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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA

PRÓ-REITORIA DE ENSINO E GRADUAÇÃO


CENTRO DE EDUCAÇÃO - CEDUC
CURSO DE PSICOLOGIA

ALINE CÂNDIDA DA SILVA

ACESSO DE MULHERES TRANS AOS SERVIÇOS DE SAÚDE: O


OLHAR DE PROFISSIONAIS DE UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE

BOA VISTA, RR
2016
ALINE CÂNDIDA DA SILVA

ACESSO DE MULHERES TRANS AOS SERVIÇOS DE SAÚDE: O


OLHAR DE PROFISSIONAIS DE UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como pré-


requisito para conclusão do Curso de Bacharelado em Psicologia
da Universidade Federal de Roraima.

Orientadora: Prof. Dra. Eliane Silvia Costa

BOA VISTA, RR
2016
ALINE CÂNDIDA DA SILVA

ACESSO DE MULHERES TRANS AOS SERVIÇOS DE SAÚDE: O


OLHAR DE PROFISSIONAIS DE UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como pré-


requisito para conclusão do Curso de Bacharelado em Psicologia
da Universidade Federal de Roraima.

Banca Examinadora:

______________________________________________
Prof. Dra. Eliane Silvia Costa
(UFRR, Orientadora)

______________________________________________
Prof. Me. Lázaro Batista da Fonseca
(UFRR, Membro Interno)

______________________________________________
Prof. Me. Andrea Freitas de Vasconcelos
(UFRR, Membro Interno)
AGRADECIMENTOS

Primeiramente queria agradecer à mulher que mais admiro nessa vida, a quem devo a
maior parte do caminho trilhado até aqui, Dona Neide, minha mãe, amiga e companheira.
Coração enorme, mulher forte! Esse último ano não foi nada fácil para nós, mas agora, mais do
que nunca, sei o quanto podemos contar uma com a outra. Obrigada por me dar a mão e não ter
me deixado desistir.
Queria agradecer também ao meu pai, José Cândido, que sempre me ajudou para que eu
pudesse chegar até aqui. Mais que isso, ultimamente tem me ensinado, mesmo sem saber, que
nem sempre a vida será fácil, mas que é preciso ter paciência, força e coragem para seguir em
frente, além de ter ao nosso lado pessoas que amamos para nos orientar nessa caminhada.
Obrigada!
Ao meu namorado, amigo e parceiro, Elton Fernandes, por estar sempre ao meu lado e
acreditar em mim. Esteve comigo por quase todo o percurso, seu apoio foi fundamental.
Obrigada pela paciência, pelos sorrisos, abraços, pela ajuda e compreensão nos momentos
difíceis. Sei que posso contar com você e isso acalma meu coração. Ter te encontrado encheu
minha vida de alegrias.
À minha orientadora, Eliane Silvia Costa, por ter aceitado me orientar, pelas
contribuições na construção desse trabalho e por ser minha supervisora de estágio. A sua
presença nesse último ano de graduação foi fundamental na minha formação. Obrigada!
Ao professor Lázaro Batista, por ter aceitado participar da minha banca de qualificação
e pelas suas contribuições. Conhecer você me fez ter um outro olhar da psicologia e eu agradeço
muito por isso! Das coisas que levarei comigo desses anos na graduação, sua amizade será uma
delas. Obrigada!
À professora Andrea Freitas de Vasconcelos por ter gentilmente aceitado participar da
banca de defesa.
Aos demais professores do curso de psicologia, os que estão e os que já passaram pelo
curso.
Gostaria de agradecer também aos meus amigos da vida: Diego Loureto, Náiades Lima,
Naoma Melville e Thainara Brito. Com certeza ao lado de vocês essa caminhada foi mais
prazerosa.
Ao Diego por ser sempre companheiro e amigo, pelos momentos de descontração (que
foram vários!), pelas risadas, pelo apoio e incentivo. Você é especial para mim, saiba disso.
À Náiades que me ensinou muito durante esses cinco anos e meio, além do apoio que
sempre me deu. Mesmo contra sua vontade, hoje somos um grupo e você ama isso que eu sei
(risos). Te admiro pela mulher que és.
À Naoma Melville que esteve ao meu lado em um dos momentos mais difíceis para
mim. Acredito que nem mesmo você imagina o quanto foi essencial e me ajudou a ser forte. Te
levarei sempre comigo. Obrigada!
À Thainara Brito, minha irmã gêmea fusionada, que há dez anos é um dos suportes que
tenho na vida. Tenho certeza que essa ligação vem de outras encarnações. Obrigada por estar
ao meu lado, me entender, me incentivar. Obrigada pelos abraços que confortam, pela parceria.
À Rebeca Martins pela amizade e pelos abraços apertados.
À Brenda Vieira, que me ajudou na condução do grupo e que dividiu comigo nesse
último ano os medos e incertezas do campo. Obrigada!
À Marina Luiza, Aline Baú, Hannah Maia, Juliene Dias, Tamiris Rayani e Jaidan Sales
pelas risadas e conversas nos corredores e por tornarem minha passagem pelo Ceduc mais
agradável.
Às três moças que admiro muito, Luanna Rios, Franceane Andrade e Márcia Justino. A
história de cada uma é inspiração para mim. Três mulheres fortes, guerreiras e com um futuro
brilhante. Obrigada, meninas! Foi muito bom conhecê-las.
Aos participantes da pesquisa que se dispuseram, em meio a uma rotina intensa de
trabalho, a participar deste trabalho e por terem sido prestativos comigo durante todo o processo
e terem me recebido tão bem. Obrigada!
Por fim, aos colegas da turma 2011.1! Que tenhamos compromisso ético-político com
a nossa profissão. Boa sorte à todos.
“É preciso força pra sonhar e
perceber que a estrada vai além do
que se vê” (Los Hermanos)
RESUMO

Esta pesquisa objetivou compreender como ocorre o acesso de mulheres trans em uma Unidade
Básica de Saúde de Boa Vista a partir da perspectiva de profissionais da Atenção Básica. Para
tanto, foram realizadas entrevistas em grupo e individuais, tendo como base as contribuições
teóricas de Enrique Pichon-Rivière. Participaram da pesquisa cinco profissionais de uma
Unidade Básica de Saúde do município de Boa Vista. A análise dos resultados possibilitou
observar que os profissionais mantêm uma postura de respeito com as mulheres transexuais e
travestis, no entanto, possuem um olhar estereotipado sobre esses dois grupos identitários.
Notou-se também a ausência de discussões teóricas para além do saber biomédico, que
considerem aspectos mais psíquicos, culturais e sócio-políticos, o que acaba limitando as
práticas desses profissionais. Além disso, há uma lacuna entre o que foi pensado enquanto
política para a população trans e o que ocorre em termos práticos nas unidades. Como
conclusões e apontamentos da pesquisa, destacamos que a formação e o compromisso ético-
político por parte da equipe com esses grupos minoritários torna-se essencial para que essa
população tenha o direito à saúde garantido. Contudo, não pode-se deixar de considerar os
obstáculos enfrentados por esses profissionais, uma vez que o serviço de saúde em que
trabalham possui uma demanda expressiva comparada ao número de profissionais.

Palavras-chave: Transexualidade. Travestilidade. Atenção Básica. Profissionais de Saúde.


ABSTRACT

This research aimed at understanding how is the Trans women access in Boa Vista’s Basic
Health Unit from the primary care professionals perspective. To this end, in group and
individual interviews were conducted, based on the theoretical contributions of Enrique Pichon-
Rivière. Five professionals of a Basic Health Unit from the city of Boa Vista were the
participants. The results made it possible to observe that professionals maintained an attitude
of respect for transsexual women and transvesties; however, they have a stereotypical look at
these two identity groups. It has also been noted that the absence of theoretical discussions
beyond the biomedical knowledge, the psychological, cultural and socio-political aspects are
considered, which ends up limiting the practices of these professionals. In addition, there is a
gap between what was thought as a policy for the trans population and what happens in practice
in the units. As a conclusion and observation of the research, we emphasize that the training
and the political ethic commitment by the team with these minority groups has made it essential
for this population to have the right to health care guaranteed. However, one cannot ignore the
obstacles faced by these professionals, since the health service in which they work has a
significant demand compared to the number of professionals.

Key Words: Transsexuality. Travestite. Primary Care. Health Professionals.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACS Agente Comunitário de Saúde


APA Associação Americana de Psiquiatria
CID Código Internacional de Doenças
CFP Conselho Federal de Psicologia
DSM Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
PSF Programa Saúde da Família
SOC State of Care
SUS Sistema Único de Saúde
UBS Unidade Básica de Saúde
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1. MARCO TEÓRICO ........................................................................................................... 15
1.1. Considerações sobre identidade de gênero e experiência trans .................................................. 15
1.2. Atenção à saúde no Brasil: alguns apontamentos ...................................................................... 20
1.2.1. A criação do SUS e os princípios de universalidade, equidade e integralidade .................. 23
1.2.2. Atenção primária ................................................................................................................. 29
1. 3. Políticas de saúde para mulheres trans no Brasil: avanços e desafios ....................................... 32
2. FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA ..................................................................... 37
2.1. Sobre o método .......................................................................................................................... 37
2.2. Procedimento.............................................................................................................................. 39
3. INTERAÇÃO NO CAMPO DA PESQUISA ................................................................... 41
3.1. Primeira visita – Conhecendo a Unidade Básica de Saúde ....................................................... 41
3.2. Segunda visita – Conversa com os profissionais........................................................................ 41
3.3. Entrevistas .................................................................................................................................. 42
4. ANÁLISE E DISCUSSÃO ................................................................................................. 45
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 57
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 59
APÊNDICES ........................................................................................................................... 63
INTRODUÇÃO

Historicamente, tem sido observado o quanto a população trans (transexual e travesti) é


estigmatizada, marginalizada e perseguida devido à crença ideológica de que é “natural” que o
indivíduo se identifique com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento. No Brasil, homens
e mulheres trans são incluídos de forma excludente na sociedade e, diariamente, têm seus
direitos fundamentais violados, embora eles sejam garantidos constitucionalmente, dentre eles
o direito à saúde (JESUS, 2012).
Antes de prosseguir, é necessário esclarecer que, comumente, a expressão “população
trans” é utilizada como um termo guarda-chuva, que abarca tanto as travestis quanto as/os
transexuais. Nesta pesquisa, optou-se por discutir o acesso à saúde de travestis e mulheres
transexuais, sendo utilizado o termo “mulheres trans” para se referir a esses dois grupos
identitários.
Conforme Jaqueline Jesus (2012, p. 17), a acepção travesti corresponde às “pessoas que
vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou como
mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um não-gênero”. Já o termo
transexual se refere àquelas pessoas que não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído
ao nascer (e, por ampliação, com o seu sexo de nascimento), sendo a mulher transexual toda
pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher, independentemente de ter
feito ou não cirurgia de mudança de sexo. Nesse sentido, gênero é entendido como uma
construção social e não biológica, ou seja, não são os órgãos genitais que irão definir se uma
pessoa é, do ponto de vista identitário, homem ou mulher e sim a sua autopercepção e a forma
como se expressa socialmente (JESUS, 2012).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, reconhece a saúde como
um direito de todo cidadão e dever do Estado (BRASIL, 1988). Além disso, estabelece a criação
do Sistema Único de Saúde (SUS), que representa o modelo público de ações e serviços de
saúde no Brasil (NORONHA; LIMA; MACHADO, 2013). No entanto, como aponta Camila
Guaranha (2013), embora a saúde seja garantida constitucionalmente como um direito de todos,
é possível observar nos serviços de saúde situações de “discriminação e preconceito1 com

1
Preconceito consiste na “valoração negativa que se atribui às características da alteridade. Implica a
negação do outro diferente e, no mesmo movimento, a afirmação da própria identidade como superior/dominante.
11
relação a diferentes marcadores sociais, caracterizando um acesso desigual ao sistema de
saúde.” (p. 2).
Segundo o “Painel de Indicadores do SUS – Prevenção de violências e cultura de paz”,
elaborado pelo Ministério da Saúde, a identidade de gênero constitui um dos principais fatores
determinantes de situações de vulnerabilidade, uma vez que o preconceito, os processos
discriminatórios, a intolerância e a exclusão social relacionados à diversidade sexual e de
gênero, violam os direitos humanos, entre eles o direito à saúde (BRASIL, 2008). Ademais,
segundo dados apresentados pelo Ministério da Saúde, 14,5% dos participantes de um estudo
feito em 2007 na Parada Gay de São Paulo relataram já ter sofrido algum tipo de discriminação
nos serviços da rede de saúde (BRASIL, 2008).
Diante dessa realidade, várias ações vêm sendo implementadas pelo governo federal nos
últimos anos com o intuito de colaborar para que os direitos da população LGBT sejam
garantidos de maneira efetiva. Dentre as ações, encontram-se:
(a) o programa “Brasil Sem Homofobia - Programa de Combate à Violência e à Discriminação
contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual”, lançado em 2004, com objetivo de
“promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis, transgêneros e bissexuais, a partir da
equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação homofóbicas, respeitando a
especificidade de cada um desses grupos populacionais.” (BRASIL, 2004, p. 11);
(b) a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, aprovada em 2009, que reitera o direito a um
atendimento mais humanizado e livre de discriminação por orientação sexual e identidade de
gênero e garante o uso do nome social para travestis e transexuais no âmbito do SUS (BRASIL,
2011);
(c) a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
- LGBT, instituída em 2011, tem como marca o reconhecimento dos efeitos da discriminação e
do preconceito no processo de saúde-doença dessa população (BRASIL, 2013).
Os problemas enfrentados pela população LGBT relacionados ao acesso a serviços de
saúde são ainda mais graves nos casos de travestis e transexuais, não só por reivindicarem

Mas isso indica que o preconceito é possível onde existe uma relação social hierárquica, onde existem comando e
subordinação e racionalização do outro” (BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 138). O preconceito envolve, pois,
desigualdade política, bem como julgamento, afeto (medo, ódio, raiva etc) e percepção estereotipada negativa
(CROCHÍK, 1996). Estereótipos são generalizações – positivas ou negativas – socialmente construídas. São fruto
de uma percepção social falsa, referem-se à submissão ao poder, a um estreitamento do campo mental, a uma
adoção acrítica de normas e valores; portanto, são o avesso do conhecimento (BOSI, 2003). Levam à fixação de
características a todos os indivíduos de um mesmo grupo, como se um sujeito representasse todo o coletivo ao
qual estaria vinculado. Consistem, portanto, em uma espécie de rótulo/carimbo dirigido a essas pessoas e a seus
grupos sociais (BRASIL, 2006). Discriminação é ato, é ação ou omissão violadora do direito de pessoas com base
em critérios injustificados e injustos (BRASIL, 2006).
12
atendimento especializado para demandas específicas, como, por exemplo, alterações
corporais, mas também pela intensidade da transfobia que costuma recair sobre estes dois
grupos identitários (MELLO et al., 2011). Ailton Santos (2013), ao discutir acerca do acesso e
acolhimento de travestis e mulheres transexuais na área da saúde, afirma que, apesar da
existência de dispositivos legais que reconhecem o direito à saúde dessa população, ainda
ocorrem situações de preconceito e discriminação dentro das unidades de saúde, o que contribui
para a evasão dessas pessoas de serviços dessa natureza.
Assim, tendo em vista que o acesso de pessoas trans aos serviços de saúde geralmente
ocorre de maneira discriminativa, provocando muitas vezes o afastamento dessas pessoas das
unidades de saúde, pergunta-se: profissionais de saúde de Boa Vista que atuam na Atenção
Básica têm conhecimento de marcos jurídico-políticos voltados para o atendimento de mulheres
trans? Estão preocupados com essa temática? Discutem-na no cotidiano do trabalho? Se sim,
em quais espaços, de que forma e como se sentem ao atender essas pessoas? Enfim, essas
indagações podem ser resumidas na seguinte: estão preparados (ou preparando-se) para, do
ponto de vista jurídico, teórico, técnico e subjetivo, lidar com mulheres trans, as quais vão
contra as normas de gênero pré-estabelecidas socialmente?
Para responder a essas questões, a presente pesquisa teve como objetivo compreender
como ocorre o acesso de mulheres trans em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Boa Vista
a partir da perspectiva de profissionais, considerando: (a) o conhecimento dos profissionais
acerca de políticas/normas/portarias que regulamentam o atendimento de mulheres trans
(âmbito político-jurídico); (b) as concepções de sexo e gênero que direcionam as práticas desses
profissionais (âmbito teórico-conceitual); (c) como ocorre o acolhimento-atendimento de
mulheres trans na UBS (âmbito técnico-assistencial); (d) a dinâmica da relação usuário -
profissional de saúde (âmbito intersubjetivo).
Os âmbitos político-jurídico, teórico-conceitual e técnico-assistencial serão utilizados a
partir das contribuições de Ianni Scarcelli (2011). Conforme a autora, tais âmbitos auxiliam na
compreensão das políticas públicas e práticas delas derivadas. O âmbito jurídico-político é
entendido como as diretrizes políticas e seus aspectos legais; o âmbito técnico-assistencial
refere-se às práticas que derivam de tais diretrizes e o âmbito teórico-conceitual corresponde
aos fundamentos de práticas e diretrizes. Acrescentamos o âmbito intersubjetivo por
considerarmos importante compreender a dimensão subjetiva existente na relação entre usuário
e profissional de saúde.

