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85 | 2009
Número não temático
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/521
ISSN: 2182-7435
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Edição impressa
Data de publição: 1 Junho 2009
Paginação: 176-182
ISSN: 0254-1106
Refêrencia eletrónica
Hugo Pinto, « Shapin, Steven, The Scientific Life: A Moral History of a Late Modern Vocation », Revista
Crítica de Ciências Sociais [Online], 85 | 2009, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 01 maio
2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/521
Revista Crítica de Ciências Sociais, 85, Junho 2009: 169-182
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capturada pelas instâncias políticas? Mesmo modo, uma política de despolitização (dé-
se capturada por estas instâncias, de que politisation): tem por efeito excluir deter-
forma pode ser apresentada como exigindo minadas decisões do domínio do contin-
decisões políticas quando a sua resolução gente para as inscrever no domínio da
assume os contornos de uma irreversibili- necessidade atemporal. Para que um pro-
dade técnica? Y. Barthe resolve este im- jecto, como o armazenamento geológico
passe pelo recurso a uma focalização da dos resíduos nucleares, por exemplo, atinja
análise em dois processos – o processo de a qualidade de irreversível, necessita de um
irreversibilização (irréversibilisation) e de trabalho contínuo de robustecimento da
reversibilização (réversibilisation) – empi- irreversibilidade, que, quando adquirida,
ricamente inteligíveis na questão da gestão o dota de uma força de inércia e torna re-
dos resíduos nucleares a partir do desen- sistente a qualquer investida ou desafios
rolar da sua trajectória histórica e dos acto- que se lhe possam vir a colocar.
res que a acompanham. O processo de Não podendo um projecto ser objecto de
irreversibilização permite explicar o modo contestação e de revisão, é a própria con-
como uma solução técnica adquire, aos testação que deve ser objecto de revisão.
olhos de determinados actores, o carácter Assim, no final dos anos 80, com a subida
de irreversível. Subjacente a este processo de escalada dos conflitos em torno da irre-
encontra-se a hipótese de que, no caso dos versibilidade do armazenamento geológico
resíduos nucleares, foi precisamente o dos resíduos, o importante já não é prote-
processo de irreversibilização da solução ger o ambiente dos resíduos nucleares
técnica que abriu caminho para uma qua- através de uma solução técnica, mas pro-
lificação da questão como política, tor- teger essa solução técnica do seu ambiente.
nando possível a sua apreensão por instân- Compreende-se, deste modo, o modo
cias políticas, ao invés de exclusivamente como a irreversibilidade pode constituir
técnico-científicas. O segundo processo um recurso político poderoso: a irreversi-
assenta, pois, no pressuposto de que os bilidade determina o quadro dos proble-
efeitos de transformação introduzidos pela mas a tratar e estabelece uma fronteira
politização dos resíduos nucleares pode entre o que é e o que não é problemático,
desencadear um processo, inverso ao pri- entre o que deve ser ou que não pode ser
meiro, de reversibilização de uma questão. objecto de tratamento político.
O problema da gestão dos resíduos nuclea- Se o processo de irreversibilização procura
res é abordado numa perspectiva histórica. pôr termo à carreira de um problema, o
Os dois processos descritos acima reen- processo de reversibilização, pelo contrário,
viam para duas temporalidades distintas procura reavivá-lo. De que forma? Pro-
da questão do tratamento dos resíduos curando retrospectivamente soluções que
nucleares em França, cada um deles dese- foram, então, afastadas, para alargar o le-
nhando os contornos de uma política par- que dos possíveis e ampliar as margens de
ticular. Até ao final dos anos 80, o pro- negociação. O processo de reversibilização
blema dos resíduos nucleares é marcado é, em suma, um processo de interrupção
pelo processo de irreversibilização. O que da fatalidade que procura arrancar deter-
não pode ser objecto de discussão escapa minados projectos ou decisões à irreversi-
ao debate público e à deliberação política, bilidade. No caso dos resíduos nucleares,
que pressupõe a possibilidade de revisões o que a dado momento foi considerado
e a existência de alternativas. Uma política como apartado da questão – a aceitação
que procura a irreversibilidade é, deste social do armazenamento geológico – é
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Em primeiro lugar convém advertir o leitor tor considera que têm surgido duas narra-
de que o livro de Gabriel Gatti, professor tivas que, em grande medida, coincidem
de teoria sociológica na Universidade do com diferentes gerações e suas experiências
País Basco e coordenador do Centro de nesse espaço: a narrativa que tenta reparar
Estudos sobre a Identidade Colectiva, não o sentido que foi destruído pela catástrofe,
aborda as temáticas da memória e da luta e aquela que abandona essa ideia e é cons-
política pela justiça na Argentina e Uru- truída partindo do sem sentido.
