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D O que é Ìdeologia 35
ADAD em ideologia em geral e na ideologia burguesa em geral, no
entanto, as formas ou modalidades dessa ideologia encon-
i tram-se determinadas pelas condiçÕes sociais particulares
i em que se encontram os drferentes pensadores burgueses.
Sabemos que Marx dirige duas críticas principais aos
A corucrpçno rvrniXlsïA DE rDEoLoctA ideologos alemães (Feuerbach, F. Strauss, lVax Stirner, Bruno
Bauer, entre os principais). A primeira diz que esses f ilosofos
tiveram a pretensão de demolir o sistema hegeliano imagi-
nando que bastarìa criticar apenas um aspecto da filosofia
de Hegel, em lugar de abarcá-la como um todo. Com isso,
os chamados críticos hegelianos apenas substituíram a dialé-
tica hegeliana por uma fraseologia sem sentido e sem con-
Embora Marx tenha escrito sobre a "ideologia em ge- sistência (com exceção de Feuerbach, respeitado por Marx,
ral" , o texto em que realiza a caracterização da ideologia apesar das crÍticas que lhe faz).
tem por título: A ldeologia Alemã.lsso significa que a análi- A segunda crítrca diz que cada um desses ideologos
se de Marx tem como objetivo privilegiado um pensamento tomou um aspecto da realidade humana, converteu esse as-
historicamente determinado, qual seja, o dos pensadores pecto numa idéia unrversal e passou a deduzir todo o real
alemães posteriores ao filósofo alemão Hegel. a partir desse aspecto idealizado. Com isso, os ideologos
Essa observação e importante por dots motivos. Em pri- alemães, além de fazerem o que todo ideologo faz (isto é,
meiro lugar, porque, como veremos, Marx não separa a pro- deduzir o real das ideias), ainda imaginaram estar criticando
dução das idéias e as condiçóes sociais e históricas nas quais Hegel e a realidade alemã simplesmente por terem escolhr-
são produzidas (tal separação, alrás, é o que caracteriza a do novas ideias, que, como demonstrará Marx, não criticam
ideologia). Em segundo lugar, porque para entendermos as coisa alguma, ignoram a filosofia hegeliana e, sobretudo,
críticas de Marx precisamos ter presente o tipo de pensa- ignoram a realìdade historica alemã.
mento determinado que ele examina e que, no caso, pres- No restante da Europa, escreve Marx, ocorrem verda-
supÕe a filosofia de Hegel. Assim, embora Marx coloque na deiras revoluçÕes, mas na Alemanha a única revolução que
categoria de ideologos os pensadores franceses e ingleses, parece ocorrer é a do pensamento, e ironiza. "uma revolu-
procura distinguir o tipo de ideologia que produzem: entre ção frente à qual a Revolução Francesa não foi senão um
os franceses, a ideologia e sobretudo política e jurídica, entre brinquedo de crianças".
os ìngleses é sobretudo econômica. Os ideologos alemães Marx afirma que para compreendermos a pequeneza
são, antes de tudo, filosofos. Se, portanto, podemos falar e limitação mesquinha da ideologia alemã e preciso sair da
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Alemanha, ou seja, fazer algumas consideraçÕes gerais sobre


que o EspÍrito simplesmente produz a Cultura, mas, sim, de
o fenômeno da ideologia. Essas consideraçoes, embora te-
dizer que ele é a Cultura, pois ele existe encarnado nela;
nham como solo a sociedade capitalista europeia do seculo
2) um trabalho filosofico que define o real pela Cultura
XlX, têm como pano de fundo a questão do conhecimento
historico ou a ciência da historia, pois, escreve Marx, "conhe- e esta pelos movimentos de exteriorização e de interioriza-
cemos apenas uma única ciência, a ciência da historia. A his- ção do Espírito. Ou seja, o Espírito manrfesta-se nas obras
toria pode ser examinada sob dois aspectos: historia da na- que produz (e isto sua exteriorização), e quando sabe ou
tureza e historia dos homens. Os dois aspectos, contudo, são reconhece que e o produtor delas, rnterioriza (compreende)
inseparáveis; enquanto existirem homens, a historia da natu- essas obras porque sabe que elas são ele proprio. por isso o
reza e a historia dos homens se condicionarão mutuamente. real e historico. Ele não tem historia, nem está na história,
A historia da natureza, ou ciência natural, não nos interessa mas é historia,
aqui, mas teremos de examinar a historia dos homens, pois 3) um trabalho filosofico que revoluciona o conceito de
quase toda ideologia se reduz ou a uma concepção distorcrda historia por três motivos:
dessa historia ou a uma abstração completa dela. A propria em primeiro lugar, porque não pensa a hrstoria
ideologia não é senão um dos aspectos dessa história". como -uma sucessão contínua de fatos no tempo, pois o
Sabemos que lVarx concebe a historia como um co- tempo não é uma sucessão de instantes (antes, agora, de-
nhecimento draletico e materialista da realidade social. Sa- pois; passado, presente, futuro) nem é um recipiente vazio
bemos tambem que dentre as várias fontes dessa concepçào onde se alojariam os acontecimentos, mas e urn movimen-
encontra-se a filosoÍia hegeliana, criticada por Marx, mas to dotado de forca interna, criador dos acontecimentos. Os
conservada em aspectos essenciais por ele. Para que a con- acontecimentos não estão no tempo, mas são o tempo;
cepção marxista de historia, da qual depende sua formulação
de ideologia, fique um pouco mais clara para nos, vale a pena - em segundo lugar, porque não pensa a historia
como uma sucessão de causas e efeitos, mas como um pro-
lembrarmos aqui alguns aspectos da concepção hegeliana. cesso dotado de uma Íorça ou de um motor interno que pro-
De maneira esquemática (e, portanto, muito grosseira), duz os acontecimentos. Esse motor interno e a contradição.
podemos caracterizar a obra hegeliana como: Em geral, confundrmos contradição e oposição, mas ambos
1) um trabalho filosofico para compreender a origem e são conceitos muito diferentes. Na oposição existem dois
o sentido da realidade como Cultura. A Cultura representa termos, cada qual dotado de suas proprias características e
as relaçoes dos homens com a Natureza pelo desejo, pelo de sua proprra existência, que se opÒem quando, por algum
trabalho e pela linguagem, as instituiçÒes sociais, o Estado, motrvo, se encontram. lsso significa que, na oposição, po-
a religião, a arte, a ciência, a fiiosofia. É o real enquanto ma- demos tomar os dois termos separadamente, entender cada
nifestação do Espírrto Não se trata, segundo Hegel, de dizer um deles, entender por que se oporão se se encontrarem e,
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sobreÌudo, podemos perceber que eles existem e se conser- contradição quando a negação é interna e quando ela for a
vam, quer haja ou não haJa a oposição. Assim, por exemplo, relação que define uma realrdade que é em si mesma dividi-
poderíamos imaginar que os termos "senhor" e "escravo" da num polo positivo e num polo negativo, polo este que é o
são opostos, mas isso não nos impede de tomar cada urn negativo daquele positivo e de nenhum outro. Por exemplo,
desses conceitos separadamente, verificar suas característi- quando dizemos "a canoa é a não-canoa". definimos a ca-
cas e compreender por que se opÕem. A contradição, po- noa por sua negação interna, ela é a não-canoa porque ela
rém, não é isso. Formulado, pela primeira vez, pelos gregos, e a madeira ou a árvore negadas, suprimidas como madeira
o princípio logico de contradição enuncia que: "É impossível ou árvore pelo trabalho do canoeiro. O trabalho do canoeiro
que A seja A e não-A ao mesmo tempo e na mesma rela- consiste em negar a árvore como uma coisa natural, trans-
formando-a em coìsa humana ou cultural, isto é, na canoa, e
ção". A grande inovação hegeliana consiste em mostrar que
o ser da canoa é ser a não-canoa, isïo é, a árvore trabalhada.
isso não é impossível, e sim o movimento da propria reali-
A árvore, por sua vez, e nao-árvore, pois e a canoa ou árvore
dade. Diversamente da oposição, em que os termos podem
negada. Numa relação de contradição, portanto, os termos
ser pensados fora da relação em que se opòem, na con-
que se negam um ao outro só existem nessa negação. As-
tradição só existe a relação, isto é, não podemos tomar os
sim, o escravo é o não-senhor e o senhor é o não-escravo, e
termos antagônicos fora dessa relação, pois, como assegura
só haverá escravo onde houver senhor, e só haverá senhor
o princípio, trata-se de tomar os termos ao mesmo tempc e
onde houver escravo. Podemos dizer que o escravo não é a
na mesma relaÇão, criados por essa relação e transformados
pedra e que o senhor não é o cavalo, mas essas negaçoes
nela e por ela. Alem disso, a contradição opera com uma for-
externas não nos dizem o que são um senhor e um escravo.
ma muito determinada de negação, a negação interna. Ou
O que é um senhor? Um não-escravo.
seja, se dissermos "0 caderno não e o livro", essa negaçào
é externa, pois, além de não definir qualquer relação interna O que é um escravo? Um não-senhor.
entre os dois termos, qualquer um deles pode aparecer em Para haver um senhor é necessário haver um escravo;
outras negaçÕes, visto que podemos dizer: o caderno não para haver um escravo é necessário haver um senhor.
e o Iivro, não é a pedra, não é a casa, não e o homem etc. Ambos só existem como relação. Mas onde está a con-
A negação é interna quando o que é negado e a propria tradição? Que é, verdadeiramente, um senhor? Aquele que
realidade de um dos termos, por exemplo, quando dizemos: sobrevive graças ao trabalho do escravo, portanto um senhor
"A e não-A"" Ou seja, quando digo "A não é 8", a nega- é aquele cu1o ser depende da ação de um outro que é sua
ção é externa; mas quando digo "A é não-A", a negação negação. Que é, verdadeiramente, um escravo? Aquele que
é interna. Na primeira, digo que algo não é outra coisa (ou julga o senhor como único ser humano existente e vê a si mes-
qualquer outra coisa); mas na segunda digo que algo e ele mo como não-humano porque é não-senhor. Assim, o senhor
mesmo e a negação dele mesmo, ao mesmo tempo. So há vive graças ao não-senhor e o escravo vive para o seu senhor

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e não para si mesmo. Somente quando o senhor afirma que religião, arte, política, ciência, filosofia, tecnicas etc.), numa
o escravo não é homem, mas um instrumento de trabalho, perpétua divisão consigo mesmo, isto é, a produção do Es-
e somente quando o escravo afirma sua não-humanidade, pÍrito são contradiçÕes que vão sendo superadas por ele e
dizendo que só o senhor é homem, temos contradição" repostas com novas formas por ele mesmo. Esse trabalho
Porem, o aspecto mais fundamental da contradição é espiritual prossegue produzindo novas sínteses (novas cultu-
que ela é um motor temporal: ou seja, as contradiçÕes não ras), ate que se produza a síntese final. Esta e produzida no
existem como fatos dados no mundo, mas são produzidas. momento em que o Espírito termina o seu trabalho, compre-
A produção e a superação das contradiçóes são o movimen- ende o que realizou, que a Cultura é sua obra, e se reconcilia
to da historia. A produção e a superação das contradiçóes consigo mesmo. A historia é o movimento pelo qual o que o
revelam que o real se realiza como luta. Nesta luta, uma rea- Espírito é em si (as obras culturais)torna-se o que o Espírito é
lidade é produzida já dividida, já fraturada num polo positivo para si (compreensão de sua obra como realização sua). Esse
e num polo que nega o primeiro, essa negação sendo a luta momento final chama se filosofia. A filosofia é a Memória
mortal dos contrários, que so termina quando os dois termos da historia do Espírito. e por isso Hegel diz que ela começa
se negam inteiramente um ao outro e engendram uma sín- apenas quando o trabalho historico terminou. Ela é como o
tese. Essa é uma realidade nova, nascida da luta interna da pássaro de Minerva (a deusa da sabedoria), que so abre asas
realidade anterior. Mas essa síntese ou realidade nova tam- na hora do crepúsculo;
bém surgirá fraturada e reabre a luta dos contradìtórios, de 5) um trabalho filosofico que pensa a história como
sua negação recíproca e da criação de uma nova síntese que, reflexão. Reflexão significa: volta sobre si mesmo. Em geral,
por seu turno, já é, em si mesma, uma nova divisão interna; considera-se que somente a consciência é capaz dessa volta
em terceiro lugar, portanto, porque não pensa a sobre si, isto e, de conhecer-se a si mesma como consciên-
-
historia como sucessão de fatos dispersos que seriam uni- cia. So a consciência seria capaz de reflexão. Para Hegel, essa
ficados pela consciência do historiador, mas, sim, pensa a reflexão da consciência é apenas uma forma menor da ver-
historia como processo contraditório unificado em si mesmo dadeira reflexão, que é a do Espírito. Este exterioriza-se em
e por si mesmo, plenamente compreensível e racional. Por obras, mas e capaz de reconhecer-se como produtor delas. e
isso Hegel afirma que o real e racìonal e o racional e real. capaz de compreender-se ou de interiorizar sua criação. Lem-
A racionalidade não expulsa a contradição (não diz que ela bremos que o conceito de reflexão refere-se a um fenômeno
é impossível), mas é o movimento da propria contradrção, da natureza, isto e, à luz. Na reflexão perfeita, o raio luminoso
movimentoqueéotempo; retorna na direção da fonte luminosa, isto é, volta à sua pró-
4) um trabalho filosofico que concebe a historia como pria origem. A reflexão do Espírito é o movimento de saÍda e
historia do Espírito. Este começa exteriorizando-se ou ma- retorno a si: o Espírito emite seus raios, que o refletem, retor-
nifestando-se na produção das obras culturais (sociedade, nando a ele. Ou seja, o Espírito "sai para fora de si", criando
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a Cultura, e "volta para dentro de si", reconhecendo sua pro- de uma realidade através de mediaçÕes contraditórias. O co-
dução, fazendo com que o que ela é, em sr, seja também para nhecimento da realidade exige que diferenciemos o modo
si. Nessa medida, a historia é reflexão. E o Espírito éo Sujeito como uma realidade aparece e o modo como é concreta-
da historia, pois somente um suleito é capaz de reflexão; mente produzída. lmediato, abstrato e aparência são mo-
6) um trabalho filosofico que procura dar conta do fenô- mentos do trabalho historico negados pela mediação, pelo
meno da alienação. Em geral, considera-se que o exterior (as concreto e pelo ser. lsso significa que esses termos sâo con-
coisas naturais, os produtos do trabalho, a sociedade etc.) é traditorios e reais. Sua síntese e efetuada pelo espírito. Essa
algo positivo em si e que se distingue do interior (a consciên- síntese e o que Hegel denomina. conceito.
cia, o sujeito). Hegel mostra que o exterior e o interior são as Esses vários aspectos do pensamento hegeliano (aqui
duas faces do Espírito, são dois momentos da vida e do traba- grosseiramente resumìdos) constituem a dialetica (palavra
lho do Espírito. Essas duas faces aparecern como separadas, grega derivada de dia-logot isto é, a palavra e o pensamen-
mas essa separação foi produzida pelo proprio Espírito, ao to divididos em dois pólos contraditorios), ou seja, a historia
exteriorizar-se nas obras e ao interiorizar-se compreenden- como processo temporal movido internamente pelas divi-
do sua produção. Ora, quando a interiorização não ocorre, sÕes ou negaçÕes (contradição) e cujo Sujeito é o Espírito
isto é, quando o Sujeito não se reconhece como produtor como reflexão. Essa dialética é idealista porque seu sujeito e
das obras e como Sujeito da historia, mas toma as obras e a o Espírito e seu objeto também e o Espírito. Ora, as obras do
historia como forças estranhas, exteriores, alheias a ele e que Espírito (a Cultura), embora apareÇam como fatos e coisas,
o dominam e perseguem, temos o que Hegel designa como são ideias, pois um espírito não produz coisas nem e coisa,
alienação (palavra derivada do pronome lalino alienut que mas produz idéias e é idéia. O idealismo hegeliano consiste,
quer dizer: o outro de si mesmo, um outro que si mesmo). portanto, em afirmar que a historia é o movimento de posi-
Essa é a impossibilidade de o sujeito historico identificar-se ção, negação e conservação das idéias, e essas são a unidade
com sua obra, tomando-a como um poder separado dele, do suleito e do objeto da historia, que é Espírito.
ameaçador e estranho, outro que não ele mesmo; Vejamos como opera a dialética hegeliana tomando
7) um trabalho f ilosofico que diferencia imediato e me- um exemplo da Fìlosofìa do Díreíto, quando Hegel expoe o
diato, abstrato e concreto, aparência e ser. lmediato, abs- movimento de constituição da sociedade civil e do Estado.
trato e aparência são sinonimos; não significam ìrrealidade O Espírito começa em seu momento natural, isto é,
e falsidade, mas, sim, o modo pelo qual uma realidade se como algo dado ou imediatamente existente: trata-se da
oferece como algo dado como um fato positivo dotado de existência dos indivíduos como vontades livres que se reco-
características próprias e já prontas, ordenadas, classrf icadas nhecem como tais pelo poder que têm de apropriar-se das
e relacionadas por nosso entendimento. Mediato, concreto coisas naturais através (pela mediação) do trabalho. Assim,
e ser são sinônimos: referem-se ao processo de constituição no primeiro momento, existem os indivíduos definidos como
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a Da, aDr,
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proprietários de seu corpo e das coisas de que se apropriam. cilia os interesses dos proprietários e os deveres dos sujeitos,
A regulação das relaçÕes entre os proprietários conduz ao fazendo-os interesses coletivos da famílìa e deveres comuns
aparecimento do Direito, no qual o proprietário é deÍinido dos membros da família (deveres paternos, maternos, frater-
como pessoa livre. A pessoa é, portanto, o indivíduo natural nos e filiais). Surge uma vida comunitária e Hegel a denomj-
que é livre porque sua vontade o faz ser proprietário. As na: unidade do Espírito Subjetivo.
pessoas entram em relação por meio dos contratos (relação No entanto, a existência de múltiplas famílias reabre a
entre proprietários) e pelo crime (quebra do contrato). contradição. Essa, agora, se estabelece entre o membro da
No entanto, esses indivíduos naturais livres não são família e o não-membro da família. A luta entre as famílias
apenas proprietários. lsto é, sua vontade livre não se rela- constitui o primeiro momento da sociedade civil.
ciona apenas com as coisas exteriores (propriedade) e com A sociedade civil resolve as lutas familiares criando a
outros indivíduos exteriores (os proprietários contratantes).
diferença entre os interesses públicos e os privados, e re-
Sua vontade livre é consciente de si e f az com que cada indi-
gulando as relaçóes entre eles através do Direito (público e
víduo se relacione consigo mesmo, com sua interioridade ou
privado). A sociedade civil é a negação da família. lsso não
consciência. Esse indivíduo livre interior se chama suleito. As
significa que a família deixou de existir, significa apenas que
relaçÕes entre os sujeitos constituem a Moral.
a realidade da família não depende dela propria, mas é de-
Ora, o Direito e a Moral estão em conflito. Ou seja, os
terminada pelas relaçÕes da sociedade civil. lsso significa que
interesses do proprietário estão em conflito com os deve-
res do sujeito moral, pois o proprietário tem interesse em
o indivíduo social não se define como membro da família
(como pai, mãe, filho, irmão), mas se define por algo que
ampliar sua propriedade espoliando e desapropriando ou-
tros proprietários, tratando-os como se fossem coisas suas e desestrutura a família: as classes sociars
não homens livres e independentes. E o sujeito moral deve A sociedade civil é constituída por três classes, a primei-
tratar os demais como homens livres e independentes. Há, ra das quars se encontra ainda amarrada à família, enquanto
pois, uma contradição no interior de cada indivíduo entre a terceira já não possui qualquer relação com a vida familiar,
sua face-pessoa (proprietário) e sua face-sujeito (moral). lsto mas é inteiramente definida pela vida social. A primeira e
é, como proprretário ele se torna não moral e como sujeito aristocracia ou nobreza, proprietária da terra e que se con-
ele se torna não-proprieÌário. serva justamente pelos laços de sangue e pela linhagem (por
A resolução dessa contradição faz-se em dors momen- isso ainda está próxima da família). A terceira, que Hegel
tos: no primeiro surge a família e no segundo surge a socie- denomina classe universal, é a classe média constituída pe-
dade civil. los funcionários do Estado (governantes, dirrgentes, magis-
As indivjdualidades naturais imediatas são integradas trados, professores, funcionários públicos em geral). Entre
numa realidade nova que faz a mediação entre o indivíduo essas duas classes, existe uma, intermediária, e que é o co-
como pessoa e o indivíduo como sujeito. É a família que con- ração da sociedade civil: a classe formal, isto é, os indivíduos
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que vivem da indústria e do comércio, do trabalho proprio busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado e a ldeìa política
ou do trabalho alheio. Formam as corporaçÕes (sindicatos) e por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito. Nele
seus interesses definem toda a esfera da vida civil. Atraves harmonizam-se os interesses da pessoa (proprietário), do su-
(pela mediação) das classes sociais, a sociedade civil nega o jeito (moral) e do cidadão (sociedade e política).
indivíduo isolado (pessoa e sujeito) e o indivíduo como mem- Ora, enquanto os ideologos alemães se contentam em
bro da família, fazendo-o aparecer como indivíduo membro ridicularizar o sistema hegeliano, permanecendo presos a ele
da sociedade e pertencente a uma classe social. A unidade sem saber, Marx critica radicalmente o idealismo hegeliano
ou síntese do proprietário, do sujeito e do membro da famÍ- e por isso pode conservar sem risco muitas das contribuiçoes
lia chama-se , agora, o ctdadão. Ora, entre os cidadãos (ou
do pensamento de Hegel. Vejamos como se passa da diale-
seja, entre as classes sociais) existem conflitos e reabre-se
Ìica idealista para a materiaiista.
a contradição. Agora, a contradição se estabelece entre os
Da concepção hegeliana, Marx conserva o conceito de
interesses de cada classe social e os das outras, e entre os
interesses dos proprios membros de uma classe social. Ou dialética como movimento interno de produção da realidade
seja, ressurge, de modo novo, a contradìção entre o privado cujo motor e a contradição. Porém, Marx demonstra que a
(cada classe)e o público (todas as classes). A resolução dessa contradição não é a do Espírito consrgo mesmo, entre sua
contradição é feita pelo Estado. face subletiva e sua face objetiva, entre sua exteriorização
O Estado constitui a unidade final. Ele sintetiza numa em obras e.sua interiorização em idéias: a contradição se

