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Capítulo III

Geografia da ájjsência

O espaço constitui uma das principais categorias da narrativa não SÓ pelas


articulações funcionais que estabelece com as restantes categorias, mas também pelas

incidências semânticas que o caracterizam. Em primeira instância, integra os


componentes físicos que servem de cenário ao desenrolar da ação e à movimentação dqs

personagens: cenários geográficos, interiores etc.; em segunda instância, o conceito de

espaço pode ser entendido em sentido translato, abarcando tanto as atmosferas sociais
(espaço social) como as psicolÓgicas (espaço psicológico)j

Reconhece-se, cada vez mais, que existe um vinculo inseparável entre a


possibilidade de pensamento humano e a percepção do espaço. Ao analisar obras de
Marcel Proust, William Faulkner, William Wordsworth, Herman Melville, Salman

Rushdie, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Martin Heidegger e Maurice
Merleau-Ponty, entre outros, em seu livro Place and Experience: A Philosophical

Topography (Lugar e experiência: uma topografia filosÓfica), Jeff Malpas argumenta


que toda experiência mental ou física possui uma dimensão espacial e que esta
possibilita e regula nossa coexistência com o mundo, nos sentidos psicológicos, sociais

e físicos. Malpas diz que

Em Heidegger e Merleau-Ponty, não é meramente a identidade humana que


está vinculada ao lugar, mas a possibilidade de relacionar-se com o mundo (e,
mais especificamente, com os objetos e os eventos que o compõem), refletir
sobre o mundo e encontrar-se no mundo. A idéia de um vinculo íntimo entre
"o estar no mundo" e a espacialidade se discerne (...) na obra de muitos
7
pensadores."
(··-.)
A importância estratégica dos conceitos de espaço e lugar deriva não apenas de
seu papel em qualquer grupo de oposições binárias ou de sua relação com
outros grupos de conceitos mas também, em grande parte, de sua
indispensabilidade e de sua ubiquação no pensamento e na experiência
humana ,3

' Aqui, privilegia-se o espaço físico, mas também se analisa o espaço social, que. sem o teor estático do
espaço físico, configura-se sobretudo em função da presença de tipos e figurantes (trata-se, assim, de
descrever ambientes que ilustrem, quase sempre num contexto periodológico de intenção critica, vícios e
deformações da sociedade).
' MALPAS, J. Place and Experience.' A Philosophical Topography. Cambridge: Cambridge University
Press, 1999, p. 8.
'lbid., p. 10.
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A percepção do espaço domina o senso de orientação do ser humano, sua esfera


de ação e o sentido de ordem. As estruturas e as hierarquias do espaço ajudam a
determinar o status social. as identidades coletivas e individuais e o relacionamento com
o outro. Além disso, a organização do espaço confere ao ser humano um sentido de
continuidade que se contrapõe à transitoriedade da passagem do tempo.
Em A poética do espaço, Gaston Bachelard afirma que as reflexões em tomo do
lugar e o estudo psicológico sistemático dos lugares da vida íntima (que ele chama de
topoanálise) sãó essenciais para compreender a memória: '

É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração


concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais.
As lembranças são imóveis. tanto mais sólidas quanto mais bem
especializadas. Localizar uma lembrança no tempo não passa de uma
preocupação de biógrafo e corresponde praticamente apenas a uma espécie de
história externa., uma história para uso externo, para ser contada aos outros. (...)
Mais urgente que a determinação das datas é, para o conhecimento da
intijµidade, a localização nos espaços da nossa intimidade.
(···).
Mesmo quando eles [os espaços] estão para sempre riscados do presente,
doravante estranhos a todas as promessas de futuro, mesmo quando não se tem
mais o sótão, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficará para sempre o fato
de que se amou um sótão, de que se viveu numa mansarda. A eles voltamos
nos sonhos notumos.4

O espaço é uma força estruturante fundamental para o sentido de identidade e


. a relação com o mundo material. Conseqüentemente, uma ruptura do liame com o
para
espaço leva a várias formas de hagmentação sociais e psicológicas. Em verdade, essa é
uma das razões pelas quais a tentativa de reaver a terra é de importância tão vital para os f

povos expulsos de seu torrão natal: faz parte de um esforço para adquirir uma visão
unificada do eu, do mundo e da experiência coletiva.
A luta por um espaço refèrencial se Mete nos textos, incluindo os literários,
cujos autores exprimem não apenas as características políticas ou históricas da pátria
como também as emocionais e as estéticas, que são essenciais para a experiência de
uma ordem espacial. Uma vez que os textos literários são uma representação da
realidade, eles constituem um meio de definir a relação com o espaço; servem de elo
entre os autores e os Jugares onde eles vivem ou viveram ou imaginam que outros
vivam ou viveram.

' BACHELARD, G. A poética do espaço. [tradução de Antonio de Pádua Danesi]. São Paulo: Martins
Fontes, 1989, p. 29.

53
As percepções de espaço estão registradas em narrativas de diversos gêneros.
Malpas destaca o romance como um gênero literário no qual a representação do espaço

possui uma função relevante não só por evocar as memórias ou o lugar dos

acontecimentos mas também por estruturar uma série de pensamentos que reforçam a

coerência das experiências das personagens. De modo especial, nos romances, as


percepções do espaço são manipuladas para servir a objetivos literários. Os autores

recorrem à descrição dos lugares para ilustrar o relacionamento das personagens com o
ambiente onde vivem ou viveramú

As representações espaciais foram analisadas por Philippe Hamon em lmageries,


Littérature et image au XlXe siècle (Imaginários, literatura e imagem no século XIX) 6,

que se concentra na literatura francesa do século XIX.. Hamon descreve as

à
representações espaciais como um meio de organizar a estrutura narrativa do romance.
O ambiente espacial proporciona uma série de limites - tanto simbólicos quanto reais —
que formam uma parte importante da narrativa. Além disso, provê o escritor de um
.
mecanismo para o acantoamento e a revelação, para a inclusão e a exclusão. Os espaços
podem ocultar ou mostrar pessoas, atividades e objetos, separar povos, uni-los, revelar

segredos etc. Esses dispositivos técnicos vinculados aos espaços propiciam à narrativa
dinamismo e coerência seqüencial, segundo Hamon.

3.1 Literatura e geografia

Nos últimos anos, intensificaram-se os estudos sobre o espaço e sobre a relação


entre a literatura e a geografia. Alguns autores se questionam em que o espaço
romanesco poderia servir para a geografia se não tem valor factual garantido. Apesar
disso, a "geografia literária", como convencionou-se designá-la, constitui um capitulo
comum nos manuais de geografia cultural, sobretudo na obra de Paul Clavai, Mike
Crang, Jean-Louis'Tissier e Yi-Fu Tuanj

Observa-se uma tendência, nesses autores, de privilegiar a literatura realista do


século XIX, não tanto por sua fidelidade aos "Eitos", mas porque eles a julgam capaz de

' MALPAS, j. Ibid., pp. 72-107, 180, 187-188.


" HAMON, P. hnageries, Littérature et image au XlXe siècle. Paris: Éditions José Corti, 2001.
' Ver CLAVAI., P. La géographie culture/le. Paris: Nathan. 1995; CRANG, M. Cultural Geography.
Londres: Routledge, 1998; TISSIER, J-L. "Géographie et literature" em BAILLY, A. & FERRAS, R. &
PUMAIN, D. (dir.) Enc.vclopédie de géographie. Paris: Economica, 1995, pp. 217-237; YI-FU TUAN, Y.
"Literature and geography: implications for geographical research" em LEY, D. (dir.) Humanistic
Geography - Prospects and Problems. Chicago: Maaroufa Press, 1978, pp. 194-206.

l i 54
representar um sujeito (individual ou coletivo) que vive em harmonia com seu ambiente
e, portanto, suscetível de alimentar as teses sobre o arraigamento e a importância do lar

(chez soí, home).


Os empréstimos à crítica literária por parte dos geógrafos foram pouco
numerosos a princípio. E, se a crítica foi solicitada, às vezes, foi bem mais uma crítica
do imaginário, como nos muitos trabalhos de Bachelard, entre os quais se destaca A
poética do espaço, publicado originalmente em 1957 (La poétique de l'espace, no título

em francês).
Posteriormente, porém, esses empréstimos aumentaram. As 'novas geografias
culturais se alimentam em diversos autores da filosofia (Michel Foucault, Derrida,
Deleuze e Guattari, Michel de Certeau, para nomear alguns) e naqueles associados ao
diro pós-estruturalismo (literário) francês de Roland Barthes e Tzvetan Todorov. Na
realidade, as fronteiras disciplinares se tomaram difusas, senão obsoletas, pelo

incremento das práticas interdisciplinares.


Os geógrafos consideraram também a literatura nas suas dimensões subversivas,
notadamente ao examinar como se podem encontrar manifestações de resistência à
hegemonia em matéria de ocupação e de práticas do espaçof

Esta relação se revela especial - nos dois sentidos (a apropriação literária pela
análise geográfica e a apropriação geográfica pela análise literária) - no caso palestino.
A geografia é uma questão lancinante que se coloca para a cultura palestina desde pelo

ménos 1948, o ario da nakba (catástrofe, em árabe).


De fato, o desapossamento e a tentativa de riscar do mapa a Palestina traçaram
uma nova geografia para os palestinos, a da ausência, mas .também a da memória
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(ameaçada constantemente peio esquecimento) e do imaginário indiviâial e coletivo.


A intenção aqui é analisar a visão do espaço entre um povo desapossado,
entender que geografia é essa e como ela atua na busca da identidade, ou se.ja, como

elaborar essa geografia da ausência para que uma outra presença aconteça, a presença
literária-
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O critico literário 'Abd-Assamd Zayd afirma que uma das bases do romance
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árabe (e do palestino, em especial) é justamente o "espaço recusado" (almakãn


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! ' Ver DIJGAS, R. & DESLAURJERS, P. "The culture of mobility in modem American literature" em
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Laboratorio di geografia e letíeratura ll, nT l, [s.l.:s.n.], 1997, pp. 7-30; DESLAURIERS, P. "Very
different Montreals. Pathway through the eity and ethnicity in noveis by authors of different origins" em
í PRESTON, P. & SIMPSON-HOUSLEY, P. (dir.) Writing the Ciiy. Eden, Babv/on and the New
Jerusalém. Londres: Routledge, 1994.

