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Vários autores têm refletido sobre o indivíduo como uma ca-

tegoria histórica desenvolvida nos países ocidentais juntamente


com a organização social e econômica moderna, capitalista e
mais tarde industrial, e o significado do individualismo como
um conjunto de valores cujo eixo é formado pelos princípios
de liberdade e igualdade. I
Dumont (1977),em uma análise já clássica, argumenta que,
com o desenvolvimento dos valores individualistas no mundo
ocidental, a hierarquia deixou de ser pensada como algo natu-
ral entre as pessoas, passando a ser pensada a partir do princí-
pio de que existe uma igualdade natural entre elas. No pensa-
mento liberal clássico, Locke foi precursor desta nova concep-
ção de igualdade, pois foi a partir dele que a hierarquia deixou
de ser pensada como pertencente à ordem natural e começou
a ser vista como algo decorrente do mundo social. Através da
concepção de propriedade, Locke negaria ontologicamente a hie-
rarquia, embora empiricamente ela esteja presente em sua teo-
ria. No estado da natureza, as pessoas seriam livres, iguais e ra-
cionais, apropriando-se do mundo através do trabalho: "Deus

I Lukes (1983) isolou quatro idéias-unidade que o conceito de individualismo pas-


sou a englobar: dignidade humana, autonomia, privacidade e autodesenvolvimento.
Enquanto a primeira corresponderia à noção de igualdade, as três últimas correspon-
deriam à de liberdade.
Vários autores têm refletido sobre o indivíduo como uma ca-
tegoria histórica desenvolvida nos países ocidentais juntamente
com a organização social e econômica moderna, capitalista e
mais tarde industrial, e o significado do individualismo como
um conjunto de valores cujo eixo é formado pelos princípios
de liberdade e igualdade. 1
Dumont (1977),em uma análise já clássica, argumenta que,
com o desenvolvimento dos valores individualistas no mundo
ocidental, a hierarquia deixou de ser pensada como algo natu-
ral entre as pessoas, passando a ser pensada a partir do princí-
pio de que existe uma igualdade natural entre elas. No pensa-
mento liberal clássico, Locke foi precursor desta nova concep-
ção de igualdade, pois foi a partir dele que a hierarquia deixou
de ser pensada como pertencente à ordem natural e começou
a ser vista como algo decorrente do mundo social. Através da
concepção de propriedade, Locke negaria ontologicamente a hie-
rarquia, embora empiricamente ela esteja presente em sua teo-
ria. No estado da natureza, as pessoas seriam livres, iguais e ra-
cionais, apropriando-se do mundo através do trabalho: "Deus

1 Lukes (1983) isolou quatro idéias-unidade que o conceito de individualismo pas-


sou a englobar: dignidade humana, autonomia, privacidade e autodesenvolvimento.
Enquanto a primeira corresponderia à noção de igualdade, as três últimas correspon-
deriam à de liberdade.
deu o mundo em comum aos homens: mas como o fez para a hierarquia se justifica não apenas através da categoria de clas-
benefício deles e maior conveniência da vida que fossem ca- se, mas também de gênero. Eisenstein (1981),concordando com
pazes de retirar dele, não é possível supor tivesse em mente que a crítica de MacPherson, argumenta que uma vez que a liber-
devesse ficar sempre comum e inculto. Deu-o para uso do dili- dade e a racionalidade dos indivíduos são definidas em fun-
gente e racional (...)" (Locke, 1978, p. 47). Em Locke e no pen- ção da propriedade - resultado do esforço dos diligentes -
samento liberal que se desenvolve por volta do século XVIII no pensamento liberal clássico, surgem duas classes econômi-
e constituirá um dos fundamentos ideológicos da construção cas: os industriosos, racionais e proprietários, por um lado,
das sociedades modernas, os homens são obra de Deus e entre e, por outro, os destituídos desta condição, isto é, além dos
eles não há desigualdades inerentes, naturais: resultam do uso não-proprietários, as mulheres. Flax (1990)também mostra que
que fizeram de seu esforço para apropriar-se das forças da na- os filósofos do Iluminismo, como Kant, não incluíam as mu-
tureza. Ou seja, tanto a propriedade quanto a desigualdade lheres na população capaz de conseguir libertar-se das formas
aparecem como fruto do trabalho. tradicionais de autoridade. Eram definidas como incapazes de
Discutindo como as representações tradicionais sobre a emancipar-se e a elas não se aplicavam os conceitos de auto-
natureza das relações sociais romperam-se com o advento do nomia e razão.
pensamento moderno, Dumont argumenta que o fato de E por que as mulheres foram excluídas das noções que,
considerar-se a propriedade como fruto do trabalho implica articuladamente, vieram configurar a concepção de indivíduo
dar às coisas exteriores um significado a partir daquilo que, enquanto categoria histórica? As causas são inúmeras e variam
realmente e de forma mais evidente, pertence ao indivíduo - de acordo com diferentes contextos histórico-culturais. Mas par-
seu corpo e seu esforço. Deixa-se de pensar a propriedade e, te delas, pelo menos, deve ser buscada no próprio desenvolvi-
de um modo geral, as relações sociais, como determinadas por mento das sociedades modernas, inseparável do desenvolvimen-
uma ordem holística, hierárquica, típica das sociedades tradi- to do capitalismo industrial: ao passar pelas relações de pro-
cionais, onde as posições sociais são atribuídas por força de priedade, a gênese da categoria indivíduo passou também pe-
uma natureza desigual entre as pessoas; em vez disso, passa-se la forma como estas relações se organizaram socialmente. Es-
a pensá-Ias como derivadas de uma qualidade intrínseca às pes- ta organização teve pelo menos duas características fundamen-
soas como indivíduos. Assim, negam-se ontologicamente os tais para a~construção social do gênero moderna. Primeiro, a
valores hierárquicos que caracterizam as sociedades tradicio- diferenciação institucional entre distintas atividades sociais, fa-
nais, substituindo-os pelos valores igualitários que vieram ca- zendo com que a família perdesse seu caráter de unidade pro-
racterizar as sociedades burguesas modernas. dutiva voltada para o mercado. Segundo, a hierarquização en-
A hierarquia de classe foi apontada por vários autores co- tre as atividades a partir de então classificadas como produti-
mo incongruente à idéia de igualdade surgida com o pensa- vas e improdutivas. As atividades produtivas - o trabalho re-
mento liberal. Nesse sentido, é o próprio Dumont quem ob- munerado - tornaram-se um domínio masculino. E as impro-
serva que, embora no pensamento liberal todos sejam repre- dutivas - o trabalho doméstico - um domínio feminino.
sentados como naturalmente iguais, a igualdade, empiricamen- O desenvolvimento da sociedade capitalista, mais tarde so-
te, limita-se àqueles que conseguiram apropriar-se das coisas ciedade industrial moderna, levou a uma redefinição não só
da natureza, ou seja, os proprietários. Por outro lado, McPher- das relações entre as classes, mas também das relações de gê-
son (1979)também mostrou que, ao considerar a propriedade nero. A família privatizou-se e transformou-se em família con-
como fruto do trabalho, Locke ignora a relação antagônica que jugal moderna, perdendo suas funções produtivas - segundo
os dois elementos mantêm entre si. a concepção econômica que passou a representar como pro-
Estas críticas, contudo, ignoram uma parte da história que dutivas apenas as relações exercidas na esfera do trabalho re-
o olhar feminista tem visto: na gênese da ideologia moderna, munerado. Construía-se um mundo feminino, privado, da casa,
que passou a se colocar como oposto a um mundo público, viduais por meio da legislação referente às atribuições de ca-
da rua, que se tornou, no imaginário social e na ideologia ofi- da gênero no casamento e na família, definindo-se com isto
cial, um mundo masculino. Neste processo - que aqui é des- os direitos civis e políticos, desigualmente para homens e mu-
crito como um tipo ideal - grande parte das famílias, pelo lheres (Davidoff, 1983;Marshall, 1967;Donzelot, 1977;Sayers,
menos as que neste tempo tornavam-se urbanas, perdeu sua 1982; Costa, 1983; Pena, 1981a).
