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VÁRIOS AUTORES
CONCILlUM/150
1979/10:
MORAL

-o objetivo do presente fascículo de Concilium não é abrir uma


discussão nem fazer um balanço crítico-positivo ou negativo
.',
sobre a questão da dignidade dos "sem-dignidade n. O estudo
de vinte séculos de cristianismo poderia apresentar um qua-
dro bastante heterogêneo de fidelidades e de infidelidades.
O mesmo poderia acontecer com a atitude das Igrejas hoje.
O objetivo desta Revista é mais imediato: dar um novo vigor
e uma luz mais esclarecedora à decisão dos fiéis de viver do
mesmo Espírito que seu Senhor, nesta questão. Para tratar teo-
logicamente a questão da dignidade dos "sem-dignidade", de-
ve-se fazer uma opção epistemológica, imposta pela própria na-
tureza do assunto. Os diferentes artigos deste fascículo foram
escritos por autores que pertencem às categorias em questão.

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VOZES E.BIANCHI
B. BLUMENKRANZ
E.DUSSEL
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D.SINGLES
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+ VOZES
A DIGNIDADE
DOS OPRIMIDOS

J. Pohier/Dietmar Mieth
E. Bianchi
J. Sobrino
J. Eckert
C. Pietri
B. Blumenkranz
E. Dussel
L. Proaiio
D. Singles
F. Clauer
M. Dhauamony
G. Rasoli/L. Tomasi
M. Hebga
E. McDonagh

._E!)
I- LIVRARIA EDIÇOES PAUUNAS 79/10:
-PR
SUMARIO

EDITORIAL
J a c que s P o h i e r/D i e t f i a r M i e t h - A dignidade
de Deus se manifesta através da dignidade dos «sem-
dignidade'» 3
ARTIGOS

A. Dados bíblicos
E TI Z o B i a TI c h i - O 'estatuto dos sem-dignidade no
Antigo Testamento 8
J o TI Sob r i TI o - Relação de Jesus com os pobres e
marginalizados 18
J o s t E c k e r t - A realização da Fraternidade nas pri-
meiras comunidades cristãs 28

B. Alguns exemplos históricos da prática cristã com relação aos


«sem-dignidade»
C h a r I e s P i e t r i - Os cristãos e os escravos nos pri-
meiros tempos da Igreja (séculos II e III) 37
B e r TI h a r d B I u f i e TI k r a TI Z - Os judeus na Idade
Média 47
E TI r i que D u s seI - A cristandade moderna diante
do outro - Do Índ:o «rudo» ao «bon sauvage» 56

C. A prática cristã atual de «nem judeu nem grego, nem escravo


nem homem livre, nem homem nem mulher» (GI 3,28)
L e o TI i das E. P r o a fi o - A Igreja e os pobres na
América Latina 69
D o TI TI a S i TI g I e s - A Igreja face às mulheres: sobre-
vivência de uma discriminação 79
F r a TI c i s c o C I a ver - As comunidades cristãs e as
minorias étnicas ou tribais 88
M: a r i a s usa i D h a v a f i o TI Y - CristianisIJII.o e socie-
dades baseadas num sistema de castas - O caso da india 97
G i a TI f a u s t o R o s o I i/L Y d i o T o f i a s i - Atitude das
ricas sociedades cristãs do Ocidente para cam 'Os imigrantes 107
M e i n r a d H e b g a - Igrejas dignas e Igrejas indignas 118

D. A dignidade de Deus e a dignidade dos «sem-dignidade»


E TI d a M c D o TI a g h - A dignidade de Deus ea dignidade
dos sem-dignidade 126
Jacques Pohier/Dietmar Mieth

EDITORIAL
A DIGNIDADE DE DEUS SE MANIFESTA ATRAV~S
DA DIGNIDADE DOS "SEM-DIGNIDADE"

Começa-se a falar no plural das teologias do Novo Testamento


e mesmo das cristologias do Novo Testamento, assinalando suas
diversidades ou até suas divergências. Mas entre os numerosos
pontos de concordância, há um - especialmente significativo -
que se refere a um aspecto do ministério e do comportamento de Jesus
que foi desconcertante, tanto para seus discípulos como para seus
detratores: trata-se do modo como Jesus tratou aqueles e aquelas
que a sociedade civil e religiosa de seu tempo considerava sem a
dignidade exigida para ter direito à salvação de Deus e às atenções
de seu enviado. O comportamento de Jesus com os pecadores e com
todos os rejeitados pela sociedade e pela religião ou mantidos à
margem atraiu-lhe a reprovação de todos os que se consideravam
como sendo os donos da dignidade moral, civil, religiosa e que lhe
controlavam minuciosamente o respeito. Uma das causas da morte
de Jesus foi haver ele colocado em primeiro lugar aqueles que só
tinham direito ao último, porque isso era tão blasfematório como
o que ele dizia sobre Deus.
De fato, o comportamento de Jesus com relação aos «sem-dig-
nidade» não era apenas questão de uma generosidade ou de uma
filantropia excepcionais: foi antes por causa do que era o seu Deus
que Jesus queria que os pobres e os pecadores tivessem direito à
dignidade que seu Pai lhes reconhecia. Para Jesus, a dignidade de
seu Pai se manifestava através da dignidade dos «sem-dignidade».
Eis o que não lhe perdoaram os que sempre pretendem saber mais
sobre Deus e sobre o homem, porque ocupam os mais altos escalões
das dignidades sociais ou religiosas. Eis o que Paulo compreendeu
numa reviravolta de sua problemática de fariseu que não é menos
importante que a da justificação pela fé ou da gratuidade da sal-
vação (mas todas procedem da mesma reviravolta a respeito de
Deus): «Não há judeu nem grego; não há escravo nem homem

3 [1175]
livre; não há homem nem mulher: porque todos vós sois um em
Cristo Jesus» (GI 3,28).
A dignidade dos «sem-dignidade» não é, portanto, uma questão
sem importância da moral cristã e o fato de Deus manifestar sua
dignidade na dignidade dos «sem-dignidade» não é uma questão
insignificante da revelação de Deus por e em Jesus Cristo. Também
não se trata de uma questão sem importância no que se refere à
fidelidade dos cristãos a seu Senhor: pelo contrário, é um ponto
decisivo para a avaliação da autenticidade com a qual a comunhão
dos fiéis, a Igreja, Se deixa dirigir pelo Espírito de seu Senhor e
caminha verdadeiramente em seu seguimento.
Facilmente se reconhece a verdade de tudo isto quando se
trata de declarações de princípio a fazer no papel ou na tribuna.
Mas nos fatos, todos os mecanismos econômicos, culturais, sociais
- e freqüentemente religiosos - se opõem ao reconhecimento da
dignidade dos «sem-dignidade». As primeiras fileiras são bem pro-
tegidas e não convém admitir muita gente nelas. Seguir a Cristo
nesta atitude impõe a obrigação de lutar contra todas aS potências
do mundo, no sentido joaneu e paulino dessas expressões. E às vezes
até morrer pela causa, como Jesus teve que morrer. E nós, cristãos,
nós, Igrejas, em que ponto nos encontramos nesta atitude fora da
qual é inútil invocar o nome de Jesus?
O objetivo do presente fascículo de Concilium não é abrir uma
discussão nem fazer um balanço sobre esta questão. O estudo de
vinte séculos de cristianismo poderia apresentar um quadro bas-
tante heterogêneo de fidelidades e de infidelidades. O mesmo po-
deria acontecer com a atitude das Igrejas hoje. Nosso objetivo é
mais imediato: dar um novo vigor e uma luz mais esclarecedora à
decisão dos fiéis de viver do mesmo Espírito que seu Senhor, nesta
questão.
Há, porém, nesta matéria, uma armadilha difícil de evitar.
Conforme demonstra Dom Francisco Claver, em seu artigo, com
todo vigor, fala-se freqüentemente da dignidade dos «sem-digni-
dade» como se isto fosse algo que eles não possuem ainda e que
lhes deveríamos proporcionar. Neste sentido, cabe, evidentemente,
àqueles que já são os detentores da dignidade partilhá-la miseri-
cordiosamente com aqueles que ainda não a possuem. Ora, não é
isso. Não se trata de tal dignidade no cristianismo. Todos já pos-
suem esta dignidade por direito e por princípio, ou antes, por vontade
de Deus. É porque Deus é Deus como é, que os chamados «sem-
dignidade» possuem esta dignidade que Deus lhes reconhece. Não

4 [1176J
é questão de proporcioná-la a eles e os que se consideram dignos
nada têm a lhes dar. Porém devem lutar contra tudo o que se opõe
- neles como ao redor deles - ao reconhecimento desta dignidade
recusada aos «sem-dignidade». Sua tarefa não consiste em dar sua
dignidade aos «sem-dignidade», mas em reconhecê-la, dar-lhe a
palavra, abrir-lhe a porta, servi-la.
Segue-se daí que, para tratar teologicamente a questão da
dignidade dos «sem-dignidade», deve-se fazer uma opção epistemo-
lógica imposta pela própria natureza do assunto. Não é aos que são
considerados os mais dignos que devemos pedir que tratem do
assunto, mas aos que pertencem, de uma ou de outra forma, ao mun-
do dos «sem-dignidade». Decidimos que - na medida do possível
- os diferentes artigos deste fascículo fossem escritos por autores
que pertençam às categorias em questão.
O artigo sobre a Igreja e os pobres na América Latina foi
escrito por um sul-americano considerado pelos pobres do seu con-
tinente como seu irmão. Sentimo-nos felizes e honrados de ser ele
um bispo (Dom Leonidas Proafio). O artigo sobre a Igreja face às
mulheres foi escrito por uma mulher (Donna Singles). O que trata
da atitude das comunidades cristãs a respeito das minorias étnicas
foi escrito por uma figura pertencente a uma minoria étnica
das Filipinas, cujos membros devem lutar até à perseguição diante
de uma maioria, no entanto católica, para que seja reconhecida a dig-
nidade dessas «tribos»: também neste caso nós, cristãos, alegramo-
nos e orgulhamo-nos por tratar-se de um bispo (Dom Francisco
Claver). O artigo sobre o cristianismo e as sociedades fundadas
num sistema de castas foi escrito por um indiano nascido neste
mesmo sistema (Mariasusai Dhavamony). O que trata da atitude
das sociedades ocidentais ricas com relação aos imigrantes foi escrito
por dois imigrantes que atualmente se ocupam com este problema
no país mais rico, tanto em bens materiais como em imigrantes:
os Estados Unidos (Gianfausto RasoU e Lydio Tomasi). E o artigo
sobre as relações entre Igrejas «dignas» e Igrejas «indignas» foi
escrito por um cristão africano (Meinrad Hebga).
Porém esta necessidade epistemológica não se limita aos arti-
gos em que pretendemos apresentar alguns aspectos da prática
cristã atual do adágio paulino: «nem judeu nem grego; nem escravo
nem homem livre; nem homem nem mulher». Esta mesma necessi-
dade epistemológica se impõe também para os artigos puramente
históricos, na aparência, ou exegéticos, ou teóricos. Porque o modo
de falar dessas coisas é diferente, segundo o lado da barreira em

5 [1177]
que nos encontramos. Neste ponto também decidimos privilegiar os
autores que, de uma ou de outra forma, se encontram do mesmo
lado dos indignos de quem devem falar.
a artigo sobre a atitude do cristianismo medieval a respeito
dos judeus não foi escrito por um cristão, mas por um judeu
(Bernhard Blumenkranz), cuja competência científica é reconhe-
cida internacionalmente. a artigo sobre a atitude dos cristãos a
respeito dos «selvagens», na época da colonização da América, foi
escrito por um argentino, bem conhecido tanto por sua competên-
cia científica como por seu engajamento na teologia da libertação
e sua prática (Enrique Dussel).
Ninguém poderá reprovar Charles Pietri por não ser um es-
cravo da Antiguidade, mas também não se pode negar que, na
impossibilidade de encontrar um escravo, não podíamos encontrar
um especialista mais competente para tratar da atitude do cristia-
nismo antigo face à escravidão. Quanto ao artigo sobre o compor-
tamento de Jesus com relação aos pobres e aos marginalizados e seu
caráter fundador para a moral cristã, muito nos alegra e orgulha
ter sido ele escrito por um exegeta de um país em que a Igreja -
leigos, religiosos ou religiosas, padres e bispos - é perseguida por
causa de sua defesa dos «sem-dignidade» (Jon Sobrino).
As dificuldades encontradas para reunir um grupo de autores
proveniente dos cinco continentes nos forçaram a declinar por duas
vezes do nosso partido metodológico: os leitores não o lastimarão,
porque aproveitarão da competência de Enzo Bianchi para ver que
já a originalidade do Deus da Antiga Aliança havia fundado um
estatuto original para os «sem-dignidade». E Jost Eckert demons-
tra bem as dificuldades das primeiras comunidades cristãs em pôr
em obra o ensinamento de Jesus: a famosa «unidade maravilhosa»
da primeira comunidade deve passar por uma séria desmitologiza-
ção. Quanto a Enda McDonagh, apenas evocaremos, por amizade
e discrição, um dos títulos que o habilitam a falar da dignidade de
Deus e da dignidade dos «sem-dignidade»: o fato de pertencer a
uma comunidade dilacerada por afrontamentos onde o cristianismo
infelizmente é utilizado dos dois lados.
a objetivo deste fascículo, como já o dissemos, não é fazer
um balanço crítico - positivo ou negativo - da fidelidade da
Igreja-instituição e dos fiéis ao longo dos séculos, ao Espírito e ao
comportamento de seu Senhor no que se refere aos «sem-dignidade».
Todavia, não podemos evitar a pergunta: Que imagem da Igreja
e dos cristãos pode resultar dos diferentes artigos deste número?

6 [11781
No final das contas, é a imagem evangélica do campo onde nasce
o trigo e o joio. Na Idade Média houve a terrível perseguição de
1096, mas houve também João, bispo de Espira, que quis proteger
os que escaparam «como um pai vela por seu filho». No século XVI
houve Sepúlveda, mas houve, também, Las Casas. Dom Proano não
hesita em dizer que na América Latina há duas igrejas: a igreja
rica e aliada aos poderosos e a outra que se identifica com os
pobres. Dom Claver mostra a luta corajosa - e perigosa - das
comunidades cristãs das minorias étnicas das Filipinas e M. Dha-
vamony mostra que certas comunidades cristãs da índia se deixam
às vezes contaminar pelo sistema de castas, embora o reprovem.
G. Rosoli e L. Tomasi mostram bem o esforço considerável da San-
ta Sé e das conferências episcopais em favor dos imigrantes, mas
é claro que esses apelos não seriam necessários se os fiéis das igre-
jas locais abrissem as portas ao imigrante. O trigo e o joio ...
Mas não nos cabe fazer a triagem, sabemo-lo bem. Como também
sabemos que cada um de nós deve cultivar ao máximo seu próprio
campo, semeando nele a boa semente.
Portanto, é com uma preocupação que visa o nosso campo
mais imediato - isto é, a revista COncilium - que terminaremos
este editorial. Concilium é uma revista feita nas igrejas «dignas»
por teólogos «dignos» (o que não quer dizer que jamais sofreram
indignidades ou que sempre se dessolidarizaram suficientemente
delas). Já chegou a hora de as igrejas da Ásia, da África e da
América Latina se libertarem e não serem mais colônias teológicas
da Europa e da América do Norte. A revista Concilium nasceu com
o Vaticano II e tomou como nome um acontecimento não estranho
a seus fundadores. Há dois anos, em companhia de teólogos norte-
americanos, nossa equipe de redação Se interrogava: Será preciso
um novo concílio, o Vaticano III?
Seja qual for a resposta, uma coisa é certa: os «sem-dignidade»
devem reconquistar a palavra à qual têm direito por vontade de
Deus. Ê preciso que reencontrem o seu lugar próprio na Igreja: o
primeiro. Quando virá o concílio dos «sem-dignidade»? Não seria
este, afinal, um concílio verdadeiramente «ecumênico»?
Se Concilium, ao abordar hoje esta questão e ao optar pelo
enfoque epistemológico que se impunha, contribuísse, por modesta-
mente que fosse, para o advento desta reconquista da palavra pelos
«sem-dignidade» na Igreja, então nossa revista não terá sido com-
pletamente indigna do belo nome que ostenta.
Tradução de
Lúcia Mathilde Endlich Orth

7 [1179]
Enzo Bianchi

o ESTATUTO DOS SEM-DIGNIDADE


NO ANTIGO TESTAMENTO

A consclencia e a responsabilidade SOCIaIS dos cristãos cresce-


ram, sem dúvida alguma, nestes últimos decênios, a ponto de pro-
vocar a elaboração de «teologias políticas» e até de «teologias da
revolução». Ê natural que a leitura da Bíblia tenha sentido a in-
fluência desse rumo que tomaram as coisas, e que a pesquisa escri-
turística se tenha dedicado com profunda atenção às estruturas e
às relações sociais existentes no povo de Deus da primeira aliança
e na Igreja do Novo Testamento. O anúncio da mensagem evangélica,
à medida que se vai purificando e ganhando audácia e clareza,
torna-se principalmente proclamação da cruz e da libertação que
ela acarreta: cruz significa pobreza, renúncia, abaixamento radical
para confundir a sabedoria do mundo e revelar a sabedoria de
Deus (cf. 1Cor 1,17 e 2,5). Os «sem-dignidade», os pobres, os
oprimidos surgem, por direito, como os primeiros clientes da men-
sagem de libertação, uma vez que encontraram nos profetas e na
legislação social do povo de Israel defesa e proteção e se viram
assimilados em Jesus de Nazaré, que não só atuou em defesa dos
«sem-dignidade», mas quis ser totalmente solidário com eles. Jesus,
com efeito, de rico que era se fez pobre; embora tivesse fonna
e dignidade, se fez sem forma e escravo! (cf. 2Cor 8,9 e FI 2,6s).
Nosso artigo se move, portanto, em um terreno já muito explorado
pelos exegetas e pelos teólogos e mostra como também em uma
1

perspectiva nacionalista e de estruturas sociais rígidas se pode


encontrar um estatuto dos «sem-dignidade em Israel». No entanto,

1. Cf. J. L. Ve s c o, Les lois sociales du Livre de L'Alliance, em


Revue Thomiste 68 (1968), 241-264.
C. Van L e e u w e n, Le développement du sens social en Israel
avant l'ere chrétienne, Assen 1955.
H. Van O y e n, Ethique de l'Ancien Testament, Genebra 1974.
H. W. W o I f f, Anthropologie de l'Ancien Testament, Genebra 1974,
168-179.
H. M. N ú fi e z A I b a c e t e, Tipos de pobre en el Antiguo Test~
mento, Madri 1966.

8 [1180]
gostaríamos de destacar, acima de tudo, que por trás da Lei existe
uma revelação, que a moral é transcendida pela teologia, que a
ética se torna igualmente profecia no coração da antiga Aliança.
Toda a Escritura se interessa e olha pelos sem-dignidade pre-
sentes na terra de Israel: tanto o escravo (ebed) como o estrangeiro
imigrado (ger), tanto o mendigo como o marginalizado (misken
e heIkâ), o homem de quem se tem vergonha (ras), o fraco (daI),
o curvado (anaw), o oprimido (ebyon), aquele que só pode dizer
sim ao patrão (ani).2 Todos eles se acham representados em uma
figura que representa os «sem-dignidade» por excelência, o «ebed
YHWH», o servo-messias, «tipo» histórico e profético ao mesmo
tempo, indivíduo particular da história da Salvação e ao mesmo
tempo figura coletiva.

1. O SERVO DE YHWH, O SEM-DIGNIDADE POR ANTONOMASIA

Na profecia do Dêutero-Isaías emerge a figura do servo de


YHWH nos conhecidos quatro cânticos, em crescente revelação.
Apresentado como eleito e definido como servo (Is 42,1-4), cabe-
lhe anunciar o direito divino (mispat) e a lei (torah) junto às
nações. Seu auditório é toda a humanidade, mas sua missão termina
em fracasso (Is 49,1-6). Ele é no entanto aquele que deve, a preço
muito alto, aliviar os oprimidos e aqueles que não têm sua digni-
dade reconhecida (Is 50,4-9), sendo ele o justo que sofre, o homem
sem forma, o alienado por excelência, o não-homem (Is 52,13-53,12).
Sobretudo no último cântico é descrito como coisa, «res», total-
mente escravo apresentando deveras os traços do «não-homem»
pintado pela Escola de Frankfurt.
Esse servo de YHWH possui uma aguda sensibilidade dos ma-
les sociais, carrega nos ombros todo o seu peso e quer libertar deles
o seu povo, mas sua tentativa não só se mostra ineficaz ramo tam-
bém o enche de angústia (Is 53,4).
Considerado negativo pelo ambiente social (52,2-3), o servo
é desprezado, coberto de zombarias, expulso do grupo. O que ele
faz se presta a ser usado contra ele mesmo (49,4), e resulta, aos
olhos dos importantes, como inepto e inútil, contrário ao bem
comum (53,7).

2. Cf. E. B i a n c h i, Povertà e ricchezza nella Bibbia, em Servitium


25-26 (1972), 277-309.

9 [1181]
Deus se acha certamente longe dele (53,4) e, portanto, ele
deve ser afastado (53,5). Sem forma nem dignidade (53,2), man-
tém-se mudo no processo movido contra ele (53,7) e, condenado à
morte, física, social, psicológica e religiosamente, vê sua memória
ser posta no rol dos malfeitores (53,8-9). Ê um homem que esbarra
contra toda a mentalidade mundana, que renuncia à vida para se
oferecer à morte em prol de todos os outros homens (53,10-12).
Embora servisse o povo até o fim, é acusado de ignóbil (50,7);
sabe que todo o seu direito reside no Senhor (50,8-9) e que ele de
fato dirige uma palavra aos abatidos (50,4): alguns deles obtêm
libertação e salvação, outros tomam consciência de seu estado de
servidão e se aprestam a tornar-se libertadores (53,10-12).'
Ele é o «sem-dignidade» vétero-testamentário por antonomásia,
que sem dúvida ilumina o lugar que seus semelhantes têm na eco-
nomia da salvação: cremos que aqui, mais que em qualquer outro
lugar, se deve ver o lugar hermenêutico onde se entrelaçam a
leitura coletiva do Israel sem-dignidade na história universal, a
leitura messiânica que aponta Jesus de Nazaré como aquele que
tendo a dignidade de Deus se fez o sem-dignidade, e a leitura do
não-homem, oprimido e estrangeiro, alienado, que com sua presença
atesta que Deus vai fazer justiça prometendo aos sem-dignidade a
dignidade mais alta através da libertação.
Mas se esta é a revelação que transcende a lei e as possibilida-
des humanas, pois tudo isto é obra de Deus (Is 53,10), no abismo
insondável de sua ciência e de sua sabedoria (cf. Rm 11,33), é igual-
mente verdade que já agora, aqui, em nossa vida social, econômica
e política, os sem-dignidade devem encontrar no povo de Deus o
reconhecimento dos direitos e uma libertação histórica que seja
sacramento da salvação que vem só d'Ele. A lei e os profetas são o
testemunho de que Deus olha para eles, defende-os e os protege,
faz-lhes justiça porque o Senhor se revelou na saída do Egito prin-
cipalmente como o libertador (goel). Não é o Deus criador que se
revela presente na história dos homens, mas o redentor que, inter-
vindo para libertar os sem-dignidade, se mostra senhor do céu e
da terra.

3. Essas analogias entre o «não-homem» da Escola de Frankfurt


e o servo de Isaías foram descritas em um seminário de Biblistas Italianos,
por L. Dani, em setembro de 1975 em Verona.

10 [1182J
2. ISRAEL, POVO SEM DIGNIDADE

A exegese judaica do primeiro cântico de Isaías entrevê o


povo de Israel como o «sem-dignidade» no seio das nações, desde
seu nascimento até nossos dias, mas é sobretudo real que o Antigo
Testamento nos apresenta o povo da eleição como massa alienada
e escrava sob o poder imperialista egípcio. Os judeus, destinados
aos trabalhos forçados, sob chefes que os oprimiam (anah) e os
tratavam duramente (Ex 1,l1s), devem ter sofrido justamente por
uma política de contenção demográfica e de genocídio sob o poder
do Faraó (Ex 1,15s). Deus se curvou sobre eles e mandou que
Moisés fosse libertar esses «sem-dignidade».
Da escravidão no Egito os hebreus foram chamados ao serviço
de Deus, da condição de sem-dignidade à situação mais alta: ser
libertados da opressão, ser homens libertados e livres, ser resgata-
dos, ser considerados como povo de Deus, propriedade e tesouro
entre todos os povos, reino de sacerdotes e nação santa (cf. Ex
6,6-7 e 19,5-6).
O l!:xodo significa uma ruptura radical com o Egito, um acon-
tecimento revolucionário que deve criar uma situação nova para
o povo de Israel e por conseguinte uma mudança de estruturas, em
que não seja possível o retorno à escravidão humana de que os
eleitos do Senhor tinham sido vítimas. Intervém aqui a lei com um
adágio constante e repetido: «Não fareis como se faz na terra do
Egito onde habitastes» (Lv 18,3 par). O êxodo não é uma simples
reviravolta da sorte, entre oprimidos e opressores, mas é um fun-
damento autorizado para a lei que deve fazer de Israel não só um
povo de libertados mas de libertadores em face de todos os outros
homens. Israel, que sabe o que significa não ver reconhecida a pró-
pria dignidade, tem agora uma lei para impedir que se repita seu
sofrimento, mesmo com outros, não-israelitas. Daí uma série de
prescrições legais que desejam conferir um estatuto aos sem-
dignidade porque Israel não gozou de dignidade no país do Egito
(cf. Dt 10,19 e 24,22 e Ex 22,20).
A Torah mostra muita atenção pelos abandonados da socieda-
de, em inaudita singularidade jurídica em face das culturas cir-
cunstantes médio-orientais daquele tempo, e contém, dentro de st,
uma afirmação utópica, mas nem por isso frágil: de fato «não
deveria haver entre vós nenhum necessitado» (Dt 15,4-5) e «a lei
deve ser uma só tanto para o nativo como para o estrangeiro imi-
grado» (Ex 12,49).

11 [1183]
No centro da lei estará a Páscoa memorial de geração em
geração, acontecimento real que jamais deveria ser alegorizado ou
espiritualizado: acontecimento de libertação, de personalização, de
socialização que deve dificultar qualquer tentativa de ofensa da
dignidade humana pelos poderosos e opressores.
Na Páscoa todo judeu, em nome de Israel, mas como objetivo
de esperança para todos os homens, proclamará com força histórica
que a fé em Deus é certeza de libertação: «Em todo tempo cada
um deve pensar como se ele mesmo tivesse saído do Egito. .. O Se-
nhor nos conduz da escravidão à liberdade, da amargura à alegria,
do luto à festa, das trevas à luz, da humilhação à dignidade ... »
(Mishná).
Desde aquele dia do êxodo não só Israel', mas também o
escravo, o imigrado, o oprimido, o proletário foram restaurados
em sua dignidade de homens livres. Toda opressão, desde aquele
dia, é transitória, porque desde o êxodo sopra pelo mundo um vento
de liberdade que jamais há de cessar de soprar.

3. O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO-IMIGRADO

Entre as categorias de pobres no Antigo Testamento se desta-


cam os estrangeiros ou, em tradução melhor, os imigrados. Habitam
na terra de Israel ou então se acham na condição de peregrinos,
com uma situação de pobreza cristalizada, de inferioridade em face
daqueles que gozam de todos os direitos de cidadania. O «ger»
não tem terra nem ambiente familiar: na mentalidade hebraica
era mais infeliz que o pobre, pois este tinha consistência social
reconhecida, um lugar naquela sociedade baseada sobre os vínculos
de sangue e de parentesco; o pobre podia encontrar muita solida-
riedade em seu ambiente, ao passo que o estrangeiro, que muitas
vezes imigrara para Israel por motivo de carestia e de miséria em
sua pátria, corria o risco de não ser aceito e de jamais ter reconhe-
cida sua identidade. O Israel da era monárquica regulariza por-
tanto os direitos do imigrado e, a nosso ver, esta categoria é a
que parece mais protegida pela Torah.
O estrangeiro deve ser amado (Dt 10,13), nunca deve ser mal-
tratado nem oprimido (Ex 22,20), não deve ser julgado como se

4. Observe-se que o «seder pascal» não é uma cerimônia nacional


e que o povo hebraico não se acha pessoalmente no centro da páscoa.
O próprio nome de Moisés o libertador não aparece no ritual da Haggadá.

12 [1184].
tivesse menos direitos que o israelita (Dt 24,17), mas será julgado
sob uma única lei (Ex 12,48) e com uma única sentença (Lv 24,22).
De modo lapidar a lei prescreve: «O estrangeiro que mora
convosco será para vós como um concidadão! Tu o amarás como
a ti mesmo, porque também fostes estrangeiros na terra do Egito»
(Lv 19,33-34). Vemos portanto o imigrado promovido ao grau de
pessoa com pleno direito, com uma série de meticulosas prescri-
ções, realmente ignoradas em todo o Oriente antigo. Mas a lei,
justamente por ser torah-caminho, não é um código frio e estático,
mas exige uma interpretação sempre nova e atualizada, de modo
que os princípios jurídicos enunciados devem sempre encontrar uma
práxis nela inspirada. Se o estrangeiro for um fugitivo da escra-
vidão, não deve ser devolvido ao senhor, e embora continue pobre,
deve sempre participar do direito dos filhos de Israel que se tor-
naram pobres, respigando os campos, colhendo cachos de uvas (Dt
24,17s), usufruindo das leis de trabalho que previam o repouso
semanal também para ele (Dt 5,12s). O imigrado - e compare-se
a Torah com a situação vigente dos imigrados nos países do bem-
estar! - não é um homem fechado definitivamente no trabalho:
o repouso é obrigatório também para ele, quase uma sentença à sua
vocação de liberdade e de shalom embora em terra estranha. Ne-
nhuma alienação por motivo de trabalho, nem mesmo ali onde o
não-direito à posse da terra de Israel poderia levá-lo a sacrificar
todas as suas energias fazendo do trabalho um absoluto para
retornar, quem sabe, mais rico à pátria.
O imigrado é pois um homem com dignidade, que encontra sua
justiça em Deus e a Ele recorre como alguém que diretamente o
protege, escutando seu grito e acendendo sua ira (Ex 22,20-22).
Mas se nos detivéssemos aqui, em muito mutilaríamos a mensagem
bíblica a respeito desta categoria. Na realidade, após o exílio na
Babilônia, quando Israel passou à condição de imigrado em terra
estranha, os profetas vêem uma identificação não só dos crentes,
os piedosos (hassidim) , com os pobres (anawim) , mas também
com os estrangeiros. Daí a linha neotestamentária preparada pelo
judaísmo, onde os cristãos são muitas vezes chamados estrangeiros
e peregrinos (Ef 2,19; lPd 1,1; 2,11; Hb 11,3 etc.). Não devemos
também esquecer qque na tradição rabínica a expressão do Salmo
120,5 «Ai de mim, que habito como estrangeiro ... » e também a
expressão do Salmo 119,19 «Sou peregrino na terra» são palavras
do próprio Deus e não do salmista. Na compreensão do orante é
Deus mesmo que se faz estrangeiro e peregrino, que diz amá-lo para

13 [1185J
dar plena dignidade aos seus filhos que vêem sua dignidade igno-
rada pelos homens.

4. OS OPRIMIDOS, O óRFÃO E A VIl:rVA

Na terra, cuja posse é exclusiva do Senhor, não deveria haver


pobres, pois todo o país fora repartido entre as doze tribos. No
entanto, a pobreza surgiu no explorado (ani) e no não-proprietário
(daI). Este fato jamais pôde ser aduzido como acusação contra
Deus, mas contra o homem que recusa a solidariedade pelo próximo.
Aqui também a Torah intervém a favor desta categoria, com o
próprio fato, em uma perspectiva de fé, de que a terra foi doada
àquele que era explorado e não-proprietário na casa da escravidão
no Egito. O «direito dos pobres» tende a instaurar aquela solidarie-
dade tribal que desaparecera com a vida sedentária e com a trans-
gressão dos preceitos (Dt 15,4-5).
O conceito de pobreza, como maldição, na interpretação dos
antigos patriarcas, vai ser logo substituído pela visão da pobreza
causada pelos ricos, os quais encontram nos profetas, desde Elias
até Sofonias, os fustigadores, que denunciam abusos, injustiças,
vexames que dão origem à pobreza e mantêm os pobres nesse estado
ou ainda agravam sua condição. Para Jeremias, «conhecimento de
Deus» será justamente julgar a causa do pobre ou do proletário!
(cf. Jr 22,16). A exploração dos trabalhadores, o não-reconheci-
mento de sua dignidade, a negação da justiça que lhes é devida pro-
vocam a invectiva dos profetas que finalmente condenam as práti.
cas religiosas e litúrgicas que se haviam transformado em autojusti-
ficação, diante de Deus, de hipócritas manchados com o sangue do
pobre (cf. Is 1,14s; 3,14-15; 5,8s; 10,1; Mq 2,1-2; Am 2,6s;
Jr 22,13; Os 12,8; Sf 1,11 etc.).
Os donos da terra e dos latifúndios são radical e definitiva-
mente condenados com uma justiça que se mostra imanente em toda
a pregação profética em favor da dignidade dos que nada possuem
(dallat ha hares) e que se tornam os fiéis «cuja vida é santa nas
mãos de YHWH». Entre estes, o órfão e a viúva que se acham em
situações acidentais de necessidade, mas que podem ser aliviadas com
situações igualmente acidentais, como a permissão para respi-
gar, colher cachos de uva, apanhar grãos do chão. A viúva
com a morte do marido restituía o dote à família, e assim ficava
sem meios de subsistência, e o órfão muitas vezes caía na miséria
por causa de iníquos processos de sucessão. Mas o seu direito e a

14 [1186J
sua dignidade de mulheres ou de pequeninos é uma preocupação
importante da lei, recordada pelos profetas, confiada ao próprio
Deus como seu direto vingador. Esses fracos são o terreno da ativi-
dade do Senhor, a sua assembléia de pobres, o resto de Israel, o
povo humilde e pobre no meio do qual o Senhor Deus se mostrará
como o Salvador às portas (cf. Sf 3,12-17). Eis aí profetizada a
Igreja dos pobres.

5. A DIGNIDADE DO ESCRAVO

Em Israel, à semelhança do mundo circundante, havia escravos,


embora ali o fenômeno não se verificasse jamais nas mesmas pro-
porções conhecidas no antigo Oriente Médio. Como é que se origi-
nava a escravidão? Talvez como botim de guerra, talvez através
de compra (cf. Dt 20,10-18 e o contraditório 7,1-6; Lv 25,44s).
Alguns eram propriedade pública a serviço do Estado, outros de-
pendiam exclusivamente de particulares. Acontecia também o caso
de alguém ser submetido à escravidão por motivo de endividamento,
como pagamento da dívida contraída (Lv 25,39). Mas talvez não
seja exato falar de escravidão, ao menos se escravidão significar
alienação da pessoa, quando um homem como tal pertence ao outro.
Na verdade, trata-se mais exatamente de prestações de serviço, em
que alguém se aluga a outro vendendo-lhe o próprio trabalho. Assim
ao menos era a escravidão temporária entre israelitas como se de-
preende de Ex 21,2-3: «Se tu comprares um escravo hebreu, que
te sirva por seis anos; mas no sétimo deixá-lo-ás ir embora, sem
nada cobrar». Se havia divisão de classes entre proprietário e escra-
vo esta era ocasional, não estrutural. Pode ser significativo fazer
uma comparação da lei israelita sobre a escravidão com o código de
Hamurabi. Neste último, está escrito que o escravo deve ser posto
em liberdade depois de três anos (o que permitiria ver maior
magnanimidade na legislação sumérica), mas na realidade o código
de Hamurabi trata dos ricos livres que tinham caído em escravidão
por um azar econômico: «por natureza, eles eram livres, mas po-
diam 'per accidens' tornar-se escravos», daí o direito à liberdade
após três anos. Já no código para os escravos naturais, o problema
não chegava nem a ser posto. O código de Hamurabi, portanto,
visava manter o status quo, a divisão em classes que devia ser res-
tabelecida sempre que perturbada, ao passo que no código da Alian-
ça, na Torah, a intenção era contrária: não permitir que o escravo
se tornasse uma classe social, categoria, e sim propiciar uma dinâ-

15 [1187J
mica legal que protegesse sempre a vocação do homem à liberdade,
mesmo a do homem escravizado. Por isso, a lei prevê a libertação
obrigatória a cada sete anos, embora tal preceito nem sempre se
tivesse cumprido, realmente, na história de Israel, a não ser uma ou
outra vez, como o atesta Jeremias quando Sedecias proclamou a
liberdade dos escravos (cf. Jr 34,8-10). Há portanto, na Lei, um
estatuto do escravo que não o faz coisa do patrão ou senhor, mas
pessoa com dignidade e direitos que o senhor é obrigado a observar
até lhe dar a liberdade: «Em Israel, cada indivíduo possui direitos
invioláveis e é mediante a salvaguarda desses direitos que fica
garantida a harmonia da sociedade»."
Por outro lado, é significativo o caso do judeu que, ao final
do ano sabático, desejava continuar «escravo» de seu senhor, pelo
bem que lhe queria. Na verdade a escravidão cessava e se tornava
adoção mediante uma cerimônia em que se furava o lobo da orelha
do escravo. Este passava à condição de servo doméstico, não mais
de escravo.
Ao escravo o senhor dará de bom grado a liberdade e o aben-
çoará, deixando que se vá (Dt 15,18), para que a vocação à liber-
dade e à dignidade humana seja sempre reconhecida sob o peso
da Palavra de Deus.
Ê altamente profético que quando esse estatuto dos escravos
é violado, e os israelitas que deviam proceder formalmente à liber-
tação deles mudam de parecer, não é só uma lei ética que se trans-
gride mas a própria aliança (berit) com Deus (cf. Jr 34,10-22).
Em defesa dos escravos intervém Deus, punindo e castigando
terrivelmente, a ponto de entregar como escravos nas mãos da
Babilônia o rei de Judá, seus chefes e os escravos que não se tinham
feito libertadores.

6. POR QUE OS SEM-DIGNIDADE, EM ISRAEL, TINHAM


SUA DIGNIDADE RECONHECIDA?

Não queremos, na conclusão, responder em termos estruturais,


como pretenderiam análises materialistas ou marxistas da lei israe-
lita. Queremos apenas lembrar que a consciência religiosa de Israel
(o elemento supra-estrutural) levava a definir a dignidade de cada
indivíduo, mesmo do mais desprezado: sobre o órfão e a viúva,
sobre o estrangeiro ou o escravo Deus mesmo se havia inclinado,

5. J. H o u r, La morale de I'Alliance, Paris 1966, p. 78.

16 [1188J
para aliviá-los e libertá-los. O sem-dignidade, para o hebraísmo,
é e continuará sendo sempre um sacramento do Israel histórico salvo
por Deus e, para o cristão, será também o sacramento do servo
de YHWH, o Messias, que se humilhou até a morte vergonhosa para
encontrar justiça no Deus que o ressuscitou dentre os mortos.
Tradução de
Ephraim F. Alves

17 [1189]
Jon Sobrino

RELAÇÃO DE JESUS COM OS POBRES


E MARGINALIZADOS
IMPORTÂNCIA PARA A MORAL FUNDAMENTAL

1. IMPORTANCIA DO TEMA PARA A MORAL


FUNDAMENTAL CRISTA

De acordo com as narrações evangélicas, sabemos que Jesus


se cercou, durante a sua vida, de pecadores, de publicanos, de enfer-
mos, de leprosos, de pobres, de samaritanos, de pagãos e de mu-
lheres, favorecendo-os. Este fato, em sua globalidade, é reconhe-
1
cido como uma característica histórica da práxis de Jesus. E deste
fato costuma-se deduzir com razão que, se estas pessoas são
favorecidas por Jesus - manifestando-se, desta forma, o amor de
Deus para com elas - , então todos os homens possuem a dignidade
de filhos de Deus e todos os homens são verdadeiramente irmãos.
Esta constatação, no entanto, por importante que seja, não
basta para provar sua importância para a moral fundamental. His-
toricamente, essas manifestações puderam servir para a elaboração
de princípios fundamentais de antropologia cristã, e também para
impulsionar práxis regionais da moral, como a tradicional exigência
de ajudar os necessitados. Mas o conhecimento da relação de Jesus
com os pobres e marginalizados só alcançará sua importância siste-
mática quando essas ações de Jesus se entroncarem em sua práxis
fundamental e quando essa relação for considerada fundamental
dentro dessas práxis.
Mas temos que propor a pergunta fundamental da moral cristã
exatamente como ela resulta dos próprios Evangelhos e ver então

1. Neste trabalho não se faz uma exegese das diversas tradições


sinéticas e de suas contribuições específicas ao tema, isto é, não tencio-
namos descobrir o que seja genuinamente histórico de Jesus, diferenciado
do Jesus historicizado nas primeiras comunidades. Pressupomos que neste
tema se possa assumir razoavelmente que existe uma historicidade sufi-
ciente para organizar os dados sistematicamente.

18 [1190]
a relação de Jesus com os pobres e marginalizados como realização
fundamental de sua práxis moral e não como um dado a mais de
sua vida que, embora freqüente e excelente, fosse arbitrário no que
se refere ao fundamental de sua práxis.
Podemos formular a questão moral fundamental da seguinte
maneira: que devemos fazer para que o reino de Deus se realize
na história? Dentro do nosso objetivo, é importante ressaltar aqui
2

dois pontos: em primeiro lugar, a determinação nocional do que


deva ser objeto de uma práxis (neste caso o reino de Deus) e a mo-
dalidade cristã daquela práxis que seja apta e necessária para que
o reino de Deus se realize. Analisando então a relação de Jesus
com os pobres e marginalizados, temos que observar como essa
relação contribui para a determinação do reino de Deus, do bonum
morale que deve ser alcançado e da modalidade ética da práxis, isto
é, daquela virtus que torne cristã esta práxis. E devemos analisar
se esta contribuição é verdadeiramente essencial para a própria
constituição da noção de reino de Deus e para a constituição cristã
de uma práxis que promova a realização desse reino.

2. TR11:S ESCLARECIMENTOS PR1WIOS

Dada a importância dos pobres e marginalizados para a prá-


tica moral, convém fazer alguns esclarecimentos prévios que dêem
realismo histórico e também vivencial à relação de Jesus com eles.

1) Hoje, como no tempo de Jesus, esses homens constituem


maioria na humanidade. Este dado quantitativo tem em si um peso
qualitativo específico. Se é tipicamente cristão fazer afirmações
universais, a partir da criação ou da consumação última, o que
ocorre com as maiorias deveria ser princípio de realismo e de veri-
ficação histórica deste universalismo. Uma moral fundamental, não
excluindo a que tem sua origem em Jesus, deverá ter certamente
um objetivo universal, mas deverá passar pelo universalismo histó-
rico das maiorias. De outra forma, o pretenso universalismo seria
eufemismo, ironia ou ideologização mistificada. O «misereor super
turbas» (Mc 6,34) atribuído a Jesus deveria ser um horizonte pré-
vio, mas necessário, para a determinação da moral fundamental,
não só pela disposição subjetiva misericordiosa, mas pelo correlato
desta misericórdia, as maiorias.
2. Cf. I. E 11 a c u r í a, La IgIeaia de los Pobres, sacramento histórico
de la liberación, em ECA, out.-nov. de 1977, p. 710s.

