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Antonio Dégas M. N.

Storelli

É preciso Conversar para


(Aprender)

Uma Nova Concepção sobre o Ser Humano,


a Cognição e a Aprendizagem a partir da
Biologia-Cultural do Conhecer

Coleção Biologia-Cultural do Conhecer


Volume 01

2
© 2018 BiosLogus
É proibida a reprodução total ou parcial desta
publicação, para qualquer finalidade, sem
autorização por escrito do autor.
1ª. Edição, 2018.

Ficha Catalográfica

S884e Storelli, Antonio Dégas M. N.


É preciso Conversar para
(Aprender): uma Nova Concepção sobre
o Ser Humano, a Cognição e a
Aprendizagem a partir da Biologia-
Cultural do Conhecer. São Bernardo do
Campo: BiosLogus, 2018, 441 p.

ISBN:

1. Teoria do Conhecimento, causalidade


e ser humano. 2. Lógica, Teoria do
Conhecimento. I. Título. II. Autor.

CDD: 120
CDU: 16

Todos os direitos de publicação reservados à

BiosLogus – edições independentes.


Av. Dr. Washington Luiz, 153 – 09618-040 - São
Bernardo do Campo, SP
www.bioslogus.com.br

3
Apresentação
Você conhece alguém que não gosta de
estudar, que não sente prazer em ir à escola e só
faz isso por obrigação? E alguém que tem
“dificuldade de aprendizagem”, se sente “burro”
ou “incapaz de aprender”?

Talvez esse alguém seja você mesmo ou


alguma pessoa importante para você. Talvez você
seja professor, talvez seja aluno ... o fato é que
todos somos aprendizes em diferentes momentos
de nossas vidas mas, acima de tudo, somos seres
humanos e é através da aprendizagem que nos
diferenciamos dos demais animais e nos tornamos
aquilo que somos.

Infelizmente vários estudos mostram que


as escolas, faculdades e universidades, que
deveriam ser espaços para aprendizagem e
formação de “seres humanos integrais”, se
tornaram locais de insatisfação, onde estudantes
e professores vivem em mal-estar e sofrimento.
Considero que isso se deve a uma concepção
equivocada a respeito do que é aprendizagem, do
que são os fenômenos cognitivos (que constituem
a cognição) e de quem é o ser humano que
aprende.

Que seres humanos queremos ser e o que


queremos que as futuras gerações aprendam
conosco?

4
Minhas reflexões a este respeito e a busca
por uma melhor compreensão sobre a
aprendizagem me levaram a escrever este texto,
que compartilho agora com você.
Este é um livro para todos aqueles que se
interessam por compreender os fenômenos
cognitivos, dentre eles a aprendizagem, ou que
buscam uma compreensão mais profunda sobre
quem somos nós, os seres humanos. Espero que
você goste!

Ele foi escrito a partir de um trabalho de


pesquisa realizado no Programa de Pós-
Graduação Interunidades no Ensino de Ciências
do IF-USP, mas minhas reflexões a respeito são
bem anteriores a isso.

Tive contato com a obra do pesquisador


chileno Humberto Maturana durante uma pós-
graduação em Psicologia da Saúde e desde o
primeiro momento fiquei muito impressionado
com suas concepções sobre a cognição. Confesso,
entretanto, que tive pouca compreensão a respeito
e que só após alguns anos de estudo e muita
conversação comecei a compreender a matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais
que esta obra implica. Pretendo agora contribuir
para que ela se torne mais compreensível e
acessível ao público interessado, principalmente
aos educadores e pesquisadores da Educação,
Psicologia e Neurociências. Considero que isto
pode trazer uma revolução em nossa forma de

5
pensar sobre a cognição, o aprender e o ensinar,
dentre outras implicações.

Meu objetivo neste texto é explicar os


fenômenos cognitivos, dentre eles a
aprendizagem, utilizando para isso as concepções
de Maturana. Ele começou a apresentar suas
reflexões ao público no final da década de 1950 e
desde então, trabalhou em colaboração com
diferentes pesquisadores, dando origem a duas
abordagens teóricas denominadas Biologia do
Conhecer e Biologia-Cultural. O que proponho é
uma “unificação” destas teorias, que denomino de
Biologia-Cultural do Conhecer.

Aqui apresento uma nova concepção para o


ser humano, a aprendizagem e a cognição, a
partir da Biologia-Cultural do Conhecer,
considerando que:

 o ser, o fazer e o conhecer dos seres vivos


são indissociáveis, ou seja, nossa cognição,
nossas ações e aquilo que somos são uma
coisa só;

 conhecer faz surgir um mundo que criamos


com outros seres humanos, nas diferentes
culturas nas quais vivemos-convivemos, e
que surgem durante este viver-conviver;

 todo argumento racional parte de


premissas previamente aceitas, com base
em nossas emoções, o que implica que a
razão é determinada pelas emoções;

6
 no viver não é possível distinguir entre
erros, ilusões e percepções, e isso é algo
constitutivo da cognição humana;

 o ser humano é um ser biológico-cultural,


que vive seu viver biológico entrelaçado em
distintos domínios fenomenológicos
culturais;

 o ensino e a linguagem não dizem respeito


à transmissão de informações e são
fenômenos de natureza cultural, o que
implica que o estudo do Sistema Nervoso
não é suficiente para sua compreensão;

 o conversar é a dinâmica que surge no


entrelaçamento entre a linguagem e as
emoções;

 há uma aprendizagem tipicamente


humana, à qual denomino (aprender) -
entre parênteses - que não pode ser
compreendida como as demais
aprendizagens, e;

 O (aprender) depende do conversar, logo, é


preciso conversar para (aprender).

Vamos iniciar nossa conversa?

7
Tudo o que é dito é dito por alguém
"Tudo o que é dito, é dito por alguém". Este
aforismo faz referência ao fato de que toda
reflexão é uma ação humana realizada por alguém
em um momento histórico específico, seguindo
uma ‘deriva natural’1 [1].

Minhas reflexões neste texto propõe uma


abordagem teórica para a cognição e o aprender
que denomino de Biologia-Cultural do Conhecer.
Todas as minhas afirmações a partir desta
abordagem fazem referência a reflexões que são
minhas, mas que realizo a partir de duas teorias:
a Biologia do Conhecer e a Biologia-Cultural.

Outros autores tratam estes domínios


explicativos de forma independente; o que faço
aqui é propor que eles apresentam uma
continuidade entre si e que constituem um
domínio lógico mais amplo, a Biologia-Cultural do
Conhecer, cujas bases estão nas reflexões de
Humberto Maturana em co-autoria com outros
pesquisadores, em diferentes momentos de sua
trajetória.

Sendo assim, a grande maioria dos


conceitos que apresento não são de minha
autoria, mas minhas reflexões a respeito de sua
deriva histórica a partir dos estudos das obras de
Maturana. A peculiaridade do que faço é propor
uma perspectiva integrada das reflexões deste

1
Utilizarei as aspas simples para identificar termos que posteriormente
vou explicar que têm uma significação específica para a Biologia-Cultural
do Conhecer.

8
pesquisador, articulando sua produção intelectual
a partir da minha perspectiva, já que “tudo o que
é dito é dito por alguém”.

Modo de Usar
O ideal é que este livro seja lido na
sequência como está escrito, mas tendo em vista
seu relativo volume, as informações a seguir
permitirão a você definir sua própria estratégia de
leitura.

Na Introdução trago um resumo das


principais concepções da Biologia do Conhecer e
da Biologia-Cultural e apresento a Biologia-
Cultural do Conhecer. Se você preferir pode
começar sua leitura a partir daí.

Na seção Quem é o Ser Humano que


Aprende? eu explico o ser humano como ser
biológico-cultural. Esta seção pode ser lida de
forma independente, mas supõe o conhecimento
de algumas concepções abordadas na Introdução.

Em O que é a Cognição? apresento as


diferentes “escolas de pensamento” sobre os
fenômenos cognitivos. Utilizo como referência
principal um texto de Franciso Varela e faço
correlações com outros autores e perspectivas.
Esta seção é a mais independente de todas e pode
ser lida separadamente.
Na seção Minha Explicação para o
(Aprender) apresento quatro reflexões sobre o
aprender, a partir de tudo aquilo que foi discutido

9
nas seções precedentes. Se voicê quiser pode
começar sua leitura por esta sessão e depois
voltar à Introdução e prosseguir a partir daí. Esta
á a principal sessão do livro, tendo em vista seus
objetivos.

Finalmente, em Conclusões faço alguns


comentários e convido você a conhecer outros
projetos e a entrar em contato comigo para que
possamos continuar nossa conversar ou
esclarecer eventuais dúvidas, o que você pode
fazer desde já através de link ou do QR Code a
seguir.

http://www.bioslogus.com.br/e-preciso-conversar-para-aprender.html

Quem sou eu?


Meu nome é Antonio Dégas M.N. Storelli,
estudei Biologia e Psicologia, pós-graduação em
Fisiologia Humana e em Psicopedagogia, mestrado
em Psicologia da Saúde e em Educação pela
UMESP, mestrado em Ciências pela USP, e
doutorado em Neurologia Experimental pela
Unifesp, com muitas idas e vindas, contratempos
e mudanças de rumo2. Meu interesse é

2
Minha “inquietação” fez com que não concluísse algumas destas
formações, mas faço referência a elas porque fizeram diferença e
influenciaram na escrita deste texto e no meu conhecer.

10
compreender o ser humano como sujeito
biológico-cultural e realizar pesquisas que
integram as neurociências cognitivas, a psicologia
e a educação, além de ter interesse pela área de
tecnologias aplicadas ao ensino.

Sou professor desde os 15 anos e professor


universitário desde 1998. Participo como
colaborador do Grupo de Pesquisa em Ensino de
Ciências e Biologia do Conhecimento da USP de
Ribeirão Preto, atuo em consultorias, no
desenvolvimento de conteúdos e estratégias de
ensino, e no atendimento de jovens e adultos que
consideram ter dificuldades de aprendizagem.

Gosto de estudar e compartilhar as coisas


que aprendo e por isso amo ser professor! Minha
grande "viagem" é conciliar explicações que
contemplem as dimensões biológica e cultural do
ser humano, usando para isso conhecimentos das
Neurociências Cognitivas, das Ciências Humanas
e Biológicas (e "otras cositas más"...), mantendo
uma ‘contabilidade lógica’. Proponho a Biologia-
Cultural do Conhecer como base para minhas
reflexões.

11
Agradecimentos
Várias pessoas significativas são citadas no
corpo do texto, minha gratidão à todas elas.
Agradeço a meu pai e a minha mãe por
permitirem o meu viver e por me presentearem
com minhas irmãs.

Vitória de M. M. N. Storelli e Rute de M. M.


Storelli, vocês fazem com que eu lembre a cada
dia o que realmente importa. Vocês são minhas
parceiras de uma vida inteira.

Antonio Dégas M. Júnior e Nathan Dégas


Basso, que eu digo para vocês senão que a vida
tem mais sentido quando vocês estão no planeta?
Obrigado por compartilharem comigo o viver de
vocês. Deise Fabris Vieira e Yara Heleno Basso,
obrigado pelo que tenho aprendido com vocês e
pelos presentes que me deram. Fernanda
Ornellas, obrigado por mais um presente e por
tudo que temos vivido.

Maria Elena Infante-Malachias, obrigado


pela co-inspiração, pelo respeito, pelo conviver e
por tudo que tem me ensinado.

Nicolas Antonio Douglas, meu amigo e


Mestre, foi em 1994 ao assistir uma aula sua que
decidi que queria aprender Fisiologia para poder
ensinar. Você foi minha inspiração e eu tive muito
orgulho de poder compartilhar as salas de aula
com você.
Professor Carlos Roberto Douglas, meu
Mestre: você foi o responsável pelas maiores

12
“viagens intelectuais” da minha vida. Só quem
assistiu às suas aulas sabe o prazer que é
possível vivenciar aprendendo Fisiologia.
Gratidão!
Celimara Gamba Lima e Laura Araújo
Tome, minhas parceiras e amigas queridas, só
vocês vão entender plenamente o significado de
muitas das reflexões que vou compartilhar aqui.

Agradeço a todos os amigos do Gadechi e


do Templo-Escola e em especial ao meu Mestre
André Velardo, por tudo que tenho aprendido com
você. Obrigado a você e aos “seus”, e por me
ajudar no encontro com os “meus”.

Professor Maturana, obrigado! Você disse


tudo o que eu “esperava” e “precisava” ouvir, e
estava esperando já fazia um tempão! Gratidão.

Quero agradecer também àqueles que já


tive a oportunidade de encontrar nesta vida sendo
professor e que me permitiram fazer o que amo
fazer, que é compartilhar aquilo que aprendi.
Daniela do Carmo Bonfiglio, “meu orgulho”, você
mais do que ninguém sabe disso.

13
Sumário

I Introdução ........................................... 16
O conhecer e as percepções ................................................... 19
Não vemos que não vemos, tampouco o que os outros vêem 22
Sensações, Percepções e a Biologia do Conhecer .................... 26
Auto Referência, Autopoiese e Criação de Mundos ................ 40
Deriva Natural e Determinismo Estrutural .............................. 47
Determinismo Estrutural: uma concepção que incomoda muita
gente ...................................................................................... 50
A Biologia-Cultural e a Biologia-Cultural do Conhecer ............. 52
Teorias e Redes de Conversações ........................................... 57
Professor e pai de alunos ........................................................ 60
Educação e sofrimento ........................................................... 69
O Aprender é uma Questão Conceitual ................................... 80
O Método Científico e a Objetividade ..................................... 84
(Objetividade) e Determinismo Estrutural .............................. 86
Meu Objetivo e Estratégia Metodológica ................................ 89
Critérios de Validação das Explicações Científicas ................... 93

II Quem é o Ser Humano que Aprende?103


Quem é o Homo sapiens? ..................................................... 105
As ideias de Darwin .............................................................. 109
Um parêntese para reflexão ................................................. 113
Voltando ao fluxo do texto e às ideias de Darwin.................. 120
Do Darwinismo à Síntese Expandida ..................................... 123
A Evolução da Inteligência .................................................... 126
Hipóteses Ecológicas para o Desenvolvimento da Inteligência131
O Cérebro Social e a Cognição Social..................................... 136
Um segundo parêntese para reflexão ................................... 143
Linguagem e desenvolvimento da Inteligência ...................... 146
Linguagem e Conversar......................................................... 148
Comunicação, Fenômenos Sociais e o Linguajear .................. 153
Condutas Ontogênicas e Domínios Linguísticos .................... 169
Um terceiro parêntese para reflexão .................................... 174
Voltando ao fluxo do texto e ao Linguajear ........................... 179
A Teoria da Mente e o Linguajear ......................................... 180
Emocionear e Cultura ........................................................... 190
Um quarto parêntese para reflexão ...................................... 196
De volta ao fluxo do texto e ao Emocionar e a Cultura .......... 198

14
Cultura, Sentires Íntimos e Estados Psíquicos ....................... 200
Cultura e Aprendizagem Cultural .......................................... 203
Leitura .................................................................................. 205
Aprendizagem Socialmente Mediada e Ensino ..................... 206
Imitação, Emulação e Pedagogia Natural .............................. 208
Mas afinal, quem é o Ser Humano que aprende? ................. 212
Domínios Fenomenológicos projetados no Domínio do
Observador .......................................................................... 214
Domínios Fenomenológicos, Dinâmicas do Viver e Unidades 218
Unidades Simples e Compostas ............................................ 226
Um quinto parêntese para reflexão ...................................... 232
De volta ao fluxo do texto e aos Sistemas Autopoieticos
Moleculares ......................................................................... 236
Intersecção Estrutural, Unidades Conceituais e Concretas ... 243
Um sexto parêntese para reflexão........................................ 247
De volta ao fluxo do texto e ao Observar e o Observador ..... 255
Ontogenia e Acoplamento Estrutural ................................... 258

III O que é a Cognição? ........................ 263


A Cognição e os Fenômenos Cognitivos ................................ 265
Epistemologias e Cibernética................................................ 268
Cognitivismo e Representações Simbólicas .......................... 271
Conexionismo e Relações Emergentes ................................. 277
Enação ................................................................................. 288

IV Minha Explicação para o Aprender ... 296


Domínios Existenciais e Fenomenológicos ............................ 298
Domínio Cognitivo-Interacional ............................................ 302
Um parêntese sobre as Sensações e Percepções .................. 312
De volta ao fluxo do texto e à Reflexão sobre o Domínio
Cognitivo-Interacional .......................................................... 315
Observador, Autoconsciência e Relações Gerativas .............. 317
Primeira Reflexão sobre o Aprender ..................................... 329
Segunda Reflexão sobre o Aprender..................................... 353
Terceira Reflexão sobre o Aprender ..................................... 361
Quarta Reflexão sobre o Aprender ....................................... 383
Taxonomia do Conhecer e dos Aprenderes do Ser Humano
Biológico-Cultural ................................................................. 398
Ontogênese dos Aprenderes ................................................ 414
Conclusões ........................................................................... 422
Referências Biliográficas ....................................................... 428

15
I

Introdução

16
Conscientemente ou não nossa grande
busca como seres humanos reflexivos tem sido
pelo conhecimento da ‘realidade’ que nos cerca,
pelo conhecimento de nós mesmos, pela
compreensão da natureza de nossa existência e
do mundo ao nosso redor, de onde viemos e para
onde vamos. Seja como humanidade, ou num
certo momento de nossa existência individual,
estas questões nos tocam e então buscamos
explicações para elas. E nossas reflexões podem
nos levar a questionar sobre nosso próprio
refletir, ou num sentido mais específico, sobre
nosso próprio ‘eu’ e como ele se manifesta e se
realiza: como conhecemos, pensamos, refletimos,
percebemos, agimos, sentimos, nos emocionamos,
aprendemos e lembramos.

Sempre me interessei pela compreensão de


quem somos nós, os seres humanos, e do quanto
do que somos se deve a nossa natureza biológica,
a nossa natureza subjetiva e sociocultural, e se
há algo além disso. Como professor me interessei
em compreender e explicar a aprendizagem,
considerando que deve haver uma aprendizagem
comum aos animais, mas também alguma
aprendizagem característica do ser humano.
Concordo com o educador Herbert Gomes da Silva
ao afirmar, em relação ao aprender e ao ensinar,
que “tão necessária quanto a prática de ensino e
os materiais didáticos, são as teorias que
fundamentam a compreensão do nosso viver e de
como esse viver está presente no ensino (...) e
particularmente no modo de conhecer humano (...)”

17
[3]. No mesmo sentido, Paulo Freire diz que não
pode existir uma teoria que norteie a
aprendizagem e o ensino que esteja isenta de uma
concepção de homem e de mundo [4]. Antes de
iniciar minhas reflexões preciso especificar as
concepções sobre o viver, sobre o mundo, sobre o
ser humano que é o sujeito que aprende, e as
teorias e domínios lógicos que identifico em
minhas explicações e reflexões.

Podemos viver mergulhados em nossas


teorias, pois explicar as coisas (explicações
racionais) satisfaz muitas expectativas e isso tem
sido valorizado pela maioria das culturas
ocidentais. Considero que essa ênfase excessivas
nas explicações “descoladas” ou que nos afastam
do viver é o que está por trás do mal-estar e do
sofrimento que experimentamos em muitas
situações, o que se manifesta como uma sensação
de que “algo está faltando”.
Como alternativa, assumo (1) que só
podemos explicar nosso viver a partir de
elementos deste viver, ou das coerências
sensoriais-operacionais-relacionais em que este
viver ocorre, e (2) que quando refletimos a respeito
destas coerências geramos novos domínios
fenomenológicos, que as ampliam, permitindo
aprofundar o “sentido” das coisas que vivemos.
Farei minhas reflexões no encontro entre e
Biologia do Conhecer e a Biologia-Cultural, que
para mim constitui as bases do que denomino de
Biologia-Cultural do Conhecer.

18
O conhecer e as percepções
Vou considerar inicialmente que conhecer,
ou ter uma cognição, implica ter percepções (ou
perceber) a respeito do mundo que nos cerca.
Conscientemente ou não a maioria de nós assume
que há uma realidade pré-existente e comum a
todos nós, passível de ser percebida e
compreendida.

A partir desta perspectiva, as percepções


dependem do encontro de diversos estímulos com
nossos órgão sensoriais, resultando em
informações que são transmitidas e processadas
por distintos sistemas sensoriais, e que dizem
respeito à diferentes aspectos dos estímulos que
constituem nossa realidade compartilhada e que
são capazes de atuar sobre nossos órgãos
sensoriais. É o processamento das informações
que os estímulos carregam, ou que são extraídas
deles pelo operar do Sistema Nervoso, que dá
origem às percepções, à aprendizagem e aos
diferentes processos que constituem nossa
cognição. Dizemos então que são as
características dos diferentes estímulos com os
quais entramos em contato que determinam
nossas sensações e percepções 3. É essa ideia que
pretendo expressar com a Figura 1 a seguir.

3
Inicialmente vou tratar as sensações e percepções como sinônimos, mas
posteriormente farei uma distinção importante entre ambos fenômenos.

19
Figura 1. Duas pessoas observam um objeto do qual provém
estímulos que o Sistema Nervoso de cada uma delas utiliza
para construir percepções e conhecimentos a respeito de
uma realidade pré-existente e compartilhada. Nesta
perspectiva, são os estímulos que determinam nossas
percepções. Fonte: elaborado pelo autor.

Por exemplo, é comum a explicação de que


a luz refletida pelos objetos penetra o interior do
globo ocular, onde estimula receptores nervosos;
estes dão origem à impulsos elétricos que
codificam informações sobre o estímulo luminoso,
que são então decodificadas pelos demais
elementos do Sistema Nervoso e é isso que
determina a percepção visual. Sendo assim, se
um objeto reflete luz com um comprimento de
onda que corresponde ao verde é isso que
determina a percepção da cor verde que temos ao
olhar para este objeto.

A seguir vou explicar mais a este respeito e


também alguns estudos realizados por Humberto
Maturana no final da década de 1959 que
questionam esta forma de explicar as percepções,
mas antes disso alguns outros fenômenos

20
curiosos já não encontravam uma explicação
satisfatória dentro deste paradigma.

A Sensação do Membro Fantasma é um


destes fenômenos e tem sido observada desde o
início do séxulo XIX. Ela diz respeito ao fato de
que certos pacientes que tiverem membros
amputados relatam ainda apresentar sensações
dolorosas nestes membros. Como isso é possível
se o membro não está mais presente e, sendo
assim, não há mais receptores para serem
estimulados? Este fenômeno permite questionar
até que ponto é a estimulação dos receptores
nervosos pelos estímulos que determina nossas
sensações e percepções.

A questão que podemos colocar então é:


como percebemos o mundo que vivemos, com
seus objetos, eventos e outras pessoas e seres
vivos?

Me interessa refletir a este respeito porque,


se assumimos que todos vivemos uma mesma
realidade e é ela (através de diferentes estímulos)
quem determina o que percebemos, então todos
devemos ter as mesmas percepções. Logo, ensinar
e aprender são fenômenos que correspondem a
uma capacidade de perceber adequadamente tal
realidade e comunicar informações a seu respeito,
para que outros também possam aprender sobre
ela. E aquilo que não podemos perceber
diretamente através dos nossos órgãos e sistemas
sensoriais pode ser percebido através do uso de
instrumentos, ou deduzido e compreendido

21
através das explicações científicas que também
devem ser aprendidas.

Assumimos também que nos comunicamos


através de diferentes linguagens cujo principal
objetivo é transmitir informações e significados a
respeito do mundo que é percebido desta
maneira. E que são as limitações de nossos
órgãos e sitemas sensoriais, as imprecisões da
linguagem, ou as dificuldades de aprendizagem
que fazem com que muitas vezes não sejamos
capazes de ter as mesmas percepções, e isso é a
causa dos erros, das ilusões e dos inúmeros
desentendimentos e disputas que observamos em
diferentes esferas da vida cotidiana.

A Sensação do Membro Fantasma e outras


observações que apresentarei a seguir põem em
questão esta explicação. Precisamos então
encontrar uma forma mais satisfatória para
explicar as percepções e a partir disso nos
aprofundar na reflexão sobre a cognição e a
aprendizagem.

Não vemos que não vemos,


tampouco o que os outros vêem
Você acha que seria difícil para duas
pessoas discordarem a respeito do fato de um
objeto estar se movendo ou não? Dito de outra
forma, é possível haver percepções distintas
acerca de um mesmo fenômeno tão corriqueiro?
Você pode agumentar que isso pode depender da
perspectiva que o observador assume em relação

22
ao movimento, como no caso de alguém
observando um carro se movendo em sua direção
enquanto outro alguém observa o mesmo carro se
posicionando lateralmente ao movimento. Então
vou simplificar as coisas e convido você a realizar
um experimento simples.

Você precisa de um espelho pequeno (como


aqueles utilizados para se maquear) e de outra
pessoa para ajudar. Você deve observar de frente
seus dois olhos no espelho. A outra pessoa deve
estar de frente para você e também observar de
frente os seus olhos (logo, o espelho ficará entre
você e esta pessoa). Agora você deve olhar de
forma alternada para um olho e depois para o
outro através do espelho, enquanto a outra
pessoa observa diretamente os seus olhos, ao
mesmo tempo. A montagem deste experimento
está representada na Figura 2 a seguir.

Figura 2. Montagem do nosso experimento. Fonte: elaborado


pelo autor.

Você consegue ver os seus olhos se


movendo? Provavelmente não. Então pergunte a
pessoa que está observando você. Diferentemente,
ela dirá que vê seus olhos se movendo

23
lateralmente, de forma alternada, num plano
horizontal. Como isso é possível?

Você pode inverter os papéis e pedir para


que a outra pessoa se auto-observe através do
espelho enquanto ela mexe os olhos, ao mesmo
tempo que você a observa. E se quiser, pode
repetir o experimento sozinho, olhando seus olhos
de frente num espelho maior (no espelho do
banheiro, por exemplo), enquanto
simultaneamente filma com seu celular (que deve
estar um pouco abaixo da linha dos olhos para
não atrapalhar a observação e ao mesmo tempo
permitir ter ângulo para a filmagem). No momento
da observação você não percebe seus olhos se
movendo mas depois, quando assistir à gravação,
verá que eles se movem4.

Se a realidade “olhos se movendo” é a


mesma para você e a outra pessoa (ou para você
se auto-observando numa gravação), então
qualquer observador deste fenômeno deveria
observar a mesma coisa, concorda? Como explicar
esta diferença radical numa observação de algo
tão corriqueiro como o mexer dos olhos? Isso
implica que não vemos o que os outros vêem mas,
além disso, outros experimentos mostram que nós
não vemos que não vemos. Assista, por exemplo,
o vídeo do youtuber Iberé Tenório do canal
Manual do Mundo, que mostra uma experiência
4
O experimento “não funciona” se você usar a câmera frontal enquanto
filma e se auto-observa no celular (como se estivesse fazendo uma selfie),
porque você deve olhar para a lente de frente. Se você se filma e
consegue observar é porque está olhando para a lente de um ângulo mais
lateral e isso vai atrapalhar a observação.

24
sobre um “ponto cego” que há na retina, que é
uma região onde não há receptores nervosos
(procurte no Youtube por “A cabeça que
desaparece (ponto cego) (ilusão)”, ou visite
https://goo.gl/zyn1KG. Preste atenção à explicação
que ele dá para este fenômeno. Ou visite
www.bioslogus.com.br/ilusoes-de-optica-que-nao-
sao-ilusoes para ver outros exemplos.

José Saramago diz: “Penso que estamos


cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não
vêem”. Estas palavras têm um significado
profundo para a compreensão dos fenômenos
cognitivos. Considero que elas e as observações
do experimento que propus não revelam algum
tipo de “limitação dos nossos sistemas
sensoriais”, “ilusão de óptica”, ou “distorção
perceptiva”, mas que remetem ao fato de que
devemos rever e ampliar nosso paradigma
explicativo em relação às percepções e ao
fenômeno do conhecer de forma geral. Vou
apresentar uma alternativa explicativa neste
sentido, a partir da Biologia-Cultural do
Conhecer.

25
Sensações, Percepções e a Biologia
do Conhecer
A Biologia do Conhecer é um
agrupamento teórico no qual destacam-se dois
constructos principais: a Teoria da Autopoiese e
a Deriva Natural [3]. Suas bases estão nas
atividades realizadas pelo pesquisador chileno
Humberto Maturana entre os anos de 1950 e
1960, na busca da resposta para duas questões:

O que ocorre no fenômeno da percepção?


Quem são os seres vivos?

Ele chegou à conclusão que ambas


remetiam a mesma reflexão [5] e a partir daí
desenvolveu suas explicações, em diferentes
momentos, em coautoria com Francisco Varela,
Jorge Mpodozis e Ximena Dávila, dando origem a
uma série de conclusões e a novas reflexões.

Entre 1959 e 1960 Maturana trabalhou


com pesquisadores reconhecidos como os Jerry Y.
Lettvin, W.S. McCulloch e W.H. Pitts, que foram
pioneiros na construção das bases dos
paradigmas utilizados ainda hoje para o estudo
dos fenômenos cognitivos. É de McCullloch e
Pitts, por exemplo, a ideia de que o Sistema
Nervoso computa informações de forma binário-
digital (como um computador) através de
impulsos elétricos gerados pelas células nervosas
ou neurônios. Nessa época estes pesquisadores

26
assumiam em suas explicações que há uma
realidade objetiva, independente e externa aos
animais, mas que pode ser percebida por eles, e
que a percepção é um processo de captação de
informações a respeito desta realidade, a partir
das quais os animais podem computar
comportamentos adequados frente diferentes
situações e contextos (denominados de
comportamentos adaptativos) [5].

Nesta perspectiva, estímulos sensoriais


provenientes do ambiente na forma de diferentes
energias (ou provenientes do meio interno5 do
organismo) são “captados” por estruturas
especializadas denominadas receptores
nervosos, que constituem nossos órgãos
sensoriais, ou órgãos dos sentidos. Receptores
nervosos são células modificadas que se conectam
aos neurônios, ou são a extremidade modificada
de um neurônio. Há diferentes tipos de receptores
nervosos e cada um é “excitável” por um tipo
específico de estímulo. É por isso que dizemos que
há quimioceptores (excitáveis por estímulos
químicos), mecanoceptores (excitáveis por
estímulos mecânicos) e fotoceptores (excitáveis
por estímulos luminosos), dentre outros, como
você pode observar na Figura 3 a seguir.

5
Meio interno é todo o meio extracelular no qual estão inseridas todas as
células de um organismo. Ele é formado pelo líquido intersticial (que está
entre as células) e pelo plasma (que é o líquido que circula no interior dos
vasos sanguíneos).

27
Figura 3. Alguns dos diferentes tipos de receptores nervosos
e as sensações e percepções às quais estão relacionados.
SNC é a sigla para Sistema Nervoso Central, que é uma
porção funcional do Sistema Nervoso que inclui o encéfalo e
a medula espinhal, e é responsável pelo “processamento das
informações”. A região receptora é aquela que entra em
contato com os estímulos. Fonte: elaborado pelo autor.

Dizer que um receptor nervoso é “excitável”


por determinado tipo de estímulo implica dizer
que na presença deste estímulo o receptor muda
sua atividade elétrica (especificamente, seu
potencial de membrana) e origina potenciais
elétricos (denominados potenciais de ação) que
são passíveis de se propagarem através dos
neurônios conectados a ele. A sequência de
potenciais de ação que se propagam constituem
um impulso nervoso e esta propriedade dos
receptores, de “transformar” estímulos em

28
impulsos nervosos, é referida como sendo sua
função de transdução sensorial.

Através da transmissão sináptica6 os


receptores nervosos, ou os neurônios que os
contém, se “comunicam” com outros neurônios
formando vias nervosas (que conectam neurônios
distantes entre si) ou circuitos nervosos (que
conectam neurônios próximos). Cada via ou
circuito nervoso tem uma localização e um trajeto
anatômico específico dentro do corpo, o que é
determinado desde a embriogênese e é específico
de cada espécie, e pode ser associada a uma
“função” também específica.

Há dois tipos principais de vias nervosas:

 Sensoriais, que são aquelas que


recebem informações provenientes dos
receptores e estão envolvidas na
determinação das sensações e
percepções, e;
 Motoras, que se “conectam” com os
músculos e as glândulas, e que estão
envolvidas no controle dos movimentos
e de diferentes tipos de secreções
corporais.

Por sua vez, há circuitos nervosos


associados à modulação da atividade das vias
motoras e sensoriais, à memória, ao sono e à
vigília, à ‘linguagem’ e à aprendizagem, dentre

6
O que equivale a dizer: através das sinapses, e neste caso específico,
através das sinapses químicas.

29
outros, sendo responsáveis por diferentes funções
sensoriais, motoras e cognitivas7.

As vias sensoriais se agrupam constituindo


distintos sistemas sensoriais (como o sistema
visual, sistema auditivo, sistema olfativo, sistema
gustativo, sistema somatossensorial8 e sistema
vestibular9) e levam “informações” dos receptores
até estruturas anatômica e hierarquicamente
superiores do Sistema Nervoso, chegando à
regiões específicas do córtex cerebral 10,
denominadas córtices ou áreas sensoriais
primárias (Figura 4). Quando estas regiões são
excitadas e em seguida há o espalhamento desta
excitação através de outras regiões, ocorrem os
fenômenos da ‘sensação’ e ‘percepção’. Logo,
diferentes sensações e percepções são
determinadas por diferentes regiões do córtex
cerebral, por sistemas sensoriais e por receptores
nervosos específicos, quando estimulados por
estímulos também específicos.

7
As funções cognitivas envolvem muitas vias e estruturas nervosas, não
permitindo uma concepção tão “localizacionista” e simplificada como
estou apresentando. Além disso, as sensações e ações são
reciprocamente dependentes, o que é discutido com mais profundidade
em [6,7].
8
O sistema somatossensorial conduz “informações” de receptores de
toda superfície corporal, articulações, músculos esqueléticos e tendões, e
está envolvido na determinação do tato, dor, temperatura e
propriocepção (percepção da posição do corpo no espaço e do seu
movimento).
9
O sistema vestibular está envolvido na determinação da posição da
cabeça no espaço e na ‘percepção’ do seu movimento angular, e contribui
para a modalidade sensorial do equilíbrio.
10
O córtex cerebral é a região mais externa do cérebro.

30
Figura 4. Figura mostrando as diferentes áreas sensoriais
primárias no córtex cerebral e as sensações e percepções
com as quais estão envolvidas. Fonte: adaptado a partir de
https://goo.gl/NHiXPk.

A partir deste paradigma os pesquisadores


buscam compreender quais características ou
atributos dos estímulos são capazes de excitar
cada tipo de receptor e com isso definem
subclasses de receptores nervosos, como por
exemplo, mecanoceptores excitáveis por vibração
ou por pressão, ou receptores luminosos sensíveis
a determinado comprimento de onda do estímulo
luminoso. Podem ainda estudar as respectivas
regiões corticais que são excitadas, ou os
diferentes neurônios em uma via nervosa para

31
compreender de que forma os atributos dos
estímulos são “processados” ou “computados” na
via em questão, dando origem à diferentes
aspectos ou submodalidades sensoriais. Por
exemplo, a modalidade sensorial denominada tato
apresenta submodalidades que são a
discriminação da localização do estímulo, sua
intensidade e pressão, enquanto a modalidade
sensorial denominada visão apresenta as
submodalidades de cor, forma e posição. Vou
denominar esta abordagem explicativa de
Princípio da Linha Rotulada, ou das Energias
Sensoriais Específicas. Ela está representada na
Figura 5 a seguir.

Figura 5. Princípio das Energias Sensoriais Específicas


aplicado ao estudo de uma via nervosa. Fonte: elaborado
pelo autor.

Utilizando estes princípios, em artigos de


1959 e 1960 Maturana e outros pesquisadores
tratam da explicação a respeito de uma série de
estruturas e operações do sistema visual de rãs e
sua busca experimental era por correlações entre
atributos específicos dos estímulos visuais e

32
padrões de atividade elétrica no Sistema Nervoso.
Eles acreditavam que estes atributos eram
responsáveis por determinar tanto as percepções
como os consequentes comportamentos
adaptativos frente os estímulos.

Por exemplo, é conhecido o fato de que as


rãs se alimentam de estímulos que se
movimentam diante dos seus olhos e que são
precisas em lançar sua língua e capturar estes
estímulos, que em seu ambiente natural são
insetos vivos voando. Mas como as rãs são
capazes de acertar seus alvos em movimento com
tamanha precisão? De que forma elas são capazes
de obter e processar rapidamente informações
sobre o movimento dos insetos dos quais se
alimentam e captura-los com tanta eficiência?

Para entender os mecanismos por trás


deste comportamento os pesquisadores
implantavam eletrodos de registro de atividade
elétrica em certos neurônios do sistema visual de
rãs. Em seguida, mantinham as rãs imobilizadas
e apresentavam a elas uma série de estímulos em
movimento horizontal ou vertical, enquanto
realizavam registros da atividade elétrica destes
neurônios.

A partir destes estudos foram obtidas


correlações entre os estímulos apresentados e a
atividade elétrica dos neurônios, mostrando que
alguns deles aumentavam sua atividade
preferencialmente diante de movimentos
horizontais enquanto outros, diante de

33
movimentos verticais. A conclusão foi que a
atividades dos neurônios era determinada por
características dos estímulos, e que certos
neurônios estavam envolvidos na codificação da
informação que levava a percepção de
movimentos horizontais enquanto outros, na
percepção de movimentos verticais.

Em 1961 Maturana iniciou novas


pesquisas sobre percepção visual, em parceria
com Samy Frenk, utilizando pombos ao invés de
rãs, partindo do mesmo paradigma explicativo e
objetivo. Especificamente eles buscavam
identificar diferentes classes de células
ganglionares da retina responsáveis pela
detecção do movimento, assim como nos estudos
com as rãs. Eles fizeram isso para verificar se as
conclusões obtidas através dos estudos com as
rãs eram generalizáveis para os pombos, que são
animais filogeneticamente11 mais “aparentados”
com os seres humanos do que as rãs. Nestes
estudos eles chegaram as mesmas conclusões.

As células ganglionares são um tipo de


neurônio que recebe “informações” provenientes
dos fotorreceptores (receptores luminosos) e cujos
axônios12 dão origem ao nervo óptico, ou seja,
são a via de saída de “informações” da retina em

11
Filogeneticamente pode ser compreendido como “em termos
evolutivos”, considerando que há uma evolução das espécies nas quais os
mamíferos (como os seres humanos) e aves (como os pombos) são
organismos mais “recentes” do que as rãs (que são anfíbios).
12
Axônios são os prolongamentos dos neurônios que fazem conexões
sinápticas com outros neurônios (ou também com células musculares e
secretoras).

34
direção ao cérebro, onde estas “informações” são
“processadas”, determinando à percepção visual.

Um esquema da estrutura da retina pode


ser observado na Figura 6 a seguir.

Figura 6. Esquema da retina, que está localizada no interior


do globo ocular, na região mais posterior. Os fotorreceptores
estão localizados na camada mais profunda da retina e são
responsáveis por captar os estímulos luminosos que
atravessam outras camadas de células (formadas por células
ganglionares, amácrimas, bipolares e horizontais). A seta
vertical indica a direção do “fluxo de informações” após a
estimulação dos fotorreceptores pela luz. Os axônios das
células ganglionares formam o nervo óptico, que leva a
“informação” para o cérebro. Fonte: adaptado a partir de [8]

Quando em 1964 Gabriela Uribe se juntou


ao grupo de pesquisadores, ao invés de estudar a
percepção de movimento, como haviam feito até
então, eles começaram a estudar a percepção de

35
cores (outra submodalidade sensorial da
percepção visual). Para isso, os pesquisadores
apresentavam aos pombos discos com diferentes
cores. Diferentes grupos de pombos eram
treinados a bicar discos com cores específicas e só
em função disso recebiam alimento. Esta era uma
forma de “saber” que os pombos eram capazes
identificar discos de cores diferentes, ou seja,
uma forma indireta de avaliar sua percepção de
cores.

Nestes estudos, diferentemente dos que


haviam sido realizados até então, os
pesquisadores não conseguiram encontrar
correlações entre diferentes atributos dos
estímulos visuais (diferentes comprimentos de
onda específicos das cores de cada disco) e a
atividade elétrica das células ganglionares da
retina. Diferentes cores podiam dar origem a um
mesmo padrão de atividade elétrica, sem uma
relação unívoca e correlacionada entre esse
atributo e a correspondente percepção de cores, o
que não encontrava uma explicação a partir do
paradigma explicativo utilizado até então.

Foi aí que, ao invés de buscar correlações


entre a atividade elétrica na retina e o
comprimento de onda dos estímulos visuais, eles
começaram a utilizar uma nova abordagem:
procurar correlações entre a atividade elétrica na
retina e a percepção de cores, e então eles
encontraram essa correlação [9–11]. Dito de outra
forma: ao invés de encontrar uma correlação
entre atributos do estímulo (externos ao

36
organismo, e que estes pesquisadores supunham
serem os responsáveis por determinar as
percepções) e a atividade elétrica do Sistema
Nervoso (interna ao organismo), o que eles
encontraram foi uma correlação entre a atividade
elétrica do Sistema Nervoso (interna ao
organismo) e a percepção visual (também interna
ao organismo).

A conclusão foi que a percepção não é um


fenômeno determinado por características dos
estímulos, mas pela própria atividade do
organismo, especificamente, por um padrão de
atividade elétrica do Sistema Nervoso. Logo, a
percepção não faz referência a algo externo ao
organismo, mas é determinada por um estado
interno.

Essa conclusão levou à explicação que o


Sistema Nervoso opera como uma rede fechada de
correlações internas, ou seja, em uma clausura
operacional, na qual os estímulos provenientes
do ambiente atuam como perturbações que
desencadeiam alterações no Sistema Nervoso,
mas não as determinam [1, 2, 5, 12 e 13].

Isso equivale a dizer que o Sistema Nervoso


é autorreferente, de modo que as percepções não
correspondem a representação de uma realidade
externa, mas devem ser compreendidas como a
criação contínua de novas relações dentro da rede
neural, cujos fenômenos aos quais dá origem
(como a percepção) se referem a estados de

37
atividade da própria rede13 durante as interações
do organismo com seu ambiente.

A consequência mais impressionante desta


conclusão é que estes estados de atividade e as
percepções correspondentes são específicos de
cada indivíduo e dependem da sua estrutura
presente, que é produto de uma história
individual específica. Nas palavras de Maturana e
Varela (em um momento posterior a estes estudos
seminais, mas fazendo referência a eles):

(...) os estados de atividade neural que são


desencadeados pelas diferentes perturbações
em cada pessoa são determinados por sua
estrutura individual, e não pelas características
do agente perturbador. [1]

Essa nova abordagem tornou necessário


tratar a atividade do Sistema Nervoso como
determinada por ele mesmo e não por um mundo
externo. Os resultados destes estudos foram
publicados em 1968, segundo Maturana “em um
artigo muito desconhecido” do público científico da
época [5].

Mais fundamental ainda foi a conclusão de


que, se o Sistema Nervoso opera em clausura
operacional, não é possível distinguir na
experiência entre erros, ilusões e percepções, e
que isso é uma condição constitutiva dos seres

13
Explicarei a seguir que as percepções pertencem a um outro domínio
fenomenológico, que não aquele no qual opera o sistema nervoso.

38
humanos, e não uma limitação do operar do seu
Sistema Nervoso [2, 12 e 13].

Este sistema opera como uma rede fechada


de componentes (os neurônios) na qual todos os
fenômenos que ocorrem são determinados pelo
estado da rede neural no momento de sua
ocorrência e não por estímulos que possam atuar
sobre ela, e opera de modo auto referido e não
fazendo representações do mundo como até então
se imaginava (uma visão denominada
representacionalismo e que persiste até hoje nos
estudos neurocientíficos).

Essas conclusões são as bases da Biologia


do Conhecer e aparecem pela primeira vez no
artigo “The neurophysiology of cognition: a multiple
view”14 em 1969 (posteriormente reeditado e
publicado em 1970 com o título “Biology of
Cognition”15), que destaca o Sistema Nervoso como
um sistema operacionalmente fechado, auto
referido, cujos resultados do seu operar (que
podem ser explicados por um observador) não
dependem de representações de um mundo
exterior, tampouco são determinados por
estímulos ambientais, mas dependem do estado
de ativação interno da rede neural [3].

Chegando a conclusões muito similares


estudando o fenômeno da Sensação do Membro
Fantasma, Patrick Wall e Ronald Melzack
propuseram em 1965 que a sensação de dor não é

14
A Neuroifisiologia da Cognição: uma visão abrangente.
15
Biologia da Cognição.

39
determinada pela estimulação periférica de
receptores nervosos, mas é “fruto de uma
simulação interna do cérebro” que “emerge como
consequência de um padrão altamente distribuído
de atividade elétrica cortical” [6]16.

Sem fazer referência aos estudos de


Maturana e a todas as suas demais reflexões, o
neurocientista Miguel Nicolelis propõe aquilo que
denomina de perspectiva ou ponto de vista do
próprio cérebro, que constitui o cerne de sua
Hipótese do Cérebro Relativístico [6,14] cujas
concepções são muito similares àquelas de
Maturana. Voltarei a comentar a respeito dessa
hipótese mais adiante.

Auto Referência, Autopoiese e


Criação de Mundos
A ideia de auto referência também aparece
na busca pela explicação sobre o que são os seres
vivos, quando no livro “De Máquinas y Seres
Vivos: Una teoría sobre la organización biológica” 17
de 1973, Maturana e Varela propõem que eles são
sistemas moleculares cuja ‘organização’ que os
caracteriza foi denominada por estes autores de
organização autopoietica molecular (ou
autopoiese).
16
Não posso afirmar se Maturana teve acesso à essas conclusões, ou se
Wall e Melzack (que também trabalhavam no MIT com Donald Hebb
nessa mesma época) podem ter sido influenciados pelas reflexões de
Maturana. O provável é que ambas reflexões “surgiram” a partir de um
mesmo zeitgeist (ou “espírito do tempo”, entendido como “contexto
sociocultural”).
17
De Máquinas e Seres Vivos: uma teoria sobre a organização biológica.

40
A autopoiese diz respeito às relações que
ocorrem em uma rede de componentes
moleculares operacionalmente fechada (auto
referida ou com ‘organização circular’), que
produz os componentes necessários ao operar da
própria rede como unidade discreta no espaço.
Nas palavras de Maturana e Varela:

Um ser vivo ocorre e se constitui na dinâmica de


realização de uma rede de transformações e
produções moleculares, de forma que, todas as
moléculas produzidas e transformadas no operar
dessa rede fazem parte dela, e através das suas
interações: (1) geram a rede de produções e
transformações que as originou; (2) dão origem às
bordas e à extensão dessa rede como parte de seu
operar dentro dela, de modo que ela está fechada
sobre si mesma constituindo um ente molecular
discreto – separado do meio molecular que o
contém; e (3) configuram um fluxo de moléculas
que ao incorporar-se na dinâmica dessa rede
passam a ser seus componentes, e ao deixar de
participar dessa dinâmica deixam de ser seus
componentes e passam a fazer parte do meio.
[15]

Os seres vivos são sistemas autopoieticos


moleculares, nos quais o ser e o fazer estão inter-
relacionados de forma indissociável: eles são o
que fazem e seu fazer os caracteriza como o que
são.

Todos os fenômenos biológicos, por sua


vez, são aqueles que ocorrem através da
realização da autopoiese de pelo menos um ser

41
vivo e tudo o que se passa com eles (seja na
solidão do seu operar como unidades autônomas,
nos fenômenos de suas interações com o
ambiente, ou na convivência com outros
organismos) surge e se concretiza neles mesmos
através de sua realização individual como
unidades autônomas, como ‘entes’ auto referidos
[15].

É importante destacar que desde sua


proposição o termo autopoiese tem sido utilizado
de forma ampla e infelizmente inadequada em
muitas ocasiões, como é possível observar pela
leitura de textos que tratam sobre o assunto, mas
também através de comentários dos próprios
autores. Maturana, por exemplo, em mais de uma
ocasião critica o uso do termo autopoiese por
Niklas Luhman para caracterizar os sistemas
sociais [16]. Varela compartilha dessa crítica e
destaca que há uma utilização abusiva do termo,
uma transposição que tem sido realizada
principalmente pelas ciências humanas, ao que
costuma se referir como “utilização metafórica ou
metonímia do termo” [15].

Depois da proposição da Teoria da


Autopoiese Maturana e Varela seguiram caminhos
reflexivos distintos, mas em 1980 eles foram
convidados pela Organização dos Estados
Americanos (OEA) para realizar uma série de
palestras, organizadas por Rolf Benhcke, que
foram posteriormente transcritas e editadas no
livro “El Arbol del Conocimiento: Las Bases

42
Biologicas del Conocer” 18, lançado em 1984.
Mesmo se tratando de um livro introdutório e de
divulgação científica, ele “traz os principais
conceitos da Biologia do Conhecer, elaborado com
uma argumentação que os apresenta de modo
progressivo no texto” [3].

