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INTRODUÇÃO
Aqui, nos confins do mar de gelo, ocorreu no início do último inverno uma
enorme e traiçoeira batalha entre os Arimaspienses e os Nephelibatos.
Então, congelaram-se no ar as palavras, os gritos de homens e mulheres,
o barulho das massas e todos os terrores do combate, os choques das ar-
maduras, os bardos, o resfolegar dos cavalos. Agora, passado o rigor do
inverno, chegada a serenidade temperada do bom tempo, elas se derretem
e se ouvem. ‘Por Deus! Eu acredito’, disse Panurgo, ‘Mas não poderíamos
ver algumas delas?’ [
] ‘Aqui’, respondeu Pantagruel, ‘aqui estão umas que
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ainda não descongelaram’. Então, ele derramou para nós no convés, uns
punhados de palavras congeladas que nos pareceram como pastilhas ar-
redondadas de cores diversas. Vimos ali palavras de provérbios, palavras
cobreadas, palavras azuis, palavras escuras. Elas, quando se aqueciam em
nossas mãos, derretiam como neve e as ouvíamos realmente, mas não as
compreendíamos, pois era uma língua bárbara.
François Rabelais (sec. XVI), livro IV de Pantagruel, tradução livre.
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1 Tomo como exemplo o livro Les harmonies du son et l’histoire des instruments de musique (1878)
do cientista e professor francês Jean Pierre Rambossom. O texto busca apresentar o estado da arte
de uma ciência da música, abordando em seus diversos capítulos temas como história da música,
acústica e descrição de instrumentos, mas também dedicando uma longa exposição sobre a música
a partir dos pontos de vista da higiene, da medicina, da moral e da nostalgia.
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em torno dos fenômenos acústicos, mas que vão muito além deles. Se é
possível delimitar com relativa precisão o fenômeno sonoro em termos fí-
sicos, abarcar as diferentes dimensões em que os sons agem é, por outro
lado, algo desafiador. Ainda que se faça um esforço de catalogação das
possibilidades desse campo - comunicacional, sensorial, musical, lúdico
-, teremos sempre um levantamento parcial. Além disso, o som, é per-
cebido por nós sempre numa relação com o resto dos nossos sentidos.
Portanto, somente numa perspectiva didática ou explicativa posso falar
sobre o som daquela música ou o som daquele motor: para mim, o som da
música não se desconecta da própria música, não existe fora da rede de
coisas, de significados e de experiências em que a música existe. O som é
o que detona essas conexões, é o que dá a elas um pouco de objetividade,
de corpo. Fora disso, a existência do som é ínfima, reduzida ao seu cará-
ter oscilatório e de energia acústica.
O sucesso das ciências modernas talvez tenha contribuído para a con-
solidação de um discurso um tanto reducionista sobre o fenômeno sono-
ro. A acústica (com a contribuição de subdomínios, como a psicoacústica
e de outras disciplinas, como a fisiologia) conduziu boa parte do discurso
acerca do som. Pitágoras já refletia sobre as razões entre as alturas de
sons diferentes e sobre o conceito de série harmônica e realizou experi-
mentos para desvendar as relações que governavam a harmonia e as es-
calas. Mais tarde, Aristóteles (384-322 a.C.) especulou sobre a natureza
ondulatória do fenômeno sonoro. Pouco antes da era cristã, Vitrivius (c.
80–70 a.C - c. 15 a.C.) deu início à acústica arquitetônica no livro V de
seu Tratado de Arquitetura, dedicado ao imperador Cesar Augustos, ao
discutir interferências, ecos e reverberação na construção de edifícios.
O arquiteto romano indicou o uso de echea (ecoadores), vasos de bronze
construídos com tamanhos proporcionais para ressaltar ressonâncias de
modo a enfatizar e harmonizar os sons produzidos pelos cantores2. Gali-
leu Galilei (1564–1642) e Marin Mersenne (1588–1648) descobriram os
fundamentos das leis que regem as vibrações das cordas (já intuídas por
Pitágoras) e Isaac Newton (1642–1727) consolidou as bases da acústica
física em seus Principia (1687). No século XIX dois nomes consolidam
definitivamente a disciplina da acústica: o físico alemão Hermann von
Helmholtz (1821–1894), que escreve Die Lehre von den Tonempfindun-
gen als physiologische Grundlage für die Theorie der Musik3 (1863) unin-
do conceitos de acústica, psicoacústica, fisiologia e música, fornecendo
2 Aliás, o eco é a primeira forma de reprodução sonora, muito antes de surgirem as possibilidades
de gravação. O eco é uma forma primitiva de associar o som a algo material, neste caso os espaços
e superfícies que o refletiam; a importância do eco, perpassa nossa cultura, da mitologia grega à
psicanalise, tudo muito antes de chegar aos efeitos nos estúdios de gravação.
