 representa-
vam 42% do efetivamente arrecadado, ou 4,3% de sua receita corrente líquida.
Nestas contas, já foram computados os dois efeitos – o da queda dos preços de
petróleo e o da redistribuição da receita de participações. Para se ter uma ideia
melhor do impacto, é importante notar que, em 2014, com preços de petróleo
10 Estatísticas fiscais mais detalhadas do Governo Estadual do Rio de Janeiro, em parte utilizadas para análise
neste artigo, estão disponíveis em seu portal de transparência fiscal, em: <http://bit.ly/1TzDMkA>.
Para uma análise mais detalhada sobre o impacto nas finanças do Rio do projeto de lei que alteraria o rateio
das participações governamentais em petróleo (e pouco mudou para a lei aprovada e suspense pelo STF), ver:
AFONSO, José Roberto; CASTRO, Kleber P. Carga tributária sobre o petróleo no Brasil: evidências e opções.
Casa das Garças, Rio de Janeiro, out. 2001.
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ainda razoáveis, o mesmo Governo do Rio tinha recebido R$ 8,7 bilhões entre
royalties e participações especiais, ou seja, se a mesma receita despencasse
para apenas R$ 3,0 bilhões em 2015, o montante da perda total seria de R$ 5,6
bilhões – dos quais se pode inferir que 39% seriam explicados pela redistribui-
ção legal e os outros 61% pela menor receita de participações.
No caso dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro, se a nova lei tivesse
sido aplicada definitivamente em 2015, teriam recebido um total de participações
de apenas R$ 0,7 bilhões e perdido para outros governos cerca de R$ 2,5 bilhões
– na prática, essa fonte de receita teria sido cortada em 78%. Como em 2014 as
mesmas prefeituras tinham recebido R$ 4,6 bilhões, acabariam perdendo R$ 3,8
bilhões deles, a título de menor preço e menor cota-parte nos royalties.
Considerado o governo estadual mais os municipais do Rio de Janeiro,
em 2015, no lugar de R$ 8,5 bilhões efetivamente arrecadados entre royalties e
participações especiais, seriam recebidos apenas R$ 3,8 bilhões se aplicada a
nova legislação – isto é, em apenas um ano, o Estado perderia R$ 4,7 bilhões.
Além desse prejuízo potencial, houve o já efetivamente observado com a que-
da dos preços internacionais. Se comparado o novo valor contra os R$ 13,3
bilhões que os mesmos governos receberam em 2014, constata-se que os dois
efeitos produziriam uma perda agregada de R$ 9,5 bilhões/ano para os cofres
dos Governos do Rio. Em outras palavras, com os novos preços de petróleo (já
observado) e com o novo rateio de participações (uma possibilidade), o conjun-
to de Governos do Rio de Janeiro perderia exatamente a metade do que antes
arrecadava com rendas oriundas da extração de petróleo no mar territorial con-
frontante ao seu território.
Paradoxalmente, a contrapartida de um impacto tão negativo para o prin-
cipal Estado produtor é um ganho pequeno, quando não pífio, para os ditos
governos consumidores. Aplicado o mesmo exercício hipotético, se a nova lei
tivesse sido aplicada em 2015, o valor acrescido ao Fundo Especial e destinado
aos demais estados teria representado um repasse adicional equivalente a ape-
nas 5,8% do FPE transferido naquele ano – e isso ao final da transição, pois o
ganho seria apenas 3,8% no primeiro ano. No caso dos Municípios, o aumento
de sua cota no Fundo Especial citado resultaria em um aumento de tão somente
6% do FPM efetivamente creditado em 2015 (a proporção seria de 4,2% no
início da transição).
É possível transformar o mesmo argumento em montantes. A nova legis-
lação implicaria, na sua regra final, um acréscimo de R$ 9,6 bilhões no Fundo
Especial dos royalties em 2015. Como os Fundos de Participação repassaram
R$ 161,9 bilhões naquele ano, o ganho seria de apenas 5,9%11.
11 As transferências dos fundos de participação são publicadas pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN),
com todo detalhamento de cálculo e repasse por Município, em seu portal da Internet, em: <http://bit.
ly/1TzDhH3>.