função de produzir bens para o próprio consumo e/ou para Desenvolvia-se, assim, a forma moderna de reclusão fe-
a troca. Embora, como muitos trabalhos recentes têm mostra- minina a um domínio que se tornava doméstico e privado,
do, isto não signifique que a família tenha perdido suas fun- reelaborando-se as antigas - e também hierárquicas - fron-
ções produtivas, as atividades que vieram a ser "oficialmen- teiras do feminino e masculino em termos de socialização
te" consideradas como econômicas foram aquelas efetuadas c comportamentos. Nos lugares e entre os grupos sociais on-
em unidades organizadas com este fim específico, assentando-se de a família conjugal moderna institucionalizou-se, isto se
sobre o trabalho remunerado.2 O trabalho, ou melhor, as ati- deu junto à construção de toda uma cultura familiar que
vidades que a partir de então passaram a ser definidas como cnfatizava a privacidade, o amor materno e a criança, fazen-
trabalho foram fundamentalmente aquelas exercidas na esfe- do da mulher a própria encarnação de tudo aquilo que a
ra regida pelo princípio universalista do mercado, segundo o vida privada e familiar passou a significar no plano do imagi-
qual qualquer indivíduo podia concorrer livremente ali para nário social. Foi esta cultura que no mundo ocidental veio
vender sua força de trabalho, seus produtos ou serviços. Esfe- legitimar, durante mais de três séculos, a segregação das mu-
ra da qual as mulheres foram oficialmente excluídas, através lheres da nova sociabilidade pública, lugar privilegiado das
da ideologia que legitimou a dicotomia entre público e priva- atividades políticas, educacionais, artísticas, culturais, empre-
do segundo o sexo. Elas passaram a ser definidas socialmente sariais, científicas e administrativas. A família centrada nos
segundo os requisitos de um mundo público ao qual não ti- filhos, na concepção de amor moderno e materno, na mulher
nham acesso, porque seu lugar era numa esfera privada defi- rainha do lar e no pai provedor financeiro, dominaria, então,
nida pelos princípios particularistas e hierárquicos das relações senão as práticas, pelo menos a concepção burguesa de famí-
atribuídas com certos homens, como filhas e esposas, e não lia a partir do século XVIII na Europa (Aries, 1981;Shorter,
numa esfera pública definida pelos princípios universalistas e 1975; Ussel, 1980; Badinter, 1980), nos Estados Unidos (De-
igualitários do mercado e, mais tarde, da cidadania. gler, 1981; Lasch, 1979; Coontz, 1988) e no Brasil a partir
Como se vê, o indivíduo que nasceu junto com a família do final do século XIX (Freyre, 1961; Costa, 1983; Mello e
conjugal moderna nunca foi universal. E logo, em diferentes Souza, 1951; Willems, 1953).
partes do mundo moderno, o discurso médico do século XIX A partir da concepção moderna de que a igualdade entre
veio contribuir com um fundamento "científico" à razão do os indivíduos faz-se a partir da essência universal que estes pos-
Estado patriarcal, definindo as naturezas feminina e masculi- suem sendo donos de seu corpo e, conseqüentemente, de seu
na não somente como diferentes, mas sobretudo como desi- trabalho, vê-se por que a definição de indivíduo não incluía
guais, a partir de seus papéis nos mundos público e privado. as mulheres, pois efetivamente elas não detinham o controle
Pelo mesmo golpe, em diferentes partes do mundo burguês e nem de seu corpo nem de seu trabalho: de seu corpo, porque
ocidental, apertava-se o cerco sobre os comportamentos indi- só muito recentemente elas passaram a ter plenas condições
técnicas de controlar a própria fecundidade, superando então
um limite imposto pela natureza (embora a possibilidade de
auto proteção contra a violência física e sexual, que é uma ou-
2 Para uma crítica às teorias que tratam as relações na família como não econômicas
e uma discussão do conceito de 'economia oficial', ver Fraser, 1989; para uma crítica tra dimensão do domínio sobre o próprio corpo, esteja longe
ao paradigma do mercado e à separação entre público e privado, ver Mingione, 1991. de ter sido resolvida pelo desenvolvimento tecnológico), e de seu
trabalho, porque este oficialmente se tornou um trabalho no res, como uma instituição estruturada numa relação de amor
interior da família, invisível, sem valor, definido como impro- c de contrato entre dois indivíduos que decidem livremente pela
dutivo. sua existência, ele também pode ser definido, enquanto práti-
A noção moderna de igualdade que se definiu juntamen- ca, como uma instituição estruturada numa divisão sexual do
te com esta construção de gênero impediu que os direitos de trabalho, tendo como objetivo a criação e procriação dos fi-
cidadania inicialmente se aplicassem igualmente a homens e lhos: divisão fundada numa hierarquia entre os sexos, uma vez
mulheres nos países em que foram adotados. Marshall, em sua que aloca as mulheres a posições subordinadas na hierarquia
clássica análise do processo de formação da cidadania através que se instituiu entre o conjunto das práticas sociais. Ou seja,
dos direitos civis, políticos e sociais, nos países ocidentais eu- ulocando-as em funções privadas na esfera da família, que se
ropeus a partir do século XVIII, interpretou-os como um sta- coloca em contraposição, e de forma subordinada, às práticas
tus de liberdade, concedendo a cada homem o direito de par- públicas que se constituíram com a sua exclusão, quando não
ticipar, como unidade independente, da concorrência econô- cmpírica, ideológica e legalmente.
mica: "O contrato moderno seria essencialmente um acordo A família conjugal moderna e individualista estruturou-
entre homens que são livres e iguais em status, embora não se através de uma hierarquia, de uma divisão sexual do traba-
em poder (...) O status diferencial associado com classe, fun- lho que impedia o exercício da liberdade e igualdade de forma
ção e família foi substituído pelo status uniforme da cidada- equivalente pelos dois sexos. Esta afirmação tem certas impli-
nia, que ofereceu o fundamento da igualdade, sobre a qual a cações teóricas: o individualismo, embora surgindo como um
estrutura da desigualdade foi edificada." (Marshall, 1967,p. 79) conjunto de valores universalistas, conformou-se concretamente
Os novos direitos de cidadania restringiram-se aos homens, como um individualismo patriarcal, legitimando as relações
"pois o status das mulheres casadas era peculiar" (Marshall, hierárquicas entre homens e mulheres, nas esferas pública e
1967, p. 68). Isto é, elas eram legalmente subordinadas aos ma- privada.
ridos. Desta forma, os diferentes direitos e o direito de um modo Dentro destes limites, a individualidade feminina e a mas-
geral, que torna o público algo "objetivado" (O'Donnel, 1981), culina só podem se expressar legitimamente como manifesta-
não expressam apenas, como levantaram os críticos da igual- ções da dicotomia público/privado - dilema que já se instau-
dade burguesa, uma relação de dominação entre classes, entre ra com a relação que institui a família conjugal moderna, o
famílias que dispõem de diferentes recursos. Expressam tam- casamento moderno, resultado de uma escolha pessoal, mas
bém as relações de dominação dentro das famílias, onde uma igualmente constrangi da pelos papéis que definem os contor-
hierarquia específica, de gênero, determina as funções sociais nos da individualidade de cada um.