realidade coletiva a totalidade dos ìnteresses individuais. fa- estabelece entre homens reais em condiçóes históricas e so-
lmiliares, sociais, privados e públicos. Somente nele o cida- ciais reais e chama-se luta de c/asses.
dão torna-se verdadeiramente real e somente nele define-se A historia não é, portanto, o processo pelo qual o EspÊ
a existência social e moral dos homens. O Estado e o EspÊ rito toma posse de sì mesmo, não ó historia das realizaçoes
rito Objetivo. do Espírito. A historia é historìa do modo real como os ho-
O Estado é uma comunidade. Mas difere da comuni- mens reais produzem suas condiçÕes reais de existência. É
dade familiar e da comunidade das classes sociais (suas cor- historia do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo
poraçÕes) porque não possui nenhum interesse partrcular, consumo direto ou imediato dos bens naturais e pela pro-
mas apenas os interesses comuns e gerats de todos" É uma criação), como produzem e reproduzem suas relaçÕes com a
comunidade universal (isto é, seus interesses não sendo par- natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e repro-
ticulares, desta ou daquela família, deste ou daquele indiví- duzem suas relaçóes sociais (pela divisão social do trabalho
duo, desta ou daquela classe, são interesses universais). O e pela forma da propriedade, que constituem as formas das
Estado não e, pois, um dado imediato da vida social, mas relaçÕes de produção). É também historia do modo como os
um produto da sociedade enquanto Espírito Subjetivo que homens interpretam todas essas relaçÕes, seja numa inter-
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pretação imaginária, como na ideologia, seia numa interpre- A análise da mercadoria revelará, por exemplo, que há
mais mercadorias do que supúnhamos à primeira vista, pois
tação real, pelo conhecimento da historia que produziu ou
um elemento fundamental do modo de produção capita-
produz tais relaçoes.
lista, o trabalhador, que aparece como um ser humano, é,
Da concepção hegeliana, Marx tambem conserva as na verdade, uma mercadoria ele vende no mercado sua
diferenças entre abstrato/concreto. imediato/mediato, apa- forÇa de trabalho.
-
recerÁer. Tanto assìm que deÍine o concreto como " unidade Por outro lado. quando compreendemos qual é a gê-
do diverso, síntese de muitas determìnaçoes", devendo-se nese ou origem da mercadoria (as mediaçÕes que a consti-
entender o conceito de determinação não como sinÔnimo tuem), compreendemos que não se trata de uma coisa tão
de conjunto de propriedades ou de características, mas como simples como aparecia, pois ela é, ao mesmo tempo, valor de
os resultados que constìtuem uma realidade no processo uso e valor de troca. Ela não e uma "coisa", mas um valor.
pelo qual ela é produzida. Ou seja, enquanto o conceito de Como valor de uso, parece valer por sua utilidade, e, como
"proprìedades" ou de "características" pressupÕe um ob- valor de troca, parece valer por seu preço no mercado.
jeto como dado e acabado, o conceito de "determinação" Ora, as análises de Marx revelam que o valor de uso é
inteiramente determinado pelas condiçoes do mercado, de
pressupóe uma realidade como um processo temporal.
sorte que o valor de troca comanda o valor de uso. Ora, o
Na Contribuíção à Crítica da Economia Polítíca e em O valor de troca não é determinado pelo preço como parece
Capital, Marx afirma que o metodo historico-dialetìco deve à primeira vista. lsto é, o valor da mercadoria nâo surge no
partir do que é mais abstrato ou mais simples ou mais ìmediato momento em que ela começa a circular no mercado e a ser
(o que se oferece à observação), percorrer o processo contra- consumida. Seu valor é produzido num outro lugar: ele é
ditorio de sua constituição real e atingir o concreto como um determinado pela quantidade de tempo de trabalho neces-
sistema de mediaçóes e de relaçoes cada vez mais complexas sário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o tempo gas-
e que nunca estão dadas à observação. Trata-se sempre de to diretamente na fabricação dessa mercadoria, mas inclui o
tempo de trabalho necessárìo para produzir as máquinas, o
começar pelo aparecersociaì e chegar, pelas mediaçÕes reais,
tempo para extrair e para transportar a materia-prima etc. E
ao ser social. Trata-se também de mostrar como o ser do so-
o que são todos esses "tempos"? São tempos de trabalho
cial determina o modo como este aparece aos homens" da sociedade. ïambém entra no preço da mercadoria, como
Assim, por exemplo, a mercadoria será considerada a parte do chamado custo de produção, o salário pago pelo
forma mais simples e mais abstrata do modo de produção tempo de trabalho do trabalhador que fabrica essa merca-
capitalista, o qual aparece ìmediatamente para nós como doria, pagamento que é feito para que ele se alimente, se
uma imensa produção, acumulação, distribuição e consumo aloje, se vista, se transporte e se reproduza, procriando filhos
de mercadorìas. para o mesmo trabalho de produzir mercadorias.

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Vemos, assim, que o valor de troca da mercadoria, o balho que não foram pagas, apesar de estarem rncluídas no
seu preço, envolve todos os outros tempos anteriores e pos- preço final da mercadoria. Essas 4 horas de trabalho não-pa-
teriores ao tempo necessário para produzi-la e distribuÊla. go constrtuem a mais-valia, o lucro do proprietário da mina
No preço da mercadoria está incluído o gasto (físico, psíqui- de Íerro ou do proprietário da fábrica de linho. Formam seu
co e econômico) para produzi-la. [la. qgo é uma coisa, mas c a p ta . { g g m d o cqp i!Al, pqjlan-te, e.. q:
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trabalho social concentrado. . go. Graças à mais-valia, a mercadoria não e um valor de uso
Cômo estabelecer o valor de troca entre um metro de ou um valor de troca qualquer, mas um valor capìtalista.
linho e um quilo de ferro? Ser "valor" é "valer por algo", Vemos, pois, que a mercadoria não e uma coisa (como
é ser equìvalente. Como estabelecer a equivalência entre o aparece), mas trabalho social, tempo de trabalho. E que não
metro de linho e o quilo de ferro? Por sua realidade ma- é qualquer tempo de trabalho, mas tempo de trabalho não-
terial são heterogêneos, por seu valor de uso tambem são pago, portanto a mercadoria oculta o fato de que há explo-
heterogêneos. Onde encontrar uma medìda comum para ração economica.
dizermos que um metro de linho equivale a um quilo de Estamos longe, agora, do aparecer social estamos
ferro? A equivalência vai ser estabelecida medindo o tem- -
diante do modo de constituição real do sistema capitalis-
po de trabalho social necessário para produzi-los. Ou seja, o ta. Passamos de algo abstrato e imediato a algo concreto e
tempo de trabalho que envolve toda a sociedade fundará o mediato: passamos da mercadoria como coisa à mercadoria
valor da troca. Vemosl poll9ntgr q!.e o_ pre-ço da mercadorig como valor de uso e de troca, destes à mercadoria como
no comércio e uma aparência, pois a determinqção Qo va; tempo de trabalho social, deste à mercadoria como traba-
lor dessa mercadoria depende do tempo de llabalho de sua lho não-pago e, portanto, à forma de relação social entre o
produção, e esse tempo envolve o dos demais trabalhos que proprietário privado dos meios de produção e o trabalhador
tornaram possível a fabricação dessa mercadoria. por ele explorado.
Ora, sabemos que o produtor da mercadoria recebe Da concepção hegeliana, Marx também conserva a afir-
um salário, que é o preço de seu tempo de trabalho, pois mação de que a realidade e historia e por isso é reflexiva, ou
este também é uma mercadorra. Suponhamos, então, que, seja, realiza a reflexão. Em outras palavras, a realidade é um
para fabricar um metro de linho e para extrair um quilo de movimento de contradiçÕes que produzem e reproduzem
ferro, os trabalhadores precisem de 8 horas de trabalho. Su- o modo de existência social dos homens, e que, realizando
ponhamos que o preço desses produtos no mercado seja uma volta completa sobre si mesma, pode conduzir à trans-
de R$ 16,00. Diremos, então, que cada hora de trabalho formação desse modo de existência social. Ora, aqui surge
equivale a R$ 2,00. Porem, quando vamos verificar qual é o um problema. Em Hegel não havia a menor dificuldade para
salário desses trabalhadores, descobrimos que não recebem considerar o real capaz de reflexão, pois o real era o Espírito,
R$ 16,00, mas, sim, R$ 8,00. Há. portanto, 4 horas de tra- o Espírito era suleito e todo sujeito era sujeito porque capaz
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52 Marilena Chauí O que é ldeologia 53

de reflexão. Mas a dialetica marxista não e espiritualista ou A dialética é materialista porque seu motor nào e o tra-
idealista, e sim materialjsta. Ora, a materia, como provam as balho do Espírito, mas o trabalho material propriamente dito:
ciências naturais, e algo inerte, constitLrído por relaçóes me- o trabalho como relação dos homens com a Natureza, para
cânicas de causa e efeito, de partes exteriores umas às outras, negar as coisas naturais enquanto naturais, transformando-
sendo inconcebível supor que haja interioridade naquilo que as em coisas humanizadas ou culturais, produtos do traba,
e material. E reflexão supÕe uma interiorização, uma volta lho. Mas o que interessa realmente a dialética materialista
sobre si e para dentro de si. Como colocar reflexão na maté- não é a simples relação dos homens com a Natureza atra-
ria? É que a matéria de que fala Marx não é a materia física ves (pela mediação) do trabalho. O que interessa é a divisão'
ou química, a coisa inerte que não possui atividade interna. social do trabalho e, portanto, a relação entre os proprios
A matéria de que fala Marx e a matéria social, isto é, as rela- homens atraves do trabalho dividido. Essa divisão começa
çoes sociais entendidas como relaçÕes de produção, ou seja, no trabalho sexual de procriação, prossegue na divisão de
como o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem tarefas no interior da Íamília, continua como drvisão entre
suas condiçÕes materiais de existência e o modo como pen- pastoreio e agricultura e entre estes e o comercio, caminha
Í sam e interpretam essas relaçòes. A materia do matenalismo I separando proprietários das condiçÕes do trabalho e traba-
{ historico-dialetico sao os homens produzindo, em condiçoes 1
lhadores, avança como separação entre cidade e campo e
I determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e I entre trabalho manual e Ìrabalho intelectual. Essas formas
lde organizarem suas vidas como homens. Assim sendo, a re- i da divisão social do trabalho, ao mesmo tempo em que de-
i flexào nào e impossivel. Basta que percebamos que o sujeito' terminam a divisão entre proprielários e não-proprietários,
lda historia, seu agente, embora não seja o Espírito, e sujeito: ] entre trabalhadores e pensadores, determinam a formação
isão as classes sociais emluta. 1 das classes sociais e, finalmente, a separação entre socieda-
As classes sociais não são coisas nem ideias, mas são de e política, isto é, entre instituiçoes sociais e Estado.
relaçÕes sociais determinadas pelo modo como os homens, O motor da dialética materialista e a forma determina,
na produção de suas condiçÕes materiais de existência, da das condiçoes de trabalho, isto é, das condiçÕes de pro-
se dividem no trabalho, instauram formas determinadas dução e reprodução da existência social dos homens, forma
da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e que é sempre determinada por uma contradição interna, isto
aquelas formas por meio das instituiçÕes sociais e políticas, é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietá-
representam para si mesmos o significado dessas instrÌuiçÕes rios das condiçÕes de trabalho e não-proprietários (servos,
através de sistemas determinados de idéias que exprimem e escravos, trabalhadores assalariados).
ì

escondem o significado real de suas relaçÕes. As classes so- Enfim, da concepção hegeliana lüarx também conserva I

: ciais são o fazer-se c/asse dos indivíduos em suas atividades o conceito de alienação, tendo como referência as análises
econômicas, políticas e culturais. de Feuerbach sobre a alienação religiosa. Para Feuerbach, a !
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(,, | 54 Marilena Chatrí O que é ldeologia 55
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:.)
religião é a forma suprema da alienação humana, na medi- 5ocledgÇ_g capltglysta não perceQem que a mercadoria, por
-,r] da em que ela é a projeção da essência humana num Ser se1 prodqlo do trabalho, exprime relaçÕes sociais determi_-
_:! superior, estranho e separado dos homens, um poder que nãdas. Percebem a mercadoria como uma coisa dotada de
"

,, - i os domina e governa porque não reconhecem que Íoi criado valor de uso (utilidade)e de valor de troca (preço) ..Elq g pç"f-
---] 3or eles próprios. ,çghidg e co-nsumida como uma simples coisa.
Todavia, Marx imprimirá grandes modificaçóes nes- Assim, em lugar de a mercadoria aparecer como resul-
' se conceito. Contra Hegel, dirá que a alienação não é do tado de relaçÕes sociais enquanto relaçoes de produção, ela
Espírito, mas dos homens reais em condiçÕes reais. Contra aparece como um bem que se compra e se consome. Apa-
Feuerbach, dirá, em primeiro lugar, que não há uma "es- rece como valendo por si mesma e em sr mesma, como se
sência humana", pois o homem é um ser historico que se fosse um dom natural das proprias coisas. Basta entrarmos
faz diferentemente em condiçoes históricas diferentes; e, em num supermercado nos sábados à tarde para vermos o espe-
segundo lugar, que a alienação religiosa não e a forma fun- táculo de pessoas tirando de prateleiras mercadorias como
damental da alienação, mas apenas um efeito de uma outra se estivessem apanhando frutas numa árvore, para enten-
alienação real, que é a alienação do trabalho. O trabalho dermos como a mercadoria desapareceu enquanto trabalho
alienado é aquele no qual o produtor não se pode reconhe- , concentrado e não-pago.