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No caso dos Estados, além dos R$ 61,1 bilhões que receberam de FPE, os
25 Estados consumidores dividiriam um acréscimo de R$ 2,2 bilhões em mais
participações de petróleo se a nova lei já estivesse valendo. Distribuído segun-
do a mesma fórmula do FPE e excluídos os dois Estados que deveriam preferir
receber royalties (Rio e Espírito Santos), verifica-se que a maior cota extra seria
da Bahia (R$ 215 milhões) e a menor, do Distrito Federal (R$ 16 milhões) – a
mera citação desses montantes já indica quão reduzido e pulverizado seria o
impacto da nova lei.
Para uma avaliação mais adequada, pode-se comparar o ganho com o
fundo especial de royalties em relação à receita corrente líquida de cada gover-
no estadual12. Como ainda não se dispõe daquela receita para 2015, o exercício
toma 2014 como ano de referência: os R$ 4,8 bilhões de FPE a mais que seriam
repartidos aos Estados consumidores equivaliam a irrisório 0,8% da receita cor-
rente deles. Individualmente13, na melhor das hipóteses, a nova lei elevaria a
mesma receita em apenas 3,6% em Roraima, 3,4% no Amapá, 3,2% no Acre e
2,8% em Alagoas, Maranhão, Piauí e Tocantins; mal chegaria a 1% em Estados
como Mato Grosso e Goiás; no outro extremo, o ganho não chegaria nem a
0,5% da receita de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais.
Portanto, depois de distribuídos entre 25 unidades federadas e mesmo com a
fórmula do FPE que concentra 85% dos repasses em favor do Nordeste, Norte
e Centro-Oeste, os ganhos de royalties dos governos estaduais daquelas regiões
foram literalmente pífios. Em troca de o Rio de Janeiro perder mais de 10% de
sua receita recorrente, os demais governos não ganhariam nem 1% a mais na
mesma receita.
A pulverização do FPM entre mais de 5,5 mil cidades brasileiras tor-
na esse efeito ainda mais diluído quando da divisão do que ganhariam de
royalties, em troca de pesadas perdas para as poucas cidades das regiões pro-
dutoras.
De um lado, dos ditos produtores, ainda tomando por base o ano de
2014, é verificado que os Municípios do Estado do Rio de Janeiro deixaram
de arrecadar, se a nova lei fosse aplicada, cerca de R$ 3,7 bilhões, sendo as
seguintes maiores perdas individuais em proporção da mesma receita corrente:
26% em Búzios, 23% em São João da Barra, 20% em Campos, 18% em Rio das
Flores, 17% em Macaé e 10% em Italva.
12 Os dados sobre a receita utilizados no exercício realizado para este artigo foram retirados da execução
orçamentária dos Estados e dos Municípios que são coletados periodicamente pela STN e divulgados em
seu portal, mais especificamente na página do Siconfi – Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor
Público, em: <http://bit.ly/1TzDXMA>.
13 Figura do anexo estatístico detalha os dados do exercício por Estado e, também, para alguns Municípios
selecionados.
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De outro lado, dos ditos consumidores, teriam um ganho no FPM de
R$ 5,5 bilhões em 2014, e, considerada uma amostra de 1,7 mil cidades14,
deduz-se que, no agregado, haverá um ganho de apenas 0,7%. Na melhor
das hipóteses e excepcionalmente, esse incremento chegaria a 5% da re-
ceita em Nova Aliança do Ivaí (PR) e Cedro do Abaeté e Consolação, e
apenas 3% das cidades conseguiriam elevar em mais de 4% a sua receita.
Para a imensa maioria das demais cidades, o ganho seria de apenas 2%
da receita corrente.
Enfim, a redistribuição das receitas de royalties e participação especial
de petróleo, se for aplicada a lei por ora suspensa pelo STF, certamente pro-
vocaria uma perda gigantesca para governos de regiões produtoras, em alguns
casos levando inevitavelmente à falência das finanças e caos em muitos ser-
viços públicos, em troca de gerar ganhos pífios para demais governos – na
média, elevando em 0,8% a receita corrente estadual e em 0,7% a mesma
receita municipal.