de cada sexo e limita o caráter de suas escolhas pessoais, de A concepção de individualidade também é histórica, con-
sua condição individual. O individualismo, que parte do prin- formada por certas relações sociais. Simmel (1971)mostrou a
cípio de que os indivíduos são iguais e livres, legitima as rela- evolução da concepção burguesa de individualidade, que no
ções de dominação através de um discurso universalista. E por século XVIII era equacionada à liberdade, à ausência de qual-
isso oculta o fato do status das mulheres ser determinado por quer tipo de restrição sobre as potencialidades da natureza hu-
uma relação atribuída, de gênero, com os homens, o que cons- mana. Uma vez libertos das coerções sócio-históricas, os ho-
trange a sua condição de indivíduos. A participação crescente mens mostrar-se-iam essencialmente iguais, como um homem
das mulheres nas atividades públicas e a conquista de direitos em geral. Claro, na ideologia moderna do século XVIII euro-
formais de cidadania não apenas desafiaram a hierarquia se- peu, a humanidade é nomeada como um substantivo masculi-
xual moderna, mas atingiram em cheio o coração da família. no. Embora Simmel não aponte essa evidência de uma cultura
Família moderna e individualista, porém patriarcal. Pois, patriarcal, indica outras implicações desta concepção de ho-
embora este tipo de família possa ser definido, por seus valo- mem em geral: a liberdade, ao ser usada para o desdobramento
da diversidade dos poderes individuais, implicaria diferencia- donalizando-se através do casamento e da família conjugal mo-
ção e dominação. Ora, no casamento e na família modernos, derna, faz parte da ambigüidade entre o individual e o coleti-
já se sabe a favor de quem a liberdade do homem em geral vo, detectada por Simmel. Ambigüidade que é reprimida ou
transformou a diferença em dominação. mantida sob um certo controle pela divisão sexual do traba-
No século XIX, em pleno desenvolvimento da sociedade lho e pelo individualismo patriarcal. Uma vez que no casamento
industrial, a individualidade assumiria um significado de sin- e na família conjugal moderna a individualidade feminina
gularidade, conferido pelo romantismo e pela nova divisão do subordina-se à masculina, esta contradição tem menos espaço
trabalho: "Cada pessoa assume e deveria assumir uma posi- para se manifestar. A desigualdade entre homem e mulher faz
ção que ela e ninguém mais pode preencher. Uma posição que com que a livre escolha no casamento e na família constitua
deve ser procurada até ser encontrada." (Simmel, 1971,p. 272) antes um princípio do que uma prática.
Esta imagem afasta-se da noção anterior do 'humano em ge- A livre escolha, porém, é o ponto fraco do casamento mo-
ral', que pressupõe a existência, em cada pessoa, de uma na- derno (e, conseqüentemente, da família conjugal moderna), que
tureza humana uniforme, que só precisa de liberdade para emer- por isso mesmo sempre esteve sujeito à dissolução, aprovada
gir. Simmel mostra como os dois significados da individuali- ou não pela lei secular ou religiosa. Quanto maior a possibili-
dade se contradizem: "Enquanto no primeiro a ênfase de va- dade efetiva de escolher, maior o espaço para o conflito entre
lor é no que os homens têm em comum, no segundo é naquilo o individual e o coletivo se expressar. Quando a divisão sexual
que os separa." (Simmel, 1971, p. 272) do trabalho e o individualismo patriarcal são redefinidos e ho-
O desenvolvimento da individualidade vincula-se ao da mens e mulheres passam a se ver como iguais, criam-se condi-
sociedade moderna, com a eliminação de barreiras de status, ções sociais particularmente favoráveis para que este conflito
religiosas, o dec1ínio da autoridade paterna e a liberdade de se manifeste, levando a um maior número de separações.
mobilidade, seja social ou geográfica. Ampliou-se o círculo de Muita coisa mudou desde Simmel, que, no entanto, já
pessoas que se tornaram passíveis de escolha como parceiros anunciava no início do século XX o conflito estrutural da re-
no casamento, ampliando também a liberdade de escolha. Ago- lação de casamento fundada na livre escolha entre dois indiví-
ra o casamento será justificado pela noção romântica de indi- duos; conflito que explodiria algumas décadas mais tarde, quan-
vidualidade e de amor modernos: "Por tudo isso, a seleção do as noções de individualidade e de indivíduo sofreriam no-
individual é muito mais rígida, um fato e um direito que en- vas modificações.
volvem uma inclinação totalmente pessoal. A convicção de que O casamento fundado na concepção moderna de amor
de toda a humanidade, duas e somente duas pessoas são 'fei- singular, eterno e dirigido a um indivíduo único e insubstituí-
tas' uma para a outra atingiu agora um estágio de desenvolvi- vel, que povoa o imaginário social romântico e burguês do pe-
mento de que a burguesia do século XVIII ainda não ouvira ríodo de ouro da modernidade, parece ter ficado para trás. Nas
falar." (Simmel, 1971, p. 269) circunstâncias históricas atuais, a noção de eternidade das re-
Aí residiria uma das grandes contradições do casamento lações e dos sentimentos foi abalada e isto manifesta-se no fa-
moderno, fundado no amor e na livre escolha. Pois, embora to de que lá onde o indivíduo encontrava maior estabilidade
o objetivo do amor moderno seja a reciprocidade e a comple- e segurança, casamentos e famílias passaram a desfazer-se e
mentaridade entre dois indivíduos, a individualidade de cada refazer-se continuamente.
um ergue barreiras entre os dois, fazendo do outro algo de ina- O tipo moderno de família e casamento entrou em crise
tingível que é determinado pela individualidade. Ou seja, a con- porque foram abalados seus fundamentos: a divisão sexual do
tradição mesma do amor e do casamento modernos advém do trabalho e a dicotomia entre público e privado atribuída se-
próprio desenvolvimento e da singularidade da individualidade. gundo o gênero. Em vários lugares do mundo industrializado,
O amor moderno, partindo da individualidade e institu- como parte da própria dinâmica da modernização que inicial-
mente as excluiu do mundo público, as mulheres foram aumen- de pós-modernos. Embora heterogêneos entre si, têm em co-
tando sua participação no ensino superior, nas atividades pro- mum o fato de que, por diferentes vias, vêm revelando os im-
fissionais, políticas, sindicais, artísticas e culturais a partir das passes a que chegaram as sociedades modernas, onde os prin-
últimas décadas, redefinindo as fronteiras entre o público e o cípios universais da modernidade não conseguiram ser reali-
privado atribuídas segundo o gênero.3 Desempenhando múl- zados. O cerne da crítica está em que a Razão, que deveria ser
tiplos papéis na esfera pública e em suas vidas cotidianas, mui- universal, acabou, na prática, restringindo-se à racionalidade
tas mulheres deixaram de restringir suas aspirações ao casa- das categorias e grupos sociais dominantes no mundo ociden-
mento e aos filhos. Desafiaram a dicotomia entre público e tal. Vejamos, segundo alguns autores, em que consiste e até
privado, conquistaram direitos corno cidadãs, constituíram-se que ponto o olhar pós-moderno pode nos ajudar a entender
corno indivíduos. O individualismo patriarcal foi abalado e a as transformações recentes nas relações de gênero, de casamento
igualdade entre homens e mulheres colocou-se corno possibi- e de família.
lidade social. Com isto, explodiu o conflito entre o individual Na filosofia, Lyotard (1979)vê o pós-moderno como uma
e o coletivo no casamento e na família. condição dos discursos nas sociedades mais desenvolvidas. Uma
condição no estado da cultura após transformações que vêm
afetando as regras do jogo da ciência, da literatura e das ar-
tes, desde o final do século XIX. Na condição pós-moderna,
o saber em diferentes campos não consegue mais legitimar suas
regras por filosofias universalistas da história que "narram uma
estória" abrangente -, por exemplo, a narrativa iluminista do
progresso da razão e liberdade, a dialética hegeliana do espíri-
A constituição social das mulheres corno indivíduos vincula- to em processo de autoconhecimento, ou a marxista, sobre o
se a várias transformações na sociedade contemporânea. É par- fim da alienação e da divisão social do trabalho levando à so-
te dos movimentos e tendências que surgiram em diferentes lu- ciedade igualitária via tomada do poder pela classe operária,
gares corno vozes de diferentes categorias - raciais, sexuais, que representaria os interesses universais da humanidade.
