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Paulo S. C. Neves
Universidade Federal de Sergipe, Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais
negros têm menos acesso à educação, à renda e à tratados como iguais. Durante muito tempo essa foi a
moradia do que os “brancos” (INSPIR, 1999), pos- imagem construída e a visão predominante sobre o
suem piores empregos (Lovell, 1994) e são maioria caráter peculiar das relações raciais no Brasil.2 De fato,
entre os desempregados (INSPIR, 1999). As mulhe- depois da abolição da escravidão, em 1888, nunca ti-
res negras têm no emprego doméstico a principal for- vemos um regime tão abertamente violento e
ma de inserção profissional (90% das empregadas segregacionista como o Jim Crow americano3 ou o
domésticas são negras), trabalham mais tempo e re- apartheid da África do Sul. Como argumenta Guima-
cebem menores salários do que as mulheres brancas rães (1999), o modelo de relações raciais no Brasil
(Patai, 1988). Os negros são, ainda, os que possuem pós-abolição, ao contrário, mostrava uma sutil etiqueta
as mais altas taxas de mortalidade infantil e menor de distanciamento social e uma diferenciação aguda
expectativa de vida (Wood & Lovell, 1992); além de no estatuto e nas possibilidades econômicas entre
serem os que menos acesso têm às universidades (Tur- “brancos” e “não-brancos”, convivendo com igual-
ra & Venturi, 1995) e que apresentam mais baixa dade jurídica e indiferenciação formal. Ou seja, des-
mobilidade social (Hasenbalg, 1979, 1985). São dis- de o fim da escravidão as expressões do preconceito
criminados também no acesso à justiça penal (Ador- racial apresentaram-se de maneira sutil ou velada
no, 1996) e no modo como são retratados nos livros (Munanga, 1996), e desde muito cedo o preconceito
didáticos (Silva, 2001). racial brasileiro caracteriza-se pelo “preconceito de
As conseqüências dessas várias formas de dis- ter preconceito” (Fernandes, 1966).
criminação fazem-se sentir também no plano da auto- Assim, malgrado o discurso da democracia ra-
estima da população de origem negra. França e cial estar ainda presente no imaginário nacional, o
Monteiro (2002), estudando a autoclassificação da cor que diversos estudos no campo das ciências huma-
e a identidade étnica em crianças negras de 5 a 10 nas têm demonstrado é que, embora formalmente o
anos de idade em Aracaju, verificaram uma tendên- preconceito racial à brasileira possa revestir-se de
cia à negação da identidade negra e uma fuga para o certa sutileza e certo distanciamento social, ele atua
“branqueamento”. Sansone (2004) obtém dados se- de forma violentamente discriminatória contra os
melhantes com adultos na Bahia, fato que já havia grupos racializados.
sido detectado por Bastide e Fernandes (1959) nos A consciência dessa problemática emergiu com
anos de 1950 em São Paulo. força na sociedade brasileira a partir dos anos de 1970,
As causas desse fenômeno são de ordem históri- quando se constitui um movimento social capaz de di-
ca e sociocultural. A pesada herança escravocrata, ali-
ada às características perversas do preconceito racial
no país, terminaram por criar uma série de dificulda- 2
Visão que se vai desenvolver no Brasil a partir dos traba-
des para a integração social e econômica dos não- lhos de Gilberto Freyre (1933), que considerava a sociedade bra-
brancos. Com isso, não seria exagerado afirmarmos sileira como uma verdadeira democracia racial. Essa tese vai ser
que a cidadania no Brasil caminha a duas velocida- retomada pelas elites políticas que ascendem ao poder com a Re-
des distintas: uma, que concerne majoritariamente aos volução de 1930, e vai tornar-se um dos elementos discursivos
brancos, ao passo da modernidade; e a outra, que diz mais importantes da ideologia nacional no país. Desde os anos de
respeito principalmente aos não-brancos, marcada 1950, porém, essa visão idílica convive com interpretações alter-
pela ausência da cidadania social. nativas sobre as relações raciais no país, como podemos ver nos
Apesar disso, o Brasil foi muitas vezes percebi- trabalhos de diversos autores das ciências humanas: Bastide e
do como um país sem preconceito racial, onde “ne- Fernandes (1959), Fernandes (1966), Azevedo (1996), Ramos
gros”, “pardos”, “amarelos”, “índios” e “brancos” (1951), Nogueira (1983, 1998), entre outros.
conviveriam harmoniosamente e onde todos seriam 3
Para uma discussão terminológica, ver Wilson (2001).
fundir o discurso anti-racista no país (Cardoso, 1987; gada, o mesmo não se dá com relação ao que pensa a
Nascimento & Nascimento, 2000), o qual vai influen- comunidade universitária das universidades públicas.
ciar a agenda pública no sentido da implantação de Ora, se é verdade que, como mostram algumas pes-
medidas visando transformar a realidade das popula- quisas nacionais, a opinião pública está tornando-se
ções não-brancas: da criação de delegacias especiali- favorável às cotas,4 sem investigarmos como elas são
zadas para investigar as denúncias de racismo à ado- percebidas em estados diferentes e pelos grupos que
ção de políticas públicas visando à integração dos compõem o mundo universitário, teremos dificulda-
negros e pardos no mercado de trabalho; do reconheci- des para entender por que em algumas regiões as co-
mento do direito à terra para comunidades remanes- tas já foram implementadas nas universidades e em
centes de quilombos à obrigatoriedade de conteúdos outras há maiores resistências.
ligados à história da África nos livros didáticos etc. Nesse sentido, podemos afirmar que a polêmica
São, contudo, as ações que visam facilitar o aces- em torno da questão tem sido tão intensa que a dis-
so dos não-brancos aos cursos superiores que são vis- cussão sobre os possíveis benefícios e malefícios da
tas como portadoras de efeitos mais duradouros e efi- implantação das cotas se fez de forma abstrata, sem
cazes na quebra do círculo vicioso da exclusão da uma preocupação com a percepção social sobre elas.