Conclusões
Em 2007, o anúncio da descoberta de enormes reservas de petróleo, na
costa do Brasil, na camada do pré-sal, iniciou um longo e controverso debate
acerca da distribuição federativa das riquezas geradas pela exploração dos re-
cursos naturais do País. A expectativa de um eldorado produtivo e um cenário
internacional de elevados preços do barril (à época de 100 US$/bbl, mas che-
gou a atingir a cifra de US$ 120 US$/bbl) levou a disputas que postergaram
consideravelmente o início da exploração dos recursos (o primeiro leilão só
ocorreu em 2013), e algumas ainda se arrastam, como é o caso da distribuição
dos royalties.
14 Diante da dificuldade em aplicar o exercício para número tão grande de Municípios, optou-se por adotar
apenas aqueles em que a STN disponibiliza informações sobre a receita corrente líquida em relação aos
indicadores de endividamento – a tabela por cidade é divulgada em: <https://goo.gl/tRzyOE>.
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em 2010 por meio de um conjunto de leis propostas pelo Executivo, que, em
síntese, culminaram: i) na mudança do regime de concessão vigente para o mo-
delo de partilha; ii) na criação de uma nova estatal com forte ingerência sobre
decisões operacionais, a PPPSA; e iii) na ampliação substancial do papel da
Petrobras por meio da cessão onerosa (que permitiria a capitalização da estatal
para desenvolver os recursos) e da operação única (Pré-Sal Petróleo S.A.)
O que falta, então, para se ter essa visão abrangente? Antes de tudo,
abandonar a ideia do que seria uma forma de minimalismo – que é diferente de
gradualismo. Não iremos a nenhum lugar enquanto tentarmos enfrentar cada
questão por vez, mas ignorando os problemas e as alternativas para outras ques-
tões. Outro é o caso de buscar equacionar as diferentes questões em uma visão
abrangente, com uma ação coordenada e negociada, ainda que cada caso leve
a um ato próprio, distinto do adotado para o outro caso, e o principal é que as
mudanças sejam realizadas gradualmente, ao longo do tempo. O que não se
pode perder é o norte, seja para dar consistência e coerência às decisões que se
adotam, seja para indicar os objetivos de médio e longo prazo.
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Anexos Estatísticos
Impacto da redistribuição nas finanças estaduais
Ano 2014 com base 2015 e lei nova e partilha final
4.805.510.866
FPE (80%) 3.844.408.693
FUNDEB (20%) 961.102.173
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Clipping Jurídico
Projeto impõe licenciamento ambiental como condição para licitação de obras e
serviços
Em análise na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 675/2015 impõe a exigência
de licenciamento ambiental como condição para que obras e serviços sejam licitados. A
proposta, apresentada pelo Deputado João Rodrigues (PSD-SC), estabelece prazo de 60
dias para que os órgãos envolvidos no procedimento analisem os pedidos de licencia-
mento ambiental apresentados, sob o risco da aprovação tácita dos empreendimentos.