étnicas - lutando contra formas específicas e localizadas de As práticas discursivas, científicas, políticas, modernas
opressão. Desde a segunda metade deste século, estes movimen- inserem-se em metanarrativas abrangentes que as legitimam e
tos e tendências se conformaram corno urna crítica social, cul- garantem que elas se constituam como as práticas corretas. O
tural e política a algumas das configurações de poder domi- ponto de Lyotard é que, na condição pós-moderna, estas me-
nantes no mundo moderno e, por isto, vêm sendo chamados tanarrativas tornaram-se obsoletas.
Para ele, na sociedade contemporânea a vida cotidiana é
fragmentada, descontínua e heterogênea e por isso conclui que
3 Cabe observar a este respeito a perspectiva de Arendt (1983), para quem o traba- qualquer crítica só pode ser pragmática, local e contextual. Por
lho, no capitalismo ou em qualquer outra sociedade, não pertence à esfera pública, isso também, nega qualquer possibilidade de pensar o social
e sim à 'esfera da necessidade'. O trabalho exercido fora de casa não teria nada a ver
com aquilo que correntes marxistas e liberais chamam de 'público'. Para Arendt, to- através de uma idéia de história universal da humanidade,
da ação é criativa e o trabalho não é uma ação, mas uma forma de adaptação e repro- recusa-se a estabelecer qualquer sentido de totalidade, de uni-
dução da vida. E porque o trabalho não é uma ação nem é criativo, tampouco consti-
tui uma prática que, por si, leve à liberdade, que só pode ser conquistada no espaço
versalismo.
público, que é o espaço da cultura e da política. Esta reflexão é importante porque Também a visão de Foucault (1990) sobre o poder já se
as mulheres, que sempre trabalharam, seja em atividades domésticas ou outras, só tornou clássica, corno urna ruptura em relação a urna concep-
passam a ter condições de emancipação e se constituir como sujeitos quando partici-
pam da esfera da cultura e da política. O mesmo se pode dizer em relação a outras
ção totalizante dos processos sociais: o poder não está no Es-
categorias sociais. tado, mas em todos os lugares, descentralizado, exercendo-se
através de seus múltiplos mecanismos, na vida cotidiana en- Iituição dos silenciados como sujeitos" (Hartsock, 1987, p.
quanto micropoderes, com técnicas, táticas e trajetórias pró- 2(4), que se desenvolveram como movimentos políticos, cul-
prias. t urais e filosóficos de contestação a diferentes tipos de desi-
A desconstrução dos pressupostos e propostas de univer- gualdades presentes na sociedade moderna.
salização que marcam a cultura, a arte e o saber modernos lendo visto até onde me aproximo da crítica pós-moderna,
tornou-se uma noção pós-moderna a partir da leitura que Der- vejamos o que me afasta dela como instrumento de análise dos
rida fez de Heidegger, embora Harvey (1989, p. 49) afirme que processos de transformação social.
esta interpretação tenha sido feita menos no sentido de uma Nicholson e Fraser (1990) mostram as limitações do dis-
posição filosófica e mais como um modo de se pensar sobre curso pós-moderno quando este nega qualquer possibilidade
e ler textos como intercalados, gerando múltiplos significados, de uma teoria social geral; esta negação parte da própria con"
rupturas e recombinações. Desconstruir, enquanto noção pós- cepção que pensadores pós-modernos têm do social - frag-
moderna por excelência, recebeu o significado de provocar uma mentos impossíveis de totalizar. Para Lyotard, por exemplo,
ruptura em algo que parecia unificado. o social é uma teia de práticas discursivas que se entrecruzam.
Desta maneira, as formas de discurso, de expressão cul- Os indivíduos seriam nódulos por onde passam estas práticas
tural e de crítica pós-modernas são desconstrutivas quando c, como participam de várias práticas simultaneamente, suas
"procuram nos distanciar e nos fazer céticos sobre as crenças identidades sociais são complexas, heterogêneas e impossíveis
relativas à verdade, ao conhecimento, ao poder, ao ego e à lin- de mapear. Por isto, não existiria uma totalidade social e mui-
guagem, e que geralmente são tomadas como óbvias e servem 10 menos a possibilidade de elaborar uma teoria social abran-
de legitimação para a cultura ocidental contemporânea". (Flax, gente, pois o campo social é heterogêneo e não totalizável. Con-
1990, p. 41) seqüentemente, o discurso pó~-moderno rejeita as teorias so-
Sob este aspecto, isto é, como um instrumento de contes- dais que empregam categorias gerais como classe, gênero, ra-
tação das categorias que legitimam relações de dominação por ça, etc., que seriam por demais redutoras da complexidade das
meio de narrativas que as justificam como as "práticas corre- identidades sociais.
tas", a desconstrução pós-moderna é uma perspectiva que ajuda A crítica pós-moderna tem como alvo tanto as metanar-
a entender as desigualdades de gênero que aí se desenvolvem. ('ativas históricas quanto as análises teóricas sobre macroes-
E, por esta razão, Nicholson e Fraser (1990) aproximam o fe- t ruturas sociais que institucionalizam a desigualdade: qual-
minismo dos discursos pós-modernos: a crítica feminista tam- quer crítica só pode ser produzida a partir de narrativas lo-
bém denuncia as categorias universalizantes de uma Razão que cais, que ao mesmo tempo devem ser tratadas de forma autô-
fala pelos outros; também promoveu uma desconstrução das noma umas em relação às outras. Neste caso, a crítica apre-
noções de razão, de conhecimento, de indivíduo, mostrando senta-se como limitada, pois, como afirmam Nicholson e Fra-
os efeitos dos arranjos de gênero que estão por trás de facha- ser, um objeto tão abrangente e multifacetado como a desi-
das neutras e universais. gualdade sexual não poderia ser suficientemente compreendi-
Quando afirmo que a categoria indivíduo fundada na di- do com os parcos recursos do pós-modernismo. Pelo contrá-
visão sexual do trabalho não tem nada de universal e que a rio, uma crítica efetiva deste fenômeno exige vários métodos
família conjugal moderna não é uma família igualitária, me e gêneros discursivos: narrativas sobre mudança na organiza-
aproximo da crítica que o discurso pós-moderno faz às falá- ção social e na ideologia, análises empíricas e sócio-teóricas
cias do universalismo moderno. As práticas de gênero que de- de macroestruturas e instituições, análises interacionistas da
safiam a estratificação sexual e contestam mitos e micropode- micropolítica cotidiana, análises crítico-hermenêuticas e ins-
res nas diferentes situações da vida cotidiana podem ser con- titucionais da produção cultural, sociologias do gênero histó-
sideradas como parte das tendências pós-modernas de "cons- rica e culturalmente específicas.