13
A escolha deste tema justifica-se pela importância em se discutir junto aos profissionais
de saúde sobre o atendimento oferecido às mulheres trans. A necessidade de sensibilização de
profissionais da saúde para que ofereçam um atendimento à população trans (e, por extensão à
população LGBT) livre de preconceito e discriminação ainda é um dos temas mais recorrentes
nos planos, programas e demais documentos que apresentam diretrizes, objetivos e metas para
as políticas públicas de saúde formuladas para esta população (MELLO et al., 2011).
A partir desta pesquisa, pretende-se contribuir com as discussões acerca do acesso de
mulheres trans à saúde pública, sobretudo no nível da atenção básica, bem como fomentar
discussões, junto aos profissionais de saúde, que permitam a eles refletir sobre como deve
ocorrer o atendimento a essas mulheres, respeitando sua identidade de gênero e suas demandas
de saúde, e como algumas atitudes negativas interferem significativamente na saúde desta
população. Às mulheres trans, pretende-se que os resultados contribuam para que sejam
respeitadas de acordo com a sua identidade de gênero dentro das unidades de saúde e que
tenham o acesso integral à saúde, como estabelecido em lei.
Para nortear a compreensão do tema supracitado, o primeiro capítulo desta pesquisa,
referente à fundamentação teórica, foi subdivida em três partes. São elas:
Primeiro subcapítulo - Considerações sobre identidade de gênero e experiência trans –
no qual será apresentada a noção de gênero como construção social, a partir de contribuições
de Joan Scott, Berenice Bento e Guacira Louro, além de alguns apontamentos acerca da
trasexualidade e travestilidade. No segundo tópico - Atenção à saúde o Brasil: alguns
apontamentos – serão expostos alguns aspectos histórico-políticos do surgimento do SUS, seus
princípios doutrinários e a forma como se organiza, bem como algumas considerações acerca
da Atenção Básica. No terceiro subcapítulo - Políticas de saúde para mulheres trans no Brasil:
avanços e desafios – são elencadas algumas ações do Ministério da Saúde para a população
trans, bem como os desafios existentes para que essas ações sejam efetivadas.
Por conseguinte, no capítulo 2, são apresentadas algumas considerações acerca do
método de análise utilizado. No capítulo 3 será apresentado a maneira como ocorreu a interação
no campo da pesquisa, as primeiras visitas e entrevistas, e, por fim, no capítulo 4 há a análise e
discussão dos dados. Nas considerações finais será feita uma apreciação geral acerca das
conclusões e apontamentos a que se chegaram a partir da pesquisa.

14
1. MARCO TEÓRICO

1.1. Considerações sobre identidade de gênero e experiência trans

A sexualidade ainda é considerada por muitos como algo que homens e mulheres
possuem naturalmente. Tal concepção frequentemente se ancora no corpo e na ideia de que
todos vivenciam seus corpos da mesma maneira, por exemplo, se a pessoa nasce com vagina,
supõe-se que se identificará como mulher e que se relacionará com homens. No entanto, não há
nada de “natural” no que se refere à sexualidade e ao corpo. É por meio de processos culturais
que os corpos e a sexualidade ganham sentido (LOURO, 2001).
Conforme Guacira Louro (2001), a inscrição dos gêneros nos corpos é feita de acordo
com a cultura em que estes estão inseridos. Da mesma forma ocorre com as possibilidades da
sexualidade, que são estabelecidas e codificadas socialmente. Segundo a autora, “as identidades
de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas
pelas redes de poder de uma sociedade” (LOURO, 2001, p. 11).
De acordo com Berenice Bento (2008), o sistema binário (masculino versus feminino)
produz e reproduz a ideia de que o gênero reflete o sexo e que todas as outras esferas
constitutivas dos sujeitos estão vinculadas a essa determinação inicial em que se afirma que é a
natureza que constrói a sexualidade e posiciona os corpos.
Até o século XVIII, os corpos masculinos e femininos eram hierarquizados, no entanto,
ordenados em um único sexo. Naquela ocasião, esse modelo hierárquico, mas de sexo único,
interpretava o corpo da mulher como uma versão inferior do corpo do homem, o primeiro era
tido, em certo sentido, como o negativo do segundo. Tratava-se, assim, de um olhar isomorfo
(BENTO, 2008).
No isomorfismo, “o útero era o escroto feminino; os ovários, os testículos; a vulva, um
prepúcio e a vagina, um pênis invertido. A mulher era fisiologicamente um homem invertido
que carregava dentro de si tudo que o homem trazia exposto” (BENTO, 2008, p. 26). O corpo,
nessa perspectiva, era representado por continuidade e a diferença entre o homem e a mulher
seria a intensidade do calor corporal, pois, diferentemente do homem, a mulher não teria tanto
calor e, devido à sua frieza, não conseguia expulsar para fora o que estaria preso em seu interior.
O corpo do homem representava o máximo da perfeição, enquanto que o corpo feminino era
considerado menos desenvolvido (LAQUEUR, 2001 apud BENTO, 2008).

15
No século XIX, o esgotamento deste modelo nos debates políticos e médicos, levou à
sua substituição por um modelo que enfatizava a diferenciação radical entre corpos-sexuados
(WEEKS, 2001). Nesse período, os corpos não apenas justificavam as diferenças
hierarquizadas entre o feminino e masculino, mas tais diferenças serviam de base para o
julgamento das condutas dos homens e das mulheres. Nessa concepção, homem e mulher
possuíam diferenças significativas e o único encontro possível seria no ato sexual (BENTO,
2008). Para Berenice Bento:
Pelo dimorfismo, a organização social deveria ser ditada e orientada pela natureza. Nada
se poderia fazer contra o império da natureza a não ser render-se a ela. A oposição
binária que constitui o dimorfismo dos gêneros reduz todos os níveis da vida do sujeito.
A sexualidade, as performances de gênero, a subjetividade, a identidade de gênero
constituem campos marcados pela diferença sexual. Nessa lógica dicotômica, não é
possível fazer deslocamentos. O masculino e o feminino só conseguem encontrar
inteligibilidade quando referenciados à diferença sexual (BENTO, 2008, p. 31)

Com a perspectiva do dimorfismo, houve uma reformulação das relações de gênero,


pois sugeria a diferença absoluta de homens e mulheres. Seus corpos não eram mais concebidos
como parcialmente diferentes e sim como dois corpos singulares e antagônicos: o masculino e
o feminino (WEEKS, 2001).
Segundo Louro (2003), essa distinção sexual entre homens e mulheres serve para
compreender e justificar a desigualdade social entre os gêneros, a qual, como se sabe, já existia
antes dos séculos XVIII/XIX, todavia, desde então, ela passou a ter um importante aliado: o
discurso médico, tido como propagador da verdade.
A autora, nessa mesma obra, pontua que é necessário se opor a esse tipo de
argumentação que sustenta desigualdades. Tal como mencionou, o que vai constituir o que é
feminino ou masculino em determinada sociedade e em um dado momento histórico não são as
características sexuais em si, mas a maneira como essas características são representadas ou
valorizadas. Ou seja, para compreendermos o lugar e as relações de homens e mulheres é
necessário observar o que socialmente se construiu sobre os sexos. Para Louro (2003, p. 21),
“o debate vai se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um
conceito fundamental”.
Joan Scott (1995), ao discutir gênero, afirma que este conceito está ligado diretamente
com a história do movimento feminista contemporâneo. Foi a partir do movimento das
feministas norte-americanas que o conceito gênero passou a ser usado como distinto do de sexo,
uma vez que elas insistiam no caráter fundamentalmente social das diferenciações baseadas no
sexo. Isto é, afirmavam que o gênero é histórica, social e culturalmente construído e
independente do sexo biológico.
16
De acordo com Louro (2003), ao enfatizar o caráter social do gênero não há a pretensão
de negar que ele se constitui sobre corpos sexuados, mas sim ressaltar a construção social e
histórica produzida sobre as características biológicas. A autora também pontua que a
característica social do conceito de gênero não deve se referir apenas à construção de papéis
femininos e masculinos, mas deve ser entendida como componente da identidade dos sujeitos.
Em suas palavras:
Ao afirmar que o gênero institui a identidade do sujeito (assim como a etnia, a classe,
ou a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir, portanto, a algo que transcende o
mero desempenho de papéis, a ideia é perceber o gênero fazendo parte do sujeito,
constituindo-o (LOURO, 2003, p. 25).

Nesse sentido, a vivência de um gênero discordante com o que se esperaria de alguém


de um determinado sexo, como no caso das pessoas travestis e transexuais, é uma questão de
identidade e não um transtorno (JESUS, 2012). Nessa mesma perspectiva, segundo Bento
(2008, p. 69), a transexualidade e a travestilidade correspondem a “construções identitárias que
se localizam no campo do gênero e representam respostas aos conflitos gerados por uma ordem
dicotomizada e naturalizada para os gêneros”. Tais identidades de gênero quebram com a
causalidade sexo/gênero/sexualidade e revelam os limites de um sistema binário fundamentado
no corpo-sexuado (BENTO, 2008).
Aqui, é necessário ressaltar que identidade de gênero não se refere à orientação sexual,
pois esta última consiste na atração afetivossexual, enquanto identidade de gênero, como já
registrado anteriormente, diz respeito a formas de se identificar como homem, transexual,
mulher etc. No tocante à orientação sexual, a pessoa pode ser (ou estar) heterossexual,
bissexual, homossexual, assexual etc. Uma dimensão não depende da outra, assim, uma mulher
transexual pode, por exemplo, ter relações sexuais exclusivamente com homens heterossexuais
ou pode ser assexual.
Bento (2008) ressalta que, tradicionalmente, uma diferença apontada entre a
transexualidade e a travestilidade consistia na realização da cirurgia, pois, acreditava-se que a
reivindicação de mudança de gênero era vinculada à cirurgia de redesignação sexual no caso
das pessoas transexuais. No entanto, essa ideia começou a ser relativizada pelas/os transexuais
que reivindicavam a mudança de gênero, mas não a condicionavam à cirurgia.
Ainda em relação a algumas passagens históricas e delas associadas ao debate
acadêmico, cumpre salientar que, desde o século XX, a medicina e ciências psi (psiquiatria,
psicologia e psicanálise) se fazem crer os saberes considerados apropriados e exclusivos para
desvendar os mistérios que levam uma pessoa de um determinado sexo a vindicar o

17
reconhecimento social como membro de outro, estabelecendo o que é considerado normal e
patológico no âmbito das identidades sexuais (BENTO, 2008).
Os primeiros artigos que discutiram a transexualidade como uma categoria distinta
foram publicados na década de 1950, fato que se intensificou nas décadas seguintes. Junto a
isso, foram produzidos indicadores, pelo saber médico, que sugeriam onde deveria ser buscado
o diagnóstico que diferenciaria transexuais de gays, lésbicas e travestis. Em 1966, foi lançado
o livro “O fenômeno transexual”, pelo endocrinologista Harry Benjamin, que forneceu as bases
para o diagnóstico do “verdadeiro transexual”. Tal médico defendia que a cirurgia de
transgenitalização era a única alternativa possível para as pessoas transexuais e que
psicoterapias eram inúteis para “o transexual de verdade”, contrariando, de maneira geral, o
posicionamento dos profissionais da psicologia, psiquiatria e psicanálise, que eram reticentes
às cirurgias como alternativas terapêuticas, consideradas, principalmente por psicanalistas,
como mutilações (BENTO, 2008).
No ano de 1969, foi realizado o primeiro congresso da Associação Harry Benjamin que,
em 1977, passou a se chamar Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association.
Essa associação legitimou-se como uma das responsáveis pela normatização do “tratamento”
para pessoas transexuais, publicando as Normas de Tratamento (State of Care ou SOC).
Conforme Bento (2008), além desse manual, outros dois documentos são reconhecidos como
oficiais na orientação do diagnóstico de transexualidade: O Manual de Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (DSM - 4ª. versão), da Associação Americana de Psiquiatria (APA), e
o Código Internacional de Doenças (CID - 10ª. versão), da Organização Mundial da Saúde.
Segundo a autora, a inclusão da transexualidade, em 1980, no CID-10 foi um marco no processo
de patologização.
Nos três documentos supracitados, as pessoas transexuais são vistas como portadoras
de um transtorno, independente das variáveis culturais, sociais e econômicas. No entanto,
existem algumas diferenças entre esses documentos. Conforme Bento (2008):
Para o SOC, “o transexual de verdade” tem como única alternativa para resolver seus
“transtornos” ou “disforias”, as cirurgias de transgenitalização. Já no DSM-IV, a
questão da cirurgia é apenas tangenciada, visto que sua preocupação principal está em
apontar as manifestações do “transtorno” na infância, adolescência e fase adulta. O CID-
10 é o documento mais objetivo: apresenta as características gerais e o código que deve
estar presente em todos os diagnósticos referentes ao “transexualismo” (BENTO, 2008,
p. 98).

Em dezembro de 2012, a APA, na última revisão feita do DSM, deixou de classificar a


transexualidade como “transtorno de identidade de gênero”, substituindo o termo por “disforia

18
de gênero” no DSM-V2. No entanto, embora o termo “disforia” tenha uma maior aceitação por
parte das pessoas transexuais, ele não despatologiza completamente a questão, como é o anseio
dos militantes envolvidos na campanha (ALMEIDA; MURTA, 2013).
Assim como a transexualidade, a travestilidade também é considerada um transtorno
nos manuais médicos. No CID-10 encontra-se dentro de “Transtorno de identidade sexual”
como “travestismo de duplo papel” e no DSM-IV é considerada, dentro do capítulo “transtornos
sexuais e da identidade de gênero”, como “travestismo fetichista”.
Dentro do movimento trans, a despatologização da identidade transexual e travesti
tornou-se uma das principais pautas de reivindicação. Bento (2008, p. 18) ressalta que,
considerar “a pessoa transexual como doente, é aprisioná-la, fixá-la em uma posição existencial
que encontra no próprio indivíduo a fonte explicativa para os seus conflitos”. Anula-se, pois, a
dimensão psicossocial atinente à constituição da identidade de gênero tanto quanto se
responsabiliza a própria pessoa pela situação de vida (e morte) aviltante pela qual
frequentemente passa.
No âmbito exclusivo da Psicologia, um passo importante, nesse sentido, foi a
publicação, em 2013, pelo Conselho Federal de Psicologia da nota técnica sobre o processo
transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans, a qual estabelece que “a
transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não
reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo
biológico/gênero/desejo sexual” (CFP, 2013). Apesar de ser apenas uma nota técnica, é
necessário ressaltar que, historicamente, a psicologia reforçou o discurso médico que considera
as pessoas transexuais e travestis como portadores de uma doença mental. Assim, esta nota
pode ser vista como um avanço no caminho para a despatologização dessas identidades.
Por fim, vale ressaltar que, para além do campo médico-psicológico, e ainda que o saber
(dito) científico tenha sido decisivo para a patologização dessas pessoas, esses corpos que
fogem às normas de gênero vivenciam conflitos, dores e medos e são cotidiana e
persistentemente postos à margem social, sendo considerados como anormais e aberrações da
natureza; ou melhor, são inseridos socialmente de maneira excludente, isso é, inseridos pela
opressão, pelo rebaixamento. Vide, por exemplo, a matéria recentemente publicada na qual o
Brasil se destaca por ser o país que mais procura por transexuais no canal de vídeos pornôs

2
Tal mudança ocorreu devido à crescente campanha realizada pelo ativismo trans internacional
denominada Stop Trans pathologization, que tem como objetivo a retirada da categoria “disforia de gênero” do
DSM, assim como do diagnóstico “transtornos de identidade de gênero” do CID. Desde 2009, a Campanha
convoca, sempre no mês de outubro, um Dia Internacional de Ação pela Despatologização Trans, com
manifestações simultâneas e outras ações em diversas cidades do mundo. Fonte: http://www.stp2012.info/old/pt.
19
redtube e, ao mesmo tempo, é o que mais comete crimes transfóbicos34. Assim sendo, é
possível dizer que há lugar social destinado a essa população, um lugar relacionado aos prazeres
corporais: sexuais e agressivos/mortíferos. A essa população tem sido imprimidas as formas
mais cruéis de assassinato. Não basta matá-la, não basta tirá-la da circulação. Quem comente
tal crime o faz das formas mais odiosas possíveis.
Além disso, no Brasil, é comum notícias de pessoas transexuais e travestis que são
assassinadas sem que tenha qualquer apuração e punição dos culpados. Produz-se, assim, uma
hierarquia das mortes, onde algumas merecem mais atenção do que outras. Nessa taxonomia,
as pessoas trans ocupam a posição mais inferior (BENTO, 2011).