guai, apesar destes aspectos se encontra- Este livro apresenta-se como atípico do
rem presentes na obra. Neste sentido, o ponto de vista narrativo e esta é uma das
texto afasta-se dos temas e perspectivas suas principais virtudes, porque consegue
dominantes em relação à questão do terror realçar o seu imenso potencial teórico e
de Estado no Cone Sul latino-americano. analítico. Por um lado, desconstrói a cen-
O objecto de estudo deste livro é a identi- tralidade do autor e, por outro, interrela-
dade, um tipo de identidade individual e ciona de forma sugestiva o académico com
colectiva produto da modernidade. Mais o emocional. Estamos perante um livro que
concretamente, e olhando os efeitos do tem muito de retrato geracional daqueles
desaparecimento forçado de pessoas ao seu que, falando a partir de um lugar denso, o
redor, Gatti analisa a catástrofe que o de- campo do detido-desaparecido, renunciam
tido-desaparecido produz sobre essa iden- ao heroísmo para dar conta da possibili-
tidade e as narrativas que a sustentam, dade de viver nesse espaço e construir uma
procurando assim responder à seguinte identidade. O Gabriel Gatti sociólogo e
pergunta: que narrativas possíveis surgem investigador e o Gatti familiar de desapa-
no espaço do detido-desaparecido? O au- recido (filho de, irmão de…), depositário
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das memórias duma geração, estão sempre considerado como o primeiro “desapa-
em tensão e obrigam-no com frequência a recido”: o Estado passou da acção sobre
passar de entrevistador a entrevistado. Tal- “o Índio e o deserto” à actuação sobre
vez seja precisamente dessa tensão que “o subversivo e a subversão”. O autor
surge uma narrativa e uma forma de fazer adverte que o projecto dos jardineiros da
sociologia (“uma sociologia a partir do es- biopolítica desenvolvido na América La-
tômago”) que oferece ao leitor a oportuni- tina foi levado à “perfeição” no Cone
dade de seguir o percurso do autor no Sul pela via da conquista e destruição das
processo da sua investigação mediante cidades e populações indígenas, enquanto
numerosas notas do seu diário de campo noutros contextos, como por exemplo
que se encontram inseridas em caixas des- na região andina, a sua história contem-
tacadas, muitas das quais denotando essa porânea não pode ser contada sem a “tra-
tensão omnipresente entre o académico e dição pré-colonial”. Neste ponto seria
o emocional. Trata-se de uma narrativa que talvez mais apropriado falarmos de perma-
promove a polifonia através de quatro tex- nência das culturas “originárias” nas for-
tos breves de diferentes autorias inseridos mas contemporâneas e, portanto, da coe-
ao longo do livro, que dialogam com o xistência de diversas formas de pensar (ou
autor apresentando outros pontos de vista não) o indivíduo.