cer no produlo de seu trabalho porque as condiçoes desse E como o dinheiro também é mercadoria (aquela mer- '..
trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem cadoria que serve para estabelecer um equivalente social ge-
do proprio trabalhador, mas do proprietárro das condiçÕes ral para todas as outras mercadorias), tem início uma relação
do trabalho. Como se não bastasse, o fato de que o pro- fantástica das mercadorias umas com as outras (a mercadoria
dutor não se reconheça no seu proprio produto, nao o veja R$ 18,00 se relaciona com a mercadoria sabonete Gessy, a
como resultado de seu trabalho, faz com que o produto sur- mercadoria R$ 5.000,00 se relaciona com a mercadoria me-
ja como um poder separado do produtor e como um poder nino-que-faz-pacotes etc.). As coisas-mercadorias começam,'
queodominaeameaça. pois, a relacionarem-se umas com as outras como se fossem
A elaboração propriamente materialista da alienação sujeitos sociais dotados de vida propria (um apartamento es-
no modo de produção capitalista é feita por Marx em O Ca- tilo "mediterrâneo" vale um "modo de viver", um cigarro
pìtal. Trala-se do fetíchtsmo.da mercadorìa. vale "um estilo de viver", um automóvel zero km vale "um
Qqe 0 a mercadoria? Trabalho humano concentrado e jeito de viver", uma bebida vale "a alegria de viver", uma
não-paqo. Por depender da forma da propriedade privada calça vale "uma vida jovem" etc.). E os homens-mercadorias
capitalista, que separa o trabalhador dos meios, instrumen- aparecem como coisas (um nordestino vale R$ 20,00 à hora,
tos e condiçoes da produção, a mercadoria e uma realidade na construção civil, um medico vale R$ 2.000,00 à hora, no
social. No entanto, o trabalhador e os demais membros da seu consultório, etc.). A mercadoria passa a ter vida própria,

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56 Marilena Chauí O que é ldeologia 57

indo da fábrica à loja, da loja à casa, como se caminhasse tribuir, comerciar, acumular, consumir, investir, poupar, tra-
sobre seus proprios pés. balhar, todas essas atividades econômicas começam a fun-
: O primeiro momento do fetichismo e este: a mercado- cionar e a operar sozinhas, por si mesmas, com uma logica
ria é um Íetiche (no sentido religioso da paìavra), uma coisa que emana delas proprias, independentemente dos homens
que existe em si e por si. que as realizam. Os homens tornam-se os suportes dessas
O segundo momento do fetichismo, mais importante, operaçÕes, instrumentos delas.
l, Alienação, reificação, fetichismo: é esse processo fan-
é o seguinte: assim como o fetiche religioso (deuses, objetos,
símbolos, gestos) tem poder sobre seus crentes ou adoradores, tástico no qual as atividades humanas começam a realizar-se.r
domina-os como uma força estranha, assim também age a mer- como se fossem autônomas ou independentes dos homens
cadoria. O mundo transforma-se numa imensa fantasmagoria. e passam a dirigir e comandar a vida dos homens, sem que
Como, então, aparecem as relaçÕes sociais de tra- estes possam controlá-las. São ameaçados e perseguidos
balho? Como relaçóes materiais entre sujeitos humanos e por elas. Tornam-se objetos delas. Basta pensar no trabalho
como relaçÕes sociais entre coisas. E Marx afirma que as submetido às "vontades" da máquina regulada por um "ce-
relaçóes sociais aparecem tais como efetivamente são. Que rebro eletrônico", ou no indivíduo que, jogando na bolsa de
significa dizer que a aparência social e a propria realidade valores de São Paulo, tem sua vida determinada pela falência
social? Significa mostrar que no modo de produção capita- de um banco numa cidade de interior da Europa, de que
lista os homens realmente são transformados em coisas e as nunca ouviu Íalar.
'" coisas são realmente transformadas em "gente". Quando Marx af irma que as relaçÕes sociais capitalistas
Como efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa de- aparecem tais como sâo, que o aparecer e o ser da socieda-
, nominada força de trabalho, que recebe uma outra coisa de capitalista se identificaram, ele o diz por que houve uma
chamada salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa gigantesca inversão na qual o social vira coisa e a coìsa vrra
chamada mercadoria, que possui uma outra coisa, isto é, social. É isto a realidade caprtalista.
um preço. O proprietário das condiçoes de trabalho e dos Uma pergunta nos vem agora: por que os homens con-
produtos do trabalho passa a ser uma coisa chamada capi- servam essa realrdade? Como se explica que não percebam a
tal, que possui uma outra coisa, a capacidade de ter lucros. reificação? Como entender que o trabalhador não se revolte
Desaparecem os seres humanos, ou melhor, eles existem sob contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condi-
a forma de coisas (donde o termo usado por Lucáks: reifica- ção humana, mas ainda é explorado naquilo que faz, pois seu
ção; do latim: ret que significa coisa). trabalho não-pago (a mais-valia) é o que mantem a existência
Em contrapartida, as coisas produzidas e as relaçÕes do capital e do capitalista? Como explicar que essa realidade
entre elas (produção, distribuição, circulação, consumo) nos apareça como natural, normal, racional, aceitável? De
humanizam-se e passam a ter relaçoes sociais. Produzir, dis- onde vem o obscurecimento da existência das contradiçÕes e

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58 Marìlena Chauí O que é ldeologia 59

dos antagonismos sociais? De onde vem a não percepção da trabalho (relação de intercâmbio e de cooperação entre os
existêncra das classes sociais, uma das quais vive da explora- homens), da procriação (sexualidade e Íamília) constituem
ção e dominação das outras?.4 resposta a essas questóes nos em cada epoca o conjunto das forças produtivas que de-
conduz diretamente ao fenômeno da ideologia. terminam e são determinadas pela divisão social do traba-
lho. Essa divisão, que já se inicia na propria família, conduz
à separação entre pastoreio e agrrcultura, entre ambos e a
Nas consideruru.r roor.l'u ,o.oton'u em geral", Marx e indústria e entre os três e o comércio. Estas separaçòes con-
Engels determinam o momento de surgimento das ideologias duzem à separação entre cidade e campo, ao mesmo tempo
no instante em que a divisão social do trabalho separa traba- em que, no interior de cada esfera de atividade, novas for-
lho material ou manuaì de trabalho intelectual. Para com- mas de divisão do trabalho desenvolvem-se.
preendermos por que esta separação aparecerá como inde- A divisão social do trabalho não é uma simples divisão
pendência das ideias com relação ao real e, posteriormente, de tarefas, mas a manifestação de algo fundamental na exis-
como privilégio destas sobre aquele, precisamos acompanhar tência historica. a existência de diferentes formas da proprie-
em linhas gerais o processo da divisão social do trabalho, tal dade. rsto é. a divisão entre as condiçoes e instrumentos ou
como Marx e Engels o expóem em A ldeologia Alemã. i meios do trabalho e o proprio trabalho, incidindo, por sua
*** vez, na desigual distribuição do produto do trabalho. Numa
1! palavra: a divisão social do trabalho engendra e e engendra-
Os homens, escrevem Engels e Marx, distinguem-se da pela desigualdade social ou pela forma da propriedade.
dos animais não porque têm consciência (como dizem os A propriedade começa como propriedade tribal, e a es-
ideologos burgueses), mas porque produzem as condiçÕes trutura social é a de uma família ampliada e hierarquizada
de sua propria existência material e espiritual. São o que pro- por tarefas, funçoes, poderes e consumo. A segunda forma
duzem e são como produzem. da propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade
Essa produção das condiçÕes de existência depende de privada coletiva dos cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma,
condiçóes naturais (as do meio ambiente e as biofisiologicas por exemplo), e a estrutura da sociedade é constituída pela
do organismo humano) e do aumento da população pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos. Esta separação
procriação. Esta, além de ser natural, já é também social, permite aos senhores distanciarem-se da terra e dos ofícios,
pois determina a forma de intercâmbio e de cooperação en-
út que ficam a cargo dos escravos esta separação leva os
tre os homens, forma esta que, por sua vez, determina a senhores a viverem nas cidades, e -a partir daí se estabelece a
íorma da produção na divisão do trabalho. separação entre a cidade e o campo, da qual resultarão lutas
A produção e reprodução das condiçóes de existência sociais e políticas. A terceira forma da propriedade é a feu-
através do trabalho (relação com a natureza), da divisão dal ou estamental, e apresenta-se como propriedade privada
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ó0 Marilena Chauí O que é Ideologia ól

territorial trabalhada por servos da gleba e como propriedade pendentemente de sua vontade e de sua consciência). É o
dos instrumentos de trabalho, pelos artesãos livres ou oficiais sistema das relaçÕes de produção e de suas representaçÕes
das corporaçoes que vivem nos burgos (cidades medievais). por meio de categorias jurídicas, políticas, culturais etc.
A estrutura da sociedade cria os proprietários como nobre- A consciência, prossegue o texto de A ldeologia Alemã,'t
za feudal e como oficiais livres dos burgos, e os trabalhado- estará indissoluvelmente Iigada às condiçoes materiais dei
res como servos da terra enfeudada e como aprendizes nas produção da existência, das formas de intercâmbio e de co-l
corporaçóes dos burgos. Junto a eles, há uma figura soclal operação, e as idéias nascem da atividade material. lsso não]
intermediárra: o comerciante. As transformaçÕes dessa estru- significa, porém, que os homens representem nessas idéiaS'
tura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do a realidade de suas condiçoes materiais, mas, ao contrário,i
trabalho, dão origem à Íorma da propriedade que conhece- representam o modo como essa realidade lhes aparece na]
mos: a propriedade prrvada capitalista. Aqui a divisão socral experiência imediata. Por esse motivo, as idéias tendem ai
do trabalho alcança seu ápice: de um lado, os proprietários ser uma representação invertida do processo real, colocandol
privados do capìtal (portanto, dos meios, condiçoes e ins- como origem ou como causa aquilo que é efeito ou conse-f
trumentos da produção e da distrìbuição), que são também qüência, e vice-versa. )
os proprietários do produto do trabalho, e, de outro lado' a Assim, por exemplo, a Natureza, tal como se exprime
massa dos assalariados ou dos trabalhadores despossuídos, nas ideras da religião natural, não surge como relação dos
que dispoem exclusivamente de sua força de trabalho, que homens com um meio trabalhado por eles, mas é represen-
vendem como mercadoria ao proprietárìo do capìtal. tada como um poder separado, estranho, insondável e que
Na tdeotogta Alema, Marx expóe de modo muito bre- comanda de fora as açÕes humanas.
ve a passagem dessas formas da propriedade ou da divisão Também as relaçÕes socrais são representadas ime-
social do trabalho, cujas transformaçÕes constituem o solo diatamente pelas idéias de maneira invertida. Com efeito,
real da historia real. Nos Fundamentos para a Contrìbuição à medida que uma forma determinada da divisão social do
à Crítìca da Economia Política, Marx retoma a exposição de trabalho se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo pas-
maneira extremamente minuciosa, corrige várias das af irma- sa a ter uma atividade determinada e exclusiva que lhe é
çóes feitas na tdeologia Alema, introduz novas determina- atribuída pelo conjunto das relaçoes sociais, pelo estágio das
çóes na forma da propriedade e, sobretudo, define a relação forças produtivas e, evidentemente, pela forma da proprie-
de produção a partir do processo de constituição das forças dade. Cada um não pode escapar da atividade que lhe é
produtivas na divisão social do trabalho, introduzindo o con- socialmente imposta. A partir desse momento. todo o con-
ceito, inexrstente no texto da ldeologia Alemã, de modo de junto das relaçÕes sociais aparece nas idéias como se fosse
produção. Este não é um dado, mas uma forma social criada coisa em si, existente por si mesma, e não como conseqü-
pelas açóes econômicas e políticas dos agentes sociais (rnde- ência das açÕes humanas. Pelo contrário, as açÕes humanas

.l .D
at.t .D'D
Marilena Cha,ui O que é ldeologia ó3
62
Nasce agora a ideologia propriamente dita, isto e, o i
são representadas como decorrentes da sociedade' que é
sistema ordenado de ideias ou representaçÕes e das normas I
vista como existindo por si mesma e dominando os homens'
e regras como algo separado e independente das condiçÕes I
*S a Natureza, pelas idéias religiosas, se "humaniza" ao ser materiais, visto que seus produtores
"naturaliza"' os teoricos, os ideo- ì'
lÍdivinizada, em contrapartida a Sociedade se
Pi!ïo e. aoarece como um dado natural, necessário e eter- logos, os intelectuais -
não estão diretamente vinculados à
-
produção material das condiçoes de existência. E, sem per-
i no, nào como resuìtado da praxis humana' "Esta fixação
. ceber, exprimem essa desvinculação ou separação através
l-da atividade social esta consolidação de nosso proprio
-
produto num poder objetivo superior a nós, que escapa de
de suas idéias. Ou seja: as idóias aparecem como produzidas
somente pelo pensamento, porque os seus pensadores es-
-.!
nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz
a
,/l táo distanciados da produção material. Assim, em lugar de
nada nossos cálculos e um dos momentos fundamentais aparecer que os pensadores estão distanciados do mundo
-
do desenvolvimento historrco que até aqui tìvemos
" material e por isso suas idéìas revelam tal separaçào, o que
Ì+" "---'- aparece é que as idéìas é que estão separadas do mundo i
ï A Íorma inicial da consciência e, porlanto, a alienação'
pois os homens não se percebem como produtores da socie- e o explicam. As Ìdeias não aparecem como produtos do.
pensamento de homens determinados aqueles que estão I
dade, transformadores da natureza e inventores da relrgião' -
Íora da produção material direta
mas julgam que há um alienus, um Outro
(deus, natureza'
'\i
:, -, mas como entidades I
autonomas descobertas por tars homens.
cf'etás)que definiu e decidiu suas vidas e a forma soclal em
As idéias podem parecer estar em contradição com asl
que vivem. Submetem-se ao poder que conferem a esse Ou-
relaçÕes sociais existentes, com o mundo material dado, po-
tro e não se reconhecem como criadores dele E porque a rém essa contradição não se estabelece realmente entre as
alienação e a maniÍestação inicìal da consciência, a ideologia idéias e o mundo, mas é uma conseqüência do fato de que f
prá-
será póssível: as ideìas serão tomadas como anteriores à o mundo social é contraditório. Porém, como as contradiçòes
x6, como superiores e exteriores a ela, como um poder espi- I

reais permanecem ocultas (são as contradiçÕes entre as rela- j


ritual autônomo que comanda a ação material dos homens' çÕes de produção ou entre as forças produtivas e as relaçÕes
A divisão social do trabalho torna-se completa quando
1

sociais), parece que a contradição real é aquela entre as ideias


o trabalho material e o espiritual separam-se' e o mundo. Assim, por exemplo, f az parïe da ideologia bur- ,

Somente com essa divìsão "a consciência pode real- guesa afirmar que a educação é um direito de todos os ho-
mente ìmaginar ser diferente da consciência da práxrs exis- mens. Ora, na realidade sabemos que isso não ocorre. Nossa
tente, representar realmente algo, sem representar a/çto tendência, então, será dizer que há uma contradição entre a
idéia de educação e a realidade. Na verdade, porém, essa con-
real. Desde esse instante, a consciência está em condiçÓes
tradição existe porque simplesmente exprime, sem saber, uma
ìde emancipar-se do mundo e entregar-se à construção da
'puras"' outra: a contradição entre os que produzem a riqueza material
rteorìa, da teologia, da fìlosofia, da moral etc
\
.l .D
.raD . t.,
Marilena Chauí O que é Ideologia

oposição entre os interesses dos proprietários e há contra-


r e cultural com seu trabalho e aqueles que usufruem dessas
I riquezas, excluindo delas os produtores. Porque estes encon- dicão entre os interesses de todos os proprietários e os de
I tram-se excluídos do direito de usufruir dos bens que produ- todos os nào-proprietarios. Os conilitos (enIre proprietariosr
zem, estão excluídos da educação' que e um desses bens Em e a contradição (errtre proprietários e não-proprietários) apa-
geral, o pedreiro que faz a escola e o marceneiro que faz as irecem para a corìsciência dos sujeitos sociais como se fossem
'- , èarteiras, mesas e lousas são analfabetos e não têm condiçÕes ,. iconflitos entre o interesse particular e o interesse comum ou
i de enviar seus filhos para a escola que foi por eles produzida' lgeral. Na realidade, porem, há antagonismos entre classes
contradição entre a idéia . isociais
particulares, pois onde houver propriedade privadat
.' Essa é a contradição real, da qualeauma socìedade de maioria ,,{não pocie haver interesse social comum
de "dìreìto de todos à educação" I \
IlÉjustamente
analfabeta é apenas o efeito ou a conseqÜência. clesta contradiçào entre o interesse par-
-; ,,": ticular e o suposto interesse coletivo que este último toma,
Em suma, Engels e Marx consideram que os três as-
' ripectos que são condiçÕes para que hala historia força na qualidade de fstado, uma forma autônoma, separada dos
u: - en-
podem reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na
de produção, relaçÕes sociais e consciência
-
trare efetivamente entram em contradição como resultado qualidade de comunidade ilusoria, mas sempre sobre a base
I da divisão social do trabalho material e intelectual, porque, real dos laços existentes em cada conglomerado familiar ou
tribal
'agora, otrabalhoe afruição, a produçãoe o consumoapa- - tais como laços de sângue, linguagem, divisão do
,ã..t .oto realmente são, isto é, cabendo a indrvíduos di- trabalho ern maior escaia e ouÌíos interesses e, sobretudo,
' ferentes. lnstalou-se para a própria consciência imediata dos como desenvolveremos adrante, baseada nas-, classes sociais já
homens a percepção da desigualdade social: uns pensam, condìcionadas pela divisão social do trabalho, que se isolam
".1 outros trabalham; uns consomem, outros produzem e não em cada um desses conglomerados humanos e entre as quais
podem consumir os produtos de seu trabalho. há uma que domina as outras todas (...) O poder social, isto
é, a força produtiva unificada multiplicada, que nasce da coo-
,r Outra contradição maìs aguda ainda surge: a contradi-
peração de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho,
ção entre os interesses de um ìndivíduo ou de uma família
aparece para esses indivíduos não como seu próprio poder
particular e os interesses coletivos. No entanto, diferente-
unificado, mas como uma Íorça estranha situada fora deles,
mente de Hegel, Marx e Engels demonstram que tais inte-
cuja origem e culo destino ignoram e que, pelo contrário, per-
resses não são realmente coletivos ou comuns, mas apenas o
corre agora uma série particular de fases e de estágios de de-
sistema socìal de dependência recíproca dos indivíduos entre
senvolvimento, rndependente do querer e do agir dos homens
os quais o trabalho, os meios e condìçÓes do trabalho e os
e que, na verdade, dirige esse querer e esse agir".
produtos do trabalho estão desigualmente distribuídos'
I
-- Assim como da divisão entre trabalho material e intelec-
Existem conflitos entre os proprietários e existem con-
tradiÇÕes entre os proprietários e os não-proprietários' Há , tual nasce a suposição de uma autonomia das ideias, como se