1.2. Atenção à saúde no Brasil: alguns apontamentos

O modelo público de ações e serviços de saúde brasileiro é representado pelo Sistema


Único de Saúde (SUS), instituído em 1990. Inicialmente, antes de pontuar sobre os princípios
doutrinários do SUS e a forma como se organiza, é necessário fazer uma breve menção ao
contexto histórico-político de surgimento deste sistema.
No Brasil, ações de diferentes grupos sociais em prol de uma vida digna, especialmente
no que diz respeito ao âmbito da saúde foram muitas. Trata-se de investimentos de longa data
e que quase sempre significaram reagir a um cenário político opressor. Por exemplo, ao longo
da Primeira República, a população reagiu ao poder autoritário, normalizador, interventor
imposto pelo Estado nascente, que, no campo da saúde, delineou ações fragmentadas, apoiadas
em princípios higienistas e eugênicos, de cunho policialesco. Naquela ocasião, as
arbitrariedades cometidas pelos “guarda-sanitários” – como uso de força para invadir as casas
e aplicar as vacinas, a queima de colchões da população como controle contra epidemias etc. –
levou a população a se rebelar e a organizar aquela que ficou conhecida com uma das primeiras
mobilizações populares do período republicano: a Revolta da Vacina (ESCOREL; TEIXEIRA,
2012).
No final dos anos de 1910, mais precisamente em 1917 e em 1919, outras duas
manifestações populares foram decisivas para a área da saúde pública nascente no Brasil. Dessa
vez, elas foram orquestradas pelo operariado que trabalhava nas indústrias fabris incipientes na

3
A transfobia caracteriza-se pelo preconceito e discriminação em função da identidade de gênero de
pessoas transexuais ou travestis (JESUS, 2012).
4
Fonte: http://super.abril.com.br/comportamento/brasil-e-o-pais-que-mais-procura-por-transexuais-no-
redtube-e-o-que-mais-comete-crimes-transfobicos.
20
nação, notadamente em São Paulo. Eram trabalhos de cunho precário, pautado na exploração e
sem proteção trabalhista. Suas reivindicações almejavam melhorias nas condições de trabalho,
na qualidade de vida. Como fruto dessas mobilizações, políticas de saúde voltadas para a
população trabalhadora foram delineadas. Desde então e até o final do regime civil militar, na
história da implantação de políticas de saúde no Brasil houve um entrecruzamento entre saúde,
trabalho e previdência social. (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012).
Até o processo de redemocratização do país, o sistema de saúde vigente era fragmentado
e dicotomizado: por um lado, havia medidas sanitárias voltadas para a prevenção, por exemplo,
para o saneamento dos portos e para a erradicação das epidemias; por outro, havia serviços
médicos hospitalares destinados a trabalhadores com carteira assinada que ficavam doentes; ou
seja, atendia-se a quem contribuía para a Previdência Social - somente 30 milhões de pessoas
tinham acesso aos serviços hospitalares, aqueles que não dispunham de recursos dependiam da
caridade e da filantropia; além disso, a atenção à saúde caracterizava-se pela centralização e
responsabilização federal sem a participação dos usuários. Ademais, a concepção de saúde era
restrita, entendida tão somente como ausência de doenças (BRASIL, 2011).
Diante dessa situação, diferentes setores mobilizados da sociedade se uniram em prol
da redemocratização do país, isso é, na luta contra a ditadura e, notadamente, em defesa da
saúde pública. Nessa vindicação, a noção de público possuía dois sentidos articulados. São eles:
público como saúde para todos e público como equivalente a serviço regulado, gestado,
implantado pelo Estado e pelo controle social.
Nesse contexto, dois marcos importantes para a efetivação das reivindicações populares
e que deram lastro para a criação do SUS foram:

(a) a Declaração de Alma-Ata: elaborada em 1978 como fruto da Conferência Internacional


sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada na República do Cazaquistão (antiga URSS), na
qual foram fundamentados princípios e nortes como: o direito à saúde e a atenção primária
como porta de entrada do sistema de saúde;

(b) a VIII Conferência Nacional de Saúde, considerada um marco do movimento da reforma


sanitária, contou com intensa participação social e foi realizada em Brasília no ano de 1986. Ela
legitimou aqui, no Brasil, os principais encaminhamentos feitos em Alma-Ata e consagrou uma
concepção ampliada de saúde e o princípio da saúde como direito universal e como dever do
Estado: princípios que foram incorporados na Constituição de 1988.

21
Logo, o SUS nasceu da mobilização social. Não é, portanto, obra de um governo ou do
autor de uma lei, mas uma construção coletiva que envolveu e continua envolvendo muitos
atores sociais, desde profissionais da área da saúde, representantes de bairro, professores
universitários, estudantes, usuários de serviços de saúde, dentre outros.
Com a promulgação da Constituição Federal (BRASIL, 1988), foi estabelecida uma
seção sobre a saúde tendo como base as propostas da VIII Conferência Nacional de Saúde. Três
aspectos dessa seção merecem destaque: a incorporação de um conceito mais abrangente de
saúde, levando em consideração seus fatores determinantes e condicionantes, como o meio
físico, socioeconômico, cultural, dentre outros; o reconhecimento da saúde como um direito de
todo cidadão e dever do Estado e o estabelecimento da criação do SUS (BRASIL, 1990b).
Pela primeira vez na história das constituições do Brasil, a saúde passou a ser
considerada um direito de todos, sendo dever do Estado garantir que cada pessoa tenha acesso
a ela.
Conforme Jairnilson Paim (2009), a conquista de direitos pela humanidade é resultado
de um longo processo de lutas. Os primeiros direitos conquistados referem-se aos chamados
direitos de primeira geração, que correspondem aos direitos civis (respeito à liberdade de
religião, de opinião, de imprensa, de ir e vir) e aos direitos políticos (direito à reunião, à
manifestação, à participação no exercício do poder político, direito ao voto), alcançados pelos
países europeus nos séculos XVIII e XIX.
No século XX, como fruto de diferentes mobilizações sociais, emergiram os direitos de
segunda geração, correspondente aos direitos sociais (trabalho, educação, saúde etc.). Do século
XX para o XXI, a consciência ecológica configurou os direitos de terceira geração e,
atualmente, são discutidos os direitos de quarta geração, que referem-se à qualidade de vida e
a biodiversidade. O autor assinala que todos os direitos supracitados dizem respeito à saúde
(PAIM, 2009).
Para o autor, o direito à saúde deve ser entendido como o direito ao estado vital saudável
e como direito às ações e serviços de saúde. Ou seja, para que o sujeito tenha o seu direito à
saúde garantido, ele deve ter acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, bem como ter
um bom estado de saúde decorrente de um modo de vida saudável.
O autor ainda destaca que é preciso exercer jurídica, política e praticamente o direito à
saúde. Não basta a criação de normas, é necessário compromisso político e administrativo e os
meios para garantir o direito à saúde. Para além disso, ressaltou que “a luta pelo direito à saúde
passa, necessariamente, pela reorientação das políticas públicas econômicas e sociais que

22
favoreçam a redução das desigualdades, a cidadania plena, a qualidade de vida e a democracia”
(PAIM, 2009, p. 120).

1.2.1. A criação do SUS e os princípios de universalidade, equidade e integralidade

Foi no início de 1990, após a regulamentação da Lei Orgânica de Saúde nº 8.080/90,


complementada pela lei nº 8.142/90, que o SUS começou a ser implementado (NORONHA;
LIMA; MACHADO, 2013). Em sua definição, o SUS é considerado “o conjunto de ações e
serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais,
da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público” (BRASIL,
1990a). Ademais, conforme o Art. 5º da referida lei, o SUS tem como objetivo: identificar e
divulgar os fatores condicionantes e determinantes da saúde; formular as políticas de saúde
destinadas a promover, nos campos econômico e social, diminuição do risco de doenças e
agravos; e prestar assistência às pessoas através de ações de promoção, proteção e recuperação
da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas
(BRASIL, 1990a).
Tendo como base os preceitos constitucionais, o SUS é pautado em três princípios
doutrinários norteadores, a saber: universalidade, equidade e integralidade.
O princípio da universalidade consiste no acesso universal a todos os serviços públicos
de saúde, assim como àqueles contratados pelo poder público. A saúde é direito de cidadania e
dever do poder público nas suas três instâncias: municipal, estadual e federal (BRASIL, 1990b).
Carmem Teixeira (2011) afirma que, para o SUS ser um sistema universal, é necessário
que ocorra um processo de extensão de cobertura dos serviços para que se tornem acessíveis a
toda a população. Para tanto, é preciso que se eliminem barreiras jurídicas, econômicas,
culturais e sociais existentes entre a população e os serviços de saúde.
Conforme a autora sinalizou, a barreira jurídica foi eliminada com a promulgação da
Constituição Federal de 88, quando o direito à saúde passou a ser entendido como um direito
de todos, acabando com o sistema fragmentado e dicotomizado que atendia apenas a quem
contribuía com a Previdência Social, como mencionado anteriormente. No entanto, para que a
universalidade seja plena, é necessária a superação das barreiras econômicas, sociais e culturais
ainda existentes entre os usuários e os serviços de saúde.
No que concerne à barreira econômica, a autora ressalta que, mesmo que a população
não tenha que pagar diretamente pelos serviços, uma enorme parcela da população pobre, que
vive em lugares com baixo grau de desenvolvimento econômico, não possui condições mínimas
23
de acesso aos serviços, como, por exemplo, não possuem condições de pagar o transporte para
chegar até a uma unidade de saúde. Além disso, outro aspecto de cunho econômico consiste
nos recursos financeiros que o Estado precisa dispor para investir na ampliação da infraestrutura
do sistema, por exemplo, na construção e reforma de unidades de saúde, na compra de
equipamentos e insumos, na contratação e pagamento de pessoal qualificado etc. Ou seja, para
garantir a universalidade do acesso, é necessário a garantia do financiamento do sistema, sendo
esse um dos desafios do SUS (TEIXEIRA, 2011).
Já do ponto de vista sociocultural, a principal barreira consiste na da comunicação entre
os prestadores de serviços e os usuários. Grande parte da população não dispõe de condições
educacionais e culturais que facilitem o diálogo com os profissionais de saúde5, o que muitas
vezes acaba refletindo na dificuldade do usuário em entender o que é necessário para se tornar
ativo no processo de prevenção de riscos e recuperação da sua saúde. A autora afirma que a
superação dessa barreira é um dos maiores desafios a serem enfrentados na perspectiva da
universalização do acesso não só aos serviços, mas também do acesso à informação necessária
para o envolvimento das pessoas no processo de promoção e recuperação da saúde individual
e coletiva (TEIXEIRA, 2011).
O princípio da equidade, por sua vez, consiste em garantir a todas as pessoas o acesso
às ações e serviços de saúde sem preconceitos ou privilégios e de acordo com as suas
necessidades (BRASIL, 1990b).
Teixeira (2011), ao discutir sobre equidade, afirma que este princípio refere-se à
necessidade de se “tratar desigualmente os desiguais” de forma a alcançar a igualdade de
oportunidades de sobrevivência e desenvolvimento pessoal e social entre os integrantes de uma
sociedade. Desta forma, a noção de equidade implica no reconhecimento da desigualdade entre
as pessoas e os grupos sociais, além do reconhecimento de que as desigualdades são injustas e
precisam ser superadas. Segundo a autora, na área da saúde as desigualdades sociais se
apresentam como desigualdades diante do adoecer e morrer, assim, é necessário o
reconhecimento dessas desigualdades e da possibilidade de sua redução para que se possa
garantir condições de vida e saúde mais igualitárias.
Além disso, a autora afirma que o sistema de serviços de saúde pode contribuir com a
superação dessas desigualdades sociais redistribuindo a oferta de ações e serviços, redefinindo
o perfil dessa oferta, a fim de priorizar a atenção em grupos sociais em que as condições de vida

5
Vale destacar que, de maneira geral, os profissionais de saúde também não procuram desenvolver uma
comunicação mais acessível à população, mais próxima de seu referencial sociocultural.
24
e saúde sejam mais precárias, e enfatizando ações específicas para grupos e pessoas que
possuam riscos diferenciados de adoecer e morrer (TEIXEIRA, 2011).
Luiz Cecilio (2009) considera que a equidade, assim como a integralidade, que será
discutida posteriormente, vai além do simples consumo ou acesso a determinados serviços e
está ligada ao campo da(s) micropolítica(s) de saúde e suas articulações. Conforme o autor, a
luta pela equidade e integralidade implica refletirmos aspectos importantes da organização do
processo de trabalho, gestão, planejamento e construção de novos saberes e práticas em saúde.
O autor pontua que a iniquidade pode ser trabalhada em diversos espaços para que se
compreenda suas determinações e para pensar estratégias de sua superação, como, por exemplo,
no espaço geral, particular e singular. O espaço geral corresponde aquele onde são formuladas
as macropolíticas econômicas. O autor considera o Ministério da Saúde como parte desse
espaço, pois este tem o poder de definir diretrizes das políticas de saúde, por meio da utilização
de mecanismos de financiamento como orientador de práticas e formas de organização da
prestação da assistência nos níveis municipal e local. Já o espaço particular refere-se aos
municípios, ou seja, as secretarias municipais de saúde e os gestores locais. E o espaço singular
corresponderia ao dos serviços de saúde (CECILIO, 2009).
Cecilio afirma que há uma relação de determinação do espaço geral para o particular e
deste para o singular, no entanto, o autor ressalta que é necessário reconhecer que o espaço
singular, dos serviços de saúde, pode trabalhar com um alto grau de autonomia, indo além das
determinações políticas definidas no espaço geral, sobretudo, se for capaz de escutar as
necessidades de saúde trazidas pelos usuários.
No tocante às necessidades de saúde, de acordo com Cecílio (2009), podem ser
organizadas em quatro grandes conjuntos: ter boas condições de vida; ter acesso ao uso da
tecnologia atual capaz de melhorar e prolongar a vida; criação de vínculos afetivos entre o
usuário e um profissional e/ou equipe de saúde; e necessidade de cada pessoa ter autonomia no
seu modo de viver.
Por fim, o terceiro princípio doutrinário do SUS corresponde ao da Integralidade,
entendida, na redação da Lei Orgânica de saúde, como o conjunto articulado e contínuo das
ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em
todos os níveis de complexidade do sistema (BRASIL, 1990a).
Cecilio (2009), ao discutir sobre integralidade, afirma que esta precisa ser trabalhada
em diversas dimensões para que possamos alcançá-la da maneira mais completa possível. O
autor destaca duas dimensões: a focalizada e a ampliada.

25
Na primeira dimensão – focalizada – a integralidade deve ser resultado do esforço e
encontro de vários saberes de uma equipe multiprofissional no espaço concreto e singular dos
serviços de saúde. Ela pode ser definida, nessa dimensão, como o compromisso e preocupação
da equipe de saúde de um determinado serviço (seja um centro de saúde, uma equipe de
Programa de Saúde da Família ou um hospital) em realizar uma escuta atenta às necessidades
de saúde trazidas pelos usuários que buscam atendimento.
Conforme o autor, a ênfase da gestão, a organização da atenção e capacitação dos
funcionários deveria priorizar a capacidade de escutar e atender às necessidades de saúde, indo
além do que a simples adesão de qualquer modelo de atenção dado aprioristicamente.
É necessário ressaltar que por mais comprometida e competente que seja a equipe de
saúde, por melhor que seja a organização de suas práticas, a integralidade não será plena nesse
espaço singular de serviços. Este fato remete a segunda dimensão da integralidade da atenção
pontuada pelo autor: a integralidade ampliada, pensada no “macro”, em rede, que corresponde
à articulação entre os serviços de saúde e outras instituições (CECILIO, 2009).
A integralidade focalizada não é possível sem a ampliada, pois o cuidado individual, em
qualquer serviço de saúde, independente da sua complexidade, pode requerer a articulação com
outros saberes e práticas disponíveis na equipe ou em outros serviços, seja ele de saúde ou não
(CECILIO, 2009).
Ruben Mattos (2009) também discute acerca da integralidade da atenção e identificou
três conjuntos de sentidos para o termo: a) relacionado às práticas dos profissionais de saúde;
b) à organização dos serviços e das práticas de saúde; c) às respostas governamentais aos
problemas de saúde.
O primeiro sentido está relacionado ao movimento conhecido como medicina integral,
que criticava o fato de os médicos adotarem posturas fragmentárias e reducionistas que
enfatizavam somente as dimensões biológicas, em detrimento dos fatores psicológicos e sociais.
Tais posturas não apreendiam as necessidades mais abrangentes dos pacientes. Os adeptos desse
movimento afirmavam que essas atitudes eram produzidas nas escolas médicas, por meio de
currículos de base flexneriana que privilegiavam o laboratório e o hospital como lócus da
aprendizagem. Tal crítica levou o movimento da medicina integral a propor que fossem
realizadas reformas curriculares nos cursos médicos, com o intuito de formar profissionais com
atitudes menos reducionistas, capazes de compreender as necessidades dos pacientes de
maneira mais integral (MATTOS, 2009).