3 Em português: Sobre as sensações do tom como base fisiológica para a teoria da música.
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4 O som foi usado como arma ou instrumento de tortura em diversos contextos. A esse respeito ver,
por exemplo, os textos de Steve Goodman, Sonic Warfare: sound, affect, and the ecology of fear
(2012); Suzanne Cusik, Music as torture (2006) e You are in a place that is out of the world (2008).
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das civilizações. Isso nos leva à segunda razão, que pode ser localizada
num fato muito simples: enquanto aquilo que vemos está geralmente
impresso em algo que se configura materialmente, o que ouvimos é de
natureza energética. Ora, é muito mais fácil para nós lidarmos com a
concretude e a permanência da matéria, do que com o aspecto intangível
e volátil da energia. Neste sentido, concordamos com Rodolfo Caesar
(2012) quando diz que aquilo que percebemos como som é sempre uma
imagem. De fato, assim como aquilo que vemos é a impressão, ou ima-
gem visual, causada pela luz refletida pelos objetos, o que escutamos é
a imagem sonora causada pelas ondas acústicas emitidas e refletidas
pelos objetos.
Mas se podemos associar uma concretude àquilo que vemos, se po-
demos fixar, transportar, tatear as coisas que nos oferecem imagens vi-
suais, ao contrário, o som não é transportável, não se fixa6. Por não ser
fixável, ele não permite a comparação, não promove a documentação. Ele
está ligado a duas questões relevantes. Uma é a presença (só escuto o
som que se produz diante de mim) e a outra é a sua dependência da me-
mória. A relação entre o som e a mnemônica também cria uma relação
de subjetividade. O que eu guardo do som, só eu posso guardar e resgatar
a partir da minha própria memória. Mesmo a música teve que inventar
uma tecnologia mnemônica, a notação, da qual, pelo menos a música de
concerto ocidental tornou-se cada vez mais dependente. Sem a notação,
ela fica condicionada a uma capacidade extraordinária de memória. Isso
é muito diferente do que ocorre com a visão, em que a condição material
das coisas dá suporte àquilo que vemos, e o que vemos está sempre im-
presso em algo material. Isso permite o registro e a permanência no tem-
po, permite que as coisas possam ser localizadas e resgatadas no espaço.
Eu guardo aquilo que eu vejo nas coisas que estão fora de mim. Mas o
som só pode ser retido dentro de mim. Fora do tempo de sua realização, o
som depende de uma testemunha. É a testemunha, o sujeito, que carrega
aquilo que o som pode dizer. Portanto, o som é sempre subjetivo e está
fortemente ligado à ideia de presença.
Não é portanto de se estranhar que a história do som sofra mudanças
acentuadas toda vez em que foi dado um passo para apreender e contro-
lar sua natureza energética e de algum modo associá-la a algum tipo de
suporte material. Esse processo passa pelo estágio da compreensão da
natureza sonora, com o avanço do conhecimento da acústica, e segue pela
invenção de ferramentas de representação, como a matemática (inicia-
6 Mas de certa forma, se toca. A cóclea, dispositivo central do sistema auditivo é, evolutivamente,
derivada do sistema epitelial. Assim como o tato, o sentido da audição registra variações de
pressão, mas numa escala espetacularmente pequena. Apenas para dar uma ideia, nosso sistema
auditivo é capaz de detectar variações que correspondem aproximadamente a 1 bilionésimo da
pressão atmosférica.
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7 Sobre história dos tone tests ver o artigo de Emily Thompson (1995), Machines, Music, and the
Quest for Fidelity: Marketing the Edison Phonograph in America, 1877-1925.
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8 Sound branding e sound design são termos recentes que se referem justamente à modelagem
de sons em contextos comunicacionais, culturais, comerciais e de publicidade. Enquanto o sound
design ficou fortemente associado ao trabalho de criação sonora na indústria cinematográfica, o
sound branding refere-se mais diretamente à criação de marcas sonoras que podem ser associadas
a produtos, empresas, instituições ou ideias.
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Referências Bibliográficas
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