a partir desse campo do detido-desapare- Seguindo estas premissas, o autor estabe-
cido e fora dele. lece o que denomina como o paradoxo do
Os dois primeiros capítulos do livro cons- detido-desaparecido (que, no entanto, é
tituem o seu esqueleto teórico. O primeiro enunciado apenas no final do quinto capí-
é dedicado ao conceito de catástrofe en- tulo), segundo o qual o detido-desapare-
quanto factor analítico dos efeitos do desa- cido faz parte de um tipo de gestão de
parecimento forçado; o segundo descreve populações própria da ordem civilizadora
a devastação do binómio identidade/lin- moderna, sendo o desaparecimento for-
guagem promovida pelo Estado moderno çado aplicado aos produtos mais acabados
no contexto do Cone Sul latino-americano. desta ordem: o indivíduo moderno/racio-
Partindo do trabalho de diversos autores, nal foi despedaçado – o desaparecido
como Giorgio Agamben e Zygmunt Bau- “deixa” um nome sem um corpo – sendo
man, que reflectem sobre as relações entre portanto aniquilado. Encontramo-nos
Estado, política e ordem social na lógica perante uma proposta teórica vigorosa, que
moderna, e mais concretamente sobre as convida a uma análise comparada com
formas de entender o Holocausto nessa outros contextos latino-americanos. Quais
lógica, assim como da análise de Norbert as consequências deste quadro na análise
Elias sobre o processo de construção (civi- dos processos de conflito armado ocorri-
lização) do indivíduo moderno, Gatti es- dos nas últimas décadas em países como o
tabelece que para os contextos argentino Peru e a Guatemala, onde as comunidades
e uruguaio, o detido-desaparecido se en- rurais e as populações indígenas foram as
contra ligado à forma peculiar como foi mais afectadas? Mesmo correndo o risco
historicamente construída a identidade de generalizar, podemos notar que a polí-
nesses territórios: através da aplicação tica de arrasamento aplicada pelas Forças
obsessiva do projecto moderno que tem no Armadas peruana e guatemalteca teve
Estado jardineiro o seu executor principal. como objectivo o aniquilamento do índio
À luz deste processo histórico, Gatti ex- subversivo, que nos casos argentino e uru-
plora a ideia de que o indígena poderia ser guaio não corresponde a uma, mas a duas
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filhos serem mulheres camponesas, analfa- confortável nestas narrativas – que são a
betas, com um conhecimento rudimentar sua própria – porque se afastam da épica
ou inexistente do castelhano – em oposição política e porque, partindo da “experiência
às mães da Praça de Maio, brancas, urba- normalizada” que faz do vazio um lugar,
nas, letradas – como um aspecto funda- provocam a reflexividade em torno da im-
mental da negação pelo Estado, pela justiça possibilidade de reequilibrar a catástrofe.
e por parte da sociedade peruana destas Estas narrativas facilitam a auto-paródia,
práticas sistemáticas de violência. Certa- a piada e, simultaneamente, uma represen-
mente, por excesso ou por defeito, quando tação, quiçá mais crua, da catástrofe. Des-
se trata de reivindicar ao Estado a repara- tacamos a análise que Gatti faz das obras
ção do que foi perpetrado a partir do seu e discursos de vários artistas, como o fotó-
interior, o imaginário e os dispositivos mo- grafo Gustavo Germano e a cineasta Al-
dernos desdobram-se. Apesar de, em con- bertina Carri. As fotografias de Germano
textos como o peruano, podermos consi- retratam a ausência, mas não tentam pre-
derar que o terror de Estado não foi enchê-la nem imaginar como que seria o
exercido – tal como é enunciado no para- presente sem essas ausências. Contras-
doxo do detido-desaparecido – da forma tando com os discursos que tentam resta-
mais brutal sobre os seus produtos “mais belecer a temporalidade interrompida pelo
acabados”, a sua lógica de acção foi similar desaparecimento e recompor a cadeia da
e muitas das narrativas possíveis aí surgidas linhagem, estas narrativas não procuram
são idênticas às que acontecem no Cone esse reequilíbrio. Por outro lado, no filme
Sul, porque se encontram centradas no Los Rubios, Albertina Carri mostra a re-
binómio Estado/cidadão. Contudo, exis- construção da história da sua família atra-
tem duas distinções fundamentais. Por um vés dos testemunhos daqueles que conhe-
lado, no Cone Sul, o propósito dessas nar- ceram os seus pais e os companheiros de
rativas do sentido é restituir ao indivíduo militância. No entanto, ela não pretendia
a sua condição cidadã, enquanto noutros retratar essa história, mas a sua própria,
contextos se trata de tentativas de “produ- que não é mais do que uma “convivência
ção” de cidadania em territórios e para com a ausência”, como a de tantos outros
populações que só de forma precária foram da sua geração, reflectindo assim também
considerados como tal. Por outro lado, a sobre a distância e a incompreensão que
institucionalização das narrativas do sen- esta postura teve para muitos.