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ahnal1üCl) pelo colonialismo "militar e econômico'". Segundo Zayd, "o homem herda,
com o espaço, toda a história que o envolve"l'"'.

O poeta palestino Mahmud Darwich refletiu sobre o significado de pátria num


livro de ensaios publicado no início dos anos setenta, logo depois de deixar Israel para
viver no exílio. Na obra, ele diz aos israelenses:

A verdadeira pátria não é aquela que é conhecida ou provada. A terra que surge
como que de uma equação química ou de um instituto teórico não é uma pátria.
Sua necessidade insistente de demonstrar a história das pedras e sua habilidade
de inventar provas não lhe dão uma relação prévia com aquele que sabe
quando vai chover a partir do cheiro das pedras. Essa pedra, para você, é um
esforço intelectual. Para seu dono. ela é o telhado e as paredes.'|

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Para Darwich, o encontro entre as percepções palestina e israelense da pátria está
no centro do que ele descreve como '"um embate entre duas memórias". E a
significância das pedras abre caminho através desse enfirentamento.
Para os sionistas, a arqueologia se tomou um meio de estabelecer um vínculo
entre os judeus contemporâneos e o antigo território tribal para reconstruir a identidade
judaica como uma identidade israelense.
Na visão de Darwich, as pedras abrangem a própria substância da vida palestina,
o telhado e as paredes que formam um laço existencial inexprimível entre o povo e o
lugar. a

A partir de 1987, os "filhos das pedras" (nas palavras do poeta sírio Nizar
Qabbani), uma geração de palestinos que cresceu sob a ocupação, trouxe a luta para um
novo plano com a Intifada, o levante contra a ocupação israelense. As mesmas pedras
cuja história era manipulada pelos israelenses eram reunidas e estocadas como armas de
resistência. 12

A luta acerca das pedras é parte de uma batalha retórica mais ampla sobre o
sentido da terr± do lar e do lugar. De qualquer forma, a paisagem na literatura palestina
não é desprovida de habitantes, como tentavam fazer crer norte-americanos e europeus,

9 ZAYD. A. A/níakán ./írriwãya a/'arabiyva (O espaço no romance árabe). Tunis: Dãr Mubammad 'Ali,
2003, p. 26.
'° lbid., p. 133.
" DARWICH, M. Yawmiyyãt altluzn al'ãdiy (Crônicas da tristeza ordinária). Damasco: Dãr Filasçin,
1969, p. 64.
12 A Intifada derrubou parte da mitologia nacional de Israel, ein especial o rnito de Davi e Golias (sobre
um pequeno povo que teria vencido os "gigantes" árabes pela inteligência e pela tenacidade).

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incluindo os judeus sionistas. e seus habitantes não são meramente adornos na


paisagem, como também tentou se propagar. ]' ,

Como escreveu a filÓsofa francesa Simone Weil (pouco antes de sua morte, em
1943): "O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da
alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tein uma raiz através

de sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva
vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro".14

Segundo Edward Relph, "ser humano é viver em um mundo pleno de lugares


significativos: ser humano é viver e conhecer seu lugar". 15

O lugar é compreendido aqui como um segmento de espaço que um indivíduo ou


grupo imbui de significado, valor e intenção especiais, de acordo com a definição de
Relph.16
Anne Buttimer sugere que "nós pensamos no lugar no contexto de dois
movimentos recíprocos: [a necessidade do] lar e [dos] horizontes' alcançáveis fora desse
.
lar".n E Relph alega que vivenciar o lugar como um lar possibilita "um ponto de
partida a partir do qual nÓs nos orientamos e tomamos posse do mundo"18.

Relph e outros estudiosos, como Jay Appleton e Buttimer, afirmam que, muitas

vezes, as oposições binárias são vistas como essenciais à natureza humana e que a
essência do lugar reside na "experiência de um 'interior' que é distinto de um
'exterior'". 19

. Para Yi-Fu Tuan, o lugar ou pelo menos o sentido de lugar (construir


conscientemente uma ligação e um apreço pelo ambiente local) é uma construção social,
assim como uma experiência existencial.20
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A literatura concebe uma imagem da realidade e articula experiências humanas
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do cotidiano que normalmente são implícitas e inarticuladas. Dessa foma, embora
l

13 Pretende-se mostrar, neste capitulo, esta interação ativa entre os palestinos e sua terra natal.
" WEIL, S. L'enracinement .' prélude à une déclaration des devoirs envers l'être humain. Paris:
Gallimard, 1949, p. 12.
" RELPH, E. Place and placeness. Londres: Píon Limted, 1976, p. 143.
" Ibid., pp. 29 a 43.
" BUTTIMER, A. & SEAMON, D. (ed.) The Human Experience q/' Space and Place. Nova Iorque: St.
Martin's Press, 1980, p. 76.
i
" RELPH, E. Op. cit., p. 40.
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l' Ibid. ibidem. Ver ainda MEINJG, D. (ed.) The Interpretation o/'Ordinary Landscapes. Nova Iorque e
Oxford: Oxford University Press, 1980.
2" YI-FU TUAN, "Rootedness versus sense of placê" em Landscape 25. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1980, pp. 3-8.

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contraste com a "realidade limpa" encontrada no ordenamento cientifico do mundo,
ajuda a entender os significados efetivos do lugar 21

Palestinos e israelenses articularam a experiência densa do lugar, e seus


escritores reconhecem a existência de dois lugares entrelaçados e opostos dentro da área
controlada militarmente por Israel. O jornalista israelense Uri Avneri observa que, em
suas conversas com palestinos, surge um mapa da terra que é totalmente diferente
daquele que ele tem:

Em cada encontro, um mapa é desenhado — não o mapa de hoje, mas o mapa


do período do Mandato - quando Shlomi era Basa e Knyat Shemona era
Khalsa e Ashhod era Asdud. (...) Depois de três gerações, nada foi esquecido;
:
ao contrário, foi acentuado. (...) Nunca será fácil resolver o problema de um
t
homem que sonha com sua casa e com as árvores de [sua aldeia], mesmo que
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ele nunca as tenha visto,22


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No livro Buhãr 'alá aljurll alma/íüll (Temperos na ferida aberta), a poetisa


palestina Layla "Alluch retrata, de maneira emotiva, as características de sua Palestina

que ainda sobrevivem dentro da paisagem imposta de Israel:

Tudo é árabe apesar da mudança da língua,


Apesar dos caminhões, carros e faróis.
Todos os choupos e os pomares solenes de meus ancestrais
Estavam, juro, sorrindo para mim com uma afèição árabe
Apesar de tudo o que foi eliminado, coordenado, e dos sons "modernos"
Apesar dos oceanos de luz e tecnologia
Ó, meus avós, o rico solo estava iluminado com a feição árabe
E ele cantava, acreditem-me, com afeição.23

No poema acima, 'Alluch une a terra ao povo palestino. Durante uma viagem de
Jerusalém a Haifa (na Galiléia), onde encontraria alguns parentes, a narradora percebe

todas as mudanças que os israelenses empreenderam, mas em seu poema a terra


permanece imutável e determinadamente árabe. Nela, ela vê sua própria aparência árabe
t
espelhada, como quando se reconhecem os traços da face num parente próximo. A terra
também reconhece a narradora como um membro da família, como se observa nos dois

últimos versos citados.

" Ver VI-FU TUAN. "Literature, Experience and Environmental Knowledge" em GOLLEDGE, R. G. &
MOORE, G. T. (cd.) Environmental Knowing.' Theories, Research anal Methods. Minneapolis: University
of Minnesota Press, 1983.
22 HaOlam Haze (semanário israelense), 15 de junho de 1983.
" ALLUCH, I.. Buhãr 'alá a/iurk almaftül| (Temperos na ferida aberta). Damasco: Dãr Filàg"n, 1971, p.
17.

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A persistência e a força da família derivam de laços íntimos desenvolvidos e


testados através de uma longa vivência jlllllos (Como diz Bachelard, "é no espaço que
encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O
inconsciente permanece nos locais"2'). A família se associa à terra ao invocar esse laço

íntimo que é inatingível para os recém-chegados, não importa o quanto manipulem as


aparências superficiais.

3. 2 Aldeias destruídas e expulsão

Os eventos que sucederam à criação de Israel tiveram um grande impacto sobre


os palestinos (ampliado pelo central apego à terra): ao final do processo inicial de
desapropriação, em 1949, mais de quatrocentas cidades e aldeias da Galiléia, da região
costeira, da área entre Jaffa e Jerusalém e da região sul do país tinham sido
despovoadas25.

Aldeias e cidades foram destruídas e os nomes de cidades remanescentes,


substituídos por outros pertencentes a uma cultura distinta. Como disse o líder militar
israelense Moshe Dayan em discurso a compatriotas:

Aldeias judaicas foram construídas no lugar de aldeias árabes. Vocês nem


conhecem o nome dessas aldeias árabes, e eu não os culpo porque não há mais
livros de geografia; não apenas esses livros não existem mais como também os
aldeões árabes não estão mais lá... Não há um único lugar construído neste pais
que não tivesse antes uma população árabe.2"

A maioria dos habitantes árabes foi dispersa por toda a região como refugiados.
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Em "Ab 'ad min alkudüd' (Além das Fronteiras), Kanafani relata a história dessa
dispersão:

Quer saber algo sobre mim? Isso é importante para vOCê? Se for, então conte
nos dedos: Eu tenho uma mãe que morreu debaixo dos destroços de uma casa
que meu pai construiu para ela em Safad. Meu pai mora em outro país e eu não
posso vê-lo nem visitá-lo. Eu também tenho um irmão, senhor, que está tendo
aulas de humilhação nas escolas da agência da ONU para refugiados. Tenho
ainda uma irmã que está casada e mora em outro país e não pode me ver nem
ver meu pai. Ah, tenho mais um irmão, senhor! Mas nós não sabemos onde ele
está... Quer saber qual é meu crime? Você quer realmente saber ou está só

" BACHELARD, G. Op. cit., p. 29.


2' Ver Anexo V.
" DAYAN. M. Haaretz (jornal israelense), 4 de abril de 1969.

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curioso. senhor? Deixei cair, sem me dar conta, toda a vasilha de leite na
cabeça de um funcionário do Estado e disse a ele que não queria vender a
minha terra. Eu devo ter feito isso em um momehto de loucura ou de lucidez,
não sei muito bem.... Eles me colocaram em uma ceia isolada e profunda para
que eu dissesse que aquilo tudo tinha sido uma loucura da minha parte... Mas,
na cela. eu me convenci de que a minha atitude foi o único momento de lucidez
em toda a minha vida."