{D .D
.D'D . rq,
6ó Marilena Chauí O que é ldeologia ó7

fossem ou como se tivessem uma realìdade propria indepen-l particulares, ele precisa aparecer como uma forma muito es-
dente dos homens, assim também da separação entre os ho-r pecial de dominação: uma dominação rmpessoal e anônima,
mens em classes sociais particulares com interesses particulares a dominação exercida através de um mecanismo impessoal
contradìtórìos nasce a idéia de um interesse geral ou comum que são as leis ou o Direito Clvil. Qr_a_ças àS.leis. o Estado apa-
que se encarna numa instituìção determinada: o Estado , rece como um poder que não pertence a ninguém. por isso, '
O Estado aparece como a realização do interesse geral diz N/arx, em lugar de o Estado aparecer como poder social .
,(por isso Hegel dizia que o Estado era a universalidade da1 unifrcado, aparece como um poder deslrgado dos homens.
'vida social), tnut, na realidade, ele e a forma pela qual osi r
po isSo-, 1.g.T.QÉl:tt... !u g-g 1 d g. _s-_ej .di ri g i d o pe os h o m e n s, Ì
I

'interesses da parte mais Íorte e poderosa da sociedade (a' aparece como um poder""m"
cula origem e-finalidade permane-
classe dos proprietários) ganham a aparência de interessesi cem secretos e que dirige os homens. Enfim, como o Estado
de toda a sociedade
:
ganhou autonomia, ele parece ter sua própria historia, suas
O Estaclo não é um poder distinto da sociedade, que aì fases e estágios proprios, sem nenhuma dependência da his-
ordena e regula para o interesse geral definido por ele pro-' tória social efetiva.
rprio enquanto poder separado e acima das particularìdadesi Está aberto o caminho para a ideologia política quel
,dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interessesi explicará a sociedade atraves das formas dos regimes políti-,
-, iparticulares da classe que domina a sociedade. Ele exprime; cos (aristocracia, monarquia, democracia, tirania, anarquia)
jna esfera da política as relaçÕes de exploração que existem i e que explicará a historia pelas transÍormaçÒes do Estado
esfera econômica. (passagem de um regime político para outro).
r':-lna O Estado é uma comunidade ilusoria. lsso não quer dìzer
\
A divisão social, que separa proprretários e destituídos,i
i

,que seja falso, mas, sim, que ele aparece como comunidade exploradores e explorados, que separa intelectuais e traba-'
I porque é assim percebido pelos sujeitos socìais. Estes preci- lhadores, sociedade civil e Estado. interesse privado e inte-
', sam dessa Íigura uniÍicada e unificadora para conseguirem resse geral, é uma situação que não será superada por meioi
rtolerar a exìstência das dìvìsÓes sociais, escondendo que tais de teorias, nem por uma transformação da consciência, visto
, divisÒes permanecem através do Estado. O Estado é a
expres- que tais separaçÕes não foram produzidas pela teoria nem
rsão
polÍtica da sociedade civil enquanto dividida em classes' pela consciência, mas pelas relaçoes sociais de produção e,
f ruao e, como imaginava Hegel, a superação das
contradiçÓes, suas representaÇÕes pensadas. j
i mas a vitoria de uma parte da sociedade sobre as outras' Assim, a transformação historica capaz de ultrapassar
Como, porém, o Estado não poderia realizar sua fun- essas divisóes e as contradiçÕes que as sustentam depende I
(em benefício
ção apazìguadora e reguladora da sociedade de pressupostos (condiçÕes ou pré-condiçÕes) pratìcos, e não i
de uma classe) se aparecesse como realização de interesses teóricos. Esses pressupostos ou pré-condiçoes práticos são: _
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.D.'
Marilena Chaui O que é ldeologia 69

p 1) surgimento da massa da humanidade como mas- dominadores que os compeliam a agrr. Com a revolução
co-
sa"inteiramãnte destituída de propriedade e em contradição munista, os homens saberão que fazem a história, mesmo
com um mundo da cultura e da riqueza produzido por essa que não tenham escolhido as condiçÕes em que
afazem.
massa, que se encontra excluída da abundância por ela
pro- Sem as condiçoes materiais da revolução, é lnútil a
duzida; à fundamenïal, diz Marx, que haja total desenvolvì- ideia de revolução, "já proclamada centenas de vezes,,.
Mas
mento das forças produtivas (capitalistas), isto é, que tenha sem a compreensão intelectual dessas condiçoes materiais,
sido produzido um mundo cultural e material abundante' a revolução permanece como um horizonte àesejado, sem
pois, sem isso, a massa revolucionária teria de recomeçar encontrar práticas que a efetivem.
o processo historico partindo da carêncìa e da escassez, da - A hrstoria nâo e o desenvolvimento das idéias, mas o dasl
tItorças
luia pela sobrevivência material rmediata, e seria obrìgada a produtrvas. Nâo é a ação dos Estados e dos governan_
repor as divisoes e contradiçÕes que pretendia superar; ,tes, mas a luta das classes. Não é historia das muàancas
de
, regrmes polÍticos, mas a das relaçÕes de produçào
È*2) que a divisão entre os proprietários privados das con- õr. ãã"r_,
diçÕes de produção e a massa destìtuída seja um fenÔmeno minam as forças políticas da dominação. Assim senáo, qual
é
universal, de modo que, quando a massa destituída de um opalcoondesedesenvolveahistoria?Asociedadecivil.
país ìniciar sua revolução, seja acompanhada pela revolução A sociedade civil não é o aglomerado conflitante de fal .',
de todas as massas do planeta; em outras palavras, é
preciso mílias e de corporafoes (sindicaór, trrrtãi, .rrïË'r, ni-,J,:rni,
que o modo de produção capitalista tenha se tornado um ollgopolios) que serão reconciliados graças à ação regulado_
processo historico mundial ou universal para que uma revo- ra e ordenadora do Estado enquanto expressão do interesse
iuçao plena possa efetuar-se. O capitalismo como mercado geral. sociedade civil é o sistema de reiaçoes
{ sociais que se
núndiat e, portanto, o pressuposto prático do comunismo orga,nizam na produção econômica, nas instituiçÒes sociais
como sociedade na qual os indivíduos exercerão o contro- g políticas, e que são representadas ou interpretaàas por
um
le consciente dos poderes que parecem dominá-los de fora conjunto sistemático de idélas jurídicas, religiosas, políticas,
(Natureza, Mercado, Estado). morais, pedagogicas, cientÍficas, artÍsticas, frlosóficas.
A massa dos explorados enfim compreenderá que esses A sociedade civil é o processo de constituição e de reposi_
poderes foram produzidos pela práxissocial e que, por serem ção das condições materrais de existência, isto ó, da produção
produtos da atividade historica dos homens em condiçÓes de-
(trabalho, divisão do trabalho, processo de trabalho,
forma
terminadas, também podem ser destruÍdos pela práïica social de dlstribuição e de consumo, circulação, acumulaÇão
e con-
dos homens em condiçÕes determinadas. Até agora os ho- centração da riqueza), por meio das quais são engendradas
mens fizeram a historia, mas sem saber que aíaziam, pois, ao as classes sociais (exploradores e explorados. isto e, a
contra_
fazê-ìa em condiçÕes determinadas que não foram escolhìdas dição entre proprietários e não-proprietários). A relação
entre
por eles, tomavam tais condiçÕes como poderes exterìores e as classes assim produzidas é contraditórÍa porque a
àondição
.D .l)
.r.D .D.a
O que é ldeolo.qia
7A Marilena Chaui

pnvados,e a cução, derxando esta ultima para os trabalhadores) e o modo


necessária e suficiente para que haja proprìetárìos de apropriar-se dos produtos (pela exploração da mais-valia
exìstêncìa da clas-
existêncìa dos não-proprietários !Ou seja, a e pela exclusão dos trabalhadores do usufruto dos bens que
;;;;; proprietários depende inteiramente da existência da
, produziram), até as normas do Direito e o funcionamento
.tutt. dos não-proprietárros, e esta última nasce do processo
todos os
do Estado. Ela está presente tambem em todas as açÕes dos
pelo qual alguns proprietários conseguem expropriar trabalhadores da cidade e do campo para diminuir a do-
sociedade (es-
,

outros e conseguem reduzir todo o restante da minação e a exploração, indo desde a luta pela drminuição
Em uma
cravos, servos, artesãos) à condição de assalariados da jornada de trabalho, o aumento de salários, as greves, a,
da sociedade civil capitalista' aÍirmar que a
putuutá, no caso criação de srndicatos livres, até a formação de movimentosj
depende da
existência dos proprietários (da classe capitalista) políticos para derrubar a classe dominante. A luta de classes
assalariados)
exploração dos não-proprietárìos (trabalhadores e o quotidiano da sociedade civil. Está na polÍtica salarial. -r
o seguinte: o capital-é o trabalho não-
signiÍica simplesmente sanitária e educacronal, está na propaganda e no consumon
Temos uma contradição na medida em
i;;; a^ mais-valia). estánasgreVeSenaseleiçoes,estánasrelaçoesentrepais
quÉaiealidadedocapitaléanegaçãodotrabalho. e frlhos, professores e estudantes, policiais e povo, luízes e,3. .
I A sociedade cìvil realiza-se através de um conjunto de
ì Íeu5,
reus, patrÕes empregados.
;rdtÍoes e errÌpregaoos. I, ,r,
p-ermitir a reprodução
,'inrtitriçÕu, sociais encarregadas de ' Se a historia é historia da luta de classes, então a socie-
u i.potição das reìaçÓeisociais - família',escola'
ig!t1::'
' à,
polícia,'putiidot políticos, imprensa, meios de informação'
dade civil não é A Socredade, isto e, uma especie de grande.

Ãugitttutrtus, Estado etc. Ela é tambem o lugar onde


essas
indivíduo coletivo, um organismo feito de partes ou de orgãos \
funcionais que ora estão em harmonia, ora estão em conflito, \
pensados ou
instituiçOes e o conjunto das relaçoes sociaìs são ora estão bem regulados, ora estão em crise. A sociedade ci- ' .
jurídicas' pedagogicas'
iniÀipt.tuOos por meio das idéias - vil concebida como um indivíduo coletivo e uma das grandes l.
rotuit, religiosas, científicas, filosoficas, artísticas' políticas
idéias da ideologia burguesa para ocultar qr. u ,oli.dade.. ì
-r etc. . civil e a produção e reprodução da divisão em classes e e
Produzida pela divisão social do trabalho,
que a cinde
(omo luta das classes. lsso significa que a sociedade não pode ser
em classes contraditórìas, a sociedade cìvil realtza-se o sujeito da história, criando-se e recrrando-se a si mesma
luta de classes. A luta de classes não é apenas o confronto
em passes de mágica. A historia são "os indrvíduos fazendo- i
os proce-
armado das classes, mas está presente em todos se uns aos outros, tanto física quanto espiritualmente,,. Esse
de'
áiÀ"nto, instìtucionais, políticos, policiais, legais' ilegais "fazer-se-uns-aos-outros" éapraxissocialesrgnifica: I

para manter sua domina-'


lue a classe dominante lança mão trabalho i 1) que as classes sociais não estão feitas e acabadas
anizar o processo de
ção, indo desde o modo deãrg pelasociedade,maSestãosefazendoumasàsoUtra5porSUa
truóurunOo os trabalhador., ún'
dos outros e sgOarln{o a l
ação, e esta ação produz o movimento da sociedade civil;
eíera de decisão e de controle do trabalho da esÍera de exe- I !
.D
tD r tr,
.,rtt,
.'i', ,-i -. '')
,...j,.,
".
72 Marilena Chauí O que é Ideoloeia 73

2) que o conjunto das práticas sociais, tanto materiais A ideologia não e um processo subjetivo consciente,l
quanto espirituais, fazendo os indivíduos existirem como se- mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produ-{
res contraditorios, Íaz deles membros de uma classe soctal, zido pelas condrçÕes objetivas da existência socral dos in-
isto e, participantes de formas diferenciadas de existência so- divíduos. Ora, a partir do momento em que a relaçào do i ,
cial, determinadas pelas relaçoes econÔmicas de produção, indivÍduo com sua classe e a da submissão a condiçÕes de
pelas instituiçÕes sociopolíticas e pelas ideìas ou representa- rvida e de trabalho pre-fìxadas, essa submissão Íaz com que
çOes. Q Slrj_eìto da história. portanto, são as classes
socìais' cada indivíduo não possa se reconhecer-como fazedor de
Ora, Marx e Engels mostram que as relaçÕes dos indi- lsua própria classe. Ou seja, os indivíduos não podem perce_
víduos com sua classe são relaçÓes alienadas. Ou seja, assim ;ber que a realidade da classe decorre da atividade de seus
como a Natureza, a Sociedade e o Estado aparecem para a membros. Pelo contrário, a classe aparece como uma coisa i ,
consciência imedrata dos ìndivíduos com os poderes separados em si e por si e da qual o indivíduo se converte numa parte, .
e estranhos que os dominam e governam, assim também a re- quer queira, quer não. É uma fatalidade do destino. A classe j
laçáo dos indivíduos com a classe lhes aparece imediatamente começa, então, a ser representada pelos indivrduos como 1

como uma relação com algo já dado e que os determina a algo natural (e não historico), como um fato bruto que os "-
ser, agir e pensar de uma Íorma fixa e determinada. A classe domina, como uma "coisa" que vivem. A ideologia burgue- i..\,.
ganha autonomia com relação aos indivíduos, de modo que, sa, através de uma ciêncra chamada Sociologia,iransfo-rma j
em lugar de aparecer como resultante da aÇão deles, aparece em idéia científica ou em objeto cientrfico eisa ,,coisa,,de- ,\
de maneira invertida, ìsto é, causando as açoes deles nominada "classe socìa1", estudando-a como um fato e não
"A classe se autonomiza em face dos indrvíduos, de como resultado da ação dos homens
sorte que estes Últimos encontram suas condìçÕes de vida A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá
preestabelecidas e têm, assim, sua posição na vida e o seu produzir idéias que confirmem essa alienação, fazendo, por
desenvolvimento pessoal determinados pela classe Tornam- exemplo, com que os homens creiam que são desiguais por
se subsumìdos a ela. Trata-se do mesmo ÍenÔmeno que o natureza e por talentos, ou que são desiguais por deselo pro-
da subsunção dos indivíduos isolados à dìvisão do trabaìho, prio, rsto e. os que honestamente trabalham enriquecem, e
e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se supera a os preguiçosos empobrecem. Ou então faz com que creiam
propriedade privada e o proprio trabalho. Indicamos várias que são desiguais por natureza, mas que a vida social, per- ,

vezes que essa subsunção dos indivíduos à classe determi- mitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances
na e se transÍorma, ao mesmo tempo, em sua subsunção a de melhorar ocultando, assim, que os que trabalham não
todo tipo de representaçoes." são senhores -de seu trabalho e que, portanto, suas ,,chances
Essa última frase de Marx e de Engels é fundamental de melhorar" não dependem deles, mas de quem possui os
para compreendermos a relação entre alienação e ideologia' meios e as condiçóes do trabalho. Ou, ainda, faz com que - ì

.tr).l dD
.D'D
74 Marilena Chaui O que é ldeologia

Com isso, Marx e Engels dão à teoria um sentido intei-


\os homens creiam que são desiguais por natureza e pelas] ,

lel e peranÏe
iguais perante a Iei
que são iguats perante ramente novo enquanto crítica revolucionária: a teoria não
icondiçÕes sociais, mas
icondiçoes I

io Estado, escondendo que a leifoifeita pelos dominantes elj


) E está encarregada de "conscientizar" os indivíduos, nâo está;
j
o Estado e instrumento dos dominantes. encarregada de criar a consciência verdadeira para opô-la
fiue -
l-t---
à consciência falsa, e com isso mudar o mundo. A teoria
l