19 (1191)
2) Essas maiorias não são exclusivamente a soma de indiví-
duos, que, como tais, fossem individualmente pobres e marginali-
zados, mas são coletividades configuradas como grupos sociais.
Enquanto grupos, a prática moral requerida por eles e para eles
será distinta da moral exigida pelas relações meramente interpes-
soais. Enquanto grupos sociais, a prática moral se realizará neces-
sariamente, ainda quando isto não fosse entendido diretamente,
dentro da totalidade da realidade social que é conflitiva e antagô-
nica, e a prática moral terá, conseqüentemente, repercussões dire-
tas na totalidade social. Neste sentido, deve ser valorizado - inde-
pendentemente das cenas em que Jesus se relaciona com pessoas
individuais - o plural das narrações evangélicas e seu caráter
antagônico: os pobres, os pecadores, etc., e por outro lado, Os ricos,
os fariseus, etc.
3) O problema destas maiorias não consiste apenas e principal-
mente em que sejam declarados ou tratados como «sem-dignidade»,
isto é, que não sejam reconhecidos declaradamente como filhos de
Deus, ou falando sistematicamente, como pessoas que são sujeitos
com direitos. Sua dignidade tem como raiz prévia uma realidade
estrutural, quer a nível de infra-estrutura sócio-econômica, quer
a nível de superestrutura religiosa. Nas narrações evangélicas, estes
grupos de homens são tipificados na categoria de «pobres», que
sofrem sob algum tipo de jugo opressor material, e na categoria
de «desprezados» por sua conduta religiosa ou por exercerem pro-
fissões que conduziam à imoralidade.
A prática de Jesus não consistirá apenas em declarar a digni-
dade deles diante de Deus, de modo que possam recuperar sua digni-
dade subjetivamente, mas em atacar pela raiz as causas de sua
indignidade social, isto é, as condições materiais de sua existência
e a concepção religiosa de seu tempo. A importância desta observa-
ção para a ética fundamental consiste, portanto, em que as meras
declarações da dignidade que têm diante de Deus os «sem-dignida-
de» não são suficientes, se não se chegar a desmascarar e a trans-
formar as raízes de sua indignidade.

3. o REINO DE DEUS l1; PARA OS POBRES


E MARGINALIZADOS

Se em uma moral que remonta a Jesus se trata da realização


do reino de Deus, será importante, desde o início, determinar em
que consiste este reino de Deus. Entretanto, o próprio Jesus, que

20 [1192]
tão freqüentemente utilizou a expressão «reino de Deus», não des-
creve concretamente em que ele consiste. 3 Afirma que o reino está
próximo e que é uma boa-nova (Mc 1,15; Mt 4,23; Lc 4,43). Para
concretizar a noção de reino de Deus poderíamos tentar o caminho
de analisar as diversas noções em voga sobre o reino no tempo de
Jesus e analisar a plausibilidade de que alguma delas, ou uma sín-
tese delas, pudesse guiar nacionalmente o anúncio de Jesus. Mas
este caminho parece infrutífero. Melhor e mais frutífero seria afir-
mar que «o conteúdo concreto do reino surge de seu ministério
e atividade, considerados como um todo». • E desta forma a relação
de Jesus com os pobres e marginalizados recobra fundamental
importância.

1) Jesus anuncia o reino como boa-nova para os pobres (Lc


4,18; cf. Lc 7,22; Mt 11,5) e declara que o reino é dos pobres
(Lc 6,20; cf. Mt 5,3). Assim se estabelece uma correlação funda-
mental entre a boa-nova e seus destinatários privilegiados (ou úni-
cos)·, que indiretamente torna compreensível de que é que se
trata na boa-nova. Se esse reino é para os pobres, se a salvação
vem não para os justos mas para os pecadores, se os publicanos
e prostitutas chegam ao reino antes dos piedosos, então na própria
situação destes destinatários teremos que encontrar - embora
sub specie contrarii num primeiro momento - o que é central na
boa-nova. Neste caso, o reino de Deus não será só um símbolo uni-
versal de esperança utópica, intercambiável com qualquer outra
utopia, mas será concretamente a esperança dos grupos de homens
que sofrem sob um tipo de opressão material e social. • A boa-nova
será, portanto, em primeiro lugar e diretamente, o que hoje deno-
minamos libertação, e que encontra seu paralelismo bíblico mais
na linha profética do que na concepção apocalíptica da história
universal.
E antes de espiritualizar precipitadamente os pobres e extra-
polar universalisticamente a noção de reino, convém recordar que

3. Cf. W. K a s p e r, Jesús, EI Cristo, Salamanca 1976, p. 86; E.


S c h i II e b e e c k x, Jesus. An Experiment in Christology, Nova Iorque
1979, p. 143.
4. E. Schillebeeckx, ibid.; J. Sobrino, Jesús y el Reino de
Dias, em Sal Terrae, maio de 1978, p. 350.
5. Cf. J. J e r e m i a s, Teologia deI Nuevo Testamento, VaI. I, Sala-
manca 1974, p. 142.
6. Sobre esta dualidade do significado de pobre, cf. J. J e r e m i a a,
ibid., p. 134-138.

21 [1193]
os destinatários do reino são os que se acham mais privados de
vida em seus níveis mais elementares. Na passagem em que Jesus
responde aos enviados de João, os pobres são equiparados aos cegos,
coxos, surdos, etc. Na interpretação de J. Jeremias, esta passagem
não deve ser interpretada espiritualisticamente, mas refere-se «à si-
tuação de tais pessoas e segundo o pensamento da época esta
situação não pode ser chamada vida». 7 A boa-nova consiste então
em levar a vida àqueles cuja vida tem sido secularmente ameaçada
e negada.
O reino de Deus, reino que temos que construir, está, pois,
em correlação com aqueles que se encontram mais privados da vida.
Por isso, para conseguir uma noção operativa do conteúdo do reino
de Deus teremos que adotar a ótica dos sem-vida, sem-poder, sem-
dignidade e não pretender que fora desta ótica já se sabe mais e
melhor o que é esse reino. Desta forma a noção de reino não se
verá paralisada pelo universalismo abstrato de seu conteúdo ou pela
imposição precipitada da reserva escatológica sobre ele. 8 Os pobres,
os pecadores, os desprezados representam o lugar necessário, embora
não suficiente sob todos os aspectos·, para saber de que se trata
na boa-nova do reino. E isso por uma última razão teológica: Deus
os ama e defende e quer que tenham a vida. 10

2) Além desta primeira correlação entre reino de Deus e os


pobres, podemos descobrir em que consiste o reino se considerarmos
a práxis de Jesus como práxis a serviço do reino. Na prática concreta
de Jesus para com os pobres e marginalizados não se desvenda
gnosticamente o que é o reino, mas se revela como corresponder
praxicamente ao reino. A prática de Jesus enquanto práxis, isto é,
enquanto tentativa de operar sobre a realidade histórica circun-

7. Ibid., p. 128.
8. Isto não significa reduzir o reino de Deus aos níveis primarlOs da
vida, mas significa mantê-los presentes para que, quando se fale de vida
mais plena e de plenitude escatológica de acordo com o Evangelho, não
se esqueça seu pressuposto fundamental.
9. O simples fato da pobreza é importante para a determinação do
que seja o reino de Deus, mas não é já uma pobreza automaticamente
eficaz para a salvação histórica. Cf. r. E 11 a c u r í a, Las bienaventuran-
zas como carta fundacional de la Iglesia de los pobres, em V a r i o 5,
Iglesia de los pobres y organizaciones populares, San Salvador 1979, p. 118.
10. Assim o reconheceu o Documento de Puebla, n. 1.142: «Só por este
motivo, os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a
situação moral ou pessoal em que se encontrem ... Deus toma sua defesa
e os ama». Cf. G. G u t i é r r e z, Pobres y liberación en Puebla, em
Páginas, abril de 1979, p. 11s.

22 [1194]
dante para transformá-la numa determinada direção, revela, indi-
reta, mas eficazmente, de que se trata no reino de Deus. Opera-se,
pois, uma correlação entre serviço histórico de Jesus para e a partir
dos pobres e marginalizados. Essa prática de Jesus aparece a vários
níveis, enumerados aqui apenas brevemente.
Em primeiro lugar está a prática de sua palavra. O anúncio
positivo da boa-nova tem, por um lado, o caráter de proclamação,
enquanto é expressão da revelação do mistério gratuito de Deus
e é expressão - diferente, por exemplo, do anúncio do Batista -
da supremacia do amor de Deus sobre seu juízo e da parcialidade
desse amor. Mas tem também o caráter de práxis por induzir à
tomada de consciência histórica dos pobres e marginalizados e tam-
bém por ser, de fato, veículo de luta ideológica ao proclamar
polemicamente a parcialidade de Deus.
Desta forma, a palavra é proclamação pela qual o mistério de
Deus é expresso e é também práxis enquanto opera sobre a realidade
social circundante.
Ao lado do anúncio positivo está, também, a prática da denúncia.
Os diversos anátemas condenam não apenas uma conduta pecami-
nosa em si, mas condenam a conduta relacional de alguns grupos
sociais contra outros. Em nome da boa-nova não se condena apenas
o pecado como fracasso pessoal do homem face a Deus, mas como
algo que impede e anula o advento do reino de Deus como realidade
para os pobres. Diz-se dos ricos que sua riqueza é injusta, que são
os opressores dos pobres (Lc 16,9; 19,1s); dos fariseus afirma-se
que não praticam a justiça e que são guias cegos (Lc 11,42; Mt
23,16.24); dos escribas diz-se que colocam cargas insuportáveis nos
ombros dos outros, que devoram os bens das viúvas e que se apo-
deraram da chave da ciência impedindo os que queriam entrar
(Lc 11,46.52; Mc 12,38s); dos sacerdotes Se diz que viciaram a
essência do templo, dedicando-se a fazer nele comércio ganancioso
(Mc 11,15s); dos governantes se diz que oprimem o povo com seu
poder (Mc 10,42).
A estrutura típica das denúncias e anátemas não está só em
condenar o intrinsecamente pecaminoso da conduta desses grupos
sociais e também a adicionada hipocrisia de que essa conduta possa
justificar-se em nome da religião. A pecaminosidade também é
relacional: são opressores dos pobres. Por isso a denúncia de Jesus
é ao mesmo tempo defesa do pobre e prática social, porque se dirige
contra uns grupos em favor de outros, condenando as relações
estabelecidas e operando assim sobre elas. É a prática do anúncio
partindo do reverso de sua negação.
23 [11951
Ao lado da prática do anúncio e da denúncia aparecem nos
Evangelhos práticas concretas de Jesus. O resumo programático des-
sas práticas é «fez bem todas as coisas» (Mc 7,37), e sua especifi-
cação se manifesta nas curas que operou e no trato com os peca-
dores. Normalmente estas ações aparecem em situações concretas
e com destinatários individuais. Observar os destinatários e o con-
teúdo das ações gera luz para compreender o reino de Deus.
Se Jesus recusa operar milagres para sua própria justificação,
se os milagres nunca são descritos em seu aspecto maravilhoso,
mas como sendo obras (erga'), atas de poder (dynameis), sinais
(semeion), conclui-se que estes só podem ser ações que demonstram
a soberania de Deus, ou seja, o reino de Deus (Lc 11,20) sobre
aqueles que estão debaixo da soberania do mal. O mesmo pode
dizer-se do perdão dos pecados. Se as duas cenas em que aparece
explicitamente o perdão (Mc 2,5; Lc 7,48) dificilmente poderão
remontar à própria vida de Jesus, a relação solidária de Jesus com
os pecadores é indiscutível, principalmente sentando-se à mesa com
eles (Mc 2,15-17; Lc 7,36-50), para mostrar-lhes o amor de Deus e
arrancá-los de seu isolamento social.
O serviço concreto de Jesus para o reino de Deus mostra que
este reino consiste na libertação dos pobres e marginalizados. E que
esta libertação deve ser proclamada, não apenas como a vontade
de Deus para o mundo, mas deve concretizar-se na história, deve
ser realizada. 11

4. O EMPOBRECIMENTO E A MARGINALIZAÇÃO SOLIDÂRIOS


SÃO A VIRTUDE PROPtCIA A REALIZAÇAO
DO REINO DE DEUS

A relação de Jesus com os pobres e marginalizados mostra


operativamente o reino de Deus, mas mostra também em que con-
siste a modalidade específica da construção do reino. Esta modali-
dade pode resumir-se na necessidade de empobrecimento e de mar-
ginalização solidários.
Nenhuma racionalidade apriorística demonstra que deva ser
assim, mas responde à lógica vétero-testamentária do servo de Javé
e aparece na estrutura da vida histórica de Jesus. O reino de Deus
para os pobres se anuncia e realiza num mundo de pecado, contrário

11. Cf. Carlos E s cu d e r o F r e i r e, Devolver el evangelio a los


pobres, Salamanca 1978, p. 269s.

24 [1196]
e antagônico. A boa-nova é precisamente boa não em primeiro lugar
porque supera ou ultrapassa o positivo de uma determinada situa-
ção, mas porque vai contra essa situação. O que a teologia afirma
do servo de Javé é que a plenitude se transmite no momento de
assumir a negação e não pode ser alcançada a partir da inércia do
meramente positivo. Se no primeiro canto do servo sua missão
é implantar o direito e a justiça sobre a terra (Is 42,1-9), no quarto
canto o servo aparece carregando o peso do pecado do mundo para
que possa chegar essa plenitude (Is 52,13 e 53,12).
Eis a estrutura fundamental da prática de Jesus, exatamente
como resultou de fato e independentemente de sua possível auto-
consciência de ser o servo e de sua primeira visão da maneira de
realizar sua missão. A defesa eficaz do pobre supõe acabar com o
pecado real e objetivo que o empobrece; e esse pecado não se
erradica sem assumir a condição de pobre e só se pode devolver
a dignidade ao pobre assumindo sua própria indignidade.
A nível teórico, pode-se verificar bem esta estrutura na cena
das tentações, que não devem ser concebidas como algo pontual e
excepcional nos começos do ministério de Jesus, mas como o clima
e ambiente em que se desenrolou sua vida. Nas tentações se mani-
festa objetivamente uma opção por um serviço a modo do servo,
sem um poder que - embora colocado a serviço dos sem-poder - o
subtraísse a ele mesmo da realidade e conseqüência da pobreza, da
indignidade, da perseguição.
Na sua realidade histórica concreta, Jesus - por conceber
assim sua missão - a realiza em um molde histórico que conduz,
inevitavelmente, à privação de sua segurança, de sua dignidade, de
sua própria vida, isto é, em um molde histórico de empobrecimento.
Se é difícil delimitar concretamente os momentos particulares em
que isto ocorre, o ambiente geral das narrações evangélicas o
mostra e, de qualquer forma, sua morte na cruz o demonstra. Jesus
foi privado de sua dignidade como deduzimos dos insultos dirigidos
a ele e das cenas teologizadas em que querem enxotá-lo da sinagoga
e do templo, verdadeira excomunhão. Jesus foi privado de sua segu-
rança como aparece claramente na perseguição próxima à sua
morte, recuada para os começos de sua vida pelos evangelistas
(Mc 3,6; Lc 4,28s), no sentido de insistir no ambiente persecutório
contra ele. E finalmente Jesus foi privado de sua própria vida,
verdadeiro e supremo empobrecimento.
O importante na constatação do empobrecimento objetivo de
Jesus é notar que este empobrecimento ocorre por solidariedade

25 [1197]
com os pobres. A perseguição de Jesus pode ser compreendida per-
sonalisticamente, recordando os ataques dirigidos por Jesus aos
diferentes grupos sociais. Mas, não será compreendida em profun-
didade se não apreciarmos nestes ataques a defesa que Jesus faz dos
pobres. Nas famosas cinco controvérsias de Mc 2,1-3,5 está subja-
cente a defesa dos enfermos, dos pecadores e dos famintos. Ã base
do desmascaramento da hipocrisia dos fariseus feito por Jesus está
a defesa dos pais necessitados (Mc 7,1-13).12 Portanto, o empobre-
cimento e marginalização históricos de Jesus têm sua origem numa
atitude muito mais fundamental do que a atitude ascética: pro-
vêm de sua solidariedade para com os pobres.
As exigências de Jesus para os outros também mostram o
mesmo movimento de empobrecimento fundamental. O convite a
um seguimento para realizar a missão em pobreza, ao abandono efe-
tivo de casa e bens, a tomar a cruz não são exigências arbitrárias
feitas por Jesus, como bem poderia ter deixado de fazê-las. São,
muito mais, exigências coerentes com a linha de empobrecimento.
Partindo de outro ponto de vista, demonstram-no também as bem-
aventuranças. Aos que já são pobres materialmente falando, pro-
põe-se conscientizar a pobreza vivendo-a em espírito para participar,
deste modo, ativamente no movimento de empobrecimento."
Este empobrecimento ativo de Jesus é justamente a versão
histórica do que, depois, se teologizará como seu empobrecimento
transcendental: a encarnação e a quênose. O que interessa ressaltar
aqui é que esse empobrecimento transcendente se historiza não
apenas assumindo a carne humana, mas assumindo a solidariedade
com os pobres e marginalizados.

5. MORAL FUNDAMENTAL E TEOLOGIA

A relação in actu de Jesus com os pobres e marginalizados


faz-nos descobrir o bonum da moral fundamental cristã como a
realização do reino de Deus para os pobres e a modalidade funda-
mental dessa realização sob a forma de empobrecimento solidário.
Caberia perguntar se essas determinações - embora evangelica-
mente importantes - são realmente fundamentais, e mais funda-
mentais que outras determinações, para a moral cristã. Para res-

12. Cf. P. B e n o i t, M. E. B o i 8 fi a r d, Sinopsis de los cuatro


evangelios, Bilbao 1976, p. 96-110, 215-217.
13. Cf. l. Ellacuría, op. cit., p. 1178.

26 [1198]
ponder a esta pergunta devemos perguntar se nesta colocação se
apreende melhor a realidade última do próprio Deus em quem Jesus
punha sua fé e em quem crêem os cristãos. É essa nossa opinião.
Esta colocação enfoca a revelação de Deus e o acesso a Deus
pela fé de uma maneira específica e cristã. Não como uma concepção
gnóstica que, afinal de contas, visa meramente o saber sobre Deus,
mas trata-se de conhecer a vontade de Deus e de saber como reali-
zar esta vontade. Daí a importância do acesso a Deus por mediação
do reino de Deus que deve realizar-se. Não como uma concepção
diretamente universalista, mas sublinhando a parcialidade consti·
tutiva de Deus para os que historicamente estão mais privados de
amor, de direito e de justiça. Não como uma concepção natural de
Deus, mas pondo em evidência o que há de escandaloso em sua
própria realidade, descrita como quênose, empobrecimento e aniqui-
lamento do Filho.
Tal concepção de Deus, cristianizada, deve ser a base última
da moral fundamental. Por outro lado, só na realização histórica
desse tipo de moral fundamental se desvendará, para além de afirma-
ções genéricas, que Deus, em verdade, é assim. 14 A correlação,
genericamente aceita, entre Deus e os pobres e marginalizados tor-
na-se exigente e frutífera a partir da relação in actu de Jesus com
eles e quando se faz desta relação o princípio para propor e resol·
ver a pergunta da moral fundamental.
Tradução de
Lúcia Mathilde EndUch Orth

14. De outra forma essas afirmações permanecem paradoxais e sem


repercussões práticas. Poderíamos perguntar-nos que repercussões reais
tíveram as belas palavras de K. Barth, escritas há quarenta anos e coli-
gidas por G. G u t i é r r e z, op. cit., p. 1: Deus se coloca «sempre de
maneira incondicionada e apaixonada desta e somente desta parte: sem-
pre contra os soberbos, sempre a favor dos humildes; sempre contra
aqueles que possuem direitos e privilégios, sempre a favor dos que são
privados e despojados desses direitos», Kirchliche Dogmatik, II, 1, Zurique
1940, p. 434.

27 [1199]
Josl Eckerl

A REALIZAÇÃO DA FRATERNIDADE
NAS PRIMEIRAS
COMUNIDADES CRISTÃS

Nossa imagem das primeiras comunidades cristãs está forte-


mente marcada pelos Atos dos Apóstolos, de Lucas, e pelas epís-
tolas do apóstolo Paulo. Isto se aplica sobretudo à comunidade
primitiva de judeu-cristãos de Jerusalém; à comunidade de Antio-
quia na Síria, composta de judeu-cristãos e gentio-cristãos; bem
como à mais significativa Igreja da missão paulina entre os pagãos,
a comunidade de Corinto. Contudo, a exegese não deve esquecer
que a exposição dos Atos dos Apóstolos é cheia de lacunas e, às
vezes, idealizadora (cf. 2,42-47) e que as epístolas de Paulo tam-
bém só oferecem uma visão limitada da vida da comunidade. Não
tivesse, por exemplo, ocorrido um inconveniente na ceia do Senhor
em Corinto - e que o apóstolo comenta - nada saberíamos sobre
a celebração eucarística nas comunidades paulinas.
Outras comunidades se tornam conhecidas mais ou menos cla-
ramente pelos diversos escritos neotestamentários, mas precisamente
neles são muitos os fatores duvidosos para a compreensão de sua
vida comunitária. A tradição e o desenvolvimento ulterior do anún-
cio de Jesus (cf. os Evangelhos) certamente também se realizaram
tendo em vista atuais problemas da comunidade. A vida e a dou-
trina de Jesus deveriam ser para o comportamento dos cristãos
modelo a seguir.

1. AS NOVAS PERSPECTIVAS DE VIDA


NO MOVIMENTO DE JESUS

No início da história do cristianismo não estão as comunidades


locais, mas Jesus Cristo, o mensageiro itinerante do Reino de Deus,
e o movimento de pessoas por ele criado e revigorado pela Páscoa,
visando ao Reino de Deus.

28 [1200]
Não era a vontade de fundar uma nova religião, que se insta-
lasse nesse mundo por muito tempo com um diversificado corpo
ministerial e construção de templos, que determinava a consciência
da mais primitiva cristandade; antes ela se entendia como um movi-
mento escatológico que aguardava a salvação final, não proveniente
da fé judaica tradicional nem de reformas feitas neste mundo, mas
de Cristo que viria novamente em poder e majestade (cf. 1Ts 1,9s;
1Cor 7,29-31; 16,22; Mc 13).
As palavras de seguimento de Jesus, com a ordem radical de
tudo abandonar e também renunciar aos laços familiares por amor
do Reino de Deus (cf. Lc 9,59s par.; 9,61s; 14,26 par.), permane-
ceram como indicadores escatológicos e - mesmo quando abran-
dadas (cf. 1Cor 9,5) - permaneceram atuais sobretudo para os
líderes do cristianismo primitivo, os apóstolos, profetas e outros
missionários que, como Jesus, não cultivaram a stabilitas loci mas
difundiam missionariamente o Evangelho. 1
No seguimento de Jesus o caminho dos discípulos não conduziu
para fora do mundo, para o gueto social e para um círculo elitista
fechado (cf. Qumran), mas a abertura de Jesus para todos os ho-
mens, exatamente também para os desprezados social e espiritual-
mente, permaneceu uma determinação básica do movimento de
Jesus. As histórias dos exorcismos nos Evangelhos e nos Atos são
expressão da aceitação e integração social dos endemoninhados na
comunidade cristã em que, visivelmente, desde o começo os membros
dos diversos grupos religiosos e sociais do judaísmo encontravam
um novo relacionamento. Isto foi possível graças à nova maneira
2

jesuânica de ver os homens, que não os julgava segundo sua origem


ou sua atual qualificação religioso-moral, mas segundo sua aber-
tura para o futuro no reino salvífico de Deus. Contudo, foi preciso
ainda um processo histórico mais longo para que as conseqüências
dessa perspectiva salvífica escatológica se tivessem imposto tam-
bém aos pagãos.
O ethos «utópico» do Sermão da Montanha (cf. Mt 5-7), que
reforça os preceitos morais da Torá e, em contrapartida, relativiza
os preceitos religioso-cultuais, teve como conseqüência - como
era sua intenção - não um inumano rigorismo legal do isolamento
aflito, mas, baseado na consciência de que também os crentes só

1. Cf. G. T h e i s s e n, Soz;,ologie der Jesusbewegung. Ein Beitrag


ZUr Entstehuugsgeschichte des Urchristentums, Munique 1977.
2. Cf. o publieano (Me 2,14) e o zelota (Le 6,15) na sociedade de Jesus.

29 [1201J
podem viver do perdão (cf. 11,4 = Mt 6,12) s, uma nova e radical
fraternidade. O novo modo de conviver foi motivado mais ainda
pela fé na solidariedade de Jesus com os irmãos mais humildes
(Mt 25,40) e por sua morte em favor dos pecadores (cf. Me 10,45;
14,24 par.; 1Cor 15,3).

2. A COMUNIDADE PRIMITIVA DE JERUSA.UlJM

As informações sumárias dos Atos sobre a vida em comum


da comunidade primitiva (2,42-47; 4,32-35) • têm a tendência indis-
cutível de apresentar um quadro ideal dos tempos primitivos da
Igreja. Deve-se levar em consideração na exegese do quadro lucano
da comunidade primitiva o fato de Lucas simplificar a história
(cf. a concepção dos doze apóstolos) e não conhecer ou não querer
conhecer alguns problemas internos da Igreja (cf. a suavização da
discutida teologia paulina na Igreja primitiva).' Realmente, várias
tradições pertinentes podem ter sido reelaboradas, e o começo de
uma comunidade é em geral o tempo dos ideais.
Considerando a Igreja de seu tempo, o autor de Atos acentua,
em sua caracterização da comunidade primitiva, a fidelidade dos
membros «à doutrina dos apóstolos» e a «comunhão» na fé (2,42a;
4,32). Elementos formadores da comunidade eram a solidariedade
dos fiéis «no partir do pão e nas orações» (2,42b) bem como a
ceia que era celebrada, em revezamento, nas casas numa feliz expec-
tativa da nova vinda do Senhor (2,46). Não há necessidade de se
negar um núcleo histórico ao relato sobre a comunhão de bens da
comunidade primitiva (2,44s; 4,32.34-37), mesmo que o interesse
lucano pelos pobres e as intencionadas associações com utopias filosó-
ficas sobre o Estado possam ter influenciado o texto. A necessidade
do coirmão cristão não podia deixar indiferentes os ricos, uma vez
que a riqueza, conforme a mensagem de Jesus, era um negócio espi-
ritualmente perigoso (Mc 10,25). Não havia, porém, um abandono
geral dos bens nem uma transferência obrigatória da propriedade
privada (cf. Qumran) (5,4). A pertença, ainda subsistente, ao povo

3. Cf. J. E c k e r t, Wesen und Funktion der Radikalismen in der


Botschaft Jesu, em Münchener TheoL Zeitschr. 24 (1973), 301-325.
4. Ver ainda At 1,14; 5,12-16; 6,7; 9,31.
5. Cf. J. E c k e r t, Paulus und die J erusalemer Autoritiiten nach
dem Galaterbrief und der Apostelgeschichte, em J. E r n s t, Schriftauslegung.
Beitrãge zur Hermeneutik des NT und im NT, Paderborn 1972, p. 281-311.

30 [1202]
e à comunidade religiosa judaica (2,46s; 5,12) evitou muitos proble-
mas que, mais tarde, deveriam aparecer com a aceitação de pagãos.
No seio da comunidade fraterna, as velhas diferenças religiosas
e sociais estavam superadas. Contudo, Lucas não pôde negar todas
as diferenças entre grupos. Precisava falar dos «helenistas» da
comunidade primitiva de Jerusalém, pois esses judeu-cristãos de
língua grega simplesmente não poderiam ser omitidos em sua «His-
tória da Igreja», ao descrever a propagação do Evangelho de Jeru-
salém e Samaria até os confins da terra (At 1,8).
Lucas ligou a formação de um grupo de sete homens, tendo
à frente Estêvão, com as dificuldades no atendimento diário das
viúvas dos helenistas (6,1-6). Mas o relato de Atos está longe de
ser claro neste ponto. A própria descrição de Atos não pode susten-
tar que os sete foram nomeados pelos doze para servir às mesas
para que estes se pudessem dedicar livremente à pregação. Estêvão
e Filipe são descritos como evangelistas cheios do Espírito (6,8-8,40).
Os sete foram, antes, os representantes líderes dos judeu-cristãos
helenistas em Jerusalém e suas viúvas foram preteridas não devido
à sobrecarga dos doze mas devido a tensões na comunidade primitiva.
Qual a razão delas?
O relato igualmente bem abreviado sobre a perseguição da
comunidade de Jerusalém «com exceção dos apóstolos» (8,1), a
mencionada crítica profética de Estêvão ao templo e ao culto
(7,46ss) e seu apedrejamento (8,54-60) tornam evidente que os
judeu-cristãos helenistas provindos da diáspora - certamente tam-
bém firmados na motivação suplementar da nova fé' - encaravam
a Torá e a tradição religiosa de modo mais liberal do que os judeu-
cristãos da Palestina que, além disso, provinham, em sua maior
parte, da zona rural da Galiléia. Perseguidos foram, provavelmente,
só os helenistas. Os fatores sociológicos da procedência e formação
diversas que levavam a uma posição diferente com relação à lei
foram, evidentemente, uma carga para a comunidade primitiva de
Jerusalém; mas as relações entre os helenistas expulsos e a comu-
nidade primitiva mostram que todos se esforçavam por conseguir
a unidade e a fraternidade.

6. M. H e n g e I, Zwischen Jesus und Paulus. Die «Hellenisten», die


«Sieben» und Stephanus, em ZThK 72 (1975), 185, frisa que «os judeus
que regressaram da diáspora para Jerusalém não eram, via de regra,
exatamente 'liberais' ». Deve-se distinguir, porém, a mobilidade religioso-
espiritual dos judeus «cristãos» daquela atitude dos outros membros das
sinagogas helenistas em Jerusalém.

31 [1203]
3. A COMUNIDADE DE ANTIOQUIA

Como uma das mais importantes comunidades cristãs primiti-


vas temos, em segundo lugar, Antioquia da Síria, pois aqui, segundo
Atos 11,19-26, os helenistas expulsos de Jerusalém se dirigiam com
seu Evangelho aos pagãos. E esta comunidade formada por cristãos
procedentes do judaísmo e do paganismo foi também o ponto de
partida da missão paulina entre os pagãos (At 13,1-3; 15,36-40;
GI 2,11-14).
Ainda que tivesse havido anteriormente conversões esporádicas
de pagãos - o autor de Atos eleva a conversão do centurião pagão
Cornélio à categoria de princípio (10,1-11,18) - o princípio do
convívio em pé de igualdade dos judeu-cristãos circuncidados e per-
tencentes à aliança de Abraão com os gentio-cristãos incircuncisos
na comunidade cristã de Antioquia foi uma novidade teológica e
histórico-eclesiástica de um alcance histórico que dificilmente pode
ser sobrestimado. Os discípulos de Jesus receberam pela primeira
vez o nome «cristãos» de modo específico em Antioquia (At 11,26).
A separação do judaísmo estava se evidenciando. Como o demons-
tram os protestos do lado judeu-cristão contra esse desenvolvi-
mento 7 e os debates intra-eclesiais dessa questão no concílio dos
apóstolos pelo ano 50 d.C., o desenvolvimento «ecumênico» histó-
rico antecipou-se, de certa forma, à teologia. A missão entre os
pagãos que começou devido à expulsão dos helenistas e para a qual
esses missionários se sabiam, sem dúvida, autorizados no Espírito
de Cristo teve que ser ventilada desde logo teologicamente em toda
a Igreja. Com isso o fato histórico da missão entre os pagãos e seus
êxitos obrigaram a conclusões teológicas no sentido de seu reco-
nhecimento (cf. GI 2,7-9; At 15,12).
Quão pouco já haviam sido solucionados todos os problemas
mostra-o o conflito dos apóstolos em Antioquia, em época posterior
ao concílio dos apóstolos (Gl 2,11-14).8 Por insistência de gente
de Tiago de Jerusalém, Cefas, Barnabé e os demais judeu-cristãos
deixaram de comer na mesma mesa com oS gentio-cristãos. Possi-
velmente tratava-se inclusive da ceia do Senhor. Renegavam pelo
menos de vez em quando sua práxis liberal e cristã e se dobravam
à norma judeu-cristã conservadora que - apoiada na resolução do
concílio dos apóstolos: «nós (Paulo e Barnabé) aos pagãos, eles

7. Cf. At 11,3; 15,15; Mt 10,00; Gl.


8. Cf. ainda a bibliografia mencionada na nota 5 e F. M u 5 5 n e r,
Der Galaterbrief, Friburgo n.B. 1974, p. 132-167.

32 [1204]
(Pedro e os outros missionários judeus) aos circuncidados» (GI 2,9)
- exigia dos judeu-cristãos a observância das prescrições da Lei e,
com isto, a proibição de comer à mesma mesa com os gentio-cristãos.
A crítica de Paulo é extremamente forte. Se obteve êxito em An-
tioquia - visto a curto prazo - é duvidoso, pois nada diz a res-
peito na epístola aos Gálatas ao narrar o conflito com seus oposito-
res judaizantes e também em suas cartas não mais é mencionada
a comunidade de Antioquia. O assim chamado decreto apostólico
(At 15,19s.28s) que Paulo desconhece - Atos por sua vez ignora o
conflito de Antioquia - é antes uma posterior resposta teológica
de compromisso quanto a este problema da comunidade.
Em princípio, porém, foi introduzida na práxis da Igreja, atra-
vés dos missionários helenísticos e da comunidade helenista, a con-
cepção que Paulo exprime em GI 3,28 da seguinte forma: «Já não
há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mu-
lher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (cf. 1Cor 12,13;
CI 3,11). A fórmula que aparece no contexto da menção do batismo
(v. 27) significa que a nova unidade dos crentes em Cristo, que
eles alcançaram pela fé e pelo batismo, deve ser mais forte do que
as categorias separatistas da diferença religiosa, social e sexual.
A l' epístola aos coríntios dá um eloqüente testemunho da realiza-
ção entusiástica, e ao mesmo tempo penosa, desse princípio funda-
mental cristão.

4. A COMUNIDADE DE CORINTO

Não foi na tradicional Atenas, mas na reconstruída Corinto


(cerca de 44 a.C.), ponto de intercâmbio de comércio e de idéias
entre o Ocidente e Oriente, crisol para pessoas das mais diversas
procedências étnicas, sociais e religiosas, que teve origem a maior
e mais florescente comunidade da missão paulina no Ocidente.
Por mais que na fase inicial da comunidade, no esforço de
angariar adeptos, fossem dominantes' a pessoa do apóstolo e a
compreensão da nova mensagem redentora que vinha de encontro
à necessidade largamente difundida de salvação, logo porém exerceu
também fascínio decisivo, exatamente para os membros das cama-
das sociais inferiores, a experiência da fraternidade nas reuniões e
na superação das dificuldades vitais. Segundo lCor 1,26 não havia

9. Cf. A. S c h r e i b e r, Die Gemeinde in Korinth. Versuch einer


gruppendynamischen Betrachtung der Entwicklung der Gemeinde von
Korinth auf der Basis des ersten Korintherbriefes, Münster 1977.

33 [1205]
na comunidade «muitos sábios segundo a carne», «nem muitos po-
derosos» e «nobres», mas as pessoas simples eram maioria. Contudo
não faltavam membros com posses, cultura e prestígio social. ,.
Os problemas da comunidade discutidos em 1Cor dão a entender
isso. Mas devemos considerar aqui especialmente as comunidades
familiares (cf. At 18,7s; 1Cor 1,16; 16,15). Essas comunidades reli-
giosas familiares (cf. também 1Cor 16,19; At 1,3; 2,46; 12,12;
20,8.20), que tinham sua analogia 11 nas comunidades de culto hele-
nísticas mas também nos inícios da sinagoga da diáspora, não
podem ser subestimadas em sua função formadora da comunidade.
Eram também muito importantes missionariamente para angariar
novos adeptos. Sem dúvida podem ter promovido também a forma-
ção de grupos.
Devemos registrar em princípio e em primeiro lugar a grande
extensão de liberdade, igualdade e fraternidade que levou a uma
comunidade de cunho carismático em que as experiências espirituais
de cada um eram muito valorizadas (cf. 1Cor 12-14). Nas reuniões
da comunidade todos podiam ter a palavra; também às mulheres
não era proibido falar quando inspiradas (11,5). Evidentemente, o
apóstolo não pretendeu uma distribuição hierárquica das funções nos
aproximadamente 18 meses de sua estada fundadora ali (At 18,11).
A grande valorização dos dons do Espírito (lCor 12,1) teve
como conseqüência uma sobrestima da manifestação extraordinária
do Espírito (por exemplo, a glossolalia) e a divisão da comunidade
em duas classes: uns se consideravam os bem dotados pelo Espí-
rito, os pneumáticos; os outros ficavam amedrontados na qualidade
de menos aquinhoados. Aos pneumáticos pertenciam aqueles que
julgavam ter especial «sabedoria» e «conhecimento» (gnose) (8,1;
12,8; 13,1-4). Em suas fileiras deveriam estar fortemente represen·
tados os de melhor posição social e prestígio. A liberdade cristã,
entre os presunçosos pneumáticos (4,8.19s), descambou para o dito:
«tudo é lícito» (6,12; 10,23), mais precisamente para o libertinismo
moral (6,12-20) e para o comer carne sacrificada aos ídolos (8,4.10);
alguns não tinham vergonha de tomar parte na ceia cultual no tem-
plo (8,10) enquanto que a maioria, em seus compromissos sociais,
comia carne sacrificada ou comprava-a no mercado. O comporta-

10. Cf. G. T h e i s s e n, Soziale Schichtung in der korinthischen Ge-


meinde, em ZIDV (1974), 232-272.
11. P. S tu h 1 m a c h e r, Urchristliche Hausgemeinden: Der Brief an
Philemon, (EKK 1975), 70-75.

34 [1206]
mento desses «fortes» era motivo de escândalo para os «fracos»
(8,7-13).12
Em sua resposta Paulo, considerando os dons do Espírito,
aponta para a diversidade dos carismas (12,4-11) que, a exemplo dos
membros do corpo, se completam mutuamente e devem atuar se-
gundo o critério da edificação da comunidade (12,7.14). Pelo fato
de cada um «ter de Deus sua própria graça» (7,7) e de o amor ser
o maior dom do Espírito (13; GI 5,22), cada cristão é, em princípio,
um «espiritual» (GI 5,13-6,10). O clericalismo é na comunidade
frat erna inoportuno. No tocante a comer carne sacrificada aos
ídolos insiste o apóstolo, em princípio, no ponto de vista cristão
esclarecido e livre de que «não há ídolos no mundo» (8,4), mas
quando se exige profissão de fé cristã, isto deve ficar de lado
(10,20s.28s), e a liberdade cristã encontra seus limites lá onde o
irmão pode se escandalizar (8,9.13).
Ainda que Paulo saiba que as diferenças sexuais e sociais
tenham sido abolidas em Cristo (GI 3,28), não está em seu pro-
grama mudar a ordem das coisas neste mundo «porque passa a
aparência deste mundo» (7,31). Ele chama a atenção das mulheres
para o uso convencional (11,16) e dos escravos para o seu estado
(7,20). No entanto atribui à mulher os mesmos direitos do homem
(7,3-5.10-17) e diz que o escravo é um «liberto do Senhor»" e o
livre, «escravo de Cristo» (7,22).
Com toda energia volta-se o apóstolo contra partidarismos que
surgiram após seu afastamento de Corinto e que assumem o cará-
ter de comunidades pessoais (1,12), mas que com isso renegam a
unidade em Cristo (1,13; 3,11). Sua crítica também atinge as divi-
sões por ocasião da ceia do Senhor (11,17-34)." Alguns membros
da comunidade, provavelmente os mais posicionados socialmente,
que podiam chegar mais cedo do que os escravos e pessoas pobres
ocupadas em suas obrigações de trabalho, já se adiantavam a tomar
sua própria ceia que haviam trazido, de forma que ao iniciar-se a
verdadeira celebração da Eucaristia «um passa fome, outro está
bêbado» (v. 21). Esta se transformou numa questão «sacramental»
isolada sem ter verdadeiro efeito formador da comunidade. A isso
acrescenta o apóstolo: Isto não é mais comer a ceia do Senhor

12. Cf. G. T h e i s s e n, Die Starken und Schwachen in Korinth.


Soziologische Analyse eines theologischen Streites, em Evang. TheoI. 35
(1975), 155-172.
13. Cf. Fm 15s.
14. Cf. G. T h e i s s e n, Soziale Integration und sakrarnentales Han-
deln. Eine Analyse von lKor. XI 17-34, em Nov. Test. 16 (1974), 179-206.