Arnold Toynbee comparou a expulsão dos palestinos de sua terra natal com a
dos gregos de Bizâncio pelos otomanos em 1453, conforme afirma o escritor e crítico
palestino Jabra Ibrahim Jabra:

Em 1957, encontrei em Bagdá Arnold Toynbee, que fazia uma viagem pelos
países árabes. O grande pensador, para quem a civilização era a recorrência de
modelos históricos, parecia ter em alta conta o papel dos palestinos (que
encontrou em grande número durante sua turnê) na sociedade árabe. Garantia
g que, onde estivera, encontrara palestinos que ocupavam posições de comando.
Eram os líderes desconhecidos do mundo árabe. Comparava a expulsão deles
com a de pensadores e artistas gregos de Bizâncio pelos turcos em 1453. Esses
"pensadores tinham então se espalhado pela Europa e contribuído de modo
decisivo para o fim dos séculos obscuros e para o início do Renascimento na
Europa. Os palestinos, diz ele, devem ter uma influência seminal idêntica no
mundo árabe. O destino deles era o de gerar uma nova era, anunciar uma nova
civilização. Ele acrescentou um outro paralelo: mais de uma vez no passado, a
Palestina lançara no mundo sementes de mudança radical, notadamente quando
os apóstolos de Cristo, que se tomaram indesejáveis em sua própria terra,
partiram para provocar no estrangeiro, sob a foma do cristianismo, uma das
maiores revoluções da história humana.
Era reconfortante encarar as coisas em tais termos históricos, mas o sentimento
do exílio não era menos lancinante. E a parte maior da produção criativa de
minha geração devia ser considerada sob esse ângulo. Era uma mistura de
saudade e de antecipação, de passado e de futuro.'8

Na guerra de junho de 1967, diferentemente da guerra de 1948-49, o processo de


exclusão da população ocorreu sob o olhar das Nações Unidas e de outras agências

internacionais. O uso sistemático de coerção foi identificado e notificado, de modo que

alguns fatos não pµderam ser negados, ao contrário do que se passou nos confírontos de

1948-1949. Segundo Edward Said,

O inundo esqueceu que, em 1948, os palestinos constituíam quase 70% da


população do mandato da Palestina; desde que a imigração judaica começou
em escala séria, os imigrantes conseguiram adquirir apenas cerca de 6% das
terras do pais. No entanto, durante a década de 1940 e, em especial, depois da
Segunda Guerra Mundial - os anos de minha infância -, não houve quase
í

" KANAFANI, G. Al 'aµár alkiimila. vol. II. Beirute: Mu'asasãt al'abhãt al'arabiyya. 1973, pp. 279-280. r

l
" JABRA. I. J. Qantara, número 23. Paris: IMA, primavera de 1997, p. 43. l

60
I
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nenhuma preparação para compreender a situação. Lembro que havia apenas
um leve sentimento de urgência ou alarrne diante da chegada de forasteiros
vindos da Europa e pouco se cogitava sobre quais poderiam ser seus planos e
como eles seriam executados,2'

3.3 A ausência de lugar

Ao ressaltar a importância da experiência vivida por um indivíduo ou um grupo


num lugar preciso, Edward Relph desenvolve, numa perspectiva geográfica, a noção de

place/essness (ausência de lugar), ligando-a às mudanças que o espaço sofre no século
XX. Para Relph, entre as possíveis conseqüências da experiência de ausência de lugar,
estão "o rompimento de raízes, a erosão de símbolos, a substituição de diversidade por
uniformidade e de ordem experimental por ordem conceitual"30.

Sabe-se que, em 1948 e 1949, a maioria dos palestinos foi obrigada a deixar sua
terra natal e todo um espaço foi apagado a fim de acolher um outro povo. Ainda hoje
existem cidades habitadas que não são reconhecidas pelo Estado de Israel e que são
riscadas do mapa geográfico. A destruição do espaço, a extinção dos lugares, era feita e
ainda se faz não apenas para apagar os traços da existência de um povo mas também
com o intuito de pôr fim ao sentido que esses lugares tinham para seus próprios
habitantes.
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t
Para o apagamento da memória coletiva, na opinião de muitos dirigentes
isiaelenses, uma só versão da história podia ser escrita, um só nome (e sentido) de lugar
podia perdurar. Assim, era preciso apropriar-se de uma terra e privar o outro de sua terra
i
e de sua história.
A premiê israelense Golda Meir ilustra bem essa tentativa sistèmática e chega a

l afirmar que os palestinos "não existiam":


' í

) Não havia nada que pudesse se chamar de palestino... Não foi como se
houvesse um povo palestino na Palestina que se considerasse como palestino e
l nós tivéssemos jogado eles para fora e se apossado de seu país. Eles não
existiam .31

i
) As circunstâncias paniculares do desaparecimento da Palestina — a maioria de
seu povo havia sido forçada a ir para os países árabes vizinhos - forneceram,
iY
l " SAID, E. Reflexões sobre o exílio. São Paulo: Companhia das Letras. 2003, p. 291.
I
l
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"' RELPH, E. Op. cit., p. 143.
" MEIR, G. The Sunday Times, 15 de junho de 1969, p. 12.

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imediatamente após 1948. um terreno fértil para o desenvolvimento das teses israelenses
sobre "a terra sem povo" que esperara, durante dois milênios, o retomo do "povo sem
, terra". De fato, sabe-se que esse mito foi adotado enquanto se tentava isolar uma
f

comunidade nacional num território de ausência. A idéia era que, ausentes, os palestinos
l não existiriam.
A tentativa de eliminação sistemática do vínculo de um povo com sua terra e do
aniquilamento de sua memória e de sua cultura marca o desapossamento vivido pelos
palestinos. Essa experiência do lugar ausente, da geografia da ausência, reflete-se na i
l
escritura.
Mesmo que inacessível fisicamente. no entanto, a Palestina se fez (e ainda se L

faz) presente na literatura. Darwich descreveu a Palestina como um "país de palavras"32. ,

E no poema Qála alniusã/ír li/níusá/M lan na 'üd kumã... (O viajante disse ao viajante:
Não voltaremos como...), que faz parte da obra Lim@ta tarakta alkiSãn wajiidan (Por
que deixaste o cavalo sozinho?), Darwich escreve:

No deserto, o desconhecido me disse:


Escreve!
Respondi: há outra escrita na miragem
Disse ele: escreve que a miragem reverdece
Respondi: falta-me ausência
Não domino a palavra
Disse-me então: escreve, conhece
Sabe onde estavas, onde estás
Como vieste, quem serás
Põe o teu nome na minha mão
E
Escreve, sabe quem sou
, ,
E espalha nuvens no céu
Escrevi por fim:
Aquele que escreve sua história
Herda a terra das palavras
E se apossa do sentido
Completamente!33

Espaço e escritura se entrecruzam. terra e palavras se entrelaçam a fim de


descobrir seu sentido e de possuir um nome. A literatura palestina se mostra aí uma
J

escritura de resistência no sentido da sobrevivência, da continuidade da vida. Se há uma


ruptura na continuidade do sentido de lugar. a escritura pode instaurar uma continuidade

" DARWICH, M. Palà'stina ais Metapher.' Gesprà'che über Literatur und Po/itik. Heidelberg: Palmyra.
1998, p. 31.
"J 'i -" DARWICH, M Limãda tarakta alhisán wajüdan (Por que deixaste o cavalo sozinho?). Beirute' Riad ei
,, :, t , Rayyes, 1995, p. l 12.
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que é a da busca, da descoberta, e do lugar e do si mesmo no lugar. Para os palestinos,
i as histÓrias se multiplicam de acordo com a multiplicidade das experiências vividas
l
,

' (apesar dos traços do desapossamento e do exílio). Na literatura, lêem-se vários espaços
que contam essa história.
Em Tadiqu biná a/'arçl (A terra nos é estreita), Darwich escreve:

A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no último desfiladeiro


E nós nos despimos dos membros para passar
A terra nos pressiona. Fôssemos nós o seu trigo para morrer e ressuscitar
Fosse eia a nossa mãe para se compadecer de nós
Fôssemos nós as imagens dos rochedos que o nosso sonho levará
Coiiiq espelhos,34

Para garantir a relação com a terra, os corpos se desmembram, e as histórias se


&agmentam. O poeta se mostra disposto a morrer e ressuscitar por ela. A necessidade de
recitar a história é ameaçada por um apagamento contínuo e uma tentativa de impedir
esses relatos e sua integridade.
Alguns autores afirmam que a Palestina foi constituída como uma entidade
imaginária no momento de sua mina e que, na Palestina anterior a 1948, não havia
senso de uma identidade nacional palestina distinta que pudesse ser preservada no
exílio. Essa visão foi contestada pelos estudos mais recentes.35 O que se pode afirmar é

que a traumática experiência de 1948 reforçou essa identidade.


' A nakba redesenhou a fisionomia cultural do povo palestino. Acentuou
intensamente alguns traços locais e deu origem a novos modos de expressão. Sabe-se
que 1948 não marca o nascimento de uma cultura, mas é certo que, mais do que nunca,
t
os palestinos passam a falar com uma voz pessoal, a usar um timbre novo, a falar das
inquietações particulares, cantar ou chorar esta experiência própria.36 "

3.4 Identidades múltiplas


i

l
;

j
l
Antes da Primeira Guerra Mundial, para os palestinos, como para as populações
de outros países árabes, o sentimento de identidade era resultante de potentes pólos

" DARWICH, M. Taçiíqu biná ai 'arçl (A terra nos é estreita). Beirute: Riad ei Rayyes, 2000, p. 187.
" Ver 'ALLUCH, N. Al 'asã.tír wa/waqã 'i' (Mitos e realidades). Amã: Dãr aSSuriíq, 1998; ALKHALILI,
A. Atturãj al/í/astíniv wa//abaqãt (O legado palestino e as classes). Beirute: Dãr at'ãdãb, 1987.
" Na década de 1930, elementos da cultura popular emergiram como símbolos coletivos e nacionais,
como a ku/7íyya, o pano que envolve a cabeça dos camponeses ou dos beduínos (em oposição ao tarbuche
das pessoas da cidàcie) e que se tomaria o símbolo da questão palestina.