tido no Cone Sul, mais concretamente na Para aqueles que estejam familiarizados
Argentina, foi possível porque o Estado com o trabalho teórico de Gatti sobre a
assumiu como próprio o discurso dos fa- identidade colectiva, será fácil perceber
miliares dos desaparecidos, “depurado” neste contexto as ligações com a análise do
pela doutrina dos Direitos Humanos. Esta que tem denominado como “identidades
espécie de consenso não tem acontecido débeis” (Identidades Débiles. Una pro-
noutros contextos latino-americanos. puesta teórica aplicada al estudio de la iden-
Os últimos dois capítulos do livro são de- tidad en el País Vasco, Madrid: CIS, 2007).
dicados às narrativas que, ao contrário das Estarão estas narrativas do sem sentido a
anteriores, não buscam o equilíbrio. São ser construídas a partir de identidades dé-
narrativas que constroem identidade par- beis? De acordo com o que Gatti nos
tindo do sem sentido que se produz ao aponta assim é: são narrativas onde não se
habitar a catástrofe do campo do detido- pretende equilibrar as três componentes
-desaparecido. Gabriel Gatti está mais constitutivas das identidades (fortes) mo-
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dernas – o nome (próprio e único), o ter- Estamos perante um livro teórica e anali-
ritório (fechado e claro) e a história (com ticamente denso, estimulante, importante
uma origem unívoca) –, mas antes viver e para aqueles que pretendam compreender
construir a identidade na precariedade dos a partir doutro ângulo o terror de Estado,
vínculos entre estes três aspectos. Contudo, para além das questões da memória e da
será que dependem da institucionalização chamada justiça transicional. Trata-se de
do campo do detido-desaparecido promo- um livro ousado relativamente a certas
vido pelas narrativas do sentido, mais con- narrativas e abordagens sobre esta temática
servadoras, mais “modernas”, mas neces- imersas num discurso previsível demais, que
sárias? Percebe-se na despedida irritada o autor considera menos capazes para dar
com a qual finaliza o livro que Gatti res- conta doutras experiências. Porque Gabriel
ponde afirmativamente a esta última ques- Gatti nunca abandona a perspectiva a par-
tão. Nessas derradeiras páginas Gatti dá tir da qual escreve, essa “sociologia a partir
conta do seu desconforto com o que con- do estômago” é uma forma de fazer socio-
sidera “o sigilo uruguaio”, isto é, com o logia que converte este livro numa obra
facto da realidade do detido-desaparecido emotiva, que se alimenta da necessidade
não estar ainda assumida nesse país e, em que muitos dos que habitam no espaço de
consequência, não serem assumidas as di- detido-desaparecido sentiram – como des-
mensões da acção do Estado uruguaio. Por creve Daniel Gatti no seu texto inserido na
outro lado, o “excesso argentino”, apesar introdução – de rebelar-se contra o estado
dos seus efeitos conservadores, patrimo- transitivo de vítima, e contra os emble-
nializantes, estatocêntricos – ou mais pre- mas e militâncias que “deviam” carregar.
cisamente devido a eles –, é um tom justo
para o autor. Silvia Rodríguez Maeso
Shapin, Steven (200), The Scientiic Life: A Moral History of a Late Modern
Vocation. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 4 pp.