35 [1207]
(v. 20). Quando na celebração da ceia do Senhor, na qual se anun-
cia a morte do Senhor e se passa o cálice da nova aliança (v. 25s),
não se consolida a fraternidade cristã, então a celebração da Euca-
ristia permanece incompreendida, um comércio sacramental ineficaz
(cf. também Mt 5,23s). O significado profundo da ceia do Senhor
é antes: «Porque somos um só pão e um só corpo, apesar de muitos,
pois todos participamos desse único pão» (lCor 10,17). A realiza-
ção dessa unidade em Cristo é uma tarefa contínua.
Ê a tragédia da história cristã: após a integração, basica-
mente alcançada, dos homens de diferente procedência religiosa,
étnica e social numa única comunidade fraterna, esta unidade sem-
pre de novo foi questionada pelas diferenças de credo dentro da
Igreja. O desejo de fraternidade deveria, segundo a mensagem de
Cristo, ser mais forte do que a práxis farisaica separatista, e cada
comunidade cristã de fé deve descobrir sempre de novo a função
criadora de unidade da ceia do Senhor. Quem não recolhe com
Cristo, dispersa (Mt 12,30).
Tradução de
Edgar Orth

36 [1208]
Charles Pietri

os
CRISTÃOS E OS ESCRAVOS
NOS PRIMEIROS TEMPOS DA IGREJA
(SÉC. II E III)

«Não há escravo, nem homem livre. .. Todos sois um em Cristo


Jesus». Que esperança podiam anunciar estas palavras do apóstolo
às tropas de escravos que povoavam o império romano, a esses
proletários subjugados freqüentemente às penas dos trabalhos mais
humildes e sempre marcados pela ignomínia da desigualdade jurídica?
Podemos imaginar a variedade das respostas, como também
suas implicações teológicas. No século XIX, os católicos sociais
e os abolicionistas que combatem a escravidão colonial desejariam
ardentemente que a Igreja tivesse rompido as cadeias da servidão,
porque procuravam um modelo para o seu protesto. Mas o talento
de Moeller e de Ozanam, as sumas eruditas de H. Wallon ou, no
fim do século, de P. Allard, mal conseguiram resistir, nesta questão,
às investidas de uma filologia científica. Um teólogo protestante,
Overbeck (+1905), demonstrou que não se podia defender esta causa
colocando no mesmo plano os testemunhos da Igreja primitiva (sé-
culos II e III) e os de uma literatura hagiográfica forjada três
séculos mais tarde. O sucesso desta crítica revigorou todo o mo-
vimento de idéias que, naturalmente, colocava a Igreja no partido
da intolerância e da tirania, desde a época das Luzes. Se a condição
servil foi melhorada na antigüidade, o mérito cabe a Sêneca e aos
estóicos cuja influência sobre a legislação romana ainda hoje é
ressaltada pelo historiador do direito: em matéria social, os cristãos
plagiam com desvantagem os filósofos pagãos.
Mas, como limitar a história da escravidão à história de uma
reforma legislativa, negligenciando a coação dos mecanismos econô-
micos e a tensão dos ódios sociais? Em 1899, o italiano Ciccotti
serve-se de Marx, de Engels e também do americano Cairnes que
tinha demonstrado a rentabilidade medíocre do trabalho servil nas
plantações confederadas. O sistema escravista deslocou-se progres-
sivamente - e provisoriamente - quando a utilização dos traba-

37 [1209J
lhadores livres se demonstrou mais rentável, mais cômoda e menos
perigosa. A pregação cristã e a dos filósofos acompanham uma evo-
lução que não lhes deve grande coisa. Até mesmo - na opinião
de alguns - essas ideologias refrearam o movimento acalmando
a revolta do escravo subjugado com a promessa ilusória de uma
liberdade interior. Finalmente, apologistas decepcionados invertem
suas baterias: uma vez que a Igreja primitiva não pode servir-
lhes de modelo para as lutas do tempo presente, ela cometeu uma
espécie de pecado, uma falta historicamente irremediável.
Neste debate, minado de armadilhas ideológicas que não podem
ser totalmente evitadas, o historiador deve armar-se de precauções.
Em primeiro lugar, reconhecer que a Igreja - esta realidade insti-
tucional e social objeto de seu estudo - reúne habitualmente no
movimento de sua longa história o PovereIlo de Assis e Torque-
mada. Não pode o historiador privilegiar a importância do segundo
em detrimento do primeiro. Tratando-se da Igreja primitiva, deve-
mos falar da Igreja como de uma força poderosa, homogênea, capaz
de impor-se ao Estado e de afrontar coerentemente os problemas
de uma sociedade escravista? As pequenas comunidades, através
das quais se dissemina a cristandade, professam quase (todas) a
mesma fé, mas durante os primeiros séculos essas minorias submer-
sas numa sociedade que primeiro as ignora e depois as vigia e ator-
menta, esforçam-se em resolver as dificuldades de sua presença
no mundo da maneira mais conveniente conforme os problemas
propostos a cada um pela sua composição social. Aqui, deve-se
contar com cristãos vindos da sinagoga; acolá com um grupo mais
numeroso de escravos. E, de resto, para fazer-se uma idéia da socie-
dade de seu tempo, os cristãos utilizam um instrumentário mental,
todo um complexo de representações coletivas em que a escravidão,
como a guerra, é aceita como inevitável. Então a idéia de uma
revolução evoca geralmente a subversão do pessoal ou das institui-
ções políticas, ou até uma mudança de estruturas na exata propor-
ção em que uma inversão dos papéis lança na escravidão os antigos
senhores.
Como conciliar a proclamação de Paulo com as coações da vida
social? As primeiras experiências de comunidades estáveis nos pri-
meiros séculos - antes do estabelecimento de um império cristão
no século IV - talvez ilustrem a tentativa das Igrejas de superar
as declarações de princípio, quando não para esboçar uma doutrina
social, pelo menos para fixar uma prática.

38 [1210]
1. UMA CONTESTAÇÃO DE PRINCIPIO

No começo temos Paulo cuja contestação de princípio nega à


escravatura toda a legitimidade. Mas para compreender melhor o
apóstolo e o que após ele diz a pregação cristã, não esqueçamos
Sêneca, o primeiro que proclamou tão energicamente no Ocidente
latino a fraternidade dos homens e a humanidade dos escravos.
Os juristas, na esteira de Sêneca, repetem que, diante do direito
natural, todos os homens são iguais. Esta igualdade não exclui as
diferenças, mas a verdadeira hierarquia não resulta das condições
jurídicas. Triunfando das paixões que o dominam, o escravo pode
atingir a verdadeira liberdade e superar o patrão, escravo de seus
desejos. Mas a idade áurea da fraternidade natural degradou-se numa
sociedade em que a escravidão parece inevitável: cabe ao escravo
conquistar uma liberdade interior dominando sua impaciência e ao
patrão tratar seu servo como um humilde amigo. Para o segundo,
acrescenta Sêneca um conselho de prudência com este traço terrível:
«quantos escravos, tantos inimigos».
Os cristãos não utilizam exatamente a mesma linguagem. Não
é o direito da natureza que faz com que os homens sejam iguais;
é o direito de Deus. O apologista Minucius Felix o explica, nos
primeiros anos do século III, à intelIigentsia pagã: «Nós nos cha-
mamos irmãos como homens tendo um único e mesmo Deus como
pai. .. » De resto, conforme repete toda a literatura cristã posterior
a Paulo - os apologistas, Ireneu de Lião - , não há hierarquia:
antes de termos sido resgatados por Cristo, toda a humanidade
vivia na escravidão do pecado. Não há necessidade de insistirmos
aqui no desenvolvimento (bem conhecido) da teologia paulina, a
não ser para observar que, buscando uma analogia, o apóstolo
equipara espontaneamente a escravidão ao mal e ao pecado. Esta
alienação coletiva - falando, a exemplo de Paulo, a linguagem da
época - deita raízes no coração de cada homem, mas também diz
respeito às estruturas sociais. Para Sêneca, a escravidão se mani-
festa como uma perturbação da natureza. Ireneu de Lião (como
todos os comentadores de Paulo) explica: «Quando o homem se
separou de Deus chegou a tal grau de selvageria que considerou
até seus próprios parentes como inimigos ... » A escravidão do pe-
cado não poupa ninguém. Sêneca sempre sugere que certos homens
têm mais capacidade de razão podendo, portanto, melhor que outros,
dominar suas paixões e atingir a verdadeira liberdade. Um dos
primeiros filósofos cristãos, Clemente de Alexandria, retruca, citan-

39 [1211]
do Platão, que o VICIO escraviza e que todos nós somos escravos
do pecado. Este nivelamento total faz cair por terra toda hierarquia.
Mas, para proclamar a esperança cristã, o resgate por aquele
que revestiu a forma de escravo (FI 2,7), Paulo e toda uma litera-
tura cristã se referem ainda ao vocabulário da sociedade escravista.
Citemos uma outra testemunha, Justino, um filósofo que se tornou
cristão, estabelecido em Roma (no século II): «Foi para restaurar
ao mesmo tempo os livres e os escravos. " que Cristo veio, conce-
dendo uma dignidade igual a todos aqueles que observam seus
mandamentos». Para comentar esta libertação (ainda uma fórmula
paulina significativa) a pregação encontra toda uma espiritualida-
de do Antigo Testamento exaltando o pobre, o servo, que merece
por sua obediência a proteção particular de Deus. O Evangelho de
Lucas (1,38) dá um modelo: «Eis a serva do Senhor», diz Maria
na anunciação. Percebe-se bem por alguns indícios que este discurso
impressiona o povo cristão, começando os fiéis a atribuir-se o título
de escravo do Senhor. Assim Euelpistos que pertence ao imperador
declara ao prefeito de Roma que é cristão, libertado por Cristo,
outrora escravo de César, doravante escravo de Cristo. Basta esta
resposta para avaliar a força crítica da pregação cristã. Nesta socie-
dade antiga onde renasce, depois de um eclipse, o sentido do sagra-
do, a fraternidade dos homens é de direito divino. Enquanto a
escravidão considerada como sistema pertence ao mal, a imagem
do escravo (como a imagem do pobre) entra na história para dar
o exemplo da humildade a serviço de Deus. Os filósofos confiam
suas reflexões a um círculo restrito, mas a mensagem de Paulo e
de seus sucessores repercutiu em toda a bacia do Mediterrâneo,
através do eco dos pastores e dos missionários.

2. UMA DOUTRINA SOCIAL?

Está implícita, nestes princípios revolucionários, uma doutrina


social, uma política da abolição? Antes de acusar de idealismo os
pregadores da nova religião, urge interrogar os filósofos e os juris-
tas pagãos que denunciam a escravidão mas que participam mais
ou menos diretamente do poder. Ora, o efetivo do povo servil, tor-
nado pletórico na Itália graças às grandes conquistas, decresce sem
dúvida no século II. O império - praticamente estabilizado -
parou de saquear novos povos e a onda de cativos lançados no
mercado dos escravos começa a extinguir-se. Surge a necessidade de
contar com as importações do comércio, com o tráfico de crianças

40 [1212]
vendidas ou abandonadas, com as práticas proibidas do tráfico de
escravos. A criação de um plantel humano provavelmente não com-
pensa a força de uma poderosa corrente de alforria imposta pelo
comportamento coletivo dos patrões na sociedade romana. Esta
evolução que, provavelmente, não depende da propaganda filosófica
(não temos a intenção de analisá-la aqui) poderia ter incentivado
uma política da abolição. Ora, a influência do estoicismo, exercida
desde o século II, por intermédio dos juristas, jamais pesou para
suprimir o sistema: deve-se-Ihe uma legislação humanitária que
proíbe os abusos do proprietário enviando seus dependentes ao lupa-
nar ou às feras, que condena a ferocidade dos senhores mutilando
ou assassinando seus servidores. A lei abrandou em alguns casos os
processos da alforria; ela não liberta os escravos, todos os escravos.
Paulo, como Sêneca, também não prega a abolição: nem mesmo
está seguro - baseando-nos no testemunho obscuro de 1Cor 7,21 -
de que tenha incentivado a libertação. De qualquer forma, os pas-
tores e os moralistas do século II não impõem ao patrão convertido
a obrigação de libertar seus eScravos. Indiferença de espirituais que
negligenciam o presente por acreditarem bem próximo o fim dos
tempos? Não é o que parece. São antes as seitas inflamadas pela
esperança de um fim iminente que pregam a destruição das estru-
turas sociais. A propaganda pela libertação dos escravos só aparece
mais tarde, numa literatura hagiográfica, no tempo do império
cristão. Mas, na época, o silêncio de Paulo tornou-se um álibi para
o conservantismo social, porque, nos primeiros séculos, sob as apa-
rências de uma grande prudência, a pregação cristã delineia todo
um sistema de regras que visam direta ou indiretamente o sistema
escravista. Ela condena os jogos do circo onde corre o sangue do
escravo. Com Clemente de Alexandria, serve-se da diatribe dos mo-
ralistas pagãos para fustigar os excessos de luxo que multiplicam
os escravos na casa do rico. Mas ela fala também a língua da Bíblia
para celebrar a virtude insubstituível do trabalho, que torna inútil
o serviço de uma domesticidade pletórica. Mais insistente, a proibi-
ção lançada contra todos os tráficos que garantem o abastecimento
do mercado de escravos: o abandono das crianças, a venda do ho-
mem como animal. As Igrejas não afastam de suas comunidades os
proprietários de escravos mas excluem, sem exceção, os traficantes
e todos os mercadores de homens (lTm 1,10). As prescrições desta
moral social parecem parciais? Elas ilustram a imagem concreta
que os cristãos se faziam da escravidão. Eles conhecem só a escra-
vidão das cidades, seu luxo e seus prazeres. Pois são necessários

41 [1213]
ainda dois séculos para que a mlssao saia verdadeiramente da
cidade e descubra o povo miserável dos campos. Assim se delineia
a geografia da influência exercida concretamente pela contestação
e pela moral dos cristãos.
A composição social das primeiras comunidades também con-
tribuiu para cristalização dos hábitos, para a prática de um com-
portamento. Descartemos de saída uma lenda segundo a qual o cris-
tianismo em suas origens seria uma religião de escravos. A respon-
sabilidade desta ilusão cabe a um polemista pagão do século II,
Celso. Para ele, esta religião, professada por pregadores analfabe-
tos, só podia recrutar as mulheres do campo e os escravos. Na reali-
dade - conforme a recente investigação de F. Bõmer - os escra-
vos praticavam geralmente os mesmos cultos de seus senhores. De
qualquer forma, não procuravam um Deus cuja humildade fosse
o reflexo de sua própria dependência. A pobreza de nossas fontes
quase não permite reconstituir seguramente a sociologia das pri-
meiras cristandades, mas todos os indícios convergem para sugerir
que nos primeiros tempos os escravos geralmente foram convertidos
ao mesmo tempo que seus senhores. Onésimo, o escravo que procura
asilo junto a Paulo, pertence ao cristão Filêmon. O apóstolo em
sua epístola aos romanos saúda a «casa» de Aristóbulo, os da «casa»
de Narciso, isto é, os homens livres com sua domesticidade. Em
Corinto, segundo os Atos dos Apóstolos, Crispo, chefe de sinagoga,
a braça a fé do Senhor com toda a sua «casa» (18,8).
Este último exemplo sugere uma outra observação, desta vez
concernente aos patrões. Os historiadores especularam freqüente-
mente sobre a influência dos estóicos esquecendo a influência que
puderam exercer os judeu-cristãos. E isto com tanto mais razão
porque o judaísmo abriu o caminho da contestação cristã e porque
propôs o modelo de um comportamento original, minuciosamente
regulado. No século III, o cristão Orígenes exalta ainda a lei judaica
sobre a escravidão, considerada muito mais justa que o sistema
pagão. Esta lei distingue entre o escravo judeu e o «cananeu».
O primeiro deve ser libertado em princípio depois de seis anos de
servidão, durante os quais ele é cuidadosamente protegido. O patrão
deve partilhar fraternalmente trabalho e alimentação, acolher, se
necessário, a família de seu servo. Quem compra um judeu, dizem
os rabinos, adquire um senhor. Enfim, a lei proíbe vender um filho
de Israel a um gentio e recomenda o resgate dos judeus cativos.
Com o cananeu o comportamento muda: os doutores da lei não
aconselham particularmente a libertação, mas prescrevem converter

42 [1214]
o servo uma vez que é difícil partilhar sua vida quotidiana com o
gentio. Purificado com o banho dos prosélitos, o escravo é daí em
diante mais bem protegido, pois pertence virtualmente à comuni-
dade da Aliança.

3. UMA CONTRA-SOCIEDADE

o cristianismo interpreta livremente este modelo: na nova


Aliança não há mais grego, nem judeu. Paulo esboça o ideal de
uma comunidade fraterna, uma espécie de contra-sociedade que
reúne em pé de igualdade os servos de Deus. No que lhes diz respei-
to, as igrejas aboliram mais amplamente que os colegas pagãos
e melhor que as sinagogas toda distinção social. Todos os batizados
participam nos mistérios junto daquele que preside a sinaxe. Ê claro
que o patrão é consultado quando o escravo pede o batismo. Mas
esta disposição se explica pela preocupação de comprovar toda
candidatura por uma espécie de apadrinhamento, geralmente cons-
tatada. A precaução tem menos cabimento quando o patrão é pa-
gão, e a prática das igrejas diverge neste ponto. Algumas, no
Ocidente, passam por cima da oposição do proprietário. Outras,
mais solícitas em não misturar os conflitos sociais à conversão.
respeitam curiosamente o poder do patrão. Mas isto é apenas uma
dissonância, porque o batismo desfaz toda distinção e as igrejas
recrutam sem reticências seus ministros entre os escravos. A car-
reira do papa Calisto constitui um exemplo brilhante desta pro-
moção social propiciada pelo serviço da Igreja. Escravo de um
liberto imperial, o futuro bispo recebe a incumbência de abrir um
estabelecimento financeiro mais ou menos legal. Deportado para a
Sardenha porque o negócio acabou mal, volta aureolado como um
mártir. Tornou-se diácono e como tal organizou o cemitério da Igreja
que recebia, sem distinção, todas as sepulturas, porque o antigo
escravo animava a pastoral de um espírito mais igualitário. Nota-se
isso muito bem quando o bispo aceita legitimar - do ponto de
vista ético-cristão - a união estável de uma mulher livre com
escravos cristãos. Calisto se preocupa em preservar a vida moral
de aristocratas que recusam um cônjuge de sua posição, porém
pagão, e que não podem oficialmente contratar uma aliança tão
desigual sem perder sua posição. Para evitar um casamento desigual
no plano espiritual, ele não se importa com as leis e coloca nas
mesmas condições a mulher livre e a escrava. Jamais a disciplina
cristã tentou, tão claramente, constituir uma comunidade regida por
suas próprias leis, à margem da sociedade civil.

43 [1215]
Observou-se que as disposições de Calisto só podem aplicar-se
às famílias já cristãs: por elas a comunidade, edificada fora da
cidade secular, pode inserir-se menos mal no mundo. É no seio
destes grupos domésticos que a pastoral cristã se preocupa em trans-
formar as relações dos senhores e dos escravos unidos na fraterni-
dade de uma fé comum. Paulo devolve a Filêmon, proprietário
cristão, o fugitivo Onésimo, pois a lei lhe veda dar-lhe asilo, «não
mais a título de escravo, mas como um irmão». Mais concretamente,
a literatura do século II e III pormenoriza uma casuística dos deve-
res impostos ao proprietário que lembra a dos rabinos, comentando
a lei judaica da escravidão: cabe ao patrão a responsabílidade de
proteger, a obrigação de dar uma educação, o encargo de uma
vigilância moral. Mais ainda que o rabino, o pastor cristão convida
o senhor a converter seu servo pagão, numa palavra, com;tituir um
pequeno grupo protegido, no qual se esboça a fraternidade da
Igreja. Os escravos recebem prescrições de humildade e de obediên-
cia que constam em todos os manuais de disciplina (a Doutrina dos
Apóstolos), em todas as cartas pastorais (a Epístola a Barnabé) e
em todos os tratados (os de Tertuliano ou de Clemente de Alexan-
dria), a contra-partida necessária ao paternalismo exigido do se-
nhor. Dificilmente pode-se escrever mais concretamente a história
dessas pequenas sociedades; não sejamos otimistas demais. No
começo do século IV, o concílio espanhol de Elvira pune, com uma
penitência bastante prolongada, a patroa que levou à morte por
espancamento sua escrava. Em todo caso, o clero continuava a
exercer sua vigilância e pode-se imaginar que geralmente a condição
do escravo numa casa cristã lembra um pouco a vida do escravo
entre os judeus, evocada especialmente pela literatura talmúdica.

4. O ESCRAVO MARTIR

Resta lembrar, além disso, a condição do cristão a serviço de


um dono pagão. Sujeito em seu trabalho e em seu corpo à vontade
e aos caprichos do patrão, corre o risco do cárcere ou o envio ao
lupanar, se quiser permanecer fiel a seu compromisso moral. Conta-se
que Potamiana preferiu ser imersa em piche fervente a ceder às
solicitações do patrão. Outro perigo se apresenta quando o donQ
começa a preocupar-se com o zelo missionário de seus escravos.
Celso já atesta e Tertuliano relata o furor do marido pagão que
enviou ao ergástulo o escravo que converteu a patroa a uma moral
conjugal bem pouco condescendente. De modo geral, a vida numa

44 [1216]
casa pagã não é fácil para os cristãos que devem abster-se das
consolações que suavizam a vida servil, dos prazeres dos espetá-
culos e da promiscuidade.
As comunidades cristãs também se sentem obrigadas a um de-
ver particular de assistência, como as sinagogas em relação aos
prisioneiros judeus. Colocam-se do lado dos pobres, da viúva, do
órfão, deste cativo permanente que é o escravo e recomendam fre-
qüentemente seu resgate. No começo do século II, Clemente de Roma
lembra o devotamento de fiéis que se vendem para pagar o resgate.
Nos meados do século, o autor de um apocalipse, Hermas, aconselha
aos romanos: «Em vez de comprar campos, resgatai homens ... »
Nesta cidade, a Igreja dispõe de uma caixa de assistência alimen-
tada com as coletas, esboçando-se, assim, talvez, a prática da liber-
tação na comunidade, in 'ecc1esia, legitimada no século IV pela lei
do império cristão. Mas o aumento das conversões de escravos
proíbe, com o tempo, generalizar o resgate, desaconselhado pelos
pastores - como Inácio de Antioquia - quando pode incentivar
a adesão interessada e insincera dos escravos. De qualquer forma, as
epístolas pastorais (1Tm 6; 1Pd 2,18) evocam a condição desses
escravos aos quais a primeira epístola de Pedro, como mais tarde
Hermas, aplica a imagem da testemunha ou do Justo sofredor.
Pois as igrejas aconselham a paciência e a obediência a esses
escravos como aos outros; mas elas exigem deles que resistam
quando estiver em causa o compromisso de sua fé. A história - a
das atas autênticas - não reteve muitos nomes para este marti-
rológio. Freqüentemente os servos escaparam à perseguição do es-
tado, que se abatia sobre os homens livres. Alguns nomes sobrevivem
ao esquecimento, como Blandina de Lião, martirizada num pogrom,
pelos fins do século II.
Com este testemunho devemos suspender a análise da influên-
cia cristã, ambivalente: porque há os silêncios, as precauções. Mas
esta minoria é portadora do fermento de uma contestação bem
mais radical que a crítica dos filósofos. Com ela, o escravo - este
liberto e este servidor do Senhor - entra, pelo menos, na história
da Igreja, mais ou menos como ele já estava presente na Bíblia
e na vida das sinagogas.
Tradução de
Lúcia Mathilde Endlich Orth

45 [1217J
BIBLIOGRAFIA SUMARIA

Sobre a escravidão antiga, W. L. We s t e r m a n n, The Slave Systems


of Greek and Roman Antiquity, Filadélfia e as memórias de J. Vo g t,
em particular, Sk1averei und Humanitat. Studien zur antiken Sklaverei
und ihrer Edorschung (Historia Einzels.), Wiesbaden 1968.

o livro antigo de P. A II a r d, Les esclaves chrétiens depuis les premiers


temps de l'Eglise ... Paris 1876 foi contestado por Harnack, Jonkers,
Marc Bloch, Verlinden. Para os primeiros séculos, cf. doravante H.
G Ü I z o w, Christentum und Sk1averei in den ersten drei Jahrhunderten,
Bonn 1969. Para o direito, J. 1mb e r t, Réflexions sur le Christianisme
et l'esclavage en droit romain, em Rev. intel'n. des droits de l'Antiq.
2 (1949), 445-475. Sobre o casamento, J. G a u de m e t, La décision de
Calliste en matiere de marriage, em Studi U. E. Paoli, Florença 1955, 332-344.
Sobre as perseguições, J. S c h e e I e, Zur Rolle der Unfreien in den rõm.
Christenvedolgungen, Tubinga 1970.

46 [1218]
Bernhard Blumenkranz

OS JUDEUS NA IDADE MÉDIA

Se preconizamos, sempre, introduzir um método comparativo


no estudo das relações judeu-cristãs, a imediata proximidade de
nossa contribuição, em nosso caso, não satisfaz plenamente a este
requisito. Não é possível estabelecer nenhuma comparação válida
com respeito à atitude cristã em face dos escravos, no IV século,
ou em relação aos «selvagens» descobertos em o Novo Mundo, no
século XVI. Basta uma simples comparação, para avaliar a dife-
rença não só de grau mas principalmente de natureza: jamais os
cristãos experimentaram a tentação de se fazerem escravos ou sel-
vagens! Em compensação, os judeus e o judaísmo sempre exerceram
sobre os cristãos forte fascínio. Esse fascínio já encontra uma
primeira explicação na comum veneração da Bíblia. Mas, embora
tenha havido, ao contrário, uma áspera oposição entre judeus e
cristãos, ao longo da história, subjacentes a tal oposição sempre
havia uma posse comum do Antigo Testamento e uma atitude dife-
rencial em relação a ele.
Quando Jules Isaac, em seu apaixonado ensaio sobre as rela-
ções judeu-cristãs, intitulou o último volume de L' Enseignement du
mépris (em port.: «O ensino do desprezo»), teve uma intuição de
1

verdadeiro historiador. Se abrimos o Dictionnaire . . " de Robert, no


vocábulo «mépris» (desprezo), logo encontramos uma definição
que recorre à palavra «indigne» (indigno) e, vice-versa, sob o
verbete «indigne», encontramos «mépris».2 Embora de bom grado
concordemos com Jules Isaac, quanto à importância concedida à
consideração social, não aceitamos sua tese de que não houve, pra-
ticamente, nenhuma mudança na atitude cristã em face dos judeus,
desde o século II até a primeira metade do século XX.
Não nos devemos surpreender se encontramos a nossa própria
interrogação atual muito mais próxima daquela de Lena Dasberg
em suas Untersuchungen über die Entwertung des ]udenstatus im 11.
1. Paris 1962.
2. Paul R o b e r t, Dictionnaire alphabétique & analogique de la
langue française, (nouvelle) réd. par A. R e y et J. R e y de b o ve,
Paris 1978.

47 [1219]
fahrhundert. 3 O termo «Entwertung», que corresponde ao nosso
«depreciação», «desprezo», «aviltamento», basta para nos prevenir
acerca de uma certa dinâmica ou dialética na história das relações
judeu-cristãs. Estamos de acordo em que foi ao longo do século XI
que se anunciou uma modificação. Ora, a modificação total foi
trazida e acentuada, ao mesmo tempo, pela primeira cruzada. Sem
ainda considerar a importância capital das cruzadas na história
geral e, particularmente, na do cristianismo ocidental, é sem dúvida
inegável que a primeira cruzada - em seu primeiro ano - consti-
tuiu uma verdadeira virada na história dos judeus do Ocidente.
A tradição judaica espelha essa convicção, concedendo a esse ano de
1096 uma atenção excepcional. Sua expressão hebraica (lembre-se
que, em hebraico, as letras têm igualmente função numérica, valem
como algarismos) TaTNU ganhou de fato um valor de conceito. Com
razão, tomamos este ano de 1096 como centro de nossa pesquisa.
Quando necessário, para efeitos de comparação, iremos recuar no
tempo e, às vezes, estender-nos-emos também aos séculos posteriores.
Trata-se das relações mútuas. Ora, em e mais ainda a partir de
1096, não somente começa a mudar, fundamentalmente, a atitude
dos cristãos em relação aos judeus, mas também a destes últimos
em relação aos primeiros. Pareceu-nos então oportuno tomar como
base de nossa pesquisa a crônica hebraica mais pormenorizada,
sobre a primeira cruzada, que tem como autor ou, mais precisa-
mente, redator, Salomon bar Simeon. 4

1. A PRIMEIRA GRANDE PERSEGUIÇÃO (1007-1011)

Para começar, remontemos ao século XI, de que há pouco falá-


vamos. Bem no seu início, por volta de 1007 a 1011, temos notícia
da primeira grande perseguição antijudaica, de ampla extensão no
espaço. Com razão, há quem veja nela o remoto anúncio das cruza·
das.' Anúncio, por dois motivos: primeiro, os cristãos do Ocidente
começavam a se mostrar preocupados pelos vestígios monumentais
de sua fé na Palestina, no caso sua emoção quanto à destruição da

3. Haia 1965.
4. A. N e u b a u e r und M. S t e r n, Hebraische Berichte über die
Judenverfolgungen wahrend der Kreuzzüge, ins Deutsch übersetzt von
S. B a e r (Quellen z. Gesch. der Juden in Deutschl. 2) Berlim 1892, 1-31
e 81-143.
5. C. E r d m a n n, Die Entstehung des Kreuzzugsgedankens, Stuttgart
1935.

48 [1220J
Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém; segundo, buscavam um
responsável próximo por esse crime, esperando - inconscientemente
talvez - ir até lá e garantir a proteção desses monumentos e dos
peregrinos que desejassem visitá-los. Raoul Glaber é, a esse respeito,
a principal testemunha cristã. 6 A destruição da Igreja do Santo
Sepulcro, «ordenada pelo príncipe da Babilônia» (o califa EI-Hakim),
teria tido como instigadores os judeus! Os de Orleães, «mais vio-
lentos, mais invejosos e mais temerários que os outros de sua na-
ção», teriam escrito ao Califa para dizer-lhe que, Se ele não des-
truísse o venerável edifício, os cristãos iriam arrebatar-lhe o trono.
Quando se soube do crime dos judeus, «foi decidido, de comum
acordo entre todos os cristãos, que os judeus fossem expulsos de
seus países e de suas cidades. Objetos assim do ódio universal, foram
(os judeus) expulsos das cidades, outros passados ao fio da espada
ou afogados nos rios ou mortos por outros suplícios; alguns chega-
ram mesmo a se matar pessoalmente, de vários modos. " Os bispos
então decidiram proibir que qualquer cristão tivesse alguma relação
ou comércio com eles. Se no entanto alguns deles quisessem con-
verter-se à graça do batismo e despojar-se de todos os costumes e
usos judaicos, estes e somente estes deveriam ser aceitos».
Felizmente, possuímos desses acontecimentos também uma crô-
nica de origem judaica.' Esse texto circunscreve a perseguição à
França: teria sido decretada pelo Rei Roberto o Piedoso e por seus
conselheiros, e colocava os judeus diante desta alternativa: ou con-
verter-se ou morrer! Única justificativa aduzida: «seus costumes
e Lei diferem dos de todos os outros povos». Como se vê, aqui não
se trata de uma acusação de conluio com os muçulmanos. Será que
o autor judeu estava melhor informado que Raoul Glaber? Verdade
é que a crítica histórica moderna estabeleceu a inanidade da acusa-
ção de conluio entre os judeus e EI-Hakim: este foi para eles um
inimigo tão implacável como para os cristãos. 6

2. A PERSEGUlÇAO NO INICIO DA PRIMEIRA CRUZADA (1096)

Aqui ainda será uma testemunha cristã a primeira a nos infor-


mar sobre as razões invocadas para a perseguição antijudaica de
6. Cf. B. B I u m e n k r a n z, Les auteurs chrétiens latins du moyen
âge sur les juifs et le judaisme, Paris-Haia 1963, 256-259 e as edições ali
citadas.
7. Ed. por A. M. H a b e r m a n n, Sefer gezerot Ashkenaz we-Zarfat
(em hebr.), Jerusalém 1945-1946, 19-21.
8. Cf. M. C a m a r d, verbete «Hakim», na Encycl. de I'Islam', Leyde-
Paris 3 (1971), 79-84.

49 (12211
1096. ln Guiberto de Nogent relatando o que acontecera a 26 de
janeiro de 1096, em Ruão:
«Aqueles que se tinham comprometido a partir para essa expe-
dição, tomando a cruz, começaram a se queixar entre si: 'Vamos
combater os inimigos de Deus no Oriente, percorrendo longas dis-
tâncias, mas temos diante de nossos olhos os judeus, povo muito
mais inimigo de Deus que outro qualquer. Isto seria fazer as coisas
pelo avesso!' Em dizendo isto, tomaram das armas, começaram
a empurrar os judeus para dentro de uma igreja. " e começaram
a passá-los a fio de espada, sem levar em consideração nem a idade
nem o sexo, de maneira entretanto a perdoar quem desejasse subo
meter-se à fé cristã».'
Ê digno de nota que o cronista hebraico Salomon bar Simeon
use praticamente as mesmas palavras: «Quando o caminho deles
(dos cruzados) - escreve na crônica - os levava por cidades onde
havia judeus, então um dizia ao outro: 'Eis que vamos empreender
longa viagem para chegar à Igreja do Santo Sepulcro e vingar-nos
dos ismaelitas. Ora, entre nós vivem os judeus cujos pais mataram
Jesus, crucificando-o. Vamos primeiro vingar-nos destes e exter-
miná-los de entre as nações da terra e que não seja mais conservado
o nome de Israel, ou então que se tornem como nós e confessem
o nome de Jesus'» (p. 1 do texto hebr. = p. 82 trad. alem.). ,.
Vê-se que no início do século XI um crime concreto e recente
fora atribuído aos judeus - fosse ele real ou inventado, não im-
porta. Por ocasião da primeira cruzada, porém, era um crime antigo
- «deicídio» - ou, pior ainda, não um crime mas um estado atri-
buído aos judeus. Nos dois casos, tinham possibilidade de escapar
à morte aceitando o batismo. No início do século XI invocava-se ou
«um comum acordo de todos os cristãos», apoiado pela decisão dos
bispos, ou então uma ordem real endossada pelos conselheiros do
soberano. Por ocasião da cruzada, a decisão provinha do povo, sem
qualquer referência a uma autoridade - mas igualmente sem que
a autoridade a isto se opusesse deveras ...
A perseguição anti-semítica do início do século XI não foi levada
a seu termo. Um notável judeu de Ruão, Jacob bar Yekutiel, revol-
tara-se contra a perseguição, afirmando que somente ao Papa
competia baixar semelhante medida e fez °
propósito de procurá-lo
e pedir-lhe seu parecer. O duque da Normandia, Ricardo II o Bom,

9. De vita sua II, 5, ed. G. B o u r g i n, Paris 1907, 118-120.


10. Todas as nossas referências, daqui por diante, ao final das citações:
o primeiro número remete ao texto hebraico; o segundo, à tradução alemã.

50 [1222J
autorizou-o a vIaJar. João XVIII, Papa que reinou de 1004 a 1009,
recebeu-o e escutou suas queixas: em um reino como a França, sob
a sua autoridade, mas sem sua autorização, muitos judeus tinham
sido mortos ou forçados à conversão. O Papa fez mais do que o
esperado por Jacob bar Yekutiel: enviou não apenas uma mensagem,
mas um bis P 0-1 e g a d o à França, para mandar suspender a
perseguição. 11
Por ocasião da cruzada, o único apelo a uma autoridade de alto
nível, de que tenhamos conhecimento, é o do chefe da comunidade
de Mogúncia, ao Imperador Henrique IV. Correra o boato de que
Godofredo de Bulhões fizera o voto de atacar os judeus, antes de
embarcar para as cruzadas. Henrique IV logo mandou uma ordem
a todos os príncipes, bispos, condes e duques, para que protegessem
os judeus (3=87-8). Teria esse apelo a Henrique IV - então fiel
partidário do antipapa Clemente III - motivado a recusa de Ur-
bano II a proferir a menor palavra para a proteção dos judeus?
Teríamos ainda de perguntar se de fato o Papa apenas se calou.
Nosso cronista, em todo caso, relata com muita hostilidade o apelo
de Clermont: «Apareceu então Satã, o Papa de Roma, a malévola,
e dirigiu um apelo a todos os povos que crêem em Jesus... » (4=89).
A exuberância de sua gratidão, quando há motivos para isso,
dá maior crédito à severidade de suas censuras, em outras passa-
gens. Vejamos inicialmente o agradecimento: refere-se, sem qual-
quer sombra de dúvida, a João, bispo de Espira, embora este não
tivesse impedido que, a 18 de maio, no primeiro assalto dos cruza-
dos, fossem mortos membros da comunidade judaica (2=84). Poste-
riormente, pôde o bispo tornar completa sua proteção, a ponto de
auxiliar até os que tinham escapado à cruel matança de Mogúncia.
Acolheu-os prometendo que «vigiará por eles como um pai cuidan-
do de seu filho». E o nosso cronista termina a curta passagem que
lhe consagrara, pelas palavras: «Que a sua memória seja bendita
e exaltada para sempre!» (31=142-3).
Mas onde as promessas iniciais de auxílio não foram mantidas,
o cronista se mostra tão mais severo quanto mais elevado for o
grau hierárquico. Assim, a propósito do arcebispo de Mogúncia, que
deixara os judeus de sua cidade depositarem todo o seu dinheiro
em seu tesouro e aceitara protegê-los em seu palácio. Ora, constata
a crônica com amargura, tudo isso unicamente visava «reduzir-nos
a seu poder, a nos armar uma cilada depois, da mesma forma que

11. Cf. B. B 1 U f i e n k r a n z, Juifs et ehrétiens dans le monde oeei-


dental, Haia-Paris 1960, 136 e nota 252.

51 [1223]
se pegam os peixes na rede» (3=86; cf. Ecl 9,12). Com efeito,
quando Emicho de Leimingen, o mais feroz inimigo dos judeus,
chegou com seu bando, o arcebispo manifestou a intenção de partir
em visita pastoral para o campo, e foi necessária toda a insistência
dos notáveis judeus (e novas dádivas em dinheiro) para que ele
renunciasse à viagem. Nova promessa do arcebispo - à qual se
juntou igualmente o conde: «Morreremos convosco ou vos conser-
varemos vivos» (5=93). Finalmente, aconteceu que o arcebispo,
sem coragem para colocar num prato da balança a própria vida,
quando se viu pessoalmente ameaçado pelos cruzados, pôs-se em
fuga (6=95).
A cidade de Kerpen, um dos sete lugares de refúgio para onde
o arcebispo de Colônia, Herman III, tinha evacuado os judeus de
sua cidade, foi a única onde os judeus não foram massacrados pelos
cruzados. Os judeus, com razão, queixaram-se da «maldade» do
governador local: tinha enviado seus servos a Colônia para tirarem
as pedras sepulcrais do cemitério judaico (25=131). Os judeus só
podiam ver nisso um sinal de que a comunidade de Colônia cessara
de existir para todo o sempre; que todos os seus bens tinham sido
expropriados e estavam à disposição do primeiro que deles se
apossasse.
A cruel matança pelos cruzados era como algo natural, naque-
las circunstâncias, mesmo que o judeus fossem mortos por métodos
dos mais diversificados: sacrificados, decapitados, estrangulados,
queimados, afogados, lapidados, enterrados vivos (23=127). A emo-
ção tornava-se ainda mais viva diante da profanação de cadáveres:
desnudados, arrastados por terra, abandonados insepultos.
Mas a pior de todas as profanações, aos olhos de um judeu,
era aquela infligida às Sinagogas e principalmente aos rolos da
Torah. Verdade é que, desde o século VII, só vamos encontrar des-
truições de sinagogas em 1096. Sua proteção se devia não tanto às
disposições do direito romano e sim à sua reafirmação por Gregório
o Magno. 12 A motivação de São Gregório se inspira, no plano teo-
lógico, no pensamento de Santo Agostinho. Quem diz sinagoga, diz
leitura bíblica. Ora, não se pode esquecer a teoria augustiniana da
necessária sobrevivência dos judeus - à espera dos tempos últimos
- para dar um testemunho da verdade do cristianismo graças aos
textos bíblicos de que eles são, por assim dizer, os guardiães. 18
12. Cf. B. B I u m e n k r a n z, Synagogues en France du haut moyen
âge, em Archives juives 14 (1978), 40.
13. Cf. B. B I u m e n k r a n z, Augustin et les juifs, Augustin et le
juda'isme, em Recherches augustiniennes 1 (1958), 2318.

52 [1224]
Essa teoria augustiniana se torna patrimônio do pensamento cristão,
a ponto de que quando Se invocava, nem mais se mencionava o
nome de seu primeiro autor. De forma semelhante ganhara foros
de doutrina comumente aceita - ao menos entre os sábios - a
referência à hebraica: veritas, a que São Jerônimo, pela primeira
vez no Ocidente, conferira títulos de nobreza. Tudo isto, apenas
para lembrar o profundo respeito que o cristão da alta Idade Média
mostrava pela Bíblia hebraica. Nada disso se via entre os cruzados
de 1096.
Em Tréveris, no dia 10 de abril, não roubaram apenas os
ornatos de metal precioso, mas lançaram os rolos da Lei por terra,
rasgaram-nos, calcaram-nos aos pés (25-6=132). Em Worms, no dia
18 de maio, arrastaram-nos pela lama, queimaram-nos (2=84).
Cúmulo do sacrilégio, em Colônia, onde o cometeram no dia pri-
meiro de junho, dia do Pentecostes judaico, festa que celebra pre-
cisamente o dom da Lei a Israel (18=117).

3. AS REAÇõES DOS JUDEUS

Todas as violências e todos os ultrajes de modo algum conse-


guiam abalar a confiança dos judeus. Ainda que só considerássemos
a sua atitude em 1096, bastaria ela para lhes merecer o epíteto de
«obstinados». Com efeito, aludem a essa indizível perseguição para
se afirmarem, com maior convicção ainda, o povo predileto de
Deus: «Esta geração foi escolhida por Ele, para se tornar Seu
quinhão, pois eles tinham a força e o poder para se manter em
Seu templo, realizar Sua palavra e santificar Seu poderoso nome
no mundo inteiro» (2=83).
É igualmente verdade que a atitude judaica não era feita
apenas de sofrimento orgulhoso. Poder-se-ia igualmente invocar
inúmeros exemplos de réplica armada (cf. 6, 10, 15-16, 28-9=94-5,
103, 112-13, 137-8). Mas, no plano da defesa armada, a relação era
demasiadamente desequilibrada; então os judeus, como qualquer
outro grupo minoritário, fraco e orgulhoso, recorreram à dupla
arma da invectiva verbal e da invocação da vingança divina.
As invectivas verbais têm como alvo os símbolos mais visíveis
do cristianismo: a cruz, a igreja, o batismo, Jesus e a Virgem, a
cruzada e os cruzados. Com preocupação mais apologética que cien-
tífica, houve quem desejasse justificar essas invectivas por uma
repugnância do judeu medieval a servir-se de termos cristãos. U
14. Assim H. B r e s s 1 a u, Introdução aos HebriUsche Berichte ... (cf.
acima, nota 4), XXVII.

53 [1225J
Ora, os textos judeus anteriores ou não mostram semelhante escrú-
pulo, ou então se valem de circunlóquios perfeitamente decentes.
Quanto mais se aguçava a carnificina, tanto pelo número como
pelo valor das vítimas, tanto mais intensos se tornavam os apelos
à vingança divina. Como epílogo ao episódio de Mogúncia - mais
de 1100 mortos! - quase duas páginas de texto foram preenchidas
(16-17=114-15). Aí predominam as citações escriturísticas adequa-
das: «Ele então vai julgar as nações pelo número de mortos ... »
(SI 110,6). «Nações, felicitai Seu povo, pois Ele vinga o sangue de
Seus servos» éDt 32,43). «Deus da vingança, ó Eterno, Deus da
vingança, aparece!» (SI 94,1). «Retribui a nossos vizinhos o sétu-
pIo do ultrage que nos infligiram» (SI 94,2). «Derrama tua cólera
sobre os povos que não Te conhecem, sobre os reinos que não invo-
cam o Teu nome» (SI 79,6). «Derrama sobre eles a Tua cólera, que
Tua ardente cólera os destrua» (SI 69,25). Pede-se não uma vin-
gança remota, mas a mais rápida possível. São as próprias vítimas
que tomam a palavra: «Que o misericordioso vingue, ainda enquan-
to forem vivos aqueles que sobrarem dentre nós, e diante de seus
olhos, o sangue de Seus servos, que foi e ainda será derramado»
(22=125).
Quando a desgraça se abate sobre um perseguidor, o cronista
se rejubila: «O zelo do Deus justo mostra assim que Ele tinha
retribuído a eles o que nos tinham feito. Que Ele vingue, assim,
ainda em nossos dias, o sangue de Seus servos ... » (25=131). Para
contar as desgraças dos judeus, nosso cronista se limita ao império
germânico; mas para observar a desgraça daqueles que tinham
martirizado os judeus, ele os segue ainda mais longe: «Sobreveio
seu desmoronamento, e nosso coração o soube e se alegrou com
isso, pois o Senhor nos mostrou a vingança sobre nossos inimigos
e o nome deles foi apagado» (29-30=138-40).
Tudo o que até aqui vimos bastaria para explicar devidamente
a distância dos judeus em relação à cruzada. Uma anedota regis-
trada pela crânica judaica - mas também por duas testemunhas
cristãs - mostra como é que os judeus sofreram não apenas sem
tomar parte na cruzada, mas porque não tomavam parte na cruza-
da. Entre os cruzados, em Mogúncia, havia também uma mulher
que tinha consigo um ganso, que a acompanhava por toda a parte.
Disse a mulher aos passantes: «Vejam, este ganso compreendeu
aquilo que eu disse: vamos para o sepulcro de Jesus! Quis então
vir comigo também!» Na mesma hora, os cruzados começaram a
atacar os judeus (4=90-91). Por elíptica que seja, a narração é

54 [1226J
suficientemente clara em sua intenção: enquanto todos, homens e
até animais irracionais, partem para a cruzada, somente os judeus
se abstêm. Ê verdade que nós temos aqui a primeira guerra exterior
conduzida por nações ocidentais sem a participação dos judeus.
Quando, em 1063, os guerreiros que se tinham lançado à reconquista
da Espanha começaram a atacar os judeus, os bispos da Espanha
e da Gália Narbonense desaprovaram tal ataque. Foram por isso
felicitados pelo Papa Alexandre II, em uma carta pastoral. 1li Exis-
te, dizia ele, uma diferença profunda entre os sarracenos e os
judeus. Ê lícito fazer guerra contra aqueles, que perseguem os
cristãos e os expulsam das cidades, mas não contra estes últimos,
que sempre se mostraram dispostos a servir.
Em 1096 não havia nenhum Papa que usasse tal linguagem.
E a exclusão - afinal de contas natural - dos judeus da cruzada
tornou-se para milhares deles uma exclusão da própria vida. E, mais
grave ainda, por causa dessa primeira exclusão se chegaria a uma
exclusão social sempre mais marcada, que iria prolongar a Idade
Média até a Revolução Francesa. Foi um cristão, um clérigo aliás
- mas caso isolado entre os cristãos e entre os clérigos -, o padre
Grégoire, que, há uns duzentos anos, contribuiu de modo decisivo
para terminar com a Idade média judaica. Mas as Igrejas esperaram
muito mais.
Tradução de
Ephraim F. Alves

15. Cf. B. B 1 u m e n k r a n z, Auteurs... (supra, nota 6), 2635.

55 [1227]
Enrique Dussel

A CRISTANDADE MODERNA
DIANTE DO OUTRO
(DO íNDIO "RUDO" AO "BON SAUVAGE")

A «dignidade» é intrínseca ao homem, por ser pessoa humana.