F -

63
transnacionais, notadamente o árabe e o islâmico, eles próprios imbricados nas
lealdades locais e regionais. Essa combinação de pertenças múltiplas e simultâneas,
particularmente difíceis de apreender para aqueles que pensam a identidade nacional de
maneira anistórica e unidimensional, é ainda mais complexa no caso dos palestinos.
Diferentemente das outras populações árabes, estes não conheceram no inicio do século
q
i
XX uma narrativa nacional "histórica" e oficial, vigorosamente difundida entre várias
gerações pelos Estados-nações. Assim, a evolução do sentimento de identidade, que
poderia ter sido linear para os palestinos, foi bastante perturbada. No caso dos outros
povos árabes, a identidade nacional conheceu um processo continuo de formação,
produto de uma interação entre antigas pertenças e novos pOlos de referência, sem g
provocar questionamentos radicais (com algumas exceções, em especial o Líbano). q
Compreende"se que vários elementos constitutivos dessa identidade já estavam
j presentes antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918): sentimento patriótico,
pertencimentos locais, arabismo, afiliação religiosa, níveis superiores de educação etc.
Sem dúvida, eles já estavam amadurecendo e evoluindo para um sentimento comum à ' :
, população que se percebia como palestina sem que essa qualidade constituísse ainda o
principal pOlo de identificação para a maioria da população árabe na Palestina. Mas, sob
íQ
o efeito das revoltas dramáticas que marcaram o período entre o fim da Primeira Guerra
e o começo do Mandato Britânico (1920-1948), o sentimento de identificação nacional Qé
iQ
das camadas palestinas urbanas, letradas e politicamente conscientes soEeu
transformações maiores que levaram a uma forte e crescente adesão à nacionalidade
palestina, na medida em que os habitantes dessa região se viam como membros de uma q q

mesma comunidade. í

A despeito da dificuldade de reconstituir as etapas da evolução da identidade Q

palestina, por falta de documentos relativos ao período crucial dos anos 1910, é possível q
retraçá-la em grandes linhas. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, vários elementos f
constitutivos da identidade dos palestinos dissolveram-se. Primeiro, o otomanismo, q
síntese ideológica transnacional que havia constituído o "cimento" das populações
í
locais, desmorona após a retirada dos otomanos das províncias árabes no final de 1918. i
Com o desmembramento do Império Islâmico, os laços religiosos também declinam, o í
que abre caminho para o nacionalismo. A percepção de uma entidade territorial (
t
palestina, no entanto, esboçava-se anteriormente (ainda sob o jugo otomano ), na forma,
q
por exemplo, da vi/ayet Filastin (Província da Palestina), que inicialmente era
q
dependente de Damasco.
.
.
64

L
l
f
l '

Nessa época, a adesão evoluiu paulatinamente. e o sentimento de pertencimento


a uma comunidade mais vasta que a localidade começou a se estender nas camadas
urbanas com a difusão do ensino, a abertura de estradas, a constrüçãQ de vias férreas etc.
Essa evolução é anterior ao encontro com o sionismo, contrariamente à hipótese
constantemente levantada de uma ligação dos árabes palestinos com seu pais em reação
à imigração judaica. Sabe-se que, embora o desafio sionista tenha ajudado a moldar a
identidade nacional palestina, seria um erro sugerir que ela tenha emergido como uma
resposta ao sionismo. Esse movimento foi importante para a fbrmação da identidade por
ter sido o "outro" com o qual os palestinos conviveram durante a maiá parte do século

XX. O argumento de que o sionismo foi o fator principal para a emergência da


identidade palestina, porém, ignora um elemento-chave: um processo universal estava
ocorrendo no Oriente Médio, durante esse período, relacionado à crescente identificação
com os novos Estados criados após a Primeira Guerra Mundial. Ta.l identificação se
baseou em contextos preexistentes de lealdade e no estabelecimento de novas alianças,
como no caso dos palestinos. Além disso, essas novas identidades demonstraram ser
conjunturais, não destacadas do contexto. Como parte desse processo universal,
libaneses, sírios, iraquianos e jordanianos buscavam desenvolver seus respectivos
nacionalismos durante o mesmo período sem o beneficio duvidoso do desafio sionista.
Após a evolução da ideologia entre 1860 e 1914, num ritmo moderado, segue-se
uma mudança extremamente rápida de atitude. O nacionalismo palestino se separava do
ara6ismo ainda que mantivesse um laço com ele e que essa relação fosse retomada

quatro décadas depois.


A análise atenta dos órgãos da imprensa palestina revela, de fato, ao mesmo ê

tempo. uma flutuação da terminologia relativa à identidade e uma evolução cada vez
mais afirmativa para a noção de pátria palestina. Assim, as expressões "nação palestina"
i
('umma ,lílasjtiniyya), "terra palestina" ( 'arçl jí/astinivva) e "país palestino" (bi/ãcl
l jüasjtiniyya) aparecem desde pelo menos 1914, mas é claramente depois da Primeira
Guerra que a passagem se faz, de forma mais clara, de uma percepção pan-árabe a uma
identificação específica com a Palestina, após um período intermediário durante o qual
Damasco foi percebida como a capital de um 1iituro reino árabe englobando a Palestina
como parte da Síria (bi/ãd aSScini, termo genérico utilizado antes do acordo Sykes-Picot
(1916) que englobava a Síria, o Líbano, a Palestina e a Jordânia atuais).
No caso dos palestinos, como se observa. é preciso falar em identidades
múltiplas. Said reflete, de forma eloqüente, sobre essa identidade múltipla - em seu caso

65
t
múltipla não apenas por motivos políticos mas também por razões familiares: o único
garoto entre quatro irmãos. tinha um nome inglês e um sobrenome árabe e era um árabe
,
t

com passaporte norte-americano ern meio a estudantes britânicos e norte-americanos.


L
í'

E
l'

l
1

l Nunca me vi como cristão. Quer dizer, nunca me vi como minoria no mundo


árabe. Realmente não é uma parte importante de minha identidade. Mas isso,
ao lado de meu passaporte norte-americano e do fato de que, quando estava no
Egito, não era egípcio, quando estava no Líbano, não era libanês... Tudo isso se
juntou para a sensação implacável de que "eu não pertenço a este lugar" 37

De acordo com Serge Gruzinski, "cada criatura é dotada de uma série de


identidades, ou provida de referências mais ou menos estáveis, que ela ativa
r

l sucessivamente ou simultaneamente, dependendo dos contextos".38


.
Abdala Junior argumenta que, "individualmente, a mesma pessoa pode ser, ao
mesmo tempo, mulher, negra, trabalhadora, latina etc. e ainda prestar solidariedade a
outras categorias. Será seu contexto situacional que definirá a dominância entre esses
caracteres que se cruzam"39, No caso dos palestinos, o fator que predomina é o espaço

físico de origem. Ainda que ele possa viver nos países mais diversos e que seu estatuto
seja "indefinido", como bem ilustra o poeta Darwich, essa origem é a principal marca
identitária. "Onde nasceu? - Na Palestina. E onde vive? - Em Israel. Logo: estatuto
indefinido", diz Darwich, que define bem essa condição de nação sem território: "Você
é palestino, sabe disso, só que a Palestina não aparece na paisagem do mundo! Quando
quer viajar por este mundo, ei lo obrigatoriamente preso ao seu status cruel"40

A identidade palestina foi (e continua a ser, ainda que de foma mais sutil)
violentamente negada nos Estados Unidos e em Israel. Por isso, os palestinos

empreenderam esforços concentrados para fazer admitir sua identidade — e mesmo para
. . fazer conhecer sua própria existência.

No início do século XX, vários fatores serviram para intensificar o conflito entre
árabes e judeus 'na Palestina. Desde que o chanceler britânico Arthur James Balfour

(1848-1930) escreveu a Lord Rothschild, em 2 de novembro de 19!7, que "o governo


de Sua Majestade vê com bons olhos o estabelecimento, na Palestina, de um lar nacional
para o povo .judeu e usará seus melhores esforços para facilitar a realização desse

" Depoimento ao autor. Em sua autobiografim Said relata os efeitos dessa identidade múltipla. Ver SAID,
E. Fora do Lugar. São Paulo: Companhia das Letras. 2004.
" GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 53.
" 39 ABDALA JUNIOFL B. Fronteiras múltiplas, identidades culturais: um ensaio sobre mestiçagem e
:" ' ' hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002, p. 34.
' '", , " DARWICH, M. Yawmiyyát aljjtuzn al'ãdiy (Crônicas da tristeza ordinária), p. 62.
' l F

' !", , , !, 66
4,c-ZÁ l'
objetivo"' (Declaração de Balfour), a narrativa histórica palestina tem estado em
desavença com uma outra cronologia e um outro plane.jamento territorial impostos à
tOrça. Datas particulares denotam essa história deslocada: o levante palestino de 1936-
39: a criação do Estado de Israel. em 1948: a guerra de Suez, em 1956: a guerra de
.junho de 1967; a guerra de outubro de 1973; os Acordos de Camp David de 1978-79; a
invasão israelense do Líbano em 1982 e as Intifadas palestinas - a primeira, de 1987 a
1993, e a segunda, iniciada em 2000 e ainda em curso.
De fato, a Declaração de Balfour deu aos sionistas um ponto de apoio firme na
t expectativas
Palestina. Ao mesmo tempo, o fim do Império Otomano aumentou as
árabes por uma iminente independência nacional. O controle fíancês e britânico, depois
da Primeira Guerra Mundial, frustrou as aspirações nacionalistas na maior parte do
Orienw Médio41, mas apenas na Palestina a população foi ameaçada com a

desapropriação real de suas terras - consumada posteriormente em diversas ocasiões.