população negro-mestiça. Ainda que as cotas de acesso Neste texto partimos de um ponto de vista di-
às universidades tenham assumido o primeiro plano verso. Nosso intuito aqui não é tanto discutir as con-
do debate público, elas não são as únicas medidas seqüências positivas ou negativas das cotas, mas, an-
implementadas. O leque das propostas vai de cursos tes, nos interrogarmos sobre a forma como as cotas
pré-vestibulares gratuitos para populações carentes e são percebidas por alguns setores da população dire-
pobres à adoção de bolsas de estudos para estudantes tamente implicados com a sua adoção. Isso se justi-
negros etc. No que se refere às cotas, elas foram ini- fica na medida em que, se a implantação das cotas
cialmente postas em aplicação por algumas universi- nas universidades está difundindo-se, as resistências
dades isoladas (a exemplo das estaduais do Rio de às elas não parecem estar decrescendo. Então, como
Janeiro e da Bahia, da Universidade de Brasília – compreender a contradição aparente entre o reconhe-
UnB), expandindo-se gradualmente para outras uni- cimento quase unânime da influência negativa da dis-
versidades até serem integradas na proposta de refor- criminação racial sobre as possibilidades de ascen-
ma universitária do governo federal e em projetos de são social dos afro-brasileiros e a rejeição de alguns
leis tais como o Estatuto da Igualdade Racial. setores sociais ao sistema de cotas raciais nas uni-
Como vimos, essas medidas vão gerar uma gran- versidades públicas? A questão, assim colocada, traz
de polêmica acerca não só do princípio da igualdade
de chances no país, mas também sobre as repercus-
4
sões para a qualidade de ensino e para a vida univer- É o que sinalizam algumas pesquisas nacionais de opinião
sitária de uma maneira geral. Debate que se aprofun- recentemente publicadas: pesquisa realizada pelo Instituto Brasi-
dou com a intenção do governo federal de transformar leiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em fevereiro de
em lei a proposta de implantação nas universidades 2006 mostrava que 53% da população brasileira era favorável às
públicas federais, em seus vestibulares, do sistema cotas para estudantes de escolas públicas, e apenas 33% apoiava
de cotas para afrodescendentes. O que é patente nos as cotas para negros e pardos (Globo on line, 9 fev. 2006); já em
manifestos recentemente publicados na imprensa, com pesquisa do Datafolha publicada no jornal Folha de S.Paulo de 23
assinaturas de intelectuais e homens públicos contra e jul. 2006, 65% dos entrevistados são favoráveis ao Estatuto da
a favor das cotas universitárias para afrodescendentes. Igualdade Racial, que prevê 20% das cotas para negros e pardos
Contudo, se a maneira como as cotas são perce- nas universidades públicas. Ou seja, o debate sobre as cotas pare-
bidas pela população em geral começa a ser investi- ce estar influenciando a sua aceitação no conjunto da população.
governos contra a discriminação que sofrem os gru- a distribuição igualitária dos bens, e de outro os que
pos minoritários, vão confrontar as democracias li- priorizam o reconhecimento social que os indivíduos
berais com a espinhosa questão de como fazer para gozam ou não na sociedade (Honneth, 1997; Taylor,
garantir o universalismo jurídico, pautado no princí- 1992; Young, 1997).
pio da igualdade de todos perante a lei, e, ao mesmo Contra essa bipolaridade dos critérios de justiça,
tempo, promulgar leis específicas de proteção de gru- Fraser (1997, 2000) defende que em nossa época esses
pos minoritários e/ou discriminados, o que pode ser critérios precisam dar conta, simultaneamente, da jus-
visto como um privilégio e uma não-observância do tiça social (ligada aos aspectos distributivistas) e da
universalismo. justiça simbólica (que envolve o reconhecimento das
Desse modo, Sandel (1982) vai criticar os prin- diferenças).
cípios de justiça aventados por Rawls, por expressa- Essa crítica será retomada por outros autores, tais
rem uma visão individualista dos seres humanos, sem como Bauman (2003) e Rorty (1998), que irão subli-
levar em consideração que a moralidade humana se nhar ainda que as demandas por reconhecimento e
constitui na vida coletiva, e que, portanto, não se pode valorização identitária dissociadas das demandas por
estipular a priori que apenas o critério distributivista justiça social tendem não apenas a fixar de forma rí-
dos bens possa definir o que seja ou não uma socie- gida os limites entre as identidades (por exemplo,
dade justa. Para ele, uma teoria da justiça deve levar gerando as guerras étnicas), mas também a manter a
em conta o que a comunidade considera justo, uma estrutura de poder das sociedades capitalistas avan-
vez que não existe uma concepção de justiça inde- çadas, dissimulando assim a pobreza e as novas for-
pendente dos valores socialmente partilhados. mas de exclusão.
Nesse contexto, Taylor (1989, 1992) argumenta Autores como Walzer (1983), Boltanski e
que a primazia dada pelas teorias distributivistas à Thévenot (1991) e Dubet (2006) vão argumentar que
divisão dos bens materiais na definição de uma so- a pertinência dos critérios de justiça depende da esfe-
ciedade justa escamoteia o fato de que muitas vezes ra social em que se está inserido. Esse critério não
as injustiças não são econômicas, mas morais. Ou seja, pode ser o mesmo na esfera econômica ou na esfera
nessa perspectiva, é possível pensar em situações em familiar, por exemplo. Com isso, eles chamam a aten-
que, malgrado certa igualdade distributiva, alguns ção para a existência de uma multiplicidade de crité-
grupos possam sentir-se oprimidos ou discriminados. rios de justiça na vida social.