O projeto modifica a Lei de Licitações (8.666/1993). Apesar de prever a inclusão do
impacto ambiental nos projetos básicos e executivos de obras e serviços, a lei atual
não estabelece o ponto como condição para licitação. • Padronização: Além disso, o
projeto de lei padroniza a atuação dos órgãos ambientais, ao estender aos Estados e aos
Municípios a adoção dos procedimentos determinados pela União. Conforme lembra o
autor, a Lei Complementar nº 140/2011, que estabelece competências para a proteção
do meio ambiente, permite à União promover a integração de programas e ações. João
Rodrigues argumenta que as medidas propostas agilizarão a expedição das licenças
ambientais e os procedimentos licitatórios. “Um dos grandes entraves ao desenvolvi-
mento nacional reside na lentidão com que são apreciados pedidos de licenciamento
ambiental de obras públicas. Por envolverem autoridades de diversos níveis da Fede-
ração, os procedimentos são diversificados, permitindo-se que em determinada locali-
dade critérios díspares venham a ser adotados”, afirma o parlamentar. • Tramitação: O
projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado pelas Comissões de Trabalho, de
Administração e Serviço Público; de Finanças e Tributação, inclusive quanto ao mérito;
e de Constituição e Justiça e de Cidadania. (Conteúdo extraído do site da Câmara dos
Deputados Federais)
Aprovação fora do número de vagas estabelecido em edital não gera direito à no-
meação
O Pleno do TJRN concluiu o julgamento do mandado de segurança movido pela defesa
de vários candidatos aprovados fora do número de vagas em um concurso público, os
quais ocuparam posições fora das que foram definidas no edital. O tema, assim como
na sessão anterior, foi extensamente debatido pela Corte potiguar, a qual, após o reexa-
me feito pelo voto vista do Desembargador João Rebouças, negou o pedido feito pela
Advogada Rayssa Maria Gonzaga. A defesa pedia a concessão da segurança, a fim de
que a Corte potiguar determinasse a imediata nomeação e posterior tomada de posse
dos candidatos, na função para a qual prestaram concurso público e foram aprovados,
para provimento dos cargos efetivos de Especialista Pedagógico, do Quadro Geral de
Pessoal da Secretaria de Educação e da Cultura do Estado, homologado por meio da pu-
blicação no Diário Oficial do Estado (DOE) nº 12.653, de 28 de fevereiro de 2012, nos
termos do Edital nº 001/2011-SEARH/SEEC. Entre os argumentos, a defesa se baseou no
fato do ente público ter lançado um novo edital para preenchimento de vagas, quando o
anterior – para o qual os autores do MS se inscreveram – ainda estaria em validade; bem
como nos dados do Ministério Público de que alguns dos cargos ocupados representa-
riam desvio de função, já que professores permanentes de outras disciplinas exerceriam
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tal atividade, em horas que ultrapassavam o limite legal. O debate se estendeu na Corte
potiguar, já que também foi posto em discussão o Recurso Extraordinário nº 837311 do
Supremo Tribunal Federal (STF), de relatoria do Ministro Luiz Fux, o qual observou que,
salvo em situações excepcionais, que devem ser devidamente justificadas pela adminis-
tração pública, os candidatos aprovados em certame prévio devem ter preferência na
convocação em relação aos aprovados em concurso realizado posteriormente. • Defi-
nição: No entanto, para o Desembargador João Rebouças, que abriu o voto divergente
em relação ao definido pelo relator original, a aprovação fora do número de vagas não
garante a nomeação, somente devido ao lançamento de um novo edital. “É preciso a
caracterização e demonstração da existência real de novas vagas”, ressaltou Rebouças,
acompanhado pelos Desembargadores Amaury Moura Sobrinho e Ibanez Monteiro e
pela maioria da Corte. “Ainda que tenham existido nomeações, elas seguiram até a
posição 108, e a candidata mais próxima ocupa a posição 110. Ainda assim, ficam fora
das vagas”, completa Sobrinho. “O novo edital previu vagas, mas para o quadro de
reserva. E as vagas surgiram no prazo de validade do concurso inicial. É preciso provar
a existência de vagas”, definiu Ibanez Monteiro. Nº do processo: 2015018241-8. (Con-
teúdo extraído do site do Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Norte)
Em decisão unânime, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não conhe-
ceu de recurso de paciente que buscava a garantia de cobertura do plano de saúde para
a realização de cirurgia ginecológica. A Turma considerou que não foram cumpridos
os requisitos para admissão do recurso no STJ, pois não foram juntadas as guias que
comprovariam o pagamento do porte de remessa e retorno dos autos. Na ação original,
a autora, uma fonoaudióloga, narrou que firmou contrato com plano de saúde em 1999
e, após ter cumprido todos os períodos contratuais de carência, foi diagnosticada com