3.5 Descrição da Palestina

A Palestina anterior a 1948 abrange paisagens diversas dentro de sua pequena


área. Em direção ao leste, a partir do Mediterrâneo, passa-se primeiro pela planície
costeira, onde os solos aluviais e os recursos de água fornecem condições favoráveis
para a agricultura, particularmente para o cultivo de frutas cítricas. As montanhas e
colinaS da Galiléia e da Cisjordânia separam a planície costeira do vale ,ao leste. A
Galiléia é a região mais úmida da Palestina. Recebe, em alguns lugares, mais de mil
milímetros de precipitação por ano e possui fontes e riachos.42 Essa região concentrou è

no passado a população rural da Palestina. "


A porção norte da Cis.jordânia (referida como Samaria peloS israelenses) é
menos dotada de recursos hídricos do que a Galiléia, mas ainda assim sustenta várias
aldeias árabes. A porção sul (chamada de Judéia pelos israelenses) é a mais seca das
regiões das colinas; ela é rochosa e desértica, com uma população bem menor. Ao leste
dessas colinas, está o vale do Rio Jordão (daí a Cisjordânia ser conhecida também como
Margem Ocidental (AClçliüà a/garbin'a). Ele inclui terras áridas e oásis luxuriantes,
assim como três lagos - o antigo Lago Hula, um extenso pântano drenado pelos

" As fronteiras do Oriento Médio foram impostas sobretudo durante a Primeira Guerra e entre 1920 e
1922. como resultado das negociações entre a Inglaterra, a França e as Comissões de Mandatos
Permanentes da Liga das Nações.
"" KHURY, H. Jug'rã/í.y.yat Fi/as;tin (Geografia da Palestina). Haifa: Annà$ir, 1923.

. 67
l
j'
t'"'Ã

3.9 Representações do exílio

O exílio é definido, no seu sentido mais estreito, como uma migração forçada de
um individuo de seu lar. Em Roma, o exílio era uma categoria legal que acarretava a
perda da cidadania. O exílio voluntário ou o suicídio era algumas vezes a alternativa
para a pena de morte. Na filosofia, essa associação fez com que o exílio fosse visto
como equivalente à morte.16' Num estudo sobre a literatura romana do exílio, Jo-

Marie Claassen apresenta uma definição do exílio dentro de um referenciql geopolítico:

O exílio é uma condição em que o protagonista não está mais vivendo ou não
pode mais viver na terra em que nasceu. O exílio pode ser tanto voluntário,
uma jornada deliberadamente decidida para um pais estrangeiro, ou
involuntário, meramente o resultado das circunstâncias, tais como uma oferta
de emprego expatriado, com pouco sofrimento para o protagonista. Ele pode,
contudo, ser forçado.'67

O exílio também pode ser definido em termos mais gerais. Exílio, migração,
alienação e estranhamento estão intimamente relacionados. Michael Seidel define um
exilado como "alguém que habita um lugar e lembra ou projeta a realidade de um
outro", tendo, dessa forma, a habilidade de evocar duas realidades simultaneamente.168

Salman Rushdie concorda que o exílio acarreta o desejo de reivindicar ou de lembrar o


que foi perdido, mas acrescenta que o resultado é sempre uma ficção:

Pode ser que os escritores na minha posição, exilados, emigrantes ou


expatriados, sejam assaltados por algum sentimento de perda, algum desejo de S
reclamar, de olhar para trás, mesmo com o risco de ser transformado em
estátuas de sal. Mas se nós olhamos para trás, devemos também fazer isso com
o conhecimento - guê dá vazão a profundas incertezas - de que nossa
alienação física da India significa quase inevitavelmente que não seremos
capazes de reclamar precisamente a coisa que foi perdida; que criaremos, em
resumo, ficções, não cidades ou aldeias reais, mas sim invisíveis, pátrias
': imaginárias, Índias da mente.""

I;

l L
l

g '

i ", ""' CLAASEN, J. M. Displaced persons.' The literature ofExi/e.]n'om Cicero to Boethius. Londres: js.n.].
;' , 1999, p. 20.
i Ibid., p. 9.
y "'L. 16& . , , .
" á',. -
ii SEIDEL, M. Exile and lhe Narrative lmagmation. New Haven & Londres: Vale University Press,
'ç 1986, p. 54.
"' íj.' "" RUSHDIE, S. lmaginapy homelands. Londres: Grania Books, 1992, p.lO.
.Ç,
' "%
':,1}'

,t 105

j
E

A literatura do exílio assume formas diferentes. Pode ser a literatura escrita pelos
migrantes, como diários, relatos autobiográficos e cartas, e pode ser também a literatura
sobre a migração, histórias e mitos que descrevem migrantes, refugiados e estrangeiros
ou tratados sobre o exílio como um conceito filosófico. Jo-Marie Claassen hesita em
chamar a literatura de exílio de um gênero à parte, embora afirme que há fomas que são
l mais comuns a esse gênero, como a "conversa com um amigo ausente", 170 Para ela,
t
! A literatura de exílio não está confinada a um único modo (prosa ou poesia) ou
i a uma única maneira de apresentação (narrativa dramática, descritiva ou
i!
l autobiográfica). Seu estudo abrange a maneira de apresentação, o objeto da
apresentação e o público ou leitor como receptor.]71
ll
l
U
l A escrita do exílio pode ser uma estratégia de reclamar o que está perdido, seja a
geografia ou a identidade. Edward Said vê uma relação íntima entre o exílio e a criação:

Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda


>

desorientadora, criando um novo mundo para governar. Não surpreende que


tantos exilados sejam romancistas, jogadores de xadrez, ativistas políticos e
intelectuais. Essas ocupações exigem um investimento mínimo ern objetos e
dão um grande valor à mobilidade e à pericia. O novo mundo do exilado é
logicamente artificial e a sua irrealidade se parece com a ficção. George
Lukács, na Teoria do Romance/'2, sustentou de modo convincente que o
romance, forma literária criada a partir da irrealidade da ambição e da fantasia,
é a forma da "ausência de uma pátria transcendental".'73

A distância estabelecida pelo exílio é vista por alguns autores como um pré-
requisito para a criação artística: "Apenas o indivíduo exilado pode manter uma
distância suficiente da sociedade para ser realmente criativo". 174

De acordo com Simon Gikandi, a distância também toma possível expor os


paradigmas ou "textos" coloniais, pois permite que o migrante assuma o espaço
simbólico, se não o físico:

a estratégia do deslocamento surge da necessidade de desconstruir o texto


colonial e simultaneamente desenvolver um discurso como uma forma de
critica cultural que permitirá ao escritor negar a relação colonial maniqueísta e
o espaço social compartimentado.|75

"' CLAASEN, J. M. Op. cit, p. 12


' . "' lbid., p. 14.
' ' . "' Ver LUKÁCS, G. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34. 2000.
' ' " "' SAID, E. Reflexões sobre o exílio, pp. 54-55.
,' "' DIETZ F. :'Home is a placê where you havê never been: The exile motif in the Hainish noveis of
!1 Ursula K. LeGuin" em WHITLARK, J. & AYCOCK, W. M. (ed.) The Literature ofEmigration and Exile
': t!"' . (Studies in Comparative literature, 23). Lubbock: Texas Tech Uníversity Press, 1992, p. 107.
)f'),,',' "' GIKANDI, S. Writing in Limbo: Modernism and Caribbean Literaiure. Londres: Ithaca, 1992, p. 42.

J ', 106
g.
,.

q'
{·:·
! '
Uma definição de exílio na poesia deve \evar em conta a subjetividade. Deve
abranger as separações geográficas, políticas. emocionais e metafóricas. Deve incluir o
refugiado politico do século XX, o neoplatônico medieval que busca um caminho de
^
i'.
C
volta ao lar espiritual da alma e também o "andarilho do deserto", banido de sua tribo. O
exílio é o lugar ou o estado da ausência voluntária ou forçada do lar ou do pais. Cada
ausência é também uma presença em algum outro lugar, condição ou emoção. O lar não
é necessariamente apenas um espaço geográfico, é o espaço da identificação emocional.
No conceito de exílio, residem as conseqüências emocionais e íisicas da ausência e da

! presença num ambiente estrangeiro. ,


,
Mesmo as tentativas mais elaboradas de transformar o exílio em arte escondem
l uma realidade de trauma e tragédia a afetar a vidas das pessoas reais. Said emitiu um
alerta contra o ato de tomar o exílio "literário", que, segundo ele, pode diminuir a
realidade histórica do exílio:

Na melhor das hipóteses, a literatura sobre o exílio objetiva uma angústia e


uma condição que a maioria das pessoas raramente experimenta em primeira
mão; mas pensar que o exílio é benéfico para essa literatura é banalizar suas
mutilações, as perdas que inflige aos que as sofrem, a mudez com que
responde a qualquer tentativa de compreendê-lo como "bom para nós". Não é
verdade que as visões do exílio na literatura e na religião obscurecem o que é
r
realmente horrível? Que o exílio é irremediavelmente secular e
insuportavelmente histórico, que é produzido por seres humanos para outros
seres humanos e que, tal como a morte, mas sem sua última misericórdia,
arrancou milhões de pessoas do sustento da tradição, da família e da
geografia?"6

..
.: Leon e Rebeca Grinberg fazem uso do rito de passagem (de acordo com a
t
'-

definição de Eliadel77) ao tratar dos efeitos psicológicos da migração. Eles afirmam que
!.1 i a migração ou a necessidade de ir além das fronteiras está profúndainente assentada
, )j dentro do homem e que muitos mitos (como aqueles sobre o Éden, a Babilônia e o de
J:i:; " '
Edipo) tratam do conflito entre a busca do conhecimento e a oposição a ele.
' 'r
'.
C: r
P

- A migração é uma experiência potencialmente traumática, caracterizada por


,! i' uma série de eventos parcialmente traumáticos, e que, ao mesmo tempo,
representa uma situação de crise. A crise pode acarretar a decisão de emigrar
'"d Ç' . ou, inversamente, pode refletir o impacto da migração.'78
t' .

:"[ , l" SAID, E. Reflexões sobre o exílio, p. 47.


,'.: : "' Ver ELLADE, M. The sacred & the profane: The Nature of Religion. The signYícance of re/igious
á'
'S, ,' mvth, symbolism, and ritual within life and culture. San Diego: Harcourt Brace & Co., 1987.
í;' , 179 GRINBERG, L. & GRINBERG,' R. Psychoanalvtic perspectives on migration and exile. 'New Haven:
í: Yale University Press, 1989, p. 15.
j'? 't
Ç'

t 107
'r"
i
.
-
r ;
a

Ei L O exílio forçado é particularmente traumático porque a partida é involuntária e


h

o retomo geralmente é impossível. A migração é uma crise, "um período de transição


S

G
representando a oportunidade para o crescimento, assim como o perigo do aumento

l
da vulnerabilidade às doenças mentais".179 A migração provoca um estado de
b

desorganização e exige uma reorganização do eu que nem sempre acontece: "A


migração é uma mudança, sem dúvida, mas é uma mudança de tal magnitude que
ameaça a identidade de um individuo e também a coloca em risco". 180

No período inicial, o exilado vivencia um sentimento de amargura. O migrante


se vê como um herÓi ou um renegado. O presente é negado. O exilado fica preso entre
uma vida transformada em mito no passado, o pais ideal, e o futuro com o desejo

Ê'à ilusório de voltar para casa. A morte no pais estrangeiro se transforma numa morte
dupla porque tomá o retomo impossível.