A discussão será retomada e ampliada por Para Habermas (1997a, 1997b) não existem cri-
Honneth (2000), para quem o reconhecimento é a força térios ad hoc e universais, exceto o de que para uma
motriz transformadora das sociedades modernas, de- sociedade ser considerada justa é necessário que os
vendo, pois, ser considerado o princípio definidor de critérios de justiça em vigor tenham sido definidos de
uma teoria da justiça, já que ele concentra em si ou- tal forma que todo membro da sociedade possa aceitá-
tros princípios, inclusive o distributivo. los como razoáveis. Ou seja, ainda aqui temos a idéia
Em contrapartida, a crítica feminista à teoria de que todos são iguais e que, portanto, todos podem
rawlsiana de justiça (Okin, 1989) vai insistir no fato participar da construção dos critérios de justiça, os
de que as desigualdades de gênero não são mensurá- quais podem eventualmente colocar em suspensão a
veis apenas em termos de acesso aos bens materiais igualdade jurídica entre os membros da sociedade
ou ao mercado de trabalho, pois é no seio mesmo da (como no caso das cotas), desde que isso possa ser
família que essas desigualdades se consolidam. aceito como algo justo pelos grupos não beneficiados
Assim, vai-se aos poucos se constituindo um por tais critérios. No fundo, Habermas tenta construir
debate bipolar sobre os critérios de justiça válidos no uma teoria eqüidistante entre as teses universalistas e
mundo contemporâneo: de um lado, os que priorizam contextualistas das teorias da justiça, aceitando, por
um lado, a idéia da igualdade inata entre os homens, me se posicionasse do ponto de vista da igualdade, da
e por outro, a possibilidade de negociação dos crité- liberdade ou do reconhecimento.
rios de justiça em uma dada sociedade, desde que eles A discussão sobre o justo e o injusto deve, pois,
tenham sido frutos de negociação legítima. no âmbito das ciências humanas, sair da disputa pe-
Esse impasse entre contextualização e universa- los critérios atemporais de justiça para analisar quais
lidade dos critérios de justiça é também retomado por os valores que estão subentendidos nas concepções
Chantal Mouffe (1991, 2005). Para ela, a partir de desta e que prevalecem em uma sociedade em deter-
uma visão anti-essencialista, embora os princípios minadas épocas. A definição do justo e do injusto em
democráticos e igualitários tenham a hegemonia mun- uma sociedade é, pois, uma questão política, que tem
dial, eles não devem ser vistos como expressão últi- a ver com relações de forças e com representações
ma da justiça. Isso significa que eles podem ser sociais hegemônicas na sociedade.
“radicalizados”, e que, portanto, novos arranjos Assim, podemos afirmar que é na arena dos de-
hegemônicos podem ser construídos. A questão que bates sobre justiça e igualdade social que se inserem
se coloca para os regimes democráticos é que esses as discussões sobre as políticas de ação afirmativa
novos arranjos possam garantir espaços também no- para grupos minoritários.
vos de autonomia dos sujeitos.
Esse debate teórico pode ajudar-nos a melhor Igualdade e políticas de ação afirmativa
compreender a polêmica sobre as cotas na sociedade
brasileira atual. Isso por várias razões. Por um lado, As políticas de ação afirmativa (PAA) surgem
por lembrar-nos de que a justiça é sempre uma ques- do embate jurídico e político entre duas vertentes da
tão de construção de certo consenso social; por outro, igualdade. As revoluções burguesas ocorridas no sé-
por colocar que esse consenso só pode ser considera- culo XVIII foram concebidas para eliminar do regi-
do justo se ele não significar a exclusão de uma parte me feudal privilégios com base na linhagem, heran-
dos membros de uma sociedade. ça, ou numa estrutura rígida de classes sociais, e assim
A questão da construção do consenso é retomada acabar com as discriminações. É assim que surge a
por François Dubet (2006) ao colocar as percepções noção de “igualdade perante a lei”, a qual se tornará
de justiça e de injustiça como centro de análise. Para uma pedra-chave na edificação das democracias que
ele, qualquer teoria da justiça, seja a dos filósofos, seja começam a surgir no século XIX e XX (Gomes, 2001).
a dos próprios atores sociais, está baseada em três prin- De acordo com essa concepção formalista da igual-
cípios: igualdade, liberdade e reconhecimento. Contu- dade, a posição de uma pessoa na sociedade, seu tipo
do, à diferença de outros autores, ele não vê como seja de emprego, sua renda, seu cônjuge, sua escolaridade
possível definir a priori qual desses princípios tem a etc. deveriam depender apenas das suas capacidades,
primazia em relação aos outros, pois cada sociedade e sem sofrer a influência, ainda que mínima, do sexo,
cada indivíduo podem legitimamente erigir um desses da cor da pele, da religião, da cultura, da origem geo-
princípios como o mais importante. Além disso, se nos gráfica, ou de quaisquer aspectos que estivessem fora
posicionarmos do ponto de vista das percepções de jus- do controle do cidadão. Esse princípio será criticado
tiça e de injustiça dos atores, o mais comum é que haja já no século XIX, quando setores da sociedade civil
combinatórios entre os vários princípios arrolados an- começam a organizar-se para lutar contra as flagran-
teriormente, inclusive no que eles têm de contraditó- tes desigualdades sociais, como mostra a crítica mar-
rios. Assim, em sua pesquisa sobre o sentimento de xista aos direitos burgueses (Marx, 2002).
injustiça no mundo do trabalho na França, Dubet pôde É assim que o princípio da igualdade jurídica ou
observar que um mesmo ator podia sustentar discursos formal começa a ser questionado, a partir da constata-
contraditórios em relação ao justo e ao injusto, confor- ção de que a mera garantia de direitos às pessoas des-
favorecidas não era suficiente para que elas pudessem fazer a justiça social pela redistribuição, é preciso
superar sua situação de inferiorização econômica, po- assumir metas mais modestas e realísticas e fazer uma
lítica e cultural. Um importante conjunto de mudanças redistribuição das oportunidades ou chances de vida
sociais e políticas ocorridas, sobretudo, a partir dos anos que favoreça os setores mais excluídos da sociedade.
de 1930, tais como a crítica ao regime nazifascista, a Essa forma de igualdade, quando operacionali-
implantação do Estado de bem-estar social, a Declara- zada em termos de políticas públicas, consiste em dar
ção dos Direitos Humanos em 1948, as lutas pelos di- meios preferenciais aos membros de grupos desfavo-
reitos civis nos Estados Unidos e o movimento femi- recidos, em propor-lhes um tratamento diferenciado,
nista na década de 1960, dentre outros, cria um cenário cargos reservados nas empresas ou em instituições de
no qual a igualdade formal destituída de igualdade real ensino, vantagens fiscais, recursos complementares
começa a ser rigorosamente questionada. para escolas de determinados bairros ou regiões, en-
Nesse cenário, começa-se a falar em igualdade tre outros.
de condições, em vez de simplesmente igualdade de Portanto, é no seio do princípio da igualdade
direitos. Esse fato cria para os sistemas políticos a substancial que as PAA surgem e se fundamentam.
necessidade de produzirem mecanismos que viabili- As ações afirmativas podem ser definidas como “po-
zem a igualdade de fato, e não apenas de direito, en- líticas públicas (e privadas) voltadas à concretização
tre as pessoas. Nesse bojo, propugna-se a necessida- do princípio constitucional da igualdade material e à
de de diminuir as desigualdades e aumentar as neutralização dos efeitos da discriminação racial, de
possibilidades de inclusão social pelo Estado. gênero, de idade, de origem nacional e de complei-
Essa nova versão da igualdade, definida como ção física” (Gomes, 2003, p. 21).