26
Assim, a integralidade nesse primeiro sentido estaria relacionada às práticas dos
profissionais de saúde, que deveriam ter um olhar mais atento sobre as necessidades do
paciente, recusando-se a reduzir o paciente ao sofrimento ora apresentado. Conforme Mattos
(2009, p. 54):
Podemos facilmente reconhecer que as necessidades dos que buscam serviços de saúde
não se reduzem à perspectiva de abolir o sofrimento gerado por uma doença, ou à
perspectiva de evitar tal sofrimento. Buscar compreender o conjunto de necessidades de
ações e serviços de saúde que um paciente apresenta seria, assim, a marca maior desse
sentido de integralidade.

Vale ressaltar que a medicina integral enfatiza a prática médica, deixando de abordar
com a mesma intensidade a participação de outros profissionais ou outras formas de encontro
do paciente com os serviços de saúde. O autor afirma que é necessário que esse sentido de
integralidade seja defendido por todos os profissionais dos serviços de saúde (agentes
comunitários, enfermeiros, psicólogo etc), pois a integralidade não se configura como um
atributo exclusivo dos médicos e sim de todos os profissionais envolvidos (MATTOS, 2009).
No entanto, a integralidade não decorre apenas da atitude de determinado profissional
de saúde. A noção de atitude traz consigo uma ideia individualista, pois as atitudes seriam
atributos de indivíduos. Essa concepção deixa de considerar a organização do trabalho de uma
equipe. Conforme o autor, a postura do profissional é fundamental para a integralidade, porém,
a integralidade só ocorrerá com incorporações ou redefinições da equipe de saúde e de seus
processos de trabalho.
Assim, a integralidade pode ser pensada também como uma dimensão das práticas.
Quando tais práticas referem-se ao encontro entre o profissional com o usuário, a realização da
integralidade caberá a esse profissional. No entanto, é necessário ressaltar que as práticas estão
socialmente configuradas, o que pode dificultar a realização da integralidade. Um exemplo
disso seriam as cobranças de produtividade que podem impedir um atendimento integral, como
no caso de um agente comunitário que precisa realizar certa quantidade de visitas domiciliares
em um dia, podendo afetar a qualidade dessas visitas (MATTOS, 2009).
O segundo conjunto de sentidos da integralidade refere-se à organização do trabalho nos
serviços de saúde. Na década de 1970 foi consolidada a divisão entre as instituições
responsáveis pela saúde pública e assistencial no Brasil. De um lado, responsável pela saúde
pública estava o Ministério da Saúde; enquanto do outro, responsável pela a assistência médica,
o Ministério da Previdência Social. Um dos motivos dessa dissociação era a ideia de que as
necessidades das práticas de saúde pública e das práticas assistenciais eram distintas
(MATTOS, 2009).
27
Para o autor, um dos sentidos atribuídos à integralidade corresponde à tentativa de
superar essa dissociação entre as práticas de saúde pública e práticas assistenciais. Os serviços
de saúde deveriam estar organizados para atender de maneira abrangente as necessidades dos
seus usuários. Nesse sentido, a integralidade seria uma forma de organizar o processo de
trabalho.
O terceiro e último sentido que Mattos atribui à integralidade refere-se às configurações
de políticas específicas. Tais políticas correspondem àquelas criadas para dar respostas a
determinado problema de saúde ou aos problemas de saúde que acometem um grupo
populacional específico. Cabe ao governo responder a determinados problemas de saúde
pública e essa resposta deve contemplar tanto as ações preventivas quanto as assistenciais. Para
qualquer um dos sentidos supracitados, a “integralidade implica uma recusa ao reducionismo,
uma recusa à objetivação dos sujeitos e talvez uma afirmação da abertura para o diálogo.”
(MATTOS, 2009, p. 65).
Além desses três princípios doutrinários – universalidade, equidade e integralidade, o
SUS também é regido por princípios organizacionais, são eles: regionalização e hierarquização;
resolubilidade; descentralização; participação dos cidadãos e complementaridade do setor
privado.
Tendo em vista os princípios da regionalização e hierarquização, os serviços devem
ser organizados em níveis de complexidade crescente e ordenados em uma área geográfica
delimitada. No princípio da resolubilidade é exigido que o serviço esteja capacitado para
enfrentar ou resolver o problema de saúde, seja no âmbito individual ou coletivo. Já a
descentralização é entendida como a redistribuição das responsabilidades das ações e serviços
de saúde entre os três níveis de governo: municipal, estadual e federal, sendo o município o que
tem a maior responsabilidade na promoção de saúde.
A participação social consiste na garantia de participação da população por meio de
entidades representativas no processo de formulação das políticas de saúde e no controle da sua
execução em todos os níveis governamentais. Por fim, o princípio da complementaridade
refere-se à necessidade de contratação de serviços privados quando houver insuficiência do
setor público, considerando: o contrato deve priorizar o interesse público; a instituição privada
deverá estar de acordo com os princípios básicos e normas técnicas do SUS; e a integração dos
serviços privados deverá dar-se na mesma lógica organizativa do SUS (BRASIL, 1990c).
Com base em seu princípio de regionalização e hierarquização, a rede de serviços do
SUS é composta por três níveis de atenção: Primária, Secundária e Terciária. Devido a esta

28
pesquisa ter como campo de investigação a Unidade Básica de Saúde, a seguir serão enfocados
alguns aspectos da Atenção Primária.

1.2.2. Atenção primária

Retomando brevemente o histórico da atenção primária, em 1920 foi divulgado o


relatório Dawson, no qual pela primeira vez foi proposta a organização do sistema de serviços
de saúde em três níveis de atenção: centros de saúde primários, centros de saúde secundários e
hospitais-escola. Em 1978, na já citada conferência realizada em Alma-Ata, a atenção primária
à saúde passou a ter destaque internacional (STARFIELD, 2002). Conforme Bárbara Starfield
(2002), esse nível de atenção:
Forma a base e determina o trabalho de todos os outros níveis dos sistemas de saúde. A
atenção primária aborda os problemas mais comuns na comunidade, oferecendo
serviços de prevenção, cura e reabilitação para maximizar a saúde e o bem-estar. Ela
integra a atenção quando há mais de um problema de saúde e lida com o contexto no
qual a doença existe e influencia a resposta das pessoas a seus problemas de saúde. É a
atenção que organiza e racionaliza o uso de todos os recursos, tanto básicos como
especializados, direcionados para a promoção, manutenção e melhora da saúde
(STARFIELD, 2002, p. 28).

A atenção primária compartilha características com os outros níveis do sistema de saúde,


como responsabilidade pelo acesso, qualidade e custos, atenção à prevenção, ao tratamento e à
reabilitação e trabalho em equipe. No entanto, existem características que a diferencia da
atenção secundária e terciária. Na atenção primária, do ponto de vista normativo, os
atendimentos devem ser feitos em unidades comunitárias, centros de saúde, escolas e lares e
devem ser atendidos problemas mais comuns e menos definidos. Ademais, os usuários devem
ter atendimento contínuo para diversos problemas e acesso a serviços preventivos
(STARFIELD, 2002).
Outro aspecto específico a esse nível de atenção é a relação médico-paciente. Na atenção
especializada, geralmente os pacientes são encaminhados por outro médico que já iniciou um
trabalho de diagnóstico preliminar. Ao contrário, na atenção primária o usuário deve ser
conhecido pelo médico, que terá como principal tarefa o esclarecimento do problema
apresentado pelo paciente e a obtenção de informações que direcionem a um diagnóstico e a
uma escolha do manejo mais apropriado. Segundo Starfield (2002, p. 29):
Médicos da atenção primária, quando comparados com especialistas, lidam com uma
variedade mais ampla de problemas, tanto com pacientes individuais como com a
população com a qual trabalham. Como estão mais próximos do ambiente do paciente
do que os especialistas, estão em uma posição melhor para avaliar o papel dos múltiplos
e interativos determinantes da doença e da saúde.

29
A autora propõe quatro atributos da atenção primária à saúde: atenção ao primeiro
contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação. A atenção ao primeiro contato implica
na acessibilidade e uso do serviço para cada novo problema de saúde, ou novo episódio de um
problema. A longitudinalidade requer a existência de uma fonte regular de cuidados e seu uso
ao longo do tempo. Além disso, deve haver uma cooperação mútua no vínculo dos usuários
com os profissionais de saúde. A integralidade supõe a responsabilidade das unidades de
atenção primária por todos os problemas de saúde da população adscrita. E a coordenação
implica na capacidade de garantir a continuidade da atenção através da equipe de saúde ou de
prontuários médicos, além do reconhecimento dos problemas que requerem atenção constante
(STARFIELD, 2002).
No Brasil, o Ministério da Saúde adotou a nomenclatura de atenção básica para definir
Atenção Primária à Saúde, tendo como sua estratégia principal a Saúde da Família (BRASIL,
2007). Em 2011, através da portaria n. 2488, foi aprovada a Política Nacional de Atenção Básica
(PNAB), na qual houve a revisão de diretrizes e normas para a organização da atenção básica,
para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e para o Programa Agentes Comunitários de Saúde.
Conforme o documento, a atenção básica é caracterizada:
Por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a
promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento,
a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de
desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das
pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. É
desenvolvida por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e
participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios
definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade
existente no território em que vivem essas populações (...) (BRASIL, 2012, p. 19).

A atenção básica deve ser a principal porta de entrada para os serviços de saúde e é
constituída por equipes multidisciplinares responsáveis em atender às necessidades de saúde da
população. O acesso a esse nível de atenção ocorre por meio das Unidades Básicas de Saúde,
instaladas perto das residências dos usuários (BRASIL, 2012).
Além disso, é necessário que a atenção básica cumpra algumas funções para contribuir
com o funcionamento das Redes de Atenção à Saúde (RAS), a saber: (a) ser base: ser a
modalidade de atenção e de serviço de saúde com o mais elevado grau de descentralização e
capilaridade; (b) ser resolutiva: identificar riscos, necessidades e demandas de saúde, utilizando
e articulando diferentes tecnologias de cuidado individual e coletivo, por meio de uma clínica
ampliada capaz de construir vínculos positivos e intervenções clínica e sanitariamente efetivas,
na perspectiva de ampliação dos graus de autonomia dos indivíduos e grupos sociais; (c)

30
coordenar o cuidado: elaborar, acompanhar e gerenciar projetos terapêuticos singulares, além
de acompanhar e organizar o fluxo dos usuários entre os pontos de atenção das RAS; e (d)
ordenar as redes: reconhecer as necessidades de saúde da população que está sob sua
responsabilidade, organizando-as em relação aos outros pontos de atenção (BRASIL, 2012).
Conforme mencionado anteriormente, a Saúde da Família foi estabelecida como a
principal estratégia da atenção básica6, visando a reorganização desse nível de atenção no país.
De acordo com Glauce Costa et al. (2009), o programa saúde da família foi criado em 1994,
pelo Ministério da Saúde, como uma estratégia para transformação do modelo de atenção à
saúde no Brasil, buscando provocar reflexões e mudanças na forma de pensar e praticar saúde,
substituindo o tradicional modelo sanitário brasileiro, de cunho curativo, medicamentoso e
individual, centrado no hospital, em um modelo de saúde coletivo, multi e interprofissional,
que tem como foco a família e a comunidade.
As equipes de saúde da família são compostas por, no mínimo, médico generalista ou
especialista em Saúde da Família ou médico de Família e Comunidade, enfermeiro generalista
ou especialista em Saúde da Família, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários
de saúde, podendo ser acrescentado como parte da equipe os profissionais de saúde bucal
(BRASIL, 2012).
As atividades desenvolvidas pelas equipes consistem em: conhecer a realidade das
famílias pelas quais são responsáveis; identificar os problemas de saúde e situações de risco
existentes na comunidade; elaborar junto à comunidade um plano para o enfrentamento dos
determinantes do processo saúde/doença; prestar assistência integral; desenvolver ações de
educação em saúde à comunidade e promover ações intersetoriais para o enfrentamento dos
problemas identificados. Além disso, as equipes também realizam visitas domiciliares, com a
finalidade de monitorar a situação de saúde das famílias, e participam de reuniões de grupo para
discutir temas relativos ao diagnóstico e às alternativas para a resolução dos problemas
identificados como prioritários pelas comunidades (BRASIL, 1997).
Segundo Costa et al. (2009), existem evidências que demonstram que a expansão do
PSF tem favorecido a equidade e a universalidade da assistência, no entanto, não se pode
afirmar que a integralidade das ações deixou de ser considerado um problema nos serviços de
saúde. Os autores pontuam alguns desafios para o programa, são eles: envolver os profissionais
em um amplo processo de reorientação do trabalho em saúde; centrar na lógica de produção do

6
Cabe ao prefeito a decisão de adotar ou não o programa saúde da família. Em uma conversa com uma
funcionária da Secretaria Municipal de Saúde, ela afirmou que em Boa Vista todas as Unidades Básicas trabalham
com o PSF.
31
cuidado, ou seja, realizar um trabalho orientado para ações baseadas nas relações humanas, na
produção de vínculo e no acolhimento; e o trabalho em equipe, que ainda encontra grandes
limitações, uma vez que há ausência de responsabilidade coletiva do trabalho e pouca interação
entre os profissionais, bem como o predomínio de representações sobre hierarquia entre
profissionais e não profissionais, entre aqueles que têm nível superior e nível médio de
educação, assim como entre médicos e enfermeiros ou entre médicos e demais profissionais
graduados.
Feitas tais considerações acerca das características e modo de organização da atenção
básica, percebe-se a importância desse nível de atenção para que os usuários tenham acesso
integral e contínuo ao sistema de saúde. Nesse sentido, a unidade básica de saúde se configura
como um dos elementos fundamentais para a inclusão das mulheres trans nos serviços de saúde,
uma vez que é considerada porta de entrada para o atendimento e se orienta pelos princípios
preconizados pelo SUS.