Apesar do choque inicial, os palestinos logo passaram a tirar, na medida do


possível, força do exílio. De acordo com Jabra,

r
Com o tempo, o sentimento de pertencimento ao solo palestino mais se
Pt
E ·
exacerbou do que diminuiu no exílio. Os israelenses fizeram um sinistro
l'
L.r ·' d:
cálculo visando o fato de que os refugiados, na maior parte analfabetos ou
" ·:
semi-analfabetos na época, não teriam outra preocupação senão a
j,: , sobrevivência a qualquer preço. E eis que, de repente, os intelectuais palestinos
estavam em toda parte, escritores, professores, oradores, agitando,
E.
r,

:1· '
influenciando a sociedade árabe inteira de modo inesperado. Superaram o
PP
sentimento de perda, transformaram o exílio em força, criaram por
Pez, conseqüência a mística de ser palestino. E era preciso estar cego para não
t:'
? perceber que tudo isso, devia, cedo ou tarde, acabar numa ação violenta.
j}l'í ' , Mesmo no exílio, os Palestinos tomaram-se lideres; e todas as vezes que se
tentou enterrá-los, a determinação deles parecia adquirir ainda mais potência.
h'
I; Lembro-me ter evocado em meados dos anos 50 a síndrome de Fausto para os

PalestinOs. Havia escrito um poema intitulado: SolilÓquio de um Fausto


moderno; o Palestino era ai pensador, colecionador de livros e de idéias,
i::i'
iniciador de experiências e reflexões, passando agora contrato com
Mefistófeles em troca da ação. Ia pelas cidades do mundo "como a noite, como
a tempestade", possuía Helena e divertia-se com Margaret, sempre móvel,
levado por "uma sede divina, um apetite gigante", para finalmente reclamar o
ii
apocalipse, se jogar num ato cataclísmico. O mundo se acabaria "em gemidos"
j;:';,!: S |{ . mas o exílio não podt :"ia terminar em "fjracasso".181

"n J;"' " "

L ' ,

;,' 'm'.',
h

;.j,;' :'. '

j"j\i l
"' Ibid., p. 14.
y"j!)j,,' "° lbid., p. 26.
"' JABRA. I. J. Qantara, número 23. Paris: IMA, primavera de 1997, p. 42.

108
'i
4
De fato, um dos marcadores decisivos da identidade palestina contemporânea é o
exílio. Pesquisas de autores como John Connell, Paul White, e Russell King]s'2 ilustram

até que ponto a experiência da migração, da passagem de um aqui para um alhures ao


mesmo tempo geográfico e político, alimentou uma literatura original em meios
variados. Essa literatura abre perspectivas novas sobre o exílio, a perda de referências
culturais e históricas, a saudade, o desejo incômodo de voltar, o sentido da família e a
descoberta de si. Ao romperem com a tendência habitual de associar literatura e
geografia por análises centradas apenas sobre o lugar, esses estudos examinam também
a experiência e os efeitos do movimento, reunindo um con.junto de reflexões sobre o
gênero, os encontros e os conflitos interculturais e as transformações identitárias

l :! associadas ao fenômeno da migração.


4

Após as análises de Said sobre o orientalismo, numerosos geógrafos

L'
i
interrogaram-se sobre a representação e as práticas que contribuem para a formação e a
,.

difusão de geografias imaginativas do mundo]&3. Ainda que essas geografias

imaginativas participem das relações múltiplas entre geografia e império, que vão além
das questões relevantes da literatura, esta última pode ser considerada como um dos
l vetores de difusão. Assim, a literatura de ficção, como a literatura de viagem, terá
l

passado pelo crivo de uma leitura desconstrucionista a fim de mostrar as relações de


[
poder desiguais que tendem a produzir imagens deformadas e caricaturais do mundo e
Í'
das culturas não ocidentais.
)

3.9.1 Refugiados

A violência em tomo da criação de Israel em 1948 deslocou um grande


segmento da população palestina. Muitos foram para a área conhecida como a Margem
4

Ocidental do Rio Jordão (ou Cisjordânia), a parte da Palestina do Mandato britânico que
i:

permaneceu sob controle árabe até 1967. Outros cruzaram para a Margem Oriental,
i:

parte da Transjordânia. Em 1950, a Cisjordânia foi oficialmente unida à Trans.jordânia


l '
r.
) para formar, o Reino Hachemita da Jordânia. Muitos residentes árabes do norte da

. ,

"' Ver KJNG, R. et al. Writing Acros,s Wor/ds.' Literature and Migration. Londres: Routledge, 1994.
:Z
.":
'

"' Ver GREGORY. D. Geographical lmaginations. Nova lorque e Londres: Basil Blackwell, 1994;
L ' . : ,·

N.
DRJVER, F. "lmaginative geographies" em CLOKE, P. J., CRANG, P. & GOODWIN, M. (dir.)
; " '
lntroducing Human Geographies. Londres: Amolei. 1999, pp. 209-216.
,?:'""' ':± ;

;K,i .ii!

;bj" ',
109
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l Palestina se refugiaram no Líbano]84 e na Síria enquanto outros ao sul se concentraram


na área de Gaza, que ficou sob o controle egípcio.
l A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina

) (UNRWA) e vários governos árabes estabeleceram campos de refugiados nas Margens

j Ocidental e Oriental do Jordão, na Faixa de Gaza, no Líbano e na Síria, geralmente em


! terras desérticas ou nos subúrbios das cidades.

i Conforme seu status temporário de deslocados se tomava um exílio definitivo,

muitos palestinos passaram a procurar trabalho nos Estados árabes que faziam fronteira
l com o Golfo, onde a próspera indústria do petróleo fornecia empregos em abundância e

! bons salários. Aqueles que podiam buscavam treinamento universitário e oportunidades

; de negócios na Europa e nas Américas. Mas, qualquer que fosse a resposta individual,
l os laços familiares e coletivos encontravam-se em tensão. Esses eram os cenários

"objetivos" do exílio. Eles incluíam os ambientes áridos e rochosos das Margens


í
Ocidental e Oriental, os campos de refugiados, as populosas capitais árabes, as cidades

impessoais do deserto do Golfo e outras distantes cidades estrangeiras. Como se vê, .em

geral, os cenários físicos nos quais os palestinos obrigados a abandonar a terra natal se

encontraram contrastam claramente com a terra deixada para trás. Esses novos cenários

também formam as paisagens literárias do exílio, que assumiram significados

simbólicos desde 1948.


A reação literária imediata à ocupação da Palestina foi invocar imagens
'. ?

. , .. . nostálgicas da terra perdida, que, como já observamos, eram imagens que os ajudaram a
"" manter um vínculo com o lar sob circunstâncias árduas185. Conforme a literatura
' l í

'.
.1'7
palestina amadurecia, porém, ela começava a explorar o ambiente e o significado do

: '."
.'k' ' 184 Beirute, um centro próspero de comércio internacional nas décadas de cinqiienta e sessenta, tomou-se
um imã para refugiados. Aqueles que tinham uma formação especial podiam ganhar a vida
' razoavelmente, mas a vida urbana era difícil para a grande maioria que vinha das classes niais pobres e
dos meios rurais.
;" : 185 A herança ideológica estabelecida girava em tomo da idéia da "redenção por meio do retomo" como a
""' l
base de todas as estratégias politicas palestinas. Sua visão era ampliada por uma reconstituição de um
i:-. i passado palestino idealizado, que a nação palestina desmembrada buscava recapturar. Seu veículo foi a
-'. i combinação entre a mobilização de massa, a luta e o vinculo das comunidades exiladas através da
.S " liderança da OLP. As bases sociais dessas políticas foram essencialmente o campo de refugiados nos P

,.,: ' ; paises arabes proximos e as classes mercantis e profisslonals nos paises do Golfo. Como conúaste, a L

mudança, ria década de oitenta, para uma estratégia territorial foi um movimento na direção de ;

':';'ú fundamentar a política palestina nas comunidades relativamente estáveis da Cisjordânia e de Gaza. Ainda j

'i"' 'l, que contivessem um grande componente de refugiados, essas comunidades eram. em grande medida, as P

I
jt""j"'; protetoras históricas do campesinato das terras palestinas. Elas exibiam um alto grau de consciência i
t
"ü;'i.:' .Í" nacionalista e, a partir da década de 1970, começaram a articular suas aspirações políticas de maneira i

i):i,?|"\:.,'f ' crescente dentro dos limites da OLP. Mas, diferentemente da "força externa" do exílio, sua liderança
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permaneceu nas mãos das elites regionais locais, cujo poder, riqueza e prestigio derivavam de uma rede
extensa de parentesco e identidades enraizadas em Nablus. Hebron, Jerusalém e Belém.
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¶ 4. —. .J- . - '
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exílio. Ao fazer isso. ela definiu a antítese da Palestina, tal como é representada por
algurba, um termo árabe por vezes relacionado ao exilio|86 · ·f-
. mas que signmca
especificamente a experiência de ser um estranho longe do próprio lar familiar e traduz
essa idéia de estranhamento e alienação.

3.9.2 Paisagens simbólicas

Os ambientes do exílio adquiriram uma foma e um conteúdo simbólicos na


poesia e na prosa. Três paisagens simbólicas do exílio aparecem constantemente na
G

literatura palestina: o deserto, a cidade e o campo de refugiados. Ao mesmo tempo em r

que elas se baseiam em locais e situações reais, encamam, de forma simbólica, a


.

experiência subjaiva do exílio ainda mais do a realidade física. A representação literária


dessas paisagens ressalta a "exterioridade" da gurba e a distingue claramente da
i
f
"interioridade" do lar.