É nesta perspectiva, concordando com a crítica pós- l.:aria algum tipo de ruptura ou simplesmente uma rebelião, mas
moderna às metanarrativas de legitimação, mas sem descartar dcntro do próprio modernismo? Consistiria num estilo ou sim-
uma análise teórica das transformações macro-históricas, que plesmente um conceito de periodização? Ou uma mera comer-
me situo para focalizar as relações de gênero, família e casa- dalização e domesticação do modernismo, transformado em
mento. Embora na sociedade contemporânea as identidades cdetismo de mercado? Teria um potencial revolucionário pelo
sejam complexas e fragmentadas e sua análise não possa basear- fato de se opor às metanarrativas e procurar ouvir vozes há
se em categorias gerais como classe ou gênero, por exemplo, muito tempo silenciadas? E até que ponto as lutas locais con-
que de fato não dão conta da multiplicidade dos determinan- I ra as formas dominantes do capitalismo, ao invés de se cons-
tes das identidades sociais, elas não devem ser excluídas da aná- lituírem como um ataque progressista contra a exploração ca-
lise. Constituem pontos de referência para se estabelecer vín- pitalista, não assumiriam um caráter reacionário? Estas e ou-
culos entre as narrativas locais, os problemas contextuais e as Iras são perguntas que Harvey (1989) faz, tentando estabele-
transformações macro-históricas. l:cr a distinção entre modernismo e pós-modernismo.
As práticas que em diferentes cenas e situações da vida O debate é fértil e tem múltiplos aspectos sobre os quais
cotidiana desafiam as relações de gênero hierárquicas contri- não posso me estender aqui. Farei uma pequena síntese da re-
buem para tornar obsoleto o individualismo patriarcal. São, flexão sobre a diferença entre o moderno e o pós-moderno co-
contudo, práticas que se afirmam como fenômenos históricos, mo uma tendência, uma concepção surgi da da cultura urbana
porque produzidos por atores que se localizam numa rede de
c dos valores contemporâneos, para então discutir em que me-
relações sociais e culturais, ocorrendo dentro de um determi-
dida a noção de pós-moderno pode ser usada na análise das re-
nado espectro temporal.
l:cntes mudanças de comportamento no casamento e na família.
Sendo assim, por um lado, o surgimento do indivíduo pa-
Reconhecendo as dificuldades de estabelecer fronteiras de-
triarcal assim como o seu questionamento é parte de transfor-
finidas entre o moderno e o pós-moderno, Harvey, em uma
mações macrossociais e históricas, entendidas com o recurso
de suas passagens, exemplifica como poderiam ser pensadas
a categorias gerais como classe e gênero, por exemplo. E por
algumas das diferenças entre estas duas noções: "Planejado-
outro, é um processo construído nas microinterações cotidia-
rcs urbanos modernistas (... ) tendem a procurar o 'domínio'
nas, como parte de situações locais, contextuais, que justamente
sobre a metrópole como uma 'totalidade' desenhando delibe-
imprimem as formas e os conteúdos específicos destas trans-
radamente uma 'forma fechada', enquanto que os pós-moder-
formações.
nistas tendem a ver o processo urbano como incontrolável e
Antes de passarmos à discussão do caráter das transfor-
mações históricas nas sociedades contemporâneas, vejamos ain- 'caótico', no qual a 'anarquia' e a 'mudança' podem 'jogar'
da como o pós-moderno e o pós-modernismo têm sido pensa- cm situações totalmente 'abertas'. Críticos literários 'moder-
dos como tendências culturais que se contrapõem ao moder- nistas' tendem a olhár as obras como exemplos de um 'gêne-
no e ao modernismo em diferentes áreas das sociedades con- ro' e julgá-Ias pelo 'código principal' que prevalece dentro dos
temporâneas. limites de tal gênero, enquanto que o estilo 'pós-moderno' é
simplesmente ver uma obra como um texto com sua 'retórica'
c seu idioleto próprios, mas que em princípio pode ser com-
parado com qualquer outro texto de não importa que tipo."
(Harvey, 1989,p. 44)
O que caracterizaria o pós-moderno como uma tendência em Para Harvey a coisa mais evidente do pós-modernismo é
diversas áreas da vida cotidiana da sociedade contemporânea? a "total aceitação da efemeridade, da fragmentação, da des-
Quais seriam suas diferenças em relação ao moderno? Signifi- continuidade e do caótico, isto é, daquilo que compunha uma
das metades da concepção de modernidade em Baudelaire". 4 rcntrais no modernismo, tais como progresso/reação, direita/es-
Mas, diferente do modernismo, o pós-modernismo não tenta querda, presente/passado, modernismo/realismo, abstração/re-
transcender este fato, fazer frente a ele, ou mesmo definir os presentação, vanguarda/kitsch, romperam-se como parte da
elementos eternos e imutáveis que poderiam se encontrar aí. própria condição pós-moderna.
"O pós-modernismo nada, e talvez se atole, nas correntes de Ao valorizar as experiências particulares de grupos e in-
mudança caóticas e fragmentárias, como se isto fosse tudo o divíduos, as tendências pós-modernas rejeitam qualquer idéia
que existisse." (Harvey, 1989, p. 44) de totalidade, desde a concepção de uma história universal da
Embora a concepção moderna do mundo - na arte, na humanidade até o domínio de um único estilo ou solução téc-
filosofia, na literatura, na cultura ou na teoria - veja a reali- nica. Quando se fala em pós-moderno, seja na arte, na arqui-
dade como complexa e através de múltiplas perspectivas, ten- tetura, na cultura, no texto literário, na economia, na política
de no entanto a tratá-Ia como uma singularidade; uma con- ou na família, está se falando da aceitação da coexistência e
cepção pós-moderna, por outro lado, pensa o mundo como da mistura de códigos e de mundos, do reconhecimento da he-
pluralidades de realidades que "coexistem, colidem e inter- tcrogeneidade que existe na sociedade contemporânea; mas so-
penetram-se". (McHale, 1987, in Harvey, 1989, p. 41) bretudo de uma heterogeneidade que agora se quer reconheci-
Huyssen (1984), ao mapear o pós-moderno no campo da da como legítima. No pós-modernismo, a pluralidade, o par-
arte, mostra que esta tendência surgiu como uma crítica aos ticular e local contrapõem-se a idéias de unidade, de geral e
impasses do modernismo, desdobrando-se por sua vez em no- de universal, que constituem o eixo do modernismo.
vas e diferentes tendências. Um dos dilemas do modernismo Da mesma forma que o modernismo, o pós-modernismo
teria sido sua incapacidade, apesar das melhores intenções, para é um fenômeno urbano, ligado ao cosmopolitismo, embora esta
fazer uma crítica efetiva à modernização e à modernidade bur- espécie de irmão mais novo já tenha nascido na sociedade de
guesas. Nascidos juntos, o modernismo e a modernização in- consumo, tecnológica, eletrônica, dominada pela informação
dustrial convergiram na idéia de que a modernidade só pode- c pelo vídeo. É neste sentido que um pensador como Baudril-
ria ser conduzida por meio de uma vanguarda iluminada, em lard (1981)vê os sistemas de signos e as imagens como centro
qualquer campo do social. A crítica a esta concepção, hoje di- da organização da vida cotidiana atual, onde as imagens dos
fícil de sustentar, estaria no cerne da sociedade pós-moderna. meios de comunicação de massa e da publicidade criam dese-
O discurso modernista baseado numa visão teleológica de pro- jos através de um tempo extremamente volátil. Baudrillard, po-
gresso e modernização ficou obsoleto porque reducionista, rém, afirma que na sociedade contemporânea a própria pro-
"preparando ao mesmo tempo o terreno para o seu repúdio, dução de mercadorias foi substituída pela produção de signos
que ficou conhecido pelo nome de pós-modernismo" (Huys- e de imagens. Tudo teria se tornado signo, pastiche, simulacro
sen, 1984, p. 49). Nos anos 70, os limites da modernização fi- da realidade. O impulso, o desejo, a espontaneidade teriam pas-
caram mais evidentes, e seus efeitos excludentes que impediam sado a preponderar sobre a razão. A vida cotidiana e a cultura
os princípios universalistas da modernidade de realizar-se em- na metrópole contemporânea seriam marcadas por estes traços.