Maturana e Varela iniciam o primeiro


capítulo deste livro dizendo que tendemos a viver
num mundo de certezas. Sempre que partimos do
princípio de que já sabemos algo as portas para a
compreensão se fecham, pois “o mais óbvio e o
mais próximo são sempre difíceis de perceber” [1].
Ocorre que mesmo a percepção do mundo que
nos cerca, com sua aparente solidez, começa a
ruir quando voltamos o olhar e buscamos
compreender certos fenômenos típicos de nossa
vivência cotidiana, como Maturana concluiu a
partir de seus estudos sobre a percepção das
cores. Os autores fazem então um convite para
que os leitores abandonem a “tentação da
certeza”, movimento sem o qual não será possível
compreender suas explicações. Isso porque sua
proposta é refletir sobre o conhecimento
utilizando nosso próprio conhecimento nessa
reflexão, mas se já partirmos de ideias pré-
concebidas (o que poderíamos chamar de
certezas) não avançaremos em relação às ideias
que temos a priori. Em seguida apresentam
experiências que demonstram a fragilidade de
nossas “certezas perceptivas”, como uma forma

18
A Árvore do Conhecimento: as Bases Biológicas do Conhecer.

43
mais acessível de “experienciar” as conclusões do
artigo de 1968 citado anteriormente.

Uma delas é parecida com aquela do vídeo


que sugeri anteriormente e trata do ponto cego da
retina. Ela permite concluir que apesar desse
ponto cego nossa percepção visual não apresenta
descontinuidade, a não ser em certas situações
especiais como na experiência que eles explicam e
propõem [12]. Há vários exemplos dessas
experiências que mostram que em nossa própria
vivência cotidiana não é possível distinguir entre
ilusões e percepções; esses exemplos são
denominados “ilusões de óptica”. Da mesma
forma, o experimento que propus anteriormente e
que consiste na observação do movimento dos
seus olhos por você mesmo (que não consegue
observar que eles se movem) e simultaneamente
por um observador (que vê eles se movendo
lateralmente) permite chegar as mesmas
conclusões.
Voltando a este experimento da observação
do movimento dos olhos no espelho, como é
possível que você não veja seus olhos se mexendo
e a outra pessoa veja? Há aí dois fenômenos
relacionados à percepção visual: a supressão
sacádica e a integração transacádica.

Quando olhamos para algum objeto nossos


olhos realizam pequenos movimentos
denominados movimentos sacádicos, ou
sacadas. Hoje em dia sabemos que entre cada um
desses movimentos o sistema visual se torna

44
inativo, ao que denominamos de supressão
sacádica. Veja que se isso ocorre dessa forma a
coisa se torna mais interessante ainda, pois além
de um “ponto cego morfológico” na retina
(comentado anteriormente) há vários “pontos
cegos funcionais”, que correspondem a essa
descontinuidade no funcionamento do
“processamento de informações” pelo sistema
visual. Ocorre que mesmo assim nós temos uma
experiência de continuidade na percepção visual
graças ao fenômeno da integração trasnsacádica,
que diz respeito a integração das informações
obtidas no intervalo entre as sacadas (quando os
olhos estão parados), desconsiderando o
“desligamento” que ocorre durante as supressões
sacádicas.

A Teoria da Cópia Eferente (ou


Prediction Code) [7,17]19, que é uma das
explicações mais atuais para a percepção, propõe
que aquilo que percebemos é a diferença entre
nossas expectativas e o que ocorre além disso.
Como nossos Sistema Nervoso tem acesso aos
“planos” dos nossos movimentos, estes já são
esperados e são então “descontados” da percepção
que ocorre. Quando você observa seus olhos no
espelho enquanto eles se movem, seu Sistema
Nervoso tem acesso ao plano dos movimentos dos
seus próprios olhos e “desconta” essa
“informação”. O resultado, graças à integração

19
Pretendo aprofundar minhas reflexões a respeito dessa abordagem
teórica em trabalhos futuros, e suas relações com a Biologia do Conhecer,
a Biologia-Cultural e a Biologia-Cultural do Conhecer.

45
transacádica, é que você vê os seus olhos
parados. Enquanto isso, quem está observando o
movimento dos seus olhos não tem acesso ao
plano dos movimentos que estão ocorrendo com
você, logo, para esta pessoa estes movimentos não
são esperados e são “computados” como parte da
percerpção. Vou voltar a falar sobre isso, mas esta
forma de explicar admite que não são os
estímulos externos que determinam nossas
percepções, mas sim os estados de atividade
neural gerados internamente pelo próprio Sistema
Nervoso em sua clausura operacional.

Isso permite concluir que dois


observadores observando um mesmo fenômeno
podem assumir diferentes “perspectivas”, que
correspondem à diferentes ‘percepções’, que por
sua vez dependem de diferentes estados do
Sistema Nervoso de cada um deles.

Essas experiências e achados


experimentais reforçam a conclusão de que as
percepções não são um processo passivo de
captação de informações do meio, representadas
pelo Sistema Nervoso a partir de características
ou atributos dos estímulos, mas sim um processo
ativo de construção de um mundo, logo, uma
ação do sujeito que conhece/percebe a partir de
sua própria estrutura. Daí dois famosos aforismos
de Maturana e Varela: “todo ato de conhecer
produz um mundo” e “todo fazer é um conhecer e
todo conhecer é um fazer” [12]. Ainda, segundo
esses autores:

46
(...) nossa experiência está indissoluvelmente
atrelada à nossa estrutura. Não vemos o “espaço”
do mundo, vivemos nosso campo visual; não
vemos as “cores” do mundo, vivemos nosso
espaço cromático. Sem dúvida nenhuma (...)
estamos num mundo. No entanto, quando
examinarmos mais de perto como chegamos a
conhecer este mundo, descobriremos sempre que
não podemos separar nossa história das ações –
biológicas e sociais – a partir das quais ele aparece
para nós. [1]

Se as percepções são determinadas pela


estrutura de quem conhece, e o fazer e o
conhecer são indissociáveis, isso leva a um
segundo aforismo que diz que “tudo que é dito, é
dito por alguém” [12], ou seja, é uma ação
específica realizada por um sujeito específico e
determinada por sua estrutura específica. Esta é
outra reflexão que permite explicar a
indissociabilidade entre o ser, o fazer e o
conhecer. Recentemente Maturana propõe que
“tudo que é dito é dito por um observador a outro
observador, que pode ser ele mesmo” [13]. A seguir
explicarei mais a respeito de quem é este
observador.

Deriva Natural e Determinismo


Estrutural
Em 1992 Maturana publica, em coautoria
com Jorge Mpodozis, o livro “Origen de las
espécies por médio de la deriva natural, o la
diversificación de los linajes a través de la

47
conservación y cambio de fenótipos
20
ontogenéticos” . No livro os autores aprofundam
as reflexões iniciadas no livro “A Árvore do
Conhecimento” no que diz respeito a uma nova
abordagem para a evolução dos seres vivos
através de uma deriva natural: um contínuo
processo de acoplamento estrutural entre
organismo e seu nicho ecológico, com variações
estruturais e manutenção da autopoiese e da
adaptação, no qual não há um propósito ou
finalidade (como a adaptação ao meio, ou a
manutenção do fitness21), mas um “vir a ser”
determinado a cada momento pela estrutura
daqueles que interagem (organismos entre si, ou
organismos e ambiente). Dentro desta
perspectiva:

Todo ser vivo é o resultado de uma dinâmica


espontânea e, portanto, não propositiva [15] (...).
As noções de finalidade, intencionalidade e
propósito surgem apenas nas reflexões do
observador [15].

Além disso, dentre outras conclusões,


propõem que o que caracteriza uma espécie é seu
modo de vida, ou fenótipo ontogenético, e não
uma bagagem genética ou uma morfologia.

20
Origem das espécies por meio da deriva natural, ou a diversificação das
linhagens através da conservação e mudança de fenótipos ontogenéticos.
21
O conceito de fitness é um refinamento da ideia de sucesso
reprodutivo, e será explicado a seguir.

48
No encontro entre as explicações da Teoria
da Autopoiese e da Deriva Natural, a Biologia do
Conhecer considera que nós, os seres humanos,
vivemos nosso viver como sistemas autopoieticos
moleculares num contínuo “vir a ser” não
propositivo, em constante mudança estrutural
(que constitui nossa ontogênese), mas mantendo
nossa autopoiese e nossa adaptação ao meio.
Além disso, tudo aquilo que acontece conosco é
determinado por nossa estrutura presente e pelos
nossos emocionares, que são predisposições para
a ação. Consequentemente, os estímulos
provenientes do mundo (os estímulos sensoriais),
ou provenientes de outros seres humanos (através
de processos comunicacionais, durante as
interações sociais), não podem ser considerados
portadores de “informações”, por não serem
capazes de determinar quaisquer fenômenos nos
organismos sobre os quais atuam. Eles agem
como perturbações (ou agentes perturbadores)
que desencadeiam ou “gatilham” fenômenos
determinados pela ‘estrutura’ sobre as quais
atuam, ou seja, eles guiam, induzem ou
desencadeiam o curso das mudanças estruturais,
sem as determinar. Isso constitui o que a Biologia
do Conhecer denomina determinismo
estrutural.

49
Determinismo Estrutural: uma
concepção que incomoda muita
gente
A palavra “determinismo” gera muito
incômodo e controvérsia, pois parece se opor aos
conceitos de “liberdade” ou “livre-arbítrio”. Vamos
então abrir mão de algumas “certezas” e
conversar a respeito para compreender a que se
refere esta concepção.

Imagine que você está dirigindo e de


repente o seu carro pára de funcionar. Então você
gira a chave no contato e o carro não liga. Nesta
situação você imagina que há algo de errado com
o carro ou que é a sua mão que está com
problemas, já que ela gira a chave e o carro não
funciona? Agora imagine que o seu celular não
funciona. Ele está ligado, mas você toca na tela e
nada acontece. Neste caso, você imagina que há
algo errado com o celular, ou que o dedo que toca
a tela é que está com problema?

Estas perguntas podem parecer absurdas


já que suas respostas são “óbvias”, mas vamos
pensar um pouco mais a respeito, pois respondê-
las nos leva a uma importante reflexão.

Nestes casos você acredita que há algo de


errado com o carro e o celular, não é mesmo? E
isso acontece porque, mesmo sem ter ciência
disso, assumimos que tudo o que ocorre com os
objetos ou entes com os quais interagimos é
determinado pela estrutura destes entes. Dito de

50
outra forma, conscientemente ou não assumimos
que há um determinismo estrutural.

O determinismo estrutural implica que


tudo o que ocorre com um ente é determinado
pelo que a sua 'estrutura’ atual permite naquele
dado momento.

Segundo Maturana e Dávila a noção de


determinismo estrutural aponta para o fato que:

(1) tudo aquilo que um observador


distingue e que surge no ato de sua
distinção como uma “coisa”, ente ou
unidade, surge e opera determinado
pelas coerências sensoriais-
operacionais-relacionais de sua
estrutura como observador no instante
em que realiza a observação, e;

(2) o que distinguimos como algo externo a


um ente são perturbações; quando
uma perturbação atua sobre um ente
ela não determina nem especifica o que
acontece com ele durante essa
interação, mas apenas “gatilha”, induz
ou desencadeia mudanças estruturais,
que são determinadas pela estrutura
deste ente no momento da interação [2].

Esta noção já está presente na explicação


para a percepção que apresentei anteriormente,
mas assumí-la implica também que em uma
interação comunicacional cada um é responsável
pelo que diz, mas não pode especificar no outro o

51
que este ouve, já que esse é um fenômeno
determinado pela ‘estrutura’ deste último.

Como então é possível que nos


compreendamos mutuamente e convivamos, e
especificamente: como é possível que haja ensino
e que aprendamos uns com os outros?

A Biologia-Cultural e a Biologia-
Cultural do Conhecer
Após se afastar de suas atividades na
Universidade do Chile, em 2000 Maturana funda
com Ximena Dávila o Instituto Matríztica (em
Santiago do Chile), como “um laboratório
transdisciplinar para o estudo do humano” [13]. Ali
aprofunda reflexões, já iniciadas no livro “A
Árvore do Conhecimento” de 1984 sobre os
fenômenos sociais, a linguagem e a cultura, e
propõe uma série de explicações que constituem a
Biologia-Cultural, que fica conhecida a partir do
livro “Habitar Humano em Seis Ensaios de
Biologia-Cultural”, de 2008 (uma coautoria entre
Maturana e Dávila).

Neste livro os autores apresentam uma


série de ensaios sobre as dimensões biológico-
culturais do viver humano; propõem uma matriz
de coerências operacionais-relacionais, que
denominam Matriz Biológico-Cultural da
Existência Humana, a partir da qual refletem
sobre este viver no entrelaçamento entre a
dinâmica biológica e a dinâmica cultural;
destacam a importância do ‘amar’ como emoção

52
básica que permite aos seres humanos serem o
que são a partir do seu conviver no linguajear22 e;
especificam uma série de Eras Psíquicas da
Humanidade, correspondentes a diferentes
emoções (emocionares) valorizadas e
compartilhadas por diferentes culturas.

Em 2015 Maturana e Ximena Dávila


lançam sua mais recente obra: o livro “El Arbol del
Vivir”23, cujo objetivo é refletir a respeito da
origem do humano e sobre a realização,
manutenção e transformação de distintos modos
de viver e conviver biológico-culturais [2]. Neste
livro os autores apresentam de forma integrada
explicações que consideram as concepções da
Biologia do Conhecer (Teoria da Autopoiese e
Deriva Natural) e da Biologia-Cultural, e fazem
referência a uma epistemologia unitária, como
forma de compreender que todo nosso viver
biológico-cultural é o fundamento operacional-
relacional dos distintos mundo que vivemos [2].
Maturana e Ximena já fazem referência a
um substrato epistemológico unitário no livro
“Habitar Humano em Seis Ensaios de Biologia-
Cultural”, de 2008 [13], que surge a partir da
compreensão da biologia-cultural como condição
do fundamento do viver humano, em nosso operar

22
No decorrer dos anos Maturana opta por usar verbos ao invés de
substantivos, por motivos que ficarão mais compreensíveis a seguir.
Durante o texto será comum que os seguintes termos sejam substituídos:
“amar” ao invés de “amor”, “linguajear” ao invés de “linguagem”,
“emocionar” ao invés de “emoções”, dentre outros. Daí minha escolha
por utilizar “aprender” ao invés de “aprendizagem”.
23
A Árvore do Viver.

53
a partir de uma configuração específica de
sentires. Em 2015 estes autores reafirmam que:

A esse âmbito de processos que, na contínua


realização de nosso viver e conviver humano
como sistemas autopoieticos moleculares,
constitui o fundamento e possibilidade do ocorrer
de todo conhecer e explicar no cosmos que surge
quando explicamos nosso viver com nosso viver, o
chamamos de âmbito epistemológico
fundamental ou epistemologia unitária [2].

(...) [a este arcabouço explicativo] chamamos de


epistemologia unitária, reconhecendo o ser
humano em seu viver-conviver no linguajear, no
conversar e no reflexionar, como o fundamento
sensorial-operacional-relacional de todo saber
(...). [2]

A epistemologia unitária considera o ser


humano biológico-cultural como o fundamento de
todo conhecer. Assume ainda que há uma
relatividade fundamental, que diz respeito ao
fato de só podermos explicar nosso viver a partir
de nosso próprio viver, ou nas palavras dos
próprios autores:

Ao falar de relatividade fundamental (...) estamos


dizendo que tudo o que sucede, e pode suceder,
em nosso viver humano e em nosso reflexionar
sobre o que vivemos, fazemos, pensamos e
imaginamos em nosso viver humano, ocorre na
realização do nosso viver humano (...) nosso viver
humano é ao mesmo tempo a origem e o
fundamento de tudo o que vivemos (...). [2]

54
A epistemologia unitária oferece uma base
para a compreensão sobre o ser, o fazer e o
conhecer humano, como ser biológico-cultural,
considerando a indissociabilidade entre sua
dimensão biológica (como sistema autopoietico
molecular) e cultural (em seu viver no
entrelaçamento entre o emocionar e o linguajear,
que constitui o conversar). Ela integra as
explicações de Maturana desde seus estudos
neurobiológicos, “passando” pela Biologia do
Conhecer e pela Biologia-Cultural, trazendo,
ampliando e reestruturando novas concepções,
como uma deriva histórica das suas reflexões em
colaboração com Francisco Varela, Jorge
Mpodozis e Ximena Dávila. Ela será o arcabouço
teórico, ou o ‘domínio lógico’, sobre o qual farei
minhas reflexões e que constituem o fundamento
daquilo que denomino e proponho como a
Biologia-Cutlural do Conhecer.

As relações que estabeleço entre as teorias


que compõem a Biologia-Cutlural do Conhecer
estão representadas na Figura 6 a seguir.

55
Figura 6. Esquema representando os domínios lógicos que
constituem a Biologia-Cultural do Conhecer. Adaptação do
autor a partir de [3].

Assim como afirmei inicialmente, gostaria


de destacar novamente que toda vez que eu
especificar alguma afirmação da Biologia-Cultural
do Conhecer estou fazendo referência a uma
reflexão que é minha, mas que realizo a partir da
Biologia do Conhecer em seu encontro com a
Biologia-Cultural. Sendo assim, os “conceitos”
que apresento não são de minha autoria, mas sim
minha reflexão a respeito de sua deriva histórica a
partir dos estudos das obras de Maturana (que
tenho apresentado até aqui). A peculiaridade do
que faço é propor uma perspectiva integrada das
reflexões deste pesquisador, articulando sua
produção intelectual a partir da minha
perspectiva, já que “tudo o que é dito é dito por um
alguém”24.

24
Para uma discussão aprofundada sobre a Biologia do Conhecer e as
obras de Humberto Maturana sugiro a leitura da tese “Biologia do
Conhecer: Fundamentos de uma Teoria Biointeracionista sobre a
Cognição para Ensino de Ciências da Natureza” [3].

56
Teorias e Redes de Conversações
Como seres biológico-culturais o que nos
diferencia dos demais seres vivos é o fato que
vivemos no entrelaçamento entre o linguajear e o
emocionar, que constitui o conversar [2,18].

No falar (que é a principal forma de


comunicação humana) os substantivos ocultam
verbos [2]. Isso porque para a Biologia-Cutlural do
Conhecer não há ‘entes’ ou uma ‘realidade’ (aos
quais fazemos referência com o uso de
substantivos) independente das ações humanas
(expressas através de verbos) que os faz surgir
pois, como vimos, o ser, o fazer e o conhecer dos
seres vivos é indissociável. Além disso, graças ao
determinismo estrutural, tudo que nos ocorre é
determinado por nossa estrutura e pelo seu
operar, e não existe independentemente destes.

Por isso, ao nos referirmos à linguagem


(substantivo) estamos nos referindo (ou as vezes
ocultando) as ações que constituem o linguajear,
e ao nos referirmos às emoções (substantivo),
estamos nos referimos (ou as vezes ocultando) as
ações que constituem o emocionar.

Os emocionares (ou as emoções) dizem


respeito à diferentes predisposições para a ação,
logo, especificam diferentes domínios de
condutas, ou dito de outra forma, são
configurações sensório-relacionais distinguidas
por um observador [2, 21].

Através da reflexão que o linguajear


permite podemos optar por mudar nosso

57
emocionar e, com isso, mudamos nosso domínio
de ações. Maturana utiliza o termo emocionear
para fazer referência a mudanças no emocionar,
ou seja, ao nosso movimento de uma emoção para
outra [2] .

Para a Biologia-Cultural do Conhecer o que


guia o viver dos seres vivos, e nosso viver como
seres humanos, são nossos emocionares mas,
como seres biológico-culturais linguajeantes,
podemos utilizar argumentos racionais para
justificar nossas ações sem necessariamente nos
darmos conta da relevância destes emocionares.
Não há nenhum prejuízo em racionalizar (criar
argumentos racionais) a não ser que o
ocultamento dos emocionares subjacentes as
nossas ações levem ao mal-estar. Logo, é
importante ter em vista que todo argumento
racional opera com premissas básicas aceitas a
priori a partir de nossos desejos, vontades e
preferências, ou seja, de nosso emocionar.
Argumentos racionais são construções
conceituais consensuais e de caráter operacional,
dentro de um domínio de coerências do nosso
viver que passa a constituir um domínio lógico
[2,13]. Na grande maioria das ocasiões não temos
clareza dos emocionares que guiam nossas ações
e argumentações racionais, ou da relevância deles
para nosso viver nas redes de conversações que
elas constituem e sustentam. Entretanto:

(...) se queremos mudar ou transformar o mundo que


vivemos, devemos mudar as redes de conversações

58
que geramos em nosso viver-conviver cotidiano (...).
E devemos fazê-lo desde um ato reflexivo que nos
permita ver e compreender o mundo que geramos
em nosso viver (...). [2]

Em nosso viver vivemos inseridos em redes


de conversações, criamos ou adotamos teorias (e
consequentemente domínios lógicos) que
constituem sistemas argumentativos coerentes
com as regularidades do nosso viver e com isso
definimos o âmbito do nosso pensar racional, a
partir dos emocionares que as teorias ocultam.
Então as noções e conceitos que adotamos
passam a guiar, seja de forma consciente ou
inconsciente, nosso viver e conviver. Segundo
Maturana e Dávila:

Uma teoria é um construto lógico explicativo


proposto por um observador, a partir de
abstrações que ele ou ela faz, das coerências
sensoriais-operacionais-relacionais de seu operar
em algum âmbito particular da realização do seu
viver que quer explicar, e que escolhe desde seus
sentires íntimos25 (...) como premissas
fundamentais para construir todo seu pensar e
seu fazer, no âmbito particular de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais da realização
do seu viver que deseja compreender [2].

Entretanto, quando alguma circunstância


inesperada como, por exemplo, quando nós

25
Explicarei a seguir com mais detalhes a distinção entre emoções
(emocionar) e ‘sentires íntimos’.

59
mesmos ou alguém por quem temos afeto se vê
discriminado ou sofre em função das implicações
das teorias que adotamos, somos levados a refletir
sobre elas. Esta reflexão, por sua vez, nos leva a
pensar sobre como fazemos o que fazemos e sobre
os emocionares subjacentes aos nossos fazeres,
em busca da expansão de nossas ações e
compreensões. É por este motivo que apresento a
seguir algumas experiências que vivi, como forma
de contextualizar as questões reflexivas que
passei a elaborar desde então e que constituem os
objetivos deste livro.

Professor e pai de alunos


Havia um aluno do curso de Fisioterapia do
qual nunca esquecerei. Sua fluência em escrita
era bastante limitada, segundo minha avaliação
na época, e suas notas eram abaixo da média. Ele
já havia sido reprovado mais de uma vez na
disciplina que eu ministrava (Fisiologia Humana)
e também em várias outras, e isso poderia se
tornar um empecilho para a obtenção do diploma
que ele tanto desejava (em várias de nossas
conversas ele deixava claro como queria ser
Fisioterapeuta).

Como seria possível este aluno exercer sua


prática clínica sem saber, dentre outras coisas, a
respeito das bases do funcionamento do
organismo em condições de saúde? Afinal de
contas, eu havia sido educado a partir de uma
abordagem teórica (implícita na fala e nas ações

60
de muitos dos meus professores e nas estruturas
curriculares que vivenciei) na qual o pensamento
humano funciona aprendendo sobre as coisas
mais simples e as articulando em estruturas
conceituais mais complexas, que permitem
compreender como é a ‘realidade’ e, por conta
disso, (sem refletir) eu assumia que só assim
podemos agir no mundo de forma racional e
planejada, como exige a atuação de um
profissional da saúde.

Eis que um dia eu vi o aluno com uma


paciente na clínica escola, durante uma atividade
de estágio. Eu o observava de um mezanino e ele
não podia me ver. Ele tratava a paciente (uma
senhora com cerca de 60 anos) com tanta atenção
e cuidado que fiquei impressionado ao perceber
que aquele era o “mau aluno”, segundo a minha
opinião e dos meus colegas professores. A
paciente estava totalmente à vontade e confiante
em relação a cada palavra que ele proferia quando
a orientava na realização de um exercício com o
qual ela sentia certa dificuldade, mas que
realizava com dedicação graças ao incentivo e às
orientações do aluno. Ao sair dali sorridente, nem
parecia que a queixa da senhora eram dores
lombares que a impossibilitavam de realizar a
maioria das tarefas do dia a dia. Conversando
com meus colegas professores, que orientavam o
aluno durante este estágio, descobri que ele
estava alcançando grandes sucesso no tratamento
desta paciente.

61
Então eu refleti sobre o que é realmente
preciso aprender para se tornar um bom
profissional da saúde, pois aquele aluno, que para
a paciente já atuava como um excelente
Fisioterapeuta, não conseguia aprender a minha
“valiosa” disciplina de Fisiologia e tantas outras
“tão fundamentais”, pois dariam as bases para
sua atuação profissional, segundo minha
concepção na época. Afinal de contas, é preciso
conhecer e saber explicar para saber fazer? Isso é
aprender?

Outra aluna inesquecível era do curso de


Biologia. Durante as aulas ela parecia estar em
outro mundo e até chegava a se sentar de costas
para a lousa, sem a menor cerimônia. Outro
exemplo de “mau aluno”. Suas notas eram
“péssimas” e seu comportamento era considerado
“inadequado” por mim e pela grande maioria dos
professores. Várias reprovações, a “cara
emburrada” de sempre e um dia ela simplesmente
desapareceu. Então eu a reencontro dois anos
depois, sorridente e vestida de branco. Veio em
minha direção com os braços abertos, parecendo
feliz em me ver. Então conversamos. Ela saiu do
curso de Biologia “quase em depressão”, pois
achava que havia algo errado com ela já que era
“incapaz de aprender”. Seu pais ficaram
preocupados pois, a partir dali, “sua autoestima e
sua vida começaram a desabar” e então
procuraram a ajuda de um psicólogo.

Depois de algum tempo de terapia ela


entendeu, dentre outras coisas, que deveria ir

62
atrás do seu sonho de cursar Medicina
Veterinária, que havia sido adiado pois,
juntamente com seus pais, ela julgou que não
seria capaz de lidar com o sofrimento dos
animais, tampouco de dar conta dos estudos, já
que não gostava muito de estudar (segundo ela,
foi por isso que decidiu fazer Biologia ao invés de
Medicina Veterinária).

Curioso após nossa conversa, perguntei ao


coordenador do curso de Medicina Veterinária e a
outros colegas professores sobre a aluna em
questão e fiquei sabendo que era uma das
“melhores” e “mais dedicada”. Agora parecia outra
pessoa, dava para ver que estava feliz e que o
curso de Biologia tinha sido uma “escolha ruim”,
com ela mesmo dissera. Nem parecia a “péssima
aluna” de anos atrás.

Então eu me questionei sobre os critérios


que nós professores utilizamos para classificar os
“maus alunos”, o quanto eles realmente dizem
respeito ao seu “potencial de aprendizagem” e
quanto sofrimento essa classificação pode causar,
sem nos darmos conta disso.

‘Percebi’ também que aquilo que


‘distinguimos’ como “problemas de aprendizagem”
tem a ver, na grande maioria dos casos (1) com
certa “insatisfação” e “falta de motivação” por
parte dos alunos para estudar e aprender o que
está especificado nos projetos pedagógicos, mas
também (2) com nossa insatisfação como
professores quando nossos alunos “não se

63
comportam como gostaríamos”, seja quando
observamos seus comportamentos durante as
aulas, ou quando avaliamos de forma ‘objetiva’
sua aprendizagem através do resultado das
provas as quais os submetemos.

No caso do ensino superior a insatisfação


dos alunos tem muita relação com os critérios
utilizados para escolha da carreira (que dizem
respeito às questões de orientação vocacional e
profissional) que os levam a fazer escolhas das
quais posteriormente se arrependem e aí não se
sentem ‘motivados’ em estudar (e dão a impressão
de serem “maus alunos”). Ou pode ter sua origem
desde a educação básica, na qual (1) há uma
ênfase excessiva na aprendizagem como
condicionamento e na memorização,
caracterizando o que Paulo Freire denominou de
educação bancária [4] e (2) numa ênfase
excessiva no desenvolvimento da inteligência
lógico-matemática e linguística26 em detrimento
de outros tipos de inteligências, que os alunos
sentem falta de poder exercitar e expressar [19].
Então sempre que os alunos são colocados numa
situação onde há carteiras voltadas para uma
lousa, isso os remete aos anos de vivências
escolares nos quais foram tratados como meros
repositórios passivos de informações, condição a
qual nem todos se adequam com tanta facilidade.
Isso me leva a compartilhar outras duas
26
Que na grande maioria das abordagens considera que o principal
aspecto da linguagem é seu caráter simbólico, como portadora de
informações e significados. Diferentemente, a Biologia-Cultural do
Conhecer propõe uma outra concepção.

64
vivências, agora como pai de aluno, ao invés de
professor.

Meu filho mais velho, sempre rebelde e


“causando problemas na escola”. Não conseguia
ensiná-lo sem que a coisa acabasse em discussão
na qual ele sempre fazia questão de usar o
argumento de que não era como eu e que não
gostava de estudar (como diz o ditado: “santo de
casa não faz milagre”). Não dava a mínima
atenção aos estudos e às lições de casa, chegava a
ser bem arrogante com os professores, muitos dos
quais haviam sido meus alunos e por intermédio
dos quais eu ficava sabendo de vários
acontecimentos. Dedicava toda sua energia na
realização de diversas e criativas travessuras com
seus amigos e à música que, felizmente, era
valorizada na escola onde ele estudava. Como
tinha facilidade em obter a nota mínima
necessária para aprovação, concluiu a educação
básica e foi prestar vestibular para Psicologia.
Então começou para ele um momento de
grande sofrimento e desconforto, já que não
suportava ter que “decorar” física, química e
biologia, para passar no vestibular e, segundo ele,
“perdia tempo com isso ao invés de poder se
aprofundar nos assuntos do seu interesse”, que
tinham a ver com as ciências humanas.
Hoje ele faz o curso de Psicologia e estuda
“tudo aquilo que o interessa” com uma dedicação
e profundidade que me impressionam, mas foi por
pouco que o vestibular quase inviabilizou sua

65
realização. Agora suas “reclamações” em relação
ao ambiente escolar dizem respeito à
“mercantilização do ensino nas universidades”, a
falta de motivação dos seus colegas (o que faz com
que as discussões em sala de aula se tornem
infrutíferas e superficiais) e a um ensinar que não
promove a reflexão.

Enquanto isso, meu filho mais novo


sempre teve o mesmo desinteresse pelos estudos,
“aprontava” na escola e também não fazia as
lições ou, quando fazia, era sempre na base da
cópia de respostas de livros para resolução de
exercícios e do “recortar e colar” informações da
internet para realizar as “pesquisas” solicitadas
(pois percebeu que essas táticas “funcionavam”,
ou seja, lhe rendiam pontos na nota final).

Um dia, conversando com a coordenadora


da escola onde ele estudava quando tinha dez
anos, ela disse que “ele só queria saber de brincar
e conversar com os amigos” e que ela já o havia
aconselhado que era hora de “mudar de atitude e
começar a amadurecer”. Quando eu conversava
com ele a respeito percebia a tristeza no seu
olhar, como ele era ávido pelo convívio com os
amigos, pela conversa e pelas brincadeiras, e
como se sentia oprimido pela escola e pelos
professores que negavam a ele esses momentos.
Ele, que era tão criativo em outras situações,
segundo a maioria dos seus professores “parecia
um fantasma na sala de aula”, “um ótimo menino,
mas com um potencial desperdiçado”. Enquanto
escrevo este texto ele está sofrendo e bem

66
preocupado se vai conseguir concluir o ensino
fundamental. Tudo isso faz ele se julgar “burro e
incompetente”, segundo suas próprias palavras.

Agora ele está tentando “se virar” para


superar suas dificuldades com a leitura e a
escrita, mas pouco motivado para isso (a leitura
de “O Morros dos Ventos Uivantes” de Emily
Bronte, escrito em 1847 e que foi sugerida pela
escola, não tem contribuído muito nesse sentido
graças ao seu “português arcaico”). Confesso que
isso me deixaria muito preocupado, não fosse o
fato de perceber sua criatividade em várias
situações cotidianas, como ele é capaz de criar
piadas com um grau elaborado de ironia e
sarcasmo e de compreender os “memes” que
coleciona (enquanto eu, leitor fluente, nem
sempre consigo entender o que muitos deles
querem dizer), além de observar suas habilidades
de raciocínio lógico nos jogos de videogame aos
quais ele se dedica com todo afinco (enquanto pra
mim ainda parece impossível jogar Clash of
Clams).

Desde 1998, quando iniciei minha


trajetória como professor, coleciono várias
histórias que me levaram a refletir sobre minha
prática docente, o papel da escola na formação
dos seres humanos e a buscar uma maior
compreensão dos processos de aprendizagem,
tendo em vista o aprimoramento da minha prática
no ensino. Em outras palavras, comecei a refletir
profundamente sobre minhas teorias, meus
domínios lógicos, meus emocionares e os sistemas

67
argumentativos que eu utilizava consciente ou
inconscientemente para compreender e explicar o
ensinar, o aprender e o educar, e em última
análise, o próprio ser humano, e que “guiavam”
minhas ações.

Eu também queria entender por que a


escola, que sempre me trouxe felicidade e prazer
pelas descobertas com tudo que eu aprendia, traz
tanto sofrimento às pessoas que ali estão como
alunos, mas também aos professores, que eu vejo
frustrados e sofrendo em sua atuação no
‘ensinar’. Eu mesmo, depois de 20 anos de
atuação docente, apaixonado pelo que escolhi ser
a profissão para a qual me dedicarei por toda a
vida, me vi frustrado, sem rumo e realmente em
sofrimento na minha vivência como professor em
uma instituição particular de ensino superior.

Atualmente eu questiono o papel da escola


como espaço para aprender, ensinar e educar, a
partir de uma concepção da educação como
processo de formação de um “ser humano
integral” [20].

Concordo com Rolf Behncke quando no


prefácio do livro “A Árvore do Conhecimento” diz
que os processos de aprendizagem são parte
fundamental da nossa natureza sociobiológica, já
que são os processos operacionais que geram os
comportamentos humanos [1], e com Humberto
Maturana e Ximena Dávila ao afirmarem que “o
humano é um modo de viver que se conserva de

68
uma geração a outra através da aprendizagem”
[2].

Daí meu interesse na compreensão sobre


os processos que constituem o aprender e o
ensinar.

Educação e sofrimento
A educação contemporânea acabou por se
constituir num conjunto de práticas alheias às
necessidades humanas, a partir de uma cisão
profunda entre a vida cotidiana e a educação
escolar. Isso tem trazido sofrimento aos sujeitos
envolvidos, como tenho observado em minha
prática docente (em conversas com estudantes e
colegas professores) e como demonstram uma
série de estudos a respeito [21–24].

Esse mal-estar na educação27 aparece aos


professores como uma sensação de desamparo e
incapacidade de lidar com as demandas
contraditórias do cotidianos escolar [25] e tais
contradições, na minha opinião, tem a ver com
essa cisão entre vida e educação, devida aos
emocionares que estão presentes no cotidiano
escolar, mas também com uma concepção
equivocada sobre os fenômenos cognitivos e sobre
o que é aprender e ensinar.

Segundo a Organização Mundial do


Trabalho os professores são considerados uma

27
Aguiar e Almeida utilizam o termo “mal-estar na educação” como uma
analogia às concepções de Sigmund Freud apresentadas em sua famosa
obra “O Mal-Estar da Civilização” (ou “O Mal-Estar da Cultura”).

69
das categorias profissionais mais estressante,
sendo a mais investigada em estudos da
Síndrome de Burnout, que se caracteriza por alto
grau de exaustão emocional, distanciamento
afetivo (ou despersonalização) e sensação de baixa
realização profissional [26,27].

Em um estudo de 2011 com 882


professores de escolas da região metropolitana de
Porto Alegre, por exemplo, 5,6% dos professores
foram identificados com alto nível de exaustão
emocional, 0,7% em processo de
despersonalização e 28,9% com sensação de baixa
realização profissional [28]. Outro estudo com
cerca de 30 mil professores do ensino
fundamental de todo o Brasil mostra que 26%
apresentava exaustão emocional, com essa
proporção variando entre 17% em Minas Gerais e
39% no Rio Grande do Sul [27].

Segundo Pinto e Silva, em um estudo com


professores universitários, esse adoecimento e
sofrimento envolvem dimensões afetivas, éticas e
políticas, e diz respeito a “(...) relações
indissociáveis, contraditórias e conflitivas entre a
subjetividade e a forma histórica de sociabilidade
que parece se afastar, a contragosto de boa
parcela dos professores, de sua função social, a
reboque de uma racionalidade instrumental e
produtiva que gera insignificância, se não falta de
sentido (...)” [29].

Para entender a fundo essa questão é


necessário compreender essa “forma histórica de

70
sociabilidade” que se afasta daquilo que os
professores em sua subjetividade julgam gerar
sentido para suas vidas e que, na minha opinião,
depende de um viver que se realiza em uma
matriz de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais baseada em pressupostos
representacionalistas, objetivistas, darwinistas
e realistas, como explicarei a seguir.

A busca por esta compreensão, pela


compreensão do sofrimento e do mal-estar que
afligem professores e estudantes, e dos processos
de aprendizagem e ensino que deveriam constituir
um vínculo primário entre eles, me levaram ao
estudo da Biologia do Conhecer e da Biologia-
Cultural, chegando à Biologia-Cultural do
Conhecer e à compreensão que esse mal-estar e
sofrimento provém de relações que não são
realmente sociais, na medida em que negam o
outro como legítimo outro no conviver, negando o
que essas abordagens teóricas denominam de
amar, que é o emocionar que constitui nossa
linhagem como seres humanos em nossa deriva
evolutiva [2].

O amar é uma dinâmica sensorial-


operacional-relacional que um observador
distingue quando vê e sente o outro (ou ele
mesmo) como legítimo outro no conviver, sem
exigências, expectativas, pré-julgamentos, teorias,
dogmas ou pretensões de mudança, ou
transformação [2]. Para Maturana e Dávila o mal-
estar surge a partir de um viver-conviver cego ao
fato de que nós, os seres humanos, geramos os

71
mundos que vivemos-convivemos desde nossos
desejos, paixões e crenças, ou seja, desde nossos
emocionares, que são o referencial fundamental
em torno dos quais surgem e se transformam
esses mundos [2]. Dito de outra forma, o mal-
estar surge na negação do amar e da relatividade
fundamental, o que consequentemente leva a
negação de nossa própria humanidade.

No mesmo sentido, Marshal Rosemberg


afirma que “é de nossa natureza gostar de dar e
receber de forma compassiva” (uma afirmação que
se aproxima da concepção de amar), mas que há
uma forma violenta de comunicação, ou
“comunicação alienante da vida”, que se utiliza
de julgamentos moralizadores, atribuindo uma
natureza errada ou maligna às pessoas que não
agem em consonância com nossos desejos e
valores. Estes julgamentos são realizados através
de análises, comparações, negação da
responsabilidade e atribuição de culpa, e
comunicação de desejos na forma de exigências.
Rosemberg propõe então uma forma de
Comunicação Não-Violenta baseada em
habilidades de linguagem e comunicação que
fortalecem nossa capacidade de continuarmos
humanos mesmo em condições adversas.

Diante de um ambiente escolar pouco


acolhedor e compassivo, os estudantes descrevem
a sensação de que há ensino defeituoso, que se
caracteriza pela sensação de falta de acolhimento
e pela dissonância entre suas necessidades, seus
desejos e as práticas institucionais, o que levou o

72
psicanalista argentino José Cukier a cunhar o
termo didactopatogenia em referência às
doenças causadas pela didática nos ambientes
escolares [23].
Maturana e Dávila comentam que as
enfermidades “de corpo e alma” ocorrem ao
actuar-com-efuerzo28, num fluir de conversações
nas quais nos sentimos forçados a fazer o que não
queremos fazer, e onde a oposição entre desejos e
deveres nos leva a atuar sem respeito por nós
mesmos [2], ou dito de outra forma, a atuar na
negação do amar, de forma violenta e não
compassiva.

Há uma dicotomia assinalada pelos


estudantes que se caracteriza pelo contraste entre
o mal-estar nas atividades realizadas em sala de
aula e o bem-estar experienciado no recreio e em
outros momentos, nos quais os alunos podem
conviver e conversar.
Assim como tenho observado na vida
escolar dos meus filhos e dos meus alunos, vários
estudos mostram que há um apelo dos
estudantes pela necessidade de falar, de ser
ouvido e de conviver com os colegas, que são
necessidades que tem sido negadas pela escola
[24].

Indo ao encontro dessa observação,


Verden-Zoller e Maturana destacam a importância
do brincar como fundamento esquecido dos seres

28
Minha tradução: atuar-com-esforço; em oposição a um atuar-sem-
esforço que é característico de situações onde há o amar.

73
humanos (juntamente com o amar), quando
compreendido como uma atividade que se vive no
presente sem a preocupação em buscar um
objetivo, pelo simples prazer de estar ali, de forma
espontânea, com o outro no conviver [18]. O
brincar concebido desta forma é negligenciado até
mesmo nas escolas de ensino fundamental, que
valorizam atividades voltadas à objetivos e
propósitos, adjetivadas como “pedagógicas” e
“formativas” (ou dito de outra forma, nas palavras
do meu filho mais novo: “a escola consegue
estragar até o que é legal”).

Além da educação básica e do ensino


superior, esse contexto de mal-estar e sofrimento
também aflige a pós-graduação: uma matéria da
Folha de São Paulo de Outubro de 2017, por
exemplo, fala do suicídio de um aluno da pós-
graduação da USP às vésperas da qualificação.
Apesar do texto tratar de uma situação extrema,
Tânia de Mello (coordenadora do Serviço de
Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao
Estudante da Unicamp) afirma que o mestrado e o
doutorado têm características que podem
desencadear problemas psicológicos e
psiquiátricos associados a altos níveis de stress,
depressão e ansiedade, dentre outros. O artigo
cita ainda um estudo realizado a partir de
entrevistas com 140 alunos da UFRJ dentre os
quais 58,6% apresentam níveis médios e altos de
stress [31].

Ambientes de trabalho considerados


“negativos” estão associados ao desenvolvimento

74
de burnout e quadros depressivos que, por sua
vez, se relacionam a maior probabilidade de
ideação suicida e tentativa de suicídio [27].

Assim como toda atividade humana, o


ensinar e o aprender não devem ser analisados
independentemente do contexto histórico e
sociocultural no qual ocorrem. Neste sentido, o
sofrimento expresso no ambiente escolar é sinal
de um sofrimento mais amplo que provém de uma
realidade sócio histórica (ou como dito
anteriormente, de uma “forma histórica de
sociabilidade”) que nega ao ser humano a
expressão de sua subjetividade como sujeito em
relação com o mundo da natureza e da cultura,
oprimindo-o e impedindo que a educação atue
como elemento de sua humanização através da
conscientização, como propõe Paulo Freire [32].

Segundo Maturana e Dávila, “toda dor e


sofrimento pelo qual se pede ajuda tem origem
cultural” [2,13]. Essa dor surge quando negamos o
outro como legítimo no conviver, o que é uma
negação do amar, visto como o emocionar que dá
as bases para nosso viver e conviver como seres
humanos e que possibilita nosso viver no
linguajear e no conversar que nos caracteriza e
distingue em relação aos demais animais. A
negação do amar leva à dor, ao sofrimento e ao
mal-estar que, quando persistem, levam ao
adoecimento físico, emocional e psíquico.

Considerando o quadro de mal-estar que


acomete alunos e professores, podemos refletir a

75
respeito dos nossos critérios para distinguir
aquilo que consideramos “saudável” (ou saúde) e
aquilo que consideramos “patológico” (ou doença).
No senso comum, influenciados por uma visão
medicalista29, associamos o termo “normal”
aquilo que é saudável, mas a normalidade é um
conceito estatístico, que diz respeito aquilo é mais
frequente na população.

Para a Anatomia, por exemplo, uma


característica é considerada uma “variação”
quando é diferente do que é normal, mas não traz
prejuízo à função, e é considerada uma
“anomalia” quando acarreta prejuízo funcional
[33]. Nesse sentido, quando algo não é o mais
frequente e causa prejuízo, dizemos que é
anormal ou patológico. Hegenberg considera que é
importante não esquecer o aspecto social da
normalidade e das normas, considerando que
“normais” são aqueles comportamentos que se
repetem e que constituem aquilo que
denominamos de costumes dentro de uma dada
cultura [34].

A Psicologia Macrocultural de Carl Ratner


considera que a “sociedade normal é uma
sociedade patológica, que a patologia é
socialmente normal, e que sem uma
transformação cultural não é possível haver
mudanças duradouras no processo de constituição

29
É dessa forma que Carl Ratner, que propõe a Psicologia Macrocultural,
se refere à tendência de buscar à explicação para as variações
comportamentais observadas como se fossem patologias à serem
tratadas.

76
dos fenômenos psicológicos” [35] como, por
exemplo, na busca do bem-estar30. No mesmo
sentido, podemos considerar que a escola é uma
instituição doente, dentro da qual os alunos que
seguem o status quo serão considerados “bons
alunos”, enquanto que aqueles considerados
“mau alunos” estão buscando manter sua saúde
mental às custas de não se ajustarem às
imposições institucionais.

Para a Biologia-Cultural do Conhecer uma


“transformação cultural” implica uma mudança
nos emocionares que sustentam as redes de
conversações que vivemos. Isso porque o ser
humano integral, visto como sujeito biológico-
cultural, é amoroso por natureza e sofre quando
os vínculos sociais se mantêm às custas de uma
comunicação na qual se nega o outro como
legítimo no conviver (ou seja, às custas da
negação do amar e na manutenção de relações
que não são realmente sociais). Nesse sentido,
“vivemos cegos porque não vemos-sentimos o que
os outros veem-sentem”, e aí está a origem de
todos os nossos sofrimentos, que são em sua
essência biológico-culturais [2].

Este poderia ser um livro sobre sofrimento


e mal-estar no ambiente escolar mas,
considerando que todo sofrimento é de origem
biológico-cultural devido à relações que não são
30
Esta é uma reflexão que vai ao encontro daquelas da Biologia-Cultural
do Conhecer, apesar da Psicologia Macrocultural partir de concepções
distintas sobre as dimensões biológica e cultural do ser humano,
considerando que é a cultura quem determina os fenômenos tipicamente
humanos, assim como propõe a psicologia sócio histórica de Vigotski.

77
realmente sociais (por negarem o amar),
compreendi que é no estudo dos vínculos entre
professores e estudantes, que se dá
primariamente através dos processos de
aprendizagem e ensino que se realizam no
ambiente escolar, que posso encontrar uma
explicação para as origens desse sofrimento e que
ele talvez se deva justamente a uma concepção
inadequada sobre o aprender e o ensinar.

Essa inadequação, na minha opinião,


provém de uma visão de mundo na qual as
explicações sobre esses processos concebem um
ser humano fragmentado e “descolado” do seu
viver biológico-cultural, devido ao fato de:

(1) não considerar seus distintos domínios


existenciais e fenomenológicos, e as relações
“adequadas” entre eles (ou seja, sem o considerar
o ser humano como um ser biológico-cultural),
consequentemente polarizando a importância da
dimensão biológica sobre a cultural, ou vice-
versa, e;

(2) não conceber os fenômenos cognitivos e


suas relações com o ser e os fazeres tipicamente
humanos, supondo haver uma realidade pré-
existente e independente do sujeito que conhece,
passível de ser apreendida e representada pelos
fenômenos cognitivos (ou seja, negando a
relatividade fundamental).

Isso leva, dentre outras implicações, a


considerar que:

78
(1) aprender é um processo cujo objetivo é
favorecer a adaptação do sujeito ao meio;

(2) toda aprendizagem é condicionamento,


que leva à memorização e à mudança de
comportamento;

(3) ensinar depende de um professor que é


o foco do processo educacional e cujo papel é ser
um transmissor de informações;

(4) aprender é um processo que depende do


processamento de informações pelo Sistema
Nervoso através da realização de operações lógicas
e matemáticas e, portanto, as causas da
aprendizagem estão na compreensão do
funcionamento desse sistema e do cérebro em
especial;

(6) o bom ensino deve estimular uma


competição saudável e indispensável31, tendo em
vista a inserção do sujeito no mundo social,
motivando-o a “dar o melhor de si”;
(7) as condições do ambiente sociocultural
e de infraestrutura “determinam” o que pode
ocorrer com os estudantes durante os processos
educativos que ocorrem no ambiente escolar;

(8) certos “conhecimentos, fazeres e


saberes” devem ser valorizados em detrimento de
outros e ensinados a todos, independentemente
de suas características e interesses.

31
A “indispensável competição e o respeito pela igualdade de
oportunidades” é uma das tensões a serem superadas pelas políticas na
área da educação, segundo o “Relatório Delors” publicado pela UNESCO
em 2010 [36].