endometriose pélvica e incontinência urinária, necessitando de cirurgia. Entretanto, o
plano de saúde negou-se a cobrir o procedimento cirúrgico, sob o argumento de que
a doença era preexistente à contratação do seguro. A operadora também alegou que a
cobertura do plano era parcial e, conforme a Lei nº 9.656/1998, a autora teria direito a
apenas alguns tratamentos específicos nos primeiros 24 meses do contrato. A sentença
julgou procedente o pedido da fonoaudióloga e determinou que a operadora do plano
de saúde arcasse com todas as despesas do procedimento cirúrgico. O magistrado en-
tendeu que o contrato não estabelecia, de forma clara, a previsão de cobertura parcial
nos dois primeiros anos e, assim, considerou que as cláusulas deveriam ser interpreta-
das da forma mais favorável ao consumidor. Ao analisar a apelação do plano de saúde,
todavia, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reformou a sentença. O Colegiado
paulista considerou que a autora declarou ser portadora de endometriose no momento
da assinatura do contrato, e, dessa forma, ficou configurada a preexistência da doença,
motivo para afastar a cobertura de cirurgia. Insatisfeita, a fonoaudióloga recorreu ao STJ,
sob o argumento de que o plano de saúde tinha previsto a exclusão de cobertura gine-
cológica inicialmente pelo prazo de seis meses, mas resolveu estender o impedimento
pelo período de 24 meses sem que a consumidora fosse devidamente informada sobre
a prorrogação. Entretanto, os ministros da Quarta Turma entenderam que o recurso
especial dirigido ao STJ não continha os requisitos mínimos de admissibilidade, pois
a autora não apresentou no recurso as guias de recolhimento necessárias ao processa-
mento da ação. “No ato da interposição do recurso, portanto, deve ser comprovado o
regular recolhimento das despesas das custas e do porte de remessa e retorno dos autos,
juntando-se aos autos as guias de recolhimento e respectivos comprovantes de paga-
mento, sendo insuficiente a apresentação apenas destes últimos”, afirmou o Ministro
Marco Buzzi, Relator do caso na Turma. REsp 1423841. (Conteúdo extraído do site do
Superior Tribunal de Justiça)
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Limitada indenização a fotógrafo por divulgação não autorizada de imagens
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou, por unanimidade, uma
decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) para limitar o valor a ser pago a um
fotógrafo por uma editora que publicou fotos sem autorização do autor. O caso envolve
um fotógrafo profissional do Paraná que teve seis fotos de sua autoria publicadas, sem
autorização, em uma revista publicitária. Na ação, o fotógrafo processou a editora.
Entre os pedidos, solicitou apreensão dos exemplares produzidos, suspensão da divul-
gação, pagamento de danos morais (200 salários-mínimos) e materiais (R$ 2.000,00
por fotografia). Na defesa, a editora alegou que agiu de boa-fé, uma vez que apenas
publicou as fotos enviadas pela Secretaria Municipal de Turismo de Foz do Iguaçu
(PR). O juiz de primeiro grau julgou parcialmente procedente o pedido do fotógrafo,
condenando a editora ao pagamento de danos materiais (R$ 400) e de danos morais
(R$ 2.500,00), excluindo a Secretaria Municipal de Turismo do processo. Inconforma-
dos, o fotógrafo e a editora recorreram ao TJPR, que aumentou o valor a ser pago por
danos materiais para o valor equivalente ao preço de capa de três mil exemplares da
revista. Insatisfeita com a decisão, a editora recorreu, então, ao STJ, cabendo a relatoria
do caso ao Ministro João Otávio de Noronha. No recurso especial, alegou que o TJPR
aumentou o valor da indenização por danos materiais sem, contudo, limitar o montante
ao valor do pedido do fotógrafo. No voto, o ministro sublinhou que, em ações sobre
direitos autorais, a titularidade é da editora que publica a obra não autorizada. “Por-
tanto, não cabe denunciar à lide terceiro que eventualmente tenha fornecido material
a ser divulgado, pois o cuidado com os direitos autorais é de quem publica”, afirmou
o ministro, referindo-se ao argumento da editora de que as fotos foram fornecidas pela
Secretaria Municipal de Turismo. Noronha afirmou que o art. 103 da Lei nº 9.610/1998
dispõe sobre indenização decorrente da sanção civil que regulamenta na medida em
que prevê a perda dos exemplares de obras literárias, artísticas ou científicas publica-
das sem autorização do autor intelectual e/ou pagamento em espécie do valor de tais
exemplares. “Mesmo sendo norma que impõe sanção na forma por ela estipulada, sua
aplicação não foge aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, devendo-se
sopesar a gravidade do ato praticado e sua repercussão na esfera privada do autor cujos
direitos foram afrontados”, afirmou o ministro, ao aceitar em parte o recurso da editora.