“igualdade substancial”, tem como objetivo permitir
que as desigualdades e dessemelhanças existentes na As políticas de ação afirmativa e as cotas
sociedade sejam tratadas de modo específico, a fim
de minimizar os abismos que existem entre as pes- Mas o que significam as cotas para as demo-
soas e grupos. De acordo com essa noção de igualda- cracias contemporâneas e qual a sua história? No pla-
de, ações corretivas ou reparadoras do Estado justifi- no internacional, as PAA, dentre as quais as cotas,
cam-se sempre que haja a necessidade de equacionar começam a difundir-se a partir dos anos de 1960, quan-
assimetrias entre os grupos na busca de justiça social. do são adotadas nos Estados Unidos em resposta às
Isso mesmo quando essas ações pareçam discrimina- mobilizações pelos direitos civis dos negros. Em 1965,
tórias. Estamos próximos aqui do conceito de justiça uma “Ordem Executiva” é assinada por Lyndon
desenvolvido por John Rawls (1971), segundo o qual Johnson proibindo a discriminação racial no interior
uma situação de desigualdade é justa quando benefi- das empresas. Para obrigar as empresas a aplicar essa
cia o conjunto da sociedade. lei, o governo norte-americano vai estabelecer, em
Do mesmo modo, é no contexto do debate sobre 1968, a obrigatoriedade de cotas para negros e outras
a igualdade de oportunidades e igualdade de benefí- minorias étnicas na mesma proporção de sua compo-
cios que Diamond e Giddens (2005) vão afirmar que sição na população total.
a expansão das desigualdades e da pobreza em nível Ao longo dos anos de 1970, diversas universida-
mundial deve fazer emergir um “novo igualitarismo”, des norte-americanas vão aderir a esse critério, de
que supere a incoerência da meritocracia pura, pois, forma que ampliasse a representação de mulheres e
sem a distribuição da renda ou dos recursos acumula- de minorias étnicas entre seus estudantes. Isso, con-
dos por gerações passadas, as novas gerações podem tudo, ao pôr em questão o princípio meritocrático em
viver apenas da especulação financeira, aumentando uma instituição que se legitima justamente em nome
o caos social. Para esses autores, não sendo possível desse princípio, vai ser constantemente levado à apre-
ciação da justiça. Assim, em 1978, a Corte Suprema estabelece um mínimo de 30% e um máximo de 70%
dos Estados Unidos pronuncia-se em favor de um alu- de candidaturas para cada sexo (Silva, 2003). Exis-
no branco que havia sido recusado na Faculdade de tem, além dessas duas, várias outras formas de ações
Medicina de Davis em conseqüência de uma política afirmativas no Brasil, que beneficiam com isenção
de cotas posta em prática. Na sua apreciação desse de taxas ou com incentivos financeiros vários grupos
caso (caso Bakke), a Corte Suprema proíbe o uso de sociais, a exemplo de professores da rede pública es-
cotas nas universidades como critério exclusivo de tadual que, em vários estados do Brasil, tiveram seu
seleção de candidatos oriundos de minorias, embora acesso e sua permanência nas universidades públicas
aceite o uso de critérios raciais na seleção. Desde en- facilitados por políticas educacionais. No entanto,
tão, as universidades norte-americanas não podem nenhuma dessas ações causa estardalhaço ou polêmi-
mais usar apenas o critério racial para garantir a di- cas sociais, pois não envolvem um tabu histórico da
versidade étnica, pois ele deve ser obrigatoriamente sociedade brasileira: a cor da pele (idem).
mesclado com outros critérios (sociais, residenciais, Em que pese a polêmica que reveste esse tema, a
de gênero etc.) (Doytcheva, 2005). criação de cotas para negros fez surgir no Brasil, pela
Porém, é nos anos de 1990 que as PAA de cunho primeira vez, um constante e intenso debate sobre
étnico são mais duramente criticadas nos Estados preconceito, discriminação e identidade étnicas. Esse
Unidos, com a votação de leis proibindo a sua aplica- debate tem construído e polarizado atitudes favorá-
ção nas universidades e nas concorrências públicas veis ou contrárias às cotas que configuram redes com-
em vários estados importantes (Califórnia, por ple- plexas de percepção e representação das relações
biscito, Texas, Flórida, Washington etc.). Isso faz com racializadas no Brasil bem como da idéia de justiça
que as universidades mais engajadas ponham em prá- que permeia essas relações.
tica políticas preferenciais de cunho territorial para O debate sobre as cotas traz no seu bojo a dis-
garantir a presença de habitantes de bairros carentes, cussão sobre a desigualdade no Brasil, desigualdade
majoritariamente oriundos de minorias étnicas, nos entre brancos e não-brancos, entre ricos e pobres etc.
bancos universitários (idem). O que parece estar ocorrendo nas últimas décadas em
No entanto, as PAA nunca estiveram restritas aos nosso país é uma mudança na percepção das desigual-
Estados Unidos (Sowell, 2004). Como refere Silva dades que devem ser toleradas ou não. Pensamos que
(2003), na Índia, desde a Constituição de 1948 pres- o reconhecimento da existência de desigualdades li-
crevia-se tratamento especial para os Dalits, inclusive gadas à idéia de raça faz parte dessa transformação.