79
Pretendo refletir sobre estas implicações, a
respeito de quais tipos de redes de conversações
temos compartilhado e mantido nos ambientes
escolares, e que tipo de aprender elas propiciam e
valorizam.

O Aprender é uma Questão Conceitual


Considerando que os professores são os
profissionais que mais diretamente lidam com as
questões relacionadas ao ensino e que ensinar
tem como objetivo favorecer o aprender dos
estudantes, ao menos em princípio a prática
docente deveria implicar não apenas no domínio
dos conhecimentos específicos de uma área de
estudos mas, principalmente, a compreensão dos
processos relacionados ao aprender e ao ensinar
como dimensões do viver do ser humano
biológico-cultural.

Antes de prosseguir vou reforçar minha


escolha por dar preferência ao uso dos termos
‘aprender’ ao invés de ‘aprendizagem’, ‘ensinar’ ao
invés de ‘ensino’ e ‘educar’ ao invés de ‘educação’,
da mesma forma que justifiquei anteriormente em
relação à ‘emoção’ e ‘emocionar’, ‘linguagem’ e
‘linguajear’: pressuponho uma relatividade
fundamental, a partir da qual me interessa
explicar nosso ser-viver-fazer-conhecer como
seres biológico-culturais, utilizando elementos
desse ser-viver-fazer-conhecer, ou seja, quero
explicar quais ações humanas constituem aquilo

80
que distinguimos como aprender e ensinar,
lembrando que os substantivos ocultam verbos.

Dificilmente alguém discorda que a


pesquisa científica pode contribuir de forma
significativa no entendimento do fenômeno do
aprender, na definição de estratégias para ensinar
de forma cada vez mais adequada aos nossos
objetivos e desejos, e que uma aproximação entre
as diferentes disciplinas e áreas do conhecimento
que estudam o aprender, o ensinar e os processos
cognitivos tem muito a contribuir para a
explicação destes fenômenos. Entretanto, é
necessário refletir sobre como essa contribuição
pode efetivamente favorecer uma compreensão e
uma atuação na busca de um bem-estar no
ambiente escolar.

Por exemplo, a aplicação de conhecimentos


das neurociências em sala de aula atualmente
parece ser a salvação para todos os nossos
problemas, mas considero que ao mesmo tempo
que isso pode ser um aprimoramento da prática
escolar (na medida favorece uma compreensão
dos aspectos biológicos do aprender), pode se
tornar um novo problema, já que o aprender do
ser humano biológico-cultural ocorre no domínio
de suas relações com o ambiente e com outros
seres humanos e não simplesmente no domínio
biológico (que é aquele contemplado pela maioria
das explicações neurocientíficas). E ainda, as
neurociências partem de um paradigma
cognitivista, que ainda utiliza os pressupostos que
os estudos de Maturana e colaboradores sobre a

81
percepção visual mostraram não serem
suficientes para explicar as percepções e o
conhecer.

Considero que aquilo a que nos referimos


ao falar sobre aprendizagem inclui uma série de
fenômenos que pertencem a diferentes domínios
fenomenológicos e que são muitas vezes tratados
como se fossem um único fenômeno, pertencente
a um único domínio. A partir disso, construímos
nossas explicações de forma reducionista, na
busca das relações entre aprender, ensinar e
educar, misturando domínios fenomenológicos e
fazendo relações explicativas entre eles que, ao
meu ver, refletem e ao mesmo tempo estão na
origem do mal-estar da educação como prática
desvinculada do viver biológico-cultural do ser
humano, como comentado anteriormente. Ao
utilizar a denominação “biológico-cultural” me
refiro a um domínio existencial tipicamente
humano, que contempla aspectos culturais de
forma indissociável dos aspectos biológicos.

Considero que a explicação sobre o


aprender (e o ensinar) deve ser abordada como
uma questão conceitual. Questões conceituais
são aquelas que dizem respeito ao modo como
concebemos o mundo e para que sejam tratadas
de forma coerente e adequada, devemos
considerar que a observação e os dados
experimentais podem não ser suficientes [37].
Dito de outra forma, são aquelas questões para as
quais a ciência experimental tradicional objetiva
(como as ciências cognitivas), pode não ter

82
respostas. Elas incluem a reflexão sobre sistemas
de valores que podemos denominar de visões de
mundo ou filosofias [38], ou ainda, os paradigmas
subjacentes as teorias científicas [39] e
constituem reflexões sobre os fundamentos a
partir dos quais as concepções das ciências se
baseiam [37] e que nem sempre estão
explicitados. Elas remetem à reflexão sobre as
emoções subjacentes às redes de conversações
das quais participamos e aos domínios lógicos
que criamos e mantemos em nosso viver
cultural, e tem implicações sobre as questões que
elegemos como passíveis de respostas, a melhor
estratégia para lidar com essas questões, as
respostas aceitas como válidas, bem como a
respeito da concepção do ser humano que é o
sujeito dos fenômenos em estudo.

As abordagens neurocientíficas sobre o


aprender se baseiam em dados experimentais e
observacionais, na busca de relações causais,
lógicas, emergentes ou, correlações entre eles.
Para uma explicação biológico-cultural do
aprender, assumo que minhas explicações devem
considerar tanto os achados experimentais e
observacionais, como tratar o aprender como uma
questão conceitual, respeitando os respectivos
domínios fenomenológicos que cada uma dessas
abordagens permite contemplar. Ou seja,
pretendo explicitar quais minhas concepções
sobre o aprender, explicitando a matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais a
partir da qual elaboro minhas reflexões.

83
O Método Científico e a
Objetividade
A suposição de que o método científico,
baseado na observação e na experimentação, pode
dar respostas a todas as questões, na grande
maioria das vezes considera uma objetividade na
qual é possível ter acesso a um conhecimento que
independe das características do observador:
assume-se o observador e o observar como
condições iniciais imutáveis e constitutivas da
explicação, dando origem a um caminho
explicativo de ontologias transcendentes, no
qual há uma realidade (transcendente), passível
de ser descrita e explicada como se tivesse uma
existência em si [40].

Essa abordagem se baseia no realismo,


uma tradição filosófica muito difundida na
civilização ocidental, que considera que há um
mundo real fora do sujeito e que determina as
suas experiências [41,42]. Essa noção envolve três
pressuposições:

(1) que existe um mundo real "lá fora",


objetivo, cujo acesso é mediado pelos nossos
sistemas sensoriais e que se contrapõem às
experiências (subjetivas) que ocorrem "dentro" do
sujeito;

(2) que as experiências fazem referência a


este mundo real, como algo pré-existente e
independente do sujeito-observador, e;

84
(3) que é esse mundo real que determina
aquilo que ocorre ao sujeito em suas interações
com esse mundo.

O realismo tem grande influência sobre o


pensamento ocidental, de forma geral, e sobre as
ciências cognitivas especificamente, como por
exemplo, no paradigma explicativo sobre as
percepções que apresentei anteriormente. Ele
ainda tem forte influência sobre nossas
concepções a respeito do aprender, do ensinar e
de quem é o sujeito que aprende e ensina.

Em contraposição ao realismo temos o


solipsismo, proposto inicialmente pelo filósofo
George Berkeley, que considera que não há
realidade, mas apenas a mente do sujeito que à
constrói [2,42].

Tanto o realismo como o solipsismo são


explicações extremas sobre o conhecer. A
Biologia-Cultural do Conhecer propõe uma
alternativa a essas concepções, na medida que
assume a relatividade fundamental; ela não nega
a existência de uma realidade, tampouco assume
que tudo o que existe é apenas a mente dos
sujeitos cognoscentes, mas afirma que aquilo que
distinguimos como “real” surge com a operação de
distinção do sujeito que conhece, de forma
condicionada a estrutura desse sujeito
(determinismo estrutural) durante suas
interações, e da relação indissociável entre o ser,
o fazer e o conhecer. Ou seja, não nega ou afirma
que há uma realidade, mas apenas especifica que

85
todo “acesso” a ela é uma construção sujeita ao
determinismo estrutural e que não podemos fazer
referência ao “em si” (ou essência) do que quer
que seja, mas apenas ao fazer que dá origem ao
que surge no ato de distinção do observador.

(Objetividade) e Determinismo
Estrutural
É apenas no contexto da objetividade e do
realismo que podemos afirmar que:

(1) nosso sistema sensorial capta


informações do ambiente;

(2) as linguagens são sistemas de


comunicação cujo aspecto simbólico é o principal,
já que os símbolos fazem referência a
determinados aspectos da realidade que buscam
apreender;

(3) se comunicar, aprender e ensinar se


referem à transmissão de informações, e;

(4) aprender, perceber e conhecer são


formas de construir representações sobre o
mundo que permitem nos adaptarmos a ele.

Diferentemente, a Biologia-Cultural do
Conhecer afirma que na experiência não é
possível distinguir entre erros, ilusões e
percepções [2, 12 e 13], e propõe uma
(objetividade) – objetividade entre parênteses –
na qual se faz a pergunta pelo ser e pelo operar do
observador, cujas ações (dentre elas o conhecer, o
observar, o explicar, o aprender e o ensinar) são

86
determinadas por sua estrutura presente e pela
sua organização.

Isso implica que no caminho explicativo da


(objetividade), que é um caminho explicativo das
ontologias constitutivas, é impossível fazer
referência à uma realidade independente das
ações do observador biológico-cultural que faz
surgir a realidade que ele distingue e pretende
explicar [40], dada a indissociabilidade entre o
ser, o fazer e o conhecer; ou seja, assume-se a
relatividade fundamental.

O ser humano é visto aqui não como


alguém que descobre o mundo, mas como um
agente ativo que o constrói [15]. A esse respeito,
Maturana explica que:

Eu digo que a noção de um universo se funda na


suposição de que se pode ter acesso a uma
realidade independente que se estende a todos e
que em princípio é válida igualmente para todos.
Digo que isto é uma suposição. E mais, digo que é
uma suposição que, se a faço, não posso explicar
adequadamente uma série de fenômenos como o
Sistema Nervoso, o fenômeno da percepção, a
linguagem, nem mesmo o fenômeno cognitivo.
Além disso, assumo que nessa suposição existe
uma certa dinâmica emocional. Então, o que
estou dizendo é: assumamos a biologia. Ao
assumirmos a biologia, estas coisas inexplicáveis
podem ser explicadas. Mas nesse instante me dou
conta de que não tenho nenhum fundamento
para essa suposição e que, ao contrário, se
reconheço que quando gero um domínio
explicativo o que faço é reformular a experiência
com elementos da experiência — porque não

87
posso distinguir entre ilusão e percepção —,
descubro que tenho tantos domínios de realidade,
tantos universos — ou seja, tenho um multiverso
— quantos domínios de coerências operacionais
eu possa originar em minha experiência [43].

Nesse sentido, a (objetividade) e a


relatividade fundamental parecem aproximar a
Biologia-Cultural do Conhecer daquelas
concepções reconhecidas sob a denominação de
construtivismo, como a Epistemologia Genética
de Jean Piaget, a Psicologia Sócio Histórica (ou
Teoria da Mediação) de Lev Vigotski, e outras
menos conhecidas como a Teoria de Ensino de
Jerome Bruner e a Psicologia dos Construtos
Pessoais de George Kelly [38].

A maioria das explicações cognitivistas são


uma forma de abordagem construtivista do
conhecer, na medida que compreendem que a
estrutura cognitiva é construída por cada
indivíduo no processo de “interpretação das
experiências” em um contexto particular [44].
Entretanto, ao assumirem que há um ‘fenômeno
interpretativo’, assumem a preexistência de uma
realidade, o que me permite afirmar que
concebem os fenômenos cognitivos como uma
“reconstrução” desta. Nesse sentido, diferem em
relação à Biologia-Cultural do Conhecer e
constituem uma matriz diferente de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais, apesar de sua
aparente similaridade, como por exemplo, a
concepção do ser humano como ser histórico

88
biológico-cultural que a aproxima das concepções
de Vigotski32.

Meu Objetivo e Estratégia


Metodológica
Meu objetivo é propor uma explicação para
as diferentes dimensões do aprender, como ações
do ser humano biológico-cultural em diferentes
domínios fenomenológicos de sua existência, a
partir da Biologia-Cultural do Conhecer,
considerando a (objetividade) e a relatividade
fundamental.

Na construção das minhas explicações vou


distinguir diferentes domínios fenomenológicos
nos quais ocorre o viver humano, e dentro destes
domínios especificar o que considero serem
diferentes dimensões do aprender do ser humano
biológico-cultural, caracterizando um (aprender) –
entre parênteses – tipicamente humano.

Construirei minhas explicações a partir do


estudo de obras da autoria de Humberto
Maturana e seus colaboradores, que representam
em seu conjunto uma deriva que constitui o
‘domínio lógico’ que aqui denomino Biologia-
Cultural do Conhecer.

Utilizarei os seguintes pressupostos, não


como princípios em si, mas como pontos de

32
Em outros estudos pretendo realizar um estudo comparativo entre as
concepções de Maturana e aquelas de Jean Piaget e Lev Vygotsky sobre os
fenômenos cognitivos, a inteligência e a aprendizagem.

89
partida a partir dos quais construirei minhas
distinções e explicações:

(1) nos seres vivos há uma indissociabilidade


entre o ser, o fazer e o conhecer;
(2) só podemos explicar nosso viver a partir
das coerências sensoriais-operacionais-
relacionais nas quais ocorre este viver, e
sendo assim, o ser humano em seu viver é
a referência para todo seu fazer e conhecer,
ou seja, assumo a relatividade
fundamental;

(3) é a estrutura do sujeito que conhece que


determina todos os fenômenos que ocorrem
em seu viver, ou seja, vou considerar o
determinismo estrutural e suas
implicações sobre o conhecer, o aprender e
o ensinar;

(4) o ser humano vive seu viver-conviver como


unidade dinâmica operacional-relacional
organismo-nicho, em dois domínios
existenciais: (1) no domínio do operar dos
seus componentes como sistema
autopoietico molecular, onde atua como
unidade composta e (2) no domínio de sua
operação como um todo indivisível no seu
espaço de interações com o ambiente e com
outros seres vivos, onde atua como uma
unidade simples ou organismo;

(5) é a partir das relações interdependentes e


indissociáveis entre ambos domínios
existenciais que o ser humano se constitui

90
como ser biológico-cultural que atua no
mundo;

(6) dentro de cada domínio fenomenológico,


através das reflexões de um observador,
podem surgir outros diferentes domínios
de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais, que são outros e diferentes
domínios fenomenológicos;

(7) cada domínio fenomenológico apresenta


coerências sensoriais-operacionais-
relacionais específicas que constituem uma
matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais dentro e a partir
da qual ocorrem todos os fenômenos
pertencentes a este domínio
fenomenológico, e que constituem um
domínio específico de determinismo
estrutural;

(8) a respeito de ambos domínios existenciais:


(1) não há fenômenos que pertençam a
ambos domínios simultaneamente, ou seja,
cada fenômeno é específico e exclusivo de
um dado domínio, e (2) entre os fenômenos
que ocorrem e são específicos de cada um
destes domínios não há relações causais,
lógicas ou emergentes (erros de
contabilidade lógica se referem a busca
destas relações entre ambos domínios),
mas sim relações generativas ou
históricas;

91
(9) toda ação humana se baseia em premissas
previamente aceitas a partir de um
emocionar específico e da história do
sujeito que atua;
(10) o que caracteriza o ser humano como ser
biológico-cultural é sua forma de viver no
conversar, que é o entrelaçamento entre o
linguajear e o emocionar;

(11) diferentes culturas correspondem a


diferentes redes de conversações nas
quais se dá o viver humano (que pode
ocorrer em mais de uma cultura
simultaneamente);

(12) o amar é o emocionar que nos constitui e


define como seres humanos biológico-
culturais, e é o viver no não-amar que
origina mal-estar e sofrimento, e;

(13) toda explicação é uma reformulação de


uma experiência, feita por um observador
e, portanto, dependente de suas
características e da matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais a
partir da qual opera em seu viver, e que
deve ser aceita por outro observador (que
pode ser ele mesmo), para efetivamente
constituir uma explicação.

Minha explicação busca explicitar os fazeres


do ser humano que dão origem ao fenômeno do
aprender, sem pressupor que há ‘entes’ em si

92
independentes desses fazeres (como seria o caso
se optasse pela objetividade e por uma abordagem
realista), passíveis de serem aprendidos ou
apreendidos. Devo distinguir estes fazeres como
coerências sensoriais-operacionais-relacionais
que constituem matrizes biológico-culturais
destas coerências.

Como estratégia metodológica para construir


minhas explicações utilizarei os critérios de
validação das explicações científicas propostos
pela Biologia do Conhecer.

Critérios de Validação das


Explicações Científicas
Considero, assim como David Deutsch e
Humberto Maturana, que o que caracteriza as
ciências é sua busca por explicações. Para
Deutsch esta busca não diz respeito a realização
de previsões, mas é uma busca por explicações
cada vez mais satisfatórias a respeito da realidade
[42], enquanto para Maturana, não há uma busca
pela verdade ou pela realidade (já que no viver
não podemos distinguir entre ilusões e
percepções), mas uma paixão por explicar as
diferentes dimensões do viver humano usando
elementos desse próprio viver [40]. O que ocorre
no explicar científico é que explicamos as
coerências do nosso viver cotidianos utilizando as
coerências desse viver [2].

Nesta perspectiva, as explicações


científicas são reformulações das experiências

93
elaboradas por um observador e aceitas por uma
comunidade de observadores, a partir das
coerências sensoriais-operacionais-relacionais de
um domínio fenomenológico onde vive aquele que
explica e que é compartilhado por aqueles que
aceitam a explicação, ou dito de outra forma, a
ciência é um domínio de explicações socialmente
aceitos por uma comunidade científica, validadas
por certos procedimentos que especificam as
operações que um “observador padrão” deve
realizar para fazer surgir aquilo que se propõe
explicar [45]. Isso implica que:

(1) as explicações não têm a ver com a


natureza ou essência das coisas e dos fatos, e;

(2) o explicar não depende daquele que


explica, mas daquele que aceita a explicação. Para
isso, ambos devem compartilhar um domínio de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais,
que constitui um domínio lógico compartilhado.
Observadores que operam a partir de
domínios lógicos distintos não tem como
compartilhar e aceitar explicações, e aí está a
origem de muitas de nossas disputas e mal-
entendidos. Como toda explicação racional parte
de premissas aceitas a priori, com base na
história de quem explica e no emocionar
presentes no ato de explicar, é fundamental
apontar para esses aspectos, tornando-os mais
explícitos quanto seja possível.

Em suas explicações os cientistas realizam


certas operações similares àquelas que realizamos

94
em nosso explicar do viver cotidiano, mas prezam
por serem impecáveis em seguir certos critérios
de validação das explicações científicas [2].
Segundo esses critérios, quatro condições devem
ser satisfeitas na proposição de explicações
científicas.

A primeira condição diz respeito a uma


decorrência da Biologia-Cultural do Conhecer:
que nas explicações não é possível lidar com entes
independentes de nosso ato de distingui-los em
nosso viver, ou dito de outra forma, que não é
possível apontar para o em si das coisas (entes),
pois não podemos na experiência distinguir entre
ilusões e percepções [13].

Em outras palavras, assume-se a


(objetividade) e a relatividade fundamental,
segundo explicado anteriormente. O que podemos
é descrever os critérios que utilizamos e as
operações que realizamos como cientistas-
observadores para distinguir o que distinguimos,
e criar explicações utilizando para isso elementos
de nosso próprio viver [2]. Dito de outra forma,
devemos explicitar a matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais, que nesse
caso é uma matriz de coerências lógicas, que
utilizamos em nosso explicar.

Sendo assim, a primeira condição a ser


satisfeita na proposição de uma explicação
científica é a descrição do fenômeno a ser
observado de uma forma aceitável para a
comunidade de observadores [12,45], como algo

95
que o observador deve fazer para ter a experiência
que vai ser tratada como o fenômeno a ser
explicado [40], ou seja, devemos descrever a partir
de qual matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais ele deve operar.

A segunda condição diz respeito à


formulação da explicação propriamente dita, na
forma de uma hipótese explicativa: um sistema
conceitual capaz de dar origem ao fenômeno a ser
explicado em seu operar na experiência do
observador [12, 43 e 45], considerando que só
podemos explicar nosso viver com elementos do
próprio viver.

O fenômeno a ser explicado não pode fazer


parte do mecanismo gerativo proposto [43], pois o
resultado de um processo (nesse caso, o
fenômeno que surge no operar da hipótese
explicativa) não pode participar dos processos que
lhe dão origem [2,13]. Além disso, esse sistema
conceitual deve ser um sistema estruturalmente
determinado, já que as explicações científicas só
podem tratar com sistemas dessa natureza [45].

Em “Biology of Language”33, Maturana


distingue dois tipos de explicações:
34
mecanísticas (mechanistic explanations) e
vitalísticas (vitalistic explanations). Nas

33
Biologia da Linguagem.
34
Opto por “mecanísticas” ao invés de “mecanicista” considerando as
conotações pejorativas atribuídas ao primeiro termo. Da mesma forma
pensei em encontrar outro termo para me referir ao “amar”, palavra que
é utilizada com outra conotação e que muitas vezes desperta preconceito
em relação às ideias de Maturana, mas nesse caso não o fiz por não
encontrar outra que permitisse a distinção que o “amar” implica.

96
explicações mecanísticas o observador explícita
ou implicitamente assume que as propriedades de
um sistema, ou as características de um
fenômeno (que surgem ao ser explicados) são
geradas pelas relações entre os seus componentes
ou processos constituintes, e não podem ser
encontradas nas propriedades destes
componentes ou processos. Ao contrário, nas
explicações vitalísticas o observador assume que
as propriedades de um sistema, ou as
características de um fenômeno a ser explicado,
dependem das propriedades de ao menos um dos
seus componentes ou processos constituintes
[45]. Como consequência disso, as explicações
mecanísticas permitem gerar diferentes domínios
fenomenológicos não intersectantes, cada um
deles como um diferente domínio de determinismo
estrutural, onde ocorrem diferentes fenômenos,
ou seja, que originam diferentes fenomenologias,
específicas de cada um deles.
Foi partir dessa perspectiva que foram
especificados os domínios existenciais dos seres
vivos citados anteriormente, nos quais (1) o ser
vivo opera como um todo indivisível, organismo
ou unidade simples (através de suas propriedades
constitutivas) e o outro (2) no qual distinguimos o
sistema autopoietico molecular e seus
componentes, processos constituintes e as
relações entre eles (onde o sistema opera como
unidade composta, e não como um todo
indivisível).

97
O observador pode ter acesso a vários
domínios simultaneamente e pode estabelecer
relações entre eles, mas não pode explicar o que
ocorre num domínio fazendo referências causais,
lógicas ou estabelecendo relações emergentes
entre ambos, ou seja, não pode reduzir os
fenômenos de um domínio ao outro. Fazer isso
implica incorrer num erro de contabilidade
lógica [12]. Dessa forma, explicações
mecanísticas são intrinsecamente não
reducionistas [45], na medida que não explicam
os fenômenos de um domínio fazendo referência a
outro domínio, ou seja, não reduzem suas
explicações a um único domínio.

Como disse anteriormente, ao propor uma


explicação mecanística o observador pode gerar
diversos outros domínios fenomenológicos a partir
do domínio de interações dos seres vivos (onde
eles atuam como unidades simples, ou
organismos), onde em cada um deles há uma
matriz de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais e um respectivo domínio de
determinismo estrutural; da mesma forma, um
observador por distinguir outros domínios a partir
do domínio do operar dos seres vivos como
sistemas autopoieticos moleculares, e fazer
referência a eles como domínio físico, domínio
químico, e domínio quântico, por exemplo. Como
consequência do que foi dito, não é possível
explicar os fenômenos biológicos em termos
químicos ou físicos sem incorrer em um erro de
contabilidade lógica e em reducionismo, pois cada

98
um destes “aspectos” diz respeito a fenômenos
que pertencem a diferentes domínios
fenomenológicos e de determinismo estrutural.

A partir daqui ao fazer referência a um


domínio existencial estarei fazendo referência a
um dos dois domínios existenciais anteriormente
especificados (onde os seres vivos atuam como
sistemas autopoiéticvos moleculares, ou onde
atuam como organismos). Ao distinguir um
domínio a partir de algum dos dois domínios
existenciais, farei referência a ele como um
domínio fenomenológico. Os domínios
fenomenológicos são também referidos pela
Biologia-Cultural do Conhecer como domínios
existenciais, pois é dentro deles que ocorrem
diferentes dimensões da existência humana (viver
humano) que denominamos trabalho,
matemática, filosofia, religião, afazeres cotidianos,
espiritualidade, subjetividade, bioquímica, física
quântica, histologia, fisiologia e senso comum,
dentre outros. Ou seja, mesmo quando um
domínio provém de outro, a Biologia-Cultural do
Conhecer o distingue como domínio (e não como
subdomínio ou dimensão dentro deste domínio),
pois não há relação de dependência, causalidade,
coordenação, emergência, ou logicidade 35 entre
eles, que constituem diferentes matrizes
sensoriais-operacionais-relacionais a partir das
quais aparecem fenômenos novos. Isso ajuda a
manter a contabilidade lógica e a lembrar que,
como observadores, podemos transitar entre os
35
Em referência à “relações lógicas”.

99
domínios em nosso observar e explicar, desde que
tudo isso seja levado em conta.

Contrariamente, as explicações
vitalísticas são essencialmente reducionistas,
pois realizam todas as suas explicações em um
mesmo domínio fenomenológico, no qual
distinguem e explicam os sistemas e suas
propriedades, e os fenômenos e seus processos
constituintes [45], estabelecendo entre eles
relações causais, lógicas e/ou emergentes.

Sintetizando: reduzir diferentes matrizes de


coerências sensoriais-operacionais-relacionais a
um mesmo domínio fenomenológico (o que
equivale a dizer: fazer explicações reducionistas)
implica cometer um erro de contabilidade
lógica.

Considero que explicar o aprender apenas


em termos neurocientíficos (que fazem referência
a fenômenos do domínio existencial no qual os
seres vivos operam como sistemas autopoieticos
moleculares, ou seja, se referem a sua dimensão
biológica), ou apenas considerando aspectos
socioculturais (que fazem referência ao seu
domínio existencial de interações) são formas
reducionistas de abordar este fenômeno; e buscar
relações causais, emergentes ou lógicas entre
ambas perspectivas é incorrer num erro de
contabilidade lógica.

Considero ainda que há diferentes


dimensões do aprender, que pertencem à
distintos domínios nos quais os seres vivos atuam

100
como unidades simples através de suas
interações, entre os quais devemos buscar
estabelecer relações gerativas ou históricas.
Esse é o aspecto central da explicação que
proponho para o aprender do ser humano
biológico-cultural.

Logo, ao construir uma explicação através


de uma hipótese explicativa como um sistema
conceitual capaz de dar origem ao fenômeno a ser
explicado em seu operar na experiência do
observador, estamos fazendo referência a um
domínio de determinismo estrutural (ou a um
domínio de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais) que pode ser (1) um domínio já
existente e que estamos explicitando, ou (2) que
pode fazer referência a um novo domínio
fenomenológico, que surge através da reflexão (e
então é preciso especificar a matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais que surge com
ele).
A terceira condição para a elaboração de
uma explicação científica é a dedução, a partir da
hipótese explicativa, de outros fenômenos não
considerados de forma explícita nessa hipótese,
bem como suas condições de observação na
comunidade de observadores. A quarta condição
é a observação dos fenômenos deduzidos a partir
da hipótese explicativa [12, 43 e 45].

Mais uma vez, assim como Maturana e


Varela no primeiro capítulo do livro “A Árvore do
Conhecimento”, faço um convite para que

101
possamos abrir mão de nossas certezas e olhar
para nossos emocionares, nos colocando em um
estado de disposição a ouvir o que será dito. Só a
partir disso será possível compreender o que
proponho refletir e explicar.

102
II

Quem é o Ser Humano


que Aprende?

103
Dizer que os fenômenos biológicos são
aqueles que envolvem a realização da autopoiese
de pelo menos um ser vivo [15] é o mesmo que
dizer que todo fenômeno biológico é aquele no
qual o ser vivo está sendo/fazendo o que ele é.
Isso porque existe nos seres vivos uma
indissociabilidade entre o ser e o fazer (e o
conhecer). Por dedução, todos os fenômenos
tipicamente humanos são aqueles nos quais o ser
humano está realizando seu viver-conviver como
ser biológico-cultural, já que isso é o que nos
distingue dos demais seres vivos [2].

Se assumo a relatividade fundamental, na


qual o ser humano constitui o centro gerador de
tudo que ocorre no cosmos (que surge no explicar
do seu viver-conviver, usando elementos desse
viver-conviver) [2], preciso explicar quem é o ser
humano, mais especificamente, quais fazeres o
caracterizam, para poder compreender como ele
aprende e então distinguir se há, além de um
aprender comum a todos os seres vivos, um
aprender tipicamente humano.

O que implica dizer que seres humanos são


seres biológico-culturais e como se dá a relação
entre suas dimensões biológica e cultural?
Apenas os seres humanos vivem em uma cultura,
ou posso falar sobre cultura me referindo a outras
espécies de seres vivos? Afinal de contas, qual
fazer caracteriza e é peculiar ao ser humano que
aprende?

104
Quem é o Homo sapiens?
A evolução humana é um evento muito
recente quando comparada ao surgimento da vida
no planeta, estimado em cerca de 3,5 bilhões de
anos atrás. As principais etapas descritas a seguir
estão resumidas na Figura 07. Pertencemos ao
filo36 Vertebrata, que já está no planeta a cerca de
500 milhões de anos, dentro da classe dos
Mamíferos, que surgiu cerca de 250 milhões de
anos atrás. Nossa ordem é dos Primatas, com
cerca de 65 milhões de anos e somos
evolutivamente mais próximos dos grandes
macacos, representados pelos orangotangos (na
Ásia), e pelos gorilas e chimpanzés (na África),
sendo que compartilhamos com estes últimos
cerca de 98% de nosso material genético, além de
muitas características morfológicas e
comportamentais (FOUTS, 1998). Pertencemos à
família Hominidae (com cerca de 7 milhões de
anos), composta por primatas bípedes, com
cabeças semelhantes às dos chimpanzés e corpo
similar ao humano.

Dentro de nossa família de hominídeos os


Australopitecus são os mais conhecidos,
principalmente após a descoberta (pelo
antropólogo americano Donald Johanson, em
1970) de um esqueleto quase completo que
recebeu o nome “Lucy”. Nosso gênero é Homo

36
Filos são formados por conjuntos de classes, estes por conjuntos de
ordens, estas por conjuntos de famílias, estas por conjuntos de gêneros e
estes por conjuntos de espécies. De forma esquemática: filo > classe >
ordem > família > gênero > espécie.

105
(com cerca de 2,5 milhões de anos), entre os quais
encontramos uma série de espécies de homens
arcaicos (Homo habilis, Homo rudolfensis, Homo
ergaster, Homo neandertalis e Homo erectus,
dentre outros) que deram origem a nossa espécie,
que é sapiens [46–48].

Figura 7. Esquema mostrando as datas relevantes para a


compreensão da evolução humana e do surgimento do
gênero Homo, conforme explicado no texto. Fonte: elaborado
pelo autor a partir das referências supra citadas.

A origem do Homo sapiens é uma questão


ainda não resolvida. Para chegar a uma resposta
são utilizados uma série de dados paleontológicos
(obtidos a partir de estudos de fósseis) e genéticos
(utilizando análise de DNA nuclear e
mitocondrial), mas há uma divergência a respeito
da forma de interpretar esses dados, o que levou a
proposição de duas explicações radicalmente
diferentes para o assunto: a Teoria da
Morfogênese Africana (ou “out of Africa”) e a
Teoria Multi-Regional. Ambas teorias concordam
que o Homo sapiens surgiu a partir do Homo

106
erectus e que entre eles há uma série de “formas
de transição”.

Segundo a Teoria da Morfogênese Africana,


nossa espécie surgiu exclusivamente na África,
cerca de 200.000 anos atrás; a partir daí houve
um êxodo massivo em direção a outras regiões do
planeta nas quais as espécies ali existentes foram
gradativamente substituídas, originando ao longo
do tempo as diferentes raças humanas que
conhecemos na atualidade.

Para a Teoria Multi-Regional, nossa espécie


surgir em vários locais do planeta
simultaneamente, cerca de 800.000 a 1.000.000
de anos atrás e foi desde então que tiveram
origem as diferentes raças de seres humanos [49].

Em 1987 a Teoria da Morfogênese Africana


foi substituída pela Teoria da Substituição
Africana Recente, quando Rebecca Cann
explicou, a partir de estudos com DNA
mitocondrial, que todos os seres humanos
descendem de uma “Eva Mitocondrial”37 que viveu
cerca de 200.000 anos atrás. A partir do
37
Quando ocorre a fecundação cada um dos gametas (o masculino é o
espermatozoide e o feminino é popularmente conhecido como óvulo)
contribui com metade do conteúdo de DNA que o núcleo do zigoto
contém. Esta célula realiza uma série de divisões que originam todas as
células do nosso corpo, as quais apresentam o mesmo conteúdo de DNA
nuclear. Por isso dizemos que cada um dos pais contribui com 50% da
carga genética dos filhos. Acontece que também há DNA no interior das
mitocôndrias, que são estruturas localizadas no citoplasma das células.
Este DNA mitocondrial provém apenas do óvulo e é utilizado em estudos
antropológicos para verificar o grau de proximidade entre diferentes
espécies de hominídeos. Para saber mais assista ao vídeo disponível em
https://goo.gl/ckMFQu ou procure no Google por “Discovery Channel - A
origem do homem (The real Eve) Dublado PT BR”.

107
sequenciamento do genoma humano, no início
dos anos 2000, a Teoria Multi-Regional também
“foi reforçada” através subsídios explicativos
provenientes desses dados. Atualmente, a
tendência é considerar que ambos modelos
contêm explicações válidas e que podem ser
conciliadas, e que todos os seres humanos na
Terra podem traçar sua ascendência até a grande
população de Homo sapiens que saiu da África 80
mil anos atrás. Mas os Homo sapiens não eram os
únicos Homo na Terra e quando eles conheceram
outros Homo, tiveram filhos com eles.

Dessa forma, parece que ao invés de


imaginar que os Homo sapiens surgiram a partir
da subjugação de outras raças, podemos supor
que se miscigenaram a elas, tanto em termos
biológicos (como mostram os estudos fósseis e
genéticos), quanto em termos culturais. Isso
implica que havia um emocionar comum entre
estas diferentes raças, que é o amar. Para
Maturana ele é o emocionar que permitiu a
origem do Homo sapiens a partir de nossa
linhagem ancestral.

Mas como diferentes espécies evoluem


entre si? Quais são os mecanismos que permitem
explicar, baseado em estudos fósseis e genéticos,
que uma raça de hominídeo evoluiu a partir de
outra levando ao desenvolvimento do Homo
sapiens? As concepções mais aceitas provêm das
explicações propostas por Charles Darwin no
século XIX, cujo impacto é possível observar não

108
apenas em estudos sobre evolução, mas em toda
biologia e também em outras “ciências”.

As ideias de Darwin
Em sua Teoria da Evolução Charles
Darwin reconheceu que as condições ambientais
desempenham um importante papel na geração
de variações hereditárias (ou seja, passíveis de
serem “transmitidas” através das gerações), assim
como na sua “seleção”.

Para Darwin, todos os organismos


descenderam a partir de ancestrais comuns que
sofreram modificações. O agente que atua sobre
estas modificações é a seleção natural, definida
por Darwin como “um preceito em virtude do qual
uma variação, por mínima que seja, se conserva e
se perpetua se for útil” 38 [50]. Nessa perspectiva,
as variações das características entre os
indivíduos é o material sobre o qual a seleção
natural atua, gerando maior adaptação das novas
variedades ao seu ambiente e constituindo, dessa
forma, novas espécies. As explicações acima,
acerca da origem do Homo sapiens são elaboradas
a partir desta concepção.

Entretanto, com os avanços da Biologia


Molecular a hereditariedade se confundiu com a
genética e as variações genotípicas (que

38
Dizer que algo é útil pressupõe que sirva para alguma coisa, ou seja, que
tem uma finalidade. Fiz este destaque na concepção de Darwin para a
seleção natural, pois ele remete a um argumento a favor de sua influência
como concepção teleonômica ou teleológica, conforme será explicado a
seguir.

109
correspondem a bagagem genética que é passível
de herança e que está por trás das modificações
ou variações fenotípicas observadas) foram
reconhecidas apenas como decorrências de
mutações aleatórias na estrutura dos genes [51].
Nesta perspectiva, de forma geral, a expressão de
genótipos (conjunto de genes), cuja variabilidade
é determinada por mutações aleatórias, produz
fenótipos (na forma de características
morfológicas, metabólicas, fisiológicas, ou
comportamentos) com diferentes graus de
“vantagem adaptativa” frente às condições
ambientais. Aqueles indivíduos com fenótipos
mais adaptativos, em termos de garantia de
sobrevivência e consequente sucesso
reprodutivo, têm uma maior chance de
transmitir aos seus descendentes este genótipo
que passa então a aparecer com maior frequência
na população.

Assim, são as pressões ambientais


decorrente do encontro entre os fenótipos dos
indivíduos e as condições ambientais que
“selecionam” os genótipos mais adaptativos, num
processo denominado seleção natural, que
constitui o principal mecanismo de evolução das
espécies. Nesta abordagem, apesar da seleção
ocorrer em nível individual, quem sofre adaptação
são as espécies e não os indivíduos.

Para muitos que assumem essa explicação


a competição é justificável e até mesmo
necessária, como está sugerido no título do livro
de Charles Darwin: “A Origem das Espécies por

110
meio da Seleção Natural – preservação das raças
mais aptas na luta pela vida”39, de 1859. A
sobrevivência e sucesso reprodutivo dos
indivíduos mais aptos favorece o processo
evolutivo, já que seus genes (responsáveis por sua
aptidão, sucesso e competência) serão
“transmitidos” através das gerações favorecendo
consequentemente a sobrevivência em
ecossistemas nos quais é necessário competir pelo
alimento e lutar contra predadores, assim como
competir para efetivar a reprodução. Para os
animais essas são as pressões seletivas mais
relevantes já que, como seres heterotróficos, não
produzem seu próprio alimento e a maioria se
reproduz de forma sexuada.

Uma concepção extremada da atribuição de


importância aos genes e ao “sucesso reprodutivo”
foi proposta por Richard Dawkins em seu livro “O
Gene Egoísta”, de 2007. Este autor considera que
o organismo é apenas uma “máquina de
sobrevivência do gene”, cujo objetivo é perpetuar o
máximo de cópias de si mesmo, ao que se
denomina manutenção do fitness. O autor
considera que mesmo os comportamentos
cooperativos ou altruístas são formas de
perpetuação do indivíduo e de sua bagagem
genética. Além disso, propõe o conceito de memes
como os equivalentes culturais dos genes, que são
unidades de memória ou de conhecimentos que o

39
Minha tradução para: “The origin os species by means of natural
selection – preservation of favoured races in the struggle for life”.

111
ser humano transfere de forma intencional aos
seus descendentes [52]40.

Apesar da visão que enfatiza a competição


ser a mais difundida a respeito do pensamento de
Charles Darwin, Paul Ekman destaca que em seu
livro “The Descent of Man, and Selection in
Relation to a Sex”41 (um livro pouco conhecido,
publicado em 1871) Darwin explica sobra a
simpatia, que se aproxima daquilo que
denominamos empatia, altruísmo ou
compaixão, e que diz respeito a comportamentos
que ocorrem principalmente em situações de
pedido de ajuda ou socorro, nas quais os
indivíduos podem colocar sua própria vida em
risco em favor de outro indivíduo. Em
comunidades humanas mais “primitivas”
(savages) comportamentos altruístas são mais
frequentemente observados entre membros de
uma mesma família ou grupo social mas,
naquelas comunidades mais “civilizadas”, podem
aparecer entre aqueles que não são membros de
um mesmo grupo. Além disso, não são
comportamentos exclusivos aos seres humanos e
podem ser observados em outras espécies,
principalmente em mamíferos e insetos sociais,
que exibem comportamentos sociais, eusociais e
maternais [53]. Essa predisposição para a ação
em favor de outros é um emocionar que tem

40
Um dos objetivos atuais da Etologia Cognitiva é refletir se é possível
compreender a evolução cultural em termos Darwinista ou neo-
Darwinistas; e se a cultura pode moldar a evolução genética, além de ser
modulada por ela.
41
A Descendência do Homem e sua Seleção em Relação ao Sexo.

112
muitas características que a relacionam e
aproximam do amar, na perspectiva da Biologia-
Cultural do Conhecer.

A explicação para a evolução baseada nas


ideias de Darwin desde a publicação do livro “A
Origem das Espécies” em 1859 ficou reconhecida
como Darwinismo, ou Teoria da Seleção
Natural, e exerceu grande influência em toda
biologia, principalmente em áreas como evolução,
morfologia comparada, embriologia descritiva,
paleontologia e biogeografia, mas também em
diversas outras áreas de estudo como na física,
sociologia, economia, psicologia e teologia [54,55].

O economista inglês Geoffrey M. Hodgson,


por exemplo, discute em suas pesquisas a
respeito das unidades sociais de evolução e
sobre a possibilidade de utilizar uma abordagem
darwinista para estudar alguns conjuntos de
instituições sociais [56].

Um parêntese para reflexão


Se atentarmos para a fala das pessoas no
dia a dia, seja em situações corriqueiras, em
discussões acadêmicas ou científicas, é
interessante observar como “pressupostos
darwinistas” (especificamente as ideias de seleção
natural, competição, sobrevivência do mais apto e
adaptação ao meio) permeiam a maioria das
explicações, ou seja, como constituem uma matriz
de coerências sensoriais-operacionais-relacionais
(ou matriz biológico-cultural) a partir da qual

113
operamos em nosso explicar. Quero refletir a
respeito de como isso implica em nosso viver-
conviver.

Darwin pressupõe haver três “mecanismos”


responsáveis pela evolução: variação, seleção e
herança. Em sua perspectiva as variações
ocorrerem ao acaso, ou seja, de forma não
direcionada. No seu encontro com um ambiente
preexistente certas características desse ambiente
atuam como pressões que “selecionam” as
características que mais adaptam determinado
organismo ao ambiente em questão. Dessa forma,
é o ambiente preexistente que especifica a
evolução através da seleção natural. A seguir,
essas características “vencedoras” são herdadas,
permitindo sua manutenção na linhagem que
passa a existir com maior frequência na
população.

Ocorre que, como observadores,


observamos tanta coerência entre a estrutura dos
organismos e o seu ambiente natural que
supomos haver uma ordem ou uma diretriz que
determina essa coerência. Então atribuímos
finalidades aos distintos fenômenos do nosso
viver (seja biológico ou cultural, via de regra vistos
de forma independente), finalidade esta que é
adjetivada como “adaptativa”. Apesar disso ser
uma “concepção equivocada” (misconception) das
propostas de Darwin, já que ele próprio afirmou
que as variações sobre as quais atua a seleção
natural ocorrem ao acaso e de forma não

114
direcionada42, ao conceber que o ambiente
preexiste ao organismo e realiza essa seleção, isso
faz supor que a finalidade da característica é
adaptá-lo ao meio ou, como propõe Dawkins,
garantir o sucesso reprodutivo (ao este autor se
refere como manutenção do fitness).

Correlações não implicam relações causais


mas, por exemplo, na busca de correlações entre
o grau de encefalização observado em diferentes
espécies de hominídeos e as pressões seletivas
que levaram a sua seleção (já que o ambiente é
quem seleciona e, portanto, é preexistente)
mesmo os pesquisadores acabam afirmando que
“foi a necessidade de procurar alimento que levou
ao desenvolvimento do neocórtex”, ou ainda, “que
foi a necessidade de coordenar ações que levou ao
desenvolvimento da linguagem”.

Há pesquisadores mais cuidadosos em


suas explicações, mas muitos incorrem em erros
de contabilidade lógica ao tentar explicar
fenômenos do domínio das interações do
organismo com o ambiente (interação entre o
fenótipo e as pressões ambientais seletivas) como
se fossem determinantes dos processos que
ocorrem no domínio do operar dos seres vivos
(mudanças estruturais nos fenótipos). E além
disso, desconsideram com este tipo de afirmação
o determinismo estrutural, supondo que o
ambiente tem uma ação determinística sobre a
estrutura dos organismos.
42
Isso aparece em algumas propostas explicativas, como a “evolução
rumo ao ponto Ômega” de Chardin.

115
No estudo da fisiologia dizemos que
atribuir uma finalidade a uma função é um “uso
fraco” do termo função. Mas a concepção finalista
baseada nas ideias de Darwin aparece de forma
marcante nas ciências biológicas de forma geral.

Esse aspecto finalista que identifico nesta


matriz de coerências aparece em nosso viver-
conviver através de nossa fala, em estruturas
linguísticas como:

 “você tem que ... para”


 “você tem que se adaptar à/ao ...”
 “isso serve para”, “para que serve?”
 “tal estrutura ou função, serve para nos
adaptar a tal condição ambiental, ou
pressão seletiva”
 “tal característica ou comportamento
observado no presente surgiu na história
evolutiva com o objetivo de nos adaptar a
algo”
 “que determinada pressão seletiva levou ao
desenvolvimento de ...”

Este tipo de abordagem finalista ou


teleonômica43 não explica os fenômenos que
ocorrem no domínio do viver dos seres vivos em
seu operar como unidades autopoieticas

43
Em relação às abordagens que apontam para uma finalidade podemos
falar em abordagem teleonômica e abordagem teleológica. A diferença
entre ambas não será abordada aqui.

116
moleculares, mas pertence ao domínio do
observador em seu viver cultural, onde
distinguimos e especificamos finalidades,
objetivos e propósitos.
As dimensões biológica e cultural são
entrelaçadas em nosso viver biológico-cultural e
têm influências recíprocas entre si, mas não
podemos utilizar elementos de um domínio (no
caso, o domínio cultural, que é onde como
observadores especificamos as finalidades) para
explicar outro domínio (do viver biológico em seu
fluir espontâneo), o que seria um erro de
contabilidade lógica e um reducionismo.

A partir de uma perspectiva teleonômica


que considera que finalidade, objetivo e propósito
são características necessárias para definir os
seres vivos, a ontogenia (história de mudanças
estruturais) é definida como um processo de
desenvolvimento até um estado adulto no qual se
alcança formas estruturais que habilitam o
organismo a realizar certas funções, segundo um
plano inato; e a filogenia, por sua vez, é uma
história de transformações adaptativas através
das quais há uma total subordinação do indivíduo
à realização de um “plano” próprio a sua espécie
[15].

Refletindo sobre a matriz de coerências que


os “pressupostos darwinistas” implicam,
considero que essa visão teleológica está por trás
de uma concepção do aprender como uma
“aprender para”, como se todo aprender tivesse

117
uma finalidade, objetivo ou propósito de nos
adaptar a determinada condição, seja ambiental,
ou cultural (no caso dos seres humanos).

Sem dúvida o aprender pode ser


direcionado a uma finalidade e pode aparecer
como adaptativo, mas não atentar para o fato de
que isso é uma dinâmica cultural e não algo
constitutivo de nosso ser e viver pode levar a um
equívoco de concepção. Ao operar a partir desta
matriz de coerências sem esta consideração isso
nos leva a buscar uma finalidade para tudo aquilo
que se aprende, o que nós, professores,
identificamos na fala de muitos alunos em
questionamentos tais como: “mas para que isso
serve?”, “onde e quando eu vou usar isso?”.

Ao assumir que há uma finalidade no


aprender que está sendo especificada por aquele
que ensina isso pode ainda não fazer sentido para
o viver de quem aprende e é então que este último
sente-se em mal-estar (sem saber porque), sofre e
adoece (e vice-versa, já que mesmo quem ensina
vive uma finalidade que muitas vezes não faz
sentido no seu próprio viver).

Se a finalidade da aprendizagem é
adaptativa justifica-se a competição saudável (e
os vestibulares e processos seletivos são prova
disso) e que o processo é intrinsecamente
doloroso, já que deve haver uma adaptação, que
requer mudança estrutural e de comportamentos
para que nos tornemos mais aptos ou, caso
contrário, sejamos eliminados (e disso resultam

118
sofrimentos que em última análise dizem respeito
ao medo de não mais existir, de ser negado e que
remetem ao medo da morte).

A Biologia-Cultural do Conhecer permite


uma alternativa a essa concepção através de suas
explicações sobre a evolução dos seres vivos a
partir da Deriva Natural e sobre a possibilidade de
reflexionar a respeito dos emocionares que guiam
nosso viver44. Nas palavras do próprio Maturana a
esse respeito:

O desenvolvimento da explicação darwiniana


sobre evolução, com ênfase sobre a espécie (em
detrimento do indivíduo), a seleção natural, a
aptidão e a manutenção do fitness, teve um
impacto cultural que chegou além das questões
sobre a diversidade dos seres vivos, propiciando
uma explicação da fenomenologia social na qual a
sociedade é considerada competitiva, devendo
haver subordinação do destino dos indivíduos aos
valores transcendentais que explicitam os
interesses sociais. A noção de autopoiese se
contrapõe a essa ideia, ao propor que a
fenomenologia biológica é determinada pela
fenomenologia individual, e que sem indivíduos,
não há fenomenologia biológica [15].

44
O que eu disse até aqui não implica que considero que só devemos
fazer aquilo que queremos e que certas “dores” e “sofrimentos” não
fazem parte de nosso viver. A questão que coloco diz respeito a reflexão
sobre a quem pertence nosso querer e se realmente é nosso. Não nego o
amadurecimento que certas dores e limitações podem trazer, mas vamos
continuar a viver dessa forma se refletimos a respeito do que estou
explicitando aqui, ou seja, se trazendo isso à “consciência” vamos optar
por manter essa matriz de coerências em nosso viver.

119
Voltando ao fluxo do texto e às
ideias de Darwin
As ideias de Darwin sobre a evolução
surgem no contexto político-econômico da Europa
do século XIX, marcado pelo desenvolvimento do
capitalismo industrial concorrencial e do
liberalismo econômico consolidados pela
Revolução Industrial. Segundo vários autores, a
influência mais conhecida sobre as concepções de
Darwin provém das ideias de Thomas Malthus ao
concluir que enquanto a população cresce em
progressão geométrica a disponibilidade de
recursos alimentares cresce em progressão
aritmética; foi a partir disso que Darwin construiu
sua concepção de “luta pela sobrevivência” e foi a
partir desta matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais que refletiu a respeito
das suas observações sobre os seres vivos,
concluindo que apenas através dessa luta os
“melhor adaptados” ao ambiente (graças à
variações vantajosas) se perpetuariam em
detrimento dos menos adaptados. Isso justificaria
o aumento na frequência de variações vantajosas
observadas na população presente, um raciocínio
a partir do qual poderíamos inferir sobre as
pressões seletivas passadas que mantiveram tais
variações como características presentes da
população [50,57].

É importante destacar aqui outro erro de


contabilidade lógica, quando se pretende explicar
o presente utilizando elementos de um passado
como agentes causais. “Os seres vivos vivem seu

120
viver num presente cambiante contínuo”,
enquanto o passado (assim como o futuro) são
criações do observador em seu observar e
pertencem a outro domínio fenomenológico que
não aquele onde vivemos como sistemas
autopoieticos moleculares [2,13].

Vários conceitos centrais da obra de


Darwin encontram paralelo marcantes com a
realidade política e econômica da época de
lançamento do livro “Origem das Espécies: a
concorrência do liberalismo econômico “equivale”
à competição de recursos entre os seres vivos; a
otimização dos meios de produção capitalista
“equivale” às variações adaptativas que surgem
nos organismos, e; o princípio do laissez-faire45
de Adam Smith, assim como as diferentes etapas
de crise e crescimento econômico decorrentes das
diferentes fases da revolução industrial, têm
várias “similaridades” com a ideia de seleção
natural, adaptação ao meio e sobrevivência do
mais apto [58].

Isso não poderia ser diferente pois,


considerando a Biologia-Cultural do Conhecer e a
relatividade fundamental, explicamos nosso viver
(no caso, Darwin explicou a evolução) utilizando
elementos de nosso próprio viver, a partir de uma
matriz de coerências sensoriais-operacionais-

45
Que de forma simplificada diz respeito ao fato de que para favorecer
uma economia com o máximo de benefícios para todos, é necessário que
cada individuo lute por suas próprias vantagens, o que abre espaço para a
“competição saudável”.

121
relacionais que permeia nosso viver biológico-
cultural.

Para Maturana e Dávila, devido ao seu


presente cultural, ou seja, à matriz de coerências
biológico-culturais de sua época, Darwin “não
podia ver” que a evolução biológica ocorre na
conservação do viver dos organismos que se
encontram adaptados, instante a instante, a um
meio em contínua mudança, no qual vivem em
uma dinâmica espontânea e não competitiva,
onde não há mais aptos e menos aptos e
tampouco um “ambiente seletivo pré-existente”.
Segundo estes autores o que Darwin não podia
ver era que: (1) os organismos só vivem se
encontram-se deslizando desde sua
sensorialidade íntima na tangente de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais com o meio
que os contém, e com o qual estão
estruturalmente acoplados, constituindo uma
unidade operacional-relacional organismo-
nicho, e; (2) o processo evolutivo não surge de
uma sobrevivência do mais apto baseada na luta
e na competição, mas sim através de uma deriva
natural na qual os organismos “deslizam”, de
forma espontânea e sem-esforço, no nicho que
surge com eles na conservação do seu bem estar
na unidade operacional-relacional que constituem
com ele [2].

122
Do Darwinismo à Síntese Expandida
Para as Ciências Biológicas a influência do
Darwinismo se estendeu por todo século XIX e
XX, com algumas alterações nas suas concepções
iniciais: as heranças foram consideradas (1) como
sendo “particuladas” (ou seja, transmitidas em
“partículas” que são os genes), (2) não-
Lamarkianas (ou seja, não adquiridas) e (3) cegas
a respeito do mecanismo de seleção. Isso deu
origem ao Neo-Darwinismo e a partir dos anos de
1930 a uma Moderna Síntese, na qual a
concepção de seleção natural foi fundida aos
conhecimentos da genética Mendeliana e da
Biologia Molecular [51].

Segundo Maturana e Varela o próprio


Darwin atentou para o fato de que ao utilizar o
termo “seleção” o fazia como uma metáfora
conveniente, “como se houvesse uma seleção” que
o ambiente faria no seu encontro com as
variações geracionais assim como um fazendeiro
“seleciona” variedades que o interessam. Com a
divulgação da sua teoria da evolução entretanto, a
ideia de seleção natural passou a ser interpretada
como fonte de interações intrusivas do meio
determinando o que ocorre aos organismos [12].
Falando a favor de sua reflexão a respeito de sua
própria explicação sobre a seleção natural, em
seu último livro “The Formation of Vegetable
Mould, Through the Action of Worms”46 de 1881,
Darwin explica que as minhocas estão adaptadas

46
A Formação do Húmus através da Ação das Minhocas.

123
para sobreviver num ambiente que elas próprias
modificaram [59] e faz exposições que permitem
afirmar que ele concebia que organismo e meio se
influenciam mutuamente, constituindo o que a
partir da Biologia-Cultural do Conhecer
distinguimos como uma unidade operacional-
relacional organismo-nicho, dentro da qual ocorre
um acoplamento estrutural entre o organismo e
o nicho que surge com ele (e não como um meio
pré-existente e seletor), de fora indissociável.

Em um livro de 2005 Jablonka e Lamb


realizam uma revisão a respeito da perspectiva de
evolução centrada na hereditariedade e na seleção
natural e propõem que há quatro tipos possíveis
para herança de variações, que denominam
genética, epigenética, comportamental e
simbólica [60]. As autoras consideram ainda que
uma explicação para a evolução deve considerar
aspectos do desenvolvimento. Isso porque a
possibilidade de geração de novas variações pode
ser influenciada pelo ambiente e não apenas
selecionada por ele, do que decorre que nem todas
essas variações são aleatórias em sua origem [51].
Estas pesquisadoras, além da influência dos
aspectos puramente biológicos sobre a evolução,
também consideram as influências das interações
dos organismos com seu ambiente natural (que se
“mantém” e “manifestam” através de heranças
epigenéticas) e sociocultural (que se “mantém” e
“manifestam” através de heranças
comportamentais e simbólicas).

124
Vários pesquisadores têm questionado as
concepções mais aceitas sobre a evolução (mesmo
aquelas provenientes da Moderna Síntese)
propondo uma Síntese Extendida (extended
evolutionary synthesis) na qual consideram que os
organismos se “constroem” durante o
desenvolvimento, que não são simplesmente
programados geneticamente para que se
desenvolvam, e que seu viver não ocorre
simplesmente por ajustes a um ambiente pré-
determinado, mas numa co-construção e
coevolução com este ambiente que altera a
estrutura do ecossistema como um todo [59]47.
Essas novas concepções se aproximam muito da
Teoria da Deriva Natural de Maturana e
Mpodozis, proposta em 1992, que permite
responder a muitos questionamentos feitos não
apenas em estudos de Evolução, mas também
naqueles da Etologia Cognitiva (dentre outros),
mas a proposta de Maturana e Mpodozis
“curiosamente” tem sido uma teoria esquecida e
raramente citada em estudos a respeito.

A partir da compreensão de que o


fenômeno do viver corresponde à autopoiese
molecular é possível entender que:

(1) o devir histórico dos seres vivos é um


processo espontâneo (sem objetivos ou
finalidades) de conservação de linhagens e de
formação de novas linhagens, na conservação

47
Há duas abordagens teóricas atuais que tratam das relações entre
biologia, cultura e evolução: a Hipótese da Construção de Nicho e a
Hipótese da Co-Evolução Genes-Cultura.

125
reprodutiva de distintos modos de vida (fenótipos
ontogênicos), em uma deriva ontogenética e
filogenética;

(2) as variações nos modos de vida que ao


conservar-se na reprodução dão origem à novas
linhagens surgem como variações epigenéticas48
que se conservam na reprodução, em
circunstâncias em que a herança ocorre como um
fenômeno sistêmico de relação entre organismo e
meio, e não como um fenômeno cuja
determinação é molecular, e;

(3) o que conotamos ao falar de “seleção


natural” é o resultado da conservação diferencial
de variações na diversificação de linhagens e não
o mecanismo gerativo dessas variações, ou seja, a
seleção natural é o resultado das variações e não
sua causa, já que não há um propósito, mas sim
um suceder espontâneo no viver em nível
ontogenético e filogenético [61].

A Evolução da Inteligência
Apesar dos vários questionamentos acerca
das concepções de Darwin, muitas reflexões
científicas ainda são feitas com base na matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais
que elas implicam. Por exemplo, sabemos que
além de uma constituição biológica os seres
humanos, como seres sociais, vivem e “evoluem”
dentro de um grupo social e de uma cultura. A
48
Diz respeito àquelas variações que são adquidirdas durante o
desenvolvimento e que podem ser transmitidas através das gerações.

126
partir de uma abordagem “darwinista”, quais são
as pressões seletivas que o viver biológico e
sociocultural dos seres humanos impõe e que
poderiam justificar sua evolução?
Dentro do grupo de hominídeos aos quais
pertencemos as principais diferenças não dizem
respeito a nossa constituição orgânica (não
podemos esquecer que compartilhamos 98% da
nossa bagagem genética com os chimpanzés), mas
a certas habilidades que constituem o que
podemos denominar de inteligências e que nos
diferenciam em muito de nossos parentes Homo
mais próximos (como o Homo erectus, por
exemplo).

Para Jean Piaget, inteligência é sinônimo


de adaptação e está constituída por três
mecanismos: assimilação, acomodação e
esquemas mentais.49

Howard Gardner define a inteligência


humana a partir de três critérios: (1) capacidade
para resolver problemas encontrados na vida real,
(2) capacidade para gerar novos problemas a
serem resolvidos e (3) capacidade para fazer algo
ou oferecer algo que é valorizado em sua própria
cultura. A partir dessa concepção ele identifica

49
Mesmo considerando que a matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais a partir da qual Piaget e Maturana elaboram suas
explicações é bem distinta, pretendo em trabalhos futuros mostrar que a
assimilação e a acomodação são processos “homólogos” ao acoplamento
estrutural proposto pela Biologia-Cultural do Conhecer, o que foge aos
objetivos deste livro.

127
oito tipos de inteligências nos seres humanos e
propõe a Teoria das Inteligências Múltiplas [19].

Segundo Alex Wissner-Gross, a inteligência


diz respeito ao desenvolvimento de estados que
maximizam a possibilidade de futuros possíveis,
ou seja, a capacidade de maximizar possibilidades
futuras [62]. Nos seres humanos é a capacidade
de assumir o controle de todos os futuros
possíveis que faz surgir a inteligência e a busca de
metas emerge da motivação de longo prazo para
aumentar a liberdade de ações no futuro.

Para Byrne e Whiten, a inteligência diz


respeito as estratégias utilizadas pelos animais
para lidar com o mundo físico (ou natural), mas
também para lidar com seu ambiente social e com
as relações e demandas que dele provém [63].

Todas essas concepções partem de


“pressupostos darwinistas”50 na medida que
consideram que a inteligência está para uma
finalidade (“é algo para...”) que permite ao
indivíduo se adaptar ao ambiente físico ou social,
ou ter controle sobre ele. Uma explicação baseada
na Biologia-Cultural do Conhecer, por sua vez,
busca compreender o fazer que caracteriza a
inteligência, e não sua finalidade.

Na tentativa de explicar a evolução da


inteligência os pesquisadores tentam
correlacionar comportamentos específicos

50
Utilizarei a expressão “pressupostos darwinistas” para fazer referência a
matriz de conerências sensoriais-operacionais-relacionais a partir das
quais são feitas suas afirmações, como apresentei anteriormente.

128
(considerados “inteligentes”) ou características do
encéfalo humano 51 (inferidas a partir de dados
provenientes de estudos com fósseis e estudos
comparativos, que são consideradas subjacentes
ou determinantes da inteligência), com
características ambientais que elegem como
possíveis pressões seletivas. Partem do
pressuposto que o encéfalo, e especificamente o
cérebro, são a sede da inteligência e dos
fenômenos cognitivos e assumem “pressupostos
darwinistas”.

Em relação às peculiaridades do cérebro


humano, Suzana Herculano-Houzel diz que
inicialmente se imaginava que quanto maior o
cérebro, maior a quantidade de neurônios e
consequentemente maior sua capacidade de
“processar informações”. Mas se fosse assim,
animais como uma vaca e um chipanzé, que tem
cérebros com aproximadamente o mesmo
tamanho, apresentariam a mesma inteligência ou
as mesmas ‘capacidades cognitivas’. Da mesma
forma uma baleia (que tem um cérebro com cerca
de 9kg) teria maior capacidade cognitiva que nós,
os seres humanos (cujos cérebros têm entre 1,2 e
1,5kg) e isso não é verdadeiro em nenhum dos
casos52. Outra grande diferença assinalada é que

51
O encéfalo é a porção do sistema nervoso contida no interior do crânio;
ele é formado pelo cérebro, cerebelo e tronco encefálico. É considerado o
“processador central” das informações no sistema nervoso.
52
Considero aqui que “inteligência” e “capacidade cognitiva” são
equivalentes e que ambas permitem realizar “tarefas complexas”. A
concepção de cognição da Biologia-Cultural do Conhecer não sustenta
essa afirmação, pois dada a indissociabilidade entre o ser, o fazer e o
conhecer, todo ser vivo é igualmente inteligente (já que está vivo).

129
o cérebro humano é grande em relação ao nosso
tamanho corporal e consome mais energia que os
das demais espécies (cerca de 25% do consumo
energético total em repouso, ou do metabolismo
basal) [64].

Em espécies não primatas cérebros


maiores têm neurônios maiores, enquanto que em
cérebros de primatas o tamanho dos neurônios
não aumenta com o tamanho do cérebro; logo, em
cérebros maiores de primatas há mais neurônios
do que em comparação aos grandes cérebros de
outras espécies de animais, como é o caso do
cérebro humano em relação a todos os demais. A
quantidade de neurônios no cérebro humano está
estimada em cerca de 86 bilhões, dos quais 16
bilhões são neurônios corticais [65]. Sendo assim,
a característica distintiva dos cérebros humanos é
sua maior quantidade de neurônios,
principalmente seu maior percentual de
neurônios corticais.
Dois índices têm sido utilizados na
elaboração de correlações para avaliar a
inteligência ou as capacidades cognitivas: (1) o
coeficiente de encefalização, que corresponde
ao quociente obtido pela divisão do peso cerebral
pelo peso corporal total, e (2) a razão neocortical,
que é o quociente entre volume do neocórtex 53
dividido pelo volume total do cérebro [66]. Alguns
estudos também utilizam a razão cortical, na

53 O neocórtex corresponde a regiões corticais que são mais


desenvolvidas no ser humano e que aparecem mais recentemente na
filogênese.

130
qual ao invés de utilizar o volume do neocórtex
utilizam o volume do córtex como um todo.

Nesse contexto, a questão que podemos


levantar é: quais as pressões seletivas que
favoreceram o desenvolvimento da inteligência
humana, ou dito de outra forma, estão por trás do
aumento adaptativo na encefalização e no
desenvolvimento do neocórtex do Homo sapiens
em relação aos demais hominídeos?

Há dois grupos de hipóteses na tentativa de


obter respostas para esta questão: as Hipóteses
Ecológicas que afirmam que os fatores
ambientais são as principais pressões seletivas
(como o uso de ferramentas, a relação predador
versus presa e a disponibilidade de alimento, por
exemplo); e as Hipóteses do Cérebro Social, que
afirmam que são aspectos relacionados aos
grupos sociais a principal pressão seletiva
responsável pela encefalização e desenvolvimento
neocortical observados em humanos.

Hipóteses Ecológicas para o


Desenvolvimento da Inteligência
Dentro do conjunto de Hipóteses
Ecológicas a mais antiga resposta para a questão
sobre o que diferencia a inteligência dos seres
humanos daquela das demais espécies de
hominídeos (e que persiste ainda hoje dentre as
explicações de senso comum) é aquela proposta

131
por Oakley em seu livro “Man the toolmaker”54 que
considera que a estrutura do homem moderno é o
resultado da seleção natural decorrente de um
modo de vida baseado no uso de ferramentas [67].
Dito de outra forma, essa hipótese considera que
o desenvolvimento tecnológico (principalmente o
uso de ferramentas) tem como objetivo superar
desafios ambientais e é o “motor” da encefalização
humana. Por este motivo esta hipótese é
denominada Hipótese Tecnológica.

Entretanto, vários estudos mostram não


haver correlações entre o grau de desenvolvimento
de ferramentas e aumentos nos coeficientes de
encefalização entre diferentes espécies de
hominídeos, o que permite afirmar que as
demandas da tecnologia não explicam a trajetória
de aumento e complexificação cerebrais
observados entre os hominídeos, principalmente
entre os representantes do gênero Homo [68].
Os primeiros representantes do gênero,
como os Homo habilis, apresentam cérebros
maiores que os Homo sapiens e mesmo assim
utilizavam ferramentas extremamente
rudimentares. No mesmo sentido, o Homo erectus
tem um cérebro de tamanho muito similar ao do
Homo sapiens, mas o grau de sofisticação das
suas ferramentas não tem comparação e é
indiscutivelmente maior para aquelas
desenvolvidas pelos sapiens. Soma-se a isso o fato
de que, apesar de não ter ocorrido aumento no

54
Que pode ser traduzido como: “Homem, o fazedor de ferramentas”.

132
coeficiente de encefalização do Homo sapiens,
nossas tecnologias tem “evoluído” de forma
espetacular desde nossa origem [66].

Além disso, é conhecido o fato que outras


espécies de não primatas também utilizam
ferramentas, como é o caso dos golfinhos, que
usam esponjas para proteger seus focinhos (e
ensinam isso aos golfinhos mais jovens); das
araras azuis e lontras, que usam pedras para
quebrar outras pedras (e que também ensinam
isso aos seus filhotes); dos polvos, que usam
cascas de coco cortadas para se esconder; das
aranhas buraqueiras, que usam pedras em suas
teias; e dos famosos corvos da Caledônia, que
fazem verdadeiros ganchos com galhos para
coletar insetos escondidos em buracos [66].

Outra Hipótese Ecológica é a Hipótese do


Forrageamento, inicialmente proposta por
Katherine Milton, que afirma que a pressão
seletiva mais relevante é o forrageamento, que
compreende uma série de comportamentos para
busca e obtenção do alimento, e que impõem uma
“tensão” entre a encefalização e o desenvolvimento
dos intestinos [69].

Segundo essa hipótese, animais folívoros 55


(como os bugios) têm menos dificuldade em
encontrar seu alimento, já que as folhas são
abundantes na natureza, enquanto para os
animais frugívoros56 (como o macaco-aranha) essa

55
Animais que se alimentam de folhas.
56
Animais que se alimentam de frutas.

133
dificuldade é maior, já que os frutos estão
disponíveis apenas em alguns locais e épocas do
ano. Consequentemente, os frugívoros necessitam
de comportamentos mais sofisticados para
obtenção de alimentos do que os folívoros.

Rins, corações, intestinos e cérebros são os


órgãos com maior custo energético; enquanto não
é possível “abrir mão” do desenvolvimento de
corações ou rins, o desenvolvimento de cérebros
maiores pode ocorrer em detrimento do
desenvolvimento dos intestinos, e vice-versa.
Sendo assim, é por isso que nos frugívoros
observamos intestinos mais curtos (que são
capazes de digerir e absorver os carboidratos
abundantes dos frutos) e cérebros maiores (que
permitem funções cognitivas mais elaboradas,
necessárias à obtenção de alimentos), além de
áreas de uso (ou “home range”) também maiores.
A área de uso corresponde à extensão do território
que é utilizada pelos animais para busca e
obtenção de alimento. Enquanto isso, nos
folívoros a situação é diferente, com intestinos
mais longos e contendo microrganismos
simbiontes (necessários à digestão dos
carboidratos mais complexos que são encontrados
nas folhas), cérebros menores (e por isso
apresentam funções cognitivas menos elaboradas)
e áreas de uso menores (já que seu alimento está
amplamente disponível). Ou seja, frugívoros têm
cérebros grandes, pois precisam explorar uma
área maior para encontrar seus alimentos,
desenvolvendo para isso comportamentos mais

134
sofisticados, e isso se dá às custas de intestinos
curtos. Já os folívoros têm intestinos grandes às
custas de cérebros pequenos e precisam explorar
áreas menores para encontrar seu alimento que é
abundante.

Entretanto, quando se divide as áreas de


uso pela massa corporal dos animais (obtendo um
índice denominado área de uso residual ou
“home range residue”), as correlações obtidas por
Milton são perdidas [70]. Trabalhando com esses
dados e aperfeiçoando suas análises,
diferentemente de Milton, Dumbar “descobriu”
que a razão neocortical de cada animal não se
correlaciona com seus hábitos de forrageamento,
mas com o tamanho dos grupos sociais dos quais
eles participam.

A partir destes dados ele chegou à


conclusão de que cérebros mais desenvolvidos
parecem estar relacionados ao tamanho destes
grupos e que as funções cognitivas estão
associadas à complexidade das relações nos
grupos sociais dos quais os animais participam,
sendo essa a principal pressão seletiva para a
encefalização dos primatas [66].

Aprofundando seus estudos Dumbar


encontrou correlações entre diversas “variáveis
sociais” e a razão neocortical, além de outras
correlações, como por exemplo: entre razão
neocortical e grooming (que é um comportamento
de catação que um animal realiza nos pêlos do
outro, e que ajuda a manter a coesão social entre

135
os membros de um grupo); entre volume do lobo
frontal e tamanho do grupo; e entre capacidade de
julgamento moral e tamanho do complexo
basolateral (formado pelo lobo frontal e amígdala,
e que está envolvido na formação de memórias
com conteúdo emocional, principalmente
daquelas relacionadas ao medo) [71].

É a partir dos estudos de Dumbar que


surgem as Hipóteses do Cérebro Social, ou da
Cognição Social, que identificam que as pressões
seletivas mais relevantes para os animais que
vivem em grupos, como os primatas, e que são
responsáveis pelo desenvolvimento da
inteligência, estão no ambiente social (com suas
dinâmicas e demandas), e não no ambiente
natural.

O Cérebro Social e a Cognição Social


Os estudos em Cognição Social consideram
que, assim como o restante do organismo, nossos
cérebros e mentes são o produto de seleção
natural e que sua história evolutiva decorre
principalmente de pressões seletivas provenientes
da vida social, além daquelas provenientes do
ambiente natural.

Até antes do final da Segunda Guerra


Mundial pouco se sabia a respeito do
comportamento social dos primatas em seu
ambiente natural. Desde então, graças aos
estudos de vários pesquisadores, compreendemos
que sua organização social é mais complexa do

136
que havíamos imaginado, envolvendo guerras,
intrigas, mentira e política, mas também
cooperação, cuidado recíproco e altruísmo, em
diferentes modelos de estruturas sociais. Isso
permitiu uma série de estudos a respeito da
cognição social que são utilizados para extrapolar
conclusões a respeito destes fenômenos em seres
humanos.

Todos os primatas antropoides vivem em


grupos sociais; os primatas prossímios, como os
lêmures, são os únicos primatas não-sociais
(agrupamentos sociais de lêmures só foram
observados em Madagáscar). Curiosamente, o
desempenho dos lêmures em tarefas de solução
de problemas em laboratório (mesmo daqueles
“sociais”, provenientes de Madagáscar) é ruim
quando comparado ao dos demais primatas [66].
Isso fala a favor de correlações entre o
desenvolvimento da inteligência e a cognição
social.
Em 1953 Chance e Mead sugeriram uma
correlação entre competição intragrupal e
encefalização, propondo um mecanismo de
supressão cortical das funções autonômicas
[72] que explica que as funções automáticas e
“instintivas” (como a agressividade, por exemplo)
poderiam ser “reguladas” pelo córtex, graças à
pressões seletivas na forma de demandas
provenientes do ambiente social.

Estudos realizados na década de 1920 por


Walter B. Cannon mostraram que a transecção do

137
encéfalo entre o córtex e o tálamo (mantendo as
conexões que estão abaixo desse nível, entre
tálamo, hipotálamo, tronco encefálico e medula
espinal) produzem um quadro de “raiva
simulada” (ou “sham rave”) no qual os animais
respondem a estímulos quaisquer com uma
expressão emocional57 de raiva. Estas estruturas
estão representadas na Figura 8 a seguir.

Figura 8. Esquema mostrando as posições relativas do


córtex, tálamo, hipotálamo, tronco encefálico e medula
espinhal. Adaptado a partir de https://goo.gl/6NcJ23.

57
Os neurocientistas diferenciam a experiência emocional (subjetiva), da
expressão emocional, que diz respeito à manifestações emocionais
observáveis, em sua maioria devidas à ativação de uma porção do sistema
nervoso autonômico denominada sistema nervoso simpático (levando à
taquicardia, paquipnéia, dilatação pupilar, sudorese e piloereção, por
exemplo). A expressão emocional se aproxima àquilo que Maturana
denomina emocionear.

138
A partir desses estudos foi possível concluir
que o hipotálamo está envolvido na expressão
emocional (cujos componentes observáveis
correspondem às funções autonômicas) e que o
córtex tem um efeito de supressão dessas funções
através de suas conexões com o tálamo e o
hipotálamo [73]; e ainda, que a expressão
emocional primária (que não depende de
estimulação) corresponde a um comportamento
similar à raiva ou à agressividade.

Para Chance e Mead o desenvolvimento


cortical está associado às demandas de supressão
da expressão emocional tendo em vista o
“ajustamento social” dentro grupo ao qual
pertencemos.

Nick Humphrey foi o primeiro à propor em


seu livro “A função social do intelecto” de 1967
que as demandas cognitivas da vida social
deveriam superar aquelas impostas pelas
interações com o mundo físico; e no mesmo ano,
Hans Kummer propôs, através da observação de
relações triádicas em grupos de babuínos, o “uso
do outro como ferramenta social”. Estas
observações inspiraram a proposição da Hipótese
da Inteligência Maquiavélica por Byrne e Whiten
[66].

De forma bem sintetizada, essa hipótese


considera que para obtenção de uma vantagem
dentro de um grupo social “não basta ser muito
esperto, mas é necessário ser mais esperto que o

139
outro”, o que remete a uma necessidade de
“competição social para sobrevivência do mais
apto”. Nesta perspectiva, vários estudos mostram
uma série de competências sofisticadas exibidas
por primatas não-humanos na esfera das relações
sociais:

 chipanzés e outras espécies de primatas têm


estratégias refinadas para conquista de
poder e resolução de conflitos;

 macacos de Java têm capacidade de


discriminar e categorizar outros indivíduos
em relações de parentesco e afiliativas,
sendo capazes de discriminar díades
coespecíficas de mãe-filhote a partir de fotos,
mesmo quando os filhotes já estavam
adultos. Isso sugere que esses animais
consideram a história de cada
relacionamento, mantendo alianças e
estratégias de altruísmo recíproco tendo em
vista a coquista dos seus “interesses”58;

 macacos de Java também têm capacidade de


“enganação tática”, utilizando sinais
“honestos” de forma enganadora em relações
intraespecíficas [66].

Contrariamente ao que propõe a Hipótese


da Inteligência Maquiavélica, na qual o ambiente
social é visto como um contexto adverso ao qual o
indivíduo deve se adaptar (o que claramente têm

58
Situações nas quais os custos de um indivíduo A para prestar um serviço
X a um indivíduo B, são menores que os benefícios Y recebidos de B, e
vice-versa [66].

140
influência dos pressupostos darwinistas), vários
autores consideram que ele pode favorecer a
aquisição de “informações” e habilidades,
contribuindo dessa forma com o desenvolvimento
da inteligência. Nesta perspectiva sugerem que há
uma coevolução entre a cultura (vista como
produto do grupo social) e a cognição [74].

Strum, Forter e Hutchins, consideram que


para haver uma sociedade complexa, ou grupos
inteligentes, não é necessário haver cognição
individual complexa (indivíduos inteligentes) [75]
e que os sistemas sociais podem ser muito mais
complexos que a soma da complexidade dos
indivíduos que o constituem, e de forma
recíproca, favorecer seu desenvolvimento
cognitivo. Fazendo referência à ação situada
(derivada dos estudos da Troika, que era o grupo
formado por Vigotski, Leontiev e Luria) estes
autores veem o comportamento como algo que vai
sendo organizado através de interações com o
ambiente e com outros indivíduos, e não
determinado a partir de representações
previamente armazenadas sobre este ambiente
[66]. Esta concepção se aproxima à
indissociabilidade entre o ser, o fazer e o
conhecer, e ao acoplamento estrutural que propõe
a Biologia-Cultural do Conhecer.
No mesmo sentido, Johnson propõem uma
expansão da unidade de análise nos estudos de
cognição social incluindo não apenas o indivíduo,
mas seu ambiente físico e social [76], de forma a
considerar como os “contextos” influenciam os

141
comportamentos. Esta perspectiva apresenta
similaridades à concepção de unidade
operacional-relacional organismo-nicho,
também proposta pela Biologia-Cultural do
Conhecer.

Falando à favor de uma cognição


socialmente desenvolvida, parece haver nos
primatas sociais “predisposições cognitivas” para
a vida social. Estudos com macacos vervet, por
exemplo, mostram que estes animais respondem
melhor a vocalização de outros animais do que a
outras “pistas ambientais” indicativas de perigo, o
que permite supor que sinais sociais são mais
“significativos” do que outros sinais físicos [66].
No mesmo sentido, vários estudos utilizando
paradigmas para compreensão de regras mostram
que há um maior desempenho em tarefas que
utilizam regras sociais do que regras abstratas
[77].
Estudos com recém-nascidos humanos
mostram que, apesar das suas “limitações
sensoriais”, eles discriminam melhor e mostram
mais interesse por estímulos associados à pessoas
humanas, como a fala, o movimento e rostos, e
logo após o nascimento já apresentam respostas
de imitação de expressões faciais 59 [78]

Crianças humanas dão preferências à


estímulos com formas humanoides e segundo

59
Alguns autores questionam essa afirmação, defendendo que muitos
desses comportamentos referidos como imitados a partir do
comportamento de adultos (como mostrar a língua) são na verdade
estereotipados e espontâneos em recém-nascidos.

142
Jean Piaget desenvolvem uma noção de
causalidade social antes da causalidade física
[79]. Por exemplo: ao observar num jogo de bilhar
que uma bola que bate em outra faz com esta se
desloque, uma criança pode explicar que a
segunda bola foi embora porque não gostou da
primeira. As crianças também têm uma tendência
ao animismo, atribuindo características
antropomórficas (como consciência e propósitos)
aos objetos inanimados [66] o que pode ser
observado em seu brincar.

Um segundo parêntese para reflexão


O animismo da infância pode ser
relacionado a nossa tendência ao
antropomorfismo, ou seja, a atribuição de
características humanas aos comportamentos de
outros seres vivos além de objetos inanimados.
Isso é observado, por exemplo, quando dizemos
que um cachorro está com saudades do seu dono
(o que não podemos afirmar mas supomos) ou
quando dizemos que um objeto qualquer dança ao
observamos seu movimento60. Tanto o animismo
como o antropomorfismo podem ser
compreendidos quando assumimos a relatividade
fundamental e neste caso consideramos que
explicamos nosso viver usando as coerências
desse mesmo viver. Sendo assim, ambos

60
O termo “animismo” é reservado à atribuição de características
humanas à objetos inanimados, enquanto que o antropomorfismo é um
termo mais amplo, utilizado para atribuição destas caratcerísticas a seres
vivos e não vivos.

143
fenômenos não são uma “distorção” da realidade
realizada pela criança (vista como ser humano
ainda imaturo), ou pelo adulto ao antropomorfizar
(e aí dizemos que está atuando a partir do senso
comum, como uma forma de explicação “inferior”
às explicações científicas).

No brincar, concebido como uma atividade


realizada por crianças, adultos ou animais, nas
quais se desfruta do fazer presente sem nenhum
objetivo, ou seja, de modo espontâneo [80],
estamos experimentando e “testando” a matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais a
partir da qual vivemos nosso viver. É por isso que
ao observar crianças brincando vemos que “dão
voz” aos seus brinquedos, pois elas mesmas se
expressam através da fala, ou “simulam” que seus
brinquedos sentem felicidade ou tristeza, pois elas
mesmas se sentem assim.

Tudo que as crianças fazem ao brincar


remete ao que elas vivem e a partir daí (como é
típico do viver humano), “supõe” que tudo mais
vive da mesma forma que elas, ou seja, que tudo
mais opera a partir da mesma matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais.
Dito de outra forma, ao brincar as crianças estão
construindo um mundo, assim como nós ao
propormos nossas explicações, e ambos fazemos
isso a partir de uma matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais biológico-
cultural que permeia tudo o que fazemos.

144
Essa concepção é diferente daquela
proposta por antropólogos e psicólogos (como por
exemplo, Jean Piaget) que consideram que o
brincar é uma preparação para a vida adulta,
como se tivesse uma finalidade. Logo, a tendência
ao animismo infantil e ao desenvolvimento
precoce da causalidade social é na verdade uma
observação das crianças vivendo seu viver em
uma matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais, assim como durante seu
brincar, ou seja, são manifestações da
relatividade fundamental.

As noções de causalidade física aparecem


num momento posterior do desenvolvimento
quando passamos a identificar relações causais e
a atribuir propósitos e finalidades aos fenômenos,
pois apenas nós, como seres humanos que
vivemos no linguajear, podemos viver
comportamentos que não pertencem ao brincar,
ou seja, que não são espontâneos [80]. Sendo
assim, as noções de finalidade e propósito
decorrem do reflexionar que podemos realizar
como observadores, graças ao nosso linguajear, e
não dizem respeito ao viver espontâneo que
vivemos, mesmo que não nos demos conta disso.

Se as demandas da vida social são tão


relevantes para o desenvolvimento da inteligência
e o ser humano parece estar tão “adaptado” para
se “importar” e se “comunicar” com outros seres
humanos, como é possível que as vezes estes
processos deixem a desejar e não conseguimos
nos entender mutuamente?

145
Linguagem e desenvolvimento da
Inteligência
Em seu livro “Grooming, Gossip and the
Evolution of Language” 61 Dunbar propõe uma
abordagem interessante para o surgimento da
‘linguagem’ que se aproxima em muitos aspectos
das concepções da Biologia-Cultural do Conhecer
[81].

O grooming, também conhecido como


comportamento de catação, é um
comportamento no qual um animal se posiciona
de costas para um outro que realiza movimentos
de catação com as mãos sobre a sua pelagem,
permitindo um contato íntimo e de proximidade.
Segundo Dumbar este comportamento é uma
forma primordial de interação através da qual os
primatas mantêm seu “vínculo social”. Ele
observou que com o aumento do tamanho do
grupo aumenta também o tempo dedicado ao
grooming para manutenção do vínculo social com
os animais mais próximos. Além disso, em grupos
grandes ele observou tríades nas quais alguns
animais realizavam grooming em um segundo
animal e recebiam grooming de um terceiro, e que
este comportamento era acompanhado por
vocalizações.

Fazendo estimativas a respeito de “tempo


de grooming” que seria necessário para manter a
coesão em grupos com cerca de 150 primatas,

61
Minha tradução: “Catação, fofoca e a evolução da linguagem”.

146
que é um valor estimado do número máximo de
indivíduos nos grupos de nossos ancestrais
hominídeos, Dunbar chegou à conclusão que esse
tempo seria incompatível com o tempo necessário
para que estes animais pudessem realizar suas
demais atividades, ocupando cerca de 50% da sua
vigília. Então ele propõe que as vocalizações que
passaram a acompanhar o grooming
gradativamente substituíram essa atividade, se
tornando a principal forma de manutenção dos
vínculos sociais e da coesão grupal.

Para esse autor a ‘linguagem’ humana


surgiu a partir deste mecanismo, inicialmente na
forma de “fofocas” que passaram a atuar como
um mecanismo de manutenção dos vínculos e da
coesão social em substituição ao grooming e as
vocalizações dos primatas. Essa abordagem é
diferente daquela assumida pela maioria dos
autores que enfatizam o caráter simbólico da
linguagem, afirmando que ela surgiu como uma
forma de transmitir informações tendo em vista a
organização de atividades em grupos (como a
caça, por exemplo) ou para favorecer a
aprendizagem social.

Nesta perspectiva a coesão grupal entre


primatas se mantém inicialmente na forma de um
contato físico através do grooming, sendo
substituída pela “proximidade” que as
vocalizações e posteriormente a fala permitem,
como se fossem uma outra forma de “toque” e
“contato”. Para que isso possa ocorrer os animais
devem estar num emocionar que permita tal

147
aproximação e contato. Fazendo uma relação com
a Biologia-Cultural do Conhecer, esse emocionar
corresponde ao amar.

O que Dunbar denomina ‘linguagem’ para


a Biologia-Cultural do Conhecer diz respeito a
constituição de domínios linguísticos, que só
posteriormente passam a constituir a linguagem
(ou o linguajear, como explicarei a seguir). A
partir dessa perspectiva os pesquisadores da
cognição social passaram a considerar que a
‘linguagem’ é a pressão social mais relevante para
a encefalização.

Linguagem e Conversar
Muito antes da aquisição da ‘linguagem’ os
bebês já desenvolvem um padrão de “interação
dialogada” respondendo às vocalizações da mãe
com outras vocalizações, de forma alternada,
como em uma ‘conversa’ [82]. Sendo assim, é
como se os bebês já tivessem uma predisposição
inata para o ‘conversar’.

Segundo Patricia Kuhl os adultos são


ouvintes ligados à uma ‘cultura’ e especialistas
em identificar os sons (ou fonemas) que
constituem sua língua natal. Ao contrário, os
bebês são “cidadãos do mundo” capazes de
discriminar com a mesma facilidade sons de
quaisquer línguas [83]. Pesquisando a respeito de
como os sons da língua são aprendidos, Kuhl e
sua equipe observaram que há um período crítico,
entre seis a oito meses de vida, no qual bebês de

148
nacionalidades diferentes, como japoneses e
americanos, são capazes de discriminar com a
mesma “eficiência” sons como o “la” e o “ra” (que
aparecem com frequência no inglês, mas não do
japonês). Por volta dos 10 meses de vida
entretanto, os bebês americanos se tornam
melhores nessa discriminação, enquanto que o
desempenho dos bebês japoneses para isso piora
muito, mostrando que já nessa idade eles
começam a discriminar preferencialmente os sons
de sua língua natal, ou com os quais têm contato
frequente.

Segundo esta pesquisadora ao conversar


com suas mães os bebês estão fazendo
“estatísticas da língua”62 e percebendo, no caso
dos bebês americanos, que o inglês no qual suas
mães conversam com eles é cheio de “Rs” e “Ls”;
quando se tornam adultos estes bebês
discriminam com mais facilidade estes sons em
função dessas memórias precoces. Se forem
expostos a outra língua dentro do período crítico
(entre 6 a 8 meses de vida) os bebês também se
tornam hábeis em discriminar seus fonemas mais
característicos.

Interessante é que tudo isso só acontece se


os bebês tiverem contato com o som da língua
através da interação direta com outro ser
humano. Quando eles são testados ouvindo os
sons a partir de um gravador, ou mesmo de um
vídeo onde aparece outro ser humano, eles não
62
Especificamente um tipo de estatística denominada Bayseana, a
respeito da qual comentarei mais a seguir.

149
são capazes de realizar suas “estatísticas” e
identificar com facilidade os fonemas em questão
[84]. Mais interessante ainda é um estudo de
2013 que mostra que essa influência já se inicia
na vida intrauterina, principalmente durante as
‘conversas’ que as mães têm com seus bebês
quando ainda estão dentro das suas “barrigas”
[85].

O estilo de interação durante a fala e o


contexto no qual essa interação ocorre também
influenciam o desenvolvimento posterior da
qualidade da ‘linguagem’ dos bebês. A conversa
entre pais e filhos durante atividades conjuntas
(como no brincar) favorece a aquisição de
vocabulário mais do que a conversa durante
atividades diárias, nas quais não há um contato
direto do olhar daqueles que conversam [86]. Da
mesma forma, a fala de estilo parental
(“parenteses speech”) favorece a aquisição de
vocabulário [87]. Essa é uma fala típica
principalmente entre pais e filhos, caracterizada
por uma simplificação gramatical e lexical, maior
volume, lentidão e exagero nas entonações, o que
permite que os fonemas sejam mais facilmente
distinguíveis, pois são claros, mais longos e mais
distintos uns dos outros, além da gesticulação e
da emoção de afeto que os acompanham. Destaco
que este afeto apresenta muitas relações com o
amar.

Vários neurocientistas consideram que


para haver uma comunicação efetiva é necessário
o “alinhamento” ou “sincronismo” entre os

150
indivíduos que se comunicam, a partir de uma
perspectiva compartilhada ou de alguma
63
estrutura mental comum . Segundo Uri Hasson,
há dois fatores que permitem que nos
comuniquemos:

(1) a conexão física que se forma a partir


das ondas sonoras que um falante produz
durante sua fala, e que chegam ao cérebro de um
ouvinte após serem captadas por estruturas
nervosas localizadas no ouvido interno, e;

(2) um protocolo neural em comum [88].

A partir de imagens obtidas utilizando


ressonância magnética funcional (fMRI) este
pesquisador observou que certas áreas corticais
(como o córtex posterior medial, córtex pré-frontal
medial e o giro angular) apresentam o mesmo
padrão espaço-temporal de atividade elétrica em
indivíduos que ouvem uma mesma história, ou
seja, como se a atividade nessas áreas do cérebro
dos falantes se propagasse para o cérebro dos
ouvintes, tornando-os conectados, ou mais
especificamente, gerando um sincronismo neural
[89]. Este pesquisador e sua equipe
demonstraram que esse sincronismo depende do
significado compartilhado por aqueles que ouvem
a história e não apenas do padrão do som ou das
palavras que são compartilhados.

A perspectiva desses estudos considera que


durante os processos comunicativos há um

63
Como explicarei a seguir, para a Biologia-Cultural do Conhecer este
alinhamento depende de um mesmo emocionar.

151
compartilhamento de memórias, ou dito de outra
forma, que a comunicação diz respeito a
transmissão de informações, seguindo três
etapas:
(1) a codificação das memórias dos
falantes e sua recuperação durante a fala (para
que sejam então “comunicadas”);

(2) a comunicação propriamente dita


envolvendo a interação entre falante e ouvinte, e;

(3) a reconstrução mental, ou a


imaginação do ouvinte relativa ao “conteúdo” das
memórias comunicadas.

Em um dos estudos, 18 participantes


assistiram a um filme enquanto seus cérebros
eram escaneados através de fMRI, representando
(nesse desenho experimental) a etapa de
codificação das memórias (“movie­viewing”). Um
desses participantes (participante A) assistiu ao
filme e depois fez uma descrição verbal cujo áudio
foi gravado enquanto ele se submetia ao fMRI,
representando a etapa de recuperação das
memórias pelo falante (“spoken-­recall”). Outro
grupo com 18 participantes, que não haviam
assistido o filme, teve seus cérebros escaneados
enquanto ouviam o áudio com a história do filme
gravado pelo participante A (“naive”),
representando a etapa de reconstrução mental ou
imaginação das memórias do falante pelos
ouvintes.

Este estudo mostrou que as mesmas áreas


cerebrais (córtex posterior medial, córtex pré-

152
frontal medial e o giro angular ) eram ativadas
segundo um mesmo padrão espaço-temporal em
todos os grupos estudados, o que permite concluir
que quando nos comunicamos ou lembramos de
algo as mesmas áreas cerebrais são ativadas
segundo um mesmo padrão espaço-temporal,
reforçando a explicação de que há um
sincronismo neural [90].

Como explicarei a seguir todos esses dados


são muito significativos e falam a favor de um
acoplamento estrutural (aqui denominado
sincronismo neural) entre as atividades neurais
dos participantes durante os processos
comunicativos, o que não significa que esse
padrão de atividade elétrica seja uma
representação de alguma informação que é
transmitida entre aqueles que interagem, como o
estudo conclui.

Mas se não há transmissão de informações,


o que são e o que ocorre durante a comunicação e
a linguagem?

Comunicação, Fenômenos Sociais e


o Linguajear
A linguagem tem sido considerada algo
distintivo do ser humano, como um sistema de
símbolos que reproduz significados, visões de
mundo, conhecimentos e valores. Assim como
Maturana e Varela apresentam no livro “A Árvore
do Conhecimento”, vários estudos nos quais
primatas são criados em estreito convívio com

153
seres humanos (“cross fostering”) mostram que
eles têm certa capacidade de manipulação de
símbolos que não são observadas em seu
ambiente natural [91]64, mas isso não é suficiente
para considerar que eles apresentam uma
linguagem como a linguagem humana, apesar de
ainda haver muita controvérsia a respeito.

Diferentes autores, como Skinner, Piaget,


Vygostky, Malrieu e Leontiev consideram que a
função primária da linguagem é a comunicação e
o intercâmbio social que se concretiza através da
sua função simbólica, por meio da qual
representamos o mundo que nos cerca; isso por
sua vez influencia nossos comportamentos e
ações.

Para alguns pesquisadores a linguagem,


como forma de transmissão de significados
produzidos historicamente, pode ser vista como
uma “arma de poder” já que através dos
significados das palavras há uma função de
mediação ideológica inerente: as palavras são
“produzidas” por uma classe dominante que
detém o poder de pensar e conhecer a realidade,
explicando-a através de verdades inquestionáveis
e universais, valores absolutos e imperativos
categóricos [92]. Essa classe dominante não diz
respeito apenas àquela que detém o “poder
econômico”, mas a todos aqueles que tem acesso
à “certezas”, e que “prezam” pela objetividade,
como por exemplo os professores, que detém
64
Esse artigo traz uma abordagem interessante sobre a evolução da
linguagem.

154
“conhecimentos” e procuram transmití-los para
seus alunos. Nessa perspectiva, refletindo a
respeito da “linguagem científica” que é aquela
mais valorizada nos ambientes escolares, essa
mediação ideológica leva a considerar que o
conhecimento científico é “superior” ao senso
comum e que os professores, detentores deste
conhecimento, são os protagonistas nas relações
de ensino e aprendizagem. Aí há um emocionar de
“subordinação” que permeiam todas as relações
entre professores e instituição, professores e
estudantes, e entre os próprios estudantes (numa
polarização entre “bons” e “maus” alunos),
negando a relatividade fundamental, a
(objetividade) e o amar, e favorecendo com isso
uma sensação de mal-estar.

A maioria do conhecimento acerca da


linguagem em humanos considera ‘pressupostos
cognitivistas’ e provém de estudos com pacientes
que apresentam distúrbios na linguagem, com
ênfase sobre a linguagem falada. A principal
busca nestes estudos é acerca das correlações ou
relações causais que podem ser estabelecidas
entre lesões cerebrais65 e linguagem, como nos
estudos clássicos de Broca e Wernicke que
levaram a identificação de áreas cerebrais
relacionados à produção e à compreensão da fala
respectivamente (Figura 9), ou mais
recentemente, estudos funcionais in vivo
utilizando técnicas de neuroimagem (como

65
Essa é uma forma utilizada para estudar o substrato cerebral (biológico)
de vários fenômenos cognitivos.

155
aqueles de Patrícia Kuhl e Uri Hasson citados
anteriormente). Direferentemente, há estudos que
enfatizam o aspecto social da linguagem, como
aqueles realizados por Lev Vigotski e seus
colaboradores, ou as explicações da Biologia-
Cultural do Conhecer para a linguagem e suas
relações com os fenômenos sociais.

Figura 9. Esquema mostrando áreas de Wernicke e Broca,


respectivamente relacionadas à compreensão oral e escrita e
ao controle motor da fala, e suas relações com o córtex
auditivo primário e com o córtex motor. Adaptado a partir de
https://goo.gl/tnBgN8.

A visão mais aceita e difundida é que a


linguagem surgiu a partir de uma necessidade
humana de transformar a natureza de forma
cooperativa, coordenando ações em atividades

156
produtivas que garantissem a sobrevivência [71],
uma visão que é claramente influenciada pelos
pressupostos darwinistas (“a linguagem surgiu
para realizar algo e é adaptativa por conta disso”).
Para F. B. Skynner a linguagem (assim
como como os gestos, sinais e rituais) pertence ao
grupo dos comportamentos verbais que são
aqueles mediados por outra pessoa e através dos
quais o homem transforma o outro e é
transformado pelas consequências das suas ações
[41]. O interessante dessa abordagem é que ela
enfatiza a linguagem como um encadeamento de
coordenações de ações (ou coordenações de
coordenações de ações) nas quais os sujeitos que
interagem se alternam como ouvintes reforçadores
e falantes, dentro de um paradigma expandido de
condicionamento operante, que é um tipo de
condicionamento no qual a frequência de um
comportamento aumenta em função dos
estímulos reforçadores que se seguem a ele.
Diferentemente das demais abordagens, esta não
enfatiza o caráter simbólico da linguagem.

Partindo da tese da dupla mediação


Vigotski considera que toda ação do sujeito em
relação ao mundo é mediada por instrumentos e
que toda ação psicológica é mediada pelos signos
e pela linguagem 66, cuja principal característica é
seu caráter simbólico e sua função comunicativa
e planejadora, ou organizadora [94]. A partir do

66
Aquilo que muitas traduções sobre os trabalhos de Vigotski denominam
“linguagem” poderia ser melhor traduzido como “fala” – como por
exemplo no livro “Pensamento e Linguagem”, de 1934 [93].

157
seu método inverso esse autor defende a ideia de
que para analisar um processo devemos partir do
fenômeno mais complexo para o mais simples, e
critica a análise empírica do psiquismo a partir de
estudos de psicologia animal e a concepção de
que os fenômenos psíquicos são fenômenos de
raiz biológica, considerando que estes são
determinados por aspectos socioculturais. A
partir dessas considerações, quaisquer paralelos
que possam ser traçados entre a Psicologia Sócio
Histórica de Vygostky e a Biologia-Cultural do
Conhecer devem ser realizados com muito
cuidado, pois apesar de algumas afirmações
parecerem apontar no mesmo sentido, como no
que diz respeito ao papel da linguagem na
mediação dos fenômenos psicológicos, ao
minimizar sua dimensão biológica e suas relações
indissociáveis com a dimensão cultural há aí uma
concepção que é distina67.

Há diferentes modelos para explicar o


desenvolvimento ontogenético da linguagem. O
modelo de Chomsky, por exemplo, propõe que há
um órgão biológico para a fala composto por uma
estrutura profunda, que contém uma gramática
universal comum a todas as línguas, e uma
estrutura superficial que atualiza esta estrutura
profunda a partir das interações com o meio. A
gramática universal de Chomsky faz referência ao

67
Esse é um aspecto que vou aprofundar em etapas posteriores de minha
pesquisa, e diz respeito à comparação entre a Biologia-Cultural do
Conhecer e as abordagens de Vygostky, Luria, Leontiev, James Wertsch e
Baktin. Daí a brevidade e superficialidade dos meus comentários acerca
das concepções de Vygotsky.

158
fato de que em todas as línguas há substantivos,
verbos e frases, e movimento de categorias
gramaticais (como inversões de sujeito em frases
nas quais pode aparecer na ordem direta ou
inversa). Fazendo relação dessa abordagem com a
Biologia-Cultural do conhecer podemos dizer que
esta gramática universal é uma matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais
amplamanente utilizada por diferentes culturas
humanas, a partir da qual distinguimos entes
(aos quais nos referimos através de substantivos),
ações e processos (aos quais nos referimos
através dos verbos), e suas características (as
quais nos referimos através do uso de adjetivos e
advérbios), por exemplo.

Em estudos filogenéticos há alguns eventos


considerados fundamentais para o
desenvolvimento da linguagem falada no Homo
sapiens [95]:
(1) o posicionalmente mais caudal (ou
inferior) da laringe (onde estão localizadas as
cordas vocais), que permitiu maior capacidade de
articulação dos sons emitidos;

(2) o desenvolvimento da articulação


supralaríngea e seu controle cortical direto pela
via piramidal, que é responsável pelo controle
dos movimentos voluntários (em primatas não
humanos esse “controle” é realizado pelo
mesencéfalo, que está envolvido principalmente
com a expressão emocional);

159
(3) o aumento do diâmetro do nervo frênico
que inerva o músculo diafragma, e é responsável
pelo controle voluntário da respiração e
consequentemente pela fala (isso foi inferido a
partir de estudos com fósseis nos quais foi
observado um aumento no orifício por onde passa
esse nervo), e;

(4) a descoberta do gene humano FOXP2,


que está envolvido com o desenvolvimento da
linguagem falada, já que pessoas com mutações
pontuais em um dos pares desse gene têm
dificuldades graves de fonoarticulação que são
acompanhadas por deficiência linguística e
gramatical. Além disso, este gene apresenta
mutações que permitem concluir que pode ter
sido alvo da seleção natural em relação a formas
similares que aparecem em outros primatas.

Todas estas características datam de cerca


de 500 mil anos atrás indicando que é a partir daí
que a fala assumiu uma importância fundamental
na linguagem humana.

Para Maturana e Varela (e para a Biologia-


Cultural do Conhecer) a origem da linguagem
data de cerca de 3 milhões de anos atrás, quando
em nossos antepassados se consolidaram traços
estruturais similares ao nossos traços atuais [12],
num momento muito anterior ao desenvolvimento
da fala. Isso implica que a linguagem
provavelmente surgiu através de gestos ou da
emissão de sons que ainda não caracterizavam
uma fala propriamente dita, e que esta surgiu

160
apenas num momento posterior em função das
mudanças estruturais citadas anterioemente.

Os fósseis mais antigos do gênero Homo


datam cerca de 2,5 milhões de anos e pertencem
ao Homo rudolfensis. Eles são os homens
arcaicos mais antigos e que muitos consideram
como uma variação do Homo habilis, enquanto
outros, que coexistiram com eles.

A partir da análise do interior da calota


craniana de fósseis Homo habilis foi possível
identificar que eles se diferenciam dos
Australopitecus (que são um gênero mais antigo
ainda e que deu origem ao gênero Homo) por
apresentarem maior desenvolvimento da área de
Broca, que é uma região da superfície inferior e
anterior do córtex parietal68 relacionada ao
controle motor da fala, ou seja, à expressão da
linguagem falada. Por este motivo os Homo habilis
são considerados os representantes do gênero
Homo que deram origem ao Homo sapiens.

Antes disso, entre 3,9 a 3 milhões de anos


atrás, segundo os registros fósseis o planeta era
habitado exclusivamente por exemplares de
Australopitecus afarensis que ficaram famosos
após a descoberta de um esqueleto que recebeu o
nome de Lucy. Esse esqueleto foi encontrado
praticamente completo por Donald Johanson (em
1970, na Etiópia) juntamente com os restos de
um grupo familiar. Em 1974, Mary Leakey
encontrou traços fósseis de 70 pegadas bípedes

68
Também conhecida como área 44 de Brodman.

161
que pareciam ser da mesma espécie,
acompanhadas por pegadas de centenas de
animais69.

Maturana e Varela propõem que o


surgimento de nossa espécie se iniciou a partir da
deriva de um grupo de Australopitecus afarensis 70,
como pode ser obsevado na Figura 10 a seguir.

Figura 10. Genealogia do Homo sapiens e origem da família


ancestral humana a partir dos Australopitecus afarensis.
Fonte: elaborado pelo autor a partir das referências supra
citadas.

69
Fonte: Atlas virtual da Pré-História, http://www.avph.com.br, acesso em
22.11.2017
70
Eles não afirmam isso de forma literal, mas as datas às quais se referem
me permitem fazer tal afirmação.

162
Para Maturana e Varela nossos ancestrais
viviam em pequenos grupos, ou famílias extensas,
em constante movimento pela savana, eram
coletores e caçadores ocasionais e tinham postura
bípede; fêmeas e machos se vinculavam através
de uma sexualidade permanente e não mais
sazonal, havia compartilhamento de alimentos e
cooperação na criação dos filhos, e também
compartilhavam um domínio linguístico,
constituído por um conjunto de condutas
linguísticas (ou cominicativas). A participação
recorrente neste domínio linguístico gerador de
sua socialização deve ter sido determinante para
ampliação deste domínio até que “as próprias
condutas linguísticas passaram a ser objeto da
coordenação comportamental linguística, da
mesma forma que as ações no meio são objetos
das coordenações comportamentais” [12]. É nesse
momento que surge a linguagem, ou mais
especificamente, o linguajear, e é a partir daí que
o ser humano se constitui como tal.

Todas as palavras que utilizamos são


exemplos de condutas linguísticas e o que
importa destacar é que elas implicam uma
coordenação consensual de ações entre os
indivíduos que compartilham o domínio
linguístico do qual esta palavra faz parte. O
linguajear (ou a linguagem) surge no momento
que utilizamos as palavras (ou outras condutas
linguísticas) para coordenar outras ações. É por
este motivo que dizemos que a linguagem implica
numa coordenação de coordenações de ações

163
consensuais entre os indivíduos que interagem.
Assim como as palavras oralizadas ou escritas, os
gestos, as imagens, os emoticons e os emojis71 são
exemplos de condutas linguísticas. A seguir vou
explicar mais sobre comunicação e linguagem.

Para a Biologia-Cultural do Conhecer os


fenômenos sociais que surgem a partir da
constituição das famílias de nossos antepassados
estão na origem daquilo que somos como seres
biológico-culturais. Eles dizem respeito ao
acoplamento estrutural entre indivíduos, ao qual
também podemos nos referir como um
acoplamento social.

O acomplamento estrutural ocorre quando


dois organismo interagem de forma recorrente de
modo que suas ações ou condutas passam a ser
fontes recíprocas de perturbações. Estas
perturbações guiam o curso de mudanças
entruturais em cada organismo, subordinadas ao
determinismo estrutural de cada um deles. Em
função disso, com o passar do tempo parece haver
uma complementaridade ou correspondência
entre a estrutura dos organismos que interagem
(assim como entre os organismos e seu ambiente)
e é esta complementaridade estrutural que
distinguimos como acoplamento estrutural.

Quando há fenômenos sociais os


indivíduos se acoplam entre si através de
condutas que denominamos condutas

71
em https://www.significados.com.br/emoji/ há uma definição sobre os
termos emoji e emoticon, assim como suas direfrenças.

164
comunicativas ou condutas linguísticas, nas
quais os comportamentos daqueles que se
comunicam se tornam reciprocamente
coordenados, ou seja, suas condutas se tornam
mutuamente “desencadeadas” (o que é válido para
indivíduos humanos ou não, independentemente
da presença do Sistema Nervoso). Insisto que isso
não quer dizer que a comunicação determina as
condutas dos participantes, mas que as
desencadeia e acopla, já que toda conduta é
determinada pela estrutura daquele que interage
(determinismo estrutural) a partir de um dado
emocionear, no momento da interação. O
conjunto de condutas comunicativas de um
indivíduo, compartilhadas pelos grupos sociais
dos quais ele participa, constitui seu domínio
linguístico.

Logo, os fenômenos sociais são fenômenos


comunicacionais que dizem respeito ao
acoplamento estrutural (social) entre indivíduos
através de condutas comunicativas. Nas palavras
de Maturana e Varela: “a comunicação ocorre toda
vez em que há coordenação comportamental num
domínio de acoplamento estrutural” [12].

Nessa perspectiva, o que há durante um


fenômeno comunicativo não é uma “transmissão
de informações” (ou de “memórias”, como propõe
Uri Hasson), mas uma coordenação de ações
entre os organismos que se comunicam. Isto se
aproxima da explicação do behaviorismo (ou
comportamentalismo) de Skinner para os

165
comportamentos verbais, como expliquei
anteriormente.

A partir dos estudos de sincronismo neural


apresentados acima, dentre outros [89,89,90,96–
99], concluo que durante os processos
comunicacionais, graças às propriedades dos
cérebros humanos, há um acoplamento estrutural
entre algumas áreas cerebrais dos participantes,
na forma de um sincronismo neural (que
corresponde a um padrão espaço-temporal
específico de atividade neural72).

A comunicação é um fenômeno que ocorre


no domínio de interações dos seres vivos onde
eles atuam como todos indivisíveis, ou unidades
simples, também denominados indivíduos ou
organismos. Toda interação entre organismos
ocorre do encontro entre suas propriedades
constitutivas que permitem que coordenem de
forma recíproca suas ações. Sendo assim, durante
os processos comunicativos surge um ciclo de
interações recorrentes no qual “falante” e
“ouvinte” (alternando entre si estes papéis) se
acoplam estruturalmente enquanto a
comunicação se mantém.

72
A Hipótese do Cérebro Relativístico proposta por Miguel Nicolelis
também fala de um padrão na atividade elétrica de certas regiões
cerebrais frente a manipulação de objetos, citando como exemplo o
controle de uma bola pelos pés de um jogador de futebol, como se a bola
passasse a fazer parte do corpo do jogador, sendo “mapeada” por seu
cérebro através desse padrão. Considero que este padrão corresponde a
um acoplamento estrutural entre o corpo e os objetos que adquirimos
destreza ao manusear, assim como o sincronismo neural mostra um
acoplamento estrutural comunicativo ou social. Pretendo me aprofundar
na pesquisa desse fenômeno em trabalhos futuros.

166
Para manter a contabilidade lógica não
podemos explicar a comunicação (que pertence ao
domínio de interações) buscando relações causais
a partir do operar do Sistema Nervoso (que
pertence ao domínio no qual os seres vivos
existem e operam como unidades autopoieticas
moleculares). Logo, o que podemos concluir é que
o sincronismo neural não é a causa da
comunicação, mas é a comunicação em si
ocorrendo na perspectiva do Sistema Nervoso em
seu operar, ou dito de outra forma, se ocorre
comunicação no domínio de interações do
organismo é sinal que está ocorrendo sincronismo
neural no domínio do seu operar como ser vivo (e
vice-versa); e ainda, se dois indivíduos interagem
e não observamos sincronismo neural, isso
implica que aquela comunicação é “aparente” já
que não existe acoplamento estrutural
(comunicacional) entre eles. Se observamos o
acoplamento estrutural é porque está ocorrendo
um processo comunicativo e este acoplamento (e
o correspondente sincronismo neural) persistirá
enquanto este processo se mantiver, mas isso não
implica que a causa da comunicação pode ser
explicada através da compreensão da operação do
Sistema Nervoso, pois comunicação implica
coordenação de condutas e, para os seres
humanos, pertence ao domínio cultural, mais
especificamente, ocorre dentro de um domínio
linguístico que não é biológico.

Sendo assim, o fato de haver sincronismo


neural não implica que quem se comunica está

167
“pensando” e “sentindo” as mesmas coisas, mas
que seu Sistema Nervoso está num estado de
ativação espaço-temporal tal que, se em outra
ocasião o mesmo estado for alcançado,
“remeterá”73 a mesma “experiência” vivenciada por
cada indivíduo durante a comunicação. Isso
porque o que ocorre a um organismo é
determinado por sua história e pelo emocionar no
momento de sua ocorrência e não há informação
sendo transmitida e codificada pelo Sistema
Nervoso durante a comunicação. Como cada
indivíduo tem uma estrutura particular e
específica, devida a uma ontogênese específica (ou
seja, a uma história de interações e mudanças
estruturais específicas) apenas compartilhando
um mesmo emocionar é possível que se acoplem e
que a comunicação se realize. Isso implica que
aquilo que distinguimos como sendo o
“significado” que atribuímos a cada conduta
comunicativa é também determinado por esta
estrutura individual, e que dada a relatividade
fundamental e a (objetividade), é específico de
cada indivíduo. A seguir vou explicar mais a este
respeito, pois é aí que está a importância do
conversar para o (aprender).

73
Não será agente causal, pois na ocasião que o mesmo padrão de
ativação for alcançado novamente, a ação decorrente dependerá da
história e das mudanças estruturais vividas até ali e do emocionear (ou
seja, a pré-disposição para ação) presente nesse momento.

168
Condutas Ontogênicas e Domínios
Linguísticos
No livro “A Árvore do Conhecimento”
Maturana e Varela propõe que a linguagem é o
que permitiu o surgimento dos seres humanos a
partir da linhagem de primatas bípedes a qual
pertencemos. Em obras publicadas
posteriormente, Maturana enfatiza o caráter da
linguagem como ação e dá preferência uso do
termo linguajear. Para entender a explicação da
Biologia-Cultural do Conhecer para a linguagem
(linguajear) devemos compreender como
Maturana e Varela explicam condutas
ontogênicas e domínios linguísticos. Para isso
vou rever algumas concepções já apresentadas
anteriormente.

Para estes autores toda conduta aprendida


depende da história de interações do organismo e
é denominada conduta ontogênica, em contraste
com as condutas inatas. Toda conduta
comunicativa aprendida (ou seja, toda conduta
comunicativa ontogênica) é denominada conduta
linguística e seu conjunto, como você já sabe,
constitui o domínio linguístico de um organismo
[12]. Estas relações estão representadas na Figura
12 a seguir.

Podemos operar em diferentes domínios


linguísticos e em cada um deles operamos a partir
de coerências sensoriais-operacionais-relacionais
distintas, constituindo diferentes domínios de
determinismo estrutural.

169
Figura 12. Relações entre condutas ontogênicas, condutas
comunicativas e condutas linguísticas. Fonte: adaptado a
partir de [1].

Ao realizar distinções em nosso mundo


natural estamos distinguindo algo que podemos
nomear de objeto, ente ou unidade, em relação a
um entorno que o contém. Operamos na
linguagem, ou seja, linguajeamos, quando um
observador ou auto observador vê que os entes de
nossas distinções são elementos de nosso próprio
domínio linguístico. Dito de outra forma, ao nos
comunicarmos coordenamos ações que um
observador pode distinguir como “elementos” (ou
condutas linguísticas) que ele passa então utilizar
para coordenar outras ações, ou seja, surgem
coordenações de coordenações consensuais de
ações e é isso que constitui o linguajear.

Esses “elementos” pertencem ao domínio


linguístico compartilhado (ou seja, são condutas
linguísticas dentro de um domínio consensual) e
como são condutas, podem ser palavras escritas,

170
gestos, sons, sons articulados como palavras, o
acender e o apagar de uma lâmpada, sinais de
fumaça, expressões faciais e outros sinais e
símbolos de diferentes naturezas. Nessa
concepção o primordial não é o “elemento”
utilizado tampouco o “significado” que um
observador pode atribuir a ele, mas sim a
coordenação de ações decorrentes da utilização
desses “elementos” (que são condutas
linguísticas). Tudo isso você também já sabe.

Quando observamos a conduta de um ser


humano operando em um domínio linguístico
podemos tratar suas interações e os “elementos”
ou condutas comunicativas que ele utiliza de
maneira semântica, como se fizessem referência a
algo, ou significassem algo. É a isso que nos
referimos ao falar sobre o aspecto ou dimensão
simbólica da linguagem, no qual as palavras
(assim como os quaisquer outros “elementos”) se
referem a objetos, entes ou unidades que
distinguimos, mas que não tem uma existência e
um significado em si, pois seu aspecto principal é
que implicam uma coordenação de coordenação
de ações. Segundo Maturana e Varela:

Para nós, como observadores, o estabelecimento


ontogenético de um domínio de condutas
comunicativas pode ser descrito como o
estabelecimento de um domínio de condutas
coordenadas associáveis a termos semânticos. Ou
seja, como se o que determinasse a coordenação
comportamental assim produzida fosse o
significado que o observador atribui às condutas,

171
e não o acoplamento estrutural dos participantes.
É essa qualidade das condutas comunicativas
ontogênicas de poderem aparecer como
semânticas a um observador, que trata cada
elemento comportamental como se fosse uma
palavra, que permite relacionar tais condutas à
linguagem humana. Vamos ressaltar essa
condição ao designar tal classe de condutas como
um domínio linguístico entre os organismos
participantes [12].

Nunca devemos esquecer que os


substantivos ocultam verbos e que as palavras e
conceitos (dentre tantos “elementos”) se referem
às ações do ser vivo em seu ser-fazer-conhecer
indissociável, que faz surgir um mundo ao
distingui-lo em seu viver. Nossas descrições
podem ser feitas tratando as outras descrições
como objetos ou elementos do domínio linguístico
e assim esse próprio domínio passa a fazer parte
do meio de interações possíveis. Somente quando
isso ocorre surge o linguajear e com ele o próprio
observador e um domínio semântico (de
significados). A partir daí, o próprio domínio
semântico passa a fazer parte do meio de
conservação de adaptação de seus participantes
[12]. É nesse momento que o ser humano se
constitui como ser biológico-cultural.

O linguajear é a “cola” que permite o


acoplamento estrutural entre os seres humanos e
que caracteriza os fenômenos sociais tipicamente
humanos. Além de gerar as regularidades
próprias do acoplamento estrutural social

172
humano ele permite constituir uma dinâmica
recursiva74 deste acoplamento de modo que em
nosso viver-conviver como seres humanos só
temos o mundo que criamos com outros em nosso
viver social.

A importância da “natureza social” do ser


humano também é destacada por Silvia T. M.
Lane ao apresentar as bases de um nova
Psicologia Social, destacando de forma implícita a
importância da linguagem quando afirma em
relação aos seres humanos que:

Seu organismo é uma infra-estrutura que permite


o desenvolvimento de uma super-estrutura que é
social e, portanto, histórica. Esta desconsideração
da Psicologia em geral, do ser humano como
produto histórico-social, é que a torna, senão
inócua, uma ciência que reproduziu a ideologia
dominante de uma sociedade, quando descreve
comportamento e baseada em frequências tira
conclusões sobre relações causais pela descrição
pura e simples de comportamentos ocorrendo em
situações dadas75 (...). O ser humano traz consigo
uma dimensão que não pode ser descartada, que
é sua condição social e histórica, sob o risco de
termos uma visão distorcida (ideológica) de seu
comportamento [100].

Para a Biologia-Cultural do Conhecer só a


partir de um emocionear motivado pelo encontro

74
Uma dinâmica recursiva é aquela na qual uma dinâmica cíclica surge de
forma integrada à uma dinâmica linear.
75
Aqui a autora faz uma crítica direta à abordagem comportamentalista
(ou behaviorista).

173
com o outro como legitimo outro no conviver foi
possível que o linguajear surgisse como tal. Esse
emocionear é o amar e ele é o fundamento
biológico de todo fenômeno social humano. Sem o
amar não há socialização e sem socialização não
há humanidade [12].

Um terceiro parêntese para reflexão


Qual a importância do amar?

Dado o determinismo estrutural, não


podemos determinar no outro a ocorrência do que
quer que seja. Sendo assim, sou responsável pelo
que digo, mas não posso especificar no outro o
que este ouve. Dessa forma, como é possível que
haja uma “comunicação efetiva” e que possamos
nos entender mutuiamente?

Comunicação é acoplamento comunicativo,


o que implica que ao nos comunicarmos estamos
em sincronismo neural, mas para que isso ocorra
precisa haver uma pré-disposição, ou seja, um
emocionear que permita compartilhar ou criar um
domínio linguístico comum. Se numa interação
com o outro eu me coloco operando a partir de
um domínio linguístico e não “abro mão dele”
pode parecer que estou me comunicando, mas na
verdade estou operando a partir de um domínio
linguístico que pode ter condutas linguísticas
compartilhadas (por exemplo, aqueles que
interagem podem utilizar as mesmas palavras),
mas na verdade o “significado” que atribuímos a
cada uma delas como observadores é distinto e,

174
consequentemente, não coordenamos
efetivamente nossas ações. Apenas o amar
permite que um acoplamento efetivo ocorra e que
sejam co-construídos domínios linguísticos
compartilhados.

É por isso que em muitas situações


estamos em um grupo onde parece que cada um
está dizendo uma coisa diferente, apesar de
utilizarmos as mesmas palavras, e ninguém
efetivamente se entende. Em muitas aulas os
alunos sentem que estão ouvindo o que o
professor diz, “decodificam” suas palavras, mas
parecem não entender nada. Provavelmente nessa
condição não está ocorrendo um sincronismo
neural, o que implica que no fundo não há um
acoplamento comunicacional efetivo.

A importância do amar está no fato de que


ele me predispõem a ouvir e a aceitar “um outro”
que opera a partir de um domínio linguístico que
lhe é peculiar e apenas se convivo com este outro
no amar, na disposição de “aceitar” como válido
aquilo que ele explicita através de suas condutas
linguísticas, seremos capazes de mutuamente
ampliar nossos domínio linguísticos particulares
criando um domínio linguístico comum. Só então
efetivamente estaremos nos comunicando e a
partir daí podemos operar na linguagem
utilizando elementos comuns a este novo domínio
linguístico compartilhado.

Insisto: o linguajear ocorre apenas quando


coordenamos nossas condutas comunicativas a

175
partir de um domínio linguístico compartilhado,
que surge quando me coloco na aceitação do
outro como legítimo, ou seja, a partir do amar.
Voltarei a essa reflexão já que ele será a base para
uma explicação sobre o (aprender) típico do ser
humano biológico-cultural.

Interações que não se baseiam no amar


como o emocionar fundante não são relações
“realmente sociais” e vou identifica-las como
interações não-sociais. Em interações não-
sociais não nos entendemos efetivamente e ao
negar o outro como legítimo o negamos em sua
humanidade, o que leva ao mal-estar e ao
sofrimento76 que é tão característico das relações
não-sociais que observamos no trabalho e na
escola, por exemplo. Na minha opinião essa é a
origem do mal-estar e do sofrimento observado
nos ambientes escolares. Para Maturana e Dávila:

A origem do humano surge na origem espontânea


da família como um modo próximo permanente
de conviver na intimidade do prazer e do bem-
estar psíquico-corporal-relacional que faz possível
o surgimento do linguajear no fazer coisas juntos
como um conviver em coordenações recursivas de
coordenações de fazeres consensuais [13].

76
É importante destacar que há diferentes graus de mal-estar e
sofrimento, desde aquele que leva o sujeito a “estar ausente”, “não
participativo” ou “em negação” (o sujeito simplesmente ignora e “não
está nem aí”), até aquele que leva à dor e no seu extremo ao
adoecimento psíquico e corporal.

176
Como mostram as pesquisas citadas
anteriormente sobre aquisição de linguagem em
crianças e bebês, apenas o contato entre
humanos permite que recém-nascidos distingam
os sons típicos de sua língua, contato este que
precisa ser realizado “olho-no-olho” e não através
de interações com vídeos ou áudios gravados.

Da mesma forma, a eficiência em favorecer


a aquisição da linguagem através da “fala de estilo
parental” em comparação ao conversar durante
atividades corriqueiras (também explicado
anteriormente), nos leva a refletir sobre a
importância do afeto e de uma relação na qual o
outro é aceito e se sente legítimo outro no
conviver. Assim como o grooming ocorre através
do contato direto e a partir de uma intimidade no
conviver na aceitação do outro, o linguajear é uma
forma de “tocar o outro” e de “se conectar a ele”.

A “teoria da fofoca” que Dunbar propõe


para explicar o surgimento da linguagem mostra
que os seres humanos têm interesse em saber
sobre outros seres humanos e isso pode explicar o
sucesso da venda de revistas e programas de
fofocas, o conteúdo de nossas conversas
corriqueiras e o uso intenso que tem sido feito das
mídias sociais onde o assunto principal é a nossa
vida e a vida de outras pessoas. Isso
provavelmente é um dos motivos do sucesso do
Facebook e do WhatsApp, e a favor disso é o fato
de que atualmente o WhatsApp, que é uma
ferramenta de comunicação através da troca de
mensagens, tem uma área de “Status” que faz

177
com que atue também como ferramenta de mídia
social, o que dá mote para o início de novas
conversas sobre coisas do dia-a-dia.

Essas afirmações nos levam a refletir


acerca do uso de tecnologias aplicadas à
educação, através das quais pretendemos ensinar
seres humanos sem que haja um “contato real”
entre eles. Num primeiro momento poderíamos
imaginar, a partir de tudo o que foi dito até aqui,
que recursos online podem ser pouco efetivos
para a educação, o ensinar e o aprender. Mas
considero que devemos atentar para o que
consideramos ser um “contato real” e o quanto ele
depende de sincronicidade, assincronicidade,
presença física ou online. Minhas reflexões me
levam a crer que o mais relevante neste caso não
é o veículo ou a forma através da qual se realiza
esse contato (e sem dúvida nenhuma, o contato
direto entre seres humanos é fundamental e
insubstituível), mas a predisposição que temos ao
“contatar”, ou seja, o emocionear a partir do qual
nos colocamos em interação com outros seres
humanos. Isso porque em muitas situações
presenciais e síncronas, como nas situações de
aulas presenciais “tradicionais”, pode haver
menos predisposição ou condições para um
“contato real” do que em certas situações online e
assíncronas. Ou seja, o emocionar vai influenciar
o curso da interação e a presença não implica
contato real necessariamente. Além disso,
devemos considerar a faixa etária em questão,
pois um adulto tem mais condições de um

178
“contato real” online do que uma criança, dada
sua capacidade de abstração. Voltarei a essa
reflexão mais adiante, mas desde já está claro que
considero que a questão fundamental é o quanto
operamos no amar durante nossas interações
como professores e estudantes, seja em ambientes
online ou em aulas presenciais.

Voltando ao fluxo do texto e ao


Linguajear
Em 2015, Maturana amplia sua explicação
sobre o linguajear, definindo-o como um fluir
sensorial-operacional-relacional em um conviver
em coordenações de coordenações consensuais de
sentires íntimos, fazeres e emoções, destacando
que a linguagem não é um instrumento para a
designação simbólica de objetos, embora durante
o linguajear os símbolos, signos, objetos, ideias e
conceitos possam surgir como formas recursivas
de coordenações de sentires, emoções e fazeres
[2].

Disso podemos concluir que um domínio


linguístico implica numa matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais a partir da
qual operamos no linguajear. A partir dessa
matriz (domínio linguístico) surge o observador e
as distinções que ele realiza a partir dela e que
dão origem a um domínio semântico (como
formas recursivas de coordenações dentro dessa
matriz) que constituem a dimensão simbólica da
linguagem. Ou seja, podemos distinguir a matriz

179
de coerências sensoriais-operacionais-relacionais
de nosso viver numa relação social a partir do
domínio semântico que compartilhamos, o que
implica que nossa fala e o significado que
atribuímos as coisas são uma janela para o
“mental” e para a “consciência”, que surgem
(assim como o observador) a partir do linguajear.

Sem entrar na discussão acerca do que é o


mental e a consciência, podemos refletir a
respeito do que alguns autores denominam Teoria
da Mente, que é uma proposta decorrente da
tentativa de explicar a evolução dos seres
humanos e as pressões seletivas que levaram ao
desenvolvimento da inteligência como seu aspecto
distintivo (conforme expliquei em seções
anteriores).

A Teoria da Mente e o Linguajear


A capacidade de atribuir estados mentais a
outros indivíduos e a nós mesmos é um fenômeno
denominado Teoria da Mente (ToM) e foi
proposto no final da década de 1970 a partir de
estudos com primatas [101].

É graças à ToM que podemos prever e


explicar comportamentos de forma não egóica.
Essa capacidade implica, em certo nível, ser capaz
de distinguir a si mesmo, ou seja, ter uma noção
do próprio “eu”. Segundo Maturana e Varela
nossa noção de “eu”, que constitui nossa
identidade, é inseparável de nossa capacidade de
reflexionar, que surge com o linguajear [12].

180
O experimento mais utilizado para
“mostrar” tal capacidade é anestesiar um animal e
fazer uma marca em sua testa; então, após
despertar esse animal é colocado diante de um
espelho: caso leve a mão à marca é sinal que
percebe que a imagem no espelho é um reflexo de
sua própria imagem, caso contrário, se tocar a
marca no reflexo do espelho, é sinal de que não é
capaz de fazer esta distinção.

Chimpanzés, orangotangos, bonobos e


gorilas, mas também golfinhos, corvídeos e
elefantes são capazes de reconhecer a si mesmos
no espelho; entretanto, vários estudos mostram
que mesmo os chimpanzés e outros primatas têm
uma capacidade limitada de atribuir estados
mensais a outros indivíduos, sejam ou não da sua
espécie [66].

Outro paradigma clássico de estudos da


Teoria da Mente em humanos utiliza o “Problema
de Sally-Anne”, também conhecido como
“Experimento sobre a Falsa Crença”, no qual a
seguinte história é contada aos participantes,
acompanhada de imagens ilustrativas (Figura 13):

(1) Sally entra, guarda um objeto em um


local X e sai de cena;

(2) Anne entra, retira o objeto do local X, o


coloca em outro local Y e sai;

(3) Sally retorna e vai procurar o objeto;

181
(4) então a história é interrompida e
pergunta-se ao participante aonde Sally irá
procurar o objeto.

Figura 13. Modelo de apresentação do Problema de Sally-


Anne proposto por Eduardo Ottoni.

Supõe-se que se o sujeito possui uma


Teoria da Mente é capaz de atribuir estados

182
mentais a outro indivíduo e isso que implica que é
capaz de se colocar na perspectiva do outro.
Sendo assim, no caso em questão vai perceber
que Sally não teve acesso a perspectiva que ele
teve ao ver Anne trocando o objeto de lugar e
então vai responder que Sally vai procurar o
objeto em X.

Estudos utilizando essa abordagem


consideram que crianças só são capazes de se
colocar na perspectiva de Sally e
consequentemente, de atribuir estados mentais a
outra pessoa (ou seja, só apresentam uma ToM), a
partir dos 6 anos de idade. Entretanto há muitos
dados controversos já que os sujeitos são
sensíveis a pequenas variações no contexto de
apresentação da tarefa. Também é possível que a
Teoria da Mente seja uma função cognitiva assim
como outra e que não tenha uma idade específica
para se manifestar, mas que dependa de certo
grau de desenvolvimento mental [66].
Durante o linguajear em relações realmente
sociais buscamos o compartilhamento de um
domínio linguístico e semântico comum. Isso
requer, além do amar, a capacidade de nos
colocarmos no lugar do outro, o que por sua vez
depende de uma ToM. Se considerarmos aquilo
que propõe a Biologia-Cultural do Conhecer, em
nossa origem nos constituímos como seres
humanos a partir do linguajear e isso implica que
pode haver uma ToM desde as fases mais
precoces de nossa ontogênese, contrariamente ao
que os estudos utilizando o Problema de Sally-

183
Anne permitem concluir (já que apontam que ela
só surge ao redor dos 6 anos de idade).

Como expliquei anteriormente, várias


pesquisas mostram que seres humanos têm
predisposições para a vida social e preferência no
contato com “estímulos” provenientes de outros
seres humanos, e que o contato humano direto é
favorece o desenvolvimento de certos fazeres,
como a aquisição de uma linguagem falada. Nesse
sentido, considero que o Problema de Sally-Anne
não permite afirmar sobre a origem da ToM já que
pressupõe, além da ToM, uma capacidade de
abstrair a partir de uma história na qual não há
contato direto com personagens humanos, pois
ouvimos uma narrativa enquanto a história é
apresentada através de imagens.

Falando a favor dessa hipótese, segundo


Alisson Gopnik bebês com 18 meses de idade já
são capazes de distinguir que outras pessoas
podem pensar e sentir de forma diferente daquela
que eles próprios sentem e pensam, ou seja, já
apresentam uma ToM. Ela chega a essa conclusão
a partir de um desenho experimental muito
interessante que utiliza interação direta entre um
bebê e um adulto. O adulto experimentador fica
sentado de frente para um bebê e olhando
diretamente para ele; diante deste bebê há dois
pratos com alimentos: um contém brócolis (que os
bebês não gostam) e o outro contém salgadinhos
(que os bebês preferem ao invés de brócolis). O
experimentador come um pouco de brócolis e
demonstra reações explícitas e exageradas de

184
satisfação (ou seja, de que gostou de brócolis); em
seguida ele estende a mão em direção ao bebê
como quem pede algo a ele. Bebês com 15 meses
dão ao experimentador uma porção de
salgadinho, o que permite concluir que dão a
pessoa aquilo do que eles mesmos gostam
imaginando que o experimentador também goste
daquilo, ou seja, são “egocêntricos” e não
conseguem se colocar na perspectiva de um
outro, diferente de si mesmo. Bebês com 18
meses entretanto, dão ao experimentador uma
porção de brócolis e a partir daí podemos concluir
que eles são capazes de discriminar o seu próprio
gostar e o gostar de outra pessoa, ou seja, que são
capazes de distinguir que “o que outras pessoas
pensam e sentem não é exatamente aquilo que nós
pensamos e sentimos” [102], e sendo assim, já
apresentam uma ToM. Essa explicação faz muito
mais sentido, partindo de uma concepção na qual
o linguajear e o compartilhamento de domínios
linguísticos e semânticos comuns dependem de
uma ToM, além do amar.

A partir do “experimento do brócolis”


Gopnik levanta uma questão: como é possível que
em um intervalo de 3 meses (entre 15 e 18 meses)
os bebês possam aprender uma coisa tão
complexa como a capacidade de imaginar o que se
passa na mente de outras pessoas? Considero
que isso se deve a capacidade de aprender com
outros seres humanos inseridos em uma mesma
cultura e mostra o “poder” da aprendizagem para

185
que nos tornemos seres humanos biológico-
culturais.

Comparativamente a outras espécies de


animais, mas principalmente em relação a outros
mamíferos e primatas, os bebês humanos nascem
“precocemente”, quando ainda não estão
plenamente desenvolvidos em suas capacidades
cognitivas e motoras. Ao nascer nós somos
“incapazes” de realizar sozinhos a grande maioria
das ações necessárias à nossa sobrevivência. É
durante nossa infância prolongada, quando
comparada a de outros animais, que nós
desenvolvemos as “competências” para tal, mas
para isso dependemos principalmente do cuidado
parental.

Ottoni argumenta, a partir de uma


perspectiva que considera as adaptações do
recém-nascido para a cognição social claramente
pautada em pressupostos darwinistas, que graças
ao estado de dependência que nossa infância
implica é por este motivo que nós quando bebês
apresentamos uma série de “predisposições
cognitivas” para a vida social, como uma forma de
nos adaptarmos a essa condição de
susceptibilidade [66].

Gopnik destaca que enquanto aqueles


animais que nascem com um grau de
desenvolvimento e autonomia maior que os bebês
humanos são capazes de realizar muito bem
tarefas específicas e estereotipadas quando
adultos, animais como nós desde muito cedo são

186
muito bons em “aprender regras” dos ambientes
nos quais se desenvolvem durante essa infância
prolongada. Para essa pesquisadora os bebês não
aprendem sobre as coisas do mundo, mas
“buscam as coerências desse mundo” através de
testes de hipóteses, ou seja, atuam no mundo
como cientistas utilizando uma “lógica” similar
àquela da Estatística Bayseana [102]. Esse
argumento é o mesmo utilizado por Patrícia Kuhl
em seus estudos sobre aquisição da língua natal.

Minhas reflexões a respeito das pesquisas


de Gopnik e Kuhl me permitem afirmar que os
bebês utilizam de forma “intuitiva” os critérios de
validação das explicações científicas (propostos
pela Biologia-Cultural do Conhecer). Essa pré-
disposição para “aprender regras” através das
quais os bebês “buscam as coerências do mundo”
é equivalente a afirmar que os bebês atuam no
mundo (que surge no seu atuar) a partir de uma
matriz de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais que “estabelecem” e “experimentam”
durante sua infância prolongada, ou seja, como
se os bebês estivessem “pondo a prova” e
desenvolvendo a relatividade fundamental. E a
partir dessa matriz primordial que outras
matrizes se constituem durante sua ontogênese 77.
Claro que fazem isso de forma “espontânea”, sin-
77
Em outras pesquisas pretendo aprofundar as relações entre as
explicações que apresento aqui e a Epistemologia Genética de Piaget.
Considero que os Esquemas de Ação de Piaget se aproximam das
coerências sensoriais-operacionais-relacionais da Biologia-Cultural do
Conhecer, a Inteligência “equivale” à uma matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais e os processos de Assimilação e Acomodação
dizem respeito à diferentes modalidades de Acoplamento Estrutural.

187
esfuerzo, pois ainda não atuam no domínio
linguístico a partir do qual eu, por exemplo, faço
este tipo de explicação.

Outro exemplo que mostra correlações


entre infância prolongada e desenvolvimento de
inteligência são os corvídeos (como os Corvos da
Caledônia), que são capazes de produzir e utilizar
ferramentas para captura de alimento utilizando
para isso elementos do seu ambiente e os
adaptando para essa finalidade (este
comportamento foi amplamente relatado em
situações de laboratório). Além da infância
prolongada esses animais, assim como nós,
apresentam amplas áreas corticais associativas
responsáveis pela integração de “informações”
sensoriais provenientes de diferentes áreas
sensoriais primárias, além de abundantes
conexões com áreas motoras [103]. Os córtices
associativos destes animais e dos seres humanos
estão relacionados a manifestação de condutas
complexas, às funções psicológicas superiores
(exclusivas dos seres humanos), à representação
do espaço pessoal e extra pessoal, e com a
plasticidade comportamental [73].

Uma forma de refletir a respeito dos


“efeitos” de uma infância prolongada sem pensar
em termos finalistas (ou seja, sem levar em conta
pressupostos darwinistas) é considerar que esta
fase aumenta a possibilidade e frequência de
vínculos entre os filhos e os seus pais ou
cuidadores. Além das predisposições que os bebês
apresentam para estabelecer vínculos com outros

188
seres humanos, o mesmo ocorre com os pais e
principalmente com as mães em relação aos seus
bebês, através de uma série de comportamentos
maternais. Vários estudos mostram que estes
comportamentos, que envolvem cuidados com a
prole, correlacionam com a ativação de estruturas
cerebrais como a amígdala, cujo padrão de
ativação está aumentado durante a gravidez e o
período pós-natal graças a uma série de
alterações hormonais típicas dessa fase,
favorecendo estes comportamentos de cuidado em
relação aos bebês.

Em uma cultura que valoriza um


emocionear amoroso tudo isso favorece um viver-
conviver onde filhos, pais e outros adultos
significativos passam a compartilhar um domínio
linguístico comum e posteriormente, um
linguajear e um conversar compartilhados, o que
insere o recém-nascido desse cedo em seu
“ambiente cultural”. No período pós-natal há
grande “plasticidade” orgânica e cerebral, a partir
da qual a estrutura biológica do bebê está
totalmente “propensa” a ser influenciada não só
pelo ambiente físico no qual ele está inserido
(através da alimentação e de uma série de outras
interações com o “ambiente natural”), mas
também pelo seu “ambiente cultural” e pelo
emocionear e conversar no qual está
gradativamente se inserindo. É por este motivo
que vários pesquisadores identificam nessa fase
uma série de períodos críticos para o
desenvolvimento de certas “habilidades” e

189
“competências”, como exemplifiquei anteriormente
em relação ao período crítico para distinção de
fonemas da língua natal que ocorre entre seis e
oito meses de vida.
Sendo assim, é durante a infância
prolongada que os bebês se constituem como
seres humanos biológico-culturais. Como disse
anteriormente, para a Biologia-Cultural do
Conhecer é ao viver no linguajear em seu
entrelaçamento com o emocionear que surge o
conversar. E é nosso viver no linguajear e no
conversar que nos constitui e diferencia como
seres humanos em relação aos demais seres
vivos.

Quais as relações entre o linguajear, o


conversar e a cultura que permitem afirmar que
somos seres biológico-culturais? Como surge
nossa “dimensão cultural” e como ela se entrelaça
com nossa “dimensão biológica” em nosso ser
biológico-cultural?

Emocionear e Cultura
Para a grande maioria dos pesquisadores a
cultura tem sido considerada o aspecto mais
distintivo e característico da “natureza humana”.

Essa concepção tem sua origem no


pensamento grego a partir do período denominado
“helenismo”, no qual a ideia de cultura é um dos
aspectos da complexa concepção da Paideia
Grega: um ideal consciente e próprio da

190
humanidade, a busca por um alto conceito de
valor, pela elevação e pelo desenvolvimento do
Homem, visto como um ser que desenvolve uma
consciência gradual das leis gerais que
determinam a essência humana. Isso implica uma
educação deste Homem de acordo com a sua
“verdadeira forma humana”, segundo seu
“verdadeiro ser”, e é nesse contexto que os gregos
afirmam que “educar é criar o Homem” [104].

No mesmo sentido, para Paulo Freire o


homem é um “vir a ser”: um homem inacabado,
capaz de transcendência, marcado pela vocação
de ser mais e de humanizar-se [4].

Segundo Jaeger, diferentemente da


concepção grega, a palavra “cultura” tem sido
utilizada como um conceito antropológico
descritivo, referente a totalidade de manifestações
e formas de vida que caracterizam um povo [104].

Muitos consideram que cultura é sinônimo


de civilização e inclui conhecimentos, crenças,
valores morais, leis, costumes e todas as demais
capacidades adquiridas pelos seres humanos
como membros de uma sociedade (uma
concepção proposta por Edward B. Taylor em
1871). Para alguns, até mesmo as bactérias
apresentam algum tipo de heranças
extragenéticas que estes autores consideram
culturais, como Laland e Hippitt, para quem a
cultura diz respeito a padrões de comportamento
típicos de um grupo e que são compartilhados e
aprendidos socialmente [105].

191
Para as ciências humanas a cultura é algo
que nos especifica para além do determinismo
biológico, entretanto, vários estudos sobre
evolução têm considerado que a cultura é
influenciada e também influencia a evolução
biológica [74,106–109].

Para Kim Hill, grande parte das variações


do comportamento humano não é resultado de
diferenças individuais adaptativas frente
contingências ecológicas, mas são determinadas
pela transmissão social de informações que ele
denomina “cultura”. Este autor considera que os
animais também têm uma cultura mas, enquanto
nestes ela diz respeito a transmissão de
informações sobre técnicas e tradições
tecnológicas, nos humanos há outros dois
componentes distintivos: (1) estratégias de
acasalamento, tendo em vista a manutenção do
fitness, ao invés de estratégias para obtenção de
alimento e (2) os símbolos que fazem parte de
sistemas de regras [110].

Vários autores diferenciam “cultura” de


“tradições culturais” e consideram um
comportamento “cultural” quando é:

(1) habitual ou costumeiro,

(2) realizado por indivíduos relevantes para


o grupo,

(3) presente em um lugar e ausente em


outro ecologicamente semelhante,

192
(4) um comportamento para o qual não há
uma base genética identificável [111].

No livro “A Árvore do Conhecimento”,


Maturana e Varela apresentam um estudo sobre
comportamentos de cotovias que aprenderam a
bicar uma fina lâmina de alumínio que protegia
as garrafas de leite que eram deixadas nas portas
dos moradores de Londres; pouco tempo depois
esse comportamento foi observado em todas as
ilhas britânicas. Também falam a respeito de um
estudo realizado pelo grupo de Kawamura (em
1959), no qual uma macaca denominada Imo
aprendeu a lavar batatas e que pouco tempo
depois esse comportamento também havia se
espelhado entre os membros do seu grupo, graças
à imitação, além de outros comportamentos
“inventados” por esta macaca habilidosa [12]. Eles
consideram que estes comportamentos são
exemplos de condutas culturais, concebidas como
aquelas condutas adquiridas ontogenicamente na
dinâmica comunicativa de um meio social e que
se mantém estáveis através das gerações [12]. Ou
seja, a cultura se constitui de condutas
comunicativas, logo, socialmente aprendidas, que
se mantém através das gerações.

Estas condutas comunicativas são


utilizadas pelos seres humanos para coordenar
outras ações e constituem o linguajear, que no
seu entrelaçamento com o emocionear dão origem
ao conversar. A partir disso, Maturana explica
que quando falamos sobre cultura distinguimos
uma rede fechada de conversações que

193
constituem e definem uma maneira de
convivência humana [112]. Essa segunda
concepção é específica para a cultura humana, já
que só os seres humanos existem no linguajear e
em redes de conversações. Ou seja, a questão
acerca de haver ou não uma cultura em outros
animais não-humanos depende da nossa
explicação para este “conceito”.

Alguns autores consideram que um


aspecto fundamental e distintivo da cultura
humana é seu caráter cumulativo. Além de
aprendemos fatos e técnicas com outros seres
humanos através da aprendizagem socialmente
mediada, também somos capazes de modificar
aquilo que aprendemos e ensinar as futuras
gerações através de um processo de
Aprendizagem Cultural que permite a evolução
cultural cumulativa [113]. É daí que vem a ideia
de “efeito-catraca” (“ratchet effect”) para a
evolução cultural: ela sempre muda e avança
graças à Aprendizagem Cultural e nunca regride,
como uma catraca [114].

Como seres humanos podemos viver


simultaneamente em mais de uma cultura, já que
pode haver intersecções entre nossas redes de
conversações (através de condutas comunicativas
compartilhadas), assim como podemos viver em
diferentes culturas em distintos momentos de
nossas vidas.

Para a Biologia-Cultural do Conhecer as


bordas de uma cultura são operacionais e surgem

194
com sua distinção. Nenhum emocionar ou ação
específica caracteriza uma cultura, mas sim os
vários emocionares que coordenam diferentes
ações nas distintas redes de conversações que as
constituem [112].

São as culturas nas quais vivemos que


especificam, a cada instante, o que podemos
espontaneamente pensar, sentir ou fazer, apesar
de nem sempre temos “consciência” disso. Uma
cultura não pré-determina o viver que as pessoas
que vivem nesta cultura viverão, mas elas se
transformarão de acordo com o espaço psíquico
(ou espaço relacional) especificado por ela [2].

São os emocionares presentes em cada


cultura que definem um “cenário básico” ou “pano
de fundo” a partir do qual surgem nossas ações.
Esses emocionares são estados referenciais que
definem matrizes de relações internas possíveis
que o Sistema Nervoso e o organismo ao qual ele
está acoplado adotam com mais frequência frente
determinadas perturbações. Isso implica que em
diferentes estados referenciais o organismo
compensa as mesmas perturbações de forma
diferente. Um emocionear é algo que é distinguido
por um observador, enquanto que na perspectiva
do Sistema Nervoso são parte de sua dinâmica
estado-determinada devido a sua clausura
operacional [15].

195
Um quarto parêntese para reflexão
Todas as atividades tipicamente humanas
ocorrem como conversações, em redes de
conversações nas quais há um entrelaçamento
entre o emocionar e o linguajear. Sendo assim,
caçar, pescar, trabalhar, construir casas, cuidar
dos filhos, legislar e “filosofar” são diferentes
classes de conversações [112], assim como
explicar, ensinar e aprender.

Diferentemente dos seres humanos, os


demais animais apresentam condutas
comunicativas, mas não utilizam elementos dos
seus domínios linguísticos para coordenar ações,
ou seja, não são seres linguajeantes (não tem
uma linguagem) e consequentemente suas
atividades não ocorrem em redes de conversações.

Como afirmei anteriormente, quando


Maturana propõe que uma cultura diz respeito a
uma redes de conversações está fazendo
referência às culturas tipicamente humanas. É só
a partir da concepção de que uma cultura diz
respeito às condutas comunicativas socialmente
aprendidas e que se mantém através das gerações
que podemos afirmar que os demais animais
sociais também têm uma cultura. Sendo assim,
em cada uma das suas culturas os diferentes
animais especificam condutas que lhe são
características, mas que não são redes de
conversações. Como observadores dizemos que
eles caçam, cuidam dos seus filhotes, aprendem e
ensinam, mas cada uma destas condutas

196
constituem fazeres que lhes são típicos e
característicos, necessariamente diferentes dos
fazeres humanos, apesar de podemos utilizar a
mesma denominação e realizar uma serie de
analogias. Afinal de contas explicamos nosso viver
com elementos deste viver e é a partir disso,
assim como observamos no animismo e no
antropomorfismo, que ao fazer referência ao
comportamento de outros animais os tratamos
como homólogos aos nossos comportamentos.

Apartir desta consideração podemos


refletir a respeito da validade em fazer
equivalências entre condutas humanas e
condutas animais como, por exemplo, considerar
que aquilo que especificamos como um emocionar
em um animal é equivalente ao que parece ser o
mesmo emocionar num ser humano78.

Tendo isso em vista, quando utilizamos


animais para extrapolar conclusões e explicar
condutas que parecem homólogas àquelas
realizadas por seres humanos (como o caçar
humano e o caçar de um animal, o cuidado com a
prole de um animal e o cuidado com a prole em
um humano, ou o aprender humano e o aprender
de um animal) temos que considerar, dentre
outras coisas:

(1) o emocionar, ou o estado referencial a


partir do qual os animais fazem o que fazem, e
que é diferente em um laboratório quando
78
Essa observação merece uma reflexão mais aprofundada, que não será
realizada nessa dissertação, mas que tem pretensão se ser realizada em
outro momento.

197
comparado a uma situação onde estão em seu
meio-nicho natural, e;

(2) que ações (e emoções) aparentemente


equivalentes entre animais e humanos são
intrinsecamente diferentes, apesar de parecer que
compartilham características comuns (pelos
motivos anteriormente expostos).

É a partir dessas considerações que afirmo


que, apesar de parecer haver aprenderes similares
a todos os seres vivos, há aspectos do aprender
que são tipicamente humanos e que decorrem de
nosso viver em redes de conversações (ou seja, em
culturas humanas) no entrelaçamento entre
nossas dimensões biológica e cultural.

De volta ao fluxo do texto e ao


Emocionar e a Cultura
Diferentes culturas implicam diferentes
matrizes sensoriais-operacionais-relacionais que
guiam nosso viver e que se mantém estáveis
através das gerações. Constitutivamente, culturas
são sistemas conservadores fechados que “geram”
seus membros à medida que eles se realizam por
meio de suas participações nas conversações que
as constituem e definem. Maturana considera que
nós, humanos ocidentais modernos, estamos
inseridos em uma Cultura Patriarcal, que foi
precedida por uma Cultura Matrística [112].
As principais características da Cultura
Patriarcal são um modo de coexistência que

198
valoriza a guerra, a competição, a luta, as
hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o
crescimento, a apropriação dos recursos naturais,
a justificação racional do controle e da dominação
dos outros por meio da apropriação da verdade, a
desconfiança na autonomia do outro e a
disposição de tratar desacordos como disputas ou
lutas.

É interessante observar como aquilo que


denominei anteriormente de “pressupostos
darwinistas” se baseia em alguns emocionares
que constituem uma matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais biológico-
cultural subjacente a Cultura Patriarcal. Mais
interessante ainda é refletir acerca de como essa
matriz influencia nosso viver e especificamente,
como está por trás das nossas concepções sobre o
aprender e o ensinar, e como origina o sofrimento
e mal-estar observados nos ambientes escolares.
Maturana identifica na Cultura Matrística
(que surge entre 5 a 6 mil anos antes de Cristo,
entre povos agricultores e coletores da Europa)
que não havia fortificação de povoados, uso de
armas como adornos, ou registros que permitam
afirmar que havia propriedade privada; suas
atividades de culto eram dedicadas ao sagrado da
vida cotidiana e havia uma concepção de morte
como parte de um ciclo vital; os aspectos
masculino e feminino eram considerados
complementares, não havia valorização da
competição, nem desejo de dominação recíproca,
mas sim colaboração e respeito mútuo [112],

199
constituindo uma matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais radicalmente diferente,
que particularmente considero que a Biologia-
Cultural do Conhecer permite resgatar.

Cultura, Sentires Íntimos e Estados


Psíquicos
Os seres vivos seguem em seu viver um
curso de interações em que conservam seu bem-
estar, que é vivido como uma coerência
psíquico-corporal entre organismo e o nicho que
o contém e que permite seu viver [13].

Este nicho é constituindo não só pelo


nosso meio natural, mas também por nosso meio
sociocultural e influencia a matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais em que
realizamos nosso viver, como uma “boa terra” que
nos acolhe e torna possível nosso existir [2]. É
dentro dele que procuramos manter nossa
coerência psíquico-corporal (bem-estar) e caso
isso não ocorra advém o mal-estar, o adoecimento
e até mesmo a morte.

As coerências sensoriais-operacionais-
relacionais em uma cultural correspondem aos
diferentes emocionares que um observador
identifica como característicos de cada uma delas,
e que um auto observador, ao reflexionar sobre

200
eles, identifica como sentires íntimos, estados
psíquicos, ou ainda, como experiências79.

Diferentes emocionares compartilhados e


vividos por diferentes culturas constituem Eras
Psíquicas que predominam em determinado
momento histórico. Maturana e Dávila identificam
seis Eras Psíquicas da Humanidade [2,13] e
dentro de cada uma delas distinguem diferentes
modos de vida ou fenótipos ontogênicos que
caracterizam diferentes raças de Homo sapiens:
Homo sapiens-amans amans, Homo sapiens
arrogans, Homo sapiens agressans e Homo
sapiens-amans amans ethicus. Desta forma
explicitam sua concepção do ser humano como
ser biológico-cultural.

Assim como a Biologia-Cultural do


Conhecer considera as influências recíprocas
entre ser humano e cultura, e que o constituem
como ser biológico-cultural, as reflexões de Paulo
Freire seguem no mesmo sentido. Para este autor
o ser humano é um ser aberto à relações com seu
mundo natural (que não é sua criação) e com seu
mundo cultural (que é sua criação) [32]. Em suas
relações com seu mundo cultural o homem é
produto e produtor de sua cultura e “se deixa
marcar, enquanto marca igualmente” [115].

Considerando as influências recíprocas


entre o organismo e seu meio, vários
pesquisadores da Biologia Evolutiva propõe que

79
Construo essa afirmação a partir do que é dito em [13], p.29 e 30, e [2],
p. 497, 515 e 517.

201
os organismos modificam seu ambiente natural,
que então passa a influenciar o seu próprio
desenvolvimento e através da seleção natural, sua
própria evolução e a de outras espécies, em
diferentes níveis; essa perspectiva é denominada
de Teoria da Construção de Nicho [108]. Ela
também considera que os seres humanos
modificam seu ambiente natural como nenhum
outro animal, principalmente através de suas
práticas culturais [109].

Numa proposta muito similar a Teoria da


Co-Evolução Genes-Cultura propõe, através de
uma abordagem da genética populacional, que
além da transmissão hereditária de genes os seres
humanos também “transmitem” traços culturais
de uma geração a outra que influenciam de forma
dramática sua evolução, como a que ocorreu a
partir de 2,5 milhões de anos atrás quando os
Homo habilis passaram a fabricar suas próprias
ferramentas e a ensinar seus descendentes a fazê-
lo [106].

Na mesma perspectiva, como comentado


anteriormente, Jablonka e Lamb propõem que há
quatro tipos possíveis de heranças: genética,
epigenética, comportamental e simbólica, sendo
que estas duas últimas dizem respeito à aspectos
culturais do viver humano.
Em todas estas abordagens diferentes
mecanismos de “aprendizagem social” são
propostos como mecanismos para transmissão
das “informações culturais” de uma geração a

202
outra. Mais especificamente, estes mecanismos
são denominados Aprendizagem Cultural.

O que são os processos de Aprendizagem


Cultural e qual sua importância para a evolução
dos seres humanos?

Cultura e Aprendizagem Cultural


Toda aprendizagem se concretiza no
indivíduo e nessa perspectiva não faz sentido falar
sobre aprendizagem social, mas sim sobre
aprendizagem socialmente mediada (ou
aprendizagem socialmente viesada). Este tipo de
aprendizagem é parte de um grupo mais amplo de
processos cognitivos denominados Cognição
Cultural ou Aprendizagem Cultural, que
incluem a leitura, a aprendizagem socialmente
mediada, a imitação, o ensino, a motivação social
e a Teoria da Mente [113]. Todos estes processos
permitem que ocorra uma Evolução Cultural que
é considerada a responsável por nossa capacidade
cada vez mais ampla de lidar com as demandas
sociais e do ambiente natural. A ideia é que a
Evolução Cultural só é possível graças à
Aprendizagem Cultural.

Michael Tomasello e seus colaboradores


propõem que a principal diferença entre a
cognição humana e a de outras espécies é nossa
habilidade de atuar de forma colaborativa com
outros seres humanos compartilhando objetivos e
intenções, caracterizando aquilo que este autor
denomina de intencionalidade [116]. Segundo

203
Franz Bertrano, a intencionalidade é o que
caracteriza os fenômenos que constituem aquilo
que denominamos de “mental”, “atos de
consciência” ou “fenômenos psíquicos”, em
contraposição aos fenômenos naturais.

A partir de uma Teoria da Mente (como


expliquei anteriormente) os seres humanos são
capazes de distinguir a si mesmos e o que outros
humanos percebem, desejam, conhecem e
acreditam. Além disso, outra habilidade básica
que a ToM permite é compreender intenções,
provendo uma “matriz interpretativa” através da
qual podemos distinguir o que alguém está
fazendo e “porque” o faz. É interessante observar
que conceber a intencionalidade desta forma
permite entender nossa tendência de atribuir
intenções, objetivos e finalidades aos fenômenos
que buscamos compreender, que é o que fazemos
ao propor explicações de caráter finalista ou
teleológico. E não poderia ser diferente, dada a
relatividade fundamental e a (objetividade).

Os seres humanos conseguem


compartilhar intenções e atuar de forma conjunta
na obtenção de objetivos compartilhados, ou seja,
atuam com intencionalidade [116]. Essa é uma
das principais características da Aprendizagem
Cultural que é tipicamente humana. Proponho
que a “matriz interpretativa” que a ToM permite é
uma matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais que nós os seres
humanos co-construímos e compartilhamos
através do linguajear e do conversar, que

204
mantemos através das diferentes culturas nas
quais vivemos-convivemos e da qual nem sempre
temos ciência.

Leitura
A leitura é uma forma de Aprendizagem
Cultural a partir de registros realizados em
diferentes épocas. Em termos “evolutivos” após o
surgimento do linguajear e da fala surge a
linguagem escrita e simultaneamente a
capacidade de leitura, que são fenômenos
exclusivamente humanos e que aparecem em um
momento recente de nossa deriva natural.

O modelo mais aceito para explicar os


mecanismos neurais subjacentes à leitura é o
Modelo da Rota Dupla em Cascata que propõe
que cada leitor fluente utiliza rotas distintas ao
ver uma cadeia de letras para lê-las em voz alta,
ou para si mesmo. Estas rotas (semântica
lexical, lexical não-semântica e de
correspondência entre grafemas e fonemas) são
“construídas” durante o processo de
aprendizagem da leitura e envolvem a ativação de
áreas do córtex occipital direito, áreas da
linguagem no córtex temporal e frontal esquerdo,
e uma área no córtex occipito-temporal
denominada de “área de formação visual das
palavras”. Todas estas áreas são ativadas mais
intensamente em leitores fluentes do que em
pessoas “não-letradas” [113]. Nesta perspectiva,
módulos cognitivos já preexistentes são

205
reorganizados durante o processo de
aprendizagem da leitura dando origem a novos
circuitos neurofuncionais 80.

Aprendizagem Socialmente Mediada


e Ensino
A aprendizagem socialmente mediada,
que é outra forma de Aprendizagem Cultural, é
um fenômeno que ocorre especificamente quando
um agente aprende algo observando outro agente,
ou os resultados de sua ação. Caso o
comportamento do agente observado tenha sido
realizado de forma a favorecer a aprendizagem do
agente observador, ou seja, de forma intencional,
dizemos que nesse caso houve uma forma de
aprendizagem socialmente mediada específica
denominada ensino81 [113]. Logo, a diferença
entre ensino e aprendizagem socialmente mediada
é a intencionalidade do sujeito que está sendo
observado em favorecer a aprendizagem do
observador.

Para a grande maioria dos pesquisadores


não existe um circuito neurofuncional específico
para a aprendizagem socialmente mediada e ela
utiliza os mesmos circuitos responsáveis pela

80
Optei por utilizar o termo neurofuncional como referência ao fato de
que não são apenas circuitos nervosos (ou seja, substratos morfológicos)
que se constituem, mas são circuitos que permitem, através da ativação
de diferentes elementos em momentos diferentes, o estabelecimento de
um padrão espaço-temporal de ativação.
81
O que pode parecer contra intuitivo, a não ser que se considere a
concepção para aprendizagem socialmente mediada apresentada.

206
formação de memórias de longo-prazo durante a
aprendizagem associativa. Ou seja, os circuitos
para a aprendizagem socialmente mediada e para
a “aprendizagem não social” são os mesmos e
dizem respeito àqueles envolvidos na busca de
relações preditivas entre eventos, envolvendo
principalmente o córtex pré-frontal medial e o
núcleo estriado ventral [117]. Esta capacidade de
predição é uma forma de realizar “estatísticas” e
previsões sobre o mundo e está de acordo com
aquilo que propõem as explicações de Alisson
Gopnik e Patrícia Kuhl em relação ao
comportamento dos bebês humanos, como
comentei anteriormente.

A grande peculiaridade da aprendizagem


socialmente mediada é um certo “viés perceptual”,
atencional e motivacional que se desenvolve
durante a ontogênese e que favorece a
aprendizagem quando os “estímulos” provém de
um coespecífico relevante (no nosso caso, quando
provém de outro ser humano). As predisposições
humanas para as interações sociais citadas
anteriormente falam a favor desta explicação.

Além disso, há certos “vieses perceptuais”


que podem ser devidos à fatores culturais. Por
exemplo, em um estudo com caucasianos e
asiáticos, cujo objetivo era avaliar sua atenção
diante de faces expressando diferentes emoções
(utilizando para isso um equipamento que registra
o movimento dos olhos, ou “eye tracking”), Jack e
colaboradores identificaram que enquanto os
caucasianos dividiam igualmente sua atenção

207
entre os olhos e a boca, os asiáticos davam
atenção preferencial aos olhos. Devido a esse “viés
perceptual” os caucasianos eram mais eficientes
em identificar emoções como “medo” e “desgosto”,
que são emoções que causam contrações nos
lábios que são bem características, pois
prestavam mais atenção à boca do que os
asiáticos (que dedicam mais tempo observando os
olhos). Isso permite explicar porque em certas
situações, ao observar outros indivíduos que
estão diante de estímulos que geram medo ou
desgosto, os asiáticos tendem a ser menos efetivos
em aprender o que aquela interação social pode
ensinar, como por exemplo, a se afastar dos
estímulos em questão, identificados como
aversivos pelos sujeitos que estão sendo
observados [118].

Imitação, Emulação e Pedagogia


Natural
Outro mecanismo de Aprendizagem
Cultural é a imitação (ou aprendizagem
imitativa), que é um subtipo de aprendizagem
socialmente mediada na qual o observador imita
literalmente as ações de um observado. Por este
motivo essa é uma estratégia que favorece
aprendizagem de comportamentos motores e de
vocalizações [113].
Há circuitos neurofuncionais específicos
envolvidos na imitação, muitos dos quais

208
envolvem uma série de neurônios espelho82
[119–121], mas há também hipóteses que tratam
a imitação como uma forma complexa de
aprendizagem associativa, evolvendo os mesmos
circuitos desta modalidade de aprendizagem
[113]. Dada sua complexidade e as diferentes
hipóteses explicativas existente, optei por não me
aprofundar no estudo desta forma de
83
aprendizagem neste livro .

Alguns autores diferenciam a imitação da


emulação [122] (também denominada imitação
racional, sub-imitação ou “under imitation” 84
considerando-a uma imitação das metas ou
objetivos e não de todos os comportamentos
motores realizados por outra pessoa durante uma
atividade. Para emular é necessário que as metas
sejam passíveis de serem “compreendidas”, ao
que fazemos referência dizendo que as metas não
devem ser “opacas”. A emulação dá suporte a
ideia de que crianças humanas têm adaptações
biológicas que as tornam sensíveis as intenções
de ensino dos adultos, o que dá origem a
concepção de pedagogia natural [113], ou seja, a
ideia de que as crianças estão “adaptadas” e
“predispostas” a aprender com coespecíficos,
preferencialmente “adultos significativos”.

82
Neurônios espelho foram inicialmente descritos como aqueles que
geram impulsos elétricos quando um macaco realizava ações ou quando
observava as mesmas ações em outro macaco ou em um ser humano.
Mais informações podem ser obtidas em https://goo.gl/Kw1Kvf .
83
Para mais informações a respeito sugiro a leitura de [119,119,120].
84
Essa equiparação entre emulação e under-imitation é uma escolha
minha, pois há autores que diferenciam ambos fenômenos.

209
Para os pesquisadores da Psicologia
evolutiva a pedagogia natural é considerada uma
adaptação que diz respeito a transmissão de
conhecimentos culturais através da
“comunicação” e é um fenômeno típico dos seres
humanos. Aqui convém destacar que a concepção
destes pesquisadores da pedagogia natural para a
“comunicação” não é a mesma da Biologia-
cultural do Conhecer, pois se assim fosse todos os
animais sociais apresentariam uma pedagogia
natural (já que a comunicação é um fenômeno de
todos os seres vivos e não exclusivamente
humana, como é o caso da linguagem). Neste
sentido este fenômeno pode ser compreendido
como uma transmissão de informações
intencional (e nesse caso seria algo tipicamente
humano).

Quando aprendemos algo nossa tendência


é generalizar este aprendizado para outras
situações “similares”. Para que façamos isso
precisamos ter clareza de que esse algo que está
sendo aprendido é significativo ou relevante para
o grupo ao qual pertencemos, ou do qual
queremos fazer parte, além de ter clareza de sua
finalidade. Entretanto, quando estamos em
contato com algo novo, ambos aspectos podem
parecer “opacos” para nós, ou seja, podemos não
ter clareza a respeito das finalidades e da
relevância daquilo que observamos. Nestes casos,
poderíamos utilizar estratégias de “tentativa-e-
erro” para aprender a respeito daquilo, ou
aprender através de “observação estatística”, o

210
que em muitos casos consumiria tempo e não
seria aplicável a eventos com os quais temos
apenas uma ou poucas oportunidades de contato.
A pedagogia natural é uma estratégia de
aprendizagem útil em situações nas quais há
“opacidade” em relação às finalidades, relevância
e mesmo em relação aos mecanismos subjacentes
ao fenômeno que se pretende aprender. Nela,
outro ser humano demonstra ou explica o que se
propõe a ensinar, organizando suas ações de
forma intencional, tendo em vista este objetivo.
Além disso, deve haver uma predisposição do
outro a aprender, na forma de uma expectativa
em relação à relevância social desse
“conhecimento” e a possibilidade de fazer
generalizações a partir dele [123]. Dito de outra
forma, a pedagogia natural é uma forma de
ensino que ocorre quando há opacidade das
metas e quando há um acoplamento comunicativo
entre observador (que aprende) e observado (que
ensina).

Em crianças humanas observamos ainda o


fenômeno denominado super imitação (“over
imitation”), no qual elas imitam nos mínimos
detalhes os comportamentos de adultos
significativos que são observados, mesmo quando
suas intenções são claras, ou seja, quando as
metas não são “opacas” [113,122].

Um breve parêntese explicativo: as


explicações que apresentei acima estão permeadas
por pressupostos darwinistas. Meu objetivo em
apresenta-las é mostrar a você de que forma a

211
ciência explica certos fenômenos, e como eles
podem ser “repensados” a partir das concepções
da Biologia-Cultural do Conhecer. Toda vez que eu
apresentar explicações que pressupõem uma
finalidade adaptativa, um objetivo, ou que
procuram as causas de fenômenos culturais em
fenômenos de origem biológica isso implica que não
compartilho com esta expicação. Pretendo mostrar
que constituem uma matriz diferente de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais. Aquela que
proponho a partir da Biologia-Cultural do Conhecer
e que gradativamente apresento, considera: a
indissociabilidade entre o ser, o fazer e o conhecer;
o determinismo estrutural; a contabilidade lógica; a
relatividade fundamental e; a (objetividade).

Após esse trajeto pela evolução humana,


tratando de questões como a inteligência, os
sistemas sociais, a comunicação, a linguagem, a
cultural e a Aprendizagem Cultural, já temos
elementos para refletir sobre minha questão
inicial: afinal de contas, quem é o ser humano
que aprender?

Mas afinal, quem é o Ser Humano


que aprende?
Nós, seres humanos, somos sistemas
autopoieticos moleculares e vivemos nosso viver
como tais em um domínio diferente daquele no
qual atuamos como organismos (ou indivíduos)
em nossas interações.

212
É a inter-relação e a influência recíproca
entre ambos domínios que nos constitui como
seres biológico-culturais: no domínio de nosso
operar autopoietico está a origem de nosso ser
biológico, enquanto que no domínio de interações
surgem diferentes aspectos de nosso viver
cultural. É aí que atuamos como observadores,
explicamos nosso próprio viver, aprendemos e
vivemos como seres socioculturais e geramos
outros tantos domínios a partir do reflexionar que
o linguajear permite. Neste sentido, vivemos nosso
viver transitando como observadores em vários
domínios que geramos em nosso observar,
explicar e reflexionar.

O domínio de nosso operar como sistemas


autopoieticos moleculares é um domínio de
fenômenos espontâneos, enquanto que os
objetivos, metas e finalidades pertencem ao nosso
domínio de interações. Mas o que são estes
domínios existenciais e fenomenológicos, e o que
permite distinguir sua “existência”?

Este é um dos pontos mais importantes,


mas também um dos mais difíceis de
compreender dentre todas as concepções da
Biologia-Cultural do Conhecer, pois requer que
desloquemos nosso observar e nosso reflexionar
através de distintos domínios fenomenológicos,
que constituem diferentes domínios de
determinismo estrutural, sem perder a
contabilidade lógica. Vou propor uma analogia
para favorecer sua compreensão.

213
Domínios Fenomenológicos
projetados no Domínio do
Observador
Imagine que um domínio fenomenológico é
como uma folha de papel transparente onde há
desenhos feitos com diferentes tipos de materiais.
Agora imagine várias dessas folhas, cada uma
delas desenhada por uma criança entre seus 2 a
8 anos de idade pelo simples prazer de desenhar.
À medida que estes desenhos vão sendo
elaborados eles são empilhados, se sobrepondo.

Uma das primeiras folhas tem traços que


não permitem distinguir nenhum tipo de forma e
foi desenhada utilizando giz de cera azul e
vermelho. Na outra, há traços que parecem
representar uma pessoa e uma casa desenhadas
com lápis de cor. Com o passar dos anos os
desenhos vão se tornando cada vez mais
elaborados e as canetas coloridas passam a
predominar. Cada um deles foi feito seguindo
uma “lógica” que só a criança conhece e que tem
relação com a faixa etária e o contexto de vida no
qual cada desenho foi produzido. Nesta analogia
cada uma dessas “lógicas” e os materiais
utilizados fazem referência a um domínio de
determinismo estrutural diferente, relacionado a
cada domínio fenomenológico (folha transparente)
em questão.

Ao final do processo todos os desenhos


estão juntos e empilhados, de modo que temos
um “desenho complexo” formado pela

214
sobreposição dos vários desenhos. Quando um
observador olha para este desenho complexo
todas as camadas de desenhos realizadas durante
vários anos estão projetadas num mesmo “plano”,
que constitui um domínio do observador. Dito
de outra forma, em seu observar o observador
“cria” um novo domínio fenomenológico onde
projeta, num mesmo plano ou domínio, distintos
domínios fenomenológicos correspondentes a
distintos domínios de determinismo estrutural. Se
este observador não for informado a respeito ou
se não “aprimorar” sua observação, não
distinguirá que o desenho é formado pela
sobreposição de várias folhas de papel
transparente, representando distintos domínios
fenomenológicos projetados no domínio do seu
observar.

Com o tempo os desenhos mais antigos se


tornam desbotados e podem até desaparecer,
algumas folhas podem se mover na pilha de
desenhos, ou os desenhos mais recentes e
superiores na pilha podem sofrer diferentes ações
do ambiente. Tudo isso vai fazer com que o
desenho complexo observado pelo observador se
torne diferente. Se ele não souber que aquele
desenho é o resultado de uma sobreposição de
domínios fenomenológicos (folhas de papel) ele
pode imaginar diferentes explicações para o que
observa. Se ele “apurar” sua observação, o que
nesta analogia representa reflexionar (refletir
sobre), vai conseguir distinguir que há distintas
camadas, já que observa diferentes tipos de

215
materiais utilizados e diferentes “lógicas” em cada
uma das regiões do desenho complexo. Pode
haver regiões onde a sobreposição é tamanha que
não é possível observar nada, mas mesmo assim,
se o observador conseguir refinar suas reflexões,
pode inferir o que está observando no desenho
complexo.

Se este observador tentar explicar o que é o


desenho complexo sem considerar que ele é
formado por uma sobreposição de domínios terá
pouco sucesso em sua explicação. Se ele
considerar que há várias camadas, mas tentar
buscar relações lógicas, emergentes ou causais
entre elas para tentar explicar a estrutura final do
desenho complexo ou seu significado, tudo isso
será por sua “conta e risco”. Apesar disso, ele
pode verificar que uma folha sobreposta sobre a
outra pode ser influenciada pela sobreposição,
como, por exemplo, no caso dos desenhos das
folhas mais antigas se tornarem borrados pelo
atrito com as folhas mais recentes e superiores,
ou dos desenhos mais recentes estarem mais
sujeitos a ação do ambiente. Em todo caso, ele
não pode explicar o processo de criação de cada
desenho fazendo referência aos demais, mas pode
distinguir, mantendo uma contabilidade lógica,
que o desenho complexo “resulta” dos demais,
dentro de um processo histórico.

A estrutura deste desenho é mais que a


sobreposição de cada um dos demais, dada a
influência que um pode ter sobre o outro (por
exemplo, borrando ou apagando outro desenho) e

216
o “sentido” que pode ser atribuído a ele é um
exercício de imaginação do observador, pois só
poderia ser explicado a partir do conhecimento
exato da história e de todo contexto complexo que
envolveu a criação de cada desenho, considerando
ainda que foram feitos sem uma finalidade,
seguindo “lógicas” distintas.

Da mesma forma, quando elementos


químicos interagem formando moléculas eles
seguem uma “lógica” específica e constituiem um
domínio fenomenológico específico que podemos
denominar de domínio molecular. Se
“aprimorarmos” nossa observação (reflexionar),
podemos explicar que cada elemento químico já é
uma “sobreposição e projeção” do domínio das
partículas subatômicas que o constituem.
Podemos ainda “sobrepor” moléculas e criar um
domínio das reações químicas orgânicas ou
inorgânicas (que podemos especificar como dois
domínios distintos, segundo critérios que nós
mesmos podemos eleger para tal). Ou seja, é o
observador que distingue a partir do seu
reflexionar, utilizando distintos critérios dos quais
pode ter maior ou menor clareza, quantos
domínios fenomenológicos julgar que são
adequados distinguir para satisfazer sua “sede
por explicações”. Na analogia dos desenhos
sobrepostos, pode ocorrer que numa mesma folha
haja dois desenhos que foram feitos em
momentos distintos ou pode haver uma mancha
de comida que apesar de pertencerem a uma
mesma folha um observador pode distinguir como

217
pertencentes a diferentes domínios
fenomenológicos.

O observador também pode simplesmente


olhar para a folha e ficar “satisfeito” em ver
“apenas” um desenho complexo. É o emocionar a
partir do qual ele observa que vai especificar até
que ponto e através de quais explicações se
satisfaz (ou satisfaz àqueles a quem a explicação
se destina), emocionar este que pertence à cultura
na qual ele está inserido.

Como explicarei adiante, além de distinguir


entes e unidades, um observador também pode
distinguir fenômenos ou processos. A analogia
que propous entre domínio fenomenológicos e
desenhos em folhas de papel transparente torna
mais fácil a compreensão da distinção de entes do
que de fenômenos, mas espero que seja uma
estratégia útil para favorecer a compreensão do
que vem a seguir.

Domínios Fenomenológicos,
Dinâmicas do Viver e Unidades
Quando no final da década de 1950
Maturana trabalhou no MIT (Massachutts Institute
of Technology) e teve contato com estudos de
inteligência artificial e modelagem robótica dos
seres vivos, ele chegou à conclusão que ao
modelar os fenômenos biológicos os
pesquisadores modelavam aquilo que lhes era
aparente a partir de sua perspectiva como
observadores e não aquilo que os seres vivos

218
fazem e os constituem como tais, e que dá origem
aos fenômenos biológicos. Foi então que
diferenciou (1) as distinções realizadas pelos
observadores em seu domínio do observador (2)
daquilo que os seres vivos fazem em seu operar.
Isto se tornou uma marca distintiva de sua
abordagem sobre os fenômenos cognitivos e que
aparece desde 1969 em seu artigo “The
Neurophysiology of Cognition” [3].

É a partir desta diferenciação que


Maturana propõe os dois domínios existenciais
dos seres vivos (explicados anteriormente), dentro
dos quais operamos segundo duas dinâmicas
distintas:

(1) uma sob a perspectiva do que é possível


descrever a respeito dos seres vivos através do
observar do observador e que constitui sua
Dinâmica Externa ou Relacional, cujos
fenômenos característicos pertencem ao domínio
de interações e,

(2) outra referente a sua fenomenologia


biológica, a qual denominou Dinâmica Interna,
que não é aparente através da observação, mas
que pode ser inferida a partir desta e cujos
fenômenos característicos ocorrem no domínio
onde operamos como sistemas autopoieticos
moleculares [3].

Os seres vivos surgem como totalidades ou


organismos, passíveis de serem observados em
sua Dinâmica Externa, em um domínio distinto
do domínio do operar dos seus componentes, em

219
sua Dinâmica Interna como sistemas
autopoieticos moleculares, mas como uma
consequência espontânea desse operar [15]. Isso é
muito importante e distintivo das explicações da
Biologia-Cultural do Conhecer, pois as demais
explicações para as condutas humanas e os
fenômenos cognitivos mistura fenômenos que
pertencem à dinâmicas distintas.

Outra forma de explicar isso, utilizando


uma ideia básica comum à “tradição sistêmica”, é
dizer que os sistemas biológicos são Sistemas
Dissipativos [124].

Sistemas Dissipativos são estruturas


fechadas do ponto de vista operacional, já que
mantém sua clausura organizacional (o que
implica que sua organização se mantém
invariante), mas fazem isso às custas do
intercâmbio contínuo de matéria e energia com
seu entorno, ou seja, apresentam uma abertura
termodinâmica que diz respeito ao seu aspecto
intrinsecamente relacional [124]. Com isso, os
sistemas dissipativos definem duas dimensões do
seu existir: (1) uma dimensão interativa através
da qual realizam um intercâmbio contínuo de
matéria e energia com o meio, e (2) uma
dimensão constitutiva, de autoprodução, auto
referência e automanutenção, na qual mantém
sua clausura organizacional.

Essas dimensões são equivalentes aos


domínios existenciais propostos pela Biologia-
Cultural do Conhecer e foi provavelmente a partir

220
daí que Maturana refletiu sobre suas observações
no MIT. O grande diferencial das suas concepções
foi especificar um domínio no qual surge o
observador e o observar.
Considerando a (objetividade) e a
relatividade fundamental, são as operações de
distinção do observador que permitem distinguir
entre uma ou outra dinâmica, dimensão ou
domínio existencial. Da mesma forma, são as
operações de distinção que permitem agrupar as
“coisas” que observamos no mundo em classes ou
categorias, como por exemplo, a classe de seres
que distinguimos como seres vivos. Segundo
Maturana:

Quando se está operando na objetividade sem


parênteses, assume-se que (...) duas coisas são
semelhantes intrinsecamente. No entanto, no
momento em que se assume que o observador
não pode distinguir entre ilusão e percepção,
assume-se que é a operação do observador que
define a semelhança. O critério de semelhança ou
equivalência é especificado na operação de
distinção do observador. Se eu aplico uma certa
operação de distinção e trago à mão85 um
aquecedor, cada vez que aplicar com êxito essa
operação de distinção estou falando do
aquecedor. E dois aquecedores são equivalentes
como aquecedores porque é uma mesma
operação de distinção que me configura o
aquecedor [43].

85
Maturana utiliza a expressão “trazer a mão” como sinônimo de “trazer a
existência”, “dar origem a”, considerando que é operar do observador e
as operações de distinção que ele realiza que faz surgir as coisas que
surgem em seu observar.

221
As propriedades constitutivas do
observador especificam as distintas operações que
ele pode realizar durante suas distinções e essas
propriedades, que especificam seu atuar no
domínio de interações, são determinadas por
fenômenos e processos que ocorrem no domínio
de seu operar como sistema autopoietico
molecular.

As distinções que um observador realiza


ocorrem em seu operar a partir de uma matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais
[13] e é dentro dessa matriz de coerências que:

(1) ao repetir a operação de distinção o


ente distinguido surge para o observador, e

(2) ele pode propor uma explicação para


aquilo que distingue.

Como você já sabe, uma unidade, objeto,


coisa ou ente é aquilo que um observador
distingue como algo diferente de um entorno que
o contém (e que no caso dos seres vivos equivale
ao seu meio-nicho), seguindo critérios que ele
próprio elege para realizar tal operação de
distinção dentro de uma matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais a partir da
qual opera, mesmo que não tenha plena ciência
disso. Ao explicar o que distingue um cientista-
observador explicita a matriz a partir da qual
realiza sua distinção e elabora sua hipótese
explicativa na forma de um sistema

222
estruturalmente determinado86, cujo operar
resulta naquilo que se pretende explicar. Sendo
assim, é no observar do observador e no seu ato
de explicar que surgem os distintos domínios
fenomenológicos que ele distingue, cada um deles
correspondente a um distinto domínio de
determinismo estrutural, como você também já
sabe. Isso porque o conhecer e o fazer dos seres
humanos é indissociável, assim como o seu
próprio ser. Além de distinguir entes e unidades,
um observador também pode distinguir
fenômenos ou processos [45].

A partir do que foi dito vou assumir que a


distinção é o ato cognitivo básico do ser humano
atuando como observador e é a partir desta
operação que todas as demais funções cognitivas
se desenvolvem e estruturam, as quais podemos
nos referir utilizando verbos ou expressões como:
apontar, olhar, ver, perceber, atribuir, especificar,
surgir, “vir à tona”, “traz à mão”, dentre outros.
Há dois tipos de unidades, ou entes, que
um observador pode distinguir: unidades simples
e unidades compostas. Nas palavras de
Maturana e Ximena:

Como observadores, distinguimos unidades


simples e unidades compostas (...). As unidades

86
Aqui estou novamente fazendo referência aos Critérios de Validação
das Explicações Científicas apresentados anteriormente. Neste sentido, a
diferença entre as explicações “científicas” e as de “senso comum” é que
as primeiras explicitam a matriz de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais a partir da qual são elaboradas.

223
simples surgem na distinção do observador como
totalidades em que este não faz separação de
componentes. As unidades compostas surgem na
distinção do observador como totalidades que ele
logo decompõe em componentes (...). [13]

Estas unidades surgem na operação de


distinção juntamente com (1) um domínio
fenomenológico correspondente e (2) o entorno ou
meio-nicho que a contém. Ou seja, a distinção
“faz surgir” (ou “traz à mão”):

(1) unidades ou entes,

(2) um domínio fenológico específico, onde


passam a ocorrer todos os fenômenos e processos
relativos à unidade distinguida, e

(3) o entorno ou meio-nicho que contém a


unidade e que torna possível sua existência, ou
“acolhe” seu existir.

Insisto: é a distinção do observador que faz


surgir entes (unidades), entornos (meio-nichos) e
domínios fenomenológicos (como um conjunto de
fenômenos e processos estruturalmente
determinados). Para compreender todos estes
“elementos” devemos compreender a partir de
qual matriz de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais o observador opera, o
que nos seres humanos implica conhecer não
apenas seu operar biológico, mas a cultura na
qual vive seu viver biológico-cultural, com os
respectivos emocionares que são valorizados por
ela.

224
Todas as unidades distinguidas
especificam diferentes domínios com seus
respectivos fenômenos, os quais pertencem
exclusivamente a um destes domínios, ou seja,
não há fenômeno que pertença simultaneamente
a mais de um domínio. Como você já sabe, ao
atuar como observadores projetamos todos os
domínios e fenômenos que distinguimos em um
mesmo plano ou domínio do observador, mas em
nossas explicações devemos ter ciência e
especificar a qual domínio pertence cada
fenômeno. Isso porque não podemos fazer
relações causais, lógicas ou emergentes entre
distintos domínios e seus respectivos fenômenos,
já que eles são interdependentes e não
intersectantes, assim como exemplifiquei
anteriormente na analogia entre os domínios
fenomenológicos e desenhos feitos em folhas
transparentes.

As unidades simples operam como todos


indivisíveis no seu domínio de interações (através
de sua dimensão interativa ou Dinâmica Externa),
enquanto as unidades compostas operam como
tais no domínio do operar dos seus componentes
(através de sua dimensão constitutiva ou
Dinâmica Interna).

Resumindo: no domínio do observador


podemos sobrepor fenômenos de ambos os
domínios, mas agora você já sabe que há
fenômenos que são exclusivos do domínio de
interações (onde atuamos como unidades simples)
e que não podem ser explicados em termos de

225
relações causais, lógicas ou emergentes a partir
de fenômenos que ocorrem em nosso operar como
unidades autpoieticas moleculares (onde atuamos
como unidades compostas).

Unidades Simples e Compostas


Unidades simples são distinguidas e
atuam no mundo como todos indivisíveis, através
de suas propriedades constitutivas. Se uma
unidade é distinguida e explicada como unidade
simples, pressupõe-se que as propriedades
atribuídas a ela são constitutivas e nenhuma
questão acerca de suas origens é levantada. Logo,
para definir uma unidade simples basta
especificar seu conjunto de propriedades, que são
características especificadas por um observador
[45]. É através dessas propriedades que a unidade
simples interage, ou seja, que existe e atua no seu
domínio de interações. Dito de outra maneira, ao
explicar fenômenos do domínio de interações
estamos nos referindo a fenômenos que ocorrem
no operar de uma unidade simples e que
dependem, portanto, de suas propriedades
constitutivas.

Ao distinguir um conjunto de elementos


interligados que configuram uma totalidade o
observador distingue uma unidade composta. Se
nessa unidade composta os elementos que a
compõem se relacionam de tal forma que ao atuar
sobre um deles se atua sobre todos temos um
sistema. Se um sistema constitui uma dinâmica

226
fechada de processos cíclicos e recursivos87 temos
um sistema dinâmico fechado [13]. Quando
dizemos que o Sistema Nervoso opera em
clausura operacional estamos dizendo que o
Sistema Nervoso é uma unidade composta, ou
mais especificamente, que é um sistema dinâmico
fechado88.

Em uma unidade composta, através de


operações adicionais de distinção, podemos
distinguir sua organização, seus componentes e
sua estrutura, e são estes os “elementos” que
permitem distinguir uma unidade composta como
tal. Ela existe no domínio do operar dos seus
componentes, que é distinto daquele onde um
observador pode optar por distinguí-la como uma
unidade simples e no qual interage através de
suas propriedades constitutivas.

A organização de uma unidade composta


diz respeito as relações que precisam existir ou
ocorrer para que ela exista como tal [1]. Fritjof
Capra utiliza o termo relações de organização
para se remeter à organização, como sendo uma
configuração de relações ordenadas que é
característica de determinada classe de sistemas
[128]. Ou seja, a organização diz respeito às
relações existentes entre os componentes de uma
unidade e que a caracteriza como tal de forma que

87
Um processo recursivo é aquele que envolve uma dinâmica cíclica
acoplada a uma dinâmica linear, e será explicado com mais detalhes a
seguir.
88
Podemos dizer que sistemas dinâmicos fechados, ou que a clausura
operacional a eles atribuída, constituem uma forma de organização, assim
como a autopoiese.

227
entes com a mesma organização pertencem a uma
mesma categoria ou classe [43,45].

Por exemplo: a classe de entes que


denominamos “óculos” pertencem a uma
categoria de unidades cuja organização especifica
relações entre seus componentes de modo que,
quando um observador distingue essa
organização (as relações entre as pernas e a
armação que suporta as lentes) distingue um
óculos, independentemente do material que é feito
e das propriedades dos seus componentes.

Outro exemplo: diante de um cachorro


uma criança pequena pode se referir a ele como
sendo um “au-au”; se questionada sobre seus
critérios de distinção provavelmente não tem
ciência deles, o que não a impede de utilizar tais
critérios. Pode ainda, diante de um gato, utilizar a
mesma denominação (“au-au”) o que implica que
aí distingue a mesma organização. Numa idade
mais avançada pode substituir o termo “au-au”
por “cachorro”, ao mesmo tempo que passa a
utilizar o termo “gato” para se referir a entes
dessa classe (não mais utilizando a denominação
mais genérica “au-au”).

Isso que mostra que:

(1) podemos distinguir organizações de


forma “intuitiva” e utilizar substantivos ou
conceitos para nos referir a estas diferentes
classes de entes ou fenômenos (correspondentes à
diferentes organizações) sem “consciência” do
critério de distinção que utilizamos para isso (não

228
podemos esquecer que “os substantivos ocultam
verbos”), e

(2) esse critério de distinção pode mudar,


com sucessivos processos adicionais de distinção
dentro de uma classe ou através da reorganização
de classes (inicialmente “au-au” é uma classe
genérica; a seguir dentro desta classe são
distinguidos “cachorros” e “gatos”).

O mesmo se aplica à distinção de


fenômenos, como por exemplo, aquilo que um
cientista distingue como “mitose” corresponde a
um sistema de processos com uma organização
particular, que permite distingui-lo como “mitose”
e diferenciá-lo da “meiose”, da “bipartição
bacteriana”89 ou de qualquer outro processo.

A Psicologia da Gestalt parte de um


pressuposto semelhante ao afirmar que
distinguimos relações (o equivalente à
organizações) que constituem totalidades ou
gestalts nas quais o todo (equivalente à unidade
composta ou sistema) é mais do que a soma das
partes (que são equivalentes aos seus
componentes). Para a Gestalt a percepção diz
respeito a uma operação análoga à distinção de
organizações que estou explicando aqui [125].

Tive a oportunidade de ouvir a filósofa


Lúcia Helena Galvão explicar em mais de uma
ocasião sobre a “Teoria do Impacto”, que diz que
“a consciência surge através do contraste”.

89
Mitose, meiose e bipartição bacteriana são distintos processos de
divisão celular.

229
Buscando uma relação com as concepções que
apresento aqui, é o “contraste” que surge entre a
unidade e seu entorno que permite que tenhamos
“ciência” a seu respeito e isso se deve a operação
de distinção que permite especificar (constrastar)
“unidade” e “entorno”. Isso fala a favor de minha
opção por assumir que a distinção é o ato
cognitivo básico.

A estrutura de uma unidade composta diz


respeito aos seus componentes atuais e as
relações que eles devem satisfazer em sua
participação na constituição dessa unidade. Um
observador pode identificar um sistema já
conhecido observando apenas sua estrutura, mas
não é capaz de identificar um sistema nunca visto
apenas através da observação desta: também é
necessário distinguir sua organização [45].

Os componentes de uma unidade


composta não são componentes em si, mas
“elementos” que surgem como componentes a
partir do momento que o observador distingue
sua participação nas relações de composição de
uma unidade composta, quando ele distingue esta
como tal [13].

Cada componente pode ser tratado como


uma unidade simples e nesse “momento” é
possível “apontar” para suas propriedades.
Fazendo isso podemos refletir a respeito de como
essas propriedades permitem que ele (componente
visto como unidade simples) participe das
relações que “originam” a organização na unidade

230
composta na qual passa a ser distinguido como
um componente. Este “jogo de mudança de
perspectivas” ou esta “navegação entre domínios
fenomenológicos” é um dos aspectos
fundamentais da Biologia-Cultural do Conhecer,
mas também um dos que traz maior dificuldade.
Também devemos estar atentos para manter
sempre uma contabilidade lógica, sem confundir
as propriedades dos componentes da unidade
composta e as propriedades que esta unidade
“assume” quando age em suas interações como
uma unidade simples.

O critério de distinção de uma unidade


simples ou composta é uma escolha do
observador: unidades simples podem ser
distinguidas como componentes de um todo maior
que pode então ser tratado como uma unidade
composta; dentro desta unidade composta
podemos distinguir componentes, que podem ser
então tratados com unidades simples.
Quando nos referimos às unidades simples
basta especificar suas propriedades constitutivas;
quando nos referimos às unidades compostas
precisamos especificar sua estrutura, seus
componentes e sua organização. Quando
tentamos explicar os seres vivos a partir de suas
propriedades constitutivas os estamos tratando
como unidades simples, mas não podemos dizer o
que os caracteriza efetivamente como tais, já que
para fazer isso precisamos distinguir sua
organização, o que implica trata-los como
unidades compostas. Logo, sempre que queremos

231
explicar “o que é” uma unidade ou ente devemos
tratar esta unidade como uma unidade composta
e buscar compreender sua organização, sua
estrutura e seus componentes. Quando nosso
objetivo é compreender como uma unidade atua
no mundo e interage, então devemos “mudar
nossa perspectiva”, ou seja, mudar o domínio
fenomenológico e de correspondente
determinismo estrutural que vamos utilizar em
nossa explicação, e aí distinguir as propriedades
da unidade simples que interage.

O domínio de todas as interações possíveis


de uma coleção de unidades simples, determinado
por suas propriedades, é denominado espaço.
Uma unidade composta “existe” no espaço
especificado por seus componentes; uma unidade
simples “se realiza” como tal no espaço
especificado por suas propriedades. As
propriedades dos componentes apenas
especificam o espaço no qual um sistema
composto existirá, mas não determinam por si só
sua organização, tampouco as propriedades do
sistema como um todo [1].

Sempre que duas ou mais unidades


simples modificam sua posição relativa no espaço,
através da interposição de suas propriedades,
temos uma interação [45].

Um quinto parêntese para reflexão


Como observadores, podemos realizar
operações de síntese e análise, que são

232
“mudanças na perspectiva” da operação de
distinção. Isso permite a distinção:

(1) dos componentes de uma unidade


composta como parte de sua estrutura,
(2) de unidades compostas atuando como
unidades simples, e

(3) dos componentes de uma unidade


composta como unidades simples.

Esse “transitar” entre a síntese e a análise


implica uma correspondente mudança de domínio
fenomenológico e requer atenção para que seja
mantida uma contabilidade lógica. Mais
especificamente, é ele que nos permite distinguir
novas unidades (ou processos), e
consequentemente, novos domínios
fenomenológicos e. por sua vez, é algo para o que
devemos atentar durante os processos de
aprender e ensinar.
Por exemplo: posso distinguir uma célula
como uma unidade simples e, nesse caso,
listando suas propriedades constitutivas, posso
explicar como ela interage com outras células e
com o meio no qual está inserida (que é o que
fazemos no estudo da Histologia).

Através de operações de análise, posso


distinguir os componentes que compõem a
estrutura de uma célula e, nesse caso, a estou
“tratando” agora como uma unidade composta, o
que me permite distinguir, além dos seus
componentes (as organelas), sua estrutura

233
(procarionte ou eucarionte, por exemplo) e sua
organização (autopoietica molecular), que é o que
fazemos no estudo da Citologia. Nesse momento,
deixo de distinguir as propriedades constitutivas
da célula como unidade simples (que pertencem a
outro domínio fenomenológico) e passo a
especificar através dos componentes, da estrutura
e da organização que caracterizam essa célula,
um novo domínio fenomenológico, onde ocorrem
outros fenômenos, distintos do domínio onde a
célula é distinguida como unidade simples.

Através de operações de síntese, posso


olhar para as células como unidades simples com
suas propriedades constitutivas e aí observar
como interagem constituindo um tecido (uma
unidade composta) e, nesse caso, posso distinguir
a estrutura e organização deste tecido (o que é
outra forma de estudar Histologia). Ao tratar esse
tecido como uma unidade simples, passo a fazer
referência as suas propriedades constitutivas,
distinguindo aí um novo domínio fenomenológico.

Posso “voltar” a minha análise e distinguir


cada organela como uma unidade composta
distinta e, nesse caso, distinguir seus
componentes moleculares, sua organização e
estrutura, ou ainda, distinguir cada molécula (o
que fazemos ao estudar Biologia Molecular), cada
átomo e cada elemento subatômico (o que
fazemos ao estudar Química), em sucessivas
operações de análise, e em cada um desses casos,
distinguir diferentes unidades e

234
consequentemente, diferentes domínios
fenomenológicos.

Da mesma forma, posso distinguir


sistemas sociais como sendo unidades compostas
formadas por organismos (seus componentes) e
estudar a estrutura e organização dos diferentes
sistemas sociais que distingo, ou através de
síntese, trata-los como unidades simples, e nesse
caso, me interessa saber sobre suas propriedades
constitutivas, através das quais um sistema social
pode interagir com outros constituindo uma
antroposfera.

Não devemos esquecer: explicar todos os


fenômenos das distintas unidades que
distinguimos em um mesmo domínio
fenomenológico implica incorrer em um erro de
contabilidade lógica, ou na proposição de uma
explicação reducionista, no sentido que “reduz”
fenômenos de distintos domínios fenomenológicos
e os explica como pertencentes a um único
domínio. Diferentes domínios fenomenológicos
implicam diferentes domínios de determinismo
estrutural e distintas matrizes de coerências
sensoriais-operacionais-relacionar que em nossas
explicações podemos explicitar, quando nosso
“desejo’ é explicar o viver com elementos do
próprio viver, ou seja, ao assumir a relatividade
fundamental, como proponho.

Dentro do domínio de interações dos seres


vivos posso distinguir distintos processos ou
fenômenos e constituir diferentes domínios

235
fenomenológicos para explicar cada um deles. Por
exemplo, ao distinguir dentro do domínio de
interações o fenômeno que denomino “observar”
surge um “observador” e um novo domínio
fenomenológico de processos (domínio do
observador), com sua correspondente matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais, a
partir da qual explico todos os fenômenos que
ocorrem no observar do observador.90

Apesar de ser algo muito difundido e


valorizado, as abordagens interdisciplinares e
multidisciplinares facilmente nos levam a incorrer
em erros de contabilidade lógica e à elaborar
explicações reducionistas pelos motivos aqui
apresentados. Talvez muitas vezes nossos alunos
se sintam perdidos durante nossas explicações
justamente porque transitamos entre domínios
fenomenológicos distintos sem os avisar da
mudança observacional que fazemos e ainda
misturamos fenômenos e processos em um
mesmo domínio.

De volta ao fluxo do texto e aos


Sistemas Autopoieticos Moleculares
Segundo uma história que Maturana
costuma contar em muitas de suas palestras e
que aparece no livro “De Máquinas e Seres Vivos”
[15], em 1960 um aluno lhe fez uma pergunta a
respeito do que aconteceu quando a vida se

90
Faço toda essa reflexão principalmente baseado naquilo que está
explicado em [45].

236
originou na Terra, permitindo que a partir daí se
considerasse que os seres vivos passaram a
existir como tais. Essa pergunta, para a qual na
ocasião ele afirmava não ter uma resposta, fez
com que refletisse a respeito de quem são os seres
vivos.

Inicialmente Maturana considerava que


deveria explicar os seres vivos em termos de sua
autonomia como entes discretos que vivem como
unidades independentes [15], pois este era o foco
das suas reflexões e das reflexões de outros
cientistas da época. Considerando os resultados
dos seus estudos sobre a neurofisiologia da
percepção visual, a partir das quais concluiu que
é a estrutura dos seres vivos que permite e dá
origem a tudo o que ocorre com eles (como
expliquei anteriormente), ele reformulou sua
pergunta na busca pela compreensão de que tipo
de sistemas (ou unidades compostas) os seres
vivos são.
A partir daí passou a buscar uma
explicação em termos mecanísticos,
considerando o determinismo estrutural e que as
propriedades de um sistema, ou as características
de um fenômeno, são geradas pelas relações entre
os seus componentes ou processos constituintes e
não podem ser encontradas nas propriedades
destes componentes ou processos.

Foi então que, ao invés de tentar encontrar


as propriedades exclusivas que caracterizavam
todos os seres vivos, ou se questionar sobre o que

237
é a vida, ele e Francisco Varela utilizaram a
concepção segundo a qual o que caracteriza toda
classe de entes que nós distinguimos como
observadores e classificamos como seres vivos é a
sua organização. A partir daí buscaram
determinar o que um observador deveria
distinguir de forma que ao fazer essa distinção o
resultado seria um ser vivo (visto como sistema
vivo) e para isso deveriam descrever a organização
que os caracteriza como tais [128]. Então sua
pergunta passou a ser: qual organização
caracteriza os seres vivos?

Ao optarem por não descrever os seres


vivos através de suas propriedades constitutivas
Maturana e Varela optaram por não os descrever
como unidades simples, pois essa opção
implicaria listar uma série de propriedades (como
respiração, reprodução, movimento) sem
questionar a respeito das suas origens, o que não
ia ao encontro do seu objetivo de compreender a
forma de ser específica dos seres vivos, decorrente
de sua organização. Optar pela descrição dos
seres vivos como unidades simples (através de
suas propriedades) seria optar por uma definição
através de “propriedades múltiplas não
exclusivas”, como a explicação do cientista
Alexander Oparin ao afirmar que a peculiaridade
dos seres vivos é que só neles havia uma
combinação extremamente complexa de
propriedades e que a vida não está caracterizada
por uma propriedade especial, mas por uma
combinação destas [126].

238
Eles denominaram a organização que
caracteriza os seres vivos de organização
autopoietica e, como consequência disso, os
seres vivos foram explicados como sendo
sistemas autopoieticos moleculares. Esse é o
conceito central da Teoria da Autopoiese de
Maturana e Varela que constitui, juntamente com
a explicação da evolução através da Deriva
Natural, a Biologia do Conhecer, como expliquei
no início deste livro.

Sistemas cuja organização é autopoietica


molecular (ou seja, os seres vivos) operam como
uma rede discreta de componentes moleculares
inter-relacionados, ou seja, uma rede de
componentes moleculares em um espaço
específico, que produz os mesmos componentes
que a constituem [15]. Dito de outra forma:

Um ser vivo ocorre e se constitui na dinâmica de


realização de uma rede de transformações e
produções moleculares, de forma que, todas as
moléculas produzidas e transformadas no operar
dessa rede fazem parte dela, e através das suas
interações: (1) geram a rede de produções e
transformações que as originou; (2) dão origem às
bordas e à extensão dessa rede como parte de seu
operar dentro dela, de modo que ela está fechada
sobre si mesma constituindo um ente molecular
discreto – separado do meio molecular que o
contém; e (3) configuram um fluxo de moléculas
que ao incorporar-se na dinâmica dessa rede
passam a ser seus componentes, e ao deixar de
participar dessa dinâmica deixam de ser seus
componentes e passam a fazer parte do meio.

239
Essa é a dinâmica que caracteriza os seres vivos
como sistemas autopoieticos moleculares. [15].

Através de uma argumentação muito


interessante (apesar de fazer algumas afirmações
que não condizem com a Teoria da Autopoiese de
Maturana e Varela) Razeto-Barry propõem uma
reformulação da explicação sobre autopoiese 91,
afirmando que:

Um sistema autopoietico é uma rede de


processos que produz todos aqueles
componentes cuja produção interna é
necessária para manter esta rede operando
como uma unidade [126].

Em um sistema autopoietico não há


diferença entre o produto e o produtor, o que leva
à conclusão que o ser e o fazer nos sistemas
autopoieticos são indissociáveis. Essa forma de
falar sobre os seres vivos capta a constituição de
sua autonomia como sistemas nos quais tudo o
que se passa com eles tanto em seu operar como
unidades discretas (no espaço definido pelos seus
componentes, como unidade composta), tanto em
sua dinâmica relacional (como unidades simples),
se refere apenas a eles mesmos [15]. Isso porque
sistemas autopoieticos moleculares só admitem

91
Este autor propõem ainda uma outra explicação mais detalhada, e
discute a respeito do que implica ou não esta definição. Não será
apresentada neste trabalho por fugir ao escopo dos meus objetivos, mas
vale a pena consultar para quem pretende se aprofundar a respeito.

240
mudanças compatíveis com sua estrutura e
manutenção da organização, o que implica, como
você já sabe, que nesses sistemas há um
determinismo estrutural: tudo o que ocorre com
eles é “determinado” pela sua estrutura [45].

Sendo assim, como sistema autopoieticos


moleculares os seres vivos não operam vinculados
à propósitos, finalidades ou funções, ou seja, não
se aplica a eles nenhum tipo de teleonomia [2,5].

Dito de outra forma, cada vez que um


observador distingue uma unidade composta na
qual tudo o que ocorre com ela em cada instante
ocorre na realização das coerências operacionais e
relacionais dos seus componentes no domínio de
sua composição, dizemos que o observador
distinguiu uma unidade composta determinada
em sua estrutura e, a partir disso, denominamos
determinismo estrutural a abstração que
realizamos como observadores das coerências
sensoriais-operacionais-relacionais de nosso viver
que permitiram a distinção da unidade composta
em questão [13].

Como cientistas, através de explicações


mecanísticas, só podemos tratar com unidades
determinadas estruturalmente e agimos em nosso
dia-a-dia na confiança do determinismo
estrutural [12], mesmo sem nos darmos conta
disso. A noção de determinismo estrutural diz
que:

(1) tudo o que distinguimos opera de


acordo com as coerências sensoriais-

241
operacionais-relacionais a partir das quais surge
no ato de distinção do observador,

(2) o que é distinguido por um observador


surge como um sistema, ou como parte de um
sistema e

(3) que o que distinguimos como algo


externo e que pode atuar sobre um sistema não
especifica ou determina o que ocorre ao sistema
em questão, mas apenas “gatilha”, “induz” ou
“guia” o curso das mudanças estruturais que são
determinadas pela sua estrutura no instante
deste encontro [2].

Insisto em explicar mais a respeito do


determinismo estrutural porque esta é outra
concepção importante, e para isso trago um
exemplo de Maturana e Varela que é ilustrativo do
determinismo estrutural e de como atuamos no
mundo na confiança de que ele implica em tudo
que implica, assim como já fiz anteriormente:

Se o carro não sai do lugar quando apertamos


o acelerador, jamais pensamos que a falha seja
no pé que exerce a pressão. Supomos que o
problema esteja na comunicação entre o
acelerador e o sistema de injeção; ou seja, na
estrutura do automóvel. É por isso que os
defeitos nas máquinas construídas pelo
homem revelam mais sobre a operação efetiva
destas do que as descrições que fazemos
quando funcionam bem. Na ausência de
defeitos, abreviamos nossa descrição dizendo,
por exemplo, que demos “instruções” ao

242
computador para que nos forneça o extrato de
nossa conta corrente. [12]

Nós, seres humanos, vivemos em nosso


operar como sistemas autopoieticos moleculares
num presente cambiante contínuo; o passado e
o futuro são “invenções explicativas” criadas pelo
observador, como modos de viver o presente que
se vive. Cada instante deste presente implica a
história que lhe deu origem, mas que vivemos no
presente [5,13].

Consequentemente, nosso viver


“simplesmente” nos ocorre, nós não o fazemos,
pois os processos que constituem a autopoiese
molecular que caracteriza nosso viver biológico
ocorrem espontaneamente, a partir da estrutura
dinâmica das biomoléculas e da agitação térmica
que surgem no ato de distinção em nosso operar
como observadores [13]. Finalidades, objetivos e
propósitos pertencem ao domínio de interações e
são parte das explicações propostas por um
observador.

Intersecção Estrutural, Unidades


Conceituais e Concretas
Na composição de um sistema as relações
que determinam a dinâmica de interações e
transformações dos seus componentes, e
consequentemente seu estado como um todo,
constituem sua organização.

243
Essas relações são definidas por certas
propriedades desses componentes (quando
distinguidos como unidades simples) e é
necessário considerar estas propriedades para
que, a partir de suas interações, seja possível
“induzir” ou “inferir” as relações definidoras da
organização em questão [15]. Mesmo em um
sistema que é “identificado” conceitualmente,
embora sua estrutura não seja observável, é
possível induzir sua fenomenologia ao reconhecer
sua organização [15].

Desde que as propriedades dos


componentes sejam mantidas, a natureza deles
em si não tem importância. Isso implica que
diferentes componentes podem “possuir” as
mesmas propriedades e, consequentemente, um
sistema pode se materializar através de distintas
configurações estruturais. É isso que permite
utilizar próteses em articulações, ou em
substituição a algum dente perdido, e o grande
desafio da bioengenharia é desenvolver próteses
com propriedades cada vez mais próximas
daquelas dos componentes orgânicos originais. A
substituição de componentes nervosos por
componentes eletrônicos com propriedades
similares (em termos elétricos e computacionais,
por exemplo), por exemplo, já permite criar
interfaces cérebro-máquina e até mesmo
interfaces cérebro-cérebro [6,14,127].

Isso também está por trás da extrema


versatilidade funcional do Sistema Nervoso, que
denominamos de forma genérica de plasticidade,

244
que é principalmente observada no cérebro. Este
sistema possui extrema redundância em relação
as possibilidades de “caminhos” que podem ser
“seguidos” para conectar estruturas entre si, pois
diferentes neurônios com propriedades similares
são capazes de estabelecer um grande número de
conexões com outros neurônios, tanto localmente
como a distância, formando circuitos neurais que
lembram verdadeiras redes de transmissão.

Por exemplo, em sua tese de doutorado o


neurocientista Miguel Nicolelis estimou a
quantidade de conexões polisinápticas possíveis
entre quarenta estruturas envolvidas no controle
das funções cardiovasculares e que mantinham
conexões monosinápticas entre si. Ele chegou a
conclusão que alguns pares dessas estruturas
podiam se conectar através de milhões de
possibilidades [6].

Além disso, quando neurônios são


lesionados ou morrem, aqueles que permanecem
ativos são capazes de “autorreorganizar” suas
propriedades fisiológicas, sua morfologia e a sua
conectividade, suplantando essa perda.

Os componentes de um sistema podem


apresentar outras propriedades sem relevância na
definição de uma organização, o que implica que
um mesmo conjunto ou subconjunto de
componentes pode ser compartilhado por outros
sistemas, constituindo diferentes organizações.
Nesse caso, como cada operação de distinção de
uma unidade faz surgir um domínio

245
fenomenológico diferente, diremos que haverá
uma intersecção estrutural entre esses
domínios, que é uma intersecção que se deve às
propriedades dos elementos que constituem sua
estrutura.

Sistemas podem apresentar intersecção


estrutural, mas nunca uma “intersecção
organizacional”, pois cada sistema é o que é
devido a sua organização peculiar. Podemos,
entretanto, distinguir conjuntos com subclasses
de sistemas, como por exemplo, ao considerar o
Sistema Nervoso e os demais sistemas orgânicos
como parte do grande sistema autopoietico que
são os seres vivos humanos.

Além de unidades simples e compostas um


observador pode distinguir outros dois tipos de
unidades: conceituais ou abstratas, e materiais
ou concretas.

Uma unidade conceitual ou abstrata


“surge” quando o observador a distingue dentro
de seu próprio domínio de descrições, sem que
ela tenha uma existência material.
Necessariamente essa existência depende de um
domínio linguístico compartilhado e do linguajear.

Uma unidade material ou concreta “surge”


num domínio especificado pelo espaço de
existência dos seus componentes, no qual o
observador pode “estabelecer” tal unidade ao
interagir com ela. Com isso este observador põe
efetivamente em ação as propriedades definidoras

246
e o “funcionamento” da unidade material no
espaço físico.

Distintas classes de unidades


necessariamente diferem no domínio em que se
estabelecem e, sendo assim, só podem interatuar
se houver intersecção estrutural entre esses
domínios [15], ou seja, uma unidade abstrata
pode interatuar com uma unidade material desde
que haja intersecção estrutural entre elas 92. É isso
que está por trás da natureza biológico-cultural
dos seres vivos.

Um sexto parêntese para reflexão


As diferentes disciplinas ou áreas do
conhecimento constituem diferentes domínios
linguísticos, o que implica que dizem respeito a
diferentes domínios fenomenológicos e de
determinismo estrutural que distinguimos dentro
do nosso domínio existencial de interações, onde
atuamos como organismos e como observadores
no linguajear.

Tomando como exemplo as Ciências


Biológicas, há certos fenômenos e entes que são
distinguidos como unidades concretas, enquanto
92
Vou conter meu impulso de aprofundar essa discussão, mas considero
que isso permitirá colaborar na compreensão de um grande dilema que
permeia as neurociências cognitivas e os estudos da mente e da
consciência: o dualismo mente-corpo versus o monismo. Assumindo o
dualismo uma grande dificuldade é compreender como um ente imaterial
(mente) pode interatuar com um ente material (corpo). A concepção de
intersecção estrutural pode favorecer esta compreensão. Ela ainda pode
ajudar a expandir o conceito de sincronicidade proposto por C. G. Jung.
Este será um tema para outro texto.

247
outros são distinguidos como unidades abstratas.
No primeiro caso temos as células, o coração, os
ossos e as diferentes moléculas. Não podemos
esquecer que aquilo que denominamos de
molécula de água, fêmur, coração e célula surgem
como unidades concretas a partir do ato de
distinção do observador e só apresentam uma
existência efetiva para aqueles que compartilham
do domínio linguístico onde todos estes entes
surgem como tais. Eles são unidades concretas,
pois podemos interagir com eles através de suas
propriedades constitutivas no domínio físico,
como expliquei anteriormente, enquato só
podemos interagir com as unidades conceituais
ou abstratas dentro do nosso domínio de
descrições. O que ocorre é que quando um aluno
aprende sobre as células ou o coração, mas não
interage com estes entes concretos no plano físico
de forma que possa interatuar com suas
propriedades constitutivas, vou considerar que
neste momento estes entes “se tornam” entes
abstratos, pois o aluno só interage com eles no
domínio de descrições.

Considerando que as condutas linguísticas


são coordenações de ação e que no linguajear
utilizamos estas condutas para coordenar outras
ações, é típico de nosso operar no linguajear
interagirmos com certos entes no domínio de
nossas descrições e que com isso os entes que
tem uma existência concreta passem ser
distinguidos como entes conceituais ou abstratos,
e que os tratemos como “abstrações”. Então, ao

248
ensinar em sala de aula sobre as células, vistas
como unidades (simples) fundamentais dos seres
vivos, listamos suas propriedades e o aluno
precisa fazer uma “abstração” para poder interagir
com estas propriedades apenas através do
domínio de descrições, já que não está
efetivamente interagindo com as células no plano
físico.

Diferentemente, um pesquisador interage


com os entes concretos através da
experimentação e aí “põe a prova” as propriedades
destes entes que já são conhecidas e distingue,
através dos seus experimentos e do seu
reflexionar, novas propriedades às quais nos
referimos quando dizemos que os cientistas fazem
descobertas.

A partir desta reflexão afirmo que aí está


uma diferença fundamental entre um aprender
conceitual que se realiza de forma teórica e que é
típico das aulas em ambientes escolares, em
comparação a um aprender prático que se
realiza de forma experimental durante atividades
de pesquisa. Enquanto no aprender conceitual
operamos num domínio de descrições e lidamos
com entes conceituais que abstraímos pela falta
de contato com os entes concretos que são
homólogos a eles, no aprender prático temos a
oportunidade de distinguir as propriedades dos
entes concretos com os quais interagimos e
distinguir novas propriedades através do contato
com estes entes no plano físico.

249
Enquanto o aprender prático implica numa
“vivência direta”, o aprender conceitual é
exclusivo dos seres linguajeantes como nós e
ocorre na dependência do quanto aquele que
aprende têm “fluência” no campo das descrições e
apropriação de um domínio linguístico. Considero
que a quase totalidade do que aprendemos nos
ambientes escolares diz respeito à apropriação de
distintos domínios linguísticos para que o
estudante seja capaz de linguajear utilizando
estes domínios, o que requer uma “capacidade” de
abstração. Isso é um nível de “produção de
conhecimento” pelo estudante diferente da
“produção de conhecimento” que ocorre nos
ambientes de pesquisa, no qual há interações não
apenas no domínio de descrições, mas também no
plano físico, possibilitando a criação de novos
domínios linguísticos a partir do trabalho
experimental. Dito de outra forma, enquanto o
aprender conceitual leva à apropriação de um
domínio linguístico já existente, o aprender
prático favorece, além disso, a criação de novos
domínios linguísticos. A seguir voltarei a refletir a
este respeito, pois é neste ponto que reside a
importância do conversar para (aprender).

Levando tudo isso em consideração e ainda


tomando como referência as Ciências Biológicas,
quando aprendemos sobre diferentes disciplinas
estamos aprendendo a fazer distinções dentro de
um domínio linguístico e de determinismo
estrutural específicos. Aquilo que denominamos
de “célula” pode ser um componente de mais de

250
um destes domínios e em cada um deles participa
através de diferentes propriedades. Logo, há
intersecção estrutural entre os domínios
linguísticos que dizem respeito à diferentes
disciplinas ou campos do conhecimento, mas
devemos lembrar que por se tratar de diferentes
domínios de determinismo estrutural, a célula
que a biologia celular estuda é diferente da célula
que a biologia molecular ou a histologia estudam.
Não devemos esquecer disso e das suas
implicações no momento de fazer reflexões e
propor explicações interdisciplinares, que podem
levar à erros de contabilidade lógica.

Em uma aula sobre o sistema digestório


podemos explicar sobre a ingestão do alimento,
seu trajeto por um sistema macroscópico de tubos
(o tubo digestivo), as secreções da mucosa
gástrica, a digestão enzimática no nível molecular,
a mistura macroscópica que denominamos
“quimo”, o controle hormonal que o sistema
endócrino exerce sobre o sistema digestório.
Fazemos isso projetando todos estes fenômenos
que pertencem a diferentes domínios no mesmo
domínio do observador e dizemos que este é o
domínio do operar, ou da fisiologia do corpo
humano. Assim como Maturana assinalou em
relação os pesquisadores do MIT, ao pesquisarem
sobre inteligência artificial, ao fazermos isso
estamos misturando fenômenos do domínio do
operar dos seres vivos como sistemas
autopoieticos moleculares com fenômenos do

251
domínio de interações e do observador, incorrendo
em um erro de contabilidade lógica.

Fazemos isso com tanta frequência e


“naturalidade” que não temos ciência das suas
implicações. Foi refletindo a esse respeito a partir
da Biologia-Cultural do Conhecer que consegui
compreender por que era tão comum que após
uma aula nesses moldes meus alunos me
surpreendessem com perguntas como: mas onde
fica a célula da mucosa gástrica? De onde veio a
glicose que está sendo absorvida pelo intestino?
Tudo isso está acontecendo dentro do corpo? Para
nós, professores, isso gera uma “sensação de
frustração”, pois consideramos serem questões
óbvias principalmente para alunos que estão em
um curso superior. Então dizemos que o aluno
não prestou atenção na aula, pois isso foi dito
desde o início, ou ainda, que isso ele já deveria
saber (“como assim? perguntar a essa altura onde
fica a célula?”). Ou dizemos ainda que ele não tem
os conhecimentos básicos necessários e
concluímos que ele é um “mau aluno”. O que não
percebemos é que transitamos durante uma aula
desse tipo entre diferentes domínios
fenomenológicos sem necessariamente informar
isso aos nossos alunos, e então eles seguem a
mesma lógica: projetam todos os fenômenos no
mesmo domínio do corpo humano e não consegue
entender cadê a célula que ele não vê, a glicose
que dizemos estar no alimento e que depois do
processo absortivo aparece no sangue e isso não
se deve a uma incapacidade desse aluno, a uma

252
limitação cognitiva, falta de inteligência ou falta
de motivação (isso pode ser o caso). Muitas vezes
isso deve-se ao fato de não que especificamos as
matrizes de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais a partir da qual cada um desses entes
e fenômenos foi distinguido e consequentemente
não utilizamos “estratégias” para que nós e os
nossos alunos possamos operar dentro de uma
mesma matriz e a partir disso, possamos realizar
as mesmas operações de distinção e distinguir a
mesma célula da mucosa intestinal, a mesma
glicose que ora está no alimento e ora aparece no
sangue.

De forma geral em nossas aulas nós


mudamos de domínios, distinguimos a partir de
matrizes de coerências que são nossas (dentro das
quais aprendemos culturalmente a operar) e
cometemos erros de contabilidade lógica, mas
“exigimos” que os alunos façam distinções sem
compreender a matriz de coerências a partir das
quais eles operam, pois muitas vezes não
atentamos nem mesmo para as distintas matrizes
a partir da qual nós mesmos operamos.

Quando ensinamos sobre o Sistema


Nervoso acrescentamos um “complicador” a mais,
pois mudamos de domínio da mesma forma, mas
além de entes materiais distinguimos com maior
frequência entes conceituais ou abstratos (como
sensações, percepções, memórias, emoções,
mente e consciência) e assim como não
especificamos a partir de qual matriz de coerência
distinguimos aquilo que distinguimos,

253
misturamos domínios fenomenológicos e não
explicitamos de que forma estes entes abstratos
surgem e se relacionam com estes entes materiais
que distinguimos em nosso explicar. Além disso,
buscamos estabelecer relações causais, lógicas ou
emergentes entre os domínios aos quais
“pertencem” os entes concretos e os entes
abstratos, incorrendo desta forma em erros de
contabilidade lógica.

Em nosso operar biológico somos sistemas


autopoieticos moleculares, ou seja, um tipo de
unidade concreta que quando distinguido como
unidade simples interage com seu meio através de
suas propriedades constitutivas. Interagimos com
outras unidades concretas93 mas, devido às
propriedades de nossos componentes e à
organização que eles permitem, podemos interagir
também com unidades conceituais como, por
exemplo, com aquelas que geramos em nosso
linguajear e que são elementos de nosso domínio
linguístico (ou seja, são condutas linguísticas,
como explicado anteriormente).

É graças as propriedades das unidades


autopoieticas moleculares (tratadas como
unidades simples em seu domínio de interações) e
à intersecção estrutural que seus componentes
propiciam que podemos interagir também com
unidades conceituais (geradas pelo nosso operar
no comunicar e no linguajear) e tudo isso se
realiza através de nosso ser como sistemas
93
E se isso ocorre é porque há intersecções estruturais com essas demais
unidades com as quais interagimos.

254
autopoieticos moleculares. É isso que permite que
nossa dimensão biológica se entrelace com nossa
dimensão cultural e nos constitui como seres
biológico-culturais.
Tendo em vista essas reflexões, cabe agora
a pergunta: como podemos manter nossa
contabilidade lógica e transitar entre distintos
domínios fenomenológicos, estabelecendo relações
entre eles sem elaborar explicações reducionistas?
Como podemos explicar os diferentes aspectos do
nosso viver, que se concretizam em nosso ser
biológico, mas que dizem respeito a fenômenos
que pertencem a distintos domínios
fenomenológicos culturais? Para isso precisamos
compreender de que forma os distintos domínios
fenomenológicos que geramos a partir de nossas
operações de distinção se relacionam entre si
através do observar do observador.

De volta ao fluxo do texto e ao


Observar e o Observador
O que proponho e denomino de Biologia-
Cultural do Conhecer surge a partir do
entendimento da epistemologia unitária, da
relatividade fundamental, do operar do
observador e do observar [13].

Mas quem é o observador e o que é o


observar? Para esta abordagem explicativa um
observador é qualquer ser humano que em suas
distinções distingue a si mesmo em seu observar

255
[2]. Logo, o observador não é um ente
transcendente e, assim como tudo aquilo que
distinguimos em nosso viver, surge quando
distingue seu observar a partir de seu próprio
observar.

É no domínio de interações que existimos


como observadores, operando no linguajear e é aí
que podemos fazer explicações, ou seja, o domínio
do observador surge a partir de distinções dentro
do domínio de interações e constitui um novo
domínio fenomenológico. Consequentemente, o
ser humano é observador na experiência, ou no
seu viver-conviver no linguajear [40].

O observador e o observar surgem no fluxo


de mudanças estruturais entre membros de uma
comunidade de observadores que coordenam suas
ações consensuais através de interações
recorrentes no domínio das suas práxis do viver
conectadas [13]. Ao nos perguntarmos sobre
nosso operar como observadores, a partir de
nosso ser biológico-cultural, queremos evocar as
configurações de processos biológicos, ou seja, a
matriz de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais que deram origem a seres como nós
que podemos questionar nosso viver, reflexionar e
conhecer [2]. É a partir desse operar que podemos
explicar aquilo que distinguimos em nosso
observar, inclusive explicar a nós mesmos como
observadores.

O observar permite a reflexão, que ocorre


como um conversar, no qual o ser humano

256
distingue seu próprio operar; logo todo ato de
reflexão ocorre no operar do observador [13].

Toda explicação é uma reconstrução ou


uma reformulação da experiência, que deve ser
aceita por um observador [40], que pode ser outra
pessoa ou a mesma pessoa que faz a explicação,
como a proposição de um mecanismo gerativo que
em seu operar gera, em nosso viver, a experiência
ou fenômeno que queremos explicar. Nesse
sentido, as explicações não tem uma existência
em si mesmas, mas implicam relações reflexivas
[2].

Duas operações podem ser realizadas por


um observador ao realizar uma explicação:

(1) ele pode distinguir um sistema ou


fenômeno a ser explicado, ou

(2) ele pode distinguir componentes e suas


relações de forma a permitir a reprodução
conceitual ou concreta do fenômeno ou sistema a
ser explicado [45].

Ou seja, o observador pode distinguir


unidades simples e compostas, como você já sabe.

Uma explicação mecanística implica a


definição implícita ou explícita de uma
organização e de uma estrutura por um
observador e todo sistema que surge de uma
explicação mecanicista necessariamente é
determinado em sua estrutura [45]. Como o
critério que valida uma explicação é a aceitação
dessa explicação por outro observador ao qual a

257
explicação se dirige, logo “(...), há tantos explicares
diferentes quantos modos de escutar e aceitar
reformulações da experiência” [40].

Ontogenia e Acoplamento Estrutural


Cada vez que no observar do observador
certas relações começam a se conservar entre um
conjunto de elementos, configurando uma
organização específica, isso abre espaço para que
tudo mude em torno das relações que se
conservam e surge então, no ato de distinguir do
observador, uma unidade composta [2]. Logo, o
que define o que pode mudar no devir de qualquer
sistema são as relações que se conservam nele, ou
seja, sua organização [13].

A ontogenia é a história de mudanças


estruturais de uma unidade sem que esta perca
sua organização e sua adaptação ao meio que a
contém, e ocorre a cada momento desencadeada
por interações com esse meio, ou como resultado
de sua dinâmica interna [12]. O que
denominamos história é um devir de mudanças
estruturais em torno de algo que se conserva,
num processo irreversível e espontâneo [13].

Em nossa própria ontogenia, desde que


ocorre a fecundação do ovócito materno 94 por um
espermatozoide dando origem à célula ovo ou
zigoto, surgimos como sistemas autopoieticos

94
O gameta feminino “maduro” é o óvulo, mas quando uma mulher ovula
ela libera dos seus ovários uma célula que ainda não concluiu o processo
que permite torná-la um óvulo. Esta célula “imatura” é um ovócito.

258
moleculares, inicialmente como esta célula única.
Através de sucessivas divisões celulares origina-se
um embrião e posteriormente um feto, que com
seu desenvolvimento (ontogênese) dá origem ao
bebê que já fomos, à criança e depois ao adulto e
ao idoso, enquanto nossa autopoiese se mantiver.

Uma célula é um sistema autopoieticos


de primeira ordem, pois existe diretamente como
sistema autopoietico molecular. Os metacelulares
(pluricelulares ou multicelulares) como nós são
sistemas autopoieticos de segunda ordem, pois
são sistemas autopoieticos formados por
“agregados” celulares. É possível ainda falar de
sistemas autopoieticos de terceira ordem,
como os sistemas sociais ou sistemas eusociais,
formados a partir da “agregação” de organismos
[15].

A definição de sistemas autopoieticos de


segunda e terceira ordem é algo circunstancial em
relação a constituição dos seus componentes e
oculta a organização que caracteriza cada um
desses sistemas (ou seja, a que classe pertencem).
Dito de outra forma, podemos afirmar que um
organismo metacelular é um sistema autopoietico
molecular de segunda ordem, mesmo sem fazer
referência à organização que o caracteriza como
unidade composta. Sistemas autopoieticos de
ordem superior se realizam através da realização
da autopoiese dos seus componentes, mas não é
isso que os define como o que são e sim sua
organização particular [15], como você já sabe.

259
Assim como Maturana e Varela, não vou
refletir acerca de qual organização caracteriza os
metacelulares, mas apenas considerar que são
sistemas autopoieticos moleculares e que
constituem unidades autopoieticas de segunda
ordem. No prefácio da 5ª. edição do livro “De
Máquinas e Seres Vivos” Varela afirma que
discorda de Maturana a respeito dessa
constituição das diferentes ordens de sistemas
autopoieticos [15].

A questão é: de que forma as células se


“agregam” para formar metacelulares e de que
forma metacelulares se “agregam” para formar
sistemas sociais?

A formação de unidades autopoieticas de


ordem superior ocorre através do processo de
acoplamento estrutural e é este mesmo processo
que permite aos organismos, como unidades
simples, interagirem com seu meio-nicho (e vice-
versa) num viver-conviver com suas ontogêneses
acopladas em uma deriva natural.

Ao surgirem na distinção do observador as


unidades autopoieticas especificam um entorno e,
consequentemente, o meio ambiente que as
contém e permite sua existência, que é seu meio-
nicho, ou nicho ecológico. Ocorre que os seres
vivos estão em plena conformidade, ou seja, em
acoplamento estrutural com esse nicho de forma
que constituem uma nova unidade com ele. É a
partir disso que dizemos que os seres vivos são
sistemas ou unidades dinâmicas operacionais-

260
relacionais organismo-nicho. Isso faz referência
ao fato que essas unidades dinâmicas existem
simultaneamente em dois domínios
fenomenológicos distintos (seu domínio
“operacional” e seu domínio “relacional”) e que
estão em acoplamento estrutural com seu nicho
(ou seja, são unidades organismo-nicho).

Cada vez que o comportamento de uma ou


mais unidades é tal que há um domínio no qual a
conduta de cada uma é função da conduta das
demais, dizemos que elas estão acopladas
estruturalmente nesse domínio. O acoplamento
estrutural surge como resultado das modificações
mútuas que as unidades interatuantes sofrem,
sem perder sua identidade, no transcurso de suas
interações.

O acoplamento estrutural também pode


conduzir à geração de uma nova unidade, como
as unidades autopoieticas de ordem superior (que
são unidades compostas), num domínio distinto
daquele em que as unidades acopladas
conservam sua identidade como unidades
simples, na dependência das propriedades das
unidades componentes [15]. Ou seja, quando dois
sistemas interagem de forma recorrente ambos
passam a ser fontes de perturbações recíprocas;
se essa interação for duradoura o suficiente e
dado o determinismo estrutural estas
perturbações guiarão um curso de mudanças
estruturais que ao serem observadas surgirão
como uma complementaridade entre os sistemas

261
que interagem, resultante das compensações de
cada sistema frente as perturbações recíprocas.

Para Maturana e Varela, quando um


observador assinala que ocorreu aprendizagem
isso é sinal que ocorreu um acoplamento
estrutural do organismo que aprende com a
“situação” em questão. Implica que a
aprendizagem é o reflexo de um acoplamento
estrutural [12] e que para compreender o
aprender devemos compreender este
acoplamento.

Considerando que a aprendizagem é um


fenômeno cognitivo e dada a indissociabilidade
entre o ser, o fazer e o conhecer (cognição),
precisamos compreender com mais clareza o que
distinguimos ao falar sobre cognição.

262
III

O que é a Cognição?

263
Como comentado anteriormente, para a
Biologia-Cultural do Conhecer aprender implica
que ocorreu um acoplamento estrutural. Sendo
assim, podemos especificar que todo aprender
ocorre a partir das interações que um organismo
realiza e, no caso dos seres humanos, esse
acoplamento pode ocorrer em diferentes domínios
de interações que surgem não só a partir de suas
interações com o ambiente, mas também em
interações sociais dentro de distintos domínio
linguístico, nas diferentes redes de conversações
nas quais ocorre nosso viver-conviver com outros
seres humanos.

Diferentemente do que propõem as demais


concepções para explicar o aprender e os
fenômenos cognitivos de forma geral, aprender
não diz respeito a adquirir condutas adaptativas a
um meio, a melhorar desempenhos, ou a captar e
armazenar informações provenientes do ambiente
ou de outros seres vivos. Considerando a
relatividade fundamental, vou explicar o aprender
como uma ação humana a partir da qual “surge”
o aprendido e explicitar a matriz de coerências a
partir da qual vou construir minhas explicações.
Isso já tenho feito até aqui, ao refletir sobre
diferentes matrizes de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais a partir da qual surgem
diferentes concepções sobre os seres vivos e sobre
o ser humano, apontado para aquelas coerências
sensoriais-operacionais-relacionais que vou ou
não assumir em minha explicação.

264
Agora vou fazer o mesmo em relação a
cognição e os fenômenos cognitivos, dentre os
quais identifico o aprender.

A Cognição e os Fenômenos
Cognitivos
A busca pela compreensão dos
mecanismos do conhecer tem motivado a
curiosidade humana muito antes de ser pauta
das discussões científicas. Em termos filosóficos
esta busca tem sido pelo “em si” das coisas, do
nosso próprio ser e de uma realidade
transcendente (interesse também compartilhado
pela teologia), e em termos neurocientíficos pode
ser expressa por meio de perguntas pelos
mecanismos através dos quais nossos órgãos
sensoriais são os mediadores de nosso acesso a
essa realidade (num processo de desconstrução e
reconstrução das informações do meio), ou pela
forma como emerge (a partir do funcionamento do
Sistema Nervoso) a noção de eu, a consciências,
os comportamentos e os distintos processos
mentais que caracterizam o ser humano.

Em seu livro “Fundamentos da


Neurociência e do Comportamento”, o
neurocientista e prêmio Nobel Eric Kandel afirma
que “talvez a última fronteira da ciência seja a
compreensão da base biológica da consciência e
dos processos mentais pelos quais percebemos,
agimos, aprendemos e lembramos” [73]. Esses
processos são denominados em seu conjunto de

265
“processos cognitivos”, “processos mentais”,
“mente” ou “cognição”, e fazem referência ao
processamento das informações sensoriais que
chegam ao Sistema Nervoso a partir do ambiente
externo ou interno, ou ainda, a todos os processos
cerebrais envolvidos na determinação de
comportamentos adaptativos e que favoreçam a
sobrevivência, tanto em animais como em
humanos [129].

Essas concepções não são compartilhadas


pela Biologia-Cultural do Conhecer, que considera
que não há “informações” a serem processadas ou
representações de informações do meio, tampouco
que as condutas de um organismo visam a
sobrevivência ou a adaptação, já que não há uma
finalidade, mas um constante vir a ser
espontâneo, dentro de um dado domínio de
determinismo estrutural.

Quando maturana e Varela afirmam que


“todo fazer é um conhecer, e todo conhecer é um
fazer” isso traz uma perspectiva mais ampla para
o que é o “conhecer”. Ao mesmo tempo que isso é
um grande diferencial dessa abordagem, implica
na necessidade de operações adicionais de
distinção para especificar ao que nos referimos ao
falar sobre memória, percepções, sensações e
aprendizagem, que são diferentes modalidades de
fenômenos cognitivos. No livro “Árvore do
Conhecimento”, por exemplo, a grande maioria
das explicações sobre o fenômeno do “conhecer”
tratam de fenômenos relacionados às percepções,
e foi essa a aproximação que propus inicialmente.

266
As Neurociências integram conhecimentos
de várias ciências biológicas (como a anatomia,
embriologia, farmacologia, genética e fisiologia) de
forma aplicada ao estudo das funções do Sistema
Nervoso. Dentre os objetos de estudo das
Neurociências estão os processos cognitivos. As
Ciências Cognitivas, por sua vez, também partem
de uma abordagem multidisciplinar, mas seu foco
de estudo desde sua origem são os processos
cognitivos. A conjunção de esforços entre as
Neurociências e as Ciências Cognitivas constitui
um novo campo de estudo denominado
Neurociências Cognitivas.

Em seu livro “Conocer”95 Francisco Varela


apresenta uma visão histórica do que denomina
Ciências e Tecnologias da Cognição, como um
conjunto de disciplinas inter-relacionadas cujo
interesse, assim como nas Neurociências
Cognitivas, é o estudo dos processos cognitivos
integrando perspectivas teóricas e tecnológicas.
Varela apresenta quatro etapas para mostrar de
que forma as explicações e perspectivas sobre a
cognição se desenvolveram a partir de 1940 [130].
Vou utilizar essa abordagem para distinguir
quatro paradigmas explicativos dos processos
cognitivos, mais ou menos consecutivos e
relacionados, que vou denominar: (1)
Epistemologias e Cibernética, (2) Cognitivismo e
Representações Simbólicas, (3) Conexionismo e
Relações Emergentes, e (4) Enação 96. Com isso

95
Conhecer.
96
Essa é a tradução do neologismo espanhol Ennación.

267
será mais fácil identificar o contexto histórico a
partir do qual surge a Biologia do Conhecer e a
Biologia-Cultural, que dão as bases para a
Biologia-Cultural do Conhecer.

Epistemologias e Cibernética
Entre os anos de 1940 e 1956 a proposta
da nova ciência da cognição, cujo objetivo era a
compreensão do “conhecer”, assumiu a forma de
distintas epistemologias, como a Epistemologia
Genética de Jean Piaget, a Epistemologia
Evolutiva de Konrad Lorenz e a Epistemologia
Experimental de Warren McCulloch. Ao mesmo
tempo, os esforços de cientistas como McCulloch,
John von Neumann, Norbert Wiener e Alan Turing
deram origem a uma nova Ciência da Mente que
foi posteriormente denominada Cibernética.

O aspecto fundamental de todas essas


abordagens é a visão de que o cérebro opera com
princípios lógicos, passíveis de serem expressos
através de formalismos lógico-matemáticos e que,
dessa forma, funciona como uma máquina
dedutiva [130].

A Epistemologia Genética de Jean Piaget,


por exemplo, propõe que inteligência é sinônimo
de adaptação e que ela se desenvolve em estágios
caracterizados por diferentes possibilidades de
operações lógicas sobre o mundo, partindo de um
estágio denominado sensório-motor em direção a
um estágio de raciocínio lógico-formal, onde se
torna pleno o uso da lógica interproposicional.

268
Essa é a lógica que permite compreender “a forma
como a inteligência atua quando quer deduzir com
objetividade, clareza e método, de forma exaustiva,
examinando todas as possibilidades possíveis”
[79].

No final da década de 1950 Maturana


colaborou com o grupo de McCulloch no MIT,
além de ter trabalhado com Norbert Wiener, o que
permite concluir que teve forte influência da
Cibernética em suas reflexões que levaram à
Biologia do Conhecer.

As concepções da Cibernética deram


origem a uma série de avanços tecnológicos como:
os ordenadores digitais de Von Newmann, que
deram origem às Máquinas de Turing (que são a
base da arquitetura dos computadores modernos);
os primeiros robôs parcialmente autônomos; a
Teoria dos Sistemas e a Teoria da Informação.
Ainda hoje essas abordagens têm muita influência
sobre a compreensão da cognição, não só pelo
sucesso das aplicações tecnológicas que
permitiram, mas principalmente pela genialidade
das ideias compartilhadas por seus precursores.

A Teoria dos Sistemas, por exemplo,


trouxe uma mudança de foco se contrapondo à
visão reducionista existente desde Rene
Descartes. A influência dessa abordagem na
proposição da Biologia-Cultural do Conhecer pode
ser observada, por exemplo, pelo uso das
concepções sobre unidades simples, unidades

269
compostas (sistemas), estrutura e relações de
organização (organização).

Um excelente exemplo da abordagem


Cibernética é o trabalho de McCulloch e Pitts de
1943 intitulado “Um cálculo lógico imanente da
atividade nervosa”, que propõe a lógica como
disciplina para compreensão do funcionamento
cerebral e uma forma de concretização de cálculos
lógicos através dos neurônios [130]. É aí que se
estabelece a ideia, ainda hoje muito difundida, do
cérebro funcionando como computador binário-
digital no qual cada neurônio atua como um
autômato que pode assumir os estados ativo
(disparando potenciais de ação = 1) ou inativo (em
potencial de repouso = 0) e no qual as conexões
sinápticas atuam como operadores lógicos, ideia
que se tornou reconhecida como o Modelo dos
Neurônios de McCullloch-Pitts.

A computação binário-digital permite a


manipulação de informações denominadas
Informações Extrínsecas, Informações de
Shannon e Turing, ou Informações do Tipo I,
que são aquelas obtidas através de medidas
experimentais, ou "de fora do cérebro", como
aquelas obtidas de quaisquer outros sistemas
físicos. São informações simbólicas no sentido
que precisam ser "decodificadas" [14] e que por
este motivo não são prontamente compreensíveis.
É daí que vem a noção de processamento das
informações, que implica que estas informações
devem ser captadas e posteriormente
decodificadas pelo Sistema Nervoso para que

270
sejam compreendidas. Essa abordagem deu as
bases para um novo paradigma denominado
Cognitivismo, que é o tema da próxima seção.

Todos os desenvolvimentos tecnológicos e


teóricos provenientes da abordagem Cibernética
levaram a compreensão de que a mente opera
como um mecanismo [130] e deram as bases
para os desenvolvimentos posteriores das
Neurociências Cognitivas.

Cognitivismo e Representações
Simbólicas
Esse paradigma também é conhecido como
Ciência Cognitiva Clássica. É uma decorrência
dos conhecimentos desenvolvidos pela Cibernética
e tem início em 1956 a partir de uma série de
encontros que definiram novos rumos para o
estudo dos processos cognitivos. Seus
precursores são Herbert Simon, Noam Chomsky e
Marvin Minsky. A hipótese cognitivista é que a
mente opera de forma lógica, ou como um
computador, e que a cognição pode ser
compreendida como a computação de
representações simbólicas [130].

Um dos argumentos filosófico que dá base


ao Cognitivismo é o realismo: uma tradição
filosófica muito difundida na civilização ocidental
que se baseia na ideia de que há um mundo real,
externo ao sujeito, que dá origem as suas
experiências [41]. O realismo está na origem
daquilo que Maturana denomina "objetividade

271
sem parêntese". Com a ênfase no realismo o
aspecto subjetivo das experiências foi por muito
tempo relegado a um segundo plano por não ser
passível de quantificação, sendo considerado um
objeto de estudo não adequado às ciências.
Apenas com o desenvolvimento da Psicologia
como ciência, e especialmente com a “abordagem
fenomenológica”, esses processos tiveram sua
importância reconhecida e passaram a ser pauta
de estudos científicos. Voltarei a conversar sobre
isso a seguir.

Além do realismo, outra concepção que dá


suporte ao Cognitivismo é o Computacionalismo,
defendido por filósofos como Jerry Fodo e Hillary
Putnam. Ele se baseia na suposição de Church-
Turing e diz que: “qualquer função que é
naturalmente considerada como computável pode
ser computada por uma máquina universal de
Turing”, sugerindo que o cérebro de qualquer
animal, incluindo o ser humano, opera de forma
similar e pode ser simulado em um computador
digital a partir da execução de um algoritmo
apropriado, que é uma sequência ordenada de
operações matemáticas e lógicas [14].

Um cômputo é uma operação realizada


mediante um símbolo, que é um elemento que
representa algo, ou está no lugar de algo. Essa é
uma concepção de representação vista como
fenômeno interpretativo (denominada por
muitos de “abordagem fraca”), já que aquilo que
representa se faz passar por algo, considerando o
conceito de representação na perspectiva

272
semântica [130]. O foco do Cognitivismo é sobre a
capacidade representativa da cognição, também
conhecida como intencionalidade. Aqui este
conceito tem uma significação ligeiramente
distinta daquela apresentada anteriormente
(proposta por pesquisadores como Michael
tomaselo), que considera que intencionalidade é a
capacidade de compartilhar intenções tendo em
vista um objetivo comum.

As condutas inteligentes implicam a


capacidade de representar o mundo de certas
maneiras. A suposição é que o agente cognitivo
(por exemplo, o ser humano, ou seu cérebro) é
capaz de representar características relevantes
das situações com as quais se depara, que dizem
respeito a certos aspectos da realidade. Quanto
mais exatas tais representações, maior
possibilidade de êxito nas condutas desse agente.

Um estado mental é visto como a


representação de algo (uma realidade exterior ou
interior) na mente de um organismo. Atribuir uma
mente ao outro implica supor que o outro tem
intencionalidade (capacidade de representação),
assim como expliquei anteriormente sobre a
Teoria da Mente. A questão que se coloca aqui é
que nessa perspectiva cada indivíduo supõe que
todos têm acesso a uma mesma realidade; sendo
assim, se o outro tem um ponto de vista diferente,
está enganado.

Para o filósofo Michael Tomasello as duas


capacidades cognitivas que diferenciam os seres

273
humanos em relação aos demais animais são
justamente a capacidade de (1) atribuir
intencionalidade aos outros e de (2) interagir
culturalmente com os outros, o que considera
serem processos intimamente relacionados [116].

Um dos aspectos controversos do


Cognitivismo é supor que a cognição consiste em
atuar a partir das representações sobre o mundo
que adquirem realidade física na forma de códigos
simbólicos no cérebro, ou em uma máquina. Este
tipo de abordagem é denominada de computação
simbólica. Para que seja possível atribuir caráter
causal às representações é preciso mostrar como
elas assumem uma realidade física e como são
capazes de determinar comportamentos [130], o
que tem sido um grande desafio para aqueles que
defendem esta abordagem explicativa.

Na computação simbólica os símbolos


necessariamente precisam assumir uma realidade
física e outra semântica (de significados). Um
computador (bem como um cérebro), só é capaz
de atuar sobre o aspecto físico dos símbolos sem
acesso ao seu aspecto semântico. Como a
manipulação dos símbolos está limitada por uma
sintaxe, que no caso dos computadores diz
respeito a um algoritmo que define as operações
que podem ser realizadas sobre os símbolos, para
esta abordagem a semântica está implicada na
sintaxe. Sendo assim, uma expressão simbólica
possuidora de uma realidade física pode ser
correlacionada a um padrão de atividade cerebral,
[130] assumindo assim um significado.

274
Em um computador conseguimos
identificar que o aspecto semântico está
condicionado pela programação que é realizada
através de um algoritmo; a questão é conseguir
identificar de onde provém o aspecto semântico
das representações simbólicas que os
cognitivistas supõem estar registradas no cérebro.
Tal questionamento dá a base para a proposição
da perspectiva dos Fenômenos Emergentes que
será apresentada a seguir.

A ideia de que o cérebro obtém informações


a partir do ambiente (sob a forma de diferentes
modalidades de estímulos) que são processadas
em etapas sucessivas (a partir de receptores e vias
sensoriais específicas periféricas e centrais) e
posteriormente integradas em percepções da
realidade representadas no cérebro, ainda
constitui o paradigma mais influente no estudo
dos processos cognitivos e tem sido ensinada para
estudantes e pesquisadores nas Universidades.
Essa abordagem tem levado à procura das
diferentes vias e regiões cerebrais responsáveis
pelo processamento de diferentes atributos das
informações sensoriais e foi o paradigma
explicativo utilizado inicialmente por Maturana
em seus estudos sobre a percepção visual. Foi
quando Maturana não encontrou correlações
entre atributos específicos dos estímulos visuais e
a atividade elétrica das células ganglionares da
retina que concluiu que era necessário mudar seu
paradigma explicativo, como expliquei
anteriormente.

275
Em seu livro “Muito Além do Nosso Eu” [6]
o neurocientista Miguel Nicolelis traz uma
interessante abordagem histórica sobre as
concepções localizacionistas e as abordagens de
processamento distribuído para a explicação das
funções cerebrais. Partindo de pressupostos
claramente cognitivistas, sua discussão explora o
quanto a organização do processamento cerebral
no estudo das funções cognitivas segue padrões
hierárquicos, a partir de grupamentos neuronais
específicos, ou emerge da atividade de grandes e
distintas regiões cerebrais, com ampla
sobreposição funcional, de forma similar ao que
propõe o paradigma das Relações Emergentes
(que será discutido a seguir).

Outro aspecto interessante da obra de


Nicolelis é mostrar o quanto os paradigmas
explicativos estão subordinados não apenas ao
contexto histórico (em termos de teorias e
abordagens filosóficas), mas também às
limitações de ordem tecnológica, como pode ser
observado a seguir no relato do respeitado
neurocientista americano James T. McIlwain, que
permite ainda distinguir o efeito das “emoções”
sobre nossas hipóteses explicativas:

(...) o uso disseminado da técnica do eletrodo


único97 levou nossa abordagem experimental a se
concentrar no comportamento neurônio
individual e na possibilidade de que as

97
A técnica de eletrodo único diz respeito ao uso de um eletrodo de
registro para mediar a atividade elétrica em um neurônio por vez.

276
propriedades individuais dessa célula pudessem
definir aquilo que o cérebro realiza como um todo
(...) Posso dar meu testemunho pessoal de quão
sedutora era essa visão (...) é fácil esquecer que a
célula que você está monitorando é apenas uma
de muitas que estão respondendo ao mesmo
estímulo simultaneamente [6].

No mesmo sentido, Varela afirma que as


dificuldades no estudo das funções cognitivas e
suas relações com o operar do Sistema Nervoso
são tanto dificuldades teóricas como dificuldades
técnicas [130,131].

Resumindo: o Cognitivismo postula a


cognição como processamento das informações
através da manipulação de símbolos baseada em
regras (uma sintaxe que se relaciona a uma
semântica) e até hoje é o paradigmamais influente
no estudo dos fenômenos cognitivos.

Conexionismo e Relações
Emergentes
Era comum desde a época da Cibernética
que muitos pesquisadores tentassem localizar
engramas, que são uma forma física de
armazenamento das memórias no tecido cerebral.
Entretanto, vários dados experimentais indicavam
que os cérebros não armazenam informações em
locais definidos, parecem não conter regras e nem
um processador central.

277
Desde então já era conhecido o fato que os
cérebros operam através de uma rede massiva e
distribuída de interconexões, que se altera de
forma dinâmica frente às experiências e apresenta
uma capacidade auto organizadora que não é
própria dos fenômenos lógicos.

A compreensão de como um bebê pode


adquirir linguagem, identificar objetos e atribuir
intencionalidade a outros indivíduos a partir de
suas vivências diárias [132,133], a plasticidade
das funções cerebrais frente lesões ou a
flexibilidade dos processos cognitivos em se
adaptar à novas situações não podem ser
explicadas a partir de um paradigma Cibernético
ou computacional de base Cognitivista. As
representações simbólicas implicam um
processamento pontual e sequencial das
informações que traz uma série de limitações para
o processamento de informações complexas, como
o reconhecimento de padrões necessário para
distinguir imagens ou palavras. [130]

Segundo Nicolelis e Circurel, ao


estudarmos fenômenos atribuídos aos cérebros
humanos podemos identificar dois tipos de
“informações”, as Informações Tipo I ou
Extrínsecas (citadas anteriormente) e as
Informações Tipo II ou Intrínsecas [14].
Informações Tipo I, Extrínsecas ou de Shannon e
Turing, são aquelas obtidas através de medidas
experimentais (ou "de fora do cérebro") como as
que são obtidas de quaisquer outros sistemas
físicos. São informações simbólicas, no sentido

278
que precisam ser "decodificadas", como por
exemplo, o registro da atividade elétrica cerebral a
partir do Eletroencefalograma (EEG), da atividade
elétrica de neurônios ou de grupos de neurônios,
ou ainda, de trincas de bases nitrogenadas em
nucleotídeos em um fragmento de DNA.

Informações Tipo II, Intrínsecas ou de


Gödel, são aquelas obtidas através de
questionamento do sujeito sob investigação e seu
relato pessoal, e podem ser consideradas
“informações dentro do cérebro”. Não são
simbólicas e por este motivo são prontamente
compreendidas, já que seu significado é integrado
ao sistema que gera a “mensagem” (como um
cérebro). Elas permitem acesso ao que
denominamos experiências subjetivas do sujeito.

O foco das ciências desde Galileu Galilei


tem sido o estudo de fenômenos passíveis de
serem medidos e quantificados [128], na busca de
Informações Extrínsecas. Os aspectos qualitativos
ou subjetivos dos fenômenos, que se relacionam
às Informações Intrínsecas, por muito tempo
foram desconsiderados ou renegados a um
segundo plano, como comentei anteriormente.

Influenciado pelas abordagens


fenomenológicas, especialmente pelas ideias de
Marleau-Ponty, Francisco Varela propõe a
Neurofenomenologia como forma de abordar
aspectos subjetivos das experiências no estudo
dos fenômenos cognitivos [134,135], como será
explicado em outra seção.

279
Informações Extrínsecas, por serem
simbólicas, são passiveis computação binário-
digital através de sistemas de Neurônios de
McCulloch-Pitts, já que podem ser expressas e
manipuladas através de formalismos lógico-
matemáticos. O paradigma Cognitivista lida
apenas com esse tipo de informações. As
Informações Intrínsecas, por sua vez, emergem de
sistemas auto organizados e não são passíveis de
manipulação através do paradigma Cognitivista,
pois estão relacionadas a computações
analógicas e não binário-digitais [14]. Essas
informações só podem ser manipuladas e
compreendidas a partir do Paradigma das
Relações Emergentes. É a partir desse
paradigma que o cérebro passa a ser um modelo
de referência para o estudo dos processos
cognitivos, já que dentro de um paradigma
Cibernético ou Cognitivista são os resultados
tecnológicos que dão base às suposições acerca
desses processos.

Sem levar em considerações representações


simbólicas abstratas, o paradigma das Relações
Emergentes parte da consideração que
componentes do tipo neural, não inteligentes,
quando apropriadamente conectados através de
uma rede de conexões massivas apresentam
relações globais sem a necessidade de um
processador ou organizador central. O enfoque
aqui é na introdução das conexões apropriadas
entre os elementos da rede neural através de uma
regra de aprendizagem, que estipula mudanças

280
nos padrões dessas conexões a partir de um
estado inicial arbitrário [130], mudanças estas
decorrentes das interações da rede neural com o
seu entorno. Há várias regras de aprendizagem e
a mais explorada é a Regra de Hebb.

Em 1949 Donald Hebb observou que


quando um neurônio pré-sináptico participa
repetidamente do disparo de potenciais de ação de
um neurônio pós-sináptico (que recebe conexões
sinápticas a partir de vários neurônios) isso leva a
uma série de alterações fisiológicas e morfológicas
na estrutura das sinapses entre eles facilitando
sua eficiência, de forma que o neurônio pré-
sináptico passa a atuar de forma facilitada sobre
o neurônio pós-sináptico (Figura 14). Sinapses
que exibem estas propriedades ficaram
conhecidas como Sinapses Hebbianas [136].

Figura 14. Esquema respresentando as alterações


morfológicas que ocorrem em Sinapses Hebbianas entre um
neurônio pré-sináptico A e um neurônio pós-sináptico B.
Fonte: https://goo.gl/AqWdcB.

O fenômeno mais frequentemente


identificado com as Sinapses Hebbianas é a
Potenciação de Longo Prazo (Long Term
Potenciation, ou LTP) que tem sido proposto como
mecanismo responsável pela aprendizagem
associativa (Figura 15).

281
Figura 15. Esquema mostrando a Potenciação a Longo
Prazo (LTP). Um neurônio pré-sináptico A que será
estimulado faz sinapse com um neurônio pós-sináptico B
que será registrado. Antes da indução do LTP é possível
observar a amplitude do potencial pós-sináptico excitatório
(PPSE) registrado em B quando A sofre um estímulo de
intensidade X. Após a indução da LTP é possível observar
que a amplitude do PPSE registrado em B aumenta diante
do mesmo estímulo de intensidade X aplicado em A. Fonte:
adaptado a partir de https://goo.gl/s6TEhF.

Muitas pesquisas tem buscado o substrato


neural e bioquímico responsável pela
aprendizagem e pela memória através do estudo
da LTP. Entretanto, estudos recentes de Análise
Experimental do Comportamento mostraram que
há pouca relação entre as propriedades da LTP e
as propriedades da aprendizagem associativa
[137].A Regra de Hebb diz que a aprendizagem se
baseia em alterações cerebrais que surgem a
partir do grau de atividade correlacionada entre

282
neurônios. Esse modelo, que pode ser testado em
estudos de Inteligência Artificial (IA) através do
uso de redes neurais artificiais, propõe que:

(1) a aprendizagem ocorre a partir de


mudanças na estrutura cerebral, no nível
sináptico,

(2) o padrão de conectividade de uma rede


neural (biológica ou artificial) é inseparável de sua
história de transformações e relacionado com a
classe de tarefas que se propõe a esse sistema
[130].

Essa linha de investigação ficou conhecida


como Conexionismo [131]. Nesta abordagem
cada componente da rede cognitiva opera em seu
âmbito local, de modo que não há um agente
externo determinado o que ocorre ao sistema, o
que está de acordo com a aquilo que a Biologia-
Cultural do Conhecer denomina determinismo
estrutural. Dada a constituição de rede em que
operam seus componentes (neurônios), há uma
coordenação global que emerge espontaneamente
quando todos os neurônios participantes atingem
um estado mutuamente satisfatório. Desde o
tempo da Cibernética este estado de coordenação
global é conhecido sob as denominações de auto
organização, propriedades emergentes globais,
dinâmica de redes ou, sistemas complexos
[130].

A partir do enfoque conexionista os


símbolos em seu sentido convencional não
apresentam mais nenhum papel e a computação

283
simbólica é substituído pelas operações
numéricas. A dinâmica não-linear é a
matemática que descreve os sistemas complexos e
propõe que as propriedades desses sistemas
podem ser descritas em termos de atratores, que
são formas matemáticas de expressar as
propriedades emergentes de um sistema [130].

Uma das propriedades dos sistemas


dissipativos como os seres vivos (que apresentam
clausura operacional e abertura termodinâmica,
como explicado anteriormente) é o surgimento
espontâneo de novas formas de ordem quando
chegam em pontos de instabilidade. Estes pontos
são atratores e correspondem a pontos de
emergência de novas relações [128].

Há estados neurais emergentes para


tarefas que independem da experiência e da
história de interações, como os movimentos
oculares e o deslocamento balístico dos membros
durante a marcha e que, portanto, são
independentes da aprendizagem. Entretanto, a
maioria das tarefas cognitivas que desejamos
compreender dependem da experiência e para que
sejam estudadas através de IA é necessário
introduzir regras de aprendizagem, as quais
permitem à rede de conexões não apenas a
emergência de novas relações, mas a
possibilidade de sintetizar novas configurações.
Os estudos de redes neurais artificiais (RNAs) têm
utilizado dois paradigmas principais para isso: a
aprendizagem por correlação, que se baseia no
uso da Regra de Hebb, e a aprendizagem por

284
imitação ou retro propagação [130] . Há outros
paradigmas como o aprendizado supervisionado,
o aprendizado não-supervisionado (ou auto-
organização), aprendizado competitivo e o
reforço. As regras de aprendizagem utilizadas em
RNA determinam a forma de interação da rede
neural com o ambiente e entre os elementos da
própria rede [138].

Um dos grandes avanços da abordagem


Cognitivista foi a separação dos aspectos físicos e
semânticos dos símbolos. Um sistema cognitivo é
aquele que manipula os aspectos físicos do
símbolo respeitado seu sentido, já que o aspecto
semântico está cntido na sintaxe, mas a questão
que surge é: como os símbolos adquirem este
sentido? Na abordagem Cognitivista cada
elemento físico corresponde a um elemento
externo ao qual faz referência através de uma
função correlativa que pode ser provida facilmente
em situações controladas e simplificadas como,
por exemplo, quando se programa um
computador ou quando se realizam experimentos
nos quais há conjuntos de estímulos pré-
definidos. Para a abordagem Conexionista os
sentidos decorrem do estado global de ativação da
rede e emerge de seus componentes. Por este
motivo alguns pesquisadores se referem ao
Conexionismo como o Paradigma Subsimbólico.
Nesta perspectiva os princípios dos processos
cognitivos ocorrem num domínio subsimbólico
que está “por cima” do domínio biológico, o qual
está constituído por componentes da rede

285
dinâmica neural denominados símbolos
discretos [130]. Este domínio corresponde a um
domínios fenomenológico distinto do domínio
biológico, apesar de ambos estabelecerem uma
relação de interdependência.

Para Varela é possível integrar a


computação simbólica (do Cognitivismo) e a
emergência subsimbólica (do Conexionismo)
através de uma relação inclusiva na qual “vemos
os símbolos como uma descrição mais elevada de
propriedades que, em última instância, estão
embutidas em um sistema distribuído adjacente”
[130]. Outra perspectiva de correlacionar
fenômenos simbólicos (considerados como
Informação Extrínseca) e subsimbólicos
(considerados como Informação Intrínseca) é
apresentada no exemplo a seguir Nicolelis e
Circurel:

Na tentativa de descobrir o que se passa quando


um paciente observa fotografias contendo
imagens desagradáveis, um neurocientista pode
medir algum tipo de atividade elétrica cerebral
(por exemplo, o EEG) do sujeito sob observação
para obter informação do Tipo I [extrínseca]. Por
outro lado, o mesmo experimentador pode
simplesmente pedir ao sujeito exposto às fotos
que ele/ela expresse os seus sentimentos para
obter informação Tipo II [intrínseca]. Uma vez que
os dois conjuntos de dados tenham sido
coletados, o neurocientista tentará correlacionar
as suas medidas de EEG com o que o paciente
disse." [14]

286
Curiosamente na década de 1950 os
estudos de Humberto Maturana sobre as
percepções levaram à conclusão que não era
possível buscar correlações causais entre
parâmetros de estímulos luminosos (como o
comprimento da onda luminosa, que corresponde
à Informações Extrínsecas) e a percepção de cores
(correspondentes à Informações Intrínsecas).
Foram estes estudos que levaram à conclusão
sobre o determinismo estrutural e o fechamento
operacional do Sistema Nervoso [9, 11].
Entretanto, a explicação de Maturana não
compartilha o mesmo domínio lógico das
explicações de Nicolelis e Circurel, que partem de
um paradigma com forte influência cognitivista,
apesar de avançarem em suas conclusões em
direção a um paradigma de relações emergentes.

Nicolelis e Circurel afirmam que quando


medimos Informações Extrínsecas elas não
estarão necessariamente correlacionadas em
todas as circunstâncias às Informações
Intrínsecas obtidas simultaneamente. Segundo
estes pesquisadores isso ocorre porque em um
cérebro (ou de forma mais apropriada, no
organismo como um todo) as condições iniciais
nunca são as mesmas e ele é um sistema
complexo integrado e dinâmico que pode produzir
propriedades emergentes distintas a partir de
pequenas mudanças nessas condições iniciais
[14]. Dito de outra forma: o registro de parâmetros
do Sistema Nervoso, tais como medidas de EEG
ou de ativação de áreas cerebrais (que são

287
Informações Extrínsecas) nunca poderá ser
utilizado para prever com precisão as condutas de
um ser vivo, como a expressão de seus
sentimentos (uma Informação Intrínseca), ou seja,
não é possível que sejam obtidas relações causais
entre estes parâmetros.

A partir da Biologia-Cultural do Conhecer,


uma outra forma de explicar a relação entre
informações do Tipo I e do Tipo II é dizer que
pertencem a domínios fenomenológicos distintos
e, por este motivo, o observador não pode fazer
relações lógicas, causais ou emergentes entre
elas, mas apenas relações históricas ou
gerativas. A informação Tipo II é emergente no
domínio no qual aparece, mas não há relação
emergente entre Informações Tipo I e II entre si.
Voltarei a esta discussão a seguir.

Enação
Os conhecimentos da Cibernética, do
Cognitivismo e do Conexionismo, apesar dos
avanços que trouxeram para a compreensão dos
processos cognitivos, não dão conta de explicar
várias de suas dimensões. Isso porque todos eles
partem do pressuposto comum do realismo,
considerando que há uma realidade pré-existente,
externa e independente ao sujeito que conhece
[139] e que pode ser subdividida em domínios que
constituem regiões de elementos discretos com
características definidas, delimitando distintos
espaços dados de problemas [131]. Ocorre que

288
uma das mais surpreendetes característica da
nossa cognição consiste em fazer surgir as
questões relevantes a cada momento e não
apenas atuar dentro de domínios pré-definidos.
Um exemplo interessante é o Deep Blue,
um computador construído pela IBM
especificamente para jogar xadrez, ou seja, para
resolver problemas em um domínio específico (o
“mundo do xadrez”) a partir de certas regras pré-
definidas e de uma base de dados contendo mais
de 700 mil partidas entre experts. Sua capacidade
de processamento permite analisar 200 milhões
de posições por segundo através da utilização de
256 coprocessadores. Em 1996 o Blue jogou
contra Garry Kasparov (o melhor jogador de
xadrez de todos os tempos) e perdeu com uma
pontuação de 2 x 4. Só após ser atualizado em
1997 o Depp Blue venceu Kasparov com uma
pontuação apertada de 3,5 x 2,598. Isso mostra
que mesmo em um domínio específico é
necessária muita informação pré-definida para
que um computador tenha um desempenho um
pouco melhor que um ser humano. O mesmo
sucesso tem sido difícil em outros domínios, como
por exemplo, na simulação de movimentos
humanos, pois não há limites definidos para tal
domínio dadas infinitas possibilidades que só
podem ser determinadas pelo uso contínuo de
nosso “sentido comum”, que é nossa história
corporal e social [130]. Isso levou o pesquisador
Daniel Wolpert a afirmar que o motivo da
98
Fonte: pt.wikipedia.org/wiki/Deep_Blue - acesso em 20.11.17

289
existência de nossos cérebros é o controle de
movimentos, dada sua complexidade [140].99

O paradigma da Enação se baseia na


Fenomenologia e na abordagem filosófica de
pensadores como Martin Heidegger, Maurice
Merleau-Ponty e Michael Focault, que propõem a
interpretação como uma circularidade entre ação
e conhecimento, o conhecedor e o conhecido, em
um circuito indissociável [131]. Essa abordagem
lembra o aforismo de Maturana e Varela: “todo
fazer é um conhecer, e todo conhecer é um fazer”
[12].

Enatuar é “fazer emergir” as questões


relevantes a partir de um pano de fundo, segundo
o que nosso sentido comum julga como tal, dentro
de um contexto. Isso implica uma circularidade
entre ação e interpretação [130] e
consequentemente, entre cognição (conhecimento)
e ação. Daí a origem do neologismo Enação.
Segundo Francisco Varela, para a
Fenomenologia o conhecimento implica estar em
mundo inseparável do nosso corpo, nossa
linguagem e nossa história social [130,134]. No
mesmo sentido, Maturana e Dávila afirmam que
“nós seres humanos não somos nossa
corporalidade e não somos fora dela, somos com
ela, sendo ela” [2], “somos seres em contínua
transformação e em contínua mudança, somos
seres históricos [em] que cada momento constitui o
99
Outra perspectiva de trabalho futuro é avaliar o uso de inteligência
artificial, como por exemplo no Projeto Watson da IBM, a partir da
Biologia-Cultural do Conhecer.

290
presente que vivemos implicando a história que lhe
deu origem” [13], vivendo em um contínuo
entrelaçamento entre nosso linguajear e nosso
emocionear [2] que constitui o conversar.
Ao definir regras e supostos a priori nos
colocamos fora desse “mundo interior”, que é
justamente de onde emerge a cognição e que só
pode ser apreendido e compreendido através da
ação, da história e da imitação, convertendo-se
em parte de uma compreensão já existente [130].
Para que essa compreensão seja possível é
necessário abrir mão de certezas e da concepção
de uma realidade externa e pré-existente ao
sujeito que conhece, ou seja, de um paradigma
realista e representacionalista clássico. Assumir a
Enação é assumir que sujeito e objeto,
conhecedor e conhecido, se determinam
mutuamente e surgem simultaneamente, o que
em termos filosóficos implica dizer que o
conhecimento é ontológico [130], ou dito de
outra forma, todo ato de conhecer faz surgir um
mundo, e há uma indissociabilidade entre o ser, o
fazer e o conhecer [12]. Esta é outra forma de
explicar a (objetividade).

Mario Quintana costumava dizer que “a


resposta certa, não importa nada: o essencial é que
as perguntas estejam certas” 100. No mesmo
sentido, para a Fenomenologia 101 importam as

100
Fonte: https://www.pensador.com/frase/Mzk/, acesso em Outubro de
2017.
101
Há várias abordagens fenomenológicas; nesse parágrafo me refiro à
Fenomenologia na perspectiva de Edmund Husser.

291
perguntas e não os objetos ou os fatos, mas os
sentidos que neles podem ser “percebidos”. Nessa
abordagem a epoché é a “atitude mental” de
“tirar os juízos do circuito”, “abrir a consciência à
experiência”, considerar que as teorias não são
verdades sobre a realidade do mundo, mas que
podem ser admitidas quando colocadas “entre
parênteses” [141]. Provavelmente é a partir dessa
perspectiva que Maturana propõe a (objetividade)
– entre parênteses – e que eu proponho o
(aprender).

Como dito anteriormente, uma das


maneiras de abordar a representação é considerá-
la como a interpretação de algo (aquilo que
representa algo está no lugar deste algo e,
portanto, o interpreta, como se se fizesse passar
por ele). Essa forma de considerar as
representações é semântica, e é uma forma débil e
pragmática de considerar as representações, pois
assumimos, por exemplo, que um mapa
representa um território e que as palavras
representam objetos, sem perguntar sobre como o
mapa e as palavras assumiram os significados
que atribuímos a eles, ou dito de outra forma,
sem perguntar a partir de qual matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais
operamos em nosso viver-conviver-conhecer.
Para a abordagem realista há uma
distinção entre as descrições e as explicações.
Enquanto as descrições fazem referência a forma
como nossos dados sensoriais se organizam,
referindo-se à aparência das coisas em sua

292
superfície, as explicações consistem na
descoberta de como as coisas realmente são;
quando se descobre o modo de funcionamento
das coisas então elas estão explicadas [41]. Para o
realismo o objetivo das ciências é a explicação dos
mecanismos que regem o universo na busca de
uma aproximação cada vez maior de uma verdade
única, apesar das limitações de nossos sistemas
sensoriais.

Segundo William James e Charles Pierce


[41] a perspectiva de considerar que há um
mundo real objetivo e um mundo subjetivo leva
um debate inútil. Isso porque compartilhavam de
uma visão filosófica conhecida como
pragmatismo para a qual a real importância das
investigações científicas não reside na busca da
verdade através das explicações, mas sim em
suas aplicações no campo do fazer [42]. Para o
pragmatismo nossa concepção acerca dos objetos
consiste em seus efeitos práticos. A ciência
abordada através do pragmatismo tem como
objetivos, além de uma aplicação prática, dar
significado às nossas experiências. O
pragmatismo equipara a verdade com o poder
explicativo e considera que uma ideia é mais ou
menos verdadeira que outra se nos permite
compreender mais sobre nossa experiência [41].
O que ocorre é que esta concepção de
representação da perspectiva pragmática se
converte em um conceito muito mais forte, que
passa a ter implicações epistemológicas e
ontológicas, quando são feitas generalizações a

293
partir desse conceito para explicar os processos
cognitivos; é aí que surge a ideia que o mundo
está predefinido e que suas características são
pré-existentes à atividade cognitiva. No mesmo
sentido, Maturana e Dávila distinguem “entes” ou
“entidades”, cujo uso pragmático pelo observador
é aquele que remete a representação em termos
interpretativos, mas que pode assumir um caráter
ontológico em termos de uma pré-existência à
atividade do sujeito que conhece se ele deixa de
assumir a relatividade fundamental [2,13], o que
consideram não ser o mais adequado ao propor
explicações sobre o conhecer. Assim, é a
abordagem representacionalista clássica, que está
por trás do Cognitivismo e do Conexionismo, que
a Enação, assim como a Biologia-Cultural do
Conhecer, propõe abandonar.

A Biologia-Cultural do Conhecer propõe


que podemos evocar uma realidade em si,
formada por entes e processos, mas essa
realidade só existe se aparece numa dinâmica
sensorial-operacional-relacional [13], ou seja, que
fazemos emergir, ou “enatuamos”. Isso implica
que ela não permite expicar o operar das coisas,
mas que é uma perspectiva explicativa do domínio
do observador.

Para o Cognitivismo e o Conexionismo há


um sistema inato de representações, sejam
computacionais ou emergentes, cuja “tarefa”
durante a ontogenia é que aprendamos a utilizá-
lo e atualizá-lo [130]. A Enação considera que o
viver “(...) modelou nosso mundo em uma ida e

294
volta em que descobrimos, a partir de nossa
própria perspectiva perceptiva, como limitações
externas e atividade gerada internamente”, em um
processo “co-determinado”. Parafraseando Varela:
os processos cognitivos estão enlaçados à história
vivida, tal como um trilha que não existe, mas que
se cria ao andar por ela [130]. A Biologia-Cultural
do Conhecer está situada dentro do paradigma
explicativo da Enação [131].

Acredito que depois dessa visão histórica


sobre as diferentes abordagens explicativas para
os fenômenos cognitivos e tendo apresentado os
pressupostos ou domínios lógicos que assumo em
minhas explicações, podemos conversar a respeito
de minhas reflexões e explicações sobre o
aprender.

295
IV

Minha Explicação para o


Aprender

296
Se eu assumo a matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais que a
Biologia-Cultural do Conhecer implica, assumo
que cada um de nós, como eu e você que me lê
agora, somos geradores dos mundos em que
vivemos e nos quais, como seres humanos,
podemos conviver através do conversar. Sendo
assim, a partir de agora, depois que expus os
domínios lógicos e as respectivas matrizes de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais a
partir das quais vou elaborar minhas reflexões,
assim como aquelas que não compartilho, passo a
assumir a autoria do que direi, como Maturana
faz na grande maioria dos seus textos.

Procurei ser fiel às ideias dos autores que


apresentei até aqui e por este motivo o texto tem
um caráter acadêmico, com várias citações. Dada
a relatividade fundamental e que “tudo o que é
dito é dito por um observador a outro observador”,
o que faço agora é explicitar minha conclusões
sobre o aprender, a partir das minhas reflexões
utilizando as concepções da Biologia do Conhecer
e da Biologia-Cultural de Maturana e
colaboradores, as quais denomino neste texto de
Biologia-Cultural do Conhecer. Espero ter deixado
isso claro desde o início e se novamente comento
a respeito é para me sentir mais “livre” para dar
asas as minhas reflexões e ao meu dissertar, ou
dito de outra forma, para que eu possa “viajar”
articulando os elementos que apresentei
anteriormente.

297
Domínios Existenciais e
Fenomenológicos
Em nosso observar podemos distinguir que
há dois domínios existenciais nos quais os seres
vivos realizam seu viver:

(1) o domínio do seu operar como sistemas


autopoieticos moleculares, ou Dinâmica Interna
do seu viver, que é aquele domínio onde todos os
seres vivos se constituem como tais e que a partir
daqui distinguirei como Domínio Constitutivo
Biológico e;

(2) um domínio no qual os seres vivos


atuam como unidades simples, ou organismos,
que é o domínio da Dinâmica Externa do seu
viver, que vou denominar temporariamente de
Domínio de Interações. É ai onde ocorrem todas
as interações entre os organismos e que se
realizam através das suas propriedades
constitutivas.
Isso pode ser um ponto de difícil
compreensão, mas proponho uma breve analogia.
Imagine que você está contando para alguém
sobre a primeira vez que você teve contato com o
mar. Você pode utilizar a maior riqueza de
detalhes em sua descrição e mesmo que lembre
fielmente de tudo o que viveu, a experiência que
você teve do seu primeiro contato com o mar
nunca será equivalente à sua descrição e, por
mais que suas lembranças pareçam corresponder
a este momento, mesmo elas são um fenômeno
distinto. Nenhuma descrição e nenhuma memória

298
equivale a experiência que se tem no momento
que ela ocorre. Isso porque a experiência é
análoga aos fenômenos que ocorrem no Domínio
Constitutivo Biológico, enquanto às descrições e
memórias são análogas aos fenômenos que
ocorrem no Domínio de Interações. Aqui cabe a
ressalva que mesmo aquilo que vivo no momento
de cada experiência já é um fenômeno do Domínio
de Iterações, pois diz respeito a uma descrição
para mim mesmo daquilo que estou vivendo e não
todo viver biológico que aquilo implica é que
quando é descrito já pertence a outro domínio.
Essa distinção é muito sutil, mas é fundamental.
Como explicarei a seguir, no momento que surge
o lingiuajear e com ele o observador, nós
“capturamos” e “compartilhamos” (conosco ou
com outros) todas as nossas experiências no
linguajear e aí elas já são algo distinto do
fenômeno do vivê-las em si como sistemas
autopoieticos moleculares. O coração não para de
“bater” no peito, isso é o fenômeno biológico em
si, em seu ocorrer momento a momento, do qual o
próprio corpo nem tem “ciência”. Quando
sentimos seu “bater”, quando o auscutamos, ou
qunado falamos a seu respeito ou explicamos que
“o coração bombeia o sangue”, aí já temos um
fenômeno distinto.

Um ser vivo sempre vive seu viver no


Domínio de Interações e é aqui que obtém as
“condições” para seu operar como sistema
autopoietico molecular – não esqueça disso. Fora
dele temos um Domínio de Interações

299
Destrutivas e se o organismo operar nesse
domínio ele sente mal-estar, sofre, sente dor,
perde sua autopoiese e morre.

Como você já sabe, os seres vivos surgem


como totalidades (no seu Domínio de Interações)
em um domínio distinto do domínio do operar dos
seus componentes (que ocorre no Domínio
Constitutivo Biológico), mas como uma
consequência espontânea desse operar [15].
Vamos refletir sobre algumas peculiaridades do
Domínio de Interações.

Segundo o Relatório para a UNESCO da


Comissão Internacional sobre Educação para o
Século XXI: “a educação ao longo da vida baseia-
se em quatro pilares: aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a
ser” [142].

Considerando a indissociabilidade entre o


ser, o fazer e o conhecer que a Biologia-Cultural
do Conhecer propõe, não convém dizer que é
necessário aprender a conhecer, tampouco
aprender a ser e aprender a fazer, pois esses são
fenômenos inerentes aos seres vivos. Sendo
assim, se o Relatório assume isso, vou considerar
que ele se baseia no realismo, na objetividade e
em pressupostos darwinistas, o que afirmo a
partir de sua leitura e considerando aquilo que já
expliquei a respeito dessas concepções. A partir
daqui denominarei de abordagem alienante do
vier biológico-cultural àquela que assume tais

300
pressupostos e vou considerar que o Relatório
assume tal abordagem.

Além disso, somos seres humanos que nos


constituímos como tais em nosso viver-conviver
em redes de conversações, que caracterizam
distintas culturas humanas, as quais se originam
e mantém no entrelaçamento entre o linguajear e
o emocionar. O amor é o emocionar que permitiu
nossa deriva a partir de nossa família ancestral de
Australopitecus afarensis. Sendo assim, o conviver
também nos é típico e característico desde nossa
origem como Homo sapiens.

Se temos que aprender sobre todas essas


“coisas”, isso é sinal que estamos
demasiadamante afastados do ser que nos
caracteriza como seres humanos biológico-
culturais e é essa reflexão que proponho, tendo
em vista compreender o (aprender) que nos é
típico. Considerando que o Relatóio é um
documento que tem sido utilizado na elaboração
de políticas públicas de educação por diferentes
países e que assume uma abordagem alienante do
viver biológico-cultural, na perspectiva da
Biologia-Cultural do Conhecer, aí pode estar uma
elemento que contribui para a sensação de cisão
observada entre a vida escolar e a vida cotidiana,
que se relaciona à sensação de mal-estar e
sofrimento às quais me referi inicialmente neste
livro. Isso explicita uma matriz de coerências
sensoriais-operacionais-relacionais a partir da
qual operamos em nossa Cultural Patriarcal e
podemos refletir a respeito de quais emocionares

301
esta cultura valoriza, o quanto eles nos afastam
do amar e se queremos mantê-los ou não em
nosso viver-conviver.

Tal abordagem alienante do viver


biológico-cultural também se explicita quando em
nossos projetos pedagógicos, ou planos de ensino,
assinalamos que há aprenderes cognitivos,
afetivos e motores, muitas vezes denominados
competências ou habilidades, que devem ser
alcançados através de atividades de ensino
distintas, apesar de relacionadas. Aí também
podemos traçar um paralelo com a sensação de
cisão entre a vida cotidiana e as vivências
escolares.

Quando fazemos o que não queremos, o


que não sentimos e o que não corresponde ao que
somos, é aí que advém o mal-estar, a dor, o
sofrimento e o adoecimento. Considerando que
toda dor pela qual se pede ajuda é de origem
cultural, na proporção da distância que nossa
cultura nos afasta do ser-viver-conviver que nos
caracteriza como seres humanos, devemos olhar
mais atentamente para o Domínio de Interações
para compreender como mantemos este tipo de
ser-viver-conviver.

Domínio Cognitivo-Interacional
Durante suas interações com diferentes
perturbações uma unidade sofre “mudanças
compensatórias” ou “deformações” que são
determinadas por sua estrutura e descritas por

302
um observador como condutas ou
comportamentos. Consequentemente, o Domínio
de Interações de um organismo é também o seu
Domínio Comportamental, ou Domínio de
Condutas.

Para cada unidade o Domínio de Interações


(e de Condutas) é delimitado e determinado por
um modo particular de realização da autopoiese,
pela sua estrutura e pelo seu emocionar
presentes. As condutas são uma visão externa do
observador e correspondem às mudanças
estruturais que ocorrem no Domínio Constitutivo
Biológico da unidade102, que mantém sua
organização (autopoietica) e sua adaptação,
permitindo que ela se acople estruturalmente ao
agente perturbador, seja ele proveniente de um
ente concreto ou abstrato.

Como há uma indissociabilidade entre o


ser, o fazer e o conhecer (cognição), o Domínio de
Condutas é também equivalente ao Domínio
Cognitivo.

Na medida que toda conduta pode ser


observada, distinguida e descrita, o Domínio de
Interações (de Condutas e Cognitivo) é também
um Domínio de Descrições, ou um Domínio do
Observador.
O observador pode descrever a forma como
a unidade compensa suas deformações como a

102
Lembre-se da analogia entre a experiência, sua memória e sua
descrição que utilizei anteriormente.

303
descrição do “agente deformante” (ou “estímulo”)
que atua como perturbação e a respectiva
deformação como a “representação” de tal agente
na estrutura do organismo. É isso que está por
trás das concepções do representacionalismo e
da ideia de que há transmissão de informações
entre o organismo e seu ambiente, ou entre os
organismos em suas interações. Desde que
tenhamos clareza de que tudo isso ocorre na
perspectiva do observador, sem buscar com isso
explicar o operar do organismo (que diz respeito
ao seu Domínio Constitutivo Biológico) não
estamos incorrendo em nenhum erro de
contabilidade lógica. Entretanto, devemos ficar
atentos ao que essa forma de explicar pode
ocultar, especificamente, as ações que fazem
surgir um mundo de entes no ato de observar do
observador, ou seja, a (objetividade), a
relatividade fundamental e a matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais
a partir da qual o observador opera.

A partir de agora vou utilizar o termo


Matriz para fazer referência a uma matriz de
coerências sensoriais-operacionais-relacionais.

Todas as interações com o meio que um


observador pode descrever são relações. Para os
seres humanos todas as interações são relações,
pois são passíveis de descrição em nosso operar
no linguajear e são fenômenos do Domínio
Relacional. Consequentemente, para os seres
humanos o Domínio de Interações equivale ao

304
Domínio Cognitivo, de Condutas, de Descrições
ou do Observador e Relacional.

Toda conduta é expressão de


conhecimento; todo conhecimento é compensação
de perturbações e, sendo assim, é uma conduta
descritiva [5,143] e passível de observação. A
partir de agora denominarei a todos esses
domínios equivalentes (Cognitivo, de Condutas, de
Descrições, do Observador e Relacional) de
Domínio Cognitivo-Interacional.

É importante destacar que essa


equivalência só é válida para o ser humano 103 e
que não estou aqui fazendo uma redução
fenomenológica (projetando fenômenos de
diferentes domínios em um mesmo domínio), pois
para a Biologia-Cultural do Conhecer todos esses
domínios são um mesmo domínio existencial104, o
que implica serem um mesmo domínio de
determinismo estrutural. É nele onde o ser
humano vive seu viver em interação com seu
mundo, que surge no seu atuar como observador
deste mundo.

Somos aquilo que fazemos, atuamos


conforme nossos emocionares, conhecer é parte
do que somos e quando negamos isso em nosso

103
para os animais o Domínio de Interações não equivale ao Domínio
Relacional, pois eles não descrevem suas interações já que não são seres
linguajeantes.
104
Como vou explicar com mais detalhes a seguir, e como já afirmei
anteriormente, diferencio estes domínios existenciais dos diferentes
domínios fenomenológicos que podem ser distinguidos dentro do Domínio
Cognitivo-Interacional. Estes sim se referem à distintos domínios de
determinismo estrutural.

305
viver cultural, negamos nossa natureza biológica
e, como você já sabe, é daí que surgem o mal-
estar, as dores, os sofrimentos e o adoecimento.

Como observadores podemos distinguir


diferentes domínios fenomenológicos dentro do
Domínio Cognitivo-Interacional, cada um
constituindo um diferente domínio de
determinismo estrutural, onde distinguimos uma
variedade de entes (unidades ou coisas) e
fenômenos (fazeres ou processos). Estes domínios
fenomenológicos são Domínios Linguísticos,
constituídos por conjuntos de condutas
linguísticas. Quando coordenamos ações
utilizando condutas linguísticas, ou seja, quando
há coordenações consensuais de coordenações de
ações, realizamos nosso linguajear. É isso que
constitui a dimensão cultural do nosso viver que é
indissociável da nossa dimensão biológica, já que
os fenômenos do Domínio Cognitivo-Interacional
surgem como uma consequência espontânea do
nosso operar no Domínio Constitutivo Biológico,
como expliquei anteriormente.

Os erros de contabilidade lógica ocorrem


(1) quando buscamos estabelecer relações
causais, lógicas ou emergentes entre fenômenos
do Domínio Constitutivo Biológico e do Domínio
Cognitivo-Interacional, ou seja, de diferentes
domínios existenciais, e (2) quando buscamos em
nossas explicações estabelecer estas mesmas
relações entre distintos domínios
fenomenológicos, projetando num mesmo
Domínio do Observador (que é equivalente ao

306
Domínio Cognitivo-Interacional) fenômenos que
pertencem à diferentes domínios de determinismo
estrutural e que, consequentemente, implicam
diferentes Matrizes.
Em algumas ocasiões utilizamos nestes
diferentes domínios de determinismo estrutural
as mesmas condutas linguísticas, como por
exemplo as mesmas “palavras”, mas não devemos
esquecer que elas não implicam necessariamente
as mesmas coordenações de ações. Como você já
sabe, as palavras ocultam verbos e o “significado”
que podemos atribuir a elas é secundário em
relação às ações que elas coordenam junto
àqueles que compartilham deste mesmo domínio
linguístico. A seguir vou explicar mais a este
respeito.

O que proponho a partir da Biologia-


Cultural do Conhecer é uma “atitude
fenomenológica”, ou epoché, de “tirar esses juízos
do circuito” de forma que possamos estar atentos
aos fazeres aos quais correspondem os diferentes
fenômenos que queremos explicar e compreender,
pertencentes a um mesmo Domínio Cognitivo-
Interacional.

Quando Lev Vigostki afirmou que as


funções psicológicas superiores como a
linguagem, a memória, o pensamento e a
consciência são de origem sócio-histórica, ou
histórico-cultural, identifico que ele especificou
que estes fenômenos ocorrem num domínio que
equivale ao Domínio Cognitivo-Interacional.

307
Diferentemente da Biologia-Cultural do Conhecer
entretanto, ele considerou que essas funções
surgem nesse domínio, mas são posteriormente
internalizadas, ao que denominou de
internalização das experiências sociais [144].
Ele considerou ainda que estas experiências
internalizadas se sobrepõe às estruturas
biológicas e passam a atuar como determinantes
das condutas. Nesse último aspecto esta
abordagem explicativa se diferencia da Biologia-
Cultural do Conhecer e se aproxima daquilo que
propõe a Psicologia Macrocultural de Carl Ratner
que apresentei anteriormente.

Você já sabe que quando unidades


autopoieticas interagem recorrentemente passam
a ser fontes recíprocas de perturbações entre si e
formam uma cadeia de interações de forma que,
apesar das condutas de cada unidade serem
estruturalmente determinadas, cada uma delas é
para a outra unidade uma fonte de “perturbações
compensáveis”. As interações assim constituídas
entre organismos são denominadas interações,
ocorrem através de condutas comunicativas e
estão envolvidas na constituição de unidades
autopoieticas de terceira ordem, que são sistemas
sociais, nos quais há um acoplamento estrutural
entre os organismos que os constituem. Se as
unidades acopladas são capazes de uma conduta
plástica e se modificam constantemente durante
tais interações, como é o caso dos seres vivos,
suas mudanças constituem ontogenias
historicamente conectadas que geram um

308
campo consensual de condutas acopladas,
reciprocamente orientadas (que se especificam
durante o processo de sua geração), constituindo
um Domínio Linguístico [15]. Como já deve estar
claro até aqui, em um Domínio Linguístico as
interações não são informativas, pois uma
unidade não determina o que ocorre a outra, dada
a relatividade fundamental e o determinismo
estrutural.

Os Domínios Linguísticos são distinguidos


a partir do Domínio Cognitivo-Interacional e vou
considerar que todas os demais fenômenos deste
domínio constituem um Domínio Não-
Linguístico. Ou seja, podemos distinguir a partir
do Domínio Cognitivo Interacional distintos
Domínios Linguísticos e outros tantos Domínios
Não-Linguísticos, sendo que em cada um destes
domínios ocorrem fenômenos distintos a partir de
distintos âmbitos de determinismo estrutural.
Por exemplo, uma conduta comunicativa
pertence a um Domínio Linguístico, enquanto um
ato motor reflexo é uma conduta que pertence a
um Domínio Não-Linguístico. Dito de outra forma,
no Domínio Linguístico um ser vivo interage e se
acopla estruturalmente a outro ser vivo através de
condutas comunicativas, enquanto no Domínio
Não-Linguístico ocorrem todas as demais
interações entre um organismo e seu ambiente,
ou com as características ou propriedades físicas
de outros seres vivos com os quais interage. No
Domínio Não-Linguístico os seres vivos se
acoplam aos elementos abióticos e às

309
perturbações não-linguísticas provenientes de
outros seres vivos. Nos Domínios Linguísticos os
seres humanos se acoplam entre si através do
linguajear e do conversar. É neste domínio que
ocorre o (aprender), que é um fenômeno
tipicamente humano.

Como expliquei anteriormente, para os


seres humanos todas as nossa interações são
relações, pois são passíveis de descrição
utilizando o linguajear. Consequentemente, todo
os fenômenos dos Domínios Não-Linguísticos são
projetados em Domínios Linguísticos e por este
motivo praticamente todo o Domínio Cognitivo-
Interacional humano é constituído por