O que é a vida científica, que tipo de pes- melhante nas virtudes pessoais. The Scien-
soa é o cientista e que virtudes e capacida- tific Life pode ser sintetizado com recurso
des mobiliza para aumentar o seu poder ao comentário de David Edgerton, autor
financeiro e de influência, são algumas de The Shock of the Old, apresentado na
perguntas a que Steven Shapin, Professor capa do livro: os mundos da tecnociência
de História da Ciência na Universidade de actual, onde assumem nova importância o
Harvard, tenta responder no seu mais re- capital de risco, a investigação aplicada ou
cente livro, intitulado The Scientific Life: as relações universidade-empresa, não são
A Moral History of a Late Modern Vocation. as antíteses sem alma, excessivas em rotinas
Os cientistas são especialistas respeitados, e em burocracias, do ideal científico aca-
legitimados, a quem é confiada a tarefa de démico – eles contêm em si facetas ade-
analisar e a compreender os fenómenos da quadas a um contexto de incerteza em que
realidade natural e social. A visão actual é a inovação é essencial. Shapin acaba por
que os cientistas não são nem melhores afastar-se, deste modo, quer da visão ro-
nem piores que ninguém e que o aumento mântica da ciência (que defende as virtudes
das competências técnicas não é obrigato- “naturais” e o carácter transcendente do
riamente acompanhado por aumento se- cientista), quer da desilusão na ciência
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presa, têm de saber lidar com pessoas di- tes investigadores querem evitar ao irem
ferentes, perceber que existem várias hie- para a indústria. O carisma dos empreen-
rarquias, equipas que se devem respeitar e dedores é um aspecto central do seu su-
que o ambiente é mais ditatorial. Pessoas cesso, o que recupera a importância das
que não respeitem estas lógicas não se dão características pessoais.
bem na indústria. Mas, como o autor nota, O capítulo 8, “Visions of the Future:
esta visão refere-se essencialmente ao Uncertainty and Virtue in The World of
organization researcher dos anos sessenta e High-Tech and Venture Capital”, apre-
não tanto aos novos modelos assentes em senta os futuros da tecnociência ligando o
start-ups de base de conhecimento. A actua- capital de risco às decisões de investimento
lidade da tecnociência faz-se com uma em empresas de base científica e pro-
grande heterogeneidade moral, não há es- curando perceber o processo de escolha
paço para pensar que só existe um local, a das tecnologias, mercados e pessoas que
universidade, onde se vive a “boa vida poderão com mais probabilidade gerar
científica” (242). Os motivos do cientista- retornos financeiros. A grande incerteza
-empreendedor para seguir esta via são carece de decisões e juízos que tomam
ilustrativos de que a “boa vida” também formas pessoais: as decisões sobre em que
acontece na empresa. Em primeiro lugar, é empresa investir tornam-se dependentes
necessária vontade de fazer dinheiro (e não da valorização que se faz das pessoas-
ver o lucro como um pecado). O ambiente -chave a que está associado determinado
empresarial é ideal para o pensamento livre projecto. O autor apresenta exemplos de
e para gerar conhecimento científico que como actualmente se transformam as
tenha lugar no mercado e que possa ajudar ideias com base em ciência em potenciais
os outros. Não resulta afinal daqui ne- negócios. Plataformas como as assegura-
nhuma incompatibilidade dinheiro-ciên- das pelos centros de transferência de tecno-
cia, mas até alguma complementaridade. logia das universidades são elementos es-
O cientista-empreendedor pretende evo- senciais para apoiar o lançamento de ideias
luir rapidamente, ter acesso à decisão e a com potencial mas ainda em processo de
níveis remuneratórios mais interessantes amadurecimento. Essas plataformas pro-
para o que considera serem as suas capa- porcionam a proximidade entre empreen-
cidades, algo que é inviabilizado pela lógica dedores, investidores, parceiros comer-
da academia, onde o tempo e a hierarquia ciais e técnicos que podem interessar-se
são aspectos centrais na valorização do in- pelo projecto, promovendo o contacto
divíduo. As entidades financiadoras da com saberes diferenciados, ligando o
investigação, com o seu conservadorismo, conhecimento ao seu potencial de mer-
são também limitadoras de propostas me- cado e partilhando aspirações e virtudes
nos em linha com os objectivos dos main- prezadas. Apesar de os investidores de
streams disciplinares. A competição exces- risco não apreciarem a falta de visão para
siva pelos apoios e a exigente rotina de o negócio ou as limitadas capacidades de
“publish or perish” são outras das desvan- gestão de alguns investigadores, fica bem
tagens da universidade face à realidade patente a sua admiração por aqueles que
empresarial, onde existe maior liberdade investem na compatibilização destas no-
para focar as investigações no que real- ções com o conhecimento técnico da sua
mente interessa na óptica da empresa. área. Quer os venture capitalists quer estes
A obrigatoriedade e peso excessivo da novos cientistas consideram-se as elites
carga lectiva também são aspectos que es- que fazem avançar o mundo (300).
