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O líder do movimento que pôs fim à República Oligárquica, dando início a uma
nova era na história política brasileira, foi, sem dúvida, uma figura polêmica. Aliás, a
própria Revolução de 1930, reconhecida pela literatura especializada como um fato
marcante da trajetória do país em direção à modernidade, foi também, ao longo do
tempo, objeto de interpretações contraditórias, tal como nos mostra Boris Fausto, em
seu conhecido livro A Revolução de 1930.
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Texto apresentado no Seminário Internacional “Da Vida para a História: O Legado de Getúlio Vargas”, realizado em
Porto Alegre, entre 18 e 20 de agosto de 2004. Agradeço aos organizadores do evento o gentil convite para participar
como expositora do Painel 4 “Getúlio Vargas, Economia e Política Externa”. O argumento aqui desenvolvido baseia-
se no estudo que publiquei no livro Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil: 1930-1945”. Rio de Janeiro: Paz e
Terra.1978.
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morte, a figura de Getúlio Vargas sobrevive a todos os ataques e sua memória
permanece viva.
O primeiro par se desdobra entre, de um lado, uma visão que enfatiza em Vargas
a personalidade essencialmente conciliadora, a capacidade de articulação política, a
habilidade de construir consensos e harmonizar interesses distintos e até mesmo
antagônicos. Enfim, sob essa ótica, é seu lado negociador que assume o primeiro
plano.
Por outro lado, tem-se a imagem oposta que ressalta as inclinações autoritárias
de Vargas. Este seria antes de tudo um líder zeloso de sua autoridade, dotado de um
caráter fortemente centralizador, avesso à consulta e ao diálogo, incapaz de conviver
com o dissenso e, portanto, intransigente com a oposição. Tal vocação se expressaria
plenamente durante a ditadura do Estado Novo.
A esta imagem podemos contrapor uma outra, que exalta em Vargas a figura do
líder carismático. Enquanto tal, sua marca seria a grande sensibilidade política capaz
de conquistar a simpatia e, sobretudo, o apoio popular. Lembremos que o carisma é um
dom de liderança que desperta nos seguidores sentimentos profundos de identificação
com o líder e o reconhecimento de seu papel de guia incontestável. Sob esse aspecto,
Vargas seria percebido como o líder providencial capaz de traduzir as aspirações das
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classes desvalidas, tirando-as do limbo e do anonimato em que se encontravam, como
reflexo de uma situação de extrema exclusão política.
Já o Vargas dos anos 50, presidente eleito para governar o país numa nova fase
de sua história política, aparece sob uma nova luz. Aqui o que se enfatiza é a
capacidade de comunicação direta com os setores populares, a sintonia com uma
sociedade caracterizada cada vez mais pela presença das massas urbanas na política.
O que se destaca, então, é seu papel como líder trabalhista à frente de um movimento
nacionalista e popular que busca afirmar-se diante de uma elite arredia e conservadora,
num contexto democrático e competitivo.
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2- A Era Vargas: visões divergentes
Na verdade, ao longo das várias fases em que se pode subdividir os quase vinte
anos da Era Vargas – o governo provisório de 1930 a 1934, o governo constitucional de
1934 a 1937, a ditadura do Estado Novo de 1937 a 1945 e, por fim, o mandato pelo
voto direto, iniciado em 1951 e tragicamente interrompido em 1954 – Vargas revelou
todas essas facetas. Em seu pragmatismo, adaptou-se às circunstâncias cambiantes do
contexto internacional e da política interna, movendo-se cautelosamente em função das
crises e oscilações típicas daquele momento histórico.
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Lampedusa, Tomasi Di. O Leopardo. Porto Alegre: L&PM editores. 2ª edição. 1983: 35.
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Portanto, 1930 é certamente um divisor de águas na história do Brasil. O período de
15 anos que se desdobra entre 1930 e 1945 foi um momento histórico decisivo na
trajetória do país, que, através das reformas introduzidas por Vargas, ingressa numa
nova etapa. A partir de então, a história se dividirá entre antes e depois de Vargas. Se,
neste percurso, podemos detectar continuidades, os pontos de ruptura foram,
certamente, mais relevantes.