A pessoa é aquilo que de mais digno se acha entre as criaturas.
No entanto, em toda a história, todos os sistemas de dominação
arrebataram a «dignidade» de todos aqueles que são: ou os domina-
dos «dentro» do sistema, ou os inimigos, os bárbaros, os goyim (não-
judeus), os «sem-sentido», os que se acham «fora» do sistema: o
não-ser. Na «exterioridade» do sistema reina a noite da «civilização»,
a massa informe, perigo iminente, o demoníaco - para o sistema.
Esse tema sempre presente na história será por nós agora analisado
sucintamente no processo da expansão européia a partir do século
XV, uma vez que a América foi descoberta em 1492 e os Pilgrim
Fathers chegaram às costas norte-americanas em 1620. Assunto de
grande atualidade.

1. STATUS QUAESTIONIS

Em 1577, quando a Itália, a Alemanha, a França e a Inglaterra


nem tinham ainda ultrapassado o horizonte puramente europeu,
José de Acosta publicava em Lima, Peru, no Proêmio de sua obra
De procuranda indorum salute (ou «Pregação do Evangelho nas
índias» ), uma tipologia de três classes de «bárbaros»:

«Sendo, pois, muitas as províncias, nações e qualidades


dessas gentes, todavia me parece, depois de longa e dili-
gente consideração, que podem ser reduzidas a três classes
ou categorias, muito diversas entre si, e nas quais se
podem incluir todas as nações bárbaras». 1

1. Op. cit., Obras deI Padre José de Acosta, BAE, Madri 1954, p. 392a.

56 [1228J
Por bárbaros, em sentido geral, entendem-se 2 «aqueles que
rejeitam a reta razão e o modo comum de vida dos homens, e assim
vivem na rudeza bárbara, em selvageria bárbara».· Sem dúvida,
para os europeus - até hoje - a «reta razão» e o «modo comum
de vida» é o deles mesmos, pelo qual medem os outros e julgam a
todos como não-humanos, como ainda veremos.
José de Acosta observa que os chineses, japoneses e outras
províncias das índias Orientais, embora bárbaros, devem ser tra-
tados «de modo análogo ao utilizado pelos apóstolos quando foram
pregar aos gregos e romanos».' Essas «repúblicas estáveis, com
leis públicas e cidades fortificadas - diz Acosta - , se quisermos
submetê-Ias a Cristo pela força e ao fio das armas, nada mais se
conseguirá senão torná-Ias inimicíssimas do nome cristão»,"
Um segundo tipo de bárbaros são como os astecas e incas; em-
bora célebres por suas instituições políticas e religiosas, «não
chegaram ao uso da escrita nem ao conhecimento dos filósofos»,·
Acham-se como que a meio caminho.
Finalmente, «a terceira classe de bárbaros»:

«Nela se incluem os selvagens semelhantes a feras ( )


E em o Novo Mundo existem deles infinitas manadas ( )
Diferenciam-se pouco dos animais ( ... ) A todos esses,
que mal merecem o nome de homens, ou são homens a
meias, convém ensinar para que aprendam a ser homens e
instruí-los como a crianças ( ... ) Deve-se contê-los à
força ( ... ) e mesmo contra a própria vontade deles, de
certo modo, obrigá-los [Acosta cita Lc 14,23] a entrarem
no Reino dos céus». '

E olhem que José de Acosta foi defensor dos índios e um céle-


bre teólogo que não aceitava as teses de Ginés de Sepúlveda! Seja
como for, não podia ficar totalmente imune a uma contaminação
ideológica da época, imune ao eurocentrismo humanista. O messia-
nismo temporal de Portugal e Espanha seria apenas o primeiro
passo do messianismo holandês do século XVII, francês e inglês a

2. Nosso autor se baseia em Tom á s, ln Epist. ad Rom, c. 1, lect. 5; ('


I ad Cor. c. 14, lect. 2.
3. J. de A c o s t a, ibid.
4. Ibid., p. 392b.
5. Ibid.
6. Ibid.
7. Ibid., p. 393b.

57 [1229]
partir do século XVIII, alemão no décimo nono, e norte-americano
nestas últimas décadas.
A Europa feudal tentou sua primeira expansão conquistadora
com as Cruzadas, mas o mundo árabe resistiu à primeira agressão
européia feita em nome do Cristianismo. A segunda expansão,
também no nome do Cristianismo, ocorreu a partir do século XV,
mas não mais no Mediterrâneo Oriental e sim através do Oceano
Atlântico e do Indico. Pierre Chaunu afirma até que «o século XVI
foi, do nosso ponto de vista, a maior mutação da espécie humana». 8
A partir desse momento, o cidadão - que, para Aristóteles, era o
homem político - é aquele que habita a cidade européia. O civis ou
civilizado tinha a civilitas ou «comportamento que convém ao cida-
dão: a civilização». Como para o aristocrático Aristóteles (que
vivia) no sistema escravista, homem, para o europeu, é o cidadão
europeu. Gonzalo Fernández de Oviedo (1478-1557), não tanto por
ser espanhol mas europeu, escrevia na sua Historia General y Na-
tural de las Indias:

«Estas gentes destas Indias, embora racionais e da mesma


estirpe daquela santa Arca de Noé, tornaram-se irracionais
e bestiais por suas idolatrias, sacrifícios e cerimônias
infernais». •

E na mesma linha, explica Ginés de Sepúlveda:

«O possuírem cidades e um modo racional de viver e algum


tipo de comércio é coisa que a própria necessidade natural
sugere e serve apenas para provar que não são ursos, nem
macacos, e não se acham totalmente destituídos de razão». 10

Para os europeus em geral, para os espanhóis em particular,


«o outro», o índio, era um rudo (port. arcaico): do latim rudis (sem
ter sido trabalhado, bruto, ao natural), do verbo rudo (zurrar,
rugir, bramir, gritar). Opõe-se a «erudito» e erudição (aquele que
não tem rudezas, brutalidades, incultura). Até os melhores viram no
índio um «rudo», uma «criança», uma «matéria» educável, evange-
lizável. A «Cristandade» começava sua gloriosa expansão, e as
Bulas papais justificavam teologicamente a pilhagem dos povos do
Terceiro Mundo.
8. Conquête et exploitation des nouveaux mondes, PUF, Paris 1969, p 7.
9. Op. cit., BAE, Madri, t. III, 1959, p. 60. Cf. Lewis H a n k e, Uno es
el género humano, Chiapas 1974, p. 54s.
10. Democrates Alter, CSIC, Madri 1957, p. 15.

58 [1230]
2. PRESSUPOSTOS TEOLóGICOS

Toda teologia se transforma em «teologia da dominação» quan-


do expríme teoricamente, em racionalidade teológica, os interesses
da classe dominante de uma nação opressora. Essa «teologia da
dominação» serve-se de uma lógica bem coerente em seu discurso.
Em primeiro lugar o sistema, a totalidade (a «carne», basar em
hebraico) se feiticiza, se totaliza, se auto-interpreta como absoluta,
última; e diante dela a utopia de um sistema posterior e melhor
é considerada algo demoníaco, ilegítimo, ateu. O próprio povo de
Israel, ou por contaminação ideológica dos povos e impérios vizi-
nhos ou no tempo da monarquia, começa a utilizar a categoria de
goyim 11 para indicar os povos bárbaros, estrangeiros, inferiores.
A «helenidade», a romanitas, a Cristandade, a civilizaçãõ euro-
péia são conceitos que encerram a mesma totalização feiticista da
totalidade, do sistema. Esses conceitos são o último estrato da teo-
logia da dominação. Em sua essência, este processo de feiticização
da classe dominante da nação opressora se fundamenta na negação
da «exterioridade» 12, na alienação do Outro como outro, reduzin-
do-o a pura mediação do projeto do sistema, e é nisto que em última
análise consiste o pecado. Destituir o Outro da «dignidade» (dignus
é aquele que merece, por ser pessoa, Outro totalmente outro, o sa-
grado por excelência: Alguém diferente) que tem por essência, por
natureza, significa, primeiramente, arrebatar-lhe sua alteridade, sua
liberdade, sua humanidade. Uma vez que se destitui o Outro de
sua divina exterioridade (e isto mediante a artimanha de julgá-lo
bárbaro, não-homem, animal, fera, o inimigo" p<>r excelência),
pode-se manipulá-lo, controlá-lo, dominá-lo, torturá-lo, assassiná-lo:
tudo em nome do «ser» - diria o velho Schelling - ou da «civili-
zação» ou da «cristandade», dessa totalidade feiticizada. Claro que
após o juízo negativo sobre o Outro vem logo, pelo poder político
e prático, o cerceamento de suas possibilidades materiais de vida.

11. Cf. K i t t e I, TWNT, II, p. 362s, verbete «ethnos».


12. «Exterioridade» (Ausserlichkeit) para Hegel é o «ente» (Dasein):
o mais afastado do ser (pela Diremption ou pela Entzweiung originária do
ser). Quanto a nós (cf. Filosofia ética latinoamericana, Edicol, México
1977), concebemos «exterioridade» como o âmbito de onde o outro, o pobre
enquanto não condicionado pelo sistema dominador, e como não-parte
de nosso mundo, clama por justiça.
13. «A mobilização contra o Inimigo age como poderoso estimulo à
produção e ao emprego, mantendo assim o alto padrão de vida ... A alie-
nação da totalidade absorve as alienações particulares e converte os
crimes contra a humanidade em objetivo racional» (H. M a r cus e, One
dimensional man, 2).

59 [1231]
E é nesse nível econômico - estatuto do culto a Deus: «Oferta-
mos-Te este pão fruto do traba~ho e da terra», do Ofertório da
Missa católica - que a destituição do Outro se consuma: faz-se
real. O índio não será apenas considerado uma «fera», mas será
«mão-de-obra» gratuita de um sistema tributário colonial que con-
tribuirá em boa parte para a acumulação originária do capitalismo
europeu desde o século XVI.
Por esse motivo, em épocas de profetismo e messianismo, logo
se tira a hipoteca de negatividade que pesa sobre os goyim, sobre
os pagãos, sobre os gentios, sobre as «nações»:

«Derramei meu Espírito sobre ele; há de trazer justiça aos


goyim» (Is 42,1).
«Quando o Filho do homem vier em seu esplendor... há
de sentar-se no seu trono de glória, e todas as nações
(ethne) se reunirão diante dele» (Mt 25,31-32).14

Uma teologia da dominação fixa as «fronteiras» (<<para que


minha salvação chegue até a fronteira da terra»: Is 49,6)" e de-
clara o Outro «para lá» da salvação, do ser, da dignidade. A liber-
tação, pelo contrário, atravessa o horizonte do sistema e inclui o
Outro como igual, como irmão, membro da comunidade escatológica.

3. A DISPUTA SOBRE O ESTATUTO DA NATUREZA DO íNDIO

Teologicamente falando, a disputa de Valladolid (1550) entre


Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas, sobre o esta-
tuto ontológico e à luz da fé, é a mais importante que se poderia
realizar na Europa acerca da natureza do homem e das culturas do
Terceiro Mundo. Teremos de esperar até que apareça a Teologia
da Libertação, em pleno século XX, para assistir ao ressurgimento
da questão. É mister compreender que uma certa conjuntura de
classes paradoxalmente ajudava, teologicamente, os índios (embora
na prática política e econômica sejam oprimidos até a completa
alienação). Com efeito, a «classe dos encomendeiros» (que recebiam
como tributo o trabalho dos índios) era uma forte oligarquia que
se organizava na América hispânica (tal como a classe dos escra-
vocratas no Brasil).
14. Na totalidade da pregação de Jesus se pode observar a abertura
ao outro além do povo judeu (cf. J. J e r e m i as, Jésus et les paiens,
Neuchâtel, Delachaux 1956).
15. K i t t e I, TWNT, V, p. 453.

60 [1232]
o Rei não poderia apoiar essa «classe de encomendeiros», que
tinham tendências «separatistas» - como o haviam demonstrado
os conquistadores do Peru - por isso, paradoxalmente, o Rei não
permitirá a publicação das obras de Ginés de Sepúlveda (justifi-
cando a opressão do índio, por parte dos encomendeiros da Amé-
rica) e permitirá, todavia, a publicação das obras de Bartolomé
de las Casas, que negava fundamento à conquista e justificava a
liberdade do índio. O Rei precisava debilitar a nascente oligarquia
americana, para garantir o próprio poder. Nessa conjuntura, Bar-
tolomé criticará os «encomendeiros» e buscará apoio no Rei para
pedir a libertação dos índios. «Pela primeira, e talvez pela última
vez - diz um autor norte-americano - uma nação colonialista
montou autêntica investigação para determinar a justiça dos méto-
dos utilizados na expansão de seu império». ,. Com efeito, o Con-
selho dos Catorze, o «Conselho das índias», escutou o juízo dos
teólogos para dar seu parecer sobre a justiça da conquista.
Ginés de Sepúlveda fundamentava seus argumentos teológicos
em muitos autores, entre os quais Aristóteles, John Major, Fer-
nández de Oviedo, a Bula de Alexandre VI etc. Bartolomé rebateu
todos esses autores, apaixonadamente.
Aristóteles tinha afirmado que «aquele que sendo homem, não
é por natureza de si mesmo e sim de outro, este é escravo por natu-
reza. " São por natureza escravos (physei douloi) aqueles que têm
vantagem em obedecer à autoridade... A utilidade dos escravos
pouco difere da dos animais». 17 Ginés aplicava essa doutrina à
sua teologia da dominação:

«Existem outras causas de justa guerra contra os índios ...


e uma delas é submeter pelas armas, se não for possível
por outro caminho, aqueles que por sua condição natural
devem obedecer a outros e recusam seu império». 18

Por seu lado, John Major, teólogo da Escócia, tinha publicado


em 1510 Commentaries on the Second Book of Sentences, onde se
referia às terras recém-descobertas. Dizia que «se uma gente abra-
çou a fé de Cristo, e o fez de todo o coração, deve esperar que seus

16. Lewis H a n k e, op. cit., p. 9.


17. PoI. l, 5, 1254 a 14-16 e b 19-24.
18. Sobre las justas causas de la guerra contra los indios, Fondo dE
Cultura Económica, México 1941, p. 81.

61 [1233J
governantes sejam depostos do poder se persistirem no paganis-
mo». " E adiante:

«Temos que dizer algo mais. Essas gentes vivem como se


fossem feras·. A ambos lados do Equador e entre os dois
pólos, os homens vivem como animais selvagens. E agora
tudo isto foi descoberto pela experiência». 2.

A tudo isto retrucou Bartolomé de las Casas:

«Fora, fora com John Major, pois nada sabe, absoluta-


mente nada, nem da lei nem dos fatos! Assim, é ridículo
que eSSe teólogo escocês nos venha dizer que um rei, mes-
mo antes de compreender o idioma espanhol e até antes
de compreender a razão por que os espanhóis constroem
fortificações, deva ser destituído de seu reino». 2t

A Fernández de Oviedo, por outro lado, que afirmava que os


índios tinham caído em «costumes bestiais» e se achavam incapa-
citados para receberem a fé, replica Bartolomé:

«Sendo Oviedo membro dessas perversas expedições, que


não dirá sobre os índios? " Por causa desses crimes bru-
tais, Deus lhe vendou os olhos 22 e aos outros saqueadores...
a fim de que ele não seja capaz, por graça de Deus, de
saber que essas nuas gentes eram simples, boas e
piedosas». 23

Quanto às Bulas de Alexandre VI, Bartolomé analisa a questão


e mostra que nunca o Papa justificou a guerra ou a violência como
meio de propagar a fé nas índias. A própria rainha Isabel defendia
os índios e proibia que «os façam sofrer qualquer tipo de prejuízo
em suas pessoas ou bens». 24

19. Stafford P o o I e, Bartolomé de las Casas. Defense against the


persecutors and slanderers for the people of the New World, Northern
Illinois University Press, De Kalb, 1974, p. 333.
20. Ibid., p. 338.
21. Ibid., p. 329.
22. Os «olhos vendados» são precisamente a «consclencia ética»
(Gewissen) cega, diria D. von H i I d e b r a n d, Die Idee der sittlichf'n
Handlung, Wissensch. Buchg., Darmstadt 1969.
23. S. P o o I e, op cit., p. 345-346.
24. Ibid., p. 353.

62 [1234]
De agosto a setembro de 1550 realizou-se, então, o debate
entre Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas, sobre a capa-
cidade dos índios para receberem a fé.

4. POSIÇÃO DE BARTOLOMll: DE LAS CASAS

o conquistador primeiro, depois o jovem clérigo, sempre teve


muito respeito pelo índio, que tratou como outrO:

«Todas essas universas e infinitas gentes foram por Deus


criadas como as mais simples, sem maldades nem dobrezas,
obedientíssimas e fideIíssimas a seus reis naturais e aos
cristãos a que servem. As mais humildes, mais pacientes,
mais pacíficas e quietas, sem rixas ou disputas, que exis-
tam no mundo. São outrossim as gentes mais delicadas,
frágeis e tenras de compleição, que menos podem sofrer
trabalhos e que mais facilmente morrem com qualquer
enfermidade». ,.

Tenha-se bem presente que em Bartolomé essa maneira de


exaltar o índio não é de modo algum a expressão do posterior mito
do bon sauvage, para o qual certamente a mesma Brevísima relación
muito contribuiu. Bartolomé respeita o índio em sua exterioridade.
Usa às vezes fórmulas estereotipadas, como chamá-los «mansos,
humildes e pacíficos», o que indica precisamente a sua capacidade
de superar o horizonte do sistema para se abrir à exterioridade do
outro como outro.
A chegada dos espanhóis à América foi a experiência primeira
do «face a face»: «O Almirante [ColomboJ e os outros... que
nunca os tinham conhecido» ,. pela primeira vez tiveram de defron-
tar-se com o índio.
Mas logo os europeus se lançaram sobre eles:

«Assim que os conheceram, como lobos" e tigres e leões


crudelíssimos, famintos há muitos dias, lançaram-se sobre
eles [os índios]. E outra coisa não fizeram, de quarenta

25. Brevísima relación de la destrucción de las Indias, BAE, Madri,


t. V. p. 136s.
26. Historia de las Indias I. cap. XL, ed. cit.. t. I, p. 142a.
27. Hobbes definiu desta maneira o homem europeu do capitalismo
burguês: «Homo homini lupus».

63 [1235J
anos até hoje (1552) a não ser despedaçá-los, matá-los,
esquartejá-los, afligi-los, atormentá-los e destruí-los pelas
estranhas e novas e variegadas e nunca outras tais vistas
nem lidas nem ouvidas formas de crueldade». 2.

Nosso profeta e teólogo da libertação vai tecendo seu discurso


críUco contra a alienação do outro. Las Casas prossegue no dis-
curso atacando frontalmente a totalidade do sistema europeu em
expansão dominadora:

«Tomou [o clérigo Bartolomé de las Casas, em sua auto-


biografia] a firme resolução, convicto da própria verda-
de. .. ser injusto e tirânico tudo que se cometia contra os
índios nestas lndias». 20

Para nosso teólogo, o maior do século XVI, todo o sistema


era injusto a começar por seu projeto fundamental:

«Mataram e eliminaram umas cem mil vítimas, por causa


do trabalho a que os submeteram por cobiça do ouro» . .. '0
«Por suas cobiças de encontrar ouro e riquezas ... » 11

o Deus-ouro, o novo feitiço ou ídolo do capitalismo nascente,


foi criticado por Bartolomé quando se encontrava ainda no berço,
quando lançava os primeiros vagidos. Sua crítica ao mundo moderno
europeu, pré-capitalista, mercantil, capitalista, imperialista já co-
meçara. Com Portugal e Espanha, eram igualmente criticadas, por
antecipação, Holanda, Inglaterra, França e, em nossos dias, a
Comissão Trilateral, formada por EUA, Alemanha Federal e Japão.
O «estar-na-riqueza», injustamente, começava seu idolátrico reinado:

«De setenta anos para cá, desde que começaram a escan-


dalizar, roubar e matar e extirpar aquelas nações, até hoje
não se percebeu que tantos escândalos e infâmias à nossa
santa fé, tantos roubos, tantas injustiças, tantos estragos,
tantas matanças, tantos cativeiros, tantas usurpações de
nações e reinados alheios e, finalmente, tão universais
estragos e despovoamentos, tudo isto foi um pecado e
gra,ndíssima injustiça». 32

28. Brevísima relación, p. 136b.


29. Historia de las Indias III, cap. LXXIX, t. II, p. 357a.
30. Representación a los regentes CisnerOs y Adriano, t. V, p. 3a.
31. Memorial de remedios, t. V, p. 120a.
32. Cláusula deI testamento, t. V, p. 540a.

64 [12361
Nosso explícito teólogo da libertação foi, além disso, um teólo-
go da ideologia. Percebia com suma inteligência a articulação da
teoria (<<Até hoje não se percebeu», não se viu, descobriu) com a
práxis e, sobretudo, o pecado que se cometia com a dominação da
expansão européia sobre outros povos. Isto é teologia da libertação
que descobre a perversidade ético-teológica do colonialismo e do
sistema econômico tributário da encomenda. A teologia européia,
até hoje, ignorou toda essa teologia. É hora de rever a história
e refazê-la.
Bartolomé compreendeu e exprimiu a dialética do senhor e do
escravo - dois séculos antes de Rousseau e três antes de Hegel
ou de Marx - no horizonte mundial, quando nos afirma que depois
de terem assassinado todos aqueles que «poderiam ansiar ou suspi-
rar ou pensar em liberdade», estabeleceu-se uma ordem colonial
«oprimindo-os com a mais dura, horrível e áspera servidão». E no
Testamento, pouco antes de morrer, Bartolomé escrevia:

«Deus houve por bem escolher-me para seu ministro, sem


que eu o merecesse, para procurar por aquelas universas
gentes dessas que chamamos lndias ( ... ) para livrá-los
(liberarIos, em bom castelhano do século XVI) da violenta
morte que ainda padecem»."

5. A QUESTÃO DO «BON SAUVAGE» NO CAPITALISMO TRIUNFANTE

Muito importava determinar se o índio era ou não capaz de


receber a fé, para poder justificar ou não o domínio espanhol, do
«encomendeiro» (autóctone, que explorava o índio como mão de
obra), sobre os povos da América. Tudo isto dentro de um primeiro
capitalismo, pré-industrial e mercantilista. Ao contrário, a questão
do bon sauvage, no final do século XVII e no século XVIII, tinha
como horizonte o direito dos europeus (principalmente ingleses e
franceses) para dominarem as novas colônias, mas agora dentro
do sistema capitalista que pouco depois há de tornar-se industrial
(e, desde o final do século XIX, imperialista). Em um estudo recente
pode-se ver que o «eurocentrismo» é correlativo ao desprezo pelos
«outros» povos:

«Embora Europa seja a menor das três partes de nosso


continente, tem a vantagem de ser preferível aos outros.

33. Cláusula deI testamento, t. V, p. 540a-b.

65 [1237]
o ar é extremamente temperado, e as províncias muito
férteis ... Ela se destaca por seus bens e seus povos, ordi-
nariamente mansos, honestos, civilizados e muito dedica-
dos às ciências e às artes ... Os povos de Europa, por sua
educação e valentia, dominaram as outras partes do mundo.
Seu espírito se manifesta em suas obras, sua sabedoria em
seus governos, sua força nas armas, sua conduta no comér-
cio e sua magnificência em suas cidades. Europa ultrapassa
assim, em tudo, as outras partes do mundo... De nossa
parte há razão, muitas vezes, para confundir o nome de
Europa e da Cristandade»."

O «nosso» é o europeu, civilizado, cristão, gente honesta, forte,


dotada de ciência e arte. Os «outros» são os pagãos, estrangeiros,
bárbaros, sem rei nem fé. Bernard Duchene, seguindo um por um
os diversos verbetes do citado Dictionnaire, descobre, ao final, que
«não somente o sentido do outro enquanto outro nunca aparece em
Moreri e seus leitores, mas, pelo contrário, através do colonialismo,
o sonho se aproxima da realidade: conseguir fazer coextensivo a
toda a terra o nós (chez nous) e assim uniformizar o mapa-múndi
sob as cores da Europa cristã». ao
Sempre haviam subsistido, como em José de Acosta, dois sen-
tidos do homem «primitivo»: o bárbaro, brutal, cruel, feroz, selva-
gem 3', ou o selvagem como inocente, manso, dócil, delicado, de bom
natural, virtuoso, alegre. 31 Já no século XVIII, e como apoio ideo-
lógico da burguesia triunfante, Rousseau apresentará o bon sauvage
como diferente do «estado natural» e do «estado civil» (ou a civili-
zação feudal, monárquica, medieval). Por isso dizia que «é mister
não confundir o estado natural com o estado selvagem (l'état
sauvage) e, por outro lado, o estado natural com o estado civil (l'état
civil)>>. 3.
O bon sauvage (ou o homem primitivo considerado positiva-
mente, primeira e segunda categorias de Acosta e segundo tipo do
indicado acima) serve para criticar o «estado civil» ou a cultura

34. Verbete «Europa» do Grand Dictionnaire Historique, Provença, ed.


Louis Moreri, 1643 (ci. Bernard D u c h ê n e, Un exemple d'univers mental
au XVIlle. siêcle, in: Civilisation chrétienne, ENEA, Beauchesne, Paris,
p. 29-30).
35. Ibid., p. 44.
36. Ibid., p. 35.
37. Ibid.
38. Emile ou de l'éducation V (Garnier, Paris 1964, p. 514).

66 [12381
feudal, monárquica. O «estado de natureza», finalmente, é o sujeito-
burguês emergente no estado puro e livre para criar um novo mun-
do (a Europa capitalista, a partir do século XVIII). ao Neste caso,
o bon sauvage é a consideração positiva que a burguesia triunfante
faz dos povos do Terceiro Mundo como possíveis sujeitos de explo-
ração, agora secularizados (não se trata mais de saber se podem
ou não receber a fé, como os rudos índios da conquista espanhola;
nem tampouco se são pagãos infiéis diante da Cristandade francesa
do século XVII) e, portanto, mão-de-obra barata ou possíveis mer-
cados para suas mercadorias industriais:

«Tal sociedade (a burguesa) é levada a buscar, fora de si


mesma, novos consumidores e por isso busca meios para
subsistir entre outros povos que lhe são inferiores quanto
aos recursos que ela mesma tem em excesso ou, em geral,
em indústria».••

O Terceiro Mundo, o bon sauvage, é portanto considerado uma


tabula rasa, força produtiva de reserva e barata, mercado potencial
para a superprodução, matéria prima da civilização. O grande «teó-
logo da dominação» da Europa no mundo chega a dizer em sua
Summa Theologiae «moderna»:

«A existência material da Inglaterra se baseia no comércio


(Handel) e na indústria (Industrie), e os ingleses se iden-
tificaram pela característica de serem os missionários (die
Missionarien: observe-se a conotação religiosa!) da Civili·
zaição no mundo inteiro. Pois seu espírito comercial (Han-
deIsgeist, o «espírito santo do capitalismo»?) os impele a
explorar todos os mares e todos os territórios, a travar
alianças com os povos bárbaros (barbarischen Volkern),
a despertar nestes novas necessidades e indústrias e, so-
bretudo, a criar neles condições que permitam o tratamento
humano, ou seja, o abandono dos atos de violência, o res-
peito à propriedade (!) e à hospitalidade [do Capital,
esquecia-se de dizer Hegel!] ...

39. Cf. meu trabalho illtica filosófica latinoamericana, EdicoI, México,


t. III, 1977, p. 136s.
40. H e gel, Rechtsphilosophie, 246.
41. Idem, Philosophie der Geschichte, final (Theorie Werkausgabe,
Suhrkamp, Frankfurt, t. 12, 1970, p. 538).

67 [1239]
Nós latino-americanos, os primeiros «bárbaros» da Idade Mo-
derna européia - depois de nós viriam os africanos e os asiáticos
- já faz cinco séculos que conhecemos muito bem essa «teologia»,
mas em nossos dias ela ganha aspectos mais trágicos. O nome que
se dá, hoje, ao rudo, bon sauvage, bárbaros, é «países subdesenvol-
vidos», países do Terceiro Mundo, países pobres.
Essa civil religion é, como sempre, a justificação ideológica que
permite, de consciência tranqüila, ao capitalismo moderno explorar
os novos rudos, sauvages, bárbaros: os povos do Terceiro Mundo.
Além disso, a diferença entre «os homens» dignos e «bárbaros»
indignos tem sua raiz no «Desígnio divino» ou então na própria
«natureza» :

«As disparidades entre as entidades políticas são naturais»."

Como estamos longe daquela doutrina cristã que Pedro ensi-


nou a Cornélia, o pagão, o goy, o bárbaro:

«Fica de pé, pois eu também sou um homem como tu


(autos ánthropos)... Agora vejo claramente que Deus
não faz acepção de pessoas (prosopolémptes), mas aceita
favoravelmente todo aquele que o teme e pratica a justiça
(dikaiosynen)>> (cf. At 10,26.34-35).
Tradução de
Ephraim F. Alves

42. R. C o o p e r-K. K a i s er-M. K o s a k a, «Towards a renovated


international system» 1977 (texto mimeografado da Trilateral Commission,
p. 21).

68 [1240J
Leonidas E. Proaíio

A IGREJA E OS POBRES
NA AMÉRICA LATINA

INTRODUÇÃO

«A Igreja e os pobres na América Latina», eis um tema de


importância fundamental e transcendental tanto para a Igreja como
para os pobres que vivem na América Latina.
De importância fundamental e transcendental para a Igreja
porque se trata de saber como ela encara os pobres, como se encara
a si mesma com referência aos pobres, até que ponto está sendo fiel
a Cristo quanto à pobreza e quanto à identificação com os pobres,
hoje, neste imenso território que se chama América Latina.
No fundo trata-se de tentar um exame de autenticidade, um
exame de identidade com Cristo, porque a vocação da Igreja é
construir-se e ser uma continuidade, um prolongamento de Cristo,
no espaço e no tempo, para levar a termo, animada pelo Espírito,
sua missão salvífica, a própria missão salvífica de Cristo.
Ê de importância fundamental e transcendental para os pobres
porque se trata de saber ou de comprovar se, da parte da Igreja,
nasce uma luz que afugente suas tristezas comunicando-lhes um
raio de esperança.
Ê necessário comprovar qual a idéia que fazem da Igreja, a
idéia que fazem de si mesmos em relação com a Igreja, até que
ponto se sentem membros ativos deste Povo de Deus que é a Igreja.
Trata-se de comprovar, definitivamente, se os pobres, através
da Igreja, se sentem chamados a identificar-se com Cristo, Ele que
primeiro se identüicou com eles, e se, por este caminho, chegaram
a tomar consciência de que são eles os chamados a realizar-se e ser a
Igreja, de que são eles que têm o privilégio de ser os evangeliza-
dores do mundo, de que são eles os mais aptos para proclamar,
com atas e com palavras, que o Reino de Deus está próximo.
Ao desenvolver o tema, tratarei em primeiro lugar de descrever
quem são os pobres na América Latina, através de sua posição na

69 [1241]
sociedade, através do que fazem, do que dizem, de seus anelos e de
suas esperanças. A seguir, proponho-me descrever as diversas ati-
tudes da Igreja particularmente com relação aos pobres. E, num ter-
ceiro capítulo, tentarei um exame de identidade, a partir da situação
dos pobres e das atitudes da Igreja, à luz interpeladora do Evangelho.

1. OS POBRES NA AM1!:RICA LATINA HOJE

1) Quem são?

Quando se fala dos pobres não falta quem ponha objeção ao


conceito dizendo que também os ricos são pobres. Não entrando
nesta discussão e reconhecendo que todos os homens, seja qual for
sua condição sócio-econômica, são pobres por sua condição de cria-
turas limitadas e por serem pecadores, quando falamos de pobres
referimo-nos à multidão de homens e de mulheres que, na América
Latina, carecem de bens materiais, estão oprimidos dentro da es-
trutura social, encontram-se marginalizados dos serviços do Estado,
vêem-se impossibilitados de beneficiar-se do progresso da humani-
dade e de participar na tomada de decisões.
Chamamos de pobres, na América Latina, os indígenas, os ne-
gros, os camponeses, os habitantes do subúrbio, os desempregados,
os subempregados, os operários e muitos artesãos. Se imaginarmos
a estrutura da sociedade como uma pirâmide, pobres são aqueles
que se encontram à base desta pirâmide, os que sofrem todo peso da
dominação de classes sociais que se lhes sobrepõem, os desprezados.

2) Que fazem?

Há pobres que trabalham no campo ou na cidade. Lavram a


terra para benefício dos que ostentam o título de proprietários.
Os proprietários são atualmente as grandes empresas agrícolas anô-
nimas, inclusive de nacionalidade mista. Há pobres que trabalham
como peões na construção de estradas ou de enormes edifícios ou
outras obras suntuosas. Há pobres que trabalham como carrega-
dores nas cidades, especialmente nos países andinos, ou como esti-
vadores nos portos. Há pobres que trabalham no exercício de humil-
des trabalhos artesanais, mal remunerados e explorados pelos inter-
mediários. Há pobres que trabalham nas fábricas em condições

70 [1242J
infra-humanas e que percebem salários irrisórios. Há pobres que
trabalham nas minas sem as devidas garantias de salubridade e de
proteção à sua vida. Há pobres que não encontram trabalho gerando
desta forma o subemprego para poderem subsistir. A angústia e a
incerteza constituem seu pão de cada dia. Por esta razão, muitos
pobres se dedicam ao roubo, à pilhagem, ao vício.

3) Que dizem?

Na América Latina há pobres que não dizem nada e há outros


que recuperaram a faculdade de dizer sua palavra.
Os primeiros são os «sem voz», os da «cultura do silêncio»,
os oprimidos, os que, por força de viver oprimidos há séculos, estão
como que afogados numa série de preconceitos e superstições, em
complexos e inibições, em fanatismos, fatalismos, conformismos,
desconfianças e passivismos (Medellín, Educação, 3).
Os segundos são os que, graças a processos conscientizadores,
despertaram de sua secular letargia desatando sua língua para
recomeçar a ser homens e a pronunciar sua palavra, palavra de
queixa, de demanda de justiça, de expressão de aspirações. A estes
pobres referia-se Medellín quando falava de uma «progressiva to-
mada de consciência dos setores oprimidos» (Paz, 7) e de que «um
surdo clamor brota de milhões de homens, pedindo a seus pastores
uma libertação que não lhes advém de parte alguma» (Pobreza, 2).
E a estes pobres refere-se Puebla quando, ao comparar com a
situação de dez anos atrás, afirma que «do seio dos diversos países
que compõem a América Latina está subindo ao céu um clamor
cada vez mais tumultuoso e impressionante» e que agora já não é
mais surdo, mas «claro, crescente, impetuoso e, às vezes, ameaçador»
(Visão da realidade eclesial, hoje, na América Latina. 87 e 89).

4) Que querem?

Os pobres que se conscientizaram buscam ansiosamente liber-


tar-se de suas condições de vida menos humanas para condições de
vida mais humanas; de sua situação de explorados e oprimidos
para uma situação de justiça e de personalização; de uma existência
instrumentada para o trabalho e o enriquecimento de uns poucos
para a conquista da capacidade de participar nas decisões.

71 [1243]
Para conseguir o que pretendem, sentem a necessidaje de
organizar-se, de marchar unidos, de solidarizar-se com seus irmãos
de sofrimento, de lutar incansavelmente até conseguir a construção
de uma sociedade nova mais justa e mais humana.

5) Em quem esperam?

Repetidamente os pobres têm sido enganados pela demagogia


dos políticos que lhes falam de redenção, fazendo-lhes muitas pro-
messas unicamente com a intenção de atrair sua simpatia e con-
quistar seus votos, para logo esquecer-se de suas promessas e man-
tê-los na mesma situação de escravidão e de marginalidade. Nos
últimos anos, os governos ditatoriais e militares reprimiram cruel-
mente qualquer tentativa de protesto, de organização, de reivindi-
cação de justiça. Para quem voltar os olhos?
Entretanto, a multidão de pobres da América Latina dirigiu
seus olhos para a Igreja com grande expectativa e esperança. Por
ocasião da visita do papa ao México e da realização da Conferência
Episcopal de Puebla, os pobres do México escreveram uma carta na
qual diziam ao papa: «Tu nos animas para o melhor, desta vez,
e afinal despertamos. Por isso iremos ver-te; esperamos por ti na
vila de Guadalupe, para onde sempre nos dirigimos quando algo nos
aflige muito». Referindo-se à Conferência, diziam: «... necessitamos
de que esta reunião nos apóie fortemente como aquela outra em que
disseram que o povo devia libertar-se» (Vida Nueva, n. 1.176, p. 5).

2. A IGREJA NA AM1lJRICA LATINA HOJE

Com relação aos pobres, qual a posição da Igreja na América


Latina hoje?
Puebla, no Documento Opção preferencial pelos pObres, dá-nos
uma resposta à pergunta. Diz-nos: «Nem todos na Igreja da Amé-
rica Latina nos comprometemos suficientemente com os pobres;
nem sempre nos preocupamos com eles e somos solidários f'om eles»
(n. 1.140).
Numa visão global da realidade da Igreja da América Latina
pode-se dizer que há duas posições opostas: a posição de uma Igreja
rica e aliada com os poderosos e a de uma Igreja pobre e compro-
metida com os pobres.

72 [1244]
1) Rica e aliada com os poderosos

Há uma Igreja conservadora e acumuladora de bens materiais,


de honras e privilégios, de relações e convênios com os que mantêm
o poder econômico, o poder político e o poder do prestígio, quer
voltada para o passado quando se trata de uma posição cerradamente
conservadora, quer voltada para o presente esteada no passado,
quando se trata de uma posição modernizante e desenvolvimentista.
As duas posições no fundo convergem numa só. Contudo, a posição
modernizante e desenvolvimentista é mais perigosa porque se tran-
qüiliza a si mesma e tranqüiliza os próprios pobres, mas sempre
a serviço da manutenção do statu quo. Diante desta atitude da
Igreja os pobres apenas contam e são tratados como seres inferio-
res, como crianças que necessitam ser conduzidas pela mão e man-
tidas pelos cuidados maternos. O exercício da autoridade é vertical
e o pensamento e a voz do povo não tem vez nem eco. Ê o tipo de
Igreja procurada e favorecida pelos regimes marcados pela ideolo-
gia da Segurança Nacional. Tal Igreja colabora eficazmente para
manter um povo submisso, massificado, impessoal e, por isso mesmo,
calado, passivo, inofensivo.
Esta atitude da Igreja possui uma visão da ordem como algo
«sagrado» e intocável, um conceito da paz como algo que não deve
ser perturbado nem por palavras nem por ações que exijam o
cumprimento da justiça, porque a identificam com a «ordem esta-
belecida». Esta atitude da Igreja, principalmente quando matizada
por um afã modernizante, promove um modelo de desenvolvimento
importado dos países economicamente desenvolvidos, esquecendo-se
de que os países ricos são ricos às custas da pobreza dos países
pobres. Esta atitude da Igreja entende por educação a preparação
de jovens e adultos, economicamente privilegiados, para a sust.en-
tação e consolidação de uma sociedade em que devem existir domi-
nadores e dominados, ricos e pobres; e entende por educação, quan-
do se trata da gente do povo, o meio de conseguir a interiorização
e aceitação das normas vigentes. Esta atitude da Igreja propõe-se
permanentemente impor a fé como um conjunto de dogmas em que
se deve crer, como um conjunto de práticas religiosas e piedosas
que devem ser cumpridas para alcançar a salvação da alma; favo-
rece, sem discernimento, a religiosidade popular e recusa despertar
nos homens uma fé entendida como compromisso com a missão
transformadora de Cristo. Esta atitude da Igreja sente descon-
fiança de toda organização popular e acaba por ser-lhe hostil

73 [1245]
e ainda por desconhecer como filhos seus os que se atrevem a tomar
parte, em tais organizações, sem seu consentimento.
Por seu lado, os pobres também têm uma atitude diante desta
posição da Igreja conservadora e modernizante. Encaram-na como
longínqua, estranha, como uma instituição bem semelhante a outras
instituições à qual eventualmente se recorre para pedir algum
serviço religioso. Não se sentem membros dela. Temem-na porque
descobriram que ela é poderosa e aliada dos poderosos. Difícil lhes
é descobrir nela Cristo pobre e em estreita relação de amizade com
os pobres e pecadores. Se até o momento permaneceram submissos
a esta Igreja, ultimamente começam a voltar-lhe as costas e a afas-
tar-se dela.