,' Marx e Engels insistem em que não devemos tomar


está encarregada de desvendar os processos reais e histo-
I o problema da alienação
como ponto de partida necessá-:
para a transÍormação historica. Ou seja, não devemos i ricos enquanto resultados e enquanto condiçoes da prática
I rio
alienação, haja: humana em situaçÕes determinadas, prática que dá origem
/utp.tut que, atraves da simples crítica da à existência e à conservação da dominação de uns poucos
I uma modificação na consciência dos homens e que, graças
sobre todos os outros. A teoria está encarregada de apontar
a essa modificação, que é uma mudança subjetiva, haverá i
os processos objetivos que conduzem à exploração e à domi- I
uma mudança objetiva. lnsistem em que a alienação e um i
fenômeno objetivo (algo produzido pelas condiçÕes reais de I nação, e aqueles que podem conduzir à liberdade.
existência dos homens)e não um simples fenÔmeno subjeti-; Percebemos, então, que a teoria ao contráno da
vo, isto é, um engano de nossa consciência. ideologia não está encarregada de-tomar o lugar da
r
-
prática, fazendo a realidade depender das idéias. Também
A alienação é um processo ou o processo social comor
um todo. Não é produzida por um erro da consciência que não está encarregada de guiar a prática, fazendo com que Ì
se desvia da verdade, mas é resultado da propria ação social
a atividade historica dependa da consciência "verdadeira".
E também não está encarregada de se rnutilizar enquanto
dos homens, da propria atividade material quando esta se
separa deles, quando não a podem controlar e são ameaça- teoria para valorizar apenas a prática, visto que a alienação:
prática reproduz a prática alienada.
ido, . gou.tnados por ela. A transformação deve ser simulta- I

q p1állca d.os homens precisa A- felaçã-g-en-tfe teolq 9 prática é revolucionária porque


lneamãnte subjetiva e objetiva:
. ser diferente para que suas idéias sejam diferentes. é dialética. Vimos que a dialética é o movimento das con-
"Todas as formas e todos os produtos da consciência tradiçÕes e que a contradição é a existência de uma relação
não podem ser dissolvidos por força da crítica espìrìtual (como de negação interna entre termos que só existem graças a
pretendÌam os ideologos alemães), pela dissolução dos fan- essa negação. Que significa dizer que a relação entre teoria e
tasmas por ação da 'autoconsciência' ou pela transformação prática é dialética e não ideologica (como aquela relação que
dos 'fantasmas', dos 'espectros', das 'visÕes' (maneira pela mostramos ser feita pelos positivistas)? A relação entre teo-
qual os ideologos alemães descreviam a alìenação) So po- ria e prática é uma relação simultânea e recíproca, por meio
dem ser dissolvidos pela derrocada prática das relaçÓes reais da qual a teoria nega a prática enquanto prática imediata,
das quais emanam essas tapeaçoes idealistas." Não é crítica, rsto é, nega a prática como um fato dado, para revelá-la em
suas mediaçóes e como práxís social, ou seja, como ativida-
Ws, mqs a revolução, a força motriz da historia".
I j:-" j .D
.;?, .D'D
76 Marilena Chauí
O que é ldeologia 77
'
de socialmente produzida e produtora da existência social. A lutas teóricas em geral, e vê-se obrigada a compartilhar, em
teoria nega a prática como comportamento e ação dados, cada época, a ìlusão dessa epoca. por exemplo, se uma época
mostrando que se tratam de processos historicos determina- imagina ser determinada por motivos puramente 'políticos,
dos pela ação dos homens que, depois, passam a determinar ou 'religiosos', embora a 'política' e a 'religião'sejam apenas
suas açÕes. Revela o modo pelo qual criam suas condiçÕes de formas aparentes de seus motivos reais, então o historiador
vida e são, depors, submetidos por essas proprias condiçÕes. dessa época considerada aceita essa opinìão. A'imaginação,,
A prática, por sua vez, nega a teoria como um saber a'representação' que homens historicamente determinados
separado e autônomo, como puro movimento de idéias se fizeram de sua práxìs real transforma-se, na cabeça do histo-
produzindo umas às outras na cabeça dos teóricos. Nega a riador, na única força determinante e ativa que domina e de-
, teorìa como um saber acabado que guiaria e comandaria de termina a práxis desses homens. euando a forma sob a qual
fora a ação dos homens. E negando a teoria enquanto saber se apresenta a divisão do trabalho entre os hindus e entre os
separado do real que pretende governar esse real, a prática egípcios suscita nesses povos um regrme de castas proprio de
faz com que a teoria se descubra como conhecimento das seu Estado e de sua religião, o hjstoriador crê que o regime
condiçóes reais da prática existente, de sua alienação e de de castas é a força que engendrou essa forma social. Enquan-
sua transformação. Por isso, Marx e Êngels afirmam que co- to os franceses e os rngleses se atêm à ilusão polÍtica (isto é.
nhecem um único tipo de saber: a ciência da historia. tomam as formas e forças polÍticas como determinantes do
"Toda concepção historica, até o momento, ou tem processo historico), o que está certamente mais próximo da
omitido completamente a base real da historia (forças de realidade, os alemães movem-se na esfera do 'espírito puro,
produção, capitais, divisão socral do trabalho, propriedade, e fazem da rlusão religiosa a força molriz da história.,,
formas sociais de intercâmbio que cada geração encontra Uma vez postas como forças historicas motrizes aque-
como produto da geração precedente e que a atual repro- las forças (políticas, religiosas, culturais etc.) que, na verdade,
duz e transforma, alterando a forma da luta de classes), ou são determinadas pelas forças reais, todo o processo histori-
a tem considerado algo secundário, sem qualquer conexão co fica invertido ou de ponta-cabeça. Assim, acontecimentos
com o curso da historia. lsso faz com que a história deva historicos posteriores são convertidos na "finalidade', da his-
sempre ser escrita de acordo com um critério situado fora tória anterior. É o que ocorre quando se explica a descoberta
dela. A produção da vrda real aparece como algo separado da América como um acontecimento que teve por finalidade
da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isso, auxiliar o surgimento da Revolução Francesa. Ou quando se
a relação dos homens com a Natureza é excluída da Historia, explica o episodio da lnconfidência Mineira como tendo a
o que engendra a oposição entre Natureza e Hrstoria. Conse- finalidade de preparar o da lndependência.
qüentemente, tal concepção apenas vê na Historia as açÕes Na medida em que as forças reais, que explicam o pro-
políticas dos Príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as cesso de surgimento de um acontecrmento, permanecem ig-
.l rl
.D.D r tr,
78 Marilena Chauí O que é ldeologia ,,
,
noradas ou escondidas, .o historiador-ideologo inventa cau- Se a historia é o processo prático pelo qual homens de-
sas e finalidades que acabam convertendo a história numa terminados em condiçÕes determinadas estabelecem relaçÕes
entidade autônoma que possui seu próprio sentido e cami- sociais por meio das quais transformam a Natureza (pelo tra-
balho). se dividem em classes (pela divisão social do trabalho,
nha por sua própria conta, usando os homens como seus
que determina a existência de proprietários e de não-proprie-
a ìnstrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da realidade
tários), organizam essas relaçoes através das instituiçÕes e re-
\. histOrica e dìante da ìdeìa da historia.
presentam suas vidas atraves das idéias, e se a historja e da
É assim, por exemplo, que a ideologia burguesa tende
luta de classes, luta que fica dissimulada pelas idéias que re-
a explicar a historia atraves da ideia de progresso, isto e, de presentam os interesses contraditorios como se fossem inte-
'
, um processô contínuo de evolução que vai rumo ào melhor resses comuns de toda a sociedade (atraves da ideologia e do
-- e ao que é superior. Como a burguesia se vê a si mesma Estado), então a historia é também o processo de dominação
como uma força progressista, porque usa as técnicas e as ci- deumapartedasociedadesobretodasasoutras.
ências para um aumento total do controle sobre a Natureza I lsso significa que, em termos do materialismo histórìco '
e a sociedade, e julga que esse domínio das forças naturais e ie dialético, e impossível compreender a origem e a função da
sociais é o progresso e algo bom, considera que todo o real ; ideologia sem compreender a luta de classes, pois a ideologia
se explica em termos de progresso. O historiador-ideologo i e um dos instrumentos da dominação de classe e uma das '

constrói a ìdéia de progresso historico concebendo-o como I formas da luta de classes. A ideologia é um dos meios usados ,

a realização. no tempo, de algo que já exìstia antes de for- , pelos dominantes para exercer a dominação, Íazendo com
ma embrionária e que se desenvolve até alcançar seu ponto que esta não seja percebida como tal pelos dominados" l

final necessário. Visto que a finalidade do processo já está


dada (isto é, já se sabe de antemão qual vai ser o Íuturo), e :força quase impossível de remover, decorre dos segutntes
visto que o progresso é uma "lei" da historia, esta irá alcan- ,' r' aspectos: l

çar necessariamente o fim conhecido. Com isso, os homens ' 1) o que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de .

tornam-se instrumentos ou meios para a "historia" realizar ,' : que as idéias existem em si e por si mesmas desde toda a eter- :

seus fins proprios, e são justificadas todas as açÕes que se . nidade, e a separação enlre Lrabalho material e trabalho inte- '
realizam "em nome do progresso". lectual, ou seja, a separaçáo entre trabalhadores e pensadores. r

Dessa maneira, não só os acontecimentos históricos , Portanto, enquanto esses dois trabalhos estiverem separados,
são explicados de modo invertido (o fim explica o começo), i enquanto o trabalhador for aquele que "não pensa" ou que,
mas tal "explicação" ainda permite que a classe dominante i "não sabe pensar", e o pensador for aquele que não trabalha,
justifique suas açÕes, fazendo-as aparecer como as "razões j a ideologia não perderá sua existência nem sua função; l

da historra". Atribui-se à historia uma racionalìdade que é i 2) o que torna objetivamente possível a ideologia e o
apenas a legitimação dos dominantes. I fenômeno da alienação, isto e, o fato de que, no plano da
.l
a ta,
i .jl, ,'t ''
Marilena Llhauí O que é ldeologia B]

experêncja vivida e imediata, as corìdiçÕes reais de exrstên-r Assim, por exemplo, na ideologia burguesa, a familia I

cra socral dos homens não lhes apareçam como produzidas não é entendida como uma relação social que assume for- j

ipor eles, mas, ao contrário, eles se percebanì produzidos por mas, funcÕes e sentidos diferentes tanto em decorrência das
tars condiçÕes e atribuam a origem da vida social a forças ig- ;condiçÕes históricas quanto em decorrência da situação de
noradas, alheias as suas, superiores e incìependentes (deuses, cada classe social na sociedade. pelo contrário, a família é
1
,Natureza, Razão, Estado, destino etc ), de sorte q,Je as rdeias
r representada como sendo sempre a mesma (no tempo e para
quotidìanas dos homens represenïern a realidade de modo in-
todas as classes) e, portanto, como uma reaiidade natural
vertido e sejam conservadas nessa inversão, vindo a constituir (biologica), sagrada (desejada e abençoada por Deus), eterna
os pilares para a construção da ideoÍogia. Portanto, enquanto
(sempre existiu e sempre existirá), moral (a vida boa, pura,
não houver um conhecimento da historia real, errquanto a
normal, respeitada) e pedagogica (nela se aprendem as re-
teoria não mostrar o significado cia prática imediata dos ho-
gras da verdadeira convivência entre os homens, cout o ârnot-
mens, enquanto a experiência comum de vida ïor mantida r

dos pais pelos filhos, com o respeito e temor dos filhos pelos
sem crítica e sem pensamento, a ideolcgia se mantera;
pais, com o anror fraterno). Estamos, pois, diante da rdeia da
3)o que torna possívela ideologia é a luia de classes, a
Íamília e não dianie da realidade histórico-social da família
dominação de urna classe sobre as outras. Porérn, o que faz
da ideologia uma Íorça quase impossível de ser destruída é
o fato de que a dominação reai e justamente aquilo que a
ideologia tem por finalidade ocultar'. Em outras paiavras, a
ideologia nasce para fazer com que crs homens creiam que
lsuas vidas são o que são enn decorrência da ação de cer-
Itas entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a
Ciência, a Sociedade, o Estado), que existem em si e por si
e as quais e legítimo e legal que se submetam. Ora, como
a experiência vivida imediata e a alienação confirrnam tais
ideias, a ideologia simplesmente cristaliza em "verdades" a
visão invertida do real. Seu papei e f azer rorn que no lugar
dos dominantes apareçam icléias "verdacieiras". Seu papel é .1.ì{,1;:ì. ìi ì,
o de fazer com que os homens creiarn que tais idéias repre- ': :$*
sentam efetivamente a realidade. E, enfim, tarnbem e seu tì,.

lPapel fazer com que os homens creiam que essas ideias sáo
rautônomas (não dependem de ninguém) e iepresentam rea- .l::i ffi
ilidades autônomas (não Íoram feitas por ningLrenr) : mundo dos homer ìS no rerno dos deuses

eD
qsirS {S
€ p(,
B2 Marrlena Chauí O que é ldeologia 83
Ì

Ou, qntqo, quando se diz que o trabalho dignifica o ho-.I e da dominação de uma classe por outra. Ora,-a _classe que
mem e não se analisam as condiçóes reais de trabalho, que explora economicamente só poderá manter sús privilégtos
brutalìzam, entorpeèem, exploram certos homens em bene- i \ _s.-e
dory1na1 politicamentg-e, pgrtanto, Se dispuser de instru-
fício de uns poucos. Estamos diante da ideia de trabalho e ,
f mentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o
não diante da realidade historico-social do trabalho. \
Estado e a ideologia.
Ou, então, quando se diz que os homens são livres por '
l/
Através do Estado, a classe dominante monta um apa-
natureza e que exprimem essa liberdade pela capacidade de relho de coerção e de repressão social que lhe permite exer-
escolher entre coisas ou entre situaçóes dadas, sem que se cer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-
analise quais coisas e quais situaçoes são dadas para que os se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o
homens escolham. Quem dá as condiçÕes para a escolha? Direrto, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as
Todos podem realmente escolher o que desejarem? O nor- relaçoes sociais em proveito dos dominantes. Atraves do Qi;
destino, vítima da seca e do proprietário das terras, realmen- r.eito, o Estado aparece como legal, ou seja, como "Estado
te "escolhe" vir para o sul do país? Escolhe viver na favela? de direlto". O papel do Direito ou das leis é o de fazer com
O peão metalúrgico "escolheu" livremente Íazer horas ex- que a dominação não seja tida como uma violência, mas
tras depois de 12 horas de trabalho? A menina grávida que como legal, e por ser legal e não-violenta deve ser aceita. A
teme as sançÕes da família e da sociedade "escolhe" fazer lei é dir:eitq para o dominante e dever para-o dominado. Ora,
um aborto? A deJinição da liberdade como igual direito à se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa realidade
escolha é a Ídeia buçuesa dà liberdade e naó a realidade real, isto e, como instrumentos para o exercício consenti-
historico-social da liberdade. do da violência, evidentemente ambos não seriam respeita-
dos, e os dominados se revoltariam. A função da ideologia
; Drssemos que a ideologia é resultado da luta de clas-
I ses e que tem por função esconder a existência dessa luta.
i Podemos acrescentar que o poder ou a eficácia da ideologia
\ aumentam quanto maior for sua capacidade para ocultar a
\origem da divisão social em classes e a luta de classes.
Vejamos com detalhe esse processo.

A divisão social do a,r;r;", ao separar os homens em


proprietários e não-proprietários, dá aos primeiros poder so-
bre os segundos. Estes são explorados economicamente e
dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais
.l .l
.tt.D aaaD
84 Marilena Chauí O que é ldeologia B5

consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal A ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe do-
à,pàreça para os homens como legitimo, isto é, como justo minante tornam-se ideras de todas as classes sociais, tornam-se
e bom. Ai_litn, a ideologia substitui a realidade do Estado rdeias domrnantes. E esse processo que nos interessa agora.
pela Ìdéia do Estado a dominação de uma classe Na ldeologia Alemã,lemos: "As idéias da classe domi_
- oudeseja,
é substrtuída pela idéia interesse geral encarnado pelo nante são, em cada época, as rdéras dominantes, isto é. a
Estado. E_iu_h:titui q rç9lid9dq-!9 D!le_i!o pela rdéia do Di191-, classe que é a força materraldominante da sociedade é, ao
por
to
- ou seja, a dominação de uma classe meio das
leis mesmo tempo, sua força espirìtual. A classe que tem à sua
é substituída pela representação ou idéias dessas leis como disposição os meios de produção material dispÕe, ao mesmo
legítimas, justas, boas e válidas para todos. tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com
'
1' Não se trata de supor que os dominantes se reúnam que a ela se.1am submetidas, ao mesmo tempo e em médìa,
i e decidam fazer uma ideologia, pois esta seria, então. uma as rdéias daqueles aos quais faltam os meios de produção
pura maquinação diabolica dos poderosos" E, se assim fosse, espiritual. As idéias dominantes nada mais são do que a ex_
seria muito fácil acabar com uma ideologia. pressão ideal das relaçoes materiais dominantes, as relaçÕes
A ide-glqgla resglta da prática social, nasce da atividade materiais domrnantes concebidas como idéias; portanto,
social dos homens no momento em que estes representam a expressão das relaçóes que tornam uma classe a classe
para si mesmos essa atividade, e vimos que essa representação dominante; portanto, as idéias de sua dominação. Os indj-
é sempre necessariamente invertida. O que ocorre, porém, é víduos que constituem a classe dominante possuem, entre
o sequinte processo: as diferentes classes sociais representam outras coisas, também consciência e, por isso, pensam. Na
para si mesmas o seu modo de existência tal como é vivido di- medida em que dominam como classe e determinam todo o
retamente por elas, de sorte que as representaçóes ou idéias âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em
(todas elas invertidas) diferem segundo as classes e segundo toda a sua extensão e, conseqüentemente, entre outras coi-
sas, dominem também como pensadores, como produtores
as experìências que cada uma delas tem de sua existência nas
de ideìas;que regulem a produção e distribuição das idéias
f"relaçoes de produção ,\g entantg, as idéias dominante; em de seu tempo e que suas idéias sejam, por isso mesmo, as
I uma sociedade numa epoca determinàda não são fodas as
idéias dominantes da época".
I idéias existentes nessa sociedade, mas serão apenas as idéias
; A ideologia consiste precisamente na transformação
i da classe dominante dessa sociedade nessa época. Ou seja, a
I maneira pela qual a classe dominante representa a si mesma ' das idéias da classe dominante em idéias dominantes para a
; sociedade como um todo, de modo que a classe que domi-
. (sua idéia a respeito de si mesma), representa sua relação ,

, na no plano material (econômico, socjal e politlcoj também


i com a Natureza, com os demais homens, com a sobrenatu- '

1 domina no plano espiritual (das idéias).