REsp 1317861. (Conteúdo extraído do site do Superior Tribunal de Justiça)
Julianne Holder da Câmara Silva Feijó • Crime praticado contra indígena – compe-
tência da Justiça Federal – dever de proteção
• O Direito de Consulta aos Povos Indígenas à atribuído à União.......................................3378, 71
Luz da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais......9
• Demarcação de terra indígena – ato formal –
Mateus de Oliveira Fornasier e reconhecimento do direito preexistente .....3379, 71
Thiago dos Santos da Silva • Proclamação constitucional da invalidade de
• Pluralismo Jurídico e Integração: Ordens Indí- títulos dominiais existentes sobre áreas qualifi-
genas na América Latina e Neoconstituciona- cadas como terras indígenas.......................3380, 71
lismo....................................................................33 • Raposa Serra do Sol – procedimento de demar-
cação de terras indígenas............................3381, 72
Thiago dos Santos da Silva e
• Reconhecimento de terra indígena – marco
Mateus de Oliveira Fornasier
temporal – Constituição/1988 – inviabilida-
• Pluralismo Jurídico e Integração: Ordens Indí- de de reconhecimento de ocupação em data
genas na América Latina e Neoconstituciona- remota........................................................3382, 76
lismo....................................................................33
• Reserva de vagas em universidades – critério ét-
nico-racial – constitucionalidade ...............3383, 76
• Tutela do direito à vida de indígenas – tutela
Acórdão na Íntegra idêntica à dos demais brasileiros – proteção
constitucional à cultura indígena................3384, 77
Assunto
• Violação ao direito de locomoção – indígena
intimado para prestar depoimento, como teste-
Âmbito de Proteção do Direito Indígena
munha, fora de seu habitat.........................3385, 77
• I – Habeas corpus: cabimento, em caráter pre-
ventivo, quando se questiona da legitimidade da
intimação para depor em comissões parlamenta-
res de inquérito: precedentes (v.g. Plenário, HC
71.193, 06.04.1994, Pertence, DJ 23.03.2001;
Índice Geral
HC 71.261, 11.05.1994, Pertence, RTJ 160/521;
HC 71.039, 07.04.1994, Brossard, RTJ 169/511). Doutrinas
II – STF: competência originária: habeas corpus
contra ameaça imputada a Senador ou Deputa- Assunto
do Federal (CF, art. 102, I, alíneas i e c), incluída
a que decorra de ato praticado pelo congressista Ativismo judicial
na qualidade de Presidente de Comissão Parla-
mentar de Inquérito: precedentes. III – Comissão • O Ativismo Judicial Contemporâneo no Supre-
Parlamentar de Inquérito: conforme o art. 58, mo Tribunal Federal e nas Cortes Estrangeiras
§ 3º, da Constituição, as comissões parlamen- (Carlos Alexandre de Azevedo Campos)...............78
tares de inquérito, detêm o poder instrutório
das autoridades judiciais – e não maior que o Ordem pública
dessas – de modo que a elas se poderão opor • A Garantia da Ordem Pública Como Fundamen-
os mesmos limites formais e substanciais opo- to da Prisão Preventiva (Bruno Cunha Weyne).....104
245
DPU Nº 70 – Jul-Ago/2016 – ÍNDICE ALFABÉTICO E REMISSIVO..................................................................................................................
Carlos Alexandre de Azevedo Campos • Bem público – box de feira municipal – mu-
dança de local – reforma de prédio – interesse
• O Ativismo Judicial Contemporâneo no Supre- público – prevalência...............................3393, 163
mo Tribunal Federal e nas Cortes Estrangeiras......78
Contrato administrativo
Acórdãos na Íntegra • Contrato administrativo – revisão – aumento de
tributos – desequilíbrio econômico – compro-
Assunto vação – ausência......................................3394, 163
Direito autoral
Penal/Processo Penal
• Direito autoral – programa televisivo – inexis-
Contrabando tência de plágio........................................3421, 185
RESENHA LEGISLATIVA