2) Pobre e comprometida com os pobres

A resposta à pergunta: «Qual a posição da Igreja na América


Latina com referência aos pobre hoje?» está insinuada no próprio
texto do documento de Puebla. Se nem todos na Igreja da América
Latina nos identificamos suficientemente com os pobres, pode-se
dizer que há muitos ou alguns que todavia se identificaram. Mani-
festa-se assim o outro lado da medalha: uma Igreja pobre e com-
prometida com os pobres, porque vai Se construindo a partir dos
pobres.
Em Medellín, esta Igreja começou fazendo confissão pública
com estas palavras: «No contexto de pobreza e de miséria em que
vive a grande maioria do povo latino-americano, os bispos, sacerdo-
tes e religiosos têm o necessário para a vida e para uma certa
segurança, enquanto os pobres carecem do indispensável debaten-
do-se entre a angústia e a incerteza. E não faltam casos em que
os pobres sentem que seus bispos, ou seus párocos e religiosos não
se identificam realmente com eles, com seus poblemas e angústias,
que nem sempre apóiam os que trabalham com eles ou defendem
sua sorte» (Medellín, 14. Pobreza da Igreja, 3).
A partir de Medellín, como fruto desta confissão de culpa,
aparece na América Latina uma posição da Igreja que caminha
para a pobreza e para o compromisso cada vez mais intenso com os
pobres. Puebla reconhece isso publicamente. «Comprovamos que
episcopados nacionais e numerosos setores de leigos, religiosos,
religiosas e sacerdotes foram tornando mais profundo e realista

74 [1246J
seu compromisso com os pobres. Este testemunho incipiente, mas
real, conduziu a Igreja latino-americana à denúncia das graves
injustiças derivadas de mecanismos opressores» (Opção preferencial
pelos pobres, n. 1.136). Na mesma linha, a Conferência de Puebla,
no documento Vida Consagrada, estimula os religiosos a seguir nesta
linha, com estas palavras: «Estimular os religiosos a que assumam
um compromisso preferencial pelos pobres»; isso após constatar que
essa «opção preferencial pelos pobres é a tendência mais notável
da vida religiosa latino-americana». O documento sublinha o fato
de que, «cada vez mais, os religiosos se encontram em zonas margi-
nalizadas e difíceis, em missões entre indígenas, em trabalho inex-
pressivo e humilde» (n. 769 e 733).
Depois de haver constatado, com documentos oficiais da Igreja
da América Latina, esta opção e compromisso com os pobres, é
necessário dizer uma palavra sobre as conseqüências resultantes
desta posição para numerosos membros da Igreja. Numerosos são
os leigos, as religiosas, os religiosos, os sacerdotes que padeceram
por causa de sua opção pelos pobres e por causa de sua luta pela
justiça. Pode ser feito, e há urgência em fazê-lo, um discernimento
de motivações que impulsionaram tantos cristãos a comprometer-se
a fundo com os pobres, embora arriscando a própria vida. Mas é
indubitável que muitíssimos se entregaram, por motivos de fé, a
esta aventura de solidariedade com os pobres. Esta posição da
Igreja vê nos pobres os prediletos do Senhor, os autênticos possíveis
evangelizadores de um mundo saturado de materialismo e de injus-
tiças, como os mais capazes de acolher a Boa-Nova do Reino, de
vivê-la e projetá-la como luz e testemunho sobre o mundo.
Por seu lado, os poderes constituídos amparados na ideologia
e nas leis de Segurança Nacional encaram esses homens com esta
visão de Igreja, não apenas com desconfiança mas com agressividade
hostil. E desencadearam toda uma série de perseguições refinadas.
Resolveram, habilmente, não defrontar-se com a Igreja como tal,
mas procuraram separar determinados membros da Igreja par""
desprestigiá-los e, nesta base, destruí-los física ou moralmente. Estes
determinados membros da Igreja foram precisamente os que opta-
ram pelos pobres.
Puebla reconheceu estes fatos: «A denúncia profética da Igreja
e seus compromissos concretos com o pobre trouxeram-lhe em não
poucos casos perseguições e vexames de diversa índole; os próprios
pobres foram as primeiras vítimas das referidas perseguições»
(Opção preferencial pelos pobres, n. 1.138).

75 [1247]
Também os pobres expressam seu pensamento em relação com
a posição da Igreja comprometida com eles. Entre muitos teste-
munhos destacamos o seguinte: «O pobre sente-se membro genuíno
da Igreja e participante direto nas decisões que visam o melhora-
mento social e religioso. A Igreja vai arrancando o povo da reli-
giosidade popular e encaminhando-o para uma vida de fé mais
sólida e autêntica, criando o espírito de solidariedade com os que
sofrem por causa da justiça» (Resposta de um grupo cristão popu-
lar à pergunta: Que mudanças de atitude se notam na Igreja em
suas relações com os pobres? Assembléias Cristãs de Quaresma,
Riobamba 1979). Assim, os pobres se sentem membros da Igreja.

3. EXAME DE IDENTIDADE

É dever da Igreja esforçar-se para alcançar uma identificação


com Cristo. É um dever de fidelidade, para poder chamar-se e ser
a Igreja de Cristo. O esforço de identificação deve levar em conta
todos os traços característicos de Cristo. Mas, entre eles, deve
colocar uma atenção especial na identificação com Cristo em suas
relações com a pobreza e com os pobres. É de suma importância, fazer
um exame de identidade da Igreja da América Latina para buscar
permanentemente sua própria conversão. Semelhante exame pCl/ie
ser também muito útil às igrejas de outros lugares da terra, a
começar pela Europa, para que também busquem sua própria
conversão.

1) Cristo e a pobreza

É claríssimo e sem objeção que Cristo assumiu a pobreza. Cristo


se fez pobre, não apenas no sentido de haver assumido a pobreza
da condição humana em geral, mas também e sobretudo no sentido
de haver assumido a pobreza dos pobres: fez-se pobre entre os
pobres. Nasceu no seio de uma família pobre. Nasceu em condições
de extrema pobreza: sua mãe «o deitou numa manjedoura, porque
não encontraram lugar na hospedaria» (Lc 2,7). Cresceu na pobreza.
Trabalhou como pobre. Para proclamar a Boa-Nova serviu-se de
meios pobres. Realizou o ato supremo de pobreza entregando sua
vida no meio de dois malfeitores. O próprio fato de haver escolhido
a nação judaica para fazer dela sua pátria é uma demonstração

76 [1248]
de pobreza, pois tratava-se de uma nação pequena, insignificante
e dominada pelo Império Romano: se tivesse nascido em Roma.,
esse simples condicionamento teria feito dele outro tipo de homem,
tal como sucede em nossos tempos nos quais se faz discriminação
entre os cidadãos nascidos em países ricos que constituem verdadei-
ros impérios modernos e cidadãos dos países do Terceiro Mundo,
compassivamente chamados países «em vias de desenvolvimento».
Diante deste Cristo pobre, deste Cristo que deve ser o espelho
diante do qual a Igreja deve contemplar-se, como anda a Igreja
na América Latina? Ê ela realmente pobre? Qual das duas posições
anteriormente descritas lhe convém melhor como identificação com
o Filho de Deus feito homem?
Cristo não apenas se fez pobre entre os pobres, mas também
se defrontou com os ricos. Partindo da pobreza condenou a riqueza
qualificando-a de iníqua, contrapondo-a, para uma eleição definitória,
com Deus: «Ê impossível servir ao mesmo tempo a Deus e às rique-
zas» (Mt 6,24b).

2) A partir dos pobres

Cristo se fez pobre. Apesar disto, Cristo podia buscar os ricos


para realizar com eles sua Igreja. Não foi o que fez: procurou os
pobres. A maioria de seus discípulos foram pescadores, gente pobre
e ignorante em qualquer parte do mundo. E se algum deles não foi
pobre, pela própria força do chamamento sentiu-se movido a tor-
nar-se pobre. Se é irrefutável que Cristo se fez pobre, é igualmente
inquestionável que optou por realizar sua Igreja a partir dos pobres.
Não só isto, mas optou por realizar a partir dos pobres sua missão
de salvar o mundo, de instaurar o Reino do Pai. À eleÍl,ão dos po-
bres para convertê-los em seus discípulos e em seus apóstolos,
podemos acrescentar a pregação de sua mensagem - «bem-aventu-
rados os pobres ... » - e a demonstração de sua compaixão e
misericórdia com a multidão de famintos, de enfermos, de pecado-
res. " A demonstração de sua solidariedade efetiva com os pobres,
como diríamos hoje. Ao invés, interpela duramente os ricos para
ver se assim toca seu coração de pedra.
Que posição da Igreja na América Latina mais se aproxima
com a posição de Cristo? Em outras palavras: Qual das posições
da Igreja, tão nítidas na América Latina, revela uma identidade
maior com Cristo pobre e irmão dos pobres? ..

77 [1249J
Oxalá possa a Igreja na América Latina - constituindo-se
a partir dos pobres - responder prontamente como Cristo a per-
guntas parecidas com as de João Batista, dizendo: «Vão contar
a João o que vocês viram e ouviram: os cegos vêem, os coxos andam.
os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a
Boa-Nova é anunciada aos pobres ... » (Lc 7,22).

Tradução de
Lúcia Mathilde Endlich Orth

78 [1250]
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A IGREJA FACE ÀS MULHERES:


SOBREVIVÊNCIA
DE UMA DISCRIMINAÇÃO

Em razão de seu sexo, as mulheres na Igreja católica são rigo-


rosamente excluídas de qualquer instância oficial que permita exer-
cer as funções sacramentais, governamentais e magisteriais. Isto é
um fato. Não podemos negar, apesar disso, que elas assumem res-
ponsabilidades cada vez maiores na comunidade eclesial - princi-
palmente desde o Concílio Vaticano II - mas permanece inflexível
o princípio segundo o qual nenhuma mulher é admitida às funções
eclesiais cujo exercício exige, como condição prévia, a ordenação.
A disciplina da Igreja consiste apenas na formalização jurídica do
princípio segundo o qual o sexo feminino é um «impedimentum»
à ordenação. Desta forma, a priori e categoricamente, todo acesso
aos ofícios públicos da Igreja é interdito à mulheres, unicamente
em razão de seu sexo. A lei faz uma distinção de funções reservando
exclusivamente aos homens aquelas que exigem, previamente, a
pertença à hierarquia. Nem por isso podemos dizer que as tarefas
abertas às mulheres na Igreja são desprezáveis ou negligenciáveis;
mas são sempre simplesmente secundárias, em razão da escala
hierárquica.
Pode-se concluir então que as mulheres são menores na comu-
nidade eclesial? Sua exclusão dos setores públicos da Igreja cons-
titui um verdadeiro estatuto de inferioridade? Um atentado real
à sua dignidade? Uma forma não-evangélica de discriminação?
Atualmente, um número crescente de cristãos reconhece que
a fidelidade da Igreja ao Evangelho exige uma transformação da
situação atual das mulheres com relação à instituição eclesial, em
razão dessas interrogações. Perguntam-se eles: Por que a Igreja
permanece agarrada à imagem tradicional da mulher quando as
novas relações que se instauram hoje entre os homens e as mulhe-
res, em todos os outros domínios, permitem elaborar uma linguagem
diferente sobre o ser feminino? Será que a autoridade eclesial está

79 [1251]
persuadida de que a concepção clássica da mulher é intrínseca à
Revelação cristã? Ou mantém ela esta concepção por medo de que
uma outra concepção venha a provocar modificações muito impor-
tantes na sua liturgia e no seu exercício da autoridade e do magis-
tério? Com efeito, o que está em jogo neste debate não é só a rela-
ção entre os homens e as mulheres na comunidade eclesial, mas a
própria Igreja. Para muitos de nossos contemporâneos a atitude
da Igreja face às mulheres parece ir de encontro à sua vocação,
vocação esta que requer um esforço constante de renovação. 1
Perguntam-se eles se a Igreja pode continuar a proclamar o respeito
pelo ser humano em nome do Evangelho, sem, ao mesmo tempo,
questionar seriamente sua recusa de admitir as mulheres aos domí-
nios essenciais de sua vida. Põem em dúvida a palavra da Igreja
ao denunciar qualquer forma de discriminação baseada no sexo',
se, ao mesmo tempo, ela não passar no crivo sua concepção do
ministério ordenado - concepção que serve de justificação a man-
ter, em seu seio, um sistema de sacramentos e de governo inteira-
mente entregue às mãos dos homens.
A discussão atual sobre o lugar das mulheres na Igreja levanta
assim um problema de fundo. Enquanto a Igreja mantiver a idéia
aceita do ser feminino, não terá razões para colocar em dúvida nem
sua prática relativa às mulheres, nem sua concepção do ministério
ordenado enquanto estrutura exclusivamente masculina.
Aí está o problema. Mas, em vez de atacá-lo diretamente -
projeto demasiadamente vasto para as poucas páginas deste artigo
- prefiro interrogar-me sobre o sentido da exclusão das mulheres
dos setores vitais da Igreja, sobre a imagem da mulher que inspira
esta ausência. Colocar em evidência a idéia do ser feminino que se
revela através do discurso da Igreja institucional e mostrar seu
funcionamento na prática eclesial: eis uma tarefa das mais urgentes
a cumprir. Ê neste sentido que me proponho examinar brevemente
dois exemplos do discurso oficial da Igreja: o primeiro restrito ao
domínio teórico e o outro referente à vida prática da comunidade
eclesial.

1. A REPRESENTAÇÃO PASSA PELA SEMELHANÇA

Retiro meu primeiro exemplo do comentário oficial que acom-


panhou a publicação do documento lnter insigniores pela Congre-
1. Cfo Lumen Gentium, 1, 8.
2 o Cfo Gaudium et Spes, p. 1, c. 2.

80 [1252]
gação para a Doutrina da Fé, a 28 de janeiro de 1977. Segundo o
documento citado, a «Igreja, por fidelidade ao exemplo de seu Senhor.
não se considera autorizada a admitir as mulheres à ordenação
sacerdotal ... » • Insistindo no fato de que o magistério se refere ao
próprio ensino e não ao valor dos argumentos pelos quais se pre-
tende explicá-lo" o autor do comentário - não citado - aceita
esclarecer a decisão romana por uma explicação destinada a satis-
fazer as exigências intelectuais dos cristãos que não pensam que a
obediência se reduza a uma docilidade cega.
No final de sua exposição, o autor levanta o temível problema
da representação: pode uma mulher, ou não, representar Cristo nos
atos essenciais da Nova Aliança? Responde à questão dizendo que
o sacerdote deve ser um homem porque ele é sinal de Cristo no
exercício dos atos que exigem o caráter da ordenação. A «seme·
lhança natural» entre o Salvador e aquele que constitui seu sinal
é a condição sine qua non de uma função exercida «em nome e no
lugar de Cristo».' Este tipo de raciocínio pretende ser teológico:
«O fato de Cristo ser um homem e não uma mulher não é acidental
nem negligenciável... porque a economia da salvação é revelada
por símbolos essenciais dos quais é inseparável, sem os quais o
desígnio de Deus seria ininteligível a nós».' Para o autor do coo
mentário, a Antiga Aliança, formulada em termos nupciais, e a
N ova Aliança, enquanto esponsais entre Cristo e sua Igreja, expli.
cam por que a Encarnação foi realizada segundo o sexo masculino
e por que, conseqüentemente, este sexo é rigorosamente exigido nos
casos em que o ser humano é chamado a «exercer a função de
Cristo, ser sinal de sua presença, numa palavra, representá-lo» -
quer dizer, «ser um sinal eficaz de sua presença nos atos essenciais
da Aliança». 7 O autor termina sua argumentação com uma afirma-
ção global: questionar o símbolo bíblico da Aliança-esponsais «é ques-
tionar todo o estatuto da Revelação, é rejeitar o valor da Escri-
tura».8 Depois desta advertência maciça, acrescenta: «Talvez seja

3. Déclaration sur la question de l'admission des femmes au sacerdoce


ministériel, em La Documentation Catholique, n. 1.714, p. 159 (L'Osservatore
Romano, 28 de janeiro de 1977).
4. Commentaire au sujet de la déclaration de la Cangrégation paur
la Doctrine de la Foi sur la question de l'admission des femmes au sacer-
doce ministériel, em La Documentation Catholique, op. cito Citado daí em
diante com a sigla D.C.
5. D.C. p. 172.
6. D.C. p. 172-173.
7. D.C. p. 173.
8. Ibíd.

81 [1253J
ainda mais profundamente desconhecer o valor humano deste tema
nupcial na revelação do amor de Deus».·
Temos aqui, sem dúvida, o nervo do argumento a que fazem
apelo os opositores da ordenação da mulher. Mas o que este argu-
mento faz compreender, se examinado de perto? É bem possível
que seu discurso sobre o homem-sacerdote oculte um outro sobre a
mulher, cuja ambigüidade fundamental é revelada por uma análise
mesmo rápida.
Voltemos à demonstração proposta pelo comentário: o sacer-
dote, desempenhando o papel de Cristo é ao mesmo tempo o sinal
eficaz de sua presença e seu representante graças à semelhança
natural conferida pelo sexo masculino - considerado este como
Um dos fatores indispensáveis dos símbolos bíblicos relativos a
Cristo-esposo.
Apesar da evidente confusão de planos (resultante do fato de
que a semelhança no plano sexual é considerada necessária ao papel
de representação e de significação), o argumento nos remete à no-
ção tirada do Concílio de Trento, segundo a qual a ordenação «con-
figura» o sacerdote a Cristo. Entretanto, não devemos esquecer
que, no século XVI, os padres conciliares privilegiaram o aspecto
sacramental e sacerdotal da Ordem em reação contra os reforma-
dores. Por esta razão, não tinham a pretensão de definir a totali·
dade do ministério ordenado. O modelo desenvolvido por eles per-
manece parcial, polarizado em torno da noção do «caráter» sacerdotal.
É bastante evidente que este modelo do sacerdócio, interpretado
em categorias ontológicas, implicaria numa configuração a Cristo
mais ligada ao ser do ministro que às funções exercidas na comu-
nidade eclesiaL Por isso este mesmo modelo pode ser uma cilada
que conduz perigosamente aqueles que o invocam a uma posição
teologicamente insustentável, a saber, uma posição que define o
sacerdote pela analogia com a Encarnação. Não obstante, esta pers-
pectiva parece servir exatamente de apoio à afirmação do autor do
comentário romano segundo o qual não se pode compreender corre-
tamente o vínculo entre a linguagem simbólica da Aliança e aassi-
milação do sacerdote com Cristo, sem a «semelhança natural» como
suporte necessário da fé. O papel do sacerdote enraíza-se portanto
numa imagem cujos elementos semânticos se encontram cristaliza·
dos em categorias absolutas.

9. Ibid.

82 [125(
Esta posrçao é o resultado de uma progressão bem particular
da teologia da Ordem. Se remontarmos a seu ponto de partida,
descobriremos como esta teologia seguiu a tendência natural do
imaginário. Isto provém do fato de a imagem do sacerdote, ligada
à masculinidade, estar profundamente arraigada na consciência do
crente. Compreende-se, então, a razão por que a imagem do sacer-
dote produzida por esta teologia através dos séculos não pode inte-
grar a mulher em suas perspectivas.
Quais são as linhas mestras desta teologia da Ordem? A idéia
que presidiu esta teologia desde a origem foi ditada pela necessi-
dade de significar a distância entre a própria comunidade eclesial
e Cristo: a Igreja não existe em si; não pode dar a si mesma a
salvação. A fim de lembrar esta relação com Cristo, fez apelo à
noção de representação. Chamado a significar a alteridade do Se-
nhor com relação à comunidade eclesial, o sacerdote foi então consi-
derado como representante da distância entre o homem e a gratui-
dade divina. Este modo de conceber a função ministerial evoluiu
de maneira a tender a diminuir a distância entre a pessoa do minis-
tro e Cristo: partindo da idéia de que o sacerdote age em nome do
Senhor, passou-se à idéia de considerá-lo como aquele que ocupa
realmente seu lugar. A teologia do sacerdócio caminhou progressi-
vamente para uma ruptura entre a comunidade e seu ministro de
um lado, e, de outro, para uma assimilação do sacerdote com Cristo.
N o final deste processo surgiu uma fórmula perfeitamente conforme
a esta linha de pensamento: o sacerdote e Cristo constituem um só.
O ministro ordenado toma-se Cristo, um «alter Christus». '. Ora,
é a semelhança natural que faz funcionar mais eficazmente esta
coincidência enquanto evocação fantasmática: a imagem me dá a
realidade. Vendo o sacerdote, vejo Cristo. Desta forma, o conceito
do sacerdócio segue perfeitamente a lógica do imaginário que não
atenua e que não pode atenuar a positividade da imagem Cristo-
varão."
10. Entretanto é surpreendente constatar que mesmo a Escola fran-
cesa que tanto insistiu no século XVII sobre a semelhança do sacerdote
com Cristo não situa esta semelhança no plano físico, como o fez o do-
cumento romano, mas no plano da santidade: «No altar trazemos sua
imagem. .. mas só traremos sua semelhança se nos esforçarmos sem
cessar em tornar-nos exatamente semelhantes a ele em nossa vida ... o que
depende da integridade de nossa vida, da santidade de nossas ações»
(P. Me tez e a u, De sancto sacerdotio, Billaine, Paris 1631, p. 99-100.
Citado e traduzido por r. No y e, Sacerdoce et sainteté, em La Tradition
Sacerdotale, Ed. X. Mappus, 1959, p. 185).
11. Não exigimos do imaginário fazer o que não pode fazer, isto é,
abandonar a imagem de Cristo como homem. Trata-se antes de situar
corretamente a modalidade masculina em relação à função ministerial

83 [1255]
É evidente que o simbolismo do ministro como o sinal da alte-
ridade do Senhor com relação à comunidade perde toda sua força
nesta operação redutora ditada pela necessidade de tornar Cristo
presente através de um ser humano que possui em comum com O
Jesus histórico o sexo masculino.
Implicitamente, que nos revela sobre a mulher esta maneira de
conceber o sacerdote? Uma coisa parece clara: enquanto a imagi-
nação religiosa fizer coincidir a pessoa do sacerdote com o Cristo
histórico, enquanto a semelhança natural for considerada parte das
condições necessárias para a correta compreensão do papel do mi-
nistro, a mulher ficará à margem da vida da Igreja. No plano da
diferenciação sexual, a imagem do homem-sacerdote-Cristo e a da
mulher se excluem mutuamente. Enquanto o discurso oficial da
Igreja assimilar a figura do sacerdote a uma imagem quase fantas-
mática, e enquanto se confundirem as noções de representação e de
semelhança, parece vão falar da ordenação de mulheres.
Afirmar que é necessário passar pelo sexo masculino para
apreender o significado do papel simbólico de representação, é afas-
tar efetivamente as mulheres deste papel. Mas é também um modo
ambíguo de receber a Revelação de Deus: tal enfoque faz crer, erro-
neamente, que o processo pelo qual se cristaliza o imaginário sobre
um único significante em detrimento dos outros seria conforme à
fé. Eis por que a interpretação do símbolo religioso exige um es-
forço particular de lucidez. O cristão deve acautelar-se de uma
confusão entre a Revelação e a positividade relativa dos sinais pelos
quais ela se exprime. Só a este preço o sexo deixará de exercer a
função de um critério formal na escolha dos ministros pela comu-
nidade eclesial.

2. A TRADIÇÃO ADMITE APENAS O SEXO MASCULINO

Mudemos um pouco de registro nesta reflexão. Não é apenas


nos textos doutrinais que a posição da Igreja institucional revela
uma ambigüidade com relação às mulheres. O mesmo fenômeno
aparece também nas instâncias da vida eclesial em que não se trata
da ordenação, onde a questão da semelhança com Cristo não vem

da Igreja e de deixar aparecer outros aspectos desta função relegados


muitas vezes à sombra. Por exemplo, o que está totalmente ausente na
perspectiva clássica do sacerdote é a idéia de que a comunidade inteira
age em Cristo. Ora, trata-se aqui de uma concepção do ministério ordenado
que não exige a priori o sexo masculino.

84 [1256]
ao caso. Poucas são as mulheres cristãs engajadas - religiosas,
mulheres catequistas, auxiliares paroquiais, etc. - que nunca se
chocaram com o aparelho eclesiástico, precisamente em razão de
seu sexo. Há exemplos em que nenhum cânon, nenhum regulamento
escrito pode ser citado para justificar as reticências da Igreja oficial
em confiar às mulheres postos de responsabilidade. Certas ocasiões
elucidam particularmente o embaraço das autoridades eclesiásticas
que, na falta de um discurso racional e razoável para justificar sua
atitude, oferecem argumentos pouco convincentes. Tomemos um
exemplo que, embora não seja de ontem e se situe antes à margem
dos grandes negócios do Vaticano, ilustra esta questão.
A nomeação de Elisabeth Müller, em dezembro de 1969, como
conselheira da Embaixada da Alemanha Federal junto à Santa Sé
foi de encontro a uma advertência desfavorável da parte da Secre-
taria de Estado. Apesar dos esforços no sentido de legitimar suas
objeções, as autoridades romanas manifestaram um certo mal-estar
na explicação para justificar seu desacordo: «A tradição requer que
os representantes diplomáticos credenciados junto ao Vaticano se-
jam do sexo masculino». 12 Como conselheira do corpo diplomático
junto à Santa Sé, a Sra. Müller teria a função de encarregada dos
negócios na ausência do embaixador - função que poderia, even-
tualmente, colocá-la em relação direta com os prelados superiores
da Secretaria de Estado, no sentido de conduzir as negociações no
mais alto nível. Ora, para o Vaticano, esta situação era inaceitável.
O incidente é revelador. Colocando o problema das mulheres
em terreno completamente diverso daquele do sacramento da Ordem,
podemos compreender até que ponto a marginalização das mulhe-
res cristãs não pode ser reduzida aos argumentos puramente teoló-
gicos. Parece antes que seu distanciamento dos centros vitais da
vida eclesial está assentado numa história que mantém a mulher
subordinada ao homem - história que, provavelmente, não é de
todo estranha ao caso da Sra. Müller. O que está implícito na adver-
tência desfavorável do Vaticano tem a ver com o problema da
existência de uma Igreja totalmente masculina na sua hierarquia e
nas suas instâncias oficiais. Mais precisamente, desvenda um pro-
blema cujas linhas mestras podem ser resumidas assim:

- A tradição não admite a preença das mulheres nas instân-


cias mais altas de decisão na Igreja.

12. Esta resposta do Vaticano foi comunicada por um despacho da


Ag-ência France-Presse em data de 25 de janeiro de 1970. AFP-133.

85 [1257J
- A mulher não é chamada a exercer a autoridade na Igreja
nas mesmas condições do homem.
- O caráter público dos postos de alta responsabilidade no
Vaticano torna indesejável a designação de mulheres para esses
ofícios.
- Esta designação seria tanto mais inaceitável porque colo-
caria a mulher em relação direta com um corpo eclesiástico exclu-
sivamente masculino e celibatário.

Eis as conclusões que podemos tirar da decisão romana no


«caso MüIler». A atitude de recusa do aparelho da Igreja faz com-
preender que devemos procurar em outro lugar (e não em raciocí-
nios que pretendem ser puramente objetivos) os motivos da persis-
tência das autoridades em reservar exclusivamente aos homens as
funções de autoridade, de magistério e de sacramentos. De fato,
parece que devemos voltar-nos para o lado do imaginário e do pas-
sional para explicar tal comportamento.
Restringindo-nos ao caso que acabamos de evocar, podemos
pensar que a presença feminina representa algo que perturba o
clero. Não duvidamos de que a diferença é inquietadora para quem
ainda não assumiu sua própria identidade. Seria esta a razão de
a Santa Sé não admitir mulheres «em relação direta» com os altos
funcionários da Igreja? A idéia assoma espontaneamente ao espírito
mais ainda porque o posto ao qual a Sra. MüIler fora nomeada
ameaçava colocá-la em situações de poder exercer a autoridade em
funções oficiais e públicas. Ora, sabe-se que o angelismo que nutre
os fantasmas que vêm da recusa da alteridade não é incompatível
com os sonhos de onipotência, muito pelo contrário. Para exorcizar
o medú da diferença, o outro é dominado, subordinado, tratado com
desprezo. Uma forma atenuada mais ou menos terrível desta atitude
encontra-se na idéia de que a «natureza» deve determinar as fun-
ções e os papéis dos indivíduos. Desta forma, a recusa do feminino
na Igreja pode ocultar-se atrás da afirmação de uma complemen-
taridade segundo a qual a mulher é relegada às tarefas da vida
privada - tarefas de mãe e de esposa. Quanto ao poderio mascu-
lino na Igreja, encontra seu apoio no fato de Deus se ter feito
homem. Ê a este título - conforme ensina o documento Inter insi.
gniores - que Cristo delegou seu poder e sua autoridade unicamente
aos homens. Mas, para sustentar este tipo de raciocínio, nada impe-
de que se recorra insensivelmente ao imaginário: as antigas imagens

86 [1258]
do homem (Centro do mundo, Sol, Pai) realmente não são estra-
nhas à do homem como imagem de Deus Pai.
Poderíamos dizer que foram esses mecanismos de medo e de
vontade de poder que presidiram à resposta desfavorável da Santa
Sé à embaixada alemã? Não podemos afirmá-lo com certeza, pois
tudo, neste domínio, continua no claro-escuro. Mas, apelando à tra-
dição para legitimar sua desaprovação, o Vaticano levanta algumas
suspeitas. A fragilidade de sua objeção é patente: nenhuma tra-
dição existe para proibir às mulheres serem membros das altas
instâncias diplomáticas junto ao Vaticano, porque a questão jamais
foi levantada."
Neste domínio - como no domínio da ordenação - somos
levados a pensar que a marginalização da metade dos batizados
decorre de uma fonte bem outra, uma fonte que nada tem a ver
com a fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo. Parece provir
muito mais de sentimentos humanos. " É claro que não esperamos
da Igreja oficial uma mudança radical, de imediato, na sua prática
atua1. Para começar, impõe-se esta condição: que ela não se deixe
cegar e examine com mais rigor e objetividade as motivações que
inspiram suas decisões relativas às mulheres cristãs. Este seria já
um passo enorme na direção da construção de uma Igreja mais
digna de crédito aos olhos de nossos contemporâneos. Seria tam-
bém o melhor modo de preparar a comunidade cristã para acolher,
no momento oportuno, a presença plena das mulheres na Igreja
de Jesus Cristo.
Como já afirmei acima, meu propósito, nestas páginas, não é
exaustivo. O intuito é fazer aflorar um tema que mereceria desen-
volvimentos mais longos e mais sutis. Ao concluir, espero, sincera-
mente, que os dois exemplos evocados sirvam para mostrar que
existe um problema real e que este problema exige da Igreja -
na sua teoria e na sua práxis - uma reavaliação de seu discurso,
uma superação de seus temores e uma reatualização de suas tradi-
ções, a fim de responder às novas exigências de nosso tempo, com
o pleno concurso das mulheres.
Tradução de
Lúcia Mathilde Endlich Orth

13. Se é verdade que a Santa Sé consentiu em conceder o pleno


estatuto diplomático a uma secretária da embaixada dos Países Baixos,
Srta. Bartelds, a graduação desta não a levou a entrar em relações diretas
com os altos responsáveis do Vaticano. Quanto à Sra. Clara Booth Luce,
embaixatriz dos Estados Unidos sob o pontificado de Pio XII, ela era
credenciada junto ao Quirinal. Não existe nenhuma representação diplo-
mática dos Estados Unidos junto à Santa Sé.

87 [1259]
Francisco F. Claver

AS COMUNIDADES CRISTÃS
E AS MINORIAS ÉTNICAS OU TRIBAIS

1. o PROBLEMA

Na retórica geral sobre direitos humanos - uma questão cor·


rente, que quase virou mania em nossos dias - os direitos das
minorias são objeto de muita discussão e dissecação. Mas muitas
vezes, em toda esta falação, as próprias minorias são, por um
estranho descuido, deixadas fora da conversação real. O fato é
possivelmente a suprema indignidade infligida aos sem-dignidade,
não-intencionada mas perpetrada não obstante por pessoas bem-
intencionadas, elas próprias preocupadas em restituir aos outros a
dignidade perdida. A ironia poderia muito bem provir da própria
idéia de «restituir» a dignidade de outras pessoas.
Tomamos como pressuposto fundamental neste artigo o seguin-
te: que a dignidade humana, como os direitos que dela emanam,
é inalienável e, se quisermos ser precisos, não pode ser «perdida»
ou «restituída». Talvez isto seja cavilação. Mas o fato é que, se
a dignidade humana é realmente inalienável, uma pessoa não pode
restituí-la a outra. E disto segue uma outra e sumamente pragmá-
tica dedução: que a dignidade humana é confirmada da melhor
maneira quando vem afirmada pelas mesmas pessoas que, a nosso
ver, não a têm. E se tudo isso é verdade, é uma tarefa evangélica
de primeira ordem para os cristãos promover eSSe ato de afirmar a
dignidade. Assim, se devemos falar de «restituir» a dignidade, seria
bom fazê-lo afirmando-a deliberadamente.
À luz de tudo isto, o problema da dignidade humana, no que
toca as comunidades professamente cristãs e suas relações com mi-
norias étnicas, torna-se fértil sementeira para ulteriores questões.
Pois o fato deprimente que sempre se repete parece ser este: quando
os cristãos se orgulham de ser a raça escolhida de Deus - o «pre-
conceito dos salvos» - todos os outros, por esse simples fato, são
relegados a um status inferior como seres humanos. Este não é, pro-
vavelmente, um defeito especificamente cristão, mas ocorre sempre

88 [1260]
que um povo se coloca à parte, como superior a outros por quaisquer
motivos - cor da pele, regime alimentar, maneira de vestir, ideo·
logia etc. Mas para os cristãos que professam, como parte inte-
grante de sua fé, a comum dignidade de todos os homens e mulheres
sob a paternidade de Deus, a questão torna-se ou deveria tornar-se
não apenas uma questão de preconceito humano mas também de
religião, uma questão que atinge profundamente até os próprios
fundamentos do cristianismo: «Se fizestes isto ao menor de meus
irmãos ... »
Mas em vez de apenas apontar as contradições entre a fé dos
cristãos e sua prática concreta da mesma, pode convir mais ao
propósito deste fascículo de Concilium falar de iniciativas concretas
que se estão tomando com respeito ao problema geral. Eu gostaria
de começar por uma situação particular - a nossa, aqui, nas Filipi-
nas - e daí proceder ao que poderia ter aplicação e relevância
mais universais.

2. ENFRENTANDO O PROBLEMA

Há dois anos apenas, em novembro de 1977, realizou-se na


cidade de Davao na ilha de Mindanao (Filipinas), um breve mas
apesar disso histórico encontro de três dias. Compareceram cerca
de 50 agentes de Igreja, de todo o país, que trabalhavam no que
então era denominado «Apostolado das Comunidades Culturais»:
dois bispos, uma dúzia mais ou menos de sacerdotes e religiosos, um
número maior de leigos tanto homens como mulheres. Foi a primeira
reunião de âmbito nacional jamais convocada pela Igreja das Fili·
pinas - mais especificamente, pela Comissão Episcopal para as
Comunidades Culturais - a fim de avaliar e corrigir sua atuação
entre as minorias étnicas da nação.
Várias decisões foram tomadas na reunião, mas na minha
üpinião as duas centrais foram: 1) a mudança do nome da Comissão
(e do Apostolado) que, em vez de «das Comunidades Culturais»,
páSSOU a ser «dos Filipinos Tribais»; e 2) a adoção de uma «filoso-
fia de trabalho» do pessoal eclesiástico que trabalha entre os vários
grupos tribais. Estas duas decisões específicas, é desnecessário dizê-
lo, têm muito a ver com o tema geral deste fascículo - a dignidade
dos sem-dignidade - e com o que já foi dito acerca da afirmação
ativa da dignidade «perdida» das pessoas.

89 [1261]
3. A QUESTAO llJTNICA NAS FILIPINAS

É impossível, no espaço concedido para este artigo, apresentar


um histórico, por breve que seja, da questão étnica nas Filipinas,
embora fosse necessário para uma melhor compreensão dos proble-
mas envolvidos. Baste dizer que na sociedade filipina existe hoje
uma divisão bastante nítida entre grupos cristãos e não-cristãos,
cuja origem remonta inteiramente aos tempos da colonização espa-
nhola, de fato, ao sistema espanhol de conquista e cristianização:
as tribos subjugadas (hoje 90% da população total de 45 milhões)
tornaram-se os povos cristãos das Filipinas - e foram hispaniza-
das, não no mesmo grau e extensão como a América Latina domi-
nada e miscigenada pela Espanha, mas o suficiente para fazer uma
diferença; as tribos não-conquistadas (os restantes 10%), por outro
lado, tanto muçulmanas como animistas, apegaram-se obstinada-
mente às suas tradições pré-hispânicas, e isso também constituiu
uma diferença não só na esfera religiosa mas também nas esferas
política e econômica.
No decurso de sua evolução, esta divisão assumiu a forma de
um clássico cenário marxista: exploradores contra explorados,
opressores contra oprimidos. No atual quadro político de ditadura
militar, atingiu o ponto explosivo. As antigas leis e cláusulas da
Constituição Filipina que, ao menos no papel, davam proteção aos
direitos das minorias étnicas já não vigoram sob o estatuto da
segurança nacional e do desenvolvimento econômico; e, como resul-
tado, as tribos minoritárias são agora mais vulneráveis do que
nunca. Muitos projetos grandiosos de desenvolvimento (especial-
mente, represas para construção de hidrelétricas e projetos de
irrigação, indústrias de mineração e madeireiras etc.) estão
sendo realizados em áreas tradicionalmente ocupadas por grupos
étnicos, sem muita consideração por seus direitos nativos às pró-
prias terras e sem nenhuma providência concreta - embora haja
abundância de promessas - de compensação adequada.
Dizer, portanto, que o resultado global da atual política do
governo para com as minorias éticas é a perda de seus lares ances-
trais, a destruição de antigos estilos de vida, insegurança psicoló-
gica e física, degradação e até mesmo genocídio, nada mais é que
martelar o óbvio. É na perspectiva destes desenvolvimentos, tanto
os históricos e culturais em geral como os mais recentes em parti-
cular, que se deve considerar aquelas duas simples mas realmente
importantes decisões da consulta dos agentes eclesiásticos em Davao.

90 [1262J
4. OS FILIPINOS TRIBAIS

«o que contém um nome?» Ê fácil descartar como bravata


fútil no pior dos casos, ou inconseqüente no melhor, a deliberada
adoção pela Comissão Episcopal para os Filipinos Tribais (CEFT)
do termo «tribal», termo pejorativo no contexto das Filipinas, para
doravante designar as minorias étnicas da nação. Mas o que está em
jogo aqui é o orgulho das pessoas, sua dignidade, sua própria iden-
tidade. Por trás da escolha do nome está toda uma história de
incompreensão, contumélias, esquecimento, desprezo, opressão total
e, nos últimos anos, o perigo e a realidade de ulterior degradação
e eventual extermínio. Atualmente verifica-se em muitos grupos
tribais uma crescente conscientização, nascida em muitos casos do
desespero, acerca da verdade daquilo que este artigo colocou logo
de início como uma de suas grandes teses, a saber, que a dignidade
violada desses grupos e os direitos que a acompanham não serão
reconhecidos nem defendidos a não ser que eles mesmos ajam para
afirmá-los, por problemático que seja afirmá-los sob o governo
militar que ora predomina.
Convém notar aqui que a adoção do nome não proveio de zelosos
reformadores «cristãos», seja estrangeiros seja nativos, mas dos
próprios «tribais». Mais da metade dos participantes da consulta
eram membros de grupos étnicos, e foi por sua iniciativa e insistên-
cia que se efetuou a mudança. A aceitação decidida e pública de um
nome de vergonha para definir-se a si mesmos constituiu o primeiro
passo na afirmação da dignidade de seu povo, fundamentalmente
um esforço deliberado por transformar uma fonte de insulto e
opróbrio numa fonte de honra e orgulho.

5. FILOSOFIA DE TRABALHO

Por importante que tenha sido a escolha de um nome, con-


sequencias mais decisivas teve a elaboração de uma filosofia de
trabalho. Eis na íntegra o texto da declaração:

«Afirmamos como dada por Deus a dignidade dos Filipinos


Tribais e de suas culturas. Eles são nossos iguais. Nós os
respeitamos.
Nossa evangelização é um testemunho de vida e humilde
serviço. Apresentamo-lhes a Mensagem de Salvação de

91 [1263]
Cristo num diálogo de vida e de fé com eles, como dom e
convite que eles podem aceitar e responder livremente a
seu modo e a seu tempo.
Este humilde serviço impõe-nos um contínuo processo de:
a) análise de nossa própria cultura e da dos outros;
b) apreciação de nossas culturas mutuamente enriquece-
doras; e c) uma síntese cultural, isto é, uma crescente
união rumo a uma identidade nacional de parceiros que se
autodeterminam.
Isolada, cada cultura individual, devido às suas fraquezas
inerentes, torna-se vulnerável às forças exploradoras da
sociedade; mas unidos como amigos, encontramos nossa
força na certeza de que cada qual está disposto a 'entregar
sua vida por seus amigos'.
Empenhamo-nos portanto em construir comunidades in-
terdependentes e que no entanto se autodeterminam,
através de:

1. Participação na opOSlçao dos Filipinos Tribais a todas


as tentativas de destruir sua herança cultural;

2. Participação em sua oposição a todas as formas de


exploração e violação da justiça e dos direitos humanos;

3. Partilha de recursos na promoção de educação liber-


tadora e organização».

A «filosofia de trabalho», tomada em seu contexto histórico,


fala eloqüentemente por si e não necessita de ulterior explicação
além do fato de que é a articulação de um modo de pensar que já
veio se desenvolvendo nas mentes de muitos agentes - leigos,
clérigos, religiosos, tanto estrangeiros como também nativos -
desde que o Vaticano II irrompeu na cena «missionária» com suas
idéias seminais acerca de uma Igreja mais aberta e receptiva. Mas,
se é um modo de pensar, é também um modo de operar no aposto-
lado da Igreja das Filipinas junto aos Filipinos Tribais, afinal de
contas, uma revolucionária correção de rumo na missão da Igreja
junto aos povos tribais da nação.

92 [1264]
6. REFLEXÕES SOBRE O ENFOQUE DA COMISSÃO
EPISCOPAL PARA OS FILIPINOS TRIBAIS

Há muitas observações que podemos e devemos fazer acerca da


maneira de considerar a evangelização - em última análise é da
evangelização que estamos falando - que a Comissão Episcopal
para os Filipinos Tribais veio desenvolvendo nos últimos anos. Eu
gostaria de expô-las aqui à guisa de resumo e também à guisa de
ulterior questionamento sobre o problema da dignidade humana.

1) Dar versus assumir dignidade. - Quase inconscientemente,


quando falamos da dignidade dos sem-dignidade, fazemo-lo, como
foi insinuado acima, em termos de dá-la' - ou seja, «restituí-la» -
aos que, por circunstâncias históricas ou outras, foram dela privados,
ou mesmo despojados. Raramente, ou nunca, pensamos realmente
na possibilidade de ela ser ativamente assumida por aqueles que
consideramos sem-dignidade. O inverso também é inteiramente ver·
dade: os esbulhados acham mais fácil pensar em termos de recupe-
rar a dignidade das mãos dos que lha negam, dificilmente em ter-
mos de afirmar o que já possuem. Tenho a impressão de que, quan-
do a dignidade humana é compreendida e aceita como algo inato
nas pessoas e não como um privilégio concedido por seus «supe-
riores», seriam evitadas ou mesmo totalmente eliminadas muitas
dificuldades práticas relativas à questão. Mas olhar a dignidade
humana nesta perspectiva - é aqui que está grande parte do
problema.