com reserva de vagas no parlamento; na Malásia, gru-
pos sufocados pelo poder dos chineses e indianos tam- As percepções sobre as cotas para
bém tinham direito a privilégios; na antiga União So- negros nas universidades públicas
viética havia cotas de 4% para que moradores da Sibéria
tivessem acesso às universidades; na Nigéria e na Ale- Com o objetivo de analisar a relação entre as
manha existem ações afirmativas para beneficiar mu- percepções de justiça ou de injustiça social com as
lheres; na Colômbia há benefícios para os índios, as- opiniões sobre as cotas, realizamos dois estudos jun-
sim como no Canadá. Na África do Sul pós-apartheid to a grupos que têm uma implicação direta com essa
os negros recebem tratamento especial do Estado. questão: pré-vestibulandos e estudantes de uma uni-
No Brasil, desde 1990 a lei n. 8.112/90 define versidade pública.6 Nesses estudos examinamos tam-
reserva de 20% das vagas para portadores de defi-
ciência física em concursos públicos. Também existe
reserva de vagas para as mulheres como candidatas 6
Essa é uma particularidade da presente pesquisa em rela-
em eleições no Brasil. A lei eleitoral n. 9.504, de 1997, ção às pesquisas de opinião realizadas no âmbito nacional com o
bém as relações entre estrato social, identidade étni- autodefinem como negros na escola pública (83%)
ca, percepções de justiça social e as atitudes em rela- do que na privada (70%); o inverso observa-se para a
ção às cotas para minorias no Brasil. cor branca (17% na pública e 30% na privada). As
outras classificações de cor (índios e amarelos) fo-
Estudo 1 ram residuais, por isso não as consideramos nessas
análises. Com relação ao sexo, nas duas escolas, mais
Método de 70% dos entrevistados são do sexo feminino.
Mas qual seria o papel da cor da pele na defini- da escola privada, seja no que tange à situação dos
ção dessas atitudes? Não existe influência significa- negros em relação aos brancos, F (1, 108) < 1, n.s.,
tiva da cor da pele sobre as atitudes em relação às seja ainda no que se refere à percepção de justiça des-
cotas de acesso para estudantes negros e pardos nas ta situação, F (1, 113) < 1, n.s. De modo que tanto os
universidades públicas. Os estudantes que se autode- pré-vestibulandos da escola pública quanto os da par-
finem como brancos e os que se autodefinem como ticular concordam que a situação dos negros é pior do
negros ou pardos são, em sua maioria, contrários às que a dos brancos (médias próximas de 4) e que essa
cotas (76% e 60%, respectivamente) (c2 = 3,01, GL = é uma situação injusta (médias próximas de 3).
2, n.s.).
A fim de termos um indicador de identidade ét- Tabela 4
nica ou de cor, perguntamos também em que medida Percepções de justiça social em função
o estudante sentia orgulho da sua cor de pele, numa do tipo de escola (dados em médias)
escala cuja resposta poderia variar de 1 (nada orgu- Questão Tipo de escola
lhoso) a 5 (totalmente orgulhoso). Verificamos que Pública Privada
Média Desvio Média Desvio
tanto os negros e pardos (M = 4,41) quanto os bran- Padrão Padrão
cos (M = 4,12) sentem orgulho da sua cor, sem dife- Como avalia a situação
econômica dos negros no
renciação estatística.
Brasil em relação aos
Também não houve diferenças entre os brancos brancos? * 4,04 0,84 4,02 0,79
e não-brancos no que concerne à percepção de mérito Você acabou de avaliar a
situação dos negros em
nos cotistas (c2 = 2,69, GL = 2, n.s.), à avaliação do relação aos brancos. O que
seu desempenho (c2 = 4,18, GL = 3, n.s.) e à crença acha dessa situação? ** 3,29 0,75 3,27 0,77
de que os cotistas serão discriminados nas universi- * A escala variava de 1 (muito melhor), 2 (melhor), 3 (igual), 4
(pior) e 5 (muito pior).
dades (c2 = 0,86, GL = 1, n.s.). Os cotistas foram ava- ** A escala variava de 1 (totalmente justa), 2 (justa), 3 (injusta) e
liados como merecedores das vagas para 49% dos par- 4 (totalmente injusta).
11
Tipo de técnica de análise de dados que permite estudar a
relação entre mais de duas variáveis nominais ou categóricas, pela 12
Esta pesquisa teve a colaboração fundamental de estudan-
organização da informação de modo hierarquizado, com a criação tes dos cursos de ciências sociais e psicologia da UFS, que reali-
de agrupamentos de variáveis por semelhanças de freqüência de zaram as aplicações dos questionários e colaboraram na tabulação
resposta. dos dados.
centual dos “contrários”: 85% no caso do pré-vesti- Em relação à avaliação do impacto das cotas na
bular e 79,5% no caso da UFS. qualidade de ensino das universidades públicas, ob-
Mas será que existe um efeito da cor da pele dos servamos que a maioria dos pesquisados afirma que a
universitários nas suas atitudes em relação às cotas? qualidade não se alterará (42,1%), outros 28% afir-
Para respondermos a essa pergunta, realizamos mam que a qualidade vai cair e 28,7% não sabem ava-
cruzamentos tomando a cor da pele como eixo de aná- liar. Houve ainda 1,2% de respostas de que a qualida-
lise. Os resultados indicam que, diferentemente do pri- de irá aumentar. Sobre o desempenho do cotista em
meiro estudo, existe um efeito significativo da cor da relação aos não-cotistas, verificamos que mais de 40%
pele sobre as atitudes em relação às cotas (c2 = 15,39, afirmam que o desempenho será inferior (40,3%),
GL = 4, p < 0,01). Como podemos ver na Tabela 6, os 24,2% dizem que será igual e 34,2% não sabem ava-
mais favoráveis às cotas são os negros e pardos e os de liar. Outros 1,3% dizem que o cotista terá um desem-
outras cores. Os de outras cores também são os que penho superior ao não-cotista.
estão mais em dúvida acerca desse tema. Na Tabela 7 podemos ver que, de um modo ge-
ral, os universitários acreditam que os cotistas serão
Tabela 6 discriminados nas universidades e que eles são me-
Atitudes dos pré-vestibulandos em relação nos merecedores da vaga do que os não-cotistas. Tal-
às cotas para estudantes negros e pardos nas vez por essas avaliações, dois terços dos pesquisados
universidades públicas em função da afirmam que não optariam pelas cotas de acesso às
cor da pele (dados em percentagens) universidade públicas, mesmo se pudessem.