3.9.2.1 O deserto 'i

Para o crítico literário 'Abd-Assamd Zayd, no deserto "não há diferença entre a i

história e o mito ou entre a verdade e a imaginação",187 Com sua qualidade vasta e

atemporal, o deserto é um poderoso símbolo do exílio. Normalmente, os poetas


!
palestinos o empregam num sentido geral, ou seja, eles se referem ao deserto como um
ambiente generalizado ao invés de um lugar particular. Uma canção lamenta: "Eu sou i

E '
um andarilho sem amigos nos desertos l Atrás dos arames da injustiça está a minha
í
casa"l88 " 4

.
O deserto era um motivo dominante na poesia pré-islâmica da Arábia e seu uso
na literatura palestina é, sem dúvida, influenciado por essas imagens mais antigas. Para
o palestino, no entanto, o deserto do exílio não é de foma alguma romântico. É um

vazio, um não-lugar no qual o exilado existe, mas não se sente presente. Os


pensamentos do exilado giram em tomo da terra e da vida deixadas para trás. Jabra
Ibrahim Jabra expressa esse vazio e essa saudade no poema "Nos Desertos do Exílio":

"' Um estudo detalhado sobre os vários temos do mesmo campo semântico será feito mais adiante.
"' ZAYD, A. Op. cU.. p. 133.
"' TIBAWI, A. Op. Cl"1 , p. 521.

" l 11

Primavera após primavera
Nos desertos do exílio
O que estamos fazendo com nosso amor
Quando nossos olhos estão cheios de geada e morte?j89

Em vez de responder à questão voltando-se para sua condição atual, Jabra se


lança numa reminiscência nostálgica de flores, oliveiras, campos e plantações. Ele
implora à terra que

Lembre-se de nÓs vagando


Entre os espinhos do deserto
Vagando pelas montanhas rochosas.'®

O poeta lamenta a devastação provocada pelos invasores na terra plena de flores


e a condenação à aridez do deserto:
í
Esmagaram as flores nas colinas a nossa volta,
Destruíram as casas acima de nossas cabeças,
Espalharam nossos restos rasgados,
E então desdobraram o deserto diante de nós,
Com vales torcendo-se de fome
E sombras azuis quebradas em espinhos vermelhos
Dobrados sobre cadáveres deixados como presas para falcões e corvos,191

Ao final, o poeta exalta novamente a terra natal e a compara tristemente aos


desertos do exílio:

Nossa terra é uma esmeralda,


Mas, nos desertos do exílio,
Primavera após primavera,
Apenas a areia assobia na sua face
O que, então, estamos fazendo com nosso amor
Quando nossos olhos e nossa boca estão cheios de geada e morte?l92

Jabra usa três palavras diferentes nesse poema para invocar o deserto. Bawãdin,
no titulo do poema, refere-se aos desertos. As duas outras palavras, contudo, significam
mais do que o ambiente meramente físico. Qqfr significa a devastação do deserto e as
terras arrasadas ou sem vida. Falát pode significar o deserto sem água,, mas também se
l
E

refere ao espaço aberto, selvagem, em geral. Dessa forma, o verso "E então

"' JABRA, I. J. A/majmü 'ãt aSSi 'riyya (Antologia poética), p. 4 l.


"° lbid. ibidem.
"' lbid., p. 42.
"' Ibid., p. 43.

112
T

l
desdobraram o deserto diante de nós" também expressa. em árabe, o senrido de se
desdobrar um espaço aberto, selvagem, sem fim.
Ainda que essas imagens do deserto derivem em parte das terras áridas nas quais
muitos exilados palestinos se encontravam, elas representam não apenas um deserto real

mas também um simbolo de insegurança, vazio e morte. Jabra reserva cores e detalhes
para sua descrição da Palestina. Lá existe vida; no desmo não existe nada além de areia
e morte. A paisagem do lar tem uma abundância de imagens de fertilidade e
prosperidade, imagens que definem a Palestina como um objeto, de desejo. Jabra
contrasta isso com a paisagem do exílio, um espaço fora do tempo e do espaço, sem
memória nem esperança.
Outros poetas usam a imagem do deserto de foma semelhante para expressar o
vazio da vida após a perda da Palestina. No poema, " 'Ilá alwajh a//açji ç/â' .líttíh" (À

face perdida na terra abandonada'"), de Fadwa Tuqan, o deserto (aSSallrá ') representa a

aridez de suas emoções. Nessa terra desértica, ela não é mais capaz de crescer e
florescer como uma pessoa amorosa:

Não preencha este cartão


Nem fragrância de lembrança nem buquê de desejo
Entre meu coração e as lwíúrias do amor reside um deserto
Os raios do calor se contorcem
Víboras ao redor de mim
Sufocam a flor e cospem veneno e fOgO.194

Para esses poetas, o deserto simboliza a alienação e o desespero. O deserto é


i
uma realidade física para muitos refugiados da Palestina, e a experiência que os
europeut: e os americanos têm dele difere substancialmente daquela dos cjue ali vivem,
trabalham ou viajam. Para o beduíno, o deserto é o lar; para o funcionário de uma
indústria petroleira, seus recursos prometem altos salários; para o turista, é um
playground exótico de aventura e romance. Mas, para muitos palestinos, ele é uma
estação estranha e hostil numa vida que não apresenta nenhuma promessa de um destino
final e seguro. Muitos escritores falam das agruras do exílio no deserto com suas
características particulares de areia, poeira, seca, falta de gombra e extremos de calor

"' Tíh também significa arrogância, orgulho.


"" TUQAN, F Op. cit., p. 410.

113
':""' ,EJ

' l l
G
: j? escaldante e frio congelante.195 Foi assim que o deserto se tomou, na literatura palestina,
i
uma paisagem simbólica que representa a hostilidade e a ausência de lugar no exílio.

!
'r! 3.9.2.2 A cidade
T
íI

ll

Muitos intelectuais palestinos fixaram residência em outras cidades árabes


depois de 1948, especialmente em Beirute, Amã, Damasco e no Cairo, e em várias
capitais européias e americanas. Os refúgiados mais jovens, de maneira semelhante,
descobriram que uma alternativa para a vida no campo era a vida na cidade. Assim, a .

cidade é um cenário e um símbolo freqüente da ausência de lar dos palestinos na


,

A
produção tanto dos escritores mais velhos como dos mais jovens.
G

Quando O; poetas escrevem sobre a Palestina, geralmente nomeiam cidades e


l aldeias. A cidade do exílio, contudo, muitas vezes permanece anônima, uma técnica que
. enfatiza o sentido de separação e ausência de lugar. O cenário de "Raqam 24" (Número
24), de Tawfiq Sayighl96, é uma cidade tipicamente sem nome:

I'
: ' Meus pés estão dilacerados
O deslocamento me exauriu
Nos bancos da praça
A
l. ',
Outras costelas que não as minhas
Policiais me olham de lado
l: E eu me arrasto de lá para cá
Destituído de tudo a não ser
1µ t Lembranças de um lar
l'i . '
i Que duram o dia todo
t', )
Que eram meu ontem
Apenas ontem
l

í,! E sonhos
À noite
l" '
M',; , De viver nele de novol97

·1":'j' ) Sayigh fàz,uma crítica mordaz à sujeira e à desordem da cidade, que se recusa a
q

provê-lo de conforto ou significado:


1,(':',"/" 'ij
,,, ':;, ,, !

Estendam-se, ruas
',Ê::' ,
A retorcer-se, escurecer
Lancem seus odores, seus sussurros
Escondam fantasmas nas esq'uinas
·"'N:j' '·

' '|"|i:|,"
"' Mais adiante, analisar-se-á a representação do deserto na obra de Kanafani.
i! "f!, ', '" Sayigh (1923-1971) é conhecido por SUfiS traduções de T.S. Eliot.
:'
"' SAYIGH, T. 30 S'i'ran (30 poemas), js.l.:s.n], 1954, p. 28.

114
l t;

'l I
J
Sob a meia-luz das luminárias
Afaguem as velhas
Que tarelam na alegria e na tristeza
E lavam as sarjetas
Que enchem seus bueiros
Eu não venho aqui à noite
Por diversão, para apreciar a vista
Levar cão para passear
Ter pensamento agradável
Sua lama respinga em meu sapato e na roupa
Bate em meu coração, na cabeça,
Meu purgatório que não purifica
Minha deriva na escuridão
O cômputo do penitente
De suas contas sem salvação
Eu ando, incansável, por suas ruas
Até que, já dito o suficiente,
Acrescento outras preces
Para encerrar outra noite de expiaçào.|9k

O fato de que a vida na cidade continua normalmente para os outros moradores


aliena ainda mais o palestino no exílio. Em seu poema "Diário do Ano da Epidemia",

Jabra Ibrahim Jabra expressa a raiva de um estranho a quem se nega um lugar:

Na calçada há pessoas descalças e riso


O gamão no café é vício
Se meu bolso vazio grita por Deus.
Na multidão dos que gritam
Na morte que busca a morte da vida
Não há mais beleza, nem lábio vermelho, nem olhos grandes
Deixe a voz do muezim se erguer das minas
Deixe o alaúde derramar uma melodia morta
Para uma cidade cujos muros e pedras gotejam de ódio
j
Mas eu sonhava com ruas verdes
Crianças a correr
E faces como sóis sorridentes
Como o rosto de amantes úmidos de chuva
Aqui estou eu, não chorei exceto pela beleza
Choro agora pelas estradas perdidas
Sem nenhuma criança a correr
Os olhos são escuros e as mãos
Lasca cega de pedra
Mas na calçada há pessoas descalças e riso
Se meu bolso vazio grita por Deus,"'
t

l
! "' Ibid., pp. 28-29.
d.') "' JABRA, I. j. A/majmü 'aí aSSi 'riy.va (Antologia pOética), p. 32.