1. 3. Políticas de saúde para mulheres trans no Brasil: avanços e desafios

No Brasil, são recentes as políticas que asseguram os direitos da população LGBT no


âmbito da saúde. Foi a partir da década de 1980, quando o Ministério da Saúde adotou
estratégias para o enfrentamento da epidemia do HIV/AIDS em parceria com os movimentos
sociais vinculados à defesa dos direitos da comunidade LGBT, que as questões referentes à
saúde da população LGBT começaram a ganhar visibilidade (BRASIL, 2013).
Em 2004, o Ministério da Saúde lançou o programa Brasil Sem Homofobia - Programa
de Combate à Violência e à Discriminação contra GLBT e de Promoção da Cidadania
Homossexual, com objetivo de promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis, transgêneros
e bissexuais através da equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação,
respeitando a especificidade de cada subgrupo (BRASIL, 2004). Conforme Arán, Murta e
Lionço (2009), este programa foi elaborado junto a lideranças do movimento LGBT, resultado
de uma intensa mobilização social, apresentando propostas de ações em diversas áreas, como
na saúde, educação, cultura, trabalho e segurança pública.
As ações no setor da saúde estabelecidas no programa consistiam em formalizar o
Comitê Técnico “Saúde da População de Gays, Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais” com o
objetivo de estruturar uma Política Nacional de Saúde para essa população; apoiar a
implementação de condições para produção e acesso ao conhecimento científico sobre saúde e
sobre outros aspectos da população GLTB; apoiar os investimentos na formação, capacitação,

32
sensibilização e promoção de mudanças de atitudes de profissionais de saúde, a fim de garantir
acesso de saúde igualitário para essa população (BRASIL, 2004).
No ano de 2008 o Ministério da Saúde, através da Portaria nº 457, regulamentou o
processo transexualizador no âmbito do SUS, garantindo acesso universal, tratamento livre de
discriminação, atendimento com equipe multidisciplinar e tratamento hormonal e cirúrgico
(BRASIL, 2008). Em 2013, a Portaria nº 2.803 do Ministério da Saúde redefiniu e ampliou o
processo transexualizador no SUS, estabelecendo, dentre outras coisas, a inclusão do
atendimento não só à população de transexuais, mas também de travestis em procedimentos
como a hormonioterapia e incluiu procedimentos para redesignação sexual de homens
transexuais (BRASIL, 2013).
Apesar desse avanço importante para a população trans, a transexualidade ainda é
considerada um transtorno de identidade de gênero e é necessário o seu diagnóstico como pré-
requisito para a realização da cirurgia de redesignação. Arán, Murta e Lionço (2009) fazem uma
crítica a essa visão patologizante da transexualidade, pois afirmam que o “diagnóstico pode ser
considerado um vetor de patologização e de estigma, pois atribui uma patologia ao paciente
sem questionar as questões históricas, políticas e subjetivas dessa psiquiatrização” (p. 1142).
Nesse sentido, a despatologização das identidades trans tornou-se uma das
reivindicações do movimento trans, tendo em vista que há um consenso de que a
transexualidade e a travestilidade não são psicopatologias, no entanto, existe o receio de que a
despatologização tire a responsabilidade do Estado em arcar com os custos do processo
transexualizador, uma vez que não haveria mais uma patologia a ser tratada (CARVALHO,
2011).
Outro avanço na área da saúde para a comunidade LGBT foi a aprovação, em 2009, da
Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (BRASIL, 2011). No seu artigo 4º é reiterado que
toda pessoa tem direito a um atendimento mais humanizado e livre de discriminação por
orientação sexual e identidade de gênero. Ademais, no inciso I desse mesmo artigo é garantido:
Identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir, em todo documento do
usuário e usuária, um campo para se registrar o nome social, independentemente do
registro civil, sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser
identificado por número, nome ou código da doença, ou outras formas desrespeitosas,
ou preconceituosas (BRASIL, 2011, p. 12, grifo nosso).

Assim, travestis e as mulheres transexuais têm o direito de ser tratadas de acordo com o
nome social em vez de ser utilizado o nome que está no registro civil, evitando
constrangimentos e assegurando um atendimento melhor nos serviços de saúde. No entanto, a
realidade é outra, pois ainda são frequentes os relatos em que ocorre o não reconhecimento da
33
identidade feminina de travestis e mulheres transexuais no sistema de saúde, sendo utilizado o
nome que consta no registro civil durante o atendimento (GUARANHA, 2013; SANTOS, 2013;
TAGLIAMENTO, 2012). De acordo com Murilo Moscheta (2011), a recusa de profissionais
de saúde em utilizar o nome social de pacientes travestis e transexuais pode ser considerada
como um símbolo de desempoderamento, tendo em vista que tal ação implica em desapropriar
o indivíduo de sua própria identidade.
Em dezembro 2011, o Ministério da Saúde instituiu no âmbito do SUS, através da
Portaria nº 2.836, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transexuais (LGBT), com objetivo de promover a saúde integral dessa população, eliminar a
discriminação e o preconceito institucional e contribuir para a redução das desigualdades, bem
como para a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo. Ademais, esta
política possui como marca o reconhecimento de que a discriminação por orientação sexual e
por identidade de gênero influencia diretamente no processo de saúde-doença da população
LGBT (BRASIL, 2013).
Dentre as principais estratégias da política, encontram-se: ampliar o acesso da
população LGBT aos serviços de saúde do SUS, garantindo às pessoas o respeito e a prestação
de serviços de saúde com qualidade e resolução de suas demandas e necessidades; qualificar a
rede de serviços do SUS para a atenção e o cuidado integral à saúde da população LGBT;
garantir os direitos sexuais e reprodutivos da população LGBT no âmbito do SUS; atuar na
eliminação do preconceito e da discriminação da população LGBT nos serviços de saúde;
incluir o tema do enfrentamento às discriminações de gênero, orientação sexual, raça, cor e
território nos processos de educação permanente dos gestores, trabalhadores da saúde e
integrantes dos Conselhos de Saúde, entre outros (BRASIL, 2013).
No que tange às estratégias específicas propostas para travestis e transexuais, a política
propõe: garantir acesso ao processo transexualizador na rede do SUS; promover iniciativas
voltadas à redução de riscos e oferecer atenção aos problemas decorrentes do uso prolongado
de hormônios femininos e masculinos para travestis e transexuais; definir estratégias setoriais
e intersetoriais que visem reduzir a morbidade e a mortalidade de travestis e garantir o uso do
nome social no âmbito do SUS (BRASIL, 2013).
Uma ação recente do Ministério da Saúde7 foi o lançamento, em janeiro de 2016, na
semana do dia da visibilidade trans, da campanha “Cuidar bem da saúde de cada um. Faz bem

7
Fonte: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/21893-ministerio-
lanca-campanha-voltada-a-saude-da-populacao-trans
34
para todos. Faz bem para o Brasil”, com foco na saúde integral, atendimento humanizado e
respeito para as travestis, mulheres e homens transexuais. Tal campanha teve como objetivo
informar e conscientizar a sociedade, profissionais de saúde, trabalhadores e gestores do SUS
sobre garantias ao atendimento considerando as especificidades de saúde desta população.
Conforme o Ministério da Saúde, serão distribuídas 200 mil cartilhas e 100 mil cartazes para
unidades de saúde, secretarias estaduais, conselhos de saúde, Comitês de Saúde LGBT e para
os serviços de assistência social e direitos humanos. As cartilhas são voltadas para trabalhadores
do SUS, incluindo não só os profissionais de saúde como também recepcionistas e responsáveis
por marcar consultas, com informações sobre a atenção integral à saúde desta população. Tal
cartilha aborda questões como: o direito de pessoas trans a um atendimento com respeito e sem
discriminação, orientações aos profissionais no acolhimento à população trans e o direito ao
uso do nome social no SUS.
Com base no exposto até aqui, é notório o avanço jurídico-político de saúde para a
população LGBT, no entanto ainda existem alguns impasses para que ocorra a efetivação de
tais propostas. Conforme Mello et al. (2011), dentre esses impasses estão as dificuldades para
assegurar um atendimento livre de preconceito e discriminação contra a população LGBT por
parte dos profissionais de saúde e a ausência de destinação orçamentária específica para a
realização dessas ações governamentais voltadas para a população LGBT.
Tatiana Lionço (2008) pontua que os desafios para a qualificação da atenção à
população LGBT na área da saúde são decorrentes das “consequências das representações e
significações que recaem sobre suas práticas sexuais e modos de vida, enquanto desviantes em
relação a um suposto padrão de normalidade ou ‘saúde’ implicado na heteronormatividade
moralmente vigente” (p. 13). Assim, para que ocorra uma mudança positiva no atendimento
dessa população nos serviços de saúde, é necessário que haja uma transformação no modo de
pensar e agir dos profissionais de saúde, pois estes estão imersos em uma cultura
heteronormativa que influencia nas suas representações sobre a população LGBT (CARDOSO,
FERRO, 2012).
No caso específico da população trans, apesar dos avanços nas políticas de saúde e das
discussões sobre garantir um atendimento integral à saúde dessa população, surgem algumas
questões. Conforme Paim (2009), ter saúde é ter acesso a outros direitos também, por exemplo,
direito ao trabalho, à educação, à qualidade de vida, para citar alguns. Todavia, segundo
pesquisa da organização não governamental Transgender Europe - rede européia de
organizações que apoiam os direitos da população transgênero-, o Brasil é o país que mais mata

35
travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604
mortes de travestis e transexuais no país8. Além disso, um número reduzido dessa população
consegue chegar aos 35 anos e, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do
Brasil, 90% das travestis e transexuais optam pela prostituição para se sustentar devido à
escassez de oportunidades no mercado de trabalho. Assim, podemos questionar: de que maneira
é possível garantir integralidade à saúde, tendo em vista o alto índice de violência cometida
contra essa população? Além disso, considerando o conceito ampliado de saúde, de que forma
estas mulheres podem ter acesso à saúde uma vez que a maioria delas não tem acesso à
educação, trabalho formal, devido principalmente a discriminação que sofrem?
Fica claro que, além dos outros desafios citados, a garantia de direitos sociais e civis e,
sobretudo, do direito à vida, também se configura como um desafio, não só para os profissionais
de saúde, mas para a sociedade em geral. A garantia de tais direitos torna-se imprescindível
para que, de fato, as travestis e mulheres transexuais tenham acesso à saúde no seu sentido mais
amplo. No entanto, para que isso ocorra não bastam apenas leis, normas e políticas, mas também
a construção de uma sociedade não transfóbica, que retire a população trans da invisibilidade
(ou da visibilidade mortífera) em que são postas.

8
Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/com-600-mortes-em-seis-
anos-brasil-e-o-que-mais-mata-travestis-e
36
2. FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA

2.1. Sobre o método

A Teoria que serviu de base para orientar a análise desta pesquisa foi a Teoria de grupo
operativo proposta por Enrique Pichon-Rivière, que recebe contribuições teóricas do
materialismo histórico e dialético, da psicanálise, bem como de outras disciplinas que
consideram a relação entre estrutura socioeconômica e vida psíquica.
Pichon-Rivière (1998) propõe três dimensões de investigação – do indivíduo, do grupo
e da instituição ou sociedade, permitindo três tipos de análise, são elas: a psicossocial,
relacionada ao sujeito em sua relação com as demais pessoas que fazem parte de seu cotidiano;
a sociodinâmica, que analisa o grupo como estrutura; e, por fim, a institucional, concernente a
investigação dos grandes grupos: sua estrutura, origem, composição, ideologia, história,
economia, política etc. Conforme o autor, não existe uma separação clara entre essas três
dimensões, uma vez que elas vão se integrando sucessivamente.
Na sua concepção de sujeito, o autor considera o homem como um ser social, com
necessidades que só poderão ser satisfeitas através de relações concretas, por meio do vínculo,
sendo vínculo “uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto e sua mútua inter-
relação com processos de comunicação e aprendizagem” (PICHON-RIVIÈRE, 1998, p. 5).
Para o teórico, “o sujeito não é só um sujeito relacionado, é um sujeito produzido em
uma práxis. Nele não há nada que não seja a resultante da interação entre indivíduo, grupos e
classes” (PICHON-RIVIÈRE, 1998, p. 230).
Devido a essa relação dialética entre estrutura social e constituição psíquica do sujeito,
o grupo torna-se um campo operacional privilegiado9, pois permite a investigação do interjogo
entre a dimensão psicossocial (grupo interno) e a sociodinâmica (grupo externo), por meio da
observação de como ocorre a interação entre os membros do grupo, ou seja, dos mecanismos
de atribuição e aceitação de papéis (PICHON-RIVIÈRE, 1998).
O teórico define grupo como o “conjunto restrito de pessoas, ligadas entre si por
constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação interna, que se propõe,
de forma explícita ou implícita, uma tarefa que constitui sua finalidade” (PICHON-RIVIÈRE,

9
Ainda que o grupo seja o campo privilegiado para investigação, isso não exclui a possibilidade de se
investigar e analisar conversas/entrevistas individuais, já que, para o autor, o vínculo que o sujeito estabelece com
o outro, incluindo com o pesquisador, por si só permite a possibilidade de compreendermos aspectos que dizem
respeito ao que é da ordem psicossocial, sociodinâmica e institucional.
37
1998, p. 234). Deste modo, para ser caracterizado como grupo é necessário que as pessoas
estejam reunidas em torno de uma tarefa, bem como o estabelecimento de um enquadre
(definição de espaço, tempo, etc.). Concernente a esta pesquisa, os participantes do grupo
tiveram como tarefa discutir sobre o atendimento oferecido a mulheres trans na unidade de
saúde onde trabalham.
Para o autor, grupo é campo de aprendizagem. Ou antes, deve ser centrado na
aprendizagem. Aqui, aprendizagem diz respeito ao processo de interação, ao processo de
apropriação do real, às tentativas utilizadas pelo sujeito de responder às demandas da realidade.
A aprendizagem volta-se, portanto, para o mundo, para a produção de modificações que
ocorrem entre o sujeito e a sociedade. Há nessa concepção uma relação dialética mutuamente
modificante entre sujeito e meio. Aprender significa realizar uma leitura crítica da realidade, a
qual implica capacidade de avaliação e transformação social. Conhecer envolve processos de
retificação e ratificação do pensamento, o qual se configura em uma espiral em movimento,
dialética, de caráter operativo. Aprender é transformação é, pois, práxis e processo criativo.
Além disso, o grupo operativo é composto por um coordenador e um observador. O
papel do observador consiste em anotar o que acontece dentro do grupo. O coordenador, por
sua vez, tem como função criar, manter e fomentar a comunicação grupal e refletir junto ao
grupo sobre a relação que os integrantes estabelecem entre si e com a tarefa. Este utiliza no seu
trabalho duas ferramentas: a assinalação, que atua sobre o conteúdo explícito; e a interpretação,
que se refere a uma hipótese sobre os conteúdos implícitos que funcionam como obstáculo para
a realização da tarefa (PICHON-RIVIÈRE, 1998).
A interpretação feita pelo coordenador modifica o campo grupal, permitindo, por meio
do autoconhecimento do grupo, uma reestruturação das relações entre os membros e com a
tarefa. Em suma, o coordenador aponta o conteúdo implícito que impede a realização da tarefa
para obter uma reorganização grupal que permita elaborá-lo.
Ademais, o trabalho grupal ocorre em três momentos diferentes, são eles: pré-tarefa,
tarefa e projeto. Na pré-tarefa o grupo evita a tarefa devido a duas ansiedades básicas: o medo
da mudança (medo da perda do equilíbrio já obtido na situação anterior) e o medo do ataque da
nova situação. Na fase da tarefa o grupo inicia a elaboração e a superação dos medos que
impedem a aprendizagem e realização da tarefa. E a fase do projeto surge quando se alcança
uma pertença dos membros e o grupo planeja as ações que vão além do aqui e agora (PICHON-
RIVIÈRE, 1998).

38
Em relação à composição do grupo, o autor coloca que é fundamental que este seja o
mais heterogêneo possível, composto por sujeitos com idade, atividade, formação e sexo
diferentes, pois a heterogeneidade pode propiciar a ruptura dos estereótipos, que não seria
possível em grupos homogêneos dada a carência de confrontação. Segundo o autor, quanto
maior a heterogeneidade dos membros e quanto maior a homogeneidade na tarefa, maior a
produtividade adquirida pelo grupo. Esse aspecto da teoria do Pichon-Rivière, em termos
práticos, justificou a escolha da pesquisadora de que o grupo fosse formado por um
representante de cada setor.
O que torna possível essa heterogeneidade de conhecimentos e experiências entre os
membros do grupo é a preexistência, em cada sujeito, de um esquema conceitual referencial
operativo (ECRO). Conforme o autor, esquema conceitual consiste em um conjunto organizado
de noções e conceitos universais, teóricos que permitem uma aproximação instrumental do
objeto particular concreto. Estes esquemas internos vão se modificando na situação grupal, por
meio da tarefa e se configuram em um novo esquema referencial grupal.
Por fim, outra contribuição da teoria de Pichon-Rivière, consiste na análise dos
mecanismos de atribuição e aceitação de papéis dentro do grupo. Os papéis desempenhados no
grupo frequentemente são: o de Porta-voz, bode expiatório, líder e sabotador. É importante
ressaltar que tais papéis não são necessariamente fixos e sim rotativos e funcionais.
O porta-voz é considerado o depositário das tensões grupais, é através dele que as
fantasias, ansiedades e necessidades do grupo são enunciadas. Quando o porta-voz enuncia algo
de si, da sua história pessoal (verticalidade), também faz referência a algum conteúdo grupal
(horizontalidade). O bode expiatório, por sua vez, refere-se ao membro que assume os aspectos
negativos do grupo. O líder é o depositário dos aspectos positivos do grupo. E, por fim, o
sabotador refere-se ao membro que dificulta os avanços do grupo (PICHON-RIVIÈRE, 1998).