piricamente se escancararam. Mas isto não quer dizer, como
afirma Huyssen, que se tenha necessariamente que cair na ir-
racionalidade ou no frenesi apocalíptico. Dicotomias que eram

Reconhecer os traços fragmentários, voláteis, o papel da ima-


4 "A modernidade é o transiente, o fugidio, o contingente; esta é uma metade da ar-
gem na cultura pós-moderna não significa negar que tal cul-
te, a outra sendo o eterno e o imutáveL" (Baudelaire, O pintor da vida moderna, in: tura seja produzida dentro de uma determinada organização
Harvey, 1989, p. 10) social. Nesse sentido, Jameson (1984), que parte da análise de
l\1andel (1983) sobre o estágio atual do capitalismo, multina- Esta análise dá substância histórica ao diagnóstico de que
cIOnal e de consumo, vê o dominante cultural pós-moderno 1\ sociedade tornou-se um simulacro, e o real, inúmeros pseudo-
que transforma tudo em imagem e simulacro da realidade co~ eventos. Assim, se as idéias da classe dominante eram antiga-
mo a lógica cultural, do momento atual do capitalismo: mente a ideologia dominante ou hegemônica da sociedade bur-
~ara Jame~on, o que caracteriza esta situação hoje é que guesa, os países capitalistas avançados conformariam hoje um
o.capItal.e~ergm sob uma de suas formas mais puras e expan- l:ampo de heterogeneidade estilística e discursiva, sem uma nor-
dm prodIgIOsamente para áreas até então não mercantilizadas. ma unificadora: "Senhores sem rosto continuam a determi-
A esfera da cultura deixou de ser semi-autônoma isto é um Ilar as estratégias econômicas que constrangem nossas existên-
nível entre outros da vida social, e explodiu para todos ds ní- cias, mas não precisam mais nos impor seu discurso (doravante
veis do social. Agora, tudo em nossa vida social - do valor não conseguem mais fazê-Io)." (Jameson, 1984, p. 65)
econômico à própria estrutura da psique, passando pelo po- Outro autor que contribui para este debate é Berman (1986,
der do Estado - tornou-se cultural, num sentido fundamen- 1992), que, contudo, recusa o referencial da pós-modernidade.
talmen~eoriginal em relação a outros momentos do capitalismo. Ele vê na dinâmica da sociedade contemporânea justamente
DIferente do que ocorria no período precedente ao alto a radicalização do potencial destruidor e criativo da moderni-
modernismo, a experiência psíquica e as linguagens culturais dade e sobretudo a reafirmação de seu sentido clássico, profe-
de hoje são dominadas por categorias de espaço e não de tem- tizado por Marx, de que "tudo que é sólido desmancha no ar".
po. Esse domínio do espaço e da lógica espacial dificulta a atua- Berman levanta um ponto essencial sobre a experiência
ção do sujeito ao longo do espectro temporal e a organização urbana da modernidade que, ao anular fronteiras geográficas,
de seu futuro e seu passado numa experiência coerente. O sin- raciais, de classe, nacionalidade, religião e ideologia, uniria toda
crônico passa a predominar sobre o diacrônico na vida coti- li espécie humana. Esta união ocorreria, porém, através de uma
diana. Conseqüentemente, há um enfraquecimento da histo- unidade paradoxal, uma unidade na desunidade, despejando
ricidade, tanto na relação dos sujeitos com a História pública todas as pessoas atingidas por este movimento num turbilhão
como n~s no~as formas. de tem~oralidade privada. É isto que de desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambi-
leva !liUltoSpos-modermstas a afIrmarem que as produções cul- güidade e angústia. Agiríamos e viveríamos hoje neste desen-
turaiS de tal sujeito dificilmente resultariam em algo além de rolar da modernidade. O pós-modernismo, com toda sua frag-
montes de fragmentos e uma prática de coisas heterogêneas mentação e heterogeneidade, seria, assim, uma vertente e ra-
fragmentárias e aleatórias. ' dicalização do próprio modernismo (no hiperespaço de Jame-
O pós-moderno estaria caracterizado, desta forma, por son, poderíamos dizer).
~ma nova falta de pr~fundidade, um novo tipo de superficia- Harvey, no trabalho citado, trata justamente do tema da
lIdade na cultura da Imagem, do simulacro, do significante, destruição criativa inerente à modernidade, que, no entanto,
o que tem sua contrapartida em expressões da teoria pós-mo- ele considera como determinada pelo movimento de acumu-
derna - que não constituiriam uma teoria, mas antes um dis- lação do capital, internacionalmente. Prosseguindo a linha de-
curso fragmentário. senvolvida por Jameson, ele afirma que há cerca de duas dé-
O espaço urbano sofreu uma mudança fundamental cadas o mundo contemporâneo seria o cenário de processos
tornando-se um hiperespaço que nosso aparelho sensorial nã~ sócio-econômicos que estariam revolucionando os usos e os
mais a~ompanha ..O corpo humano individual não consegue significados do espaço e do tempo a ponto de afetar radical-
se localIzar, orgamzar perceptualmente e mapear cognitivamen- mente as formas artísticas, culturais, filosóficas e políticas de
te sua posição num mundo externo. Os indivíduos tampouco representação.
conseguem mapear a enorme rede comunicacional descentra- Embora a fragmentação, a efemeridade e o fluxo caótico
lizada, global e multinacional na qual estão envolvidos. sempre tenham sido aspectos indissociáveis da experiência mo-
derna, aumentaram violentamente de intensidade num contexto em relação aos processos de trabalho, aos mercados de traba-
mundial cada vez mais internacionalizado. Estaríamos diante lho, aos produtos, aos padrões de consumo.
?,eum novo round da c~mpressão de espaço/tempo, isto é, dos Sustentando-se em novas tecnologias de produção e nu-
.processos que revolucIOnam a tal ponto as qualidades obje- ma nova organização do trabalho, o tempo de giro do capital
tIvas de espaço e tempo que às vezes somos obrigados a alte- foi acelerado e os custos do trabalho reduzidos. Contratos de
rar, de forma bastante radical, o modo como representamos tempo parcial, temporário, por prazo indeterminado, subcon-
o mundo para nós mesmos". (Harvey, 1989, p. 240) Iratação, trabalho autônomo passaram a ser mais e mais utili-
Por volta dos anos 70, rompeu-se o ciclo do desenvolvi- zados como arranjos flexíveis, muitas vezes satisfazendo in-
mento do capitalismo estabelecido por Ford em 1913 com a clusiveas próprias expectativas dos trabalhadores. Paralelamen-
linha de montagem, que fragmentou e distribuiu espacialmente le, reviveram-se os sistemas de trabalho domésticos, familia-
a~ tarefas e,,com isto, acelerou o tempo e aumentou a produti- res e paternalistas, os pequenos negócios e as atividades in-
VIdade. Apos a Segunda Guerra Mundial, a queda de várias formais. Diferentes sistemas de trabalho e de produção passa-
barreiras de comércio e investimento aprofundou a internacio- ram a coexistir no mesmo espaço, permitindo aos capitalistas
nalização do capitalismo, num regime de acumulação que se escolher entre eles. Embora as tecnologias e formas organiza-
fez ac.ompanhar de um modo de regulação social e político.5 cionais flexíveis não tenham se tornado hegemônicas em lu-
Ou seja, a expansão econômica do pós-guerra de 1945 a 1973 gar algum - como tampouco ocorreu com o fordismo -, o
foi construída sobre um certo conjunto de práticas de contro~ ecletismo nas práticas de trabalho tornou-se algo tão marcan-
le de trabalho, mesclas tecnológicas, hábitos de consumo e con- le quanto os discursos e gostos pós-modernos.