': !: '
i' 'J? 115
-
- i:,y '
\7,

j

O poeta Rachid Husayn, que passou vários anos em prisões israelenses antes de
deixar o pais, logo após a guerra de 19672(x). criticou a luxúria e a corrupção da cidade
do exílio. Seu poema "À Zero Hora" retrata seu desespero:

Meu deus, rico e bonito, viajou a bordo dos aviões mais modernos
Manteve meus melhores amigos enfurnados em bancos
C
H
E todas as mulheres belas
Genebra se tomou sua amante
Seu peito adomado com flores de conferência
b

Minha história é uma menina nascida entre Jaffa, Haifa e meu amor.
Mas nada nela mudou
Eu matei o campo de refugiados um milhão de vezes
Mas nada nele mudou
Eu morei em hotéis escrevendo versos
Mas nada mudou
Eu vi as capitais de cinqüenta terras diferentes
Mas nada em mim mudou.
Eu tracei os contornos da minha pátria sobre meu coração
Transformei-me em Atlas para os seus contornos
E ela se tomou o leite dos meus versos
'Mas nada mudou,201

A cidade do exílio é bastante semelhante ao deserto em sua ausência de lugar


%
P'
(placelessness). A superficialidade que os escritores palestinos encontram nela se
jíj

assemelha à esterilidade do deserto. O caráter estranho da cidade se toma mais


,
contundente pelos sinais constantes que outros sentem em casa. A paisagem da cidade
. ,,.
È:
'F
estrangeira é um lugar pelo qual o palestino não tem nenhuma responsabilidade e
nenhum compromisso. É significativo que. como em sua descrição do deserto, os

escritores palestinos raramente descrevam a cidade do exílio em detalhes. Ela carece de


qualquer particularidade que lhe empreste significados e valores positivos. Como o
deserto, a cidade do exílio representa a antítese de um lugar familiar. Sua falta de
definição e substância serve para direcionar a atenção para o lar que um dia
providenciou a identidade e o valor para o escritor exilado. Como urna paisagem
simbólica de deslocamento, ela toma o foco sobre a Palestina ainda mais acentuado.

3.9.2.3 O campo de refugiados

O campo de refugiados possui todos os elementos de uma paisagem simbólica


apesar da situação precária: tendas fúradas, barracos mal-acabados, saneamento

2% Husayn viveu em Nova Iorque. onde mcm"eu. sozinho, num incêndio em seu apartamento.
"" ELMESSIRL A. M. Op. cit., p. 109

116
deficiente, chuva, lama e a espera infinita pelo fim do pesadelo. Muitas vezes, o campo
é um poderoso simbolo de resistência e perseverança. O poema "Havma raqam 50"
(Tenda n° 50), de Rachid Husayn, descreve as condições difíceis da vida no campo de
refugiados e conclui em tom de desafio:

A tenda n° 50. à esquerda, é meu novo mundo


Dividido entre o hoje e as memórias
Memórias verdejantes como os olhos da primavera
Ou de mulher a chorar
Memórias da cor do leite e do amor!
Duas ponas em minha tenda: duas portas, duas feridas
De uma. vêm outras tendas, como nuvens sem chorar
Da outra - e o buraco no teto — os céus
Revelam estrelas
Quais refugiados, dispersas
Como eles, desnudas
Também ali se arrasta a lua
Abatida, exausta, como a agência da ONU
Amarelada qual a agência
Em carregamento de queijo para os exilados
A tenda n° 50, à esquerda: eis o meu presente
Mas não cabe aí Muro
"Esqueça!", eles dizem, mas como eu posso?
Ensine a noite a deixar de trazer
Sonhos que sonham com minha aldeia
Ensine o vento a deixar de soprar
O aroma de damasco dos meus campos!
E ensine o céu, outrossim, a deixar de chover
Aí, só ai, esquecerei o meu país,202

Nesse poema, o campo de refugiados é uma paisagem de desespero e, como o


deserto e a cidade, serve como um contraponto às lembranças que os refugiados têm de i
r

casa. Seu final desafiador, contudo, indica que ele também pode ser uma paisagem de
expectativa e esperança - ao contrário do deserto e da cidade. Fawaz Turki, um escritor
que cresceu num campo de refugiados de Beirute, reflete sobre a dupla personalidade do
campo de refugiados em suas memórias:

O homem se adapta, sim. Logo nos primeiros meses, nós nos adaptamos a
viver num campo de refugiados. Na adaptação, nós nos diminuímos como
homens, como mulheres. como crianças, como seres humanos. Às vezes, nós
sonhamos. Sonhos reduzidos. ambições distorcidas.'("

'°' Ibiaí., p. l! l.
2°' FAWAZ, T. The Disinherited Journal qf a Palestinian Exile. Nova lorque: Monthíy Review Press,
1972,p. 45.

117
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l

Trata-se de um campo de refugiados onde predominam a humilhação, a


desesperança e o desejo de mudança. Turki recorda o que diziam os velhos quando
contavam histórias e evoca um poeta idoso que recitava seus versos à noite:

NÓs sabíamos que estávamos numa aldeia transplantada que um dia esteve na
estrada para Jaffa, que um dia esteve ao norte de Haifa, que um dia esteve
próxima de Lydda.
Se tínhamos adquirido "esse ódio e essa amargura" pelos quais éramos
famosos (como queria o mundo ocidental), nós também dançávamos dabke e
tocávamos alaúde. e as mulheres trabalhavam no bordado. E aquelas pessoas
de fora do campo (sem mencionar os "turistas" ocidentais, com sua simpatia
abençoada, suas câmeras, seus diplomas de sociologia e seus mapas,
metodologias e estatísticas), a olhar nossas roupas esfarrapadas penduradas
como bandeiras da derrota (...) não sabem o que nós tínhamos. Um sentimento
dentro de nós. A crescer. Uma esperança. O sentimento triste de ver uma
estrela, sozinha, no crepúsculo. A esperança por um intervalo entre o embate
dos sons.204

Apesar de suas condições insalubres e de seu caráter supostamente transitório, o


campo de refugiados se tomou um símbolo da luta pelos direitos palestinos. Darwich
relata a história de um soldado israelense que adentra um campo de refugiados depois
4

h :
K da guerra de 1967:
j;. "

Ele me disse que, quando entrou num campo de refugiados, descobriu que seus
moradores estavam vivendo exatamente como haviam vivido em sua antiga
l aldeia. Estavam distribuídos como sempre estiveram. A mesma aldeia e as
F

'í" '
mesmas ruas. O soldado ficara irritado.
';,1j. · ,
"Por quê?"', perguntei-lhe.
"Eu não conseguia entender. Dezenove anos se passaram e eles ainda diziam:
'
i.
r'
'NÓs somos de Bi'r Assab'p"os
1j;.' ·
dc , .
F".' ,
i
Recriar certos aspectos do lar imbui o campo de refugiados de fomas e
È!" significados que, de outro modo, estariam ausentes no exílio. Os líderes palestinos, ao
j;.:
):'",'
manter e expandir escolas, hospitais, negócios e serviços sociais, de foma semelhante,
aumentam o sentido de responsabilidade e compromisso em relação ao campo de
refugiados206. Isso não diminui a esperança de retomar à terra de origem. Muitos
!.';'[,,\

Ç; ' , '
f.",." l i
L 'h
" ' .' 'i

. f' '
"" lbid., pp. 45-46.
'°' DARWICH, M. Yawmijyãt a/jµzn al'ãdiy (Crônicas da tristeza ordinária), p. 48.
' I'. '" O papel desempenhado pelos campos de refugiados ficou evidente durante a primeira Intifada. Em 8
" · q
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de dezembro de 1987, um caminhão dirigido por um israelense matou quatro palestinos, entre os quais
havia habitantes do campo de refugiados de Jabaiiyya, na Faixa de Gaza. Houve confrontos com o
, k l À
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:íj: q.

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Íl"'"j" ;i l
Ç. , Exército israelense, em Jabaliyy% que rapidamente se espalharam pelos outros campos de refugiados de
Gaza e da Cisjordânia, o que marcou o inicio desse levante. Os moradores dos campos de refugiados se
)íi:i!' :
TA ·' mostraram mais bem organizados para lidar com os toques de recolher, os bloqueios e outras ações
g.'". ',
,1 l.
israelenses do que seus colegas nas cidades e nas aldeias onde o levante levou algumas semanas para
i
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118 ,
.

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t
refúgiados guardam a chave da casa onde moravam antes da expulsão (a chave original
aparece em diversos contQs como símbolo de apego ao lar original e de confiança no

füturo).

3.10 Exílio e produção literária no Brasil

No século 19, a partir dos anos sessenta, milhares de sírios, libaneses e


palestinos do Império Otomano começaram a imigrar para o continente americano,
principalmente para o Brasil, a Argentina, o Chile, a Colômbia e os Esta,dos: Unidos.
As causas da migração variam de acordo com a época. Entre 1860 e a Primeira
Guerra Mundial, conflitos locais, massacres de minorias cristãs da região (em especial,
maronitas, melquitas e ortodoxas) e o crescimento demográfico do Oriente Médio
representam fàtores importantes. Nessa época. a grande maioria dos imigrantes árabes
que chegaram à América era cristã embora houvesse, em menor quantidade,
muçulmanos e judeus.
As dificuldades no transporte marítimo provocadas pela Primeira Guerra e as
promessas de independência no Oriente Médio (que se revelaram falsas mais tarde)
reduziram temporariamente as correntes migratórias. De 1918 a 1945, o desemprego
crescente, a crise nas pequenas indústrias locais e o crescimento demográfico foram
alguns dos motivos que levaram os árabes a emigrar, mas a principal razão foi a
ocupação firancesa e britânica da região. Em seguida, a ocupação crescuzte da Palestina
e os conflitos no Líbano na segunda metade do século XX (especialmente'a guerra civil
de 1975 a 1990) ampliaram a emigração.
b
>

O livro iyâ.vãt ,tã 'ir: jiayãt almu 'alli/'l1ilãl µímãnina 'ámman, jtariq tawil kulluhu
ASwãk (A vida de um revolucionário: a vida do autor durante 80 anos, um longo
caminho repleto de espinhos)207, de Said Chuqayr, relata a trajetória do autor e parte da
história dessa migração palestina20&, incluindo o efeito da criação do Estado de Israel. A

obra ilustra um pouco o mecanismo da cadeia migratória árabe e da inserção social: os


contatos pessoais, a comunicação e a ajuda entre as famílias, os amigos e os
compatriotas das duas sociedades - a da partida e a da acolhida — eram fatores

engrenar. Ver YAHYA, A. "The role of the refugee camps" em NASSAR. J. R. & HEACOCK, R.
Intifada. Nova Iorque: Praeger, 1990, pp. 91- 106.

20' Ver CHUQAIR, S. jyayàt ,/ã 'ir.' kayát almu 'allif ki/ãl tamànina 'ãmman. jtariq jtawíl kul/uhu ASwãk.
São Paulo: [s.n.], 1993.
20' Atualmente, há cerca de 30 mil palestinos e descendentes no Brasil, segundo a própria comunidade.

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