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No epílogo, “The Way We Live Now”, é ção desinteressada com base nos arranjos
ilustrado como o mundo da tecnociência institucionais actuais e para se achar que
da modernidade tardia é complexo e com- existe diferença substancial entre a “boa
posto por actores de diferentes esferas: vida científica” na academia e na indús-
cientistas, engenheiros, gestores de empre- tria. Ameaças de interferência política, de
sas importantes, business angels, capital de imperativos de comercialização, excessos
risco, agentes de propriedade industrial, de profissionalização excessiva dos cien-
gestores de transferência de tecnologia, tistas e de inflexibilidade das ortodoxias
responsáveis das universidades e dos cen- das disciplinas sempre existiram na ci-
tros de investigação, pessoas que se habi- ência – e vão persistir. A evolução que a
tuaram a transformar o conhecimento em ciência sofreu foi muito intensa, mas não é
artefactos, riqueza e poder (306). Nestes necessário pensar que as virtudes do ideal
grupos, o networking assume importância de ciência académica não estão também
central como processo de ligação social. presentes noutras vertentes da ciência
O sucesso está muito condicionado pelas na modernidade tardia. A diversidade
redes sociais nas quais se participa e na- de ambientes institucionais nos quais se
quelas a que se consegue obter acesso. Os concretiza a investigação actual e futura
actores não funcionam em rede total, mas faz emergir a importância da vocação e
dividem-se em várias sub-redes de afinida- das virtudes pessoais. Citando Shapin
des e familiaridades pessoais. Esta é uma (18), “judgments of business opportuni-
realidade que (com as devidas especifici- ties and technologies proceed importantly
dades) é cada vez mais presente na situação through judgments of familiar people and
científica portuguesa, onde começam a their virtues”. Afinal as pessoas conti-
emergir este tipo de redes que tentam ligar nuam a contar, as suas virtudes contam.
a universidade e a empresa, tornando mais E a razão porque contam é que, devido
aceitável a ciência que se relaciona com a à radicalidade da incerteza na moderni-
indústria e com o mercado. Um exemplo dade tardia, é importante ter aspectos
português, com paralelismos nos encontros duráveis nos quais se possa confiar (303).
descritos por Shapin, é a experiência das pla- Esta familiaridade é conseguida através
taformas regionais do Programa FINICIA, da redescoberta das virtudes, que não
uma iniciativa desenvolvida pelo IAPMEI estão afinal perdidas, pertencendo igual-
(Instituto de Apoio às Pequenas e Médias mente, ou especialmente, como destaca
Empresas e à Inovação) com o objectivo Shapin, ao mundo de fazer os mundos
de facilitar o acesso ao financiamento a que hão-de vir.
ideias empresariais de base de conheci- Uma das discussões mal resolvidas com a
mento. O objectivo explícito da iniciativa apresentação de Shapin acaba por ser qual
é garantir financiamento para a criação de o papel da moral na ciência. Que o mundo
start-ups inovadoras, mas muito mais tem da tecnociência não é ausente de valores é
sido alcançado. Estas plataformas, ao in- incontestável, mas serão os valores hoje
cluírem actores provenientes de todos os emergentes e centrais na vida do cientista
espectros da tecnociência, partilharam in- adequados a uma ciência moral? Um pa-
formação, ganharam confiança, densifi- radigma centrado na importância da em-
cando as relações existentes entre diferen- presa individual, do carisma e do individu-
tes esferas institucionais. alismo, no imediatismo, no lucro, no
Steven Shapin argumenta que não há ra- resultado evidente, onde os limites éticos
zão para se rejeitar o ideal da investiga- ficam muitas vezes por discutir, origina
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uma ciência moralmente ambígua. Em ponto. É o caminho para onde ela parece
épocas de crise na economia, na sociedade dirigir-se com cada vez mais vigor. O de-
e nos valores, fica muito por dizer acerca bate fica em aberto...
de ser este o caminho certo para a ciência.
Mas Shapin não tem contestação num Hugo Pinto