Cor da pele Atitude Total
Favorável Contrário S/posição Tabela 7
Brancos 07,90 83,9 8,2 100,0
Percepções sobre os cotistas
Negros e pardos 14,00 78,6 7,4 100,0
Outras cores (indígenas, (dados em percentagens)
amarelos e outras) 11,20 74,7 14,1 100,0 Questões Sim Não Não sei
responder
Um estudante negro ou
Considerando o nosso indicador de identidade pardo que ingressa na
de cor, constatamos nesse segundo estudo um efeito universidade pelo sistema
significativo da cor da pele, F (2, 953) = 44,54, p < de cotas é menos merece-
dor da vaga do que um
0,001. Verifica-se que os negros e pardos (M = 4,41) não-cotista? 44,5 35,8 19,7
sentem mais orgulho da sua cor do que os brancos (M Os estudantes beneficiados
= 3,68) e do que os de outras cores (M = 4,04).13 pelas cotas são ou serão
discriminados na universi-
Assim como no Estudo 1, indagamos aos estu- dade? 74,4 25,6 —
dantes se os beneficiados pelas cotas são menos me- Se você pudesse, teria
optado pelo sistema de
recedores da vaga, se teriam um desempenho pior
cotas para ingressar na
que os não-cotistas e se seriam discriminados na uni- universidade? 34,0 66,0 —
versidade. Nesse segundo estudo, acrescentamos
duas outras perguntas: “Qual será o impacto das co- Novamente avaliamos por testes qui-quadrado o
tas na qualidade de ensino?” e “Se você pudesse, efeito da cor da pele sobre essas atitudes e opiniões.
teria optado pelo sistema de cotas para entrar na uni- Os resultados indicam que, assim como no Estudo 1,
versidade?”. brancos, pardos e negros não se diferenciaram no que
concerne à percepção de mérito dos cotistas (c2 = 7,50,
GL = 4, n.s.), à avaliação do seu desempenho (c2 =
13
Teste Post Hoc Scheffé, p< 0,05. 9,70, GL = 6, n.s.), à crença de que os cotistas serão
O impacto das percepções de justiça social relação às cotas dos universitários, realizamos uma
e da posição na estrutura social nas análise de correspondências múltiplas com todos os
atitudes em relação às cotas indicadores pesquisados. Na Figura 2 podemos ver
que a favorabilidade às cotas se associa com uma renda
A fim de termos uma visão mais integradora do familiar mais baixa, com a crença de que a situação
impacto das variáveis estudadas sobre as atitudes em de assimetria econômica entre brancos e negros pode
ser alterada, com o orgulho da cor da pele e com a Podemos, contudo, aventar a hipótese de que a
pertença ao grupo dos negros e pardos. No campo realidade regional influencia a percepção do debate
semântico oposto estão os contrários às cotas. São, sobre as cotas. A presença de movimentos negros or-
sobretudo, os que pertencem ao grupo dos brancos e a ganizados e politicamente ativos,15 a forma como a
outras cores, com renda familiar mais elevada, que não questão racial é regionalmente debatida, ou mesmo a
acreditam que a situação econômica dos negros se al- composição da população em termos de cor da pele
tere, e que sentem nenhum ou pouco orgulho da cor. podem estar informando debates regionalmente dife-
renciados no país. De uma forma geral, é claro que,
Considerações finais se as cotas emergem como políticas públicas nos anos
de 2000, é porque, em certo sentido, a identidade na-
Os resultados desta pesquisa interpelam-nos so- cional está em transformação,16 como mostra a
bre o significado das cotas no cenário brasileiro e, rediscussão sobre o preconceito e a discriminação
mais especificamente, sergipano. Como vimos, a racial em esferas públicas, ampliada a partir do final
maioria dos entrevistados reconhece que os negros dos anos de 1970. Contudo, as cotas vão além das
têm dificuldades de acesso às universidades, e que denúncias contra o preconceito racial; elas implicam
isso é injusto, pois gera dificuldades de integração também uma instrumentalização de identidades
para os negros em outras esferas sociais. Contudo, as racializadas na cena pública.17 Além disso, as cotas
cotas não são aceitas pela maioria como as medidas desestabilizariam também algumas identidades regio-
mais indicadas. A maioria prefere as medidas nais no país.
universalistas (pautadas no mérito individual) às me- Tentamos mostrar alhures (Neves, 2001) como a
didas afirmativas. questão negra no Brasil ganha cores regionais distin-
Não temos elementos empíricos que possam nos
informar sobre se esses resultados são próprios ao
estado de Sergipe ou se podem ser generalizados para maior inclusão dos mais pobres, sejam negros ou não, nas univer-
outros estados. Como vimos anteriormente, as pes- sidades, concordam inicialmente com a proposta das cotas, mas
quisas de opinião de âmbito nacional publicadas so- valorizam também o mérito do desempenho escolar” (Folha de
bre a temática mostram uma tendência a uma maior S.Paulo, 23 jul. 2006, p. C4). De todo modo, essa pesquisa de-
aceitação das cotas na opinião pública; mas, além do monstrou ainda que as resistências às cotas aumentam com o ní-
fato de essas pesquisas não terem focado a comuni- vel educacional e de renda da população, pois 55% dos que ti-
dade universitária, elas próprias mostram que há ele- nham nível superior e 57% dos que percebiam renda acima de dez
mentos contraditórios nas respostas dos questionários, salários mínimos eram contrários a elas. O que parece sinalizar
demonstrando pouca informação sobre o tema.14 tendência semelhante à observada em nossa pesquisa, malgrado o
fato de elas terem sido feitas com critérios diferentes de amostra-
gem e em épocas diferentes.