2.2. Procedimento

O presente estudo teve uma abordagem qualitativa, pois busca compreender os


significados e as características situacionais apresentadas pelos sujeitos entrevistados
(RICHARDSON et al., 2012). Além disso, consistiu em uma pesquisa cujo tipo classifica-se
como exploratório, uma vez que se tem por finalidade clarificar os conceitos envolvidos, bem
como proporcionar uma visão geral de determinado fato (GIL, 2010).

39
A primeira etapa consistiu na revisão da literatura realizada por meio de livros e também
de referências eletrônicas (teses, dissertações, documentos governamentais), e ocorreu durante
o planejamento de atividades até a análise dos dados e conclusão do projeto.
Em seguida, foi realizada a coleta de dados por meio de visitas a Unidade Básica do
município de Boa Vista – RR onde a pesquisa foi realizada, anotações em diário de campo e
entrevistas abertas em grupo com profissionais da UBS. Ademais, a opção pela entrevista em
grupo justificou-se pela dinâmica de trabalho existente em uma UBS, composta por equipes
multidisciplinares. Foram realizados dois encontros para a entrevista e, posteriormente, será
realizado outro para a devolutiva. As entrevistas foram gravadas, após autorização de todos os
participantes, e posteriormente transcritas.
O grupo foi conduzido por mim como coordenadora e contou com a participação de
uma observadora, aluna do curso de psicologia. Todos profissionais da Unidade foram
informados acerca da pesquisa e a escolha dos sujeitos que participaram do grupo foi feita a
partir da disponibilidade de cada um. O grupo foi formado por duas enfermeiras e uma técnica
em enfermagem.
Vale ressaltar que além das entrevistas em grupo, houve a necessidade de serem
realizadas mais duas entrevistas individuais, uma com um agente comunitário, tendo em vista
que este profissional possui um papel importante na organização das práticas do serviço, e outra
com o diretor da unidade de saúde, por este ser o responsável pela articulação entre o serviço e
a Secretaria de Saúde.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da
Universidade Federal de Roraima (Protocolo n. 1.502.755).

40
3. INTERAÇÃO NO CAMPO DA PESQUISA

3.1. Primeira visita – Conhecendo a Unidade Básica de Saúde

A Unidade Básica de Saúde escolhida para realizar o campo da pesquisa fica localizada
em um bairro na zona oeste do município de Boa Vista. A escolha desta unidade se justifica por
ser uma das que possuem um quadro maior de profissionais, contando com equipes
multidisciplinares compostas por: técnicos em enfermagem, agentes comunitários de saúde,
enfermeiros, médicos, dentista, psicólogo e assistente social. A unidade possui quatro equipes
do Programa Saúde da Família (PSF), cada uma composta por médico, enfermeiro, técnico em
enfermagem e agentes comunitários de saúde.
Em relação ao trabalho feito na unidade, são realizados atendimentos gerais (demanda
espontânea) e em grupos. Este último é feito com os grupos considerados prioritários pelo
Ministério da Saúde, por exemplo, grupos de pacientes diabéticos, hipertensos, gestantes,
idosos e crianças. Atualmente a unidade só está com um grupo de gestantes. A unidade oferece
vacinação, curativo, administração de medicamento, teste rápido, teste do pezinho e preventivo,
serviços básicos de todas as unidades básicas de saúde. Além desses serviços, também são
realizados atendimentos odontológico, psicológico e de assistência social. No que tange ao
perfil da população atendida na unidade, a demanda maior é de mulheres grávidas, diabéticos,
hipertensos e idosos.
A primeira visita à unidade ocorreu no dia 17 de maio de 2016. Nessa primeira visita,
me apresentei ao diretor da unidade, expliquei a pesquisa e entreguei o ofício da secretaria que
autorizava a realização da pesquisa. O diretor demonstrou interesse e sugeriu que eu voltasse
no dia 20 de maio para apresentar a pesquisa durante uma reunião que iria ocorrer com os
profissionais da unidade.

3.2. Segunda visita – Conversa com os profissionais

Conforme combinado com o diretor da UBS, no dia 20 de maio retornei à unidade para
apresentar a pesquisa e perguntar se alguém tinha interesse em participar. Antes de começar a
reunião, o diretor me apresentou aos profissionais e pediu um tempo para que eu apresentasse
a pesquisa. Logo após, falei acerca dos objetivos da pesquisa e a forma que ocorreriam as
entrevistas em grupo. Havia cerca de vinte e cinco profissionais, mas apenas quatro aceitaram

41
participar da pesquisa, sendo duas enfermeiras, uma técnica em enfermagem e uma assistente
social. Em seguida, combinamos qual seria o melhor dia para elas e ficou decidido que o
primeiro encontro para a entrevista ocorreria no dia 03 de junho às 10h.

3.3. Entrevistas

Participantes da pesquisa10

Enfermeira 1 – Joana: Trabalha há seis anos na área da saúde e na unidade há um ano. Faz
parte de uma das equipes de PSF, composta por um médico, cinco agentes comunitários e uma
técnica em enfermagem.

Enfermeira 2 – Laura: Trabalha há seis anos na área da saúde. Faz parte de outra equipe de
PSF, composta por um médico, uma técnica em enfermagem e quatro agentes comunitários.

Técnica em enfermagem – Tânia: Trabalha há 20 anos na área da saúde. Na unidade trabalha


como técnica em enfermagem na parte da triagem, onde é feito o acolhimento e distribuição
dos pacientes para os outros profissionais de acordo com a demanda. Também faz o
acompanhamento de pacientes que possuem demanda certa, como pacientes diabéticos e
hipertensos, realizando testes de glicemia em jejum e verificação da pressão arterial. Além
disso, Tânia faz parte de uma equipe do PSF.

Agente comunitário de saúde – Theo: Trabalha há 14 anos na unidade. A sua rotina no serviço
consiste em ajudar na triagem dos pacientes e depois fazer visitas à micro área pela qual é
responsável. Nessas visitas é ressaltado os cuidados com a higiene, a importância do
cumprimento do calendário vacinal das crianças e do acompanhamento pré-natal das gestantes
e o uso correto das medicações. Além disso, Theo também repassa algumas informações
referentes aos atendimentos que ocorrem na UBS.

Diretor da unidade – João: Trabalha há dois meses como diretor da Unidade. É formado em
enfermagem e também é técnico em raio-x. Trabalha há 17 anos na área da saúde. Seu trabalho
consiste em administrar o serviço e participa de reuniões com outros diretores e com a
Secretaria de Saúde.

Entrevistas em grupo

10
Para garantir o anonimato dos entrevistados, os nomes que serão utilizados não condizem com os seus
nomes verdadeiros.
42
No dia 03 de junho, eu e outra acadêmica de psicologia fomos à unidade para realizar o
primeiro encontro do grupo. No entanto, ao chegarmos ao local fomos informadas que apenas
uma participante estava na unidade, duas estavam fazendo visitas e uma estava de folga.
Conversamos com a que estava na unidade e ela pediu para que nós retornássemos no período
da tarde, pois as outras duas que estavam em visita estariam na unidade.
Retornamos à tarde e conversamos com duas participantes. Como elas estavam em
atendimento e não seria possível naquele dia reunir todas, remarcamos o encontro para o dia 06
de junho as 10h:30min.

Primeiro encontro do grupo

No dia 06 de junho ocorreu o primeiro encontro do grupo, na sala de uma das


enfermeiras. Das quatro pessoas que aceitaram participar, três foram ao primeiro encontro: as
duas enfermeiras e a técnica em enfermagem. Iniciei o encontro retomando os objetivos da
pesquisa e expliquei como seria o funcionamento do grupo. Logo após, pedi autorização para
que a entrevista fosse gravada e li, junto com as participantes, o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido. Todas assinaram e concordaram com a gravação. Em seguida, expliquei a tarefa
do grupo, a qual consistia em discutir sobre o atendimento oferecido a mulheres trans na UBS.
De maneira geral, os assuntos abordados foram: sexo e gênero; atendimento de pessoas trans;
parcerias com associações LGBT e respeito ao nome social. O primeiro encontro teve duração
de 50 minutos e foi encerrado com o agendamento do segundo encontro para o dia 13 de junho.

Segundo encontro do grupo

No dia 13 de junho ocorreu o segundo e último encontro do grupo. Chegamos à unidade


no horário marcado, mas como o fluxo de atendimento estava intenso esperamos cerca de uma
hora. Nesse ínterim, ficamos nos corredores da unidade e conversei com um funcionário que
veio perguntar sobre a pesquisa. Na conversa, expliquei os objetivos e disse que estava fazendo
a entrevista em grupo com três funcionárias, mas que também gostaria de entrevistar um agente
comunitário de saúde (ACS). Esse funcionário comentou sobre um ACS da unidade que poderia
me conceder essa entrevista e me levou até ele para me apresentá-lo. Conversei com o ACS e
este, um pouco receoso com as perguntas que eu iria lhe fazer, aceitou participar da pesquisa.
Combinamos que a entrevista seria no dia seguinte. Quanto ao grupo, após as participantes
terminaram seus atendimentos demos início ao nosso último encontro. De modo geral, foram
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abordados os seguintes temas: o que é ser transexual e ser travesti; política de saúde LGBT e
cursos oferecidos para os profissionais na unidade. O segundo encontro teve duração de 40
minutos. Após a finalização do grupo, fui conversar com o diretor para convidá-lo a participar
da pesquisa, que aceitou me conceder a entrevista.

Entrevistas individuais

Como mencionado anteriormente, além das entrevistas em grupo, foram realizadas mais
duas entrevistas individuais: uma com um agente comunitário de saúde e outra com o diretor
da unidade. As duas entrevistas ocorreram no dia 14 de junho. Na entrevista com o agente
comunitário foram abordadas as mesmas questões discutidas no grupo. Já na entrevista com o
diretor, além das questões supracitadas, também foram abordados pontos referentes ao modo
como está organizado o serviço e como ocorrem as reuniões com a Secretaria de Saúde.

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4. ANÁLISE E DISCUSSÃO

Para análise das entrevistas em grupo e individuais serão consideradas as três dimensões
de investigação descritas por Pichon-Rivière: psicossocial, sociodinâmica e institucional. Tais
dimensões não serão tratadas de maneira individual, descoladas uma da outra, tendo em vista
que as três se integram sucessivamente, não existindo uma separação clara entre elas (PICHON-
RIVIÈRE, 1998).
Do ponto de vista institucional, pode-se pensar que o serviço de saúde onde foi realizada
a pesquisa está inserido em um contexto mais amplo, ideológico: o sexismo. Ou seja, podemos
pensar que, se o Brasil é um país sexista, a referida instituição é também, em maior ou menor
grau, estruturada por essa ideologia sexista, a qual reforça a desigualdade de gêneros.
Sexismo pode ser entendido como um fenômeno complexo de poder que age no
contexto de atribuição de diferenças categoriais baseadas no gênero. Frequentemente essas
diferenças são justificadas por meio de referências a características corporais/biológicas e são
utilizadas para legitimar formas de segregação e desigualdade. O sexismo é reproduzido em
várias dimensões da vida social, inclusive está presente em instituições que, por vezes,
perpetuam a ideologia sexista por meio dos arranjos institucionais que produzem formas
estruturais de hierarquização e de discriminação (KERNER, 2012).
No grupo pesquisado, os participantes tentam romper com essa ideologia sexista
mantendo uma postura de respeito com as mulheres trans que possam vir a buscar atendimento
no serviço em que esses profissionais trabalham. Há, durante todas as entrevistas, uma tentativa
de se contrapor a um olhar discriminatório em relação às pessoas trans, o que é positivo para o
serviço:
“Ele só tem que ser atendido normalmente, como uma pessoa normal que ele
é, que deve ser aceitado assim, respeitado e só... a gente tem só que aceitar e
atender normalmente sem tratar... como eu posso dizer, com diferença e com
muito cuidado... não... tem que ser atendido normalmente como qualquer
usuário da unidade.” (Joana)

“A gente está aqui pra atender a população, a gente está aqui como profissional
e não como julgador, ou então trazendo sua crença, sua religião, essas coisas
a gente tem que deixar da porta pra fora, então independente do que você
acredita, do que você aceita, considera, aqui dentro você é a enfermeira, é
médico, é o dentista, é o profissional, então a gente tem que tratar essas pessoas
com igualdade...” (Laura)

“A gente está aqui preparado pra atender todo tipo de pessoa que apareça que
ela fez sua opção de sexo, de escolha, a gente está aqui pra atender bem como
ser humano e respeitando o espaço de cada um (...) Então ele tem livre arbítrio
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pra escolher o que ele quer, e eu acho assim escolheu então todo mundo tem
que respeitar, é a sua decisão, é a sua escolha... respeito, mas não entendo.”
(Tânia)

João e Theo também ressaltaram a questão do respeito:

“Eu busco respeitar cada tomada de decisão do outro, eu acho que o mais
importante é você... a sua decisão é você ser feliz, independente da decisão que
você vai tomar... eu tenho que respeitar você” (João)

“Eu só queria dizer assim que todo mundo tem que respeitar qualquer tipo de
ser humano, tanto da criança como jovem, adolescente, as pessoas de idade...
vamos ser humilde como todo mundo, vamos respeitar as pessoas.” (Theo)

No entanto, ao mesmo tempo em que há essa preocupação em se opor ao que está dado
pelo âmbito institucional, há também, de certa forma, uma manutenção dessa estrutura tendo
em vista que os profissionais não discutem/problematizam, ou seja, não dão visibilidade à
temática.
Evidentemente, é fundamental que esses profissionais tenham uma relação de respeito,
não só com as mulheres trans, mas com todos os que buscam o serviço de saúde, porém apenas
o respeito não basta. É preciso ter uma postura mais política para enfrentar situações de
desigualdade, como apontado por Costa (2015).
Vale destacar que Tânia, ao falar que respeitava a transexualidade/travestilidade mas
não a entendia, acabou explicitando um conteúdo que era do grupo. Pode-se dizer, como
postulado por Pichon-Rivière (1998), que Tânia agiu como porta-voz do grupo, pois ao enunciar
algo de si (verticalidade), também fez referência a um conteúdo que era grupal
(horizontalidade). Como será discutido posteriormente, todos os participantes falaram da
dificuldade de compreender essas duas identidades.
Além do respeito, outros dois aspectos relacionados à relação usuário-profissional de
saúde merecem ser destacados, um em relação à forma de abordagem no atendimento,
destacado por Joana e Laura, e outro relacionado à maneira subjetiva que Theo falou sobre as
pessoas trans.
Joana afirmou nunca ter atendido alguma pessoa trans, mas segundo ela, no geral,
ninguém teria problemas em acolher esse paciente da maneira como ele desejasse. Conforme
Joana, caso um dia ela atenda uma mulher trans, a atenderia da mesma maneira que qualquer
outra pessoa, pois não vê a necessidade de ter um atendimento diferenciado no que concerne à
forma de abordagem:
“Realmente eu não vejo que há necessidade de ter um atendimento diferenciado
assim... diferenciado como ‘ah eu tenho que atender com mais cautela, mais

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critério’, não! Atender como um usuário normal que só tem o sexo diferente do
gênero, e respeitar sua peculiaridade, sua diferença, só." (Joana)

Laura também ressalta essa questão de não conduzir o atendimento de maneira mais
cuidadosa pelo fato da pessoa ser travesti ou transexual:

“Se chega a pessoa e eu percebi que ela é transexual, ai eu já começo ‘ai meu
Deus vou tratar com cuidado pra não magoar’, a gente acaba mudando nossa
forma de atender e a pessoa percebe isso, não tem naturalidade na consulta...
e eu imagino que é o que eles menos querem... eles querem é ser tratados... se
você fica de muita delicadeza, muito minuciosa eles vão perceber, a sua
insegurança e a sua forma de nem saber como tratar e é o que eles não
querem.” (Laura)

Tratar com excesso de cuidado seria uma atitude discriminatória e, devido a isso, as
entrevistadas rejeitam essa postura, uma vez que, como já discutido, elas consideram o respeito
um aspecto importante na relação usuário-profissional de saúde.
Theo, ao falar sobre o atendimento às pessoas trans, mencionou uma relação de amizade,
considerando os aspectos mais subjetivos do seu trabalho como agente comunitário de saúde:
“São pessoas maravilhosas, me atende com o maior carinho e eu também...
retribuo daquela maneira como a gente foi capacitado pra não ter preconceito
com ninguém, é uma pessoa normal... são meus amigos, eu considero eles meus
amigos, porque quando eu chego sou bem recebido tanto pelas mulheres como
pelos homens, sem problema nenhum...” (Theo)