2) Critério para dar/assumir a dignidade. - Na ordem práti-


ca, o único critério eficaz pelo qual podemos dizer se não estamos
simplesmente falando sobre a dignidade humana mas realmente
acreditamos nela é nossa disposição de respeitar os direitos dos
homens qua homens como entendemos e definimos esses direitos
culturalmente. Sublinho expressamente a frase precedente para re·
bater a especiosa argumentação muitas vezes avançada por governos
ditatoriais para apoiar suas flagrantes violações dos direitos huma-
nos, a saber, de que os conceitos de direitos humanos e dignidade
humana e a preocupação pelos mesmos são invenções e obsessões
ocidentais que não podem aplicar-se a povos e nações de outras
tradições culturais. Mas a verdade insofismável é a seguinte: quan-
do se penetra no âmago das coisas, o que é proposto como «direitos
humanos universais» são verdadeiramente direitos, humanos e uni-
versais. Sua manifestação concreta e precisa, o grau de ênfase que

93 [1265]
neles se coloca, o afeto emocional que se lhes concede - são todos
eles culturalmente nuançados, mas na essência os direitos como tais
pouco diferem de uma cultura para outra.

3) A política de confronto. - Quando as pessoas se levantam


em favor dos próprios direitos e assim afirmam sua dignidade como
livres agentes de seu bem, entram inevitavelmente em conflito com
interesses políticos e outros direitos adquiridos. E todo o em-
preendimento que cai sob a rubrica de defesa dos direitos humanos
e da dignidade das pessoas assume uma tonalidade política que,
embora não lhe seja totalmente estranha, contudo vicia-lhe o cará-
ter primariamente humano e humanizante. Haverá necessariamente
conflito - enquanto houver pessoas que julgam proveitoso para
elas negar os direitos a coirmãos e, por esse motivo, não estão
dispostas a reconhecer a outros esses mesmos direitos; enquanto
houver, também, entre os esbulhados de seus direitos e dignidade,
homens e mulheres determinados a não suportarem ulterior degra-
dação como pessoas e dispostos, a todo custo, a afirmarem sua
própria dignidade. O conflito é inevitável. O problema está em
como solucioná-lo de maneira humana e cristã.

4) A ética: de conscientizaçã%rganização. - A política (ou


mentalidade?) de confronto não leva necessariamente nem mesmo
ordinariamente à violência. É surpreendente como os oprimidos e
esbulhados de seus direitos civis, num alto grau de consciência de
sua condição de oprimidos, não voltam em geral sua mente de ime-
diato para a violência, como as pessoas do governo estão habitua-
das a crer. Não que não exista a tentação, atraente, sedutora, às
vezes até propositalmente fomentada por alguns agentes eclesiásti-
cos bastante enamorados de ideologias de violência. Mas, deixando
as pessoas guiarem-se por seu bom senso, elas optarão por agir
e organizar-se em seu próprio benefício de maneira pacífica, não
obstante eficaz. É esta a ética do método de conscientizaçã%rga-
nização de que estamos falando aqui, e é precisamente seu aspecto
não-violento, muitas vezes mais implícito que explícito, que ame-
dronta os governos de direita deixando-os ensandecidos e impelin-
do-os a gritar o usual slogan de «comunismo, subversão, rebelião».
Violência podem eles tratar com igual violência. Mas a não-violência
dos indefesos e fracos - a esta devem transformar de algum modo
em violência, mesmo que só de nome, a fim de poderem enfrentá-la
com o frágil pretexto de segurança nacional.

94 [1266]
5) Comunidades de base. - A ética funcionará da melhor ma-
neira numa comunidade de homens e mulheres que, em mútua con-
fiança e preocupação, sejam capazes de sentar e raciocinar juntos
a fim de agirem juntos para o bem comum, procurando sempre
meios e modos de criarem, dentro de suas capacidades, uma socie-
dade sempre mais humana onde sejam realmente honrados os direi-
tos coletivos e individuais. Nunca se acentuará demais o caráter
dialógico das comunidades de base. O nível da interação face a face
é o melhor lugar para tratar realisticamente das exigências ineren-
tes aos conceitos de dignidade humana e direitos humanos e suas
implicações para a vida do dia-a-dia. E junto com esta interação
vai o constante discernimento e a análise reflexiva de toda a comu-
nidade acerca de seus problemas vitais e das suas soluções para
os mesmos. A atenta disposição de juntos enfrentar os pro-
blemas faz parte daquela ética de que falamos acima, mas colocada
agora no contexto das comunidades de base.

7. A TAREFA DA IGREJA

Os cinco pontos brevemente abordados acima podem ou não


dizer adequadamente tudo quanto há a dizer acerca do modo como
a Comissão Espiscopal para os Filipinos Tribais aborda o que hoje
constitui seus objetivos mais importantes: a) inspirar nas minorias
étnicas um renovado senso da própria dignidade e unicidade como
povo; b) educar os grupos majoritários levando-os a abandonar os
imemoriais preconceitos contra os filipinos tribais e adotar pontos
de vista e valores mais nitidamente cristãos. Estes objetivos não
se encontram enunciados explicitamente em nenhuma parte da
«filosofia de trabalho», contudo estão ali, não expressos em pala-
vras mas sonoros e claros como o trovão.
São estes objetivos - mais do que a própria abordagem, no
meu entender - que levantam as questões realmente importantes
acerca da tarefa evangelizadora da Igreja para com as minorias
tribais e da preocupação por sua diminuída dignidade. Pois quando
se vai ao cerne da questão, vê-se que esses objetivos colocam de
fato as seguintes perguntas duras e incisivas:

1) Nós, como Igreja, preocupamo-nos pela dignidade das mino-


rias étnicas apenas porque procuramos, em última análise, sua con·
versão ao cristianismo institucional?

95 [1267]
2) Ou porque, em vista de nossa história um tanto suja no pas-
sado, desejamos agora tornar-nos testemunhas mais fidedignas do
Evangelho cumprindo mais fielmente suas exigências concernentes
à dignidade e aos direitos humanos?

3) Ou, finalmente, porque acreditamos que ajudar a salvar,


preservar, fomentar a dignidade - e, portanto, a própria humani-
dade - das pessoas, especialmente dos «menores de Seus irmãos>',
é, independentemente de quaisquer considerações de conversão ou
testemunho, uma tarefa eminentemente cristã e isto é por si mesmo
justificativa suficiente para nosso engajamento?

As questões não são, de modo algum, acadêmicas. Tampouco


as respostas. Pois delas depende se e como haveremos de afirmar
ou negar nossa própria dignidade como filhos do Pai.
Tradução de
Gentil Avelino Titton

96 [1268]
Mariasusai Dhavamony

CRISTIANISMO E SOCIEDADES
BASEADAS NUM SISTEMA
DE CASTAS
o CASO DA ÍNDIA

1. DEFINIÇÃO DO SISTEMA DE CASTAS

o sistema de castas na índia é um fenômeno complexo, estrei-


tamente relacionado com as instituições sociais, econômicas, polí-
ticas e religiosas da mesma Índia. O problema de «classes atrasa-
das» ou «castas fixadas» surgiu principalmente da estrutura de
castas da sociedade hindu. A fim de compreender adequadamente
a relação entre o cristianismo e o sistema de castas é, portanto,
necessário apresentar um sumário esboço do sistema de castas em
seus diferentes aspectos.
Casta é um grupo ou grupos endógamos, com um nome comum,
cujos membros dedicam-se a uma única ocupação ou muitas ocupa-
ções afins, reportam-se a uma origem comum e formam um todo
homogêneo, em que os membros vinculam-se mais estreitamente
entre si do que com qualquer outro segmento da sociedade em que
vivem. 1 A casta (jâti) evoluiu - e ao mesmo tempo se distingue
- de um sistema muito mais antigo de quatro classes (caturvarna)
da antiga sociedade hindu: Brâmanes, Kshatriya, Vaishya e Shudra,
cujas funções eram diferentes. A tarefa dos Brâmanes era estudar,
ensinar e interpretar os escritos sagrados e executar os sacrifícios
em benefício da comunidade; a tarefa dos Kshatriya consistia em
proteger o povo por um governo e uma administração apropriados;
os Vaishya deviam assumir os negócios e cultivar a terra; e os
Shudra tinham que prestar serviço às outras três classes. Mas a
casta é uma subdivisão dessas diferentes classes, e esta subdivisão
admite ela própria muitas outras subdivisões, com status superior
ou inferior em relação a outras divisões semelhantes.

1. Encyclopaedia Britannica, voI. 4, 1010.

97 [1269]
Existem varlOS elementos que constituem o sistema de castas
propriamente dito. 2 Em primeiro lugar, casta implica a idéia de
especialização hereditária. O filho de um ferreiro tornar-se-á fer-
reiro e o filho de um guerreiro será guerreiro, seja ele competente
ou não, quer queira quer não. Desempenhar a ocupação da família
é não só um direito mas um dever imposto aos filhos. Em segundo
lugar, casta supõe uma hierarquia, uma desigualdade, com direitos
e privilégios repartidos desigualmente. O status da pessoa por toda
a vida é determinado pelo lugar que ocupa na escala social o grupo
a que essa pessoa pertence. Em terceiro lugar, casta implica distân-
cia social codificada e graduação ritual da sociedade. Cada grupo de
casta é fechado em si mesmo, sem relações sociais com outros gru-
pos no que tange a matrimânio ou hábitos alimentares, considerando
impuro e degradante o contato com o «estranho». Há várias expli-
cações diferentes para a origem e desenvolvimento do sistema de
castas: razões religiosas, divisão funcional da sociedade, fatores
raciais, usos e costumes, tradição e divisões tribais etc. Muitos
destes fatores contribuíram para o sistema de castas, de tempos em
tempos, variando a importância e influência ora de um ora de outro.
Ê o sistema de castas peculiar apenas à Índia ou universal e
comum a todas as civilizações? Como se relaciona com instituições
sociais análogas, como corporação, clã e classe? Encontramos estra-
tificação da sociedade até nos países desenvolvidos do mundo. Dis-
tinções sociais e distância social existem efetivamente em todas as
sociedades. Mesmo nas sociedades democráticas a ideologia iguali-
tária vigora na teoria e diante da lei, mas na prática real a desi-
gualdade parece um fato social aceito; a saber, desigualdade em
renda, riqueza, prestígio social, posição social, poder político etc.
Mas na Índia a estratificação social se fundamenta na heredi-
tariedade, isto é, no nascimento em vez de na individualidade, e
torna-se assim distintamente um sistema de castas. Outro traço que
distingue o sistema de castas é que ele abrange tudo e regula não
só a organização das vocações mas também o comportamento moral
e religioso, com a injução social de que aqueles do grupo que não
observam as normas da casta tornam-se párias. Além disso, a prá-
tica da «intocabilidade» baseada na pureza ritual é uma caracterís-
tica peculiar do sistema de castas. Devemos notar que durante a
longa história da Índia as castas mantiveram unida a estrutura da

2. Célestin B o u g I é, Essays on the Caste System, tr. D. F. Pocock,


Cambridge 1971, Introdução.

98 [1270]
sociedade e que o povo optou pela segurança social e solidariedade
em vez da igualdade. As castas inferiores estavam convencidas de
que se pode atingir a perfeição cumprindo bem os deveres da pró-
pria casta e permanecendo no espaço interno da mesma. Julgava-se
mais importante cumprir os próprios deveres do que exigir direitos
e privilégios. O senso de unidade e harmonia social transformou-se
em norma de conduta. Isto explica por que o sistema de castas
durou tão longo tempo na índia. Mas os aspectos deturpados de
todo o sistema de castas foram os seguintes: conceito rígido de
hierarquia social, teoria e prática da contaminação, nascimento
como fato r determinante para a seleção das ocupações, e estrutura
social estática. Como aponta com justeza A. R. Wadia: «Pior de
tudo, ela (a 1ndia) tornou-se a pátria da intocabilidade e inacessi·
bilidade que a marcaram com a maldição de Caim».' A teoria e
a prática da contaminação assumiram tamanhas proporções a ponto
de considerar o toque e até mesmo a vista dos intocáveis como con-
taminadores; e isso de tal maneira que os intocáveis foram priva-
dos de todos os serviços da comunidade, tais como uso de poços
públicos, entrada nos templos, escola, assistência médica e outras
facilidades, por medo de contaminação.

2. CRITICA DO SISTEMA DE CASTAS DENTRO DO IDNDU1SMO

Dentro da própria sociedade hindu, para não falar da budista


ou jainista, verificaram-se fortes movimentos contra as idéias de
discriminação em castas e exclusividade social. Os movimentos de
reforma defenderam o valor da fraternidade universal, racionali-
dade, liberalismo, e o conceito de igualdade e justiça. Os grandes
bhaktas (amantes de Deus) vaishnava e shaiva do Sul da 1ndia
repudiaram o sistema de castas e pregaram a mensagem da frater-
nidade universal e unidade da raça humana, com fundamento na
paternidade de Deus. Não só os grandes movimentos hindus de
reforma como Brahmo-samâj, Ârya-samâj, Prârthana-samâj e a
Missão Ramakrishna, mas também a unIversalização da educação
pelos ingleses, a rápida industrialização do país e o movimento
antibrâmane no Sul da índia, contribuíram grandemente para a
gradual rejeição do domínio dos hindus de casta. Sem tardar,
verificou-se a mudança de status social de uma casta para outra
entre os não-brâmanes, enquanto para a classificação dos brâmanes

3. A. R. W a d i a, Contemporary Indian Philosophy, p. 238.

99 [1271]
o nascimento continuou sendo o único critério. Houve também uma
tendência gradual, entre as castas inferiores, a atribuir bramani-
dade aos seus próprios grupos de casta para fins de superioridade
social. Semelhante tendência é visível até mesmo hoje, e foi chama-
da por M. N. Srinivas de «sanscritização», o que significa «mudan-
ças culturais e estruturais na sociedade».4 Os brâmanes estão se
ocidentalizando sempre mais e as castas inferiores estão aspirando
a sanscritizar-se, o que significa um passo preliminar rumo à oci-
dentalização. Progresso econômico, liderança prática e educação são
alguns dos fatores de sanscritização, mas isto nem sempre implica
status mais elevado para a casta sanscritizada, como o demonstram
claramente os intocáveis ainda existentes. Foi sobretudo M. K. Gan-
dhi quem com maior vigor se dedicou a abolir o sistema de castas.
Assim disse ele: «A casta nada tinha a ver com religião. .. Sei com
certeza que ela é prejudicial tanto ao crescimento espiritual como
ao crescimento natural. Varna (classes da sociedade) e ashrama
(estágios da vida) são instituições que nada têm a ver com as
castas. A lei de varna ensina-nos que devemos, cada qual de nós,
ganhar nosso pão seguindo a profissão dos ancestrais. Define não
nossos direitos, mas nossas tarefas e deveres. Refere-se necessa-
riamente a vocações que são úteis para o bem-estar da humanidade
e a nenhuma outra. .. Segue-se também que não há vocação dema-
siado vil ou demasiado sublime. Todas são boas, lícitas e absoluta-
mente iguais em status. A vocação de um brâmane - mestre espi-
ritual - e a de um varredor de rua são iguais e sua execução
correta traz mérito igual perante Deus e parece que antigamente
trouxe idêntica retribuição perante os homens... A essência do
hinduísmo está contida em sua afirmação de um só e único Deus
como Verdade e em sua corajosa aceitação da ahimsa (não-violên-
cia) como lei da família humana». • «O hinduísmo que é responsável
pela doutrina das castas é também responsável pela insistência
na fraternidade essencial, não apenas dos homens mas até de tudo
quanto vive». 6 Outro eminente campeão da causa dos intocáveis é
B. R. Ambedkar. Afirmou ele energicamente: «Numa sociedade em
mutação deve haver uma constante reavaliação dos velhos valores
e os hindus devem compreender que, se deve haver normas para
medir os atos dos homens, deve também haver prontidão em rever

4. M. N. S r i n i v a s, Caste ln Modem India, Bombaim 1962, p. 58.


5. M. K. G a n d h i, Caste must go and the sin of untouchability.
Navajivan Publication, Ahmedabad 1964, p. lOs.
6. Ibid., p. 13.

100 [1272]
essas normas».' Ambedkar jurou eliminar a intocabilidade e a
injustiça social por ela criada.
A fase seguinte na mudança radical do sistema de castas come-
çou com a elaboração da Constituição indiana. 8 A Índia indepen-
dente deu-se conta de que a liberdade devia ser partilhada igual-
mente por todos os segmentos da sociedade. Todos os cidadãos são
iguais, independentemente de filiação de casta. Devem ser realizadas
radicais mudanças sócio-econâmicas para compensar o desequilíbrio
causado pelo sistema de castas. Reflete este objetivo o Preâmbulo
da Constituição da Índia:

«Justiça social, econâmica e política;


Liberdade de pensamento, expressão, crença, fé e culto;
Igualdade de condição e de oportunidades;
e promover entre todos,
Fraternidade que assegure a dignidade do indivíduo e a
unidade da Nação».

Justiça é tomada em dois sentidos: como fiel aplicação da lei


existente contra quaisquer infrações arbitrárias da mesma e como
o elemento ideal que a lei pretende promover. Liberdade é entendida
como a afirmação, por um indivíduo ou grupo, de sua própria
essência. Significa negação da licenciosidade. Igualdade significa
tratamento igual dos cidadãos no gozo dos direitos. Fraternidade
implica os valores humanos respeitando a dignidade da pessoa hu-
mana. O artigo 19 trata das liberdades concedidas pela Constituição;
o artigo 14 assegura a igualdade e o artigo 17 - que se refere à
abolição da intocabilidade - ilustra o conceito de fraternidade.
Analisando a situação aluaI, devemos notar que, embora as restri-
ções de casta tenham sido afrouxadas entre as classes instruídas e
nas cidades e vilas, são ainda observadas pelas massas rurais que
representam a maior parte da população.

3. OS CRISTÃOS E O SISTEMA DE CASTAS

Em toda civilização existem certos elementos que estão em


nítida oposição aos princípios essencialmente cristãos. Na vida e no
pensamento da índia, a estrutura de castas é nitidamente não-cristã.

7. B. R. A m b e d k a r, Annihilation of Caste, Bombaim 1937, p. SO.


S. Cf. Ratna G. R e van k e r, The Indian Constitution, A case study
of backward classes, Rutherford 1971.

101 [1273J
Até que ponto os cristãos indianos esclarecidos se esforçam real-
mente por abolir os traços do sistema de castas, inspirando-se na
fé cristã? Para um católico esclarecido o sistema de castas não
apenas constitui um obstáculo ao progresso social, mas é contrário
aos princípios da ética cristã. Além disso, a casta é contrária à
vontade de Deus. A fraternidade de todos os homens decorre da
paternidade de Deus, revelada na vida e pregação de Cristo. O valor
de toda pessoa humana é absoluto e não relativo ao status social.
Como observamos acima, houve muita crítica e incitamento
ao não-conformismo com as normas de casta antes de a influência
cristã atingir a lndia. Os ensinamentos do Buda, os relatos sobre
os hhakt,a'S e videntes hindus contêm muita coisa que não se coa-
duna com as castas. A idéia dominante dos santos hindus não era
tanto a idéia da igualdade social de todos os homens quanto a da
igualdade dos devotos diante de Deus; seu princípio fundamental
era que, pela fé e por uma vida virtuosa, todas as castas tornavam-se
igualmente puras. Havia de fato muita coisa no sistema de castas,
contra o que reagiam naturalmente a tolerância dominante e a
consciência sensível dos hindus. Foram estas características que
tornaram tão atraente aos hindus a doutrina social dos Evangelhos,
levando os cultos dentre eles a procurarem doutrina semelhante em
suas próprias escrituras, como é o caso de Gandhi. É impressionante
também que eles se preocuparam apenas com as necessidades prá-
ticas e sociais e com o lado emocional dos problemas éticos, e não
uniram a doutrina e a praxe sociais de Cristo com sua doutrina
essencialmente religiosa ou com a interpretação teológica de sua
vida. Tampouco procuraram descobrir se os princípios éticos eram
igualmente dependentes e ligados aos dogmas religiosos da fé
ortodoxa cristã. Talvez seja a hora de reconhecer que a casta não
deve sua origem à religião, mas adquiriu sanção religiosa no decurso
do tempo. Além disso, a casta está confessamente ligada à doutrina
hindu do karma e ainda persiste a crença de que o status social é
determinado pela natureza da vida de alguém em sua existência
anterior. O dever (dharma) de uma pessoa na vida consiste em con-
formar-se com as normas e padrões de sua casta. Mas um hindu
moderno como Radhakrishnan objetaria que, embora o sistema de
castas tenha degenerado em instrumento de opressão e intolerância
e tenda a perpetuar a desigualdade e fomente o espírito de exclusi-
vidade. esses desgraçados efeitos não são os motivos centrais do
sistema.

102 [1274J
o único decreto legislativo que teve incidência direta sobre
o sistema de castas é a Lei de Abolição das Inabilidades de Casta
(XXI de 1850), que determinava o seguinte: quaisquer leis ou cos··
tumes que imponham perda de direitos ou propriedade, ou que
possam ser considerados lesivos a algum direito de herança, pelo
fato de alguém ser privado da sua casta, não deverão vigorar nos
tribunais da Índia Britânica. Esta lei visava proteger os convertidos
seja ao cristianismo seja ao islamismo contra a perda dos direitos
em conseqüência da mudança de religião. Apenas evitava a impo-
sição de qualquer inabilidade civil ou jurídica aos que perdiam
sua casta pela conversão, mas não afetava oS que permaneciam na
respectiva casta. A grande maioria dos convertidos provinha das
castas inferiores, principalmente das castas desprezadas conhecidas
como os intocáveis.
As missões protestantes exigiam que os convertidos abjuras-
sem a casta, isto é, que mudassem seu sistema social ao memo tempo
que mudavam de religião. A Igreja siríaca ou católica não exigiam
a completa abolição das distinções de casta, embora proscrevessem
costumes que cheirassem a idolatria. As Igrejas luterana e angli-
cana só em 1833 proscreveram o sistema de castas. A Igreja lute-
rana considerava que as distinções de casta observadas por seus
convertidos eram de caráter civil e não religioso, e assegurou às cas-
tas superiores respeito em sua própria comunidade e influência entre
seus vizinhos hindus. A mesma opinião foi sustentada pelo bispo
Heber, o qual afirmou que, em matéria de refeições e convívio social,
dever-se-ia seguir o princípio: Por causa de comida e bebida não
arruínes aquele por quem Cristo morreu. O bispo Daniel Wilson
defendeu a opinião contrária: a saber, que a Igreja da Inglaterra
não podia tolerar um sistema que condenava as castas inferiores ao
perpétuo aviltamento, que constituía barreira contra a ascensão
social e os laços de solidariedade humana e impedia o amor cristão.
Outras Igrejas protestantes seguiram o mesmo rumo, sustentando
que o sistema de castas opõe-se ao mandamento: «Amarás teu
próximo como a ti mesmo».

4. SITUAÇAO PRESENTE

Entretanto, a mudança completa na vida social, acarretada pelo


repúdio da casta, tem sido um obstáculo à conversão ao cristianis-
mo; desencoraja também a muitos, que doutro modo confessariam

103 [1275]
a fé cristã, de receberem o batismo. Por outro lado, a aceitação
das distinções de casta - mesmo apenasmente no nível social -
dentro da comunidade cristã tornou-a menos homogênea, dividida
em castas e partidos, mutuamente excludentes e discriminatórios.'
As classes desprezadas, ou seja, os intocáveis, têm menos objeçõe~
a renunciarem o hinduísmo e abraçarem o cristianismo, porque fa-
zendo assim adquirem um status mais elevado e em muitos lugares
deixam de ser considerados intocáveis pelos vizinhos hindus. E no
entanto desenvolveu-se na comunidade cristã algo como uma cons-
ciência grupal de casta, criando direitos grupais adquiridos e
lutas pelo poder dentro da mesma, e ameaçando o verdadeiro senso
de fraternidade cristã. O que verificamos dentro da Igreja não é o
agrupamento original das castas, mas uma estranha mistura de
consciência das tradições culturais, língua, terra natal, origem
social, lealdade regional. É neste sentido que os cristãos de rito
siríaco do Kerala formam um grupo distinto dos cristãos Pulaya;
os Nadar pretendem formar um grupo cristão separado em confronto
com os Vellala em Tamilnadu; e os Mala diferenciaram-se dos Ma-
diga em Andhra Pradesh. ' ° Os cristãos do Rerala dividem-se em
numerosos grupos como os siro-caldeus, siro-jacobitas, católicos
latinos, siro-martomitas, siro-católicos e protestantes. Cada um
destes grupos tende a praticar a endogamia. Entre os próprios cató-
licos, os siro-romanos e os latino-romanos geralmente não casam
entre si; igualmente entre os martomitas e jacobitas. 11
Um fato importante entre os cristãos Pulaya de Travancore
foi o surgimento da Pratyaksha Raksha Daiva Sabha (PRDS), a
Igreja Divina da Salvação Visível, fundada nos anos de 1930 pelo
falecido Poykayil Johannnan, um Pulaya que se converteu ao cris-
tianismo. Primeiro fora martomita, depois entrou para a Missão
dos Irmãos onde proclamou que deveriam ser abolidas as diferenças
de casta. Quando ele apresentou a proposta de casar uma jovem
siro-cristã com um rapaz cristão Pulaya e os cristãos locais amea-
çaram com severas sanções, o matrimônio entre castas foi abando-
nado. Conseqüentemente Johannan formou a PRDS com uma maio-
ria de intocáveis e alguns poucos siro-cristãos. Foi proclamado o
Salvador dos intocáveis. Aboliu a observância de distinções de casta

9. p. N. F. Yo u n g e A. F e r r e r s, India in Conflict, 1920, p. 134.


10. Cf. Editorial, em Religion and Society, setembro de 1958.
11. A. P. B a r n a b a seS. C. M e h t a, Caste ln changing Indla,
Nova Déli 1965, p. 263S.

104 [1276]
dentro da PRDS e defendeu os matrimônios entre castas. 12 Fenô-
menos semelhantes ocorreram no Rerala e em outros lugares da
India, e este fato revela nitidamente o ressentimento dos intocáveis
cristãos contra as distinções de casta dentro da Igreja.
Relata a Consulta de Guntur: «O sentimento de casta dentro
da comunidade cristã foi, até certo ponto, superado pela pequena
minoria de cristãos urbanos; mas, nas comunidades cristãs rurais,
são fortes os sentimentos de casta entre os Mala e os Madiga e entre
estes dois grupos de cristãos Harijan e cristãos com uma experiên-
cia de casta superior». 13 Apontaram-se os seguintes fatores que
parecem alimentar o espírito de «casta» dentro da comunidade
cristã:

1) A existência das castas desde tempos imemoriais como


instituição hierárquica, e sua influência hostil sobre movimentos
reformistas, tanto cristãos como não-cristãos.

2) O fato de cristãos pertencentes a diversos grupos de casta


serem cortejados por castas rivais e às vezes por partidos políticos
rivais.

3) O fenômeno infeliz de alguns cristãos cultos que usam a


casta para fins eleitorais, em vez de condená-la.

4) Diferenças denominacionais que reforçaram as distinções de


casta em lugares onde duas ou mais denominações estão presentes
no mesmo povoado.

5. CONCLUSÃO

Em lugarejos onde todos os cristãos pertencem a uma casta


determinada, não há problema de castas na comunidade cristã. Mas
onde existem num mesmo povoado grupos formados por pessoas
de castas diversas, os preconceitos de «casta» se manifestam em
formas subtis. Teórica e oficialmente todas as Igrejas hoje repudiam
como não-cristã a prática de distinções de «casta». Mas na vida real
que depende tanto, ao menos do ponto de vista social, de fatores

12. Cf. Michael M a h e r, The untouchables in contemporary Jndia,


Tucson 1972, p. 136s.
13. Cf. Religion and Society, setembro de 1978, p. 81.

105 [1277]
que escapam ao controle das autoridades eclesiásticas - a saber,
diferenças de cultura, tradição, background econômico e social -
a «casta» parece tolerada como mal menor, embora a Igreja da
India envide todos os esforços para erradicar o mal do sistema
de castas.
Tradução de
Gentil Avelino Titton

106 [1278]
Gianfausto Rosoli/Lydio Tomasi

ATITUDE DAS RICAS SOCIEDADES


CRISTÃS DO OCIDENTE
PARA COM OS IMIGRANTES

1. OBSERVAÇÕES INTRODUTÕRIAS

A migração humana e os movimentos internacionais de povos


têm sido fenômeno recorrente desde a antiguidade. Originalmente
os itinerantes eram aceitos e acolhidos com prazer como «peregri-
nos» ou «hóspedes» nas comunidades que os acolhiam. Mas a migra-
ção contemporânea, devido à sua amplidão e motivações sócio-eco-
nômicas específicas, acarretou consideráveis problemas internos nas
comunidades acolhedoras. Em conseqüência desta mudança no modo
de encarar os migrantes, a Igreja católica teve de enfrentar uma
responsabilidade histórica sem paralelos pelo desenvolvimento cris-
tão de seus membros dentro de um ministério culturalmente
pluralista.
Desde 1800 as etapas da revolução industrial produziram várias
ondas ou afluxos migratórios nos países da Europa ocidental à
medida que a agricultura liberava uma mão-de-obra excedente.
Concomitantemente, porém, começaram a florescer por toda a Eu-
ropa várias formas de nacionalismo, acentuando os conflitos nas
relações interétnicas. A migração da mão-de-obra neste período,
condicionada pelo nível nacional de desenvolvimento econômico,
levou a deslocar trabalhadores pobres, especialmente agricultores,
para economias mais avançadas ou em desenvolvimento. Assim a
mobilidade humana, quando associada a movimentos migratórios em
massa, tornou-se mobilidade forçada, que raramente foi considerada,
ao menos durante a fase primitiva da migração, em conexão com
a mobilidade social das sociedades anfitriãs.
Embora tenha a migração em nossos dias assumido formas
várias (interna e internacional, periódica e permanente, voluntária
e forçada, não-especializada e profissional etc.), este artigo ocupa-se

107 [1279]
da migração internacional como a mais importante para os países
do Ocidente (isto é, América do Norte e do Sul, Europa e Austrália).
Ao longo do século passado, seguiu a Igreja um caminho inte-
ressante para compreender e enfrentar as classes mais afetadas pelo
fenômeno migratório. De fato, o crescimento do cristianismo em
muitas regiões foi determinado pelo afluxo de imigrantes europeus
que se estabeleceram em países novos destinados a desnvolver-se
rapidamente.

2. APANHADO mSTÕRICO

A importância da migração no processo de desenvolvimento


industrial, particularmente nas Américas, é patente. Só na América
mais de 55 milhões de imigrantes de diferentes nacionalidades che-
garam da Europa entre 1820 e 1930. Inversamente, em países de
emigração, o escoamento de mão-de-obra foi igualmente rápido. Em
apenas um século a Itália sozinha enviou 26 milhões de emigrantes
por todo o mundo.
As diferentes bases sócio-econômicas dos imigrantes e as carnc-
terísticas das sociedades anfitriãs também condicionaram a res-
posta da Igreja a este fenômeno.
Em ambientes socialmente menos hostis, como na América
Latina, as dificuldades principais enfrentadas pelos imigrantes fo-
ram o isolamento e o abandono. A Igreja acolhedora, afetada por
uma escassez crônica de clero, preocupou-se pouco pelas necessida-
des espirituais dos imigrantes e raramente estava em condições de
satisfazê-las. Conseqüentemente, uma certa continuidade de assis-
tência religiosa garantiram-na os poucos sacerdotes que acompa-
nhavam os imigrantes. Sempre que os imigrantes europeus estavam
acompanhados por seus sacerdotes, realizou-se, sem tensões inte-
rétnicas, um transplante verdadeiramente bem sucedido da religio-
sidade popular européia: alemães, italianos e poloneses não apenas
erigiram um sem-número de igrejas e centros comunitários, mas,
num curto período de tempo, lançaram os fundamentos das estru-
turas religiosas da Igreja latino-americana. As sociedades recepto-
ras na América do Sul, governadas por elites liberais e mercantilis-
tas, utilizaram os imigrantes unicamente para interesses econômicos.
A ausência de uma mentalidade racista no contexto de uma época
de liberdade e eficiência em matéria de colonização facilitou ainda
mais uma rápida integração nas sociedades anfitriãs.

108 [1280J
Nos Estados Unidos, que bem cedo se tornaram o destino mais
freqüente dos emigrantes, a assistência religiosa aos migrantes de-
senvolveu-se num contexto de relações difíceis e tensões étnicas.
Com a oposição entre protestantes e católicos e os conflitos nacio-
nalistas entre grupos imigrantes europeus (irlandeses, alemães,
poloneses e italianos, entre outros), tornou-se necessário ao catoli-
cismo adaptar-se a uma sociedade convencida de que catolicismo
era incompatível com americanismo. Em tal contexto desenvolveu-
se uma senso de competição entre católicos e protestantes que serviu
para atrair os imigrantes à sua respectiva fé. As Igrejas protes-
tantes, que eram mais poderosas e ligadas às classes dominantes,
acentuaram uma política de imediata e completa assimilação dos
imigrantes aos valores e costumes da sociedade anfitriã. A intran-
sigência do grupo dominante WASP (= White Anglo-Saxon Protes-
tant) consentia aos imigrantes (particularmente aos imigrantes
católicos latinos e eslavos, que só bem lentamente conseguiram as-
cender a um status social mais elevado) um papel sócio-político
apenas marginal. Conseqüentemente, a americanização da Igreja
católica legitimou seu papel no país receptor. Neste contexto, a
Igreja católica criou numerosas paróquias nacionais para assistir
vários grupos nacionais e estabeleceu um sistema de escolas cató-
licas. Em resumo, desenvolveu-se uma ampla estrutura que perma-
nece hoje como o sinal mais palpável do crescimento da Igreja
católica nos Estados Unidos. Conseqüência natural desta margina-
lização foi a concentração de imigrantes em áreas específicas (por
exemplo, pequenas Itálias e Polônias). O baixo nível de instrução
desses imigrantes exigiu assistência especial da parte do clero da
respectiva origem.
Pelo final do século XIX os países do Norte da Europa, no
esforço por uma industrialização em grande escala, começaram a
atrair abundante mão-de-obra estrangeira. A proteção social desses
imigrantes em geral sazonais, de origem sobretudo sul-européia,
e sua assistência religiosa tornaram-se mais difíceis pelas fortes
atitudes nacionalistas predominantes nos países receptores. Apesar
destas dificuldades e suspeitas, iniciou-se um processo de assistência
organizada aos imigrantes no âmbito europeu através da cooperação
internacional de organizações privadas (Werthmann-Bonomelli). O
empenho das Igrejas locais em prol destes grupos imigrantes variou
segundo os países. Contudo, independentemente da relativa exten-
são da assistência proporcionada, encontravam-se as Igrejas locais

109 [1281]
invariavelmente limitadas com respeito às necessidades dos migran-
tes (como na Suíça e na França). Na Europa, em todo caso, a mais
viva preocupação mostraram-na as Igrejas de origem que enviaram
numerosos sacerdotes para assistir os imigrantes. A par desta assis-
tência religiosa envidaram também esforços em prol da assistência
social e política dos migrantes: Por exemplo, fundou-se em 1871
a Sociedade de São Rafael na Alemanha, seguida por associações
análogas na Itália e Bélgica; G. B. Scalabrini, bispo de Piacenza,
fundou em 1887 uma congregação religiosa para assistir os imigran-
tes italianos no Além-mar; e o bispo Bonomelli desenvolveu em
1900 uma organização laico-religiosa (Opera Bonomelli) para assis-
tir os trabalhadores italianos na Europa. Mais tarde fundaram-se
outras congregações para a assistência dos emigrantes poloneses
e malteses.
Desde os inícios da migração em massa preocupou-se a Santa
Sé com este fenômeno e assegurou que as Igrejas nos países que
enviavam imigrantes e nos que os acolhiam se interessassem pelas
necessidades dos mesmos. As diretivas da Santa Sé neste campo
foram numerosas e repetidamente insistiam em que as Igrejas dos
países receptores oferecessem serviços adequados aos migrantes,
abrindo-lhes as portas de suas igrejas, administrando os sacramen-
tos na lingua nativa do migrante e fomentando instituições espe-
cializadas como paróquias nacionais a serem aproveitadas pelos
fiéis de uma mesma nacionalidade e lingua, para além de quaisquer
limites paroquiais. Pode-se afirmar que a dedicação da Santa Sé
à preservação da fé de seus migrantes católicos foi igual à sua dedi-
cação à propagação da fé.
Apesar da urbanização, que caracterizou a experiência de muitos
imigrantes, serviram as Igrejas e suas instituições como ponto focal
para cada grupo imigrante, permitindo a sobrevivência de muitas
instituições étnicas e favorecendo um verdadeiro pluralismo lin-
güístico e cultural dentro da Igreja receptora. Isso resultou numa
Igreja mais rica e conseqüentemente mais diversificada. As ordens
e congregações religiosas, tanto masculinas como femininas, cons-
tituíram as forças condutoras na assistência aos imigrantes e esti-
mularam o interesse do clero secular.
O período entre as duas guerras mundiais caracterizou-se por
uma política de restrição à imigração por parte de vários países.
Mas após a Segunda Guerra Mundial a emigração recomeçou com

110 [1282J
maior intensidade, afetando não apenas os tradicionais países de
emigração mas também os continentes da África, Ásia e América
Latina.

3. TEND1!:NCIAS E CARACTERíSTICAS DA MIGRAÇÃO HOJE

Após a Segunda Guerra Mundial, massas de trabalhadores euro-


peus abandonaram suas regiões de origem dirigindo-se para as
Américas e, posteriormente, para os países norte-europeus. Junto
com um processo de integração econômica e política, logo começou
a surgir uma dicotomia entre regiões desenvolvidas e subdesenvol-
vidas da Europa.
Ao tentarmos dar um panorama mundial das tendências migra-
tórias, é fácil observar que os Estados Unidos continuaram sua
política restritiva e seletiva, mesmo após a abolição do sistema de
quotas em 1965. Nos últimos anos, o fenômeno mais saliente são os
migrantes ilegais e sem documentos (estimados em 5 a 10 milhões
de pessoas), especialmente do México. Uma vez que os Estados
Unidos, ao longo da história, têm estado propensos a déficits de
mão-de-obra, as massas de trabalhadores migrantes ajudam a man-
ter a taxa de lucro industrial, aumentando a produtividade dos ope-
rários e diminuindo o custo do trabalho. Os imigrantes ilegais
apresentam a dupla vantagem de fornecer abundância de mão-de-
obra barata, por não gozarem de proteção legal.
Na primeira metade da década de 1970, só a Argentina acolheu
mais de 1. 600.000 imigrantes (6,5% da população) da Bolívia,
Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Na Venezuela a população mi-
grante, geralmente da Colômbia, foi estimada em aproximadamente
700.000. Os movimentos migratórios em toda a América Latina
ocorrem sobretudo nas éreas rurais e geralmente não se lhes presta
atenção.
Desde o começo da década de 1960, a imigração na Europa Oci-
dental aumentou num ritmo sem precedentes. A tendência ao aumen-
to começou nos anos 50 na França e na Suíça, e depois alastrou-se
por toda a Europa. Calcula-se que o número de migrantes legal-
mente empregados na Europa Ocidental em 1974, antes do fecha-
mento das fronteiras, era de aproximadamente 7,5 milhões, com-
preendendo uma população estrangeira de quase 12 milhões. Nesse
tempo o total, incluindo os imigrantes clandestinos, pode muito
bem ter chegado a 13 milhões - número quase equivalente à popu-

111 [1283]
lação da Holanda. Havia 3.700.000 trabalhadores migrantes e seus
familiares na França; 2.800.000 na República Federal da Alema-
nha; 2.000.000 no Reino Unido; 1.000.000 na Suíça; 520.000 na
Bélgica; 400.000 na Suécia; e 200.000 na Holanda. Os trabalhado-
res migrantes representavam 8,3% da força de trabalho na França;
8,7% na República Federal da Alemanha e não menos do que 20%
na Suíça.
Após 1974 introduziram-se medidas restritivas e a população
imigrante diminuiu à medida que muitos migrantes retornavam a
seus países. Os contingentes de mão-de-obra imigrante permanecem,
no entanto, elevados em cada um dos países receptores em conse-
qüência das taxas de fertilidade. Atualmente os trabalhadores mi-
grantes na Europa Ocidental concentram-se nos setores de manu-
fatura e construção. Comparando com a força de trabalho do país
anfitrião, ocupam os imigrantes as posições mais baixas e menos
qualificadas. Os migrantes não-especializados e semi-especializados
representam mais de 60% do total de trabalhadores imigrantes. As
operárias migrantes tendem a concentrar-se em serviços e indús-
trias manufatureiras (particularmente têxteis e de roupas). A maio-
ria dos trabalhadores migrantes na Europa Ocidental provêm das
regiões pobres dos países mediterrâneos e estão desacompanhados
da família. Mais tarde, dependendo de sua adaptação e das normas
de imigração, reconstroem suas famílias no país anfitrião. A popu-
lação migrante abaixo de 16 anos de idade foi estimada, alguns
anos atrás, em 860.000 na França; 600.000 no Reino Unido;
500.000 na República Federal da Alemanha; e 400.000 na Suíça.
Os imigrantes vivem nos países anfitriães numa situação de
marginalização estrutural, do ponto de vista político (não podem
votar, exceto na Suécia em eleições locais e em outras pouquíssimas
municipalidades), social (não participam na vida social), cultural
(não lêem jornais locais e pouquíssimos falam a língua), e geográ-
fico (tendem a viver em guetos ou em comunidades fechadas). Mui-
tas vezes falta também aos imigrantes uma adequada assistência
religiosa.
Um dos fenómenos mais dramáticos e impressionantes na Euro-
pa é o dos refugiados políticos, particularmente dos milhões que
deixaram a Europa Oriental e se concentraram nos países norte-
europeus. Contudo a migração forçada, mesmo nas sociedades con-
temporâneas, resulta não só de motivações políticas mas também
de razões económicas. De fato, a atual emigração das regiões medi-
terrâneas para os países industrializados é precisamente uma fuga

112 [1284J
de condições de subdesenvolvimento e uma busca de condições
melhores.
O paralelismo entre o movimento migratório e o desenvolvi-
mento econômico é, portanto, evidente e tem-se repetido com maior
freqüência e tornado mais premente, como fato internacional deci-
sivo no movimento das populações. O aumento em escala mundial
da migração ilegal e o conseqüente fenômeno do tráfico de mão-
de-obra (mercado negro) revelou a falta de uma política oficial
neste setor. Só nos últimos tempos atraíram estas causas do fenô-
meno migratório a atenção dos analistas, a partir de cujos trabalhos
os governos apenas começaram a envidar esforços conjuntos no
sentido de estudar estes problemas comuns e planejar as medidas
mais apropriadas para enfrentá-los.
Após a estabilização dos fluxos migratórios na Europa surgi-
ram também os problemas da segunda geração dos imigrantes, como
ocorrera nas Américas. As necessidades culturais dos filhos dos
imigrantes são diferentes das do grupo migrante. Além de aprender
a língua do país receptor na escola local, existe a necessidade uni-
versalmente reconhecida de conservar a língua e cultura de origem.