; reza (deuses), com o Estado etc.,.tornar-se-á a maneira como.:
iì todos os membros dessa sociedade irão pensar. :
lsso significa que:

rD .D
attaD
B6 Marilena Chauí O que é ldeologia 87

1) embora a sociedade esteja dividida em classes e cada Os ideologos são aqueles membros da classe dominan_
qual devesse ter suas proprias idéias. a dominação de uma te ou da classe média (aliada natural da classe dominante)
classe sobre as outras faz com que só selam conslderadas vá- que, em decorrência da divisão social do trabalho em traba_
lidas, verdadeiras e racionais as idéias da classe dominante; lho material e espiritual, constituem a camada dos pensa_
2) para que isso ocorra, é preciso que os membros da dores ou dos rntelectuais. Estão encarregados, por meio da
sociedade não se percebam divididos em classes, mas se ve- sistematização das idéias, de transformar as ilusÕes da classe
jam como tendo certas características humanas comuns a dominante (isto é, a visão que a classe dominante tem de si
todos e que tornam as diferenças sociais algo derivado ou mesma e da sociedade) em representaçoes coletivas ou uni_
de menor importância; versais. Assim, a classe dominante (e sua aliada, a classe mé_
3) para que todos os membros da soçiedqQe se ideq- dia) divide-se em pensadores e não-pensadores, ou em pro_
tifiquem com essas características supostamente comul! a.. dutores ativos de ldéias e consumidores passivos de idéias.
todos, é preciso que elas sejam convertidas em idéiqs co' Muitas vezes, no interior da classe dominante e de sua
muns a todos. Para que isso ocorra, e preciso -que a cla95ç aliada, a divisão entre pensadores e não-pensadores pode
domìnante, além de produzir suas propriai idéias, também assumir a forma de conflitos
possa distribuÊlas, o que é feito, por exemplo, através da- - por exemplo,
sacerdotes, entre burguesia conservadora
entre nobres e
e intelectuais pro_
educação, da religião, dos costumes, dos meios de comuni- gressrstas mas tal conflito não é uma contradição, não
cação disponÍveis; exprime a-, existência de duas classes sociajs contraditórias,
4) como tais idéias não exprimem a realidade real, mas mas apenas oposiçÕes no interior da mesma classe. A pro_
representam a aparência social, as imagens das coisas e dos va disso, escrevem Marx e Engels, é que basta haver uma
homens, é possÍvel passar a considerá-las independentes ameaça real à dominação da classe dominante para que os
da realidade e, mais do que isso, inverter a relação, f azen- conflitos sejam esquecidos e todos fiquem do mesmo lado
do com que a realidade concreta seja tìda como realização
da barricada. Nessas ocasiÕes, "desaparece a ilusão de que
dessas idéias.
as idéias dominantes não são as idéias da classe dominante e
Todos esses procedimentos consistem naquilo que é a
que teriam um poder diferente do poder dessa classe,,.
operação intelectual por excelência da ideologia: a criação
de universais abstratos, isto é, a transformação das idéias Assim, por exemplo, é possível que, em determinadas
particulares da classe dominante em idéias universais de to- circunstâncias historicas, os intelectuais se coloquem contra a
dos e para todos os membros da socredade. Essa universali-, burguesia e se façam aliados dos trabalhadores. Se os traba_
dade das idéias é abstrata porque não corresponde a nada lhadores, compreendendo a origem da exploração econômi_
rqal e concreto, visto que no real existem concretamente ca e da dominação política, decidirem destruir o poder dessa
tlasses particulares e não universalidade humana. As idéias burguesia, é possível que os intelectuais progressistas, sem o
da ideologia são, pois, universais abstratos. (r: " ,. saber, passem para o lado da burguesia. É o que ocorre, por

tl al
.DltD .rrD
BB Marilena Chauí O que é ldeologia 89 - ,..

-
exemplo, quando, diante do aguçamento da luta de classes Não perde de vista, também, que a produção e distri- ' ;.
num país, os intelectuais demonstram aos trabalhadores que, buição dessas idéias ficam sob o controle da classe domi-
naquela fase historica, o verdadeiro inimigo não é a burguesia nante, que usa as instituiçóes sociais para sua rmplantação
nacional, mas a burguesia internacional rmperialiÍa, e que se - família, escola, igrejas, partidos políticos, magistraturas,
deve lutar primeiro contra elaïR ideologia da unìdade nacio-
'
nal, que os intelectuais progressistas, de boa-fe, imaginam ser-
,vir aos trabalhadores, na verdade serve à classe dominante' "Se. ao concebermos o decurso da historia, separarmos
i pot que isso ocorre? Do lado dos intelectuais, isso de- as idéias da classe dominante e a propria classe dominante; e
icorre do fato de que interiorizaram de tal modo as idéias se as concebermos como independentes; se nos limitarmos
i dominantes que não percebem o que estão pensando Do a dizer que numa época estas ou aquelas idéias dominaram,
, lado dos trabalhadores, se aceitam tal ideologia nacionalista, sem nos preocuparmos com as condiçÕes de produção e com
iisso decorre da divisão sociaì do trabalho, que foi interiori- os produtores destas idéias; se, portanto, ignorarmos os indiví-
ìzada por eles, Íazendo-os crer que não sabem pensar e que duos e as circunstâncias mundiais que são a base destas idéias;
ldeuem confiar em quem pensa. Com isso, também eles são então podemos afirmar, por exemplo, que, na época em que
ivítimas do poder das ideias dominantes. a aristocracia dominava, os conceitos de honra, de fidelidade,
Esse fenômeno de manutenção das idéias dqm.inanteí" dominaram, ao passo que na época da dominação burguesa
mesmo quando se está lutando contra a classe dominan- dominam os conceitos de igualdade, de liberdade etc. É, em
te é o aspecto Íundamental daquilo que Gramsci denomina média, o que a classe dominante, em geral, imagina".
hqgemonìa, ou o-poder espiritual da classe dory"i1a1tg, for Se fizermos esse tipo de interpretação, não compreen-
jiió ele dizia que, se num determrnado momento os traba- deremos, por exemplo, que a forma da dominação feudal
lhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do impóe uma divisão social por estamentos fechados que se
nacionalismo, a primetra coisa a f azer é redefinir toda a idéia subordinam uns aos outros segundo uma hierarquia imovel, i
da nação, desfazer-se da ideia burguesa de nacionalidade que culmina na figura do papa, e deste alcança a de Deus,
e elaborar uma idéia do nacional que seia idêntica à de po- entendido como fonte de poder que, por uma graça ou por
pular. Precìsam, portanto, contrapor à idéia dominante de um favor, concede poder a alguns homens determinados,
naçào uma outra, popular, que negue a primeira. e que, portanto, as relaçÕes de honra e de fidelidade sim-
Uma historia concreta não perde de vista a origem de plesmente exprimem o modo pelo qual os laços de poder
classe das idéias de uma época, nem perde de vista que a são conservados no interior da nobreza contra os servos.
ideologia nasce para servir aos interesses de uma classe e Ao contrário, no mundo capiialista as relaçÕes entre os in-
que sò pode fazê-lo transformando as idéias dessa classe divíduos são determinadas pela compra e venda da força
particular em idéias universais. de trabalho no mercado, estabelecendo-se entre as partes
.D .D
.rrD . Dr,
90 Marilena Chauí O que é ldeolosia

(proprietários e assalariados) um contrato de trabalho. Ora, a socredade, dos interesses de todos contra os interesses da
o pressuposto jurídico da idéia de contrato é que as partes classe particular dominante. E consegue aparecer assim uni-
sejam iguais e livres, de sorte que não apareça o fato de que versalizada graças às ideias que defende como universais.
uma das partes não é igual à outra nem é livre. A realiza- 1\
', ":ìì
No início do processo de ascensão é verdade que a nova
ção de relaçÕes econômicas, sociais e políticas baseadas na ,
classe representa um interesse coletivo: o interesse de todas
idéia de contrato leva à universalização abstrata das ideias i ì
,\l
as classes não-dominantes. porém, uma vez alcançada a vi-
I de igualdade e de liberdade. .) torra e a classe ascendente tornando-se classe dominante,
\- * O processo histórico real, escrevem Marx e Engels, não seus interesses passam a ser particulares, isto e, são apenas
é o do predomínio de certas idéias em certas épocas, mas um seus interesses de classe. No entanto, agora, tais interesses
outro, que é o seguinte: cada nova classe em ascensáo que precisam ser mantidos com a aparência de universais, porque
começa a se desenvolver dentro de um modo de produção precisam legitimar o domínio que exerce sobre o restante da
que será destruído quando essa nova classe domìnar, cada sociedade. Em uma palavra: as ideias universars da ideologia
classe emergente, dizíamos, precisa formular seus interesses não são uma invenção arbitrária ou diabolica, mas sào a con-
de modo sistemático e, para ganhar o apoio do restante da servação de uma unrversalidade que já foi real num certo mo-
sociedade contra a classe dominante existente. precisa fazer mento (quando a classe ascendente realmente representava
com que tais interesses apareçam como interesses de toda os interesses de todos os não-dominantes), mas que agora e
a sociedade. Assim, por exemplo, a burguesia, ao elaborar uma universalidade ilusoria (pois a classe dominante tornou-
as idéias de ìgualdade e de liberdade como essêncla do ho- se representante apenas de seus interesses particulares).
mem, faz com que se coloquem ao seu lado como aliados "Cada nova classe estabelece sua dominação sempre
todos os membros da sociedade feudal submetidos ao poder sobre uma base mais extensa do que a da classe que até
da nobreza, que encarnava o princípio da desigualdade e da então dominava, ao passo que, mais tarde, a oposição en-
servidão. tre a nova classe dominante e a não-dominante agrava-se
Para poder ser o representante de toda a sociedade e aprofunda-se ainda mais". lsso significa que cada nova
contra uma classe partìcular que está no poder, a nova classe classe dominante, enquanto estava em ascensão, apontava
emergente precisa dar às suas idéias a maior universalidade para a possibilidade de um maior número de indivíduos exer-
possível, fazendo com que apareçam como verdaderras e jus- cerem a dominação e, por isso, quando toma o poder, usa
tas para o maior número possível de membros da sociedade. de procedimentos mais radicais do que os já existentes, para
Precisa apresentar tais idéias como as únicas racionais e as afastar as possibilidades de exercício do poder por parte dos
únicas válidas para todos. Ou seja, a classe ascendente não dominados. Por isso, a distância entre dominantes e domi-
pode aparecer como uma classe particuìar contra outra classe nados aumenta ainda mais, e os dominados, afinal, terão de
partìcular, mas precisa aparecer como representante de toda lutar pelo término de toda e qualquer forma de dominação.
rD .D
.D.' .t.D
q2 l Marilena Chauí O que é ldeologia 93

Estamos agora em condiçoes de compreender as de- 7) a divisão da sociedade em classes realiza-se como se-
terminaçÕes gerais da ideologia (recordando que determi- paração entre proprietários e não-proprietários das condiçÕes
nação signif ica: caracteristicas intrínsecas a uma realidade e e dos produtos do trabalho, como divisão entre exploradores
que foram sendo produzidas pelo processo que deu origem e explorados, domrnantes e dominados, e, portanto, realiza-
a essa realidade). Podemos agora compreender o que é a se como luta de classes. Esta não deve ser entendida apenas
ideologia porque acompanhamos o processo que a produz como os momentos de confronto armado entre as classes,
concretamente. mas como o conjunto de procedimentos instrtucionais, jurí-
As principais determinaçÕes que constituem o fenôme- dicos, políticos, policiais, pedagogicos, morais, psicologicos,
no da ideologia são: culturais, religiosos, artísticos, usados pela classe dominante
para manter a dominação" E como todos os procedimentos
1) a ideologra e resultado da divisão social do trabalho
dos dominados para dimrnuir ou destruir essa dominação. A
e, em particular, da separação entre trabalho material/ma-
ideologia é um instrumento de domrnação de classe;
nual e trabalho espiritual/intelectual;
:'i-., B) se a dominação e a exploração de uma classe fo-
")l 2) essa separação dos trabalhos estabelece a aparente
rem perceptiveis como violência, isto e, como poder injusto
autonomia do trabalho intelectual face ao trabalho material;
e ilegítimo, os explorados e domrnados sentem-se no justo e
3) essa autonomia aparente do trabalho rntelectual legítimo direito de recusá-la, revoltando-se. por esse motivo,
aparece como autonomia dos produtores desse trabalho, o papel específico da ideologia como instrumento da luta de
isto e, dos pensadores;
classes é impedir que a dominação e a exploração se1am per-
4) essa autonomia dos produtores do trabalho intelec- cebidas em sua realidade concreta. Para tanto, é função da
tual aparece como autonomia dos produtos desse trabalho, ideologia dissrmular e ocultar a existência das divisÕes sociais
isto e, das idéias; como divisÕes de classes, escondendo, assim, sua própria
5) essas ideias que aparecem como autônomas são as origem. Ou sela, a ideologia esconde que nasceu da luta de
ideias da classe dominante de uma epoca, e tal autonomia e classes para servir a uma classe na dominação;
produzida no momento em que se faz uma separação entre 9) por ser o instrumento encarregado de ocultar as
os indivíduos que dominam e as ideias que dominam, de tal divisÕes sociais, a ideologia deve transÍormar as idéias par-
modo que a dominação de homens sobre homens não seja ticulares da classe dominante em idéras universais, válidas
percebida porque aparece como dominação das ideias sobre igualmente para toda a sociedade;
todos os homens; 10) a universalidade dessas idéias é abstrata, pois no
6) a ideologia é, pois, um instrumento de dominação íi concreto existem idéias particulares de cada classe. por ser
de classe e, como tal, sua origem e a existência da divisão da uma abstração, a ideologia constroi uma rede imaginária de
sociedade em classes contraditórias e em luta; idéias e de valores que possuem base real (a divisão social),
.D .L
. D1D lrDrt
94 Marilena Chauí O que é ldeologia 95

mas de tal modo que essa base seja reconstruÍda de modo logia sempre possui uma base real, so que essa base está de
invertido e imaginário; ponta-cabeça, é a aparência social" Assim, por exemplo, a
I
-;.r' i 1)' a ideoloqia e- upa"_j[-1=1sã-o, necessária à dominação sociedade burguesa aparece em nossa experiência imediata
-=igK- -r
de classe. Por ilusão não devemos entender "ficção", "fan- como estando formada por três tipos diferentes de proprie-
tasia", "invenção gratuita e arbitrária", "erro", "falsidade", tários: o capitalista, proprietário do capital; o dono da terra,
pois com isto suporíamos que há ideologias falsas ou erradas proprietário da renda da terra; e o trabalhador, proprietário
e outras que seriam verdadeiras e corretas. lor ilçspo.Qgv-g-" do salário. Se todos são proprietários, embora de coisas di-
mos entender: abstração e inversão. Abstração (como vimos ferentes, então todos os homens dessa sociedade são iguais
anteriorúenÌei.g ô èonhôcimenïõ ãe ümã ieiúd;de tal como;'. -. e possuem iguais direitos. Enquanto não ultrapassarmos
se oferece à nossa experrência imediata,.Ç,Qr1ra algo dado,: lí' -l',k, essa aparência e procurarmos o modo como realmente e
feito e acabado, gue apenas classiÍicamos, ordenamos e sis- concretamente são produzidos esses proprietários pelo sis-
tematizamos, sem nunca indagarmos como tal realidade foi ./ tema capitalista, não poderemos compreender que o salário
êoncretamente produzida. Uma realidade é concreta porque ''i não é a propriedade do trabalhador, mas é o trabalho não-
,,, .
mediata, isto é, porque produzida por um sistema determina- , .; pago pelo capitalista; que a renda não vem da terra, mas
do de condiçÕes que se articulam internamente de maneirul ,'.t' de sua transformação em capital pelo trabalho não-pago do
necessária.-*lnyersãq (como tambem vimos anteriormente) .éi'.
i camponês ou dos mineiros; e que, finalmente, so o capital
tomar o resultado de um processo como se fosse seu começo, j é efetivamente propriedade. ,ErlqqanLo Gq tivprmo_s essa
premis- '/
tomar os efeitos pelas causas, as conseqüencias pelas .compreensã9 .h.igo1ip.do processo r"eai, a i_d.çIa de.tgtlpldade
sas, o determinado pelo determinante. Assim, por exemplo, não só parecerá verdadeira. mas.ainda poss_uirá bgqe 1qql, ou
quando os homens admitem que são desiguais porque Deus seja, a maneira pela qual os homens aparecem no modo de
ou a Natureza os fez desiguais, estão tomando a desigualda- produção capitalista. É nesse sentido que se dgvq entgnüg-r.q.
de como causa de sua situação social e não como tendo sido ideologia como ilusão, abstração e inversão;
produzida pelas relaçÕes sociais e, portanto, por eles proprios, i/. 13) a ideologia não é um "reflexo" do real na cabeça
sem que o desejassem e sem que o soubessem; dos homens, mas o modo ilusorio (rsto é, abstrato e rnver-
12) porque a ideologia é ilusão, isto é, abstração e in- tido) pelo qual representam o aparecer social como se tal
versão da realidade, ela permanece sempre no plano imedia- aparecer fosse a realidade social. Se a ideologia fosse um
to do aparecer socíal. Ora, como vimos, ao falarmos do feti- simples "reflexo invertido" da realidade na consciência dos
chismo da mercadoria, o aparecer social e o modo de ser do homens, a relação entre o mundo e a consciência não seria
socral de ponta-cabeça. A aparência social não e algo Íalso e dialetica (isto é, contraditoria ou de negação interna), mas
errado, mas é o modo como o processo social aparece para a seria mecânica ou de causa e efeito. Se a ideologia fosse o
consciência direta dos homens. lsso signif ica que uma ideo- espelho "ruim" da realidade. ela seria o efeito mecânico da
.D .D
. D1D .DID
9ó Marilena Chauí O que é ldeologia 97

ação dos objetos exteriores sobre nossa consciência, como a do criação do espírito em um mundo sem espírito, a religião
ação da luz sobre nossa retina. Nesse caso, não poderíamos é produção imaginária de algo que não existe. A inversão
compreender a célebre afirmação de Marx (nas chamadas consiste em atribuir a essa criação do espírito a origem da
Onze Teses Sobre Feuerbach) de que o engano dos mate- realidade, em lugar de compreender que é a miséria real que
rialistas tinha sido considerar a relação da consciência com está produzindo a crença no espírito, numa divindade pode-
os objetos uma experiência sensível e não uma práxis social, rosa que pune e recompensa as açóes humanas. A religião,
isto é, uma atividade social que produz os objetos e o senti- como toda ideologia, é uma ativìdade de consciência social.
do dos objetos. A ideologia é uma das formas de práxrs so- A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mun-
cial: aquela que, partindo da experiência imediata dos dados do sern espírito) por um mundo imaginário (o mundo corn
da vida social, constrói abstratamente um sistema de idéias espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande
ou representaçÕes sobre a realidade. I tarefa da ideologia, e por isso ela anestesia como o ópio;
Para percebermos que a ideologia não é o mero "refle- 14) a ideologia é produzida em três momentos funda-
xo" invertido da realidade na consciência dos homens, basta mentais:
lembrarmo-nos do modo como Marx define a religião. a) ela inicia-se como um conjunto sistemático de idéias
Em geral, todos conhecem a famosa fórmula segundo que os pensadores de uma classe em ascensão produzem
a qual "a religião é o opio do povo", isto é, um mecanismo para que essa nova classe apareça como representante dos
para fazer com que o povo aceite a miséria e o sofrimento interesses de toda a sociedade, representando os interesses
sem revoltar-se porque acredita que será recompensado na de todos os não-dominantes. Nesse primeiro momento, a
vida futura (cristianismo) ou porque acredita que tais dores ideologra encarrega-se de produzir uma universalidade com
são uma punição por erros cometidos numa vida anterior base real para legitimar a luta da nova classe pelo poder;
(religióes baseadas na idéia de reencarnação). Aceitando a b) ela prossegue tornando-se aquilo que Gramsci de-
injustiça social com a esperança da recompensa ou com a nomina senso comum, isto é, ela populariza-se, torna-se um
resignação do pecador, o homem religioso frca anestesiado conjunto de idéias e de valores concatenados e coerentes,
como o fumador de ópio, alheio à realidade. No entanto, aceitos por todos os que são contrários à dominação exis-
costuma-se esquecer que, antes de fazer tal afirmação, Marx tente e que imaginam uma nova sociedade que realize essas
define a religião como "a criação de um espírito num mun- idéias e esses valores (por exemplo, quando os servos, apren-
do sern espírito", como "enciclopédia e logica popular" e dizes, pequenos artesãos e pequenos comerciantes no final
"consolação num mundo sern consolo". Se a religião, que da ldade Média e no início do mercantilismo aceitam e in-
é uma forma de ideologia, fosse um "reflexo", ela teria de corporam as rdéias de liberdade e de igualdade, defendidas
espelhar de maneira invertida o mundo real. Ora, segundo pela burguesia em ascensão). Ou seja. o momento essencial
Marx. a inversão religiosa não "reflete" coisa alguma sen- de consolidação social da ideologia ocorre quando as ideias
-
.D tD
.D.D . t.,
Marrlena Chaui O que é ldeologia 99