14 15
Na pesquisa realizada pelo Datafolha, citada anteriormente, Neves (2000, 2005a) mostrou que, no caso sergipano, o
o próprio coordenador da pesquisa esclarece que apenas um entre movimento negro tem ensejado pouca participação social em suas
dez dos entrevistados dizia-se esclarecido sobre o tema e que, ao bandeiras de luta.
16
mesmo tempo em que 65% deles se declaravam favoráveis às co- Para uma discussão dessa transformação identitária em
tas, 78% diziam-se favoráveis a que os critérios de mérito pessoal termos políticos ver Neves (1997). Com relação às mudanças na
fossem os únicos meios de avaliação, e um número ainda maior percepção da questão negra nas últimas décadas ver Neves (2005b),
(87%) era favorável às cotas para alunos carentes, independente- Sansone (1996, 2004), eentre outros.
17
mente da cor. Essas aparentes contradições mostrariam, segundo Sobre esse ponto, ver o debate na revista Horizontes An-
os responsáveis pela pesquisa, que “os brasileiros desejam uma tropológicos de n. 23, de jan./jun. 2005.
tas,18 a partir do exemplo do estado de Sergipe, onde lia a questão das PAA. As cotas, vistas como perti-
uma forte identificação com a figura mítica do serta- nentes apenas para os deficientes, tornam-se iguais a
nejo torna os discursos militantes de valorização da dádivas, benesses ou esmolas, ligadas ao sentimento
identidade negra de difícil aceitação. O que significa da compaixão e não à justiça redistributiva. Na práti-
dizer que não apenas as realidades regionais são dife- ca isso significa que as medidas discricionárias acei-
rentes em termos de composição da população (esta- tas são apenas as que se destinam a pessoas julgadas
dos como Bahia e Sergipe, por exemplo, têm cerca com grandes deficiências naturais e, pois, incapazes
80% de sua população composta por pretos e pardos, de competir em igualdade de condições. A suposta
enquanto nos estados do Sul-Sudeste essa percenta- deficiência dos negros não seria natural, e sim histó-
gem está abaixo de 30%), mas também em termos de rica e social, considerada passível de ser vencida com
auto-representação. Com isso, em estados que, ape- o esforço individual. Dito de outra maneira, diferen-
sar de uma forte proporção de negros e pardos, a iden- ças julgadas naturais, vistas como acima da vontade
tificação em termos raciais é pouco difundida, como do indivíduo, podem ser compensadas com políticas
em Sergipe, a aceitação das cotas tende a ser menor especiais, mas não as deficiências sociais, fruto de
que em estados onde a presença de discursos raciali- formas organizativas da sociedade.
zadores é mais forte. Esse raciocínio deixa transparecer o sentimento
Contudo, além dessas questões, acreditamos que de que não temos culpa da sociedade ser como é. Há aí
a discussão em termos de percepções sociais da justi- uma espécie de naturalização do modo de organização
ça pode ampliar nossa compreensão dos resultados da sociedade. Sendo assim, para mudar algo tão arrai-
obtidos. Um dado que nos pode ajudar a compreen- gado são necessárias grandes transformações, sem que
der esse fenômeno é a aceitação das cotas para defi- mudanças menores possam ser tentadas. Ou muda-se
cientes físicos em empregos públicos. Ou seja, as co- tudo ou não se muda nada! Isso se traduz no fato de
tas tendem a ser consideradas mais justas quando que as desigualdades e diferenças de oportunidades que
aplicadas para compensar algum tipo de inferiorida- atingem os negros são reconhecidas, mas não devem
de física ou natural do indivíduo, e recusadas para dar lugar a medidas específicas; antes, elas devem ser
situações de desvantagem social. O que explica, tal- combatidas por políticas universalistas que visem mu-
vez, o fato de que mesmo os universitários negros, dar radicalmente a sociedade. Com isso, posterga-se
em sua maioria, se posicionaram contra as cotas: para um futuro não previsível a resolução da injustiça.
aceitá-las significaria desvalorizar-se, reconhecer-se Assim, uma hipótese que parece plausível é de
inferior, com menos mérito individual que outros. que as cotas são recusadas pela maioria pelo fato de
Visão mais presente entre os que já entraram na uni- serem identificadas com soluções que visam paliar
versidade do que entre os pré-vestibulandos, que po- uma deficiência ou incapacidade individual. Nessa
derão no futuro beneficiar-se das cotas, como mos- perspectiva, as cotas são consideradas injustas, pois,
traram os dados empíricos obtidos. além de falsearem a realidade das capacidades indi-
Esses resultados parecem indicar que as percep- viduais de cada candidato e irem de encontro assim à
ções da justiça prevalecentes na sociedade sergipana igualdade de chances, depreciam os seus beneficiá-
dizem muito sobre a forma como essa sociedade ava- rios. As cotas seriam uma vergonha para os que delas
usufruírem, pois isso seria um atestado de incompe-
tência individual, um estigma que geraria discrimi-
18
Por seu lado, Guimarães (1999) chama a atenção para o
nação e conflitos raciais.19 Esse argumento reflete o
fato de que as diferenças de interpretações desenvolvidas pelos
intelectuais do Nordeste e os do Sudeste com relação à questão
19
racial podem ser imputadas a realidades diferentes concernentes a Argumento que aparece de maneira recorrente nos deba-
relações raciais. tes públicos em torno da questão. Ver Fry e Maggie (2002).
medo de virmos a reproduzir a situação de outros paí- siva das cotas como a solução, senão ideal, pelo me-
ses: por terem sido pensadas para contextos com sis- nos viável, para o problema da discriminação e da
temas bi-raciais (Estados Unidos e África do Sul), as desigualdade racial?
políticas afirmativas seriam inadequadas para socie- Talvez já se estejam esboçando soluções nessa
dades com sistemas multirraciais, em que a fronteira direção. A adoção de critérios socioeconômicos na de-
entre as categorias sociais de definição das raças é finição das cotas, por exemplo, parece ir nesse senti-
fluida e passível de negociação. Emblemáticas a esse do. Ao vincular a possibilidade de poder beneficiar-
respeito são as críticas endereçadas à utilização, pela se das cotas à baixa condição econômica, está-se
Universidade de Brasília (UnB), de uma comissão para implicitamente admitindo que as deficiências indivi-
decidir com base em fotografias quem é ou não ne- duais das pessoas de baixa renda não são apenas de-
gro, para decidir quem pode ou não ser beneficiado las, mas de todo o sistema de ensino público no país.