figurações de poder político-econômico, num regime que pas- Ao mesmo tempo, com o apoio dos novos sistemas de co-
sou a ser chamado de fordista-keynesiano. No Primeiro Mun- municação e informação, dos bancos eletrônicos e do 'dinhei-
do, isto significou produção em massa, sociedade de consu- ro de plástico', estas mudanças expandiram a sociedade de con-
mo, sindicatos fortes e welfare state. sumo. O ritmo do consumo acelerou-se em diferentes áreas:
Após 1972, a perda gradual da hegemonia industrial e fi- vestuário, ornamento, decoração, hábitos de lazer e esporte,
nanceira dos EUA para o Japão, o aumento das dívidas inter- música pop, vídeo-games, etc. O consumo de serviços aumen-
nacionais, a estagnação da capacidade fiscal do Estado nos tou não apenas em comércio, educação e saúde, mas o capital
países capitalistas avançados e a crise do welfare state teriam também se voltou para a provisão de serviços muito efêmeros
maugurado um novo momento de rápida mudança, fluxo e in- de consumo, em diversões, espetáculos, happenings, etc.
certeza no mundo capitalista. Momento que marcaria a pas- O sistema financeiro adquiriu um grau de autonomia em
sagem para um regime que Harvey chama, provisoriamente relação à produção real sem precedente na história do capita-
de acumulação flexível.6 Um regime baseado na flexibilidad~ lismo, contribuindo para a flexibilidade geográfica e tempo-
ral da acumulação de capital. O poder disciplinador dos ban-
cos internacionais sobre as políticas econômico-financeiras dos
5 Baseando-se em autores da escola de regulação (Aglietta, 1979; Lipietz, 1986, e Bo-
yer, 19~~),H_arvey(1989)sumariza o conceito de regime de acumulação, que' 'descreve Estados-nação aumentou e, em 1982, o Fundo Monetário In-
a establlIzaçao ~u~ante.um longo período, da alocação do produto líquido entre consu- ternacional e o Banco Mundial institucionalizaram a coorde-
~o _eacumulaçao: ImplIca alguma correspondência entre a transformação tanto das con- nação financeira internacional.
dl5~es dq~roduçao quant.o .derepr~duç~o dos trabalhadores assalariados" (p. 121).Os
hablto~, leiS,redes regulatonas, etc. ImplIcando normas interiorizadas e comportamentos A estrutura de classes contemporânea também se modifi-
garantmdo a reprodução social conformariam um modo de regulação. cou, surgindo novas camadas privilegiadas, altamente quali-
6 A idéia de Ha~vey tem ~m significado mais abrangente do que a de especialização fle- ficadas, detentoras do conhecimento das novas tecnologias e
x(vel, desenvolvld.a p~r PIOre & Sabel (1984), para quem as novas tecnologias possibili-
taram a descentrallzaçao e a reordenação da produção e das relações de trabalho em novas encarregadas do planejamento e administração dos novos pa-
bases sociais, econômicas e geográficas. drões de inovação e orientação tecnológica do trabalho; a ex-
pansão dos serviços e das atividades culturais aumentou o nú- de HO consolidou um movimento já em marcha desde os anos
mero de pessoas que trabalhavam nestes setores. Cresceram as 70. Aronowitz (1991) sugere que reivindicações políticas pós-
desigualdades de renda, não só no Terceiro Mundo, mas tam- lIIodernas incluiriam questões como a desterritorialização (de-
bém nos países desenvolvidos, onde emergiu uma subclasse mal HlIgregaçãoda produção dos grandes centros) e a regionaliza-
remunerada e sem poder. 1;110(criação de maior auto-suficiência) das instituições políti-
A ruptura do sistema fordista-keynesiano anunciou um novo l:IISe econômicas. Pelo fato de o Estado moderno (especial-
momento na dinâmica organizacional e técnica do capitalismo, lIIente na Europa) estar marcado por tendências extremamen-
que provocou um violento aniquilamento do espaço através do te centralizantes, consideradas um desenvolvimento lógico da
tempo e acentuou a instabilidade dos princípios temporais que 1lI0dernidade, os movimentos pós-modernos se oporiam ao es-
organizavam a vida social. Estes processos estariam ligados às Iatismo, inclusive sua variante socialista, e reivindicariam um
mudanças nos sistemas de representação, formas culturais e sen- I\slado central minimalista.
timentos filosóficos; o pós-modernismo configurou-se em uma Estas transformações são um indicador de que a fragmen-
resposta nova a esta nova experiência de espaço e tempo. IUl;ão,a incerteza e a instabilidade aumentaram na dinâmica
Harvey então aceita, com Jameson (1984), que o pós-mo- du organização social, econômica e cultural do capitalismo re-
dernismo seja uma espécie de lógica cultural do capitalismo cente, radicalizando, mas, com isto, também modificando al-
atual. Os novos comportamentos, indicando uma mudança de gumas das condições da modernidade. E permitem compreen-
sensibilidade
. e de valores na esfera da arte e da cultura , se- der a fragmentação pós-moderna como um fenômeno social,
nam conformes com a flexibilidade do novo regime de acu- resultado de processos históricos que apresentam articulações
mulação. Pois a "noção mais flexível do capital enfatizao no- entre si e que também estão presentes no modo como homens
vo, o móvel, o efêmero, o fugidio e contingente da vida mo- c mulheres constroem suas identidades.
derna, muito mais do que os sólidos valores implantados du-
rante o fordismo". (Harvey, 1989, p, 171)
Harvey argumenta que a aceleração no tempo de giro do
capital, a flexibilidade das práticas de trabalho e a fragmenta-
ção, favorecendo o individualismo, tiveram conseqüências im- Alguns autores problematizam a construção daquilo que, na
portantes para aquilo que seriam os modos pós-modernos de situação de fragmentação e heterogeneidade da vida cotidia-
pensar, sentir e fazer: acentua-se a volatilidade e a efemerida- na na metrópole atual, poderia ser chamado de identidade pós-
de da moda, dos produtos, produções técnicas, processos de moderna. A análise da cultura pós-moderna feita por Jame-
trabalho, idéias, ideologias, valores e práticas estabelecidas. son (1984) revela que o sujeito autônomo, autocentrado, cor-
Enfatizam-se os valores e virtudes da instantaneidade, o fast- respondente ao período do capitalismo clássico e da família
food, as comidas semiprontas, os descartáveis. nuclear, estaria fragmentando-se e desaparecendo. O fim do
Estas transformações na organização sócio-econômica e cgo burguês significaria o fim da ano mia do sujeito centrado,
cultural, que atingiram boa parte do mundo contemporâneo, mas ao mesmo tempo eliminaria a necessidade de auto-
ajudariam a explicar por que as pessoas passaram a se descar- realização; levaria ao fim da ansiedade, mas certamente tam-
tar com muito mais facilidade não apenas dos bens, mas tam- bém ao esvaecimento de qualquer outro tipo de sentimento,
bém de valores, estilos de vida, relações estáveis e ligação com inclusive do afeto, pois não existiria mais um ego para sentir.
as coisas, construções, lugares, pessoas e modos herdados de A experiência fragmentada e descontínua é uma característica
fazer e ser: o sentido de que "tudo que é sólido desmancha que perpassa a cultura e a identidade pós-modernas.
no ar" raramente teria sido tão penetrante. Kellner (1992) não é tão radical assim, apontando contu-
No plano político, a ascensão do neoconservadorismo e do uma diferença nítida entre a identidade moderna e a pós-
do neoliberalismo na Europa e nos Estados Unidos na década moderna: enquanto o [oeus da primeira centrava-se em torno
da ocupação da pessoa, sua função numa esfera pública ou pri- IIllldunçaora em curso na formação da identidade: os egos pós-
vada, a segunda é centrada em torno do lazer, na aparência, na modernos tornaram-se mais múltiplos, transitórios e abertos.
imagem e no consumo. Para ele, a identidade moderna era um As condições próprias da modernidade, redefinindo es-
negócio sério, envolvendo escolhas fundamentais que definiam puços e fronteiras, levando a mudanças e a permanente reo-
quem era uma pessoa (profissão, identificações políticas, famí- I'lcntação de projetos, são levadas ao extremo sob as condi-
lia). O ego moderno tinha como obj etivo normativo uma iden- I,'t)csda pós-modernidade, que também atingem os domínios
tidade estável, substancial, embora auto-reflexiva e livremente du intimidade.
escolhida. Quando assumia identidades múltiplas, sentia neces-
sidade de escolher, de se definir. A instabilidade inerente à cons-
trução da identidade geralmente produzia ansiedade.