e valores da classe emergente são interiorizados pela consci- trabalho (trabalhadores). Ou seja, percebem, de um lado,
ência de todos os membros não-dominantes da sociedade; que o taylorismo é uma forma de dominação burguesa, mas
c) uma vez sedimentada e interiorizada como senso co- conservam a idéia (subjacente ao taylorismo) de que é racio-
mum. a ideologia mantém-se mesmo apos a vitoria da clas- nal separar saber tecnológico e execução prática do trabalho
se emergente, que se torna, então, classe dominante. lsso (sem se dar conta de que tal separação é o que permite a do-
significa que, mesmo quando os interesses anteriores, que minação burguesa, pois tal organização lhes aparece como
eram interesses de todos os não-dominantes, são negados racional por causa do avanço tecnologico, que impossibilita
pela realidade da nova dominação é, a nova domi- a cada trabalhador e ao conjunto dos trabalhadores contro-
- isto
nação converte os interesses da classe emergente em inte- lar o saber que governa seus trabalhos).
resses particulares da classe dominante e, portanto, nega a Esse fenômeno da conservação da validade das idéias e
possibrlidade de que se realizem como interesses de toda a valores dos dominantes, mesmo quando se percebe a domi-
sociedade
-, tal negação não impede que as idéias e valores
anteriores à dominação permaneçam como algo verdadeiro
nação e mesmo quando se luta contra a classe dominante,
mantendo sua ideologia, é que Gramsci denomina hegemo-
para os dominados. Ou seja, mesmo que a classe dominante nia. Uma classe é hegemônica não só porque detém a pro-
seja percebrda como tal pelos dominados, mesmo que estes priedade dos meios de produção e o poder do Estado (isto
percebam que tal classe defende interesses que são exclu- é, o controle jurídico, político e policial da sociedade), mas
sivamente dela, essa percepção não afeta a aceitação das ela é hegemônica sobretudo porque suas idéias e valores
idéias e valores dos dominantes, pois a tarefa da ideologia são dominantes, e mantidos pelos dominados até mesmo
consiste justamente em separar os indivíduos dominantes e quando lutam contra essa dominação.
as idéias dominantes, fazendo com que apareçam como in- Em geral, fala-se muito em "crise de hegemonia" (con-
dependentes uns dos outros. ceito gramsciano) para caracterizar momentos de crise eco-
É assim, por exemplo, que os trabalhadores contem- nômica e política nos quais a classe dirigente (aquela fração
porâneos podem perceber que a organização do processo da classe dominante que dirige a sociedade) é forçada a re-
de trabalho pelo estilo taylorista (que consiste em separar pensar sua ação econômica e política se quiser conservar o
todas as fases de produção e em separar os que dirigem poder dirigente. Ora, crise de hegemonia não é isso. A crise
e controlam tal produção e os que a executam) e um inte- de hegemonia so ocorre quando, além da crise econômica e
resse da classe dominante, sem que isso os impeça de crer política que afeta os dirigentes, há uma crise das idéias e dos
que a organização racional do trabalho exija racionalmente valores dominantes, fazendo com que toda a sociedade. na
a divisão entre os que possuem conhecimento tecnologico qualidade de não-dirigente, recuse a totalidade da forma de
(cientistas, técnicos, administradores e gerentes) e os que dominação existente. Assim é que Gramsci pode caracteri-
possuem apenas a qualificação para executar as tarefas do zar o surgimento do fascismo na ltália a partir de uma crise
.l .l
.Dr' .Dr'
loo Marilena chauí O que é ldeologia l0l
de hegemonia. Mas quando hoje, no Brasil, se consideram lho, mas e mantê-la, fazendo com que as mulheres tenham
as dificuldades dos atuais dirigentes para manter o controle igual direito de serem exploradas e de realizarem trabalhos
economico e político uma "crise de hegemonia", emprega- alienados. Seria preciso que as mulheres, como movimento
se erroneamente o conceito gramsciano. social, pudessem levar a cabo a crÍtica do proprio trabalho
Vejamos um exemplo de conservação da hegemonia i
no modo de produção capitalista, em vez de desejarem virar
bu rg uesa. força de trabalho. Por outro lado, defender a liberdade de
Muitos movimentos feministas lutam contra o poder usar o corpo porque este e propriedade privada da propria
burguês porque ele e fundamentalmente um poder masculi- mulher e afirmar que tal drreito define a mulher como pes-
no que discrimina socral, econômica, política e culturalmen- soa autônoma e esquecer que um dos pilares da ideologia j
te as mulheres. É considerado um poder patriarcal, isto é,
burguesa, na sua forma liberal, é lustamente a def inição dos l
seres humanos por algo chamado de "direito natural", e l
fundado na autoridade do Pai (chefe de família, chefe de
que seria o direito à posse e ao uso do proprio corpo, posse
seção, chefe de escola, chefe de hospital, chefe de Estado
que nos torna livres, liberdade que é necessária para formu-
etc ). É um poder que legitima a submissão das mulheres r

lar a ideia burguesa de contrato (como vimos acima). Ora,


aos homens, tanto pela aÍirmação da inferioridade feminina
vimos como Marx descreve o surgimento do trabalhador'
(fraqueza física e intelectual) quanto pela divisão de papers .
"livre" necessário ao capital: o homem que, tendo apenas
sociais a partir de atividades sexuais (feminilidade como sino- l
a posse de seu corpo, que, estando despojado ("liberado")
nimo de maternidade e domesticidade).
dos meios e instrumentos do trabalho, tem o "livre" direito,
Partindo dessa colocação, muiios movtmentos feminis- ao uso de seu corpo, vendendo-o no mercado da compra e
tas vão defender duas ideias principais: venda da força-de-trabalho. E vimos, com Hegel, como a de-
1)a de que as mulheres não devem se sujeitar a papeis f inição burguesa de pessoa é sinônimo ou versão jurídica do
sociais, mas devem lutar por igual direito ao trabalho; proprietário privado. Assim, a luta femintsta pode realizar-se
2) a de que as mulheres não devem continuar se sub- sem pôr em questão a hegemonra burguesa.
metendo ao poderio masculino e devem defender a liberda- lsso não significa que os movimentos feministas são
de do uso de seu corpo, porque este e propriedade delas e falsos ou inúteis, nem que todos eles defendem dessa ma-
não dos homens (maridos, filhos, chefes etc.). neira tais idéias. Significa apenas que é possível, de fato, r

Aparentemente, tais movimentos parecem estar lu- movimentos de libertação das mulheres que reafirmam a
tando contra o poder burguês, pelo menos no seu aspecto ideologia dominante.
discriminatorio. Porém, se analisarmos as duas ideras defen-
didas, o que veremos? Defender a igualdade no mercado
de trabalho não e criticar a exploração capitalista do traba-
.D
.DAD
AD O que é ldeolosia
a.D.-"D qual uma empresa controla desde a produção da matéria-
103

prrma (no início da cadeia produtiva), até a distribuição co-


mercial dos produtos (no final da cadeia produtiva). Além
desse controle total da produção, são introduzidas a linha
de montagem, a fabricação em série de produtos padroni-
A rorolocrA,'DA,coMperÊmcrR zados e as idéias de que a competição capitalista realiza-se
em função da qualidade dos produtos e que essa qualidade
depende de avanços cientÍficos e tecnologicos, de modo que
uma empresa deve também financiar pesquisas e possuir la-
boratórios. Com o fordrsmo, e introduzida uma nova prática
das relaçÕes sociais, conhecida como a Organização.
"A gênese da ideologia na so- Quais as principais características da Organização?
Em um ensaio intitulado
1) as afirmaçÕes de que "organizar" é adminìstrar, e
ciedade moderna", o filosofo francês Claude Lefort observa
que administrar é introduzir racionalidade nas relaçÕes so-
que houve uma mudança no modo de operação da ideolo-
ciais (na indústria, no comércio, na escola, no hospital. no
gia, desde meados do seculo XX. governo etc.). A racionalidade administrativa consiste em
De fato. escreve ele, a ìdeologia burguesa era um pen- afirmar que não é necessário discutir os fins de uma ação
samento e um discurso de caráter legisìador, ético e peda- ou de uma prática, e sim estabelecer rneios eficazes para a
gogico, que definia para toda a sociedade o verdadeiro e o obtenção de um objetivo;
falso, o bom e o mau, o lícito e o ilícito, ojusto e o injusto, o 2)as afirmaçoes de que uma Organização é racional se
normal e o patologico, o belo e o feio, a civilização e a bar- for eficiente. e que será eficiente se estabelecer uma rÍgida
bárie. Punha ordem no mundo, afirmando o valor positivo e hierarquia de cargos e funçÕes, na qual a subida a um novo
universal de algumas instituiçÕes como a família, a pátria, a cargo e a uma nova função signifique melhorar de posição
empresa, a escola e o Estado, e,com isso, designava os de- social, adquirir mais stafus e mars poder de mando e de co-
tentores legítimos do poder e da autoridade: o pai, o patrão, mando. A Organização será tanto mars eficaz quanto mais
o professor, o cientista, o governante. todos os seus membros se identificarem com ela e com os
No entanto, a partir, sobretudo, dos anos 30 do século objetivos dela, fazendo de suas vidas um serviço a ela que é
XX, houve uma mudança no processo social do trabalho, retribuído com a subida na hierarquia de poder;
mudança que iria espalhar-se por toda a sociedade e todas 3) a afirmação de que uma Organização é uma admi-
as relaçóes sociais. O trabalho industrial passou a ser orga- nistração científica racional que possur logica própria e fun-
nizado segundo um padrão conhecido como fordismo, no ciona por si mesma. independentemente da vontade e da
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104 Marilena Chauí O que é ldeologia 105

decisão de seus membros. Graças a essa logica da propria reprodução do capital. O caso mais visÍvel desse uso era a
Organização. e ela que possui o conhecimento das açoes a construção das máquinas para o processo de trabalho. Hoje
serem realizadas e que conhece quais são as pessoas com- em dia, porém, não se trata mais de usar técnicas vindas da
petentes para realizá-las. aplicação das ciências, e sim de usar e desenvolver tecno/o-
No caso do trabalho industrial, a Organização introduz gias. A tecnologia não é ciência aplicada.
duas novidades. A primeira é a linha de montagem, isto é, a A tecnologia é fabricação de instrumentos de precisão
afirmação de que é mais racional e mais eficaz que cada tra- que interferem no próprio conteúdo das ciêncras. Com isso,
balhador tenha uma função muito especializada e não deva as ciências passaram a participar diretamente do processo
realizar todas as tareÍas para produzir um objeto completo. produtivo, tanto porque dependem dele com relação à tec-
A segunda é a chamada "gerência científica", isto é, depois nologia quanto porque esta depende delas. Essa participa-
de despojar o trabalhador do conhecimento da produção ção da ciêncra e da tecnologia no processo de produção das
completa de um obieto, a Organizaçáo divide e separa os mercadorias aparece com clareza na automação e na infor-
que possuem tal conhecimento os gerentes e administra- matização do trabalho industrial, e nas demais atividades
dores e os que executam as
-
tareÍas fragmentadas os
-
trabalhadores. Com isso, a divisão social do trabalho
-
faz-se
econômicas e sociais.
Se, agora, reunirmos a Organização (ou administração
pela separação entre os que têm competência para dirìgir e racional eficaz do trabalho), a "gerência científica", a pre-
os incompetentes. que só sabem executar. sença da ciência e da tecnologia no processo produtivo e no
Examinando a maneira como o modelo da Organìzação trabalho intelectual, perceberemos que a divrsão social das
se difunde e se espalha por todas as instituiçÕes sociais e por classes está acrescida de novas divisÕes, e que estas podem
todas as relaçoes sociais, Lefort fala na ideologia contempo- ser resumidas numa so e grande divisão: a divisão entre os
rânea como a ideologìa invisível. Ou seja, enquanto na ideo- que possuem poder porque possuem saber e os que não
logia burguesa tradicional as idéias eram produzidas e emi- possuem poder porque não possuem saber.
tidas por determinados agentes sociais o pai, o patrão, o
padre ou pastor, o professor, o sábio
- agora parece não Dessa maneira, em vez de falarmos em ideologia invisí-

haver agentes produzindo as idéias,


-,
porque elas parecem vel, preferimos falar em ideologia da competênci4 que oculta
da Organização a divisão social das classes ao afirmar que a divisão social se
emanar diretamente do funcionamento e
"leis realiza entre os competentes (os especialistas que possuem
das chamadas do mercado".
conhecimentos científicos e tecnológicos) e os incompetentes
Façamos, ainda, uma outra observação. Antigamen-
(os que executam as tarefas comandadas pelos especialistas).
te, julgava-se que as ciências eram teorias que podiam ser
aplicadas por meìo das técnicas, e que a economia capita- A ideologia da competência realiza a dominação pelo
lista fazia uso das técnicas para aumentar a acumulação e descomunal prestigio e poder conferidos ao conhecimento

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l0ó Marilena Chauí O que é ldeolosia 107

científico e tecnológico, ou seja, pelo prestíglo e poder das pela mediação do discurso da psicologia e da sociologia, e
idéias consideradas científicas e tecnológicas. assim por diante. lsso explica a proliferação dos livros de
O discurso competente é aquele proferido pelo especra- "auto-ajuda", os programas de conselhos pelo rádio e pela
lista, que ocupa uma posição ou um lugar determinado na hie- televisão, bem como os programas em que especialistas nos
rarquia organizacional, e haverá tantos discursos competen- ensinam jardinagem, culinária, maternidade, paternidade,
tes quantas organizaçÕes e hierarquias houver na sociedade. sucesso no trabalho e no amor. Esse discurso competente
Esse discurso opera com duas práticas contraditórias. Numa exige que interiorizemos suas regras e valores, se não qui-
delas, enquanto discurso da propria Organização, afirma que sermos ser consìderados lixo e detrito
esta e racional e é o agente socìal, político e historico, de sor- É essa modalidade da competência que aparece na fi-
te que os homens enquanto tais e as classes sociais enquanto xação de um modelo de ser humano sempre jovem, saudável
tais são destituídos e despojados da condição de suleitos so- e feliz, produzido e difundido pela publicidade e pela moda,
ciais, políticos e históricos. A Organização é competente; os que prometem juventude (com os cosmeticos, por exemplo),
indrvíduos e as classes sociais, incompetentes, objetos sociais saúde (com a "malhação", por exemplo)e felicidade (com as
conduzidos, dirigidos e manipulados pela Organização. mercadorias que garantem sucesso).
Na outra modalidade prática, o discurso competente Finalmente, se reunirmos o discurso competente da Or-
procura desfazer o que fez anteriormente. Ou seja, depois ganização e o discurso competente dos especialistas, veremos
de invalidar os indivíduos e as classes sociais como sujeitos que estão construídos para assegurar dois pontos indissociá-
da ação, procura revalidá-los, mas o faz tomando-os como veis do modo de produção capitalista: o discurso da Organi-
pessoas ou indivíduos privados. Trata-se do que chamare- zação afirma que só existe racionalidade nas leis do mercado;
mos de competência privatizada. Vejamos como ela é feita. o discurso do especialista afirma que só há felicidade na com-
O discurso da competência privatizada é aquele que petição e no sucesso de quem vence a competição.
ensina a cada um de nós, enquanto indivíduos privados (e Vejamos algumas conseqüências perversas produzidas
não enquanto sujeitos sociais), como nos relacionarmos com pela ideologia da competência. Se ser competente e ven-
o mundo e com os outros. Esse ensino é feito por especialis- cer a competição e subir na hierarquia de uma Organiza-
tas que nos ensinam a viver. Assim, cada um de nós aprende ção, como se sente o desempregado? A ideologia burguesa
a relacionar-se com o desejo pela medição do discurso da lhe ensina, no cotidiano e na escola, que o trabalho é uma
sexologia, a relacionar-se com a alimentação pela mediação virtude que dignifica o homem, e que não trabalhar e um
do discurso da dietética ou nutrrcionista, a relacionar-se com vício (a preguiça, a malandragem)" A ideologia da compe-
a criança por meio do discurso da pediatria, da psicologia tência lhe ensina, no cotidiano , na organização escolar. na
e da pedagogia, a relacionar-se com a Natureza pela me- organização empresarial, que so a competência no trabalho
diação do discurso ecologico, a relacionar-se com os outros assegura felicidade e realização. Ocorre, porém, que a atual
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l0B Marilena Chauí O que é ldeologia 109