pelas cotas no vestibular.20 Isso parece refletir-se nos dados apresentados pela
Além disso, uma das maiores causas de resistên- menor resistência às cotas para estudantes de escolas
cia ao sistema de cotas é o fato de ele visar ao indiví- públicas do que às cotas raciais. As pressões sociais
duo em si, e não à coletividade. Ou seja, embora pen- acerca das cotas podem significar uma maior respon-
sadas para solucionar um problema que atinge um grupo sabilização do Estado brasileiro nessas questões (em-
específico (os negros), as cotas beneficiam individual- bora devamos admitir também que as cotas podem
mente os negros mais bem preparados do sistema edu- estar se tornando um mero expediente catártico e mi-
cacional. Ficam de fora, portanto, os negros mais mar- diático para as elites estatais: sem investir um centa-
ginalizados, justamente os que mais precisariam da vo na melhoria do ensino público, as cotas transfor-
ajuda coletiva e do Estado. No fundo, para os críticos mam-se de repente na “solução” para a desigualdade
das cotas elas significam certo reconhecimento da im- racial de acesso à educação).
possibilidade de mudanças das condições de vida dos Outro ponto que merece ser considerado é a pos-
pobres (dos quais os não-brancos são maioria). Nessa sibilidade de distanciamento dos negros beneficiados
perspectiva, as cotas poderiam implicar mobilidade pelas cotas dos seus meios de origem. Esse é um dos
social individual dos negros, mas não mudança social. fenômenos que alguns autores, tais como Michel
As limitações das ações afirmativas são clara- Wieviorka (2001), apontam como uma das conseqüên-
mente percebidas por esses críticos: elas não visam à cias da implantação de cotas nos Estados Unidos. Nos
mudança da estrutura de classes ou à repartição de guetos negros, os indivíduos beneficiados com cotas
renda na sociedade de uma forma mais radical. Elas raciais para as universidades e para empregos tendem
buscam formar uma elite intelectual e profissional a mudar-se de local de habitação, limitando o impac-
entre os grupos sociais mais desfavorecidos, na espe- to das cotas sobre as populações mais pobres.
rança de que eles se tornem elementos de mudanças Pensar essa questão pode passar, por exemplo,
mais profundas. pela implantação de algumas obrigações para os es-
Mas, não haveria um meio termo entre a recusa tudantes que se beneficiam com o sistema de cotas.
das cotas raciais – em geral por se crer que apenas Trabalhos sociais, ou obrigatoriedade de estágio ou
transformações estruturais da sociedade são capazes trabalho educativo em bairros populares, poderiam ser
de resolver a questão do racismo – e a aceitação pas- meios de evitar que esses estudantes se distanciem de
suas comunidades de origem; isso poderia ser um meio
para que o investimento social nas cotas se traduzisse
20
Para uma discussão sobre a problemática das cotas na UnB, não só na possibilidade de ascensão social de certos
ver o número especial da revista Horizontes Antropológicos (n. indivíduos, mas também em benefício de grupos po-
23, jan./jun. 2005). pulares com menor poder aquisitivo.
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Empresa (ISCTE – Portugal), é professor do curso de psicologia e
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Coordena o grupo de pesquisa Normas Sociais, Estereótipos, Pre-
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European values at the turn of the Millenium. Londres: Brillbooks, Recebido em agosto de 2006
2004. p.139-166); Individualismo meritocrático, diferenciação Aprovado em novembro de 2006
Resumos/Abstracts/Resumens
resultados indicam forte rejeição às co- work is to analyse the relation between
Paulo S. C. Neves e tas, sobretudo na universidade. Pensa- the perceptions of social justice and the
Marcus Eugênio O. Lima mos que essa resistência pode indicar attitudes of students towards the policy
Percepções de justiça social e tanto uma recusa a uma transformação of quotas. To this end, we carried out
atitudes de estudantes pré- do modelo de justiça liberal, pautado no two studies in the city of Aracaju with
vestibulandos e universitários sobre mérito individual, quanto uma resistên- candidates for university places from
as cotas para negros e pardos nas cia ao tipo de ação apenas midiática em two courses (a public and a private
universidades públicas que as cotas se estão transformando na school) and students from all courses
Um dado novo nas relações sociedade brasileira. at the Federal University of Sergipe.
racializadas no Brasil nos últimos anos Palavras-chave: justiça social; cotas e The results revealed a strong rejection
tem sido o das políticas de ação afir- atitudes of quotas, mainly in the university
mativa para minorias étnicas. A política Perceptions of social justice and context. We suppose that this resistance
de cotas de acesso para negros e pardos attitudes of candidates for university can be seen both as an affirmation of
nas universidades públicas tem gerado places and university students about the model of liberal justice, based on in-
um intenso debate sobre questões de quotas for Negroes and coloureds in dividual merit, and a reaction to the
discriminação e de identidade racial public universities type of merely newsworthy action in
que antes não pareciam pertinentes no In the last few years, a new element in which quotas are being transformed in
país que possui a maior população ne- racial relations in Brazil has been the Brazilian society.
gra vivendo fora da África. A fim de affirmative action policy for ethnic Key words: social justice; quotas and
analisarmos a relação entre as percep- minorities. The policy of quotas for attitudes
ções de justiça social e os posiciona- Negroes and coloureds in public Percepciones de justicia social y
mentos de estudantes sobre as cotas, universities has brought to the surface actitudes de estudiantes pre-
realizamos dois estudos em Aracaju an intense debate on discrimination and vestibulandos y universitarios sobre
envolvendo estudantes de dois cursi- issues of racial identity which had not las cuotas para negros y pardos en
nhos pré-vestibulares (um público e um seemed relevant before, in the country las universidades públicas
privado) e estudantes de todos os cursos that holds the largest black population Un dato nuevo en las relaciones
da Universidade Federal de Sergipe. Os outside of Africa. The purpose of this