4. AS SOCIEDADES CRISTAS OCIDENTAIS


E OS IMIGRANTES DE HOJE

Ao analisar o modo como as comunidades cristãs trataram


os imigrantes, deve-se considerar a política das Conferências Epis-
copais nacionais e a reação dos setores públicos e privados respon-
sáveis pelos migrantes.
Nas últimas décadas, a orientação das Igrejas receptoras mudou
ao ponto de muitas terem chegado a considerar os imigrantes como
parte integrante da comunidade local. Esta orientação foi favorecida
nos países onde se iniciou um processo de integração econômica e
sócio-política (Comunidade Econômica Européia, Parlamento Eu-
ropeu, Conselho da Europa etc.).
No período do pás-Guerra a Santa Sé expressou seu compro-
misso no campo da migração pela Constituição apostólica Exsul
Familia, de 1952. O documento pontifício coligiu as normas para a
assistência religiosa aos migrantes, recomendou a solidariedade cristã
entre as Igrejas e acentuou o direito de emigrar.
Floresceram nessa época várias iniciativas católicas, como a
Comissão Católica Internacional de Migração, de Genebra, tanto em
nível nacional como internacional.

113 [1285]
o papa João XXIII, em Pacem in Terris e Mater et Magistra,
vinculou o fenômeno da emigração ao desenvolvimento social. Exi-
giu igualdade de direitos entre trabalhadores imigrantes e trabalha-
dores nativos, e movimento de capital em vez de pessoas. O Concílio
Vaticano II mudou mais uma vez a atitude da Igreja para com a
migração. A questão da assistência espiritual, na forma de admi-
nistração dos sacramentos na língua do imigrante, e o dever dos
países ricos de aceitarem os desalojados e pobres das áreas super-
povoadas deslocou a atenção para o problema da justiça internacio-
nal. O direito de conservar a própria língua e cultura e o conse-
qüente pluralismo na Igreja da comunidade local foram reconfir-
mados em muitos documentos do Concílio Vaticano II.
Em 1969 promulgou a Santa Sé um documento mais abrangen-
te, Pastoralis Migratorum Cura, que apontou a mudança nos padrões
de migração e as necessidades pastorais dos migrantes, e atualizou
a posição da Igreja de acordo com as mudanças advogadas pelo
Concílio Vaticano II. Estas instruções reafirmaram alguns princí-
pios gerais sobre o direito de emigrar, a função social de todos os
bens e o valor do pluralismo. O documento apresenta uma definição
mais ampla de «migrante» e rejeita uma integração passiva na
sociedade receptora. De acordo com o princípio da colegialidade da
Igreja, colocou-se a responsabilidade primeira sobre os pastores das
Igrejas locais aos quais incumbe o cuidado pelos imigrantes.
No esforço por fomentar uma coordenação central das várias
iniciativas, estabeleceu-se em 1970 a Comissão Pontifícia para a
Pastoral das Migrações e do Turismo. No nível nacional criaram-se
e funcionam em quase todos os países comissões episcopais para
migração e bureaux executivos, tanto nacionais como diocesanos.
Começando pelo reconhecimento mais geral do direito de emigrar
e especificando os direitos particulares das pessoas migrantes, pediu
Paulo VI um estatuto para os migrantes, na Octogesima Adveniens,
em 1971. Notava o papa: «É urgente que se procure superar, em
relação a eles, uma atitude estritamente nacionalista, a fim de lhes
criar um estatuto que reconheça um direito à emigração, favoreça a
sua integração e lhes facilite a própria promoção profissional e
lhes permita o acesso a uma habitação decente, em que possam vir
juntar-se-Ihes, se for o caso, as suas famílias» (n. 17). Em 1973, na
conclusão do Congresso Europeu sobre Pastoral dos Migrantes,
lembrou Paulo VI que as Igrejas locais são chamadas a dar sua
contribuição específica para a solução dos problemas dos imigrantes.

114 [1286]
Nesses anos foram freqüentes as iniciativas, tanto na Igreja
de origem como nas Igrejas receptoras. Houve cartas pastorais,
sínodos, conferências e iniciativas públicas advogando igualdade
entre populações nativas e populações imigrantes e fomentando
uma atitude de aceitação em relação aos migrantes. A Igreja desem-
penha, neste ponto, o papel de consciência crítica em face da socie-
dade civil mais ampla, como no caso da França em 1975, quando
a Igreja reagiu contra as freqüentes manifestações de racismo e as
arbitrárias expulsões pelo governo. Ainda na França começou a
Igreja a tratar de um urgente problema ecumênico constituído pela
grande Comunidade do Maghreb (mais de 1,5 milhões), de religião
islâmica.
Em 1973 publicou o Sínodo Alemão um documento intitulado:
«Trabalhadores estrangeiros: Um problema para a Igreja e a So-
ciedade». Acentua-se ali o conceito de diaconia (serviço) da parte
da Igreja para com o homem em sua dimensão social. Desde então
quase todas as dioceses da Alemanha publicaram cartas pastorais
e tomaram providências específicas para os imigrantes.
O Sínodo Suíço publicou em 1972 uma série de documentos que
acentuam que «a finalidade da Igreja suíça é o testemunho comum
na fé e não a helvetização dos imigrantes». Em 1978 declarou a
Comissão Episcopal Suíça para a Emigração que «a Igreja não
pode favorecer o surgimento de um cristianismo marginal, mas deve
integrar esses grupos marginais na comunidade loca!». Após quatro
referendums populares antiestrangeiros na Suíça, uma iniciativa
popular promovida recentemente por grupos católicos está pedindo
igualdade de tratamento entre nativos e imigrantes.
Hoje em quase todos os países no Norte da Europa podem os
imigrantes votar e ser eleitos em eleições do Conselho Paroquial,
quer previstas por normas nacionais ou por normas e costumes dio-
cesanos ou paroquiais. Existem na Igreja numerosos organismos de
consulta sobre problemas de migração e às vezes com a participa-
ção de migrantes. Visam não só discutir os problemas dos migran-
tes, mas também assisti-los e auxiliá-los em suas preocupações
diárias.
N os Estados Unidos está a Igreja tomando cada vez mais
consciência do problema dos ilegais, que na maior parte são cató-
licos, e está pedindo ação imediata, tanto no plano jurídico como
no legislativo, para remediar a situação de marginalidade e dis-
criminação: «Estes estrangeiros são juridicamente não-pessoas, vul-
neráveis à exploração e preconceito de nossa parte. Assistência social

115 [1287]
para arranjar emprego, cuidados médicos e proteção jurídica são
um passo importante mas apenas parcial para construir a comuni-
dade da Igreja local. Não se realizará justiça dentro do santuário
se os imigrantes Eão acolhidos apenas no nível dos casos individuais.
Uma resposta adequada por parte da Igreja exige igualdade institu-
cional e participação dos imigrantes no plano das estruturas, como
mostra a Pastoralis Migratorum Cura» (Resolução sobre o Cuidado
Pastoral da Igreja pelos Itinerantes, da Conferência Nacional dos
Bispos Católicos dos Estados Unidos, 1976).
Em 1978 a Comissão Pontifícia para a Pastoral das Migrações
e do Turismo publicou uma série de documentos sobre a assistência
pastoral aos vários tipos de mobilidade humana. Finalmente, no
começo de 1979, realizou-se no Vaticano o primeiro Congresso Pas-
toral Mundial sobre Emigração, com a participação do recém-eleito
papa João Paulo II. Este Congresso, em que participaram numero-
sos representantes de Conferências Episcopais Nacionais, seguiu a
linha da primeira encíclica pontifícia Redemptor hominis. Conse-
qüentemente o Congresso reiterou os direitos das pessoas humanas
e suas famílias a emigrar e a retornar «sem serem sujeitos a pres-
são ou violência política, econômica, étnica ou religiosa».
Uma consciência mais aguda da dimensão internacional da
migração estimula as Igrejas que enviam e as que acolhem os mi-
grantes a desenvolverem um diálogo mais amplo e uma cooperação
mais ativa. Os novos fermentos de pluralismo na Igreja tornaram-se
evidentes não apenas em sentido acadêmico, mas também no plano
das expectativas concretas dos migrantes. Torna-se sempre mais
necessário em cada Igreja superar a divisão étnica e usar as dife-
renças etnoculturais como elementos válidos da dinâmica interna
na vida da Igreja. A assistência especializada aos migrantes não
deveria levar a uma espécie de balcanização, mas antes a uma apre-
ciação dos instrumentos mais apropriados para construir a Igreja
local. A acolhida dos imigrantes deve abranger os aspectos econô-
mico, cultural e espiritual, combatendo toda forma de discriminação
e xenofobia. O respeito pela pessoa humana e a variedade de cultu-
ras são o sinal de uma verdadeira democracia e de um real plura-
lismo na Igreja.
Tradução de
Gentil Avelino Titton

116 [1288J
BIBLIOGRAFIA

Para uma análise sócio-demográfica, histórica, legislativa e política sobre


a imigração internacional, cf. International Migration Review (Nova
Iorque, 1968s); Studi EmigrazionejEtudes ]Uigrations (Roma, 1964s);
International Migration (Genebra).
Para debates pastorais e contemporâneos, cf. Migration Today (Nova Iorque
1972s); Dossier Europar-Emigrazione (Roma 19700). Lydio F. Tom a si,
The ChalJenge of Immigration to the American Church, em Migration
Today 5 (1977) 9-12.
Para os documentos oficiais da Santa Sé sobre assistência aos migrantes,
cf. People on the Move - Migrazioni e Turismo (Cidade do Vaticano).
Para a posição das várias Conferências Episcopais Nacionais sobre
a migração, cf. suas respectivas publicações.
Para os aspectos históricos, cf. G. Te s s a r o I o (ed.), The Church's Magna
Carta for Migrants, Nova Iorque 1961. R. M. L i n k h, American Ca-
tholicism and European Immigrants (1900-1924), Center for Migration
Studies, Nova Iorque 1975. M. C a I i a r o-Mo F r a n c e s c o n i, J. B.
Scalabrini, Apostle to the Emigrants, Center for Migration Studies,
Nova Iorque 1977. S. M. Tom a si-E. C. S t i b i] i, Italian-Americans
and Religion: An Annotated Bibliography, Center for Migration Studies,
Nova Iorque 1978. G. F. R o s o] i, La Chiesa di fronte ai secolare
fenomeno delJ'emigrazione italiana, em Rassegna di Teologia (1979).
Para algumas reflexões teológicas e pastorais, cf. A. A n c e I, Theology
of tIle Local Church in Relation to Migration, Center for Migration
Studies, Nova Iorque 1974. M. D e C e r t e a u, L'étranger ou l'union
dans la différence, Desclée, Paris 1969. Timiadis E m i I i a nos, Les
migrants, un défi aux l1:glises, SOS, Paris 1971. J. M. D e L a c h a g a,
l1:glise particuliêre et minorités ethniques, Le Centurion, Paris 1978.

117 [1289J
Meinrad P. Hebga

IGREJAS DIGNAS E IGREJAS INDIGNAS

«Acaso não estais fazendo discriminação entre vós? ..


Privastes o pobre de sua dignidade» (Tg 2,4.6).

Não nos referimos à dignidade ou indignidade no sentido de


virtude ou vício. Trata-se de posição e de hierarquia. Talvez fosse
melhor colocar este título: «Igrejas de primeira e de segunda classe».
Gostaria de empregar o título de um artigo bem sugestivo de
David Cochran: «Missões ou Igrejas?» É esta realmente a questão
que continuamos a nos colocar diante da manutenção de uma certa
eclesiologia oficial católica da distinção «teológica» entre missões
e igrejas. Permitam-me citar, para começar, a observação pertinente
de Cochran: «Allen afirma que a razão do sucesso de São Paulo
como missionário foi estabelecer Igrejas e não Missões. Isto é, fun-
dou comunidades indígenas que, desde o começo, gozavam de toda
a autoridade espiritual necessária e que eram responsáveis por sua
própria subsistência, por suas decisões e por sua expansão». 1
Durante muito tempo a atitude com relação às quase-igrejas
chamadas missões foi comum aos católicos e aos protestantes. Mas
desde o encontro do CMl (Conselho Mundial de Igrejas) em Uppsala
em 1968, as igrejas reformadas acusaram uma tendência menos
discriminatória e isso apesar de o decreto conciliar Ad gentes haver
mantido a divisão clássica opondo a atividade missionária à ativÍ.
d,ade pastoral, respectivamente exercidas nas missões e nas igrejas.
Para ser justo, devemos reconhecer que o Vaticano II afirma energi-
camente a unicidade e a universalidade da missão cristã cuja origem
é trinitária e precisa que as diferenças assinaladas na atividade da
Igreja não são de maneira alguma substanciais mas circunstanciais
(seção 6). Uppsala afirmará no mesmo sentido que a missão se di-
rige aos seis continentes. 2 Mas enquanto os reformados empregam
cada vez mais correntemente o termo «as igrejas do Terceiro Mun-

1. D. R. C o c h r a n, Churches or Missions?, em Anglican Theological


Review (setembro de 1974), p. 23.
2. Uppsala Report, p. 30.

118 [1290J
do», os católicos permanecem avaros deste termo nobre amplamente
empregado por São Paulo e o Apocalipse, no plural, não acreditando
que deste modo se possa colocar em perigo a unidade do Corpo de
Cristo. Se o texto Ad gentes, como afirmam alguns, reflete as ten-
dências de várias escolas católicas de missionologia, o fato é que
todas demonstram desejo de distinguir as missões das igrejas.

1. UM FUNDAMENTO NA ESCRITURA?

Para pôr termo a todo mal-entendido e, se possível, a todo


processo intencional - como se o presente estudo acusasse as ecle-
siologias oficiais católicas e protestantes de racismo latente ou
de chauvinismo cultural - afirmamos claramente que a discrimina-
ção acima evocada não é racista nem chauvinista. Todas as aparên-
cias indicam que ela parte de uma preocupação real de caridade, de
uma solicitude sincera com relação às comunidades cristãs «jovens»
demais para se bastarem a si mesmas, retardando-se a sua maiori-
dade eclesial por motivo de temor de serem abandonadas brutal-
mente à sua sorte, por seus tutores ocidentais, privando-as, assim,
de recursos indispensáveis em pessoal e em finanças. Solicitude,
aliás, inteiramente digna e merecedora de nosso reconhecimento.
O problema está antes de tudo na racionalização, ou, se quisermos,
na justificação teórica. Se não podemos contestar um texto conciliar
autêntico, podemos, pelo menos, expressar nossa perplexidade diante
das formulações que à primeira vista não arrastam a convicção.
Lemos na sexta seção do capítulo primeiro: «Desta forma a ativi-
dade missionária entre as nações se distingue da ação pastoral
exercida entre os fiéis e das iniciativas empreendidas para restau-
rar a unidade dos cristãos». Ê certo que as comunidades cristãs se
encontram, do ponto de vista do crescimento e da maturidade, em
níveis diferentes, mas o que visavam então realmente os peritos que
confeccionaram o texto do decreto quando opunham a uma verda-
deira atividade pastoral - desenvolvida entre os fiéis católicos ou
protestantes dos velhos países cristãos - uma simples atividade
missionária exercida entre os neófitos e os pagãos da África, da
Ásia ou da Oceania? Quer dizer que a catequese feita a nossos cate-
cúmenos, as homilias, sermões, exortações de nossos padres e pas-
tores, a administração dos sacramentos, a visita aos doentes, o
cuidado dos pobres equivalem durante décadas (ou até séculos, como
se pode verificar no caso das antigas colônias portuguesas da África)
à primeira proclamação do Evangelho, ao querigma como se diz,

119 [1291]
e não são ainda da competência do ministério pastoral propriamente
dito? Ousamos então levantar uma questão bem simples: a atividade
apostólica de Paulo, de Barnabé ou de Silas teria sido pastoral ou
simplesmente missionária? As comunidades fundadas por eles per-
tencerlam à classe nobre das igrejas de ministério pastoral autêntico
ou à classe inferior das subigrejas em vias de desenvolvimento?
Paulo e Silas fundam uma igreja (e não uma missão) em Fili-
pos de Macedônia, dando-lhe instruções durante alguns dias e no
máximo durante algumas semanas (At 16,12s). Da mesma forma em
Tessalônica onde em três semanas estabelecem uma comunidade
viável à qual serão endereçadas epístolas apostólicas como às co-
irmãs, as igrejas de Corinto, Éfeso, Roma, Creta não tratadas pelos
enviados de Cristo como subigrejas com relação à Igreja-Mãe de
Jerusalém: mesmo esta depende para sua subsistência da generosi-
dade dessas comunidades neófitas. Os cristãos da Macedônia e da
Grécia enviam recursos a Jerusalém (Rm 15,25), embora não nadem
em ouro, e o apóstolo reconhece que seu esforço financeiro está
acima de suas posses (2Cor 8,ls). As encomendas expedidas pelos
filipenses sempre aos mesmos destinatários são «uma oferenda de
agradável odor a Deus» (FI 4,10s). O pessoal apostólico parece ser
tão móvel quanto os fundos. Se Paulo foi estabelecido Apóstolo
dos gentios como Pedro o foi dos judeus (Gl 2,7s), é todavia Pedro
que é enviado por Deus para converter a família do pagão Corné-
lia (At 10,ls); e Paulo não deixa escapar nenhuma ocasião de evan-
gelizar seus congêneres e antigos correligionários os israelitas para
a salvação dos quais consentiria numa impossível separação de
Cristo (Rm 9,3). Paulo se faz tudo para todos (lCor 9,22), grego
com os gregos, judeu com os judeus. Pedro, João, Barnabé, Silas
e os outros são igualmente zelosos, embora não tão abertos. Também
eles, e antes de tudo Pedro, assumem o cuidado de todas as igrejas
(2Cor 11,28). Um homem como Epafras ora com fervor pelos fiéis
de Colossos e trabalha duramente pelos de Laodicéia e de Hierá-
polis (CI 4,12). É o bispo de Éfeso, Timóteo, que leva aos hebreus
a carta a eles endereçada (Hb 13,23). Tem-se a impressão simpática
de uma circulação sem fronteiras da palavra de Deus, dos fundos
e do pessoal apostólico. Nesta atmosfera de comunicação e de par-
tilha fraterna, a universalidade de nossos dias tão freqüentemente
brandida contra as comunidades neófitas da África e da Ásia, repito,
a universalidade é visível e merecedora de crédito. Já não há mais
lugar, absolutamente, para uma teologia discriminatória que oponha
igrejas e simples missões católicas ou protestantes, igrejas de pri-

120 [1292]
meira e de segunda classes. E esta teologia cujo fundamento em
vão se procuraria na palavra de Deus parece nascer de circunstân-
cias históricas particulares, a saber, da organização político-religiosa
do apostolado, por ocasião da grande expansão da Europa fora de
suas fronteiras na Renascença. Voltaremos a este ponto. Desta fonte
confusa e heterogênea foram extraídos os critérios de pertença a
uma comunidade cristã pastoral ou a uma comunidade missionária.

2. CRIT:f1:RIOS ESTRANHOS

Os critérios que servem para definir uma Igreja digna deste


nome parecem ser essencialmente numéricos, genealógicos e finan-
ceiros e não especialmente bíblicos!

1) Esta'tísticas

Quando os missiólogos protestantes ou católicos ocidentais pre-


tendem explicar a diferença global entre suas igrejas e as do Ter-
ceiro Mundo, alegam cifras: entre eles a maioria das pessoas são
cristãos ao menos pelo batiamo, enquanto que nos países de missão
a maioria da população ainda é pagã. O clero da Europa e da Amé-
rica do Norte é capaz de garantir em seus respectivos países todas
as tarefas do ministério sem recorrer à ajuda estrangeira, ao passo
que os asiáticos, os africanos, os oceanianos e alguns povos da
América Latina necessitam ainda por longo tempo da contribuição
de missionários estrangeiros. Foi justamente assim que raciocinou
o saudoso Johannes Schütte, antigo superior-geral da Congregação
do Verbo Divino e missiólogo de reputação. Escrevia ele:

«Podemos dizer que a situação em nossas pátrias é uma


situação missionária, é claro, mas esses países possuem
uma igreja estabelecida, dotada de todos os meios e re-
cursos necessários. Não seria mais conveniente comparar
a relação entre a missão que envia e a missão que recebe
à relação de uma mãe com seu filho? A França é um país
de missão, mas possui mais padres que a Ãfrica e a Ãsia
juntas ... » •

3. Why we engage in Mission work, em Foundations of Mission


Theology SEDOS, p. 49.

121 [1293]
o Pe. Eugênio Hillman, C. S. Sp., endossa a mesma linguagem:
Só a França conta com mais padres e religiosas que a África e a
Ásia juntas. Mesmo na América Latina a proporção entre o clero
e os fiés é de «um padre para 5. 000 almas, um para 17.000 na
África e um para 80.000 na Ásia». •
Malcom J. McVeigh observa com muita razão que a Igreja já
está estabelecida na maioria dos países da África, da Ásia e da
América Latina. Além disso, considera ele, guardadas as propor-
ções, há mais cristãos que confessam e praticam na Uganda e no
Congo que na França. Por minha vez acrescentaria que, colocadas
à parte a Polônia e a Iugoslávia, quase não se encontram na Europa
países cristãos cujos seminários tenham uma vitalidade compará-
vel à dos países de missão como a Tanzânia, a Ruanda, a Uganda,
o Camerum e a Nigéria. Se incluirmos nos cálculos também o êxodo
maciço de padres, religiosos e religiosas da Europa e da América
do Norte, veremos quão frágeis são as bases da teologia estatística.

2) Antiguidade

As igrejas ocidentais dificilmente declinam de seu direito de


prioridade. Se vossa comunidade cristã é «jovem» (como a da An-
gola ou do Congo-Zaire, antigas de muitos séculos) deveis ser hu-
mildes e pacientes lembrando-vos de que o crescimento evangélico
exige tempo. Deveis voltar-vos à experiência e à sabedoria seculares
das veneráveis igrejas da Europa e da América do Norte. Se, pelo
contrário, vossa igreja está situada no Ocidente e pode ufanar-se
de uma genealogia espiritual que remonta a este apóstolo ou àquele
padre apostólico, fazeis parte da categoria invejável de cristãos com
ministério pastoral. Nós padres, religiosos e religiosas africanos
ou asiáticos podemos sempre esperar da parte da Europa ou da
América do Norte esta questão ritual: «Sois cristão ou cristã de
nascença ou cristão recente?» Que significa «cristão de nascença»?
Jesus Cristo veio para substituir a religião genealógica e esper-
mática de Israel por uma religião universal em que todos nascem
de Deus e não mais do homem (Jo 1,13). O direito de prioridade foi
abolido. O dom de Deus não tem idade. A fé não é necessariamente
beneficiada pelo envelhecimento, podendo mesmo tornar-se fútil e
insípida. Deus pode muito bem preferir a devoção desajeitada dos
neófitos da África à religião sofisticada dos que exibem arquivos
empoeirados de cristianismo e de santidade.
4. Eugene H i 11 m a n, The Church as MissiOD, Nova Iorque.

122 [1294]
3) Finanças

Exige um certo realismo que só seja constituída uma diocese


ou uma igreja local se houver prova da chamada viabilidade finan-
ceira. Notemos, de passagem, que o Islã simplesmente não se preo-
cupa com este critério estranho, o que não dificulta sua vitali-
dade nem seu expansionismo militante, bem ao contrário. Por que
a existência de uma comunidade cristã deve depender de sua conta
no Banco ou de suas propriedades? Esta preocupação constitui um
traço da civilização do dinheiro. Embora não seja diretamente con-
trária ao Evangelho, pelo menos não decorre dele. Se não é fácil
perceber como poderíamos escapar da escravidão do dinheiro, re-
correr simplesmente ao realismo também não ressoa particularmente
teológico.

3. RETORNAR AS FONTES DE UMA DOUTRINA

Os critérios habitualmente aceitos pelos eclesiólogos para fazer


distinção entre as Igrejas e as Missões parecem mais sociológicos
que teológicos. Aliás, se considerássemos sua origem histórica sería-
mos tentados a tachá-los de ideológicos e de políticos. Todavia não
iremos até lá. Mas devemos reconhecer a nocividade de uma crite-
riologia falseada a partir da base e que popularizou uma distinção
mítica e discriminatória entre as igrejas de Cristo, perpetuando
desta forma uma mentalidade paternalista, condescendente e domi-
nadora entre umas e uma atitude infantil de dependência consentida
por tempo ilimitado entre outras, atitude esta freqüentemente mar-
cada com objetivos universalistas mais edificantes que convincentes.
Uma terceira tendência foi qualificada de nacionalista ou de xenó-
foba. Qual das três poderia ser considerada cristã sem mais? Eis
o preço pago por um erro eclesiológico que remonta à época dos
conquistadores, dos padroados e dos teóricos eclesiásticos da gesta
colonial européia. De fato, eminentes professores de Salamanca
e de outras universidades espanholas - Domingos Soto, o terrível
Sepúlveda e principalmente o célebre Vitoria - prestaram ao im-
perialismo europeu o serviço de uma caução canônico-teológica cujos
efeitos nefastos ainda hoje se fazem sentir.' Entretanto, não faça-

5. Beltrán d e H e r e d i a, EI Maestro Domingo de Soto en la con-


troversia de Las Casas eon Sepúlveda, em Cieneia tomista, tomo XLV
(1932), p. 35-49 e 177-193; Juan de Sepúlveda, Democrates Secundus,
seu de Justis Belli Causis, 1550; F. d e V i t o r i a, De Potestate Civili; De
Indis recenter inventis, 1539; De Jure Belli, 1539.

123 [1295J
mos deles bodes expiatórios, porque toda a concepção da mlssao
cristã se achava falseada pelas conquistas coloniais. Enquanto a
expansão do cristianismo na Europa durante os nove primeiros
séculos se desenvolveu normalmente segundo a tradição apostólica,
no Novo Mundo, na Ásia e na África teve como caráter essencial
a extraversão, isto é, as comunidades cristãs fundadas no além-mar
constituíam sucursais das igrejas-mães ou das congregações reli-
giosas longínquas. Mesmo quando o impulso missionário partia de
Roma, as igrejas indígenas estabelecidas - por exemplo, por Potino,
Martinho e Remígio na Gália; por Agostinho na Inglaterra; por Wil-
fredo, Wilibrordo e Bonifácio na Germânia; por Cirilo e Metódio nos
países eslavos - eram igrejas autônomas e dignas. Essas igrejas
não eram absolutamente concebidas como simples dependências das
ordens religiosas ou das igrejas-mães da Ásia Menor, da Irlanda
ou da Grécia. Pelo contrário, em virtude do direito de conquista
cujos danos a bula Universali Ecc1esiae de 1598 - a bula do Padroa-
do - tentava limitar, as comunidades cristãs missionárias não eram
senão feudos dos reis da Espanha ou de PortugaL E estes nomeavam
ou depunham os bispos com toda soberania. No máximo elas eram do-
mínios privados das ordens religiosas e de outras sociedades de
missões, mesmo depois da criação da S. C. de Propaganda Fide,
em 1622, e da promulgação da carta Inscrutabili divinae.
Também entre os reformados as fundações longínquas consti-
tuíam apenas ramificações de além-mar das igrejas européias esta-
belecidas das quais recebiam fundos, pessoal e direção. Também
a eles se aplicam essas observações do cardeal Celso Costantini: «As
missões consideradas como colônias religiosas criaram nos missio-
nários uma mentalidade que eu chamaria de provincialismo territo-
rial».6 E o prelado conclui que se transportássemos este espírito
para a Itália, por exemplo, resultaria que Udine seria o feudo dos
franciscanos; Veneza o dos dominicanos; Pádua o dos carmelitas;
Verona o dos servitas; Milão o dos jesuítas; Turim o dos lazaristas;
e nenhuma dessas ordens aceitaria em seu próprio território «a infil-
tração de religiosos de uma outra ordem».' E como as potências
tutoras jamais foram pressionadas a levar a sério seus pupilos, mis-
siólogos e teólogos forjaram a teoria dilatória dos critérios da ma-
turidade eclesial cujos traços (estatísticos, genealógicos e finan-
ceiros) não se encontram na Escritura nem na tradição apostólica.

6. Cardeal C os t a n t i n i, Réforme des Missions au XXe Siêcle, Cas-


terman 1960, p. 45.
7. Op. cit., p. 50.

124 [1296J
Estava aberto então o caminho para a distinção entre igrejas de
ministério pastoral e igrejas de simples ministério missionário
nitidamente entre verdadeiras igrejas e quase-igrejas.

4. CONCLUSÃO: RUMO A UMA VERDADEIRA UNIVERSALIDADE

A eclesiologia católica ou protestante sobre a unicidade da mis-


são confiada pelo Pai a Cristo e por Cristo à Igreja é bíblica e ina-
tacável. Pelo contrário, a doutrina que tende a hierarquizar as igre-
jas parti~ulares de acordo com critérios históricos duvidosos é con-
testável e contestada. Pouco contribui para promover uma verdadei-
ra mentalidade universalista. Antes de sustentar por argumentos ilu-
sórios ou por via de autoridade distinções inconsistentes, não seria
melhor favorecer permutas multilaterais, podendo cada comunidade
tratar em pé de igualdade com as igrejas co-irmãs, seja qual for
sua respectiva antiguidade ou sua situação financeira? Não haveria
mais de um lado as que dão sem receber e, de outro, as mendicantes
profissionais que recebem sem dar. Mas todas comunicariam expe-
riência, fundos, pessoal de acordo com suas possibilidades. A digni-
dade e a indignidade não dependeriam mais dos recursos em pessoal
e em dinheiro, mas da fidelidade ou da infidelidade a Cristo e à
comunhão eclesial. Um tratamento justo, respeitoso e pleno de amor
seria aplicado a todos os membros do Corpo de Cristo e não reser-
vado apenas aos que estão vestidos de ricos trajes com anel engas-
tado de pedras preciosas (Tg 2,2), ou àqueles cujas igrejas se orgu-
lham de sés patriarcais ou de universidades prestigiosas, igrejas
cercadas de poder e de glória cujos membros estão geralmente ao
abrigo do arbítrio, da repressão e da vindita discreta ou desdenhosa.
Por que desesperar de ver um dia todas as igrejas acederem
à dignidade dos humildes, a única que conta aos olhos do Senhor?
Tradução de
Lúcia Mathilde Endlich Orth

125 [1297]
Enda McDonagh

A DIGNIDADE DE DEUS
E A DIGNIDADE
DOS SEM-DIGNIDADE

1. ONDE ESTA DEUS AGORA?

«Os SS enforcaram dois homens e um rapaz judeus diante dos


habitantes reunidos do campo. Os homens morreram rapidamente
mas a luta do rapaz contra a morte durou meia hora. Quando o
rapaz, depois de muito tempo, estava ainda em agonia pendurado
na corda, escutei o homem gritando novamente: 'Onde está Deus
agora?' E ouvi uma voz dentro de mim responder: 'Aqui está ele
- ele está pendurado aqui nesta forca ... '» (Elie Wiesel, Night,
Nova Iorque 1960, p. 70s).
Nós precisamos recordar-nos contínua e forçosamente que o
Gólgota está bem distante das belas liturgias e bela música e de
nossas solenes assembléias: a grande distância do (quase) deses-
pero da vítima abandonada e da descrença dos espectadores. Onde
está Deus agora? Vejamos se ele virá salvá-lo! São perguntas que
buscam resposta desde Gulag até Robben Island, perguntas que vol-
tam das mais convencionais e acessíveis favelas e bairros miserá-
veis através da Ásia, África e América Latina. E afloram à superfí-
cie persistente e agudamente em milhões de casos típicos no Oci-
dente «afluente» e «cristão»; casos como o de Chris em Dublin,
homossexual, rejeitado pela família, desempregado e hoje inapro-
veitável; ou como Liz, unida a um marido alcoólatra que a surra
enquanto os seis filhos estão gradualmente abandonando seu lar
impossivel e seus pais «inadequados»; ou como Seamus, que foi
pego pela polícia, espancado e condenado embora protestando ino-
cência e agora está mofando na prisão de Long Kesh, isto é, vivendo
em seus próprios excrementos; ou como Hazel, cujo marido, um
oficial de prisão, foi abatido a tiros diante dela e da filha, ou como...
Poder-se-ia enumerar uma lista interminável de desgraças e degra-
dações que nos cercam, que acontecem logo ali na esquina ou se

126 [1298]
estendem pelo mundo afora numa corrente de terror e opressão
que desfigura e obscurece a imagem de Deus no homem - oprimido
e opressor - que inevitavelmente e com razão, embora muitas vezes
de maneira desesperada e hostil, suscita a pergunta final: «Onde
está Deus agora?»
Para o cristão alerta e vivo a pergunta é, ao mesmo tempo.
inevitável e dolorosa. Muitos de nós estão mais alertas para a dor
que a pergunta nos causa a nós do que para o sofrimento do rapaz
pendurado na forca, e por isso precavemo-nos com soníferos e
tranqüilizantes para não sermos despertados pela vista ou pelos
gemidos da humanidade sofredora. Excluímos cuidadosamente a
imagem desfigurada sobre o patíbulo, concentrando nossa atenção
nos rostos belos e embelezados com que nos cercamos. Os gritos de
dor provindos da ubíqua câmara de tortura, política e doméstica,
não são capazes de penetrar os centros de mídia que chamamos
nossos lares. Apenas a grande exclusão do que degrada e perturba
permite-nos gozar a vida ou mesmo sobreviver. Há pessoas encar-
regadas de cuidar dessas coisas. A bacia de Pilatos está, invisível,
ao nosso lado. Ademais, pagamos nossos impostos e assim contri-
buímos para todo tipo de projetos de bem-estar, em casa e no exte-
rior. Damos até contribuições voluntárias a vários programas em
prol dos necessitados. Nunca somos conscientemente cruéis com os
marginalizados e esbulhados: simplesmente não os queremos em
torno de nós.
Grande parte da vida do cristão ocidental, dos leigos e do clero,
parece confinada aos limites acima descritos, os limites da «Grande
Exclusão». E a reflexão sobre vida cristã que em sua apresentação
sistemática denominamos Teologia Moral dá apenas alguns poucos
e hesitantes passos fora destes limites, de modo que podemos encon-
trar-nos novamente em face de uma traição, não exatamente dos
clérigos mas dos crentes. Ao menos os crentes que refletem, teólogos
profissionais e outros, devem considerar até que ponto a «Grande
Exclusão» pode ser a exclusão difinitiva, a exclusão de Deus, e até
que ponto a questão de onde está Deus agora pode ser levantada
mais adequadamente nos círculos dos privilegiados do que entre os
«Desgraçados da Terra». De qualquer forma existe a incômoda difi-
culdade de reconciliar o Deus dos povos privilegiados e opressores
com o Deus dos esbulhados e oprimidos. Pois a descrição e análise
que a teologia moral faz do modo de vida cristão deve retornar à
vida e exemplo de Jesus, sua busca e encontro de Deus definitiva-
mente sobre a Cruz, mas ao longo de um caminho que o levou a

127 [1299]
procurar e favorecer os parlas e «indignos» deste mundo, formar
dentre eles uma comunidade de discípulos e por fim experimentar
sua traição e abandono no momento crucial. Rejeitado pelos líderes,
pelas massas e até por seus amigos, pediu que lhe fosse poupada a
indignidade final da crucificação criminal e lançou altos brados
quando se abateu sobre ele a possibilidade de abandono final, suge-
rida zombeteiramente por seus inimigos. Ele poderia muito bem ter
ficado esperando Godot como Kramps, Didi e Gogo da peça de
Becket, mas para ele o único amanhã possível estava na transfor-
mação da Ressurreição, resposta do Pai a Jesus em reconhecimento
e aceitação definitiva. A vida, morte e ressurreição desta pessoa
formam o cerne da vida cristã. Devem também formar o cerne da
teologia cristã, as desajeitadas tentativas dos cristãos por reco-
nhecer, explorar e exprimir a natureza, as relações e atividades do
Deus de Jesus Cristo. Para fazer algum progresso significativo nesta
assustadora tarefa, devem o crente e o teólogo vencer por sua vez,
ao menos parcialmente, a «Grande Exclusão» que Jesus venceu em
suas relações pessoais e da maneira mais profunda em seu sofrimento
e morte. Deve-se encarar honesta e corajosamente a questão que inda-
ga acerca da ausência e presença de Deus. Fugir a estas tarefas
preliminares invalida todo o exercício, e isto com particular igno-
mínia para o teólogo moral.

2. A IMAGEM DE DEUS E A TEOLOGIA MORAL

A estrutura da vida cristã e, portanto, da teologia moral pode-


ria muito bem ser caracterizada como o chamado a descobrir, dis-
cernir e reconhecer a presença de Deus enquanto ele se comunicou
nas alianças da criação e da encarnação. Esse reconhecimento não
consiste simplesmente em tirar o chapéu ou inclinar a cabeça, acom-
panhado de «polidas palavras sem sentido». É um reconhecimento
que constitui um modo de vida e uma tarefa para a vida, pois a
«terrível beleza» do Deus vivo exige resposta humana total e está
em constante perigo de ser obnubilada pelas falsas belezas de deu-
ses criados à nossa própria imagem. Na medida em que essa teolo-
gia moral é uma teologia cristã, sua estrutura e método de análise
devem refletir sempre de novo sobre o desvelamento paradigmático
da presença de Deus ocorrido em Jesus Cristo. O interesse de Jesus
pelos pobres e párias e sua aceitação do papel do Servo sofredor
(e rejeitado até à morte) proporcionam aos moralistas um inevi-

128 [1300J
tável ponto de partida em sua análise da busca de Deus, mediado
através de suas imagens humanas criadas e, finalmente, através
de seu próprio Filho.
Se alguém começa sua teologia moral procurando Deus nas ima-
gens rejeitadas e aparentemente deformadas dos párias, dos sofre-
dores e dos defeituosos e inválidos, surgem problemas imediatos e
difíceis. Como harmonizar essa teologia moral com a tradicional
compreensão da criação a refletir os vestigia Dei, porquanto os céus
proclamam a sua glória, a glória de Deus é uma humanidade vivendo
uma vida plena e o mundo criado está repleto da grandeza de Deus?
Quer a moralidade seja concebida como plena realização da obra
do Deus Criador e realmente Redentor, ou segundo a outra clássica
tradição cristã da Lei Natural, parece quase perverso atender pri-
meiramente às imagens deformadas, aos fracassos da criação ou da
sociedade, em busca da presença intimadora, autorizadora e orien-
tadora que uma análise teológica da moralidade poderia atribuir a
Deus. Isto agrava o próprio problema de ver Deus como fonte e
término da moralidade, acentuando justamente aqueles aspectos
da existência humana - deficiências, doença e degradação, físicas,
mentais e espirituais - que constituem a dificuldade de ver Deus
como criador todo-poderoso e no entanto moral e amoroso. Contudo,
como quer que se tente explicar o mal no mundo, os seres humanos
deformados física, mental e socialmente, e até mesmo espiritualmen-
te, devem ao menos não ser descurados ou excluídos de qualquer
contemplação e resposta cristãs à imagem de Deus no mundo. Se
quisermos tomar como decisivo o exemplo do próprio Jesus, voltar-
nos-emos primeiro para estes como verdadeiros mediadores de
Deus e também necessitados de Deus, e como teste último de nossa
capacidade de reconhecer e responder à suprema mediação de Deus
no próprio Jesus. «Todas as vezes que fizestes isto a um destes
pequeninos ... » (Mt 25).
Para reconhecermos realmente o papel mediador destes «peque..
ninos» como imagens do divino e para o valor moral da resposta
a eles, é importante reconhecê-los e respeitá-los como tendo valor
em si mesmos, um valor divino com toda a dignidade que o acom-
panha, e não apenas como receptores de especial cuidado nosso ou
mesmo de Deus, e sobretudo não como ocasiões para nossa atividade
moral. Seria o supremo desrespeito e indignidade transformar os
pobres e esbulhados em degraus para os privilegiados em seu cami-
nho para Deus.

129 [1301]
3. A UNIDADE DO GENERO HUMANO

A dificuldade em discernir a imagem e presença de Deus nos


«mais pequeninos» deriva, em parte, do forte individualismo que
domina nosso pensar. Costumamos associar a imagem de Deus
exclusivamente com o indivíduo. O outro indivíduo, e particular-
mente o indivíduo portador de uma diferença que pelos nossos pa-
drões é empobrecedora, nos é alheio de muitas maneiras que facil-
mente podem excluí-lo de nossa consciência e certamente de nossa
consciência dele como lugar da presença de Deus e manifestador
da natureza e glória de Deus. Quando os deserdados são institucio-
nalizados ou vivem longe do caminho ou até nas camadas mais
baixas, a exclusão é mais fácil e mais eficaz. Mas não se vence o
egoísmo atendendo a outros indivíduos, inclusive os deserdados,
por essencial que isso seja. Exige-se uma mudança mais profunda
da consciência, para pensarmos primariamente em termos de «nós»
em sentido inclusivo e não em termos de «eu» e os «outros», ou
«nós» em sentido exclusivo e «eles». Quando se começa a pensar
e sentir a unidade do gênero humano e a influir sobre ela, torna-se-
nas evidente o lugar real da imagem divina: a raça humana como
um todo, seus membros históricos em qualquer tempo determinado,
tomados tanto em sua irredutível individualidade como em sua in-
frangível unidade. Enquanto não se impuser esse tipo de imagem
da humanidade, esta como imagem de Deus será parcial e frágil.
O conceito de Igreja como sacramento da unidade do gênero hu-
mano, ao qual o Papa João Paulo II volta muitas vezes em sua
primeira encíclica O Libertador do Homem, reflete esta verdade
cristã fundamental. A imagem que cada qual se faz de Deus e suas
implicações morais são inseparáveis de todo o imaginar e mediar
que formam a origem e critério da dignidade e indignidade humana.
A dignidade dos «sem-dignidade» não pode ser separada, deixando
intacta a dignidade do resto. Desviar os olhos e ouvidos e a mente
de Chris ou Liz, das vítimas da talidomida, pobreza ou tortura não
elimina seu significado para nossa própria dignidade. Simplesmente
empobrece o sentido e a vivência dessa dignidade.