A identidade pós-moderna se constrói mais em função do
lazer, tornando-se um jogo escolhido mais livremente, uma
apresentação teatral do ego, uma apresentação de si através Vimos que o fato de as mulheres terem desafiado a dicotomia
de uma variedade de papéis, imagens e atividades.7 A identi- entre público e privado fragmentou a concepção de um indi-
dade não perdeu sua reflexividade e consciência de que é es- víduo universal, porém patriarcal, que corresponde a um mo-
colhida e construí da, mas agora se tornou mais natural esco- mcnto da divisão social e sexual do trabalho em que a família
lher entre múltiplas identidades e mudar com os ventos da mo- t:onjugal moderna encontrava-se no apogeu. A participação
da, produzindo-se uma erosão da individualidade e aumentan- da mulher nas diferentes esferas sociais e sua constituição co-
do a conformidade social. mo indivíduo abalaram o individualismo patriarcal institucio-
Ao mesmo tempo, esta situação deixa evidente que sempre nalizado na família conjugal moderna.
se pode mudar a própria vida, que a identidade pode ser recons- Este processo de aprofundamento e extensão do indivi-
truída, que se é livre para mudar e produzir a partir das próprias dualismo, através do qual as mulheres passam a ter aspirações
escolhas. Há uma noção de identidade livremente escolhida e fa- e construir identidades não mais ligadas exclusivamente à es-
cilmente descartada. Perde-se a rigidez do burguês moderno. fcra privada, estimula a instabilidade e a volatilidade nas rela-
Kellner sugere que a identidade pós-moderna é uma ex- ções íntimas, no casamento e na família. Favorece a reformu-
tensão das identidades múltiplas livremente escolhidas do ego lação permanente de projetos, vontades e aspirações individuais.
moderno. Assim, longe de estar desaparecendo, a identidade, O fim da rigidez do burguês moderno chega assim às relações
na sociedade contemporânea, teria mais possibilidades de se no casamento e na família.
reconstruir. A instabilidade e as rápidas mudanças, que eram A partir da definição do pós-moderno como total aceita-
um problema para o ego moderno, produzindo ansiedade e crise ção da efemeridade, da fragmentação, da descontinuidade e
de identidade, seriam mais aceitas pela identidade pós-moderna. do caótico, da mistura de códigos e de mundos, pode-se afir-
Ele não chega ao ponto de Jameson, para quem o conceito mar o seguinte: em diferentes partes da sociedade contempo-
de ansiedade não seria mais apropriado ao mundo pós-mo- rânea, a concepção moderna de casamento e de família, fun-
derno; tampouco nega que as crises de identidade ocorram e dada no individualismo patriarcal, passou a conviver com uma
sejam geralmente agudas. Propõe, porém, que se reconheça a concepção pós-moderna, na qual a heterogeneidade, a efeme-
ridade, a contextualidade de padrões e comportamentos tor-
naram-se traços dominantes e legítimos.
7 Goffman (1975), com sua análise sobre a "representação do 'eu' na vida cotidia- O que evidencia hoje o pós-moderno, nas práticas e no
na", seria então o precursor da teoria da identidade numa perspectiva pós-moderna.
Na sociologia, ele é um dos que rompem com a concepção do social como totalidade,
discurso sobre o casamento e a família, são as características
tratando a realidade como situações contextuais, cenas onde os papéis são represen- dos processos que Stacey (1990)mostrou em uma pesquisa en-
tados, sem qualquer profundidade por parte do ego. tre trabalhadores da indústria eletrônica na Califórnia: nas con-
dições de vida atuais não existe mais um modelo dominante
de família, pois nenhuma estrutura ou ideologia surgiu para
substituir a família moderna. Combinando estratégias e recursos
tradicionais e modernos, as pessoas refazem suas relações de
parentesco em redes que ela chama de "famílias extensas pelo
divórcio". Para Stacey, se existe alguma coisa que se possa cha-
mar de "família pós-moderna", não se trata de "um novo mo-
delo de vida familiar nem o próximo estágio numa ordem pro-
gressiva na história da família, mas o estágio em que se rompe
a crença numa progressão lógica de estágios". (Stacey, 1990,
p.18).
O pós-moderno no casamento e na família caracteriza-se
pelo fato de que, em circunstâncias contemporâneas, diferen-
tes padrões de institucionalização das relações afetivo-sexuais GÊNERO, CASAMENTO E FAMÍLIA NA
passaram legitimamente a 'coexistir, a colidir, a interpenetrar- MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA
se'. Entre grupos sociais - como as classes médias urbanas
- onde predominavam normas mais rígidas de comportamen-
tos, papéis sexuais dicotômicos, a heterogeneidade e °adiversi- Puís escravocrata até quase a última década do século passa-
dade impuseram-se, como práticas e como discurso. O casa- do, até então a maioria das mulheres eram trabalhadoras es-
mento moderno e a família conjugal moderna, cada vez mais, cravas na lavoura ou nos serviços doméstico propiciando um
passaram a conviver legitimamente com uma pluralidade de equilíbrio entre homens e mulheres na força de trabalho do
outros padrões de casamento e família. Brasil.8 Nas grandes propriedades agrárias, as mulheres ti-
Embora a discussão sobre a pós-modernidade - enquanto nham diferentes papéis para a reprodução social da unidade
uma circunstância histórica - e o pós-moderno - visto co- doméstica: como escravas, encarregavam-se tanto de trabalhos
mo um conjunto de tendências surgidas nestas circunstâncias nu lavoura quanto das inúmeras atividades cotidianas das fa-
- tenha nascido no Primeiro Mundo, ela é uma referência obri- 1,cndas, como lavagem de roupa, cozinha, fabrico de sabão e
gatória para a reflexão sobre as transformações contemporâ- vela, costura, cuidados das crianças e velhos, etc.; como se-
neas na sociedade brasileira, onde os caminhos da moderni- nhoras, administravam o trabalho das escravas e muitas vezes,
zação integraram-se à internacionalização da ordem mundial. no caso de viuvez ou de incapacidade do marido, geriam os
Também aqui as mudanças econômicas, sociais, políticas, cul- ncgócios da família. Como mulheres livres, mas pobres, na or-
turais, técnicas, espaciais e de gênero deram-se de tal forma ganização social formada por tropeiros, comerciantes, artesãos,
e em tal direção que não apenas se expandiu o individualis- agricultores de subsistência, aventureiros, mineradores, que exis-
mo, mas produziram-se diferenças, diversidade e fragmenta- tia fora das grandes propriedades, nas vilas, povoados, cida-
ção social e pessoal. Uma situação que não poderia deixar de des, podiam ser vendedoras ambulantes de produtos artes a-
ser experimentada na identidade, no plano das relações ínti- nuis feitos por elas mesmas, empregadas nos armazéns de bei-
mas, no casamento e na família. ra de estrada, agricultoras de subsistência, costureiras, doceiras,

K Pura uma análise de diferentes questões teórico-metodológicas a respeito do traba-


lho feminino, ver Aguiar, Neuma (1984).

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