Foi possível perceber que essa relação mais subjetiva não se refere apenas às pessoas
trans, mas a todos os usuários que Theo tem contato. Durante a entrevista ele destacou a relação
próxima que tem com os usuários e o reconhecimento destes.
“Eu sei que a gente não vai conseguir salvar o mundo, mas se você conseguir
levar uma palavra de carinho pra pessoa que tá meio doente e tudo como eu
sempre faço às vezes... às vezes acontece de chegar uma senhora e dizer: ‘poxa,
Theo, foi bom que você me apareceu hoje, hoje eu estou muito mal e tudo’, e aí
a gente chega e diz: ‘não, a senhora vai ficar bem, fique tranquila, a senhora
toma seus remédios tudo na hora certa, vai dar tudo certinho’. Dá aquela
palavra de carinho, depois quando você retorna: ‘pô, Theo, aquele dia eu tava
tão mal e você disse aquilo pra mim, foi tão bacana’, a gente fica feliz com isso,
eu fico feliz, eu adoro o trabalho que eu faço, porque eu levo uma palavrinha a
mais.” (Theo)

É possível dizer que esse vínculo mais afetivo entre Theo e os usuários do serviço diz
respeito ao modo como Theo se apresenta para ao outro, ou seja, ao seu modo de relacionar e
também ao fato de o agente comunitário atuar como intermediário entre o serviço de saúde e a
comunidade. Na mediação entre o serviço de saúde e a população, a atuação do agente
comunitário, que se torna singular uma vez que difere da dos demais profissionais devido a sua

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inserção na comunidade, propicia a configuração de um novo espaço de troca e de diálogo: a
própria comunidade da qual faz parte e que passa a ser objeto de suas ações, tanto aquelas
vinculadas à saúde como as que se referem a outras dimensões da vida social (COHN;
NAKAMURA; GUTIERRES, 2009).
Do ponto de vista teórico-conceitual e técnico-assistencial, percebe-se a ausência de
discussões teórico-técnicas que considerem aspectos mais psíquicos, culturais e sociopolíticos.
Um exemplo disso são as ações realizadas referentes à saúde da mulher na unidade pesquisada.
As entrevistadas afirmaram que todo ano, quando se aproxima o dia internacional da mulher (8
de maio), a Secretaria de Saúde envia um documento informando que é preciso organizar algo
para esse dia específico e intensificar o atendimento durante o mês de maio para esse público.
Mas, ao falarem sobre como funcionava esse dia, destacaram ações focadas em questões sexuais
e reprodutivas de mulheres cis11, como puerpério, pré-natal, planejamento familiar, prevenção
do câncer de colo de útero, prevenção do câncer de mama etc.
A partir dessas informações, pode-se observar que o serviço de saúde em questão não
considera o significado político do dia 8 de maio, que deve ser visto como um dia de
mobilização para discussões sobre desigualdade de gênero, violência contra mulher etc. Não
são promovidas discussões nesse sentido; pelo contrário, são enfatizadas ações ligadas às
questões reprodutivas, ao biológico. Para além disso, o serviço de saúde não considera o número
elevado de violência de gênero no Estado de Roraima, violência que influencia diretamente na
saúde das mulheres. Conforme dados do Mapa da Violência publicado no ano de 2015, Roraima
foi o Estado que, proporcionalmente, apresentou o maior crescimento no número de homicídios
de mulheres, um aumento correspondente a 343,9% em dez anos (WAISELFISZ, 2015).
Outro ponto a ser analisado aqui é a não inclusão, pelo Ministério da Saúde, de mulheres
trans na política nacional de atenção integral à saúde da mulher, o que pode ser considerado
uma forma de sexismo institucional.
Ainda sobre as discussões teórico-técnicas em torno das questões de gênero, notou-se
que os participantes possuem uma noção dos conceitos de sexo e gênero, no entanto, faltam
discussões teóricas mais profundas. Para Joana, Laura, Tânia e João, sexo está relacionado ao
que já está definido, ao biológico, ao passo que gênero seria uma “opção”.
“Sexo eu acho que é o que a pessoa nasce definido, por exemplo, masculino e
feminino, gênero é a sua opção, no caso você nasceu com o sexo masculino,
mas se vê como uma mulher. Na minha opinião é isso a diferença, não sei se tá
certo.” (Laura)

11
O termo mulheres cisgênero, ou mulheres cis, refere-se àquelas que se identificam com o gênero que lhe
foi atribuído ao nascimento.
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“Ele nasceu do jeito que Deus fez ele né, você vai ser homem, ele não aceitou
ser homem, não aceitou que ele nasceu homem, então é uma escolha dele, ele
escolheu mudar, todo mundo tem o direito de mudar, nasceu homem, mas quer
ser mulher...” (Tânia)

“O sexo é como você nasce, o gênero é como você quer ser tratado, muitas
vezes você tem uma opção... você tem a sua opção sexual, entende que é mulher,
mas no sexo você é homem...” (João)

Vale lembrar que, segundo Scott (1995), o gênero é histórica, social e culturalmente
construído e independente do sexo biológico. Ao enfatizar o caráter social do gênero não há a
pretensão de negar que ele se constitui sobre corpos sexuados, mas sim ressaltar a construção
social e histórica produzida sobre as características biológicas (LOURO, 2003).
Além disso, ao serem perguntados acerca do que entendiam sobre ser transexual e ser
travesti, os participantes afirmaram que é confuso entender a transexualidade e a travestilidade.
Joana e Laura contaram que, após o primeiro encontro do grupo, ficaram discutindo entre elas
as diferenças entre essas duas identidades. A conclusão a que chegaram é que a pessoa
transexual é aquela que não se identifica com o seu sexo biológico enquanto a travesti é um
homossexual que gosta de se vestir de mulher, ou seja, a travestilidade estaria ligada à
orientação sexual. Isso pode ser observado na fala abaixo:

“Travesti é o homem homossexual que gosta de se vestir de mulher, é o que eu


penso. Transexual é a pessoa que se sente mulher, ela olha no espelho, por
exemplo, ela vê uma figura masculina, mas ela não se vê como homem, na
essência dela, o espírito dela, o comportamento, o sentimento tudo é feminino.
Então ela é mulher de essência, tem o corpo masculino, mas é mulher de
essência, ela não só gosta... não é a questão de opção sexual assim, não é a
questão de ‘ah eu sou homem eu gosto de outro homem’, não é que ela goste de
um homem, é que ela se sente mulher, se sente no corpo trocado.” (Laura)

Theo, ao falar sobre a transexualidade e travestilidade, também as relaciona à orientação


sexual:
“A diferença, querida, é porque a mulher gosta da mulher né e o homem gosta
do homem, eu acredito que a diferença só é essa (...)” (Theo)

Essa confusão entre orientação sexual e transexualidade/travestilidade é compreensível,


pois, como afirma Louro (2003), as identidades de gênero e sexuais estão profundamente inter-
relacionadas, frequentemente nossa linguagem e nossas práticas as confundem, tornando difícil
pensá-las de maneira separada. Além disso, essa temática não faz parte da rotina desses
profissionais, pois não existem discussões que abordem essas questões.
49
Laura, Joana e Tânia utilizam estereótipos para diferenciar a travesti da transexual. Para
elas, esta última se comporta de fato como mulher, enquanto que a travesti é mais exagerada e
tem comportamentos considerados inadequados. Nas palavras de Joana:
“E ainda tem aquela questão né que eu acho que o travesti ele é mais
exagerado, eu percebo que ele é mais exagerado, ele quer... mais se fantasiar
né de mulher no caso, geralmente um homem que se fantasia de mulher e o
transexual não, ele se transforma mesmo de alguma forma... O comportamento,
ele tem mesmo uma postura como mulher e vice e versa, não é só a roupa, ele
se comporta mesmo, se transforma mesmo no sexo oposto... [a travesti] é tudo
exagerado né, saltão desse tamanho, uma maquiagem com glitter, uma
peruca muito exagerada, uma roupa muito, muito, geralmente vulgar
né...” (Joana)
Percebe-se aqui que essa diferenciação, que coloca as travestis como pessoas
exageradas, que possuem um comportamento considerado vulgar e as transexuais como as que
têm uma postura de mulher, produz uma hierarquização de identidades. Para além disso, essa
afirmação reproduz a ideia de que existe uma essência feminina12.
Em entrevista cedida a Carvalho (2011), a travesti Fernanda Benvenutty afirma que há
uma disputa entre o que é ser travesti e ser transexual, sendo, frequentemente, a transexual
considerada a “limpinha”, o modelo de mulher, que tem que ser comportada, não pode falar
palavrão etc, enquanto a travesti é a marginalizada, a pobre, a cafetina, a prostituta
(CARVALHO, 2011). Bento (2008, p. 75), ao comentar sobre essa disputa das identidades,
afirma que “ser transexual soa como algo que confere mais legitimidade e poder, enquanto a
travesti é construída como a outra radical, como se a categoria médica ‘transexual’ fizesse o
trabalho de limpeza, assepsia de uma categoria da rua.”
Além da atribuição de uma essência feminina às mulheres transexuais, os participantes
também atribuíam a essas pessoas algumas características, tanto positivas como negativas.
“Tem uns que são muito ‘espaceiros’, já trabalhei com eles na minha vida
profissional, dois colegas que eram, tinha um que era muito bagunceiro, foi até
transferido do hospital porque ele era muito barraqueiro e outro tranquilo, bem
inteligente, a maioria são muito inteligentes, eles gostam de desenhar, pintar,
eles são muito inteligentes pra decorar...” (Tânia)

É preciso tomar cuidado com essa essencialização das identidades trans, pois isto acaba
atribuindo e/ou reforçando estereótipos a essas pessoas. Vale ressaltar que a transexualidade e
a travestilidade não estão relacionadas com caráter ou inteligência, mas sim (e unicamente) a
uma identidade de gênero, a qual é construída socialmente.

12
A ideia de uma essência feminina consiste na crença de que existem características inatas a mulher, como
delicadeza, organização, sensibilidade, fragilidade etc.
50
Retomando o que foi dito em relação ao âmbito intersubjetivo, embora as entrevistadas
ressaltem a questão do respeito, ainda que estabeleçam relações respeitosas/não
discriminatórias com essa população, tacitamente, podemos dizer que há algum nível de
preconceito, uma vez que possuem um olhar estereotipado em relação às identidades trans.
No que concerne ao âmbito técnico-assistencial, dois aspectos foram destacados: um
específico, referente ao atendimento de mulheres trans, e outro geral relacionado ao trabalho
desenvolvido na unidade pelos profissionais.
Em relação ao atendimento de mulheres trans, os participantes relataram que nenhuma
transexual ou travesti foi atendida na unidade. No entanto, Laura e Tânia afirmaram que já
atenderam pessoas trans quando trabalhavam em outra unidade. Laura contou sobre duas
experiências que teve: uma com uma mulher trans, que já era bem conhecida na unidade e todos
a chamavam pelo nome social; e outra com um homem trans, que, segundo Laura, o
atendimento foi um pouco confuso para ela:
“Ela usava alguma coisa que não dava pra ver o seio, era... parecia um homem
mesmo de verdade, e ela falou que estava fazendo o uso de hormônios, então a
voz era grossa, ela tinha já, tava nascendo a barba... então só foi confuso por
isso, porque eu tava no dia de preventivo e eu recebi aquele homem na minha
sala, aí, quando eu vi, eu falei: ‘você veio fazer o que?’, aí: ‘eu vim fazer
preventivo’, aí quando eu olhei o nome no prontuário, não tinha o nome social,
tava o nome feminino e ela não tinha nome social ainda né (...) e aí fica bem
confuso nesse sentido, a gente não sabe pelo que chamar se a pessoa não deu
o nome social.” (Laura)

Essa confusão de Laura é decorrente da forma como se estrutura o gênero em nossa


sociedade, a partir de um sistema binário assentado no corpo-sexuado:
vagina/mulheres/feminino versus pênis/homens/masculino. Os olhares acostumados com essa
divisão ficam confusos diante do corpo que não corresponde a essa lógica binária (BENTO,
2008).
No que concerne ao aspecto geral, ao falarem sobre o trabalho desenvolvido na unidade,
todos os participantes citaram questões reprodutivas e doenças como hipertensão e diabetes
para ilustrar as principais demandas existentes no serviço. É importante ressaltar que tais
demandas fazem parte de grupos definidos como prioritários pelo Ministério da Saúde, desta
forma, o serviço está de acordo com o que está preconizado. No entanto, falta iniciativa dos
próprios profissionais para pensar outras práticas além daquelas relativas às demandas ligadas
ao corpo, por exemplo, demandas psíquicas, sociopolíticas etc.
É importante destacar, como afirma Cecilio (2009), que a demanda do usuário pode ser
por consultas, remédios, mas as necessidades de saúde podem ser outras e é necessário que os

51
profissionais tenham o compromisso em ouvir atentamente as necessidades trazidas pelos
usuários que buscam atendimento, às vezes, ou muitas vezes, elas aparecem nas entrelinhas.
Conforme o autor, a ênfase da gestão, da organização da atenção e da capacitação dos
funcionários deveria priorizar a capacidade de escutar e atender essas necessidades de saúde,
indo além do que a simples adesão de qualquer modelo de atenção já definido. Mesmo que
exista uma relação de determinação do Ministério da Saúde, uma vez que este tem o poder de
definir diretrizes das políticas de saúde, para os serviços de saúde, este último pode trabalhar
com um alto grau de autonomia, indo além das determinações políticas definidas pelo
Ministério (CECILIO, 2009).
Percebe-se que as práticas dos profissionais estão muito ligadas à noção de saúde como
ausência de doença e ao tratamento dessas doenças. Conforme Batistella (2007) essa concepção
de saúde como ausência de doença é, em muitos aspectos, limitada, pois reduz a saúde ao
meramente biológico, descartando o corpo subjetivo e desconsiderando determinantes
econômicos e sociais dessa questão.
Dejours (1986), ao discutir sobre o conceito de saúde, propõe uma definição mais ampla
e crítica à da Organização Mundial da Saúde, que afirma que a saúde seria um estado de
conforto, de bem-estar físico, mental e social. O autor pontua que esse estado completo de bem-
estar psicossocial na verdade não existe, mas que podemos considerá-lo como um estado ideal,
que não chega a ser concretamente atingido, mas sobre o qual temos esperanças. Assim, a saúde
seria um objetivo a ser atingido, sendo entendida como a busca constante de tal estado.
Além disso, Dejours (1986) propõe quatro observações para se pensar saúde: 1) não é
algo que vem de fora, ainda que dependa das condições externas, sociopolíticas; 2) é algo que
se ganha, se enfrenta e de que se depende, sendo o papel do indivíduo fundamental nesse
processo; 3) não é estável e sim algo que muda o tempo todo; 4) é uma sucessão de
compromissos com a realidade do ambiente material, com a realidade afetiva, relacional e
familiar e com a realidade social.
De maneira geral, para o autor, a saúde pode ser entendida como “ter meios de traçar
um caminho pessoal e original, em direção ao bem-estar físico, psíquico e social.” (DEJOURS,
1986, p. 8). Possuir esses meios é ter a liberdade de regular as variações que aparecem no estado
do organismo (bem-estar físico), a liberdade que é deixada ao desejo de cada um na organização
de sua vida (bem-estar psíquico) e a liberdade de agir individual e coletivamente na organização
do trabalho (bem-estar social).