4. TORNAR-SE HUMANO

Uma vez que, segundo a concepção cristã, a humanidade inteira


é que reflete propriamente e medeia a Deus, deve-se reconhecer
ademais que essa humanidade se realiza só parcialmente numa de-

130 [1302]
terminada época ou grupo ou indivíduo. Participação na humanidade
é um processo histórico, evolutivo e sempre incompleto. Neste sen-
tido, jamais na história se alcança uma participação total, nem
mesmo no caso do indivíduo mais dotado. Todos nós somos sempre
incompletos, parciais, deficientes e deserdados, sem que se destrua
evidentemente nossa dignidade humana fundamental como mediação
e reflexo de Deus. Nossa relativização solapa em grande parte o
confuso pensar que disfarça nossas atitudes de superioridade e infe-
rioridade. Isto poderia facilmente ser transposto para a ofensiva
expressão: «Unicamente pela graça de Deus eu ... » ou outra expres-
são e atitude condescendente. Não se trata absolutamente disso.
O outro, a quem somos tentados a olhar com ar de superioridade
devido a alguma suposta inferioridade dele, é igualmente dom e
graça de Deus e um necessário lembrete - melhor, revelação -
para nós da diversidade dos dons de Deus e de nossa necessaria-
mente limitada participação neles. As visitas que o Sr. e Sra.
Generoso fazem aos cortiços e favelas não têm relação alguma com
o reconhecimento e resposta que caracterizavam o comportamento
de Jesus; nossa norma é a resposta de Jesus aos fisicamente doen-
tes, aos socialmente marginalizados e aos obviamente pecadores.
desde o paralítico até o publicano e até Maria Madalena.
Se não nos é dado visitar favelas e fazer obras de beneficência
em face da doença e da pobreza convencionais, a Deus talvez o seja;
algumas interpretações tradicionais consideram ambas as coisas
como oportunidade de disciplina e desenvolvimento, do lado humano,
e como provação, eventual cuidado e amor, do lado divino. Ambos
os elementos criam dificuldades. Alguns dos sofrimentos físicos ou
sociais mais terríveis parecem reduzir em vez de ampliar o caráter
humano da vítima; e sua canonização como provação divina leva
facilmente as não-vitimas ou agentes sociais a uma hipócrita resig-
nação em nome das vitimas - um efeito verdadeiramente narco-
tizante. A insinuação de um Deus sádico, que testa seus experimen-
tos mesmo que seja para nossa recompensa final, parece incompa-
tível com o Deus que se esvazia a si mesmo para assumir a condição
humana do servo sofredor. Ê precisamente aqui que a experiência
cristã de Deus dificilmente se harmoniza com a divindade onipoten-
te e impassível, remota em sua transcendência e apática, se não
sádica, em sua experimentação.
Sem pretender apresentar qualquer resposta satisfatória e muito
menos definitiva a estas dificuldades clássicas, penso que dois fato-
res, um antropológico e o outro teológico, têm relação com o modo

131 [1303]
como abordamos essas dificuldades. Tornar-se humano não é apenas
uma tarefa i n d i v i d u a I mas uma tarefa social, não apenas
no sentido de que alguém se torna humano em comunidade ao
longo do tempo, mas no sentido de que a condição humana surgiu
gradualmente e ainda está lutando por chegar a uma realização
mais plena. Nesse desenvolvimento evolutivo-histórico é possível
observar a lenta luta para a espécie humana e da espécie humana
na qual todos nós estamos engajados com nossos vários dons e
limitações. A luta por tornar-se humano, primeiramente uma luta
estritamente evolutiva e a seguir histórica, continua sendo uma tare-
fa permanente com seus triunfos e fracassos tanto históricos como
evolutivos. Triunfo e fracasso caracterizam a vida de todos nós,
em sua dimensão biológica, psicológica, social e outras. Os «sem-
dignidade» com quem deparamos constituem uma parte crucial des-
sa luta, e muitas vezes, em seu próprio fracasso e indignidade con-
vencionais, apontam o caminho para novas possibilidades e triunfos.
Nosso impulso para frente como raça humana depende tanto dos
fracassos como dos sucessos aparentes. Isso é reforçado ao nos lem-
brarmos que nossos critérios de discriminação entre sucesso e fra-
casso genuínos são tão grosseiros, tão revestidos de interesses pró-
prios e tão bitolados pelas condições sociais, culturais e pessoais
em que nos formamos.

5. DEUS E A LUTA DO HOMEM

Mas onde está Deus nessa luta e como esta lhe diz respeito?
Que espécie de Deus emerge desta luta por alcançar a humanidade?
A preposição não é invocada à toa. O Deus de Jesus Cristo está tão
intimamente ligado às origens e destino do homem que na luta
rumo à humanidade deve ele, ao mesmo tempo, estar envolvido e ser
perceptível. Pois é a imagem de Deus que vai surgindo à medida que
surge a humanidade, para alcançar a culminância da filiação em
Jesus. Por sobre o espectro dos dons e conquistas do homem paira
o espírito do Deus vivo. Na combinação de dom e conquista que
resulta na luta pela realização do indivíduo, grupo e raça encontra
a imagem de Deus sua expressão irregular, fragmentária e parcial.
Mesmo no Jesus histórico a expressão não era tal que não pudesse
induzir em erro. No entanto esse Jesus histórico acentuou as fontes
de erro em procurar a imagem e realização de Deus entre os pode-
rosos e bem-sucedidos deste mundo. O servo sofredor tem maior
capacidade para a tarefa e dignidade fundamental da humanidade

132 [1304]
em revelar o verdadeiro Deus, do que oS poderosos em seus tronos
ou os gênios em seus laboratórios ou estudos ou estúdios. Como
revelam as narrativas da criação e ressurreição, o Deus com quem
nos confrontamos é a fonte do poder e do gênio, mas sua revelação
decisiva acontece no fracasso, sofrimento e crucifixão. Seu papel
na luta da humanidade em prol da plena realização não consiste pri-
mariamente, para empregar a imagem paulina, em dar o tiro inicial
para começar a corrida e entregar a coroa de louros no final. Sua
presença e envolvimento primário é na própria luta, assumindo o
fardo e a dor da humanidade, sofrendo com a humanidade através
e para além de todos os fracassos e sofrimentos naturais e históricos
de que a carne humana é herdeira. Ê um sofrer em prol de e não
simplesmente um render-se a. O sofrimento físico ocupou boa parte
do tempo e da energia de Jesus como curador e, tanto na mensagem
e exemplo dele próprio como nos de seus predecessores proféticos,
os sofrimentos dos oprimidos clamam ao céu por vingança.
Um Deus cristão que sofre em e com seu povo não é receita para
negligência médica ou social, mas antes uma grave acusação de
ambas. O que quer que fizermos ou deixarmos de fazer a estes,
fazemo-lo ou deixamos de fazê-lo a este Deus sofredor, que reina
do alto de um patíbulo e não sentado num trono, e que irrompe nos
esforços do paralítico por encontrar saúde e ainda assim viver li
amar sem ela e não no sucesso do atleta em quebrar recordes mun-
diais. O Deus empenhado na luta e sofrimento do homem propor-
ciona a inspiração e a força para uma resposta moral como também
a base para a dignidade humana até mesmo - e relmente sobre-
tudo - naqueles que estão engajados na mais difícil luta e no mais
doloroso sofrimento. A carta magna da vida moral que os mora-
listas procuram redigir para a orientação dos cristãos deveria ter
uma aparência um tanto diferente se planejada do ângulo da hu-
manidade sofredora, o ângulo preferido por Jesus e seu Deus.

6. UMA TEOLOGIA MORAL DO CUIDADO (CARING)

Na luta em prol da plena realização de um único povo, cada


qual com forças e fraquezas individuais, relativas e às vezes com-
plementares, é indispensável o conceito de cuidar uns dos outros.
Relações de assistência e profissões de assistência são chavões da
época. Nesse cuidado mútuo de uns pelos outros a luta adquire sen-
tido e torna-se tolerável para muitos. O envolvimento caracteristi-

133 [1305]
camente divino encontra sua expressão apropriada. No entanto, con-
vém fazer alguns esclarecimentos e delimitações de sentido. O cuida-
do manifestado pelos pretensos fortes pode facilmente tornar-se
auto-indulgente e condescendente, revelando a atitude de quem «faz
caridade» ou usa os outros para seus próprios fins. O cuidado por
alguém deve fundamentar-se sobretudo no reconhecimento e respeito.
Da parte de assistentes e assistidos deve o cuidado impregnar-se de
reverência para com a dignidade e privacidade e mistério dos mais
vulneráveis e explorados. Em sentido próprio e pleno, o cuidado
é uma relação recíproca e dialógica, mas um partido, indivíduo,
grupo, classe ou mesmo nação pode facilmente ser mantido numa
função dependente e explorada, mantendo com isso o outro numa
função exploradora. Isso anula toda a essência das relações de
cuidado e frustra o avanço positivo a que tende a luta humana.
Evidentemente na infância e na velhice, na doença pessoal e
social, algumas pessoas e grupos estarão mais dependentes e neces-
sitarão de cuidados sensíveis e prolongados. A impaciência com o
esforço requerido pode levar os que proporcionam assistência a
tomar o caminho mais fácil de considerar a dependência unilateral
e inalterável, ou de urgir uma «normalização» que pode não ser
possível. Em ambos os casos ignora-se e viola-se a verdadeira dig-
nidade e os dons dos «dependentes». Obnubila-se a dependência real
dos «assistentes». Viola-se a solidariedade humana. Reduz-se ao
paternalismo dos «fortes» o engajamento divino na luta total. En-
quanto não aprendermos que necessitamos dos Chrises e das Lizes,
dos prejudicados física e mentalmente, das classes e raças pobres e
exploradas e enquanto não tivermos a arte requerida para o diálogo
e cuidado mútuo como parceiros, não poderemos esperar ser real-
mente úteis à maneira e pela força de Jesus Cristo. Desse modo con-
tinuamos a frustrar o desígnio divino de fazer com que sua imagem
na humanidade cresça e se transforme na imagem e participação
do Filho unigênito do Pai. Ainda não estamos em condições de pro-
clamar a todo o mundo que somos irmãos e irmãs em Cristo.

7. SOLIDARIEDADE E LIBERTAÇÃO MUTUA

A fonte de nossa irmandade em Cristo é a participação na con-


dição humana ao ponto do auto-esvaziamento que Deus empreendeu
na pessoa de seu Filho. Foi sua entrada definitiva na luta dos
homens, a expressão culminante de sua solidariedade com todo o

134 [1306J
gênero humano. Tal solidariedade é o caminho da salvação humana,
salvação de que Jesus é o pioneiro e que nos é oferecida como dom
e tarefa nas relações concretas de nossas vidas. Subtrair-se ou
rejeitar essa solidariedade é o caminho da condenação, da destrui-
ção. Não pode permanecer uma solidariedade de boas intenções, de
remota benevolência ou de caridade paternalista. A solidariedade
exige compartilhar, estar lado a lado, engajados como parceiros
iguais na batalha noturna. Assim, fugir para a periferia ou ofere-
cer doces ou comida ou para isso empregar outros a fim de evitar
envolvimento pessoal não nos habilitará a dizer «Senhor, Senhor»
ou a validar nossa pretensão de sermos filhos e filhas do Pai, por-
que nos furtamos à exigente tarefa de sermos irmãos e irmãs uns
dos outros. Nossa exclusividade se torna nossa exclusão. Nossos
esforços por livrar-nos disso tudo, ou melhor, deles todos resultam
em nossa escravização e aprisionamento. Engajamo-nos rapidamen-
te em construir nosso próprio Long Kesh ou Robben rsland.
Sem Jesus Cristo e sem o Deus de Jesus Cristo não há salvação,
não há libertação. Sem estes mais pequeninos não existe acesso a
Jesus e ao Pai. Do ponto de vista cristão precisamos mais nós deles
que eles de nós. De qualquer forma, se fugimos e nos subtraímos
estamos também recusando a condição de filhos e filhas. A solida-
riedade do gênero humano, que recebe luz e sentido definitivo pelo
engajamento de Deus em sua luta, apresenta a caminho da salvação
como o caminho da fraternidade efetiva. Essa salvação é uma mútua
libertação para a liberdade com a qual Cristo nos libertou (GI 5,1).

8. DEIXAR DEUS SER ELE MESMO

As dificuldades de entender e aceitar o sofrimento numa criação


e vida humana proveniente de um Deus amoroso não ficam inteira-
mente supressas mas ao menos se pode conviver com elas mais facil-
mente se Deus mostrou sua vontade de compartilhar delas conosco,
como o fez em Cristo. Uma cristologia mais plena reconhece que
Jesus não é uma intervenção isolada e aberrante da parte de Deus
para pôr ordem na mixórdia humana e cósmica. Jesus Cristo é fun-
damental à criação como também à salvação, ao cosmos como tam-
bém à humanidade. Este engajamento de Deus na luta dos homens
origina-se em seu engajamento criativo com o cosmos que foi criado
em e através de Jesus Cristo, o primogênito de toda a criação, que
agora está se esforçando, lutando pela plena realização que é sua

135 [1307J
na Ressurreição. O envolvimento de Deus no cosmos e na história
humana assumiu o caráter de um drama que excede o meramente
humano e cósmico. É um drama divino em que, em certo sentido,
está em jogo o destino de Deus. Dito de maneira mais acurada
(embora, neste discurso, nossas expressões sejam todas tão gros-
seiras), por sua obra de criação-salvação Deus confiou a suas cria-
turas a consumação de seu plano. Sem que elas o reconheçam e
aceitem, de qualquer forma por mais anônima que seja, o plano não
pode ser realizado. Mas Deus não confiou simplesmente um plano,
por mais importante que seja, ele se confiou a si mesmo. As rela-
ções pessoais sempre implicam uma tal auto-entrega. Deus iniciou
um relacionamento pessoal com a humanidade. Amando os homens
em termos de paternidade pessoal, colocou-se a si mesmo à sua
disposição. Responderão eles como filhos e filhas ou não? O sacra-
mento, sinal eficaz e garantia dessa auto-entrega, foi Jesus Cristo.
O que está em jogo não é apenas a salvação da humanidade, mas
a plena realização ou o atraiçoamento da confiança divina.
Numa linguagem diferente, servindo-nos da autoridade de Jesus,
o que Deus ofereceu à humanidade é uma participação na constru-
ção de seu reino. O envolvimento de Deus na luta dos homens visa
à realização final e consumação transformadora do reino. O reino
como presença da força amorosa, salvífica e transformadora de Deus
já está atuando entre nós. Mas ainda deve alcançar a plena realiza-
ção. Para isso Deus depende de nossa colaboração, de nossa solida-
riedade com ele sobretudo naqueles que nos apontou, através de
Jesus, como lugar primário de sua presença, os «sem-dignidade».
Pondo em prática esta solidariedade e assim promovendo o reino
estamos respondendo ao Deus que há de vir como também ao Deus
que já está conosco. Estamos preparando o caminho diante dele.
Em sentido real, estamos deixando que Deus seja ele mesmo em
;leu próprio mundo, com seu próprio povo. A medida última de nossa
participação no cuidado pelos negligenciados e rejeitados é a liber-
tação de Deus, de modo que ele possa completar sua amorosa trans-
formação do mundo, de modo que ele possa estar plenamente em
casa no mundo. Só quando estiver completa esta obra não precisa-
remos mais perguntar: Onde está Deus agora? Pois ele estará
manifestamente em todo lugar.
Tradução de
Gentil Avelino Titton

136 [1308]
DECLARAÇÃO
DO COMITf.: DE DIREÇÃO DE CONCILIUM

Emocionados com as pumçoes que recentemente atingiram al-


guns teólogos e com aquelas que ameaçam atualmente outros
teólogos na Europa e na América, os abaixo-assinados membros
do Comitê de Direção de CONCILIUM, revista internacional de
teologia, recordam as recomendações que fizeram em 1968, com
1360 teólogos do mundo inteiro, em favor da liberdade de pesquisa
teológica na Igreja, e querem sublinhar publicamente os pontos
seguintes:

1) Não é mediante um processo jurídico impessoal, mas por


um franco diálogo de homem a homem, e de crente a crente, que
se podem esclarecer as posições teológicas de um irmão na fé;

2) As garantias já insuficientes para o interessado, fixadas a


15 de janeiro de 1971 (AAS 63, 1971, p. 234-236), nos processos
ordinários da Congregação para a Defesa da Fé, ficam inteiramente
anuladas pela aplicação do «processo extraordinário» (como no
caso do Padre J. Pohier); com ele se consideram como erros evi-
dentes posições que talvez sejam tais somente na mente dos censo-
res e em razão de uma diferença cultural;

3) Não se pode decidir unilateralmente em Roma sobre a


necessidade de condenar um teólogo, e mais ainda fixar sua condi-
ção ulterior, sem levar em conta situações locais, a reação dos
outros teólogos e das comunidades, os destinatários da obra (se é
um público mais restrito ou mais amplo), a audiência do interessa-
do. Os processos de regulação se efetuam quase sempre a nível
local, de maneira que as intervenções do poder central só deveriam
ser um último recurso, se as instâncias locais se mostrassem
insuficientes;

4) Assim como existem na Igreja uma regra de fé e critérios


de pertinência à comunhão eclesial e eucarística, igualmente exis-
tem postos de vanguarda, que se devem manter para o bem da
inteligência da fé, hoje, em particular nas relações com as ciências
humanas; e nesse terreno deve ser possível pesquisar longamente,

137 [1309J
enganar-se, corrIgIr-se com o auxílio da crítica e dos trabalhos
alheios. Uma intervenção brutal fixa as posições e bloqueia o
processo;

5) Sanções disciplinares não constituem um meio de auxiliar


um teólogo, mesmo que tenha errado, a situar-se melhor, nem de
permitir aos fiéis compreenderem o que é uma busca da verdade na
caridade, levando em conta a boa-fé das pessoas e a qualidade de
seu testemunho cristão, e não somente critérios abstratos de
ortodoxia;

6) Baseando-se em todas essas objeções que, na sua maioria,


valem também no caso de um processo ordinário, os abaixo-assina-
dos julgam que no caso de seu colega E. Schillebeeckx, as autori-
dades da Igreja que tomam publicamente a si a defesa dos Direitos
do Homem devem, elas mesmas, respeitar o exercício próprio desses
direitos no seio da Igreja, em particular no «coIloquium» romano
a que ele foi convidado e aceitou comparecer.

Assinaturas:

Prof. Dr. G. Alberigo, Itália; Prof. Dr. G. Baum, Canadá; Prof.


Dr. L. Boff, Brasil; Mr. V. van den Boogaard, Holanda; Mr. P.
Brand, Holanda; Prof. Dr. L. Sartori, Itália; Prof. Dr. E. Schüssler
Fiorenza, EUA; Prof. Dr. D. Tracy, EUA; Prof. Dr. K. Walf,
Holanda; Prof. Dr. A. Weiler, Holanda; Prof. Dr. M.-D. Chenu,
França; Prof. Dr. Y. Congar, França; Prof. Dr. Ch. Duquoc, França;
Prof. Dr. C. Floristán, Espanha; Prof. Dr. CI. Geffré, França;
Prof. Dr. N. Greinacher, RFA; Prof. Dr. G. Gutiérrez, Peru; Prof.
Dr. P. Huizing, Holanda; Prof. Dr. B. van Iersel, Holanda; Prof.
Dr. J.-P. Jossua, França; Prof. Dr. Hans Küng, RFA; Prof. Dr. L.
Maldonado, Espanha; Prof. Dr. J.-B. Metz, RFA; Prof. Dr. D. Mieth,
Suíça; Prof. Dr. A. MüIler, Suíça; Prof. Dr. R. Murphy, EUA;
Prof. Dr. D. Power, EUA; Prof. Dr. J. Remy, Bélgica; Prof. Dr.
H. Weinrich, RFA; Prof. Jürgen Moltmann, RFA; Irmã H. Snijde-
wind (Secret. Geral), Holanda.

138 [1310]
Notas Bibliográficas

ENZO BIANCHI
NMceu aos 3 de março de 1943, em Castel Boglione nel Monferrato
(Itália), e formou-se em CiênciM EconômicM pela Universidade de
Turim. Em 1966 radicou-se na aldeia de Magnano, onde fundou uma
comunidade monástica e começou a aprofundar os estudos bíblicos.
E membro da redação de Concilium (seção de Espiritualidade); diretor
da revista Servitium e redator de Bozze '79. Citamos, entre SUM obras:
n corvO di Elia, Turim 81972, Pregare la parola, Turim '1974, SaImi
e cantici biblici, Turim 1979.
(Endereço: Comunità di Bose, I-13050 Magnano, Itália).

JON SOBRINO
De origem basca, nasceu em 1938. Jesuíta desde 1956. Ordenado sacer-
dote em 1969. Licenciado em Filosofia e Letras pela St. Louis Univer-
sity, 1965. Doutorado em teologia pela Hochschule Sankt Georgen,
Frankfurt, 1975. Tese: Significado da cruz e ressurreição de Jesus nas
cristologias sistemáticas de W. Pannenberg e J. Moltmann (não foi
publicada). Atualmente é professor de teologia na Universidade Cen-
troamericana José Simeón Canas e no Centro de Reflexión Teológica,
San Salvador. Publicações: Cristologia desde América Latina, México
'1977 (trad. para o inglês); El celibato cristiano en el tercer mundo,
Bogotá 1977; La vida religiosa a partir de la CG XXXII de la Com-
paiiia de Jesús, Panamá 1978. Colaborador das revistas Estudios Cen-
troamericanos (San Salvador) e Christus (México).
(Endereço: Mediterráneo 50, Jardines de Guadalupe,
San Salvador, EI Salvador, América Central)
JOST ECKERT
Nasceu em Düsseldorf, em 1940. Estudou nas Universidades de Bonn
e Munique. De 1966 a 1968 capelão e professor de religião em Düsseldorf.
Em 1971, doutorado em Teologia pela Universidade de Munique e, em
1973, habilitação para lecionar Novo Testamento. De 1973 a 1977 do-
cente na Universidade de Munique. Desde 1977 professor catedrático
de Novo Testamento na Faculdade Teológica de Trier. Publicou, entre
outros, Die urchristliche Verkündigung im Streit zwischen Paulus
und seinen Gegnern nach dem Galaterbrief (Regensburgo, 1971).
(Endereço: Ernst-Reuter-Str. 19, D-5503 Konz, Alemanha Federal)

CHARLES PIETRI
Nasceu em Marselha em 1932. Ex-aluno da Escola normal superior,
ex-membro da Escola Francesa de Roma. Atualmente professor de
História do Cristianismo na Universidade de Paris-Sorbona. Autor de
livros e de memórias sobre a história primitiva do Cristianismo: Roma
Christiana: recherches sur l'Eglise de Rome, son organisation, sa
politique, son idéologie au IV et au Ve S., dois volumes; co-editor de
Cadernos de pesquisa e de reflexão religiosa Les Quatre Fleuves,
Paris, Beauchesne. Diretor do Centro de pesquisas Le Nain de Tillemont
para o cristianismo antigo e para a antiguidade tardia (fundado por
H. Marrou).
(Endereço: Université de Paris-Sorbonne, 1,
Rue Victor-Cousin, Paris 5e, França)

139 [1311]
BERNHARD BLUMENKRANZ
Historiador. Nascido aos 12 de junho de 1913 em Viena, Áustria. 11:: ca-
sado e tem três filhos. Freqüentou o Realgymnasium de Viena II e de
Modling. Cursou as Universidades de Viena e de Basiléia e a Faculdade
de Letras de Paris. Doutorou-se em Filosofia (Basiléia), em Letras
(Paris) e obteve um Diploma pela Escola Prática de Altos Estudos
(Ciências Filosóficas e Históricas e Ciências Religiosas). Lecionou
na Escola Prática de Altos Estudos (1959-1968) e, desde 1970, leciona
na Universidade de Paris III (Sorbonne NouveIle). Diretor de pesqui-
sas no Centro Nacional da Pesquisa Científica. Entre suas muitas
obras, citamos: Die Judenpredigt Augustins, Basiléia 1946 e Paris 1973;
Altercatio Aecclesie contra Synagogam, Estrasburgo 1954; Gisleberti
Crispini Disputatio Iudei et Christiani, Utrecht 1956; Juifs et Chrétiens
dans le monde occidental, 430-1096, Paris 1960; Les auteurs' chrétiens
latins du Moyen Age SUl' les juifs et le judai'sme, Paris 1963; Juifs et
chrétiens: Patristique et Moyen Age, Londres 1977.
(Endereço do Autor: 87, rue VieilIe du Temple, 75003 Paris, França)

ENRIQUE DUSSEL
Nascido em 1934, em Mendoza, Argentina, doutorou-se em Filosofia e
História e licenciou-se em Teologia. Leciona na Universidade Autônoma
do México e no Departamento de Ciências Religiosas da Universidade
Ibero-Americana. Presidente da Comissão de Estudos de História da
Igreja na América Latina (CEHILAL Participou no Diálogo Ecumênico
de Teólogos do Terceiro Mundo, em Dar-es-Salaam, Accra e Sri Lanka.
De suas obras mais recentes, citamos: Desintegración de Ia Cristiandad
y liberación, Sígueme, Salamanca 1978; Introducción a la filosofia de
la liberación, Extemporaneos, México 1978; Filosofia de la liberación,
Edicol, México 1977; History of the Church in Latín America, Eerdmans,
Grand Rapids 1979; Ethics and Theology of Liberation, Orbis Books,
Nova Iorque 1978; Los obispos latinoamericanos y Ia liberación dei
pobre (1504-1620), CRT, México 1979; De Medellín a Puebla (1968-1979),
coedição EDUCA-Editadal Integrada, San José-México 1979.
(Lndereço: Apdo. 11-671, México 11, D. F. México)

LEONIDAS E. PROANO
Nasceu em 1910 em San Antonio de Ibarra, Província de Imbabura,
Equador. Fez seus estudos de Filosofia e Teologia no Seminário Maior
São José da cidade de Quito. Ordenado sacerdote em 1936, foi nomeado
professor do Colégio-Seminário San Diego, promoveu a JOC com um
companheiro e com ele também fundou uma livraria e um periódico,
La Verdad. A esse tempo escreveu um livro intitulado Un método de
Acción Católica e uma série de folhetos sobre a Vocação Sacerdotal.
Foi sagrado bispo em 1954. Tomou posse da diocese de Riobamba no
mesmo ano. Foi membro do CELAM desde 1960 até 1969. Como presi-
dente do Departamento de Pastoral de Conjunto do CELAM recebeu
a incumbência de pôr em ação o Instituto de Pastoral Latino-Americano
que, durante uns anos, foi itinerante, sediando-se em seguida em Quito.
Em sua diocese, predominantemente camponesa e indígena, fundou as
Escolas Radiofônicas Populares, o Centro de Estudos e Ação Social,
o Instituto Tepeyac, o Lar Santa Cruz, a Equipe Missionária Itinerante
e ultimamente o Instituto Diocesano de Pastoral. Depois de bispo
escreveu: Pour une Eglise Libératrice (Du Cerf) , Conscientización,
Evangelizaclón, Política (Sigueme) e Creo en el Hombre y en Ia Cu-
munidad (Desclée de Brouwer).
(Endereço: La Iglesia de Riobamba, Apartado 36, Riobamba, Equador)

140 [1312J
DONNA SINGLES
Nasceu em Grand Rapids, Michigan (EUA) em 1928. Ingressou na
Congregação das Irmãs de São José (Kalamazoo, Michigan). Bacha-
relou-se em literatura inglesa exercendo o magistério nas escolas da
congregação por 17 ano.s. Mais tarde estudou nas Faculdades Católicas
de Lião (França) doutorando-se em teologia em 1978. Aí exerce atual-
mente as funções de professora-assistente de teologia dogmática. Tra-
balha também como mestre-assistente no Instituto Pastoral do Ensino
Religioso e como assistente na Escola Superior de Secretárias-tradu-
toras (nas Faculdades de Lião). Além de sua tese Le salut chez salut
Irénée. Essai d'Interprétation symbolique, 1978, publicou The little
design of Fr. Medaille (breve história das origens das Irmãs de São
José), Ed. Nazareth, Michigan 1972. Freqüentemente contribui com
artigos para Effort Diaconal.
(Endereço: 4, Impasse Catelin, 69002 Lyon, França)

FRANCISCO CLAVER
Nasceu em 20-1-1929. Ordenado sacerdote em 1961 e sagrado bispo em
1969. Obteve os seguintes graus acadêmicos: mestrado em filosofia
pelo Berchmans College, Cebu City, Filipinas (1955); licenciado em
teologia pelo Woodstock College, Woodstock, Maryland, EUA (1962);
mestrado em antropologia pelo Ateneo de Manila University, Quezon
City, Filipinas (1967); doutorado em antropologia pela Universidade do
Colorado, Boulder, Colorado, EUA (1973). Atualmente é prelado ordi-
nário da Prelazia Nullius de Malaybalay, presidente da Conferência de
Mindanao-Sulu para Justiça e Desenvolvimento, presidente da Comis-
são Episcopal para os Não-crentes e membro da Comissão Episcopal
para os Filipinos Tribais. Publicou: Sharing the Wealth and the Po-
wer: Agrarian Reform in a Southern Philippine Municipality, Boulder
1973; The Stones Will Cry Out: Grassroots Pastorais, Maryknoll 1978;
ln the Philippines Today: Christian Faith, Ideologies... Marxism,
Quezon City 1977 (com D. Corrigan, V. Cullen et alii); Dinawat Ogil:
High Datu of Namnam, em Bukidnon Politics and Religion, Quezon
City 1971; Proclaiming Liberty to Captives, em Liberation Theology:
An lrish Dialogue, Dublim 1977.
(Endereço: Prelature Nullius of Malaybalay,
Malaybalay, Bukidnon 8201, Filipinas)

MARIASUSAI DHAVAMONY
Ordenado sacerdote em Kurseong, India, em 1958. l!: professor de hin-
duísmo e de história das religiões na Universidade Gregoriana em
Roma. Possui os títulos de licenciado em teologia e doutor em filosofia
pela Universidade Gregoriana de Roma e de doutor em filosofia
(religiões orientais) pela Universidade de Oxford. l!: redator de Studia
Missionalia e Documenta Missionalia e autor de muitos livros e artigos.
(Endereço: Pontificia Università Gregoriana, Piazza della
Pilotta 4, 1-00187 Roma, Itália)

LYDIO F. TOMASI
Nasceu em 1938. Doutorado em sociologia pela Universidade de Nova
Iorque e licenciado em filosofia e em teologia pela Universidade Gre-
goriana de Roma. Atualmente é diretor executivo do Centro de Estu-
dos sobre Migração, de Nova Iorque. Escreveu muitos artigos e livros
sobre etnicidade e migração. Redator de Migration Today e redator
administrativo de International Migration Review. Algumas publica-

141 [1313]
ções: The Ethnic Factor in the Future of Inequality (1972), The Italian
in America: The Progressive View, 1891-1914 (1972, '1978), The Other
Catholics: Report on the Italian Apostolate in the Archdiocese of To-
ronto (1975), The Italian Immigrant Woman in North America (ed. com
B. B. Caroli e R. F. Harney, Nova Iorque-Toronto 1978).
(Endereço: 209 Flagg Place, Staten Is., N. Y. 10304, EUA)

GIANFAUSTO ROSOLI
Nasceu em 1938. :E: diretor do Centro de Estudos sobre Migração, de
Roma, e redator de Studi Emigrazione/Etudes Migrations. Realizou
pesquisas e escreveu muitos artigos sobre migração. Seu último livro:
Un secolo di emigrazione italiana: 1876-1976 <CSER, Roma 1978).

MEINRAD P. HEBGA
Nasceu no Camerum em 1931. Estudos eclesiásticos na Universidade
Gregoriana de Roma. Filosofia e Psicologia em Paris, Sorbona. Dou-
torado em Filosofia. Professor missionário de antropologia no Insti-
tuto Católico da África Ocidental (Abidjã) e na Universidade Grego-
riana (Roma). Obras: Les Etapes des Regroupements africains, Dacar
1968; Croyance et Guérison (col.), Ed. CLE, Yaoundé 1973; Emancipa-
tion d'Eglises sous tutelle, Prés. Africaine, Paris 1976; Dépassements,
Prés. Africaine, Paris 1977; Sorcellerie, Chimere dangereuse?, Ed.
INADES, Abidjã 1979. Pesquisa atualmente sobre bruxaria, magia e
ministério cristão da cura.
(Endereço: c/o Presence Africaine, 18, rue des
Ecoles, 75005 Paris, França)

ENDA MCDONAGH
:E: sacerdote diocesano da arquidiocese de Tuam. Professor de teologia
moral em Maynooth, atualmente de licença como professor de teologia
na Universidade de Notre Dame. Seus últimos livros: Social Ethics
and the Christian (Manchester University Press) e Doing the Truth:
The Quest for Moral Theology (Gil! and Macmil!an, Notre Dame Uni-
versity Press) foram publicados em maio de 1979.
(Endereço: Até o primeiro semestre de 1981 inclusive: Department
of Theology, University of Notre Dame, Notre Dame, Ind. 46556, USA)

142 [1314]
INDICES

141 Sociologia da Religião: Família: Crise 'ou Mudança?


142 Liturgia: A Crise da Iniciação Cristã
143 Dogma: Céu - Utopia e Realidade
144 Teologia Prática: Igreja e Direitos Humanos
145 Teologia Fundamental: Cristianismo e Burguesia - Da Práxis
Política e Religi,osa dos Cristãos
146 Projeto «X»: China e Cristianismo
147 Instituições Eclesiais: Cúria R'omana - Uma Estrutura a
Serviço do Povo de Deus?
148 Ecumenismo: Espírito Santo - Mistério e História
149 Espiritualidade: Santidade: Privilégio de elites ou património
de todos?
150 Moral: A Dignidade dos Oprimidos

INDICE GERAL

Artigos

Alberigo, G., Servir a comunhão das Igrejas 813


Baum, G., A religião de classe média na América 518
Beemer, T., Elementos cristãos para uma educação não-burguesa 611
Bellido, J. D., A comunicação das Igrejas locais com a Cúria
Romana - O caso de uma diocese peruana 875
Berger, W.jvan der Lans, J., Fases e períodos necessários para o
amadurecimento do ato humano e do ato de fé 179
Bianchi, E., O estatuto dos sem-dignidade no Antigo Testamento 1180
Blank, J., O direito de Deus quer a vida dos homens - O problema
dos direitos humanos no Novo Testamento 399
Blumenkranz, B., Os judeus na Idade Média 1219
Bouchet, J.-R., O discernimento dos espíritos 1034
Castillo, F., Cristianismo: Religião burguesa ou religião do povo? 568
Cavallaro, E., As mulheres na Cúria Romana 850
Charbonnier, J., A reinterpretação do cristianismo ocidental a
partir da China de ontem e de hoje 713
Chih, H., A vida quotidiana na China como lugar ético 693

143 [1315]
Ching, J., o senso religioso dos chineses 678
Claver, F., As comunidades cristãs e as minorias étnicas
ou tribais 1260
Cody, A., Céu - O Novo Testamento 289
Cone, J. H., Conceito de céu nos «spirituals» negros 315
Coriden, J. A., Direitos humanos na Igreja: Uma questão de credi-
bilidade e autenticidade 437
Delgado deI Rio, G., A organização do governo da Igreja 835
Delooz, P., A canonização dos santos e seu uso social 1080
Dhavamony, M., Cristianismo e sociedades baseadas num sistema
de castas - O caso da India 1269
Duquoc, C., Um paraísü na terra? 340
Duquoc, C., Santidade de Jesus e Santidade do Espírito 1135
Durkin, M., Intimidade e matrimônio: Continuando o mistério de
Cristo e da Igreja 92
Dussel, E., A cristandade moderna diante do outro - Do índio
«rudo» ao «bon sauvage» 1228
Echeverría, L. de, As representações pontifícias 854
Eckert, J., A realização da fraternidade nas primeiras comunidades
cristãs 1200
Fahey, M. A., Filho e Espírito: Teologias divergentes entre Cons-
tantinopla e o Ocidente 943
Favre, R., Variações sobre o tema do céu no século das luzes 308
Fetscher, I., A semântica histórica e política do conceito «bur-
guesia» 505
Galilea, S., A Igreja da América Latina na luta pelos direitos
humanos 471
Ganoczy, A., Palavra e Espírito na Tradição Católica 978
Geffré, C., Perspectivas de uma teologia em face da China atual -
Evangelização e cultura 738
Goretti, M. jSale, D., A Igreja e a luta pelos direitos humanos
nas Filipinas 463
Grand'Maison, J., A família moderna, lugar de resistência ou agente
de mudança? 52
Greinacher, N., A responsabilidade da Igreja no processo de con-
cretização dos direitos humanos no Primeiro Mundo 478
Greinacher, N., Falta de comunicação entre a base e a direção da
Igreja - O «Sínodo Geral dos Bispados da República Federal
da Alemanha» e sua relação com a Cúria Romana 863
Grocholewski, Z., Função da Sagrada Rota Romana e do Supremo
Tribunal da Signatura Apostólica 845

144 [13161
Gutiérrez, G., Os limites da teologia moderna: Um texto de
Bonhoeffer 546
Happel, S., As estruturas de nossa convivência (mit-sein) utópica 350
Hãring, H., O Espírito como instância legitimadora do minis-
tério 1001
Hebga, M., Igrejas dignas e igrejas indignas 1289
Heijke, J., As comunicações entre a Igreja africana e a Cúria
Romana 879
Heim, W., Tradições e costumes religiosos da família - Contribui-
ção das Ciências Folclóricas para a Teologia da Intimidade 101
Hoornaert, E., Modelos de santidade a partir do povo 1103
Huber, W., Direitos humanos: Um conceito e sua história 371
Huizing, P. /Walf, K, Estruturas centrais da Igreja 795
Hurley, D. E., O que pode fazer a Igreja para superar o Apartheid 487
Kerkhofs, J., Diversas representações do céu 258
Kilgallen, J., Intimidade e Novo Testamento 84
Küng, H., Como falar do Espírito Santo, hoje? 1047
Larré, C., O sentido da transcendência no pensamento chinês 703
Laurentin, R, Sínodo e Cúria 886
Laurentin, R, Santa Maria 1125
Lécuyer, J., Posição teológica da Cúria Romana 805
Leonardi, C., Da Santidade «Monástica» à Santidade «Política» 1114
Limburg, J., Direitos humanos no Antigo Testamento 392
Lochman, J. M., Ideologia ou teologia dos direitos humanos
O conceito dos direitos humanos - Problemática atual 382
Logstrup, K, A crise da burguesia e a teologia sob o influxo de
Kierkegaard 559
Lokuang, S., Como ser ao mesmo tempo um autêntico cristão e um
autêntico chinês 752
Lonning, L, A Reforma e os Fanáticos 962
Luneau, R, O que dizem do «além» as tradições africanas? 269
Masoon, M., Raízes e implicações religiosas do maoísmo 685
McCready, W., Família e socialização 30
McDonagh, E., A dignidade de Deus e a dignidade dos sem-
dignidade 1298
McDonnell, K, A experiência do Espírito Santo na renovação caris-
mática católica 1025
Metz, J.-R, Religião messiânica ou religião burguesa? - Sobre
a crise da Igreja na República Federal da Alemanha 578
Meyer, H., Ministério e Espírito - Posição Protestante 1013
Mondin, R, O Espírito Santo como legitimação do papado 991

145 [1317]
Murphy, R., Um modelo bíblico de intimidade humana: O Cântico
dos Cânticos 77
Nelis, J., Deus e o céu no Antigo Testamento 277
Niilus, L. J., Esforços do Conselho Mundial de Igrejas e de Sodepax
em prol dos direitos humanos 457
Nocent, A., Iniciação cristã e comunidade 171
Pantschowski, 1., Espírito e Espíritos - Ponto de vista da Orto-
doxia 1039
Pasquier, A., Sociedade iniciática e sociedade à procura de ini-
ciações 144
Pfürtner, S. H., Os direitos humanos na ética cristã 427
Pietri, C., Os cristãos e os escravos nos primeiros tempos da Igreja
(Séc. II e III) 1209
Plongeron, B., Anátema ou diálogo dos cristãos? - Diante das
declarações dos direitos do homem no século XVIII nos Estados
Unidos e na Europa 410
Plongeron, B., Madre Inês de Jesus: tema e variações hagiográ-
ficas (1665-1963) 1091
Pohier, J.jMieth, D., A dignidade de Deus se manifesta através
da dignidade dos «sem-dignidade» 1175
Proano, L. E., A Igreja e os pobres na América Latina 1241
Refoulé, F., O empenho da autoridade suprema da Igreja na defesa
dos direitos humanos 448
Remy, J., A Família: Desafios contemporâneos e perspectiva
histórica 6
Ritschl, D., História da controvérsia sobre o Filioque 931
Rosoli, G./Tomasi, L., Atitude das ricas sociedades cristãs do Oci-
dente para com os imigrantes 1279
Rovira Belloso, J. M., Qual a Santidade de Jesus de Nazaré? 1068
Ruiz de la Pena, J. L., O elemento projeção e a fé no céu 329
Ryan, M. e K., Autoconceito e casamento 64
Sánchez y Sánchez, J., Conferências Episcopais e Cúria Romana 898
Sartori, L., O tema teológico «salvação e libertação» em função do
conceito maoísta de «nova humanidade» 726
Scheer, A, O papel da cultura na evolução da liturgia - Enfoque
a partir da história da iniciação 159
Schellong, D., Crítica teológica da «visão burguesa do mundo» 594
Schiffers, N., Soteriologia sem cristologia? - Notas para cristolo-
gias não-burguesas 618
Schüssler-Fiorenza, F., Religião e sociedade: Legitimação, raciona-
lização ou herança cultural 528

146 [1318J
Schweizer, E., O que é o Espírito Santo - Introdução teológico-
bíblica 921
Shea, J., Arte das relações humanas e intimidade familiar - Uma
perspectiva teológica 108
Siebert, R. J., O futuro do matrimônio e da família - Declínio ou
reestruturação? 39
Singles, D., A Igreja face às mulheres: Sobrevivência de uma
discriminação 1251
Sobrino, J., Relação de Jesus com os pobres e marginalizados -
Importância para a moral fundamental 1190
Stegemann, W., Da Palestina para Roma - Observações sobre um
processo social na cristandade primitiva 538
Stehle, H., O «centralismo» romano representa vantagem no mundo
oriental? 870
Stockmeier, P., «Modelos» do céu na consciência cristã da fé 298
Stylianopoulos, To, Filho e Espírito - Posição Ortodoxa 952
Sullivan, To, Vidas mais longas e relações vitalícias: Uma interpre-
tação de tabelas de mortalidade 18
Tang, E., Ê possível ser ao mesmo tempo verdadeiro cristão e
verdadeiro chinês? - Ponto de vista de um cristão de Hong-
Kong 756
Tracy, D., O modelo católico da Caritas: Autotranscendência e
transformação 120
Van Leeuwen, A./Van Dijk, B./Salemink, To, Crise e crítica da
teologia burguesa 632
Vitale, A., A Cúria Romana como centro internacional de caridade
e colaboração 908
Wackenheim, C., O significado teológico dos direitos humanos 419
Waskow, A., Para uma teologia judaica da classe média 603
Yoder, J. H., Os Fanáticos e a Reforma 970
Yu-ming, So, A cultura chinesa na visão do Ocidente 658
Zizola, G., Secretariados e Conselhos da Cúria Romana 840

Boletins

Blijlevens, A., Rituais do batismo de crianças nas regiões de língua


holandesa 226
Bourgeois, Ho, A experiência francesa dos últimos vinte anos 218
Brock, S., Os ritos batismais siríacos 242
Charbonnier, J., O cristianismo chinês fora da China 770

147 [1319]
Della Torre, L., Balanço das aplicações do Ordo Initiationis Chris-
tianae Adultorum 191
Digan, P., Centros de pesquisa sobre um encontro entre cristianismo
e China 781
Dujarier, M., Experiências de iniciação cristã na África Ocidental 201
Estruch, J.jCardús, S., O batismo como rito de iniciação: Trans-
formações atuais de seu significado 234
MacInnis, D., As igrejas na Nova China 761
Spae, J., Pesquisa teológica sobre a China desde as conferências de
Bastad-Lovaina 776
Spae, J., Seis livros marginais, mas importantes - Nota biblio-
gráfica 784
Spae, J., Modelos Budistas de Santidade 1146
Urbina, F., Modelos de Santidade Sacerdotal - Resenha Biblio-
gráfica 1157
Zevini, G., Informações sobre experiências de iniciação cristã de
adultos nas comunidades neocatecumenais 208

Notas Biográficas

133, 249, 362, 494, 648, 787, 913, 1051, 1170, 1309

148 [1320]

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