Desta forma, podemos afirmar que 1930 representou efetivamente importante etapa
na construção do capitalismo industrial brasileiro. Coube ao primeiro governo Vargas
administrar essa transição da ordem agro-exportadora para a era urbano-industrial. O
Estado foi o agente deste esforço de transformação, mobilizando os recursos externos
e internos, criando incentivos à produção doméstica, apoiando a indústria nacional,
buscando ao mesmo tempo atrair os investimentos externos necessários. Sob o
impacto deste conjunto de políticas, observou-se a incorporação dos principais atores
da ordem capitalista em formação, empresários e trabalhadores industriais.
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Ver Villela, A. e Suzigan, W. Crescimento Industrial e Industrialização, discutido em Diniz, E. op.cit. especialmente
capítulo 2.
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3- Empresariado Industrial e Capitalismo no Brasil dos anos 30
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lançaram os fundamentos político-institucionais da ordem industrial em gestação.
Tiveram, pois, um impacto basicamente inovador, abrindo o caminho para a ascensão
dos interesses ligados à produção fabril e ao fortalecimento do mercado interno. Desta
forma, impulsionaram mudanças na coalizão dominante mediante a incorporação das
elites industriais emergentes, embora sem desalojar as elites tradicionais, configurando
o chamado Estado de compromisso, para usarmos a feliz expressão de Boris Fausto.
Com o suporte da nova coalizão, foram executadas as políticas que implantariam o
novo modelo econômico voltado para a industrialização e calcado no tripé empresa
nacional privada, empresa estatal e empresa estrangeira, que perdurou ao longo de
todo o período de vigência da industrialização por substituição de importações (1930-
1980).
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Outra mudança de peso refere-se ao padrão de articulação entre o Estado e a
sociedade mediante a instauração da estrutura corporativa de representação de
interesses. O novo padrão, inspirado no modelo corporativo, permitiria a incorporação
política dos atores emergentes – empresariado industrial e trabalhadores urbanos –
numa estrutura hierárquica e verticalizada, sob a tutela do Estado. Este modelo de
corporativismo estatal concedeu maior liberdade de ação aos empresários, em
contraste com os trabalhadores urbanos, submetidos à disciplina e ao controle do
Estado, sob o lema da “paz social” e do princípio da “colaboração entre as classes”,
típicos da modalidade de corporativismo aqui implantado. Como é sabido, Oliveira
Vianna foi a um tempo o principal teórico e arquiteto do novo sistema, que se completa
com a criação dos inúmeros órgãos técnicos, conselhos e comissões, no interior da
burocracia estatal. Tais órgãos, nos quais se abriu espaço para a representação dos
interesses empresariais, tinham um caráter consultivo, funcionando como um fórum de
debates entre elites técnicas e empresariais e como arenas de negociação entre os
setores público e privado.3 Já no final da guerra, dois desses órgãos (o Conselho
Nacional de Política Industrial e Comercial e a Comissão de Planejamento Econômico)
foram palco da célebre polêmica, contrapondo, de um lado, o líder industrial, Roberto
Simonsen e, de outro, o liberal Eugênio Gudin, em torno da preservação ou da extinção
do modelo de Estado intervencionista e planificador.
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Entre os mais importantes, podemos citar o Conselho Federal de Comércio Exterior (CFCEX), criado em 1934, o
Conselho Técnico de Economia e Finanças (CTEF), criado em 1937, a Comissão de Mobilização Econômica (CME),
de 1942, o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), criado em 1943 e a Comissão de
Planejamento Econômico (CPE), criada em 1944.
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7- Os Empresários e o Estado Novo
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se afirmaram como atores políticos fundamentais ao longo de todo esse período,
peças-chave da ascensão de Vargas ao poder e do golpe de 1937, participaram da
conspiração para depô-lo, tornando inevitável a sua queda em 1945.
Fonte:
http://neic.iuperj.br/textos/O%20Legado%20da%20Era%20Vargas-semin%C3%A1rio.doc.
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