forma do capitalismo (sobretudo por causa da tecnologra e devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir
do lugar ocupado pelo chamado capital financeiro, isto e, e como devem sentir, o que devem f azer e como devem
papéis e dinheiro dos bancos e das bolsas de valores) não Íazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representaçÕes)
precisa de muita gente trabalhando na produção, e por isso e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo,
gera o desemprego. No entanto, o desempregado, ignoran- normativo, regulador, cuja Íunção e dar aos membros de
do o que se passa e orientando-se pelo que foi incutido pela uma sociedade dividida em classes uma explicação racional
ideologia, sente-se culpado pelo desemprego, humilhado e para as diÍerenças sociais, políticas e culturais, sem jamais
num beco sem saída. atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a
Um outro efeito da ideologia da competência aparece na partir das divisoes na esfera da produção. Pelo contrário, a
busca do diploma universitário a qualquer custo. Antigamen- função da ideologia e a de apagar as diferenças como de
te, as pessoas que cursavam as universidades o f aziam porque classes e fornecer aos membros da sociedade o sentimento
desejavam dedicar-se a alguma pesquisa ou ao ensino. Hoje, da identidade social, encontrando certos referenciais identi-
cursa-se a universidade porque o diploma e exigido pela Or- ficadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Hu-
ganização, quando examina os currículos dos que procuram manidade, a Liberdade, a lgualdade, a Nação, ou o Estado,
um emprego nela, pois o diploma e usado como instrumento lsso signiÍica que:
de seleção. Os jovens universitários estão convencidos de que
a) na qualidade de explicação teorica do real (atraves
sempre foi e sempre será assim, e que a função da universida-
das ciências, sobretudo hoje em dia, ou das filosof ias, ou das
de é adaptar-se às exigêncìas das organizaçÕes empresariais,
religiÕes), a ideologia nunca pode explicitar sua própria ori-
rsto e, do que se costuma chamar de "o mercado". O diploma
gem, pois, se o fìzesse fana vir à tona a divisão social em
confere ao que procura emprego a condição de "especialista"
classes e perderia, assim, sua razão de ser, que é a de dar ex-
e de "competente" e uma posição superior na hierarquia de
plicaçÕes racionais e universais que devem esconder as dife-
cargos e funçoes. Dessa maneira, a universidade alimenta a
renças e particularidades reais. Ou seja, nascida por causa da
ideologia da competência e despoja-se de suas principais ati-
luta de classes e nascida da luta de classes, a ideologia e um
vidades, a formação crítica e a pesquisa.
corpo teórico (religioso, filosofico ou cientÍfico) que não pode
pensar realmente a luta de classes que lhe deu origem;
b) na qualidade de corpo teorico e de conjunto de regras
Façamos, pu,u .on.trij ;; ,.rrr" do nosso percurso. práticas, a ideologia possui uma coerência racional pela qual
A ideologia é um conjunto logico, sistemático e coeren- precisa pagar um preço. Esse preço e a existência de "bran-
te de representaçóes (idéias e valores) e de normas ou regras cos", de "lacunas" ou de "silêncios" que nunca poderão ser
(de conduta) que rndicam e prescrevem aos membros da so- preenchidos sob pena de destruir a coerência ideologica. O
ciedade o que devem pensar e como devem pensar, o que discurso ideologico e coerente e racional porque entre suas
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llA Marilena Chauí O que é ldeologia lll
"partes" ou entre suas "frases" há "brancos" ou "vazios" Seja, por exemplo, a idéia de família. Se a ideologia
responsáveis pela coerência. Assim, a ideologia é coerente mostrasse que há, no sistema capitalista, três tipos diferen-
não apesar das lacunas, mas por causa ou graças às lacunas. tes de família (drferentes tanto por sua finalidade como por
Ela é coerente como ciência, como moral, como tecnologia, seu modo de organização), a burguesa, a proletária e a pe-
como filosofia, como religião, como pedagogia, como expli- queno-burguesa,lá não poderia falar: a Família.
cação e como ação apenas porque não diz tudo e nao pode Por outro lado, se pudesse mostrar que a família bur-
dízer tudo. Se dissesse tudo, quebraria-se por dentro. guesa é um contrato econômico entre duas outras famílias
Por esse motivo, cometemos um engano quando ima- para conservar e transmitir o capital sob a forma de patri-
ginamos ser possível substituir uma ideologia "falsa" (que mônio familiar e de herança (mantendo a classe), teria de
não diz tudo) por uma ideologia "verdadeira" (que diz tudo). mostrar que é por isso que, nessa famílra, o adultério femini-
Ou quando imaginamos que a ideologia "falsa" é a dos do- no é uma falta grave, pois faz surgirem herdeiros ilegítimos
minantes, enquanto a ideologra "verdadeira" é a dos domi- que dispersariam o capital Íamiliar. e que, por esse motivo,
nados. Por que nos enganamos nessas duas afirmaçÕes? Em o adultério Íeminino é convertido, para a sociedade inteira,
primeiro lugar, porque uma ideologia que Íosse plena ou que numa falta moral e num crime penal. Se, por exemplo, pu-
não tivesse "vazios" e "brancos", isto é, que dissesse tudo, já desse mostrar que a família proletária tem por função exclu-
não seria ideologia. Em segundo lugar, porque falar em ideo- siva reproduzu atorça de trabalho procriando filhos, teria de
logia dos dominados é um contra-senso, visto que a ideologia mostrar que e por isso (e não por razóes religiosas e morais,
é um instrumento da dominação. Esses enganos fazem-nos que justamente são ideologicas) que a mulher proletária não
sair da concepção marxista de ideologia (que vimos no rnício tem direito ao aborto decente nem o direito ao anticoncep-
deste Iivro). Podemos, isso sim, contrapor ideologia e crítíca cional, a não ser quando, em virtude da modificação tecno-
da ideología, e podemos contrapor a ideologia ao saber real logica que leva à automação do trabalho, interessa aos do-
que muitos dominados têm acerca da realrdade da explora- minantes drminuir a quantrdade de oferta de mão-de-obra
ção, da dominação, da divisão social em classes e da repres- no mercado de trabalho. Nesta hora, os dominantes, através
são a que este saber está submetido pelas forças repressivas do Estado, inventam o chamado Planejamento Familiar, que
dos dominantes (forças repressivas que não precisam ser pretende, pela diminuição numérica dos trabalhadores, re-
apenas as da polícia ou as do exercito, mas que podem ser, solver o problema real da miseria e da desigualdade social.
sutilmente, a propria ideologia difundida e conservada pela Ou, enfim. se mostrasse que a família pequeno-burguesa
escola e pelas ciêncras ou filosofias dos dominantes). tem a finalidade de reproduzir os ideais e valores burgueses
Vejamos o que significa a afirmação de que a ideolo- por toda a sociedade, e que. por isso, é nela que a idéia de
gia não pode dizer tudo porque se o dissesse se destruiria família e mais forte do que nas outras classes, teria de mos-
por dentro. trar que a família pequeno-burguesa está encarregada de
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ll2 Marilena Chauí

oferecer ao pai uma autoridade substitutiva que o compense e mesma ideoìosia r;:::ilL''. o.uo,.', io.orogiu oj':
de sua real Íalta de poder na sociedade, e que, por isso, ele guesa, que é uma das formas historicas da ideologia, tam-
aparece como devendo encarnar para toda a sociedade o bém não é sempre a mesma. No período da livre concor-
ideal do Pai. Que esta íamília também está encarregada de rência, que definia as relaçÕes econômicas e sociais pelas
dar à mãe um lugar honroso que a retenha Íora do mercado relaçÕes de contrato no mercado e pela liberdade de em-
de trabalho, para não competir com o pai e não lhe roubar presa, a ideologia burguesa assumirá a forma do liberalismo,
a autoridade ilusoria. e que, por isso, a mulher dessa família enquanto atualmente, com o fim da livre concorrência, com
está destinada a encarnar para toda a sociedade o ideal de o advento do capitalismo monopolista de Estado ou dos oli-
Mãe. Que, Íinalmente, essa família pequeno-burguesa está gopolios, a ideologia burguesa assume a forma de ideologia
encarregada de conservar a autoridade paterna e a domes- da Organização, do Planejamento e da Administração. Em
ticidade materna como forças, para reter por mais tempo outras palavras, as mudanças econômicas e sociais produ-
fora do mercado de trabalho os jovens, para usá-los apenas ziram mudanças na ideologia burguesa, que passou de sua
quando se tornam arrimos econômicos de garantia de uni- formulação tradicional para aquela que chamamos aqui de
dade familiar, e que, por esse motivo, retarda pelo maior ideologia da competência.
tempo possível a constrtuição de novas famílias, e que é esse Dizer que a ideologia não tem historia significa que:
o motivo da defesa do ideal da virgindade para as menìnas a) a transÍormação das idéias não depende delas mes-
e da recusa do homossexualismo feminino e masculino (pois mas, de alguma força interna que teriam (como na historia
no homossexualismo não há reprodução e vínculo famìliar). do Espírito hegeliano, ou como nas etapas do Espírito huma-
Se a ideologia mostrasse todos os aspectos que constl- no de Auguste Comte), mas depende da transformação das
tuem a realidade das famílias no sistema capitalista, se mos- relaçoes sociais e, portanto. das relaçoes econômicas e polí-
trasse como a repressão da sexualidade está ligada a essas ticas. Com isso, podemos perceber que há entre a ideologia
estruturas familiares (condenação do adultério, do homosse- e a estrutura de uma sociedade aquilo que Louis Althusser
xualismo, do aborto, defesa da virgindade e do heterossexua- chama de "contemporaneidade" ou de correspondência
lismo, diminuição do prazer sexual para o trabalhador porque temporal entre a estrutura social e as idéias ideologicas.
o sexo diminui a rentabilidade e produtividade do trabalho Compreendemos tambem como as idéias não ideologicas
allenado), como, então, a ideologia manteria a ìdeia e o ideal (aquelas que estão empenhadas em compreender a gênese
da Família? Como faria, por exemplo, para justificar uma se- ou historia real) são capazes de ultrapassar o tempo em que
xualidade que não estrvesse legitimada pela procriação, pelo são pensadas. E isso em duas direçoes: com relação ao pas-
Pai e pela Mãe? Não pode fazer isso. Não pode drzer isso. sado, de modo a não "explicá-lo" com as idéias do presenle,
A ideologia não tem historia, afirmam Engels e Marx. mas reencontrando as próprias determinaçÕes diferenciado-
lsso não quer dizer que houve, há e haverá sempre uma so ras que Íazem do passado, passado; com relação ao futuro,

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Marilena Chauí O que é ldeologia ll5
na medida em que não projeta para o que ainda está por tiveiros, sua dispersão e seu retorno à Terra Prometida como
vir aquilo que já existe, mas procura, nas Iinhas de Íorça do realização das profecias sobre os crimes do povo eleito contra
presente, aqurlo que anuncia a possibilidade Íutura. Enquan- as leis de Jeová. E e perfeitamente racional que expliquemos
to a ideologia explica o presente como efeito do passado, o a guerra de Troia e as desventuras do povo hebraico através
passado pelo presente e o futuro pelo 1á existente, fazendo de uma outra história, o que mostra simplesmente que nossa
com que este último deixe de ser o possivel (aquilo que os racionaljdade é diferente da dos gregos homéricos e da dos
homens poderão realizar) para se tornar o prevísível (aquilo hebreus proféticos. Encontrar a causa dessa diferença é tare-
que os homens deverão realizar), o saber historico mantém fa de um pensamento não-ideoloqico;
as diferenças temporais como diferenças intrínsecas; É de grande importância a afirmação de Marx e de En-
b) a ideologia fabrica uma historia imaginária (aquela gels acerca da ideologia como algo que não tem historia. Por
que reduz o passado e o futuro às coordenadas do presente), quê? Porque a ideologia burguesa (em qualquer de suas for-
na medida em que atribui o movimento da historia a agentes mulaçÕes) tem o culto da historia entendida como progresso.
ou sujeitos que não podem realizá-lo. Assim, por exemplo, a Para a ideologia burguesa, toda a historia é o progresso das
ideologia nacionalista faz da Nação o sujeito da historia, ocul- naçÕes, dos estados, das ciências, das artes, das técnicas. É
tando que a Nação é uma unidade imaginária, pois é cons- que o historiador burguês aceita a imagem progressista que
tituída efetivamente por classes sociais em luta. A ideologia a burguesia tem de si mesma. na medida em que a burguesia
estatista faz do Estado ou da ação dos governantes ou das considera um progresso seu modo de dominar a Natureza e
mudanças de regimes polÍticos o sujeito da historia, ocultan- de dominar os outros homens. Com esse culto do progresso,
do que o Estado não é um sujeito autônomo, mas instrumen- a burguesia e seus ideologos justificam o direito do capitalis-
to de dominação de uma classe social, e, portanto, o sujeito mo de colonizar os povos ditos "prrmitivos" ou "atrasados"
dessa historia estatrsta imaginária é, afinal, apenas a classe para que se beneficiem dos "progressos da civilização".
dominante. A ideologia racionalista (e, atualmente, a ideo- Assim, quando a antropologia social explica "cientifica-
logia cientificista)faz da Razão (e, hoje em dia, da Ciência) o mente" as sociedades ditas "selvagens". passa a descrevê-
sujeito da historia, esquecendo-se de que a idéia da Razão (e las como sendo preJógr'cas, como fez Levy-Bruhl. Ou então,
de Ciência) é determinada por aquilo que numa sociedade é quando os antropólogos percebem que tal caracterização é
entendido como racional e como irracional, e que a idéia de colonialista e passam a descrever os "selvagens" de modo
racionalidade é determinada pela forma das relaçoes sociais. a revelar que são diferentes e não atrasados, ainda assim
Assim, é perfeitamente racional que Homero explique a guer- permanecem sob a hegemonia da ideologia burguesa. Por
ra de Tróia como punição dos deuses pelo crime cometido quê? Porque agora mostram que as sociedades primitrvas são
por um chefe aqueu, Tiesto. Também e perfeitamente racio- diferentes da nossa por serem sociedades sem escrita. sem
nal que os hebreus expliquem a historia de seus múltiplos ca- mercado. sem Estado e sem histórìa. Como bem mostrou o
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il6 Marilena Chauí O que é ldeologia 117

antropólogo Pierre Clastres, em seu livro Á Sociedade contra


o Estado, explicar as sociedades primitivas dizendo o que lhes
falta (o "sem") e manter, implicitamente, como modelo ex-
plicativo, a nossa sociedade, e como sociedade plena isto e,
com escrita, com mercado, com Estado e com história.
lsso não signiÍica que os antropologos queiram defen-
der o colonialismo (em geral defendem os interesses das so- .c
o
ciedades "prìmitivas"), mas, sim, que sua ciência permanece E
o
c
presa a uma racionalidade e a uma cientificidade que con-
a
servam, silenciosamente, a rdéia burguesa de progresso. ri"',ì.õ
la -
Porque a ideologia não tem historia, mas fabrica his- o
torias imaginárias que nada mais são do que uma forma de .iõi, o
legitimar a dominação da classe dominante, compreende-se o
--
por que a historia ideologica (aquela que aprendemos na .o
ó
O
escola e nos livros) é sempre uma historia narrada do ponto a
de vista do vencedor ou dos poderosos. Não possuímos a o
e
historia dos escravos, nem a dos servos, nem a dos trabalha-
E
dores vencidos não so suas açÕes não são registradas peio f
-
historiador, mas os dominantes tambem não permitem que
6
a
o
restem vestígios (documentos, monumentos) dessa historia. c
a
Por isso, os dominados aparecem nos textos dos historiado- c
o
res sempre a partrr do modo como eram vistos e compreen-
didos pelos proprios vencedores. õo
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O vencedor ou poderoso e transÍormado em único .o
!!
sujeito da historia, não so porque impediu que houvesse a s
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história dos vencidos (ao serem derrotados, os vencidos per-
deram o "direito" a historia), mas simplesmente porque sua
ação historica consiste em eliminar fisicamente os vencidos,
ou, então, se precisa do trabalho deles, elimina sua memo-
ria, fazendo com que se lembrem apenas dos feitos dos ven-
cedores. Não e assim, por exemÍtlo, que os estudantes ne-
ób .l
.r{s f r{,
O que é ldeologia u9
ll9 Marilena Chauí

gros ficam sabendo que a Abolição foi um feito da Princesa


lsabel? As lutas dos escravos estão sem registro e tudo que
delas sabemos está registrado pelos senhores brancos. Não
há direito à memoria para o negro. Nem para o índio. Nem
para os camponeses. Nem para os operários.
Historia dos "grandes homens", dos "grandes feitos",
das "grandes descobertas", dos "grandes progressos", a
ideologia nunca nos diz o que são esses "grandes". Gran-
des em quê? Grandes por quê? Grandes em relação a quê?
No entanto, o saber hìstorico nos dirá que esses "9randes",
agentes da historia e do progresso, são os "grandes e po-
SOBRE A AUTORA
derosos", isto é, os dominantes, cuja "grandeza" depende
sempre da exploração e dominação dos "pequenos". Aliás, Marilena Chauí e professora de Historia da Filosofia e
a própria ldéia de que os outros são os "pequenos" já é um de Filosofia Política da Universidade de São Paulo.
pacto que fazemos com a ideologia domrnante. Foi secretária Municipal de Cultura de São Paulo no
Graças a esse tipo de historia, a ideologia pode manter governo de Luiza Erundina (1989-1992). Presidiu a Associa-
sua hegemonia mesmo sobre os vencidos, pois estes interio- ção Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof, gestão
rizam a suposição de que não são sujeitos da historia, mas 1998-2000). É presidente da Associação de Estudos Filoso-
apenas seus pacientes. ficos do Século XVll, colaboradora em revrstas acadêmicas
Quem e o que pode desmantelar a ideologia? Somen- brasileiras e estrangeiras, e escreve para jornais brasileiros de
te uma prátìca política nascida dos explorados e dominados grande circulação.
e dirigìda por eles proprios. Para essa prática política é de Escreve trabalhos de filosofia para estudantes do se-
grande importância o que chamamos de crítica da ideologia, gundo grau e da graduação universitária. Tem livros publi-
que consiste em preencher as lacunas e os sìlêncios do pen- cados sobre o pensamento dos filosofos Merleau-Ponty e
samento e discurso ideologicos, obrigando-os a dizer tudo Espinosa e sobre o Brasil.
que não está dito, pois dessa maneira a logica da ideoloqia
se desfaz e se desmancha. deìxando ver o que estava escon-
dido e assegurava a exploração econÔmica, a desigualdade
social a dominação política e a exclusão cuìtural.

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