52
Além das práticas realizadas no serviço em questão, os cursos e palestras voltados para
formação e oferecidos na unidade encontram-se nessa mesma linha de priorizar questões
voltadas ao corpo/biológico.
“A gente faz curso sobre tudo, sobre tuberculose, hanseníase, sobre tudo, tudo
que envolve a saúde a gente faz, fez sempre, mas relacionado a transexuais
não” (Joana)

“[Os temas dos cursos] são voltado pra diabetes, hipertensão, voltado mais pra
estratégia saúde da família, a porta de entrada mesmo... não tem exclusivo
assim tratar do assunto LGBT” (João)

Evidentemente, alguns cursos/palestras fazem parte de programas verticais do


Ministério da Saúde, ou seja, já são pré-estabelecidos. Porém, durante a entrevista, João afirmou
que alguns cursos/palestras são definidos pelos próprios funcionários. Aqui surge uma questão:
Se estes profissionais possuem a possibilidade de criar e de ter uma ação mais política em
relação às suas práticas de saúde, por que continuam focando tão somente em cursos ligados ao
corpo/biológico?
É crível considerar que essa falta de iniciativa está relacionada à necessidade de
formação desses profissionais de saúde, uma formação mais política, que considere as questões
mais psíquicas e culturais, e que fosse além dessas demandas verticais estabelecidas.
Scarcelli e Junqueira (2011) afirmam que a formação é um aspecto importante na
construção do SUS. Segundo as autoras, as políticas e estratégias para a formação dos
profissionais de saúde precisam ir além do sentido estrito de instrução, capacitação e
aperfeiçoamento, e buscar ações que possibilitem a produção de conhecimentos e mentalidades,
de jeitos de estar, de comprometimento com a coisa pública junto à descoberta e ao exercício
do processo de criação.
As autoras ressaltam que apenas a apresentação de modos de fazer e de técnicas voltadas
para um aperfeiçoamento de estruturas que podem se burocratizar não basta, é preciso que se
criem condições para a construção desses modos de fazer, de pensar, de esquemas conceituais
que possibilitem a implementação criativa de práticas e a ressignificação das políticas
orientadoras (SCARCELLI; JUNQUEIRA, 2011).
Outro ponto discutido durante as entrevistas, relacionado ao âmbito político-jurídico,
foi sobre as políticas específicas voltadas para a população trans. De maneira geral, os
participantes não conheciam tais políticas, a única informação específica que foi passada aos
profissionais sobre essa população era relacionada ao uso do nome social, o que é um passo

53
importante para o acolhimento-atendimento das mulheres trans, tendo em vista o significado
que o reconhecimento do nome social tem para essas pessoas.
Tagliamento (2012), ao discutir sobre o desconhecimento dos profissionais de saúde
acerca das resoluções e políticas que abordam as questões trans, afirma que há a necessidade
de oferecer uma maior capacitação para esses profissionais, pois não basta criar o documento,
encaminhá-lo para os serviços de saúde sem que haja a garantia de que esses profissionais
conheçam essas políticas/resoluções.
Os participantes assinalaram a falta de iniciativa da Secretaria de Saúde em realizar
ações que os informem sobre as questões que envolvem a população LGBT, como, por
exemplo, a realização de cursos ou palestras.
“De início, como não tem nenhuma ação voltada pra esse grupo, eu acho que
já precisaria reunir os profissionais, fazer uma capacitação, uma oficina, uma
palestra, alguma coisa, porque pelo menos enquanto não tem um programa
específico aqui, uma coordenação específica, pelo menos que alguém fique
responsável por orientar os profissionais em geral, porque os profissionais não
estão sendo orientados” (Laura)

“Pra eu poder fazer, passar informação, ou trabalhar em cima desse programa


dessa população, desse público, eu preciso conhecer bem, né?! e eu não
conheço, realmente eu não conheço, todas nós falamos aqui que não é algo
comum pra gente, pra isso eu preciso ser capacitada, eu preciso ser informada
de tudo, dos direitos, do que que ocorre, do que eu devo, o que não devo, como
é feito com os outros programas... então, antes de mais nada, antes de poder
oferecer qualquer coisa, é preciso que seja oferecido pra mim, entendeu? um
treinamento, uma capacitação” (Joana)

Nesse ponto, percebe-se que há um espaço entre o que foi pensado enquanto política
para essa população e o que é implementado nos serviços, pois, como ilustração, este ano, no
dia da visibilidade trans, foi lançada a campanha “Cuidar bem da saúde de cada um. Faz bem
para todos. Faz bem para o Brasil”, voltada para os profissionais de saúde, trabalhadores e
gestores do SUS, com foco na saúde integral, atendimento humanizado e respeito para as
travestis, mulheres e homens transexuais. Na UBS onde foi realizada a pesquisa, os
profissionais não foram informados sobre tal campanha. Foram entregues apenas os cartazes
para o diretor da unidade na época, mas não houve nenhuma conversa ou discussão sobre o
tema. Desta forma, os cartazes e, consequentemente, a campanha acabaram tornando-se um fim
em si mesmo.
Vale assinalar a importância de se criar espaços de discussões nos serviços de saúde que
abordem questões mais psíquicas, sociopolíticas, como apontado anteriormente. É por meio de
ações no nível das micropolíticas que os profissionais podem repensar suas práticas. Nas
entrevistas em grupo foi possível perceber, de um encontro para outro, o efeito que o espaço de
54
discussão propiciado pela pesquisa causou na percepção das funcionárias em relação à temática
da transexualidade/travestilidade. Inclusive, este fato foi assinalado por elas mesmas:
“Eu quero falar que eu gostei muito da pesquisa... serviu até pra abrir meus
olhos em relação a esse público ou a partir de agora eu tentar pesquisar mais,
não que eu não desse importância, mas assim veio os questionamentos né, com
a pesquisa veio os questionamentos e em cima desses questionamentos vou
procurar me informar mais, então serviu pra abrir meus olhos em relação a
esse público.” (Joana)

“No meu caso também é a mesma coisa... serviu pra gente refletir bastante,
tirar as dúvidas que a gente tinha né, que a gente não tinha com quem tirar
essas dúvidas... e também assim, fazer com que a gente reflita a respeito de
como que tá o serviço de saúde, que não está tão preparado quanto a gente
imaginava, né?! e que precisa realmente ampliar mais essa discussão dentro
dos funcionários, dentro da área da saúde, dos servidores, das unidades.”
(Laura)

É plausível pensar, a partir desses recortes, que as entrevistadas se envolveram com a


tarefa do grupo, o que permitiu a ocorrência de aprendizagem e a formação de um ECRO em
comum. Retomando as contribuições de Pichon-Rivière (1998), em cada sujeito existe um
esquema conceitual referencial operativo (ECRO) que vai se modificando na situação grupal,
por meio da tarefa, e se configura em um novo esquema referencial em comum. No grupo
pesquisado, as entrevistadas discutiram sobre os aspectos teórico-conceituais acerca dessas
identidades de gêneros, e, consequentemente, puderam repensar suas práticas a partir desse
novo esquema conceitual formado. Há ainda muito a ser considerado sobre esse tema, mas
houve um início de conversa e de transformação entre elas. Lembrando que aprender/pensar
criticamente sobre diferentes aspectos da vida é, para esse teórico, sinônimo de saúde.
Ainda sobre o âmbito político-jurídico, ao serem perguntados sobre o que pensavam
sobre a existência de uma política específica para o grupo LGBT, Theo afirmou que concorda
que deve existir tais políticas. Joana e Laura afirmaram, no primeiro encontro do grupo, que
não viam a necessidade. Já no segundo encontro, disseram que, após refletirem sobre o assunto,
notaram que existem demandas específicas para essa população que devem ser consideradas:
“Como a gente já discutiu hoje aqui, a gente viu várias coisas que não estão
incluídas no nosso dia a dia pra população hétero, que são serviços ofertados
e que realmente existe a necessidade de uma política que lute por essas coisas
para esse grupo, como é a questão do planejamento familiar, como essa
questão do treinamento dos próprios profissionais pra atender melhor essa
população, porque, às vezes, a gente acha que está preparada e a gente não
está.” (Laura)

“Realmente tem que ter políticas voltadas para a demanda deles, tipo
especificamente o planejamento familiar a gente não tem, a gente pode atender,
abordar esse público normalmente como deve ser feito, mas quando eles vierem
falar ou nos dizer o que realmente eles querem, a gente não vai ter uma resposta
55
né... então realmente uma política diferenciada para esse público eu acho que
é bom mais nesse sentido de saber direcionar esse paciente corretamente, de
atender a necessidade dele corretamente, acho que isso sim, voltado a isso vai
ser interessante, é importante sim.” (Joana)

Em contrapartida, Tânia e João afirmaram que não viam necessidade de se criar uma
política específica para esse público. Tânia acredita que a única necessidade consiste em um
treinamento para os profissionais, para que saibam qual a melhor forma de atender essa
população.
“Olha só fazer um programa específico pra essa demanda eu acho que não
havia necessidade, mas um treinamento para os profissionais que atuam
diretamente com esse público eu acho que sim, entendeu... treinamento,
orientar, pra gente ter mais uma segurança em conversar, em passar as
informações pra eles, direcionamento, as coisas que eles venham a buscar na
unidade, eu acho que o profissional tem que tá preparado” (Tânia)

Mattos (2009), Teixeira (2011) e Paim (2009) salientaram a importância de se criar


políticas específicas para grupos específicos no sentido de se priorizar ações que busquem, ao
mesmo tempo, superar situações de desigualdades sociais e promover democracia. Ações com
esse norte são (ou podem ser), simultaneamente, de prevenção contra violência/desigualdade
política e de promoção de qualidade de vida. Ademais, dizem respeito ao princípio de equidade
tanto quanto de integralidade e podem redundar na universalidade do acesso a serviços de
saúde. Para tanto, e tendo em vista esses princípios doutrinários, é função do serviço de saúde
ser pró-ativo, criar ou ir atrás da demanda: não necessariamente uma mulher trans irá procurar
um serviço para falar sobre a violência que ronda a sua vida, sobre o fato de saber que uma
colega foi assassinada e que ela própria poderá ser a próxima, mas, se o serviço trouxer à tona
essa temática, é possível que ela seja discutida e ecoe.
Evidentemente, é importante que se tenham políticas específicas para certos grupos, no
entanto, é preciso entender que a garantia do direito à saúde vai além da simples produção de
documentos, mas envolve também o comprometimento ético-político dos profissionais de
saúde com os grupos politicamente minoritários.

56
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, procurou-se compreender de que maneira ocorria o acesso de mulheres


transexuais e travestis em uma unidade básica de saúde, considerando: o conhecimento dos
profissionais acerca de políticas/normas/portarias que regulamentam o atendimento de
mulheres trans; as concepções de sexo e gênero que direcionam as práticas desses profissionais;
como ocorre o acolhimento-atendimento de mulheres trans na UBS e a dinâmica da relação
usuário-profissional de saúde.
O serviço onde foi realizada a pesquisa, segundo informações dos funcionários, nunca
atendeu uma pessoa transexual ou travestis. Entretanto, alguns aspectos puderam ser
observados, tanto em relação a questões específicas dessa população como ao funcionamento
da unidade e suas práticas.
Pôde-se perceber que a temática transexualidade e travestilidade não fazia parte das
rotinas dos profissionais, assim, não havia discussões entre eles a esse respeito. Contudo,
mesmo que estes profissionais não tenham tido contato com a temática ou com as ações sobre
a população LGBT que deveriam ser desenvolvidas pela Secretaria de Saúde, demonstraram
interesse em conhecer um pouco mais dessas duas identidades, bem como uma postura de
respeito em relação às pessoas trans.
Nesse ponto, vale destacar que o espaço de discussão proporcionado pela pesquisa
permitiu que os participantes pudessem pensar acerca das suas práticas e buscassem conhecer,
de maneira mais profunda, sobre as identidades trans. A construção de espaços de trocas de
saberes é fundamental em um serviço público que busca apreender as necessidades de saúde
dos usuários de maneira integral, considerando as diversas dimensões da vida social.
Além disso, foi possível perceber o hiato existente entre o que foi pensado enquanto
política para a população trans (âmbito político-jurídico) e o que ocorre em termos práticos nas
unidades (técnico-assistencial). Como já mencionado, dentre outras coisas, a sensibilização de
profissionais da saúde para que ofereçam um atendimento à população trans livre de
preconceito e discriminação ainda é um dos temas mais recorrentes nos planos, programas e
demais documentos que apresentam diretrizes, objetivos e metas para as políticas públicas de
saúde formuladas para esta população (MELLO et al., 2011), entretanto, como pudemos
constatar, não é o que se observa na prática.
Scarcelli (2011), ao discutir tais âmbitos, afirma que há um distanciamento entre os
níveis definidores de políticas e aqueles que produzem as práticas no cotidiano dos serviços.
57
Ademais, entre esses dois âmbitos, por vezes, há falta de referenciais e/ou excesso de conceitos.
Esse ponto destacado pela autora também foi observado no serviço onde foi realizada a
pesquisa, pois notou-se uma ausência de discussões que considerassem questões para além do
saber biomédico, como, por exemplo, discussões acerca das questões de gênero.
A noção de saúde relacionada apenas ao corpo/biológico perpassa tanto o âmbito teórico
como o prático, o que acaba cristalizando a oferta de serviços da unidade. Nesse cenário, a
formação torna-se, dentre outras possibilidades, essencial para que ocorra uma ampliação dos
conceitos e, consequentemente, das práticas desses profissionais. Mesmo que ocorra esse
descompasso entre o que está posto enquanto política e o que ocorre na prática, e que existam
políticas verticais que guiam o trabalho na unidade, é necessário criar condições para construção
de esquemas conceituais que possibilitem a implementações de práticas criativas e
ressignificação das políticas orientadoras, como apontado por Scarcelli e Junqueira (2011).
Além da formação, outro aspecto importante é o compromisso ético-político por parte
da equipe de saúde com esses grupos minoritários para que estes tenham o direito à saúde
garantido.
No entanto, não podemos deixar de considerar os obstáculos enfrentados por esses
profissionais, uma vez que o número de funcionários para preencher as equipes é considerado
escasso comparado à demanda de trabalho existente na unidade. Devido a essa falta de recursos
humanos, os funcionários ficam sobrecarregados e, muitas vezes, não conseguem realizar o
trabalho da maneira esperada.

58
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62
APÊNDICES

63
APÊNDICE 1 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO – TCLE

Você está sendo convidada pela pesquisadora Aline Cândida da Silva, acadêmica do Curso de
Psicologia do Centro de Educação (CEDUC) da Universidade Federal de Roraima (UFRR), sob
a orientação da Profª Drª Eliane Silvia Costa, a participar do estudo intitulado: “Acesso de
mulheres trans aos serviços de saúde: o olhar de profissionais de uma Unidade Básica de
Saúde”. O estudo tem como objetivo analisar como ocorre o acesso de mulheres trans em uma
Unidade Básica de Saúde (UBS) de Boa Vista a partir da perspectiva de profissionais. Esta
pesquisa contribuirá para as discussões acerca do acesso de mulheres trans à saúde pública,
sobretudo no nível da atenção básica. Sua participação, nesta pesquisa, consistirá em discutir
sobre o tema por meio de entrevistas em grupo, a partir da qual você poderá sentir-se livre para
expressar outras questões relacionadas à temática que considerar importantes. Serão realizados
três encontros, dois para a entrevista e um para a devolutiva, com duração de uma hora e meia
cada. Como riscos mínimos previstos em participar deste estudo, existe a possibilidade de
eventual desconforto psicológico pela manifestação de diferentes emoções, como por exemplo,
a tristeza gerada pela reflexão e/ou pela recordação que alguma pergunta possa desencadear ao
participante. Os benefícios de participar deste estudo consistem na possibilidade de refletir
sobre o atendimento de pessoas trans no serviço público de saúde. Além disso, o participante
poderá pensar acerca das práticas de saúde da instituição em que trabalha e discuti-las com os
outros profissionais. Esclarecemos que sua participação no estudo é totalmente voluntária e,
portanto, você não é obrigada a fornecer as informações e/ou colaborar com as atividades
solicitadas pela pesquisadora, podendo, a qualquer momento, desistir do mesmo. Caso discorde
ou sinta-se constrangida em responder, você pode declinar da pesquisa no momento que
preferir, sem que isso traga qualquer prejuízo à sua pessoa. Asseguramos, ainda, o caráter
anônimo e confidencial de todas as suas respostas e de sua identidade, sendo reservada sua
identificação ou dados que possam comprometê-la.

Ciente, autorizo a realização dos procedimentos acima citados e a utilização dos dados
originados destes procedimentos para fins didáticos e de divulgação em revistas científicas
brasileiras ou estrangeiras e eventos científicos contanto que sejam mantidas em sigilo as
informações relacionadas à privacidade. Desta forma, concordo voluntariamente e dou meu
consentimento, sem ter sido submetido a qualquer tipo de pressão ou coação.

Eu________________________________________, declaro estar ciente do anteriormente


exposto e concordo voluntariamente em participar desta pesquisa, assinando este consentimento
em duas vias, ficando com a posse de uma delas.

Assinatura do participante da pesquisa _______________________________________

64
Eu, ______________________________________, declaro que forneci todas as informações
referentes a pesquisa ao participante, de forma apropriada e voluntária.

Assinatura do pesquisador _________________________________________________

Boa Vista, RR _________ de ___________ de 2016.


___________________________________________________________________________
_____

Se necessário, para fins de esclarecimentos, entrar em contato com a pesquisadora no endereço


abaixo:

Nome: Aline Cândida da Silva


Fones: (95) 981022149. E-mail: alline_candida@hotmail.com

Nome: Eliane Silvia Costa


Endereço: Av. Capitão Ene Garcez, Nº 2413, Bairro: Aeroporto - Centro de Educação –
CEDUC.
E-mail: eliane.costa@ufrr.br

Endereço do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UFRR): Avenida Cap. Ene Garcez, 2413 –
Aeroporto (Campus do Paricarana), Bloco da PRPPG (Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-
graduação). Fone: (95) 3621-3112 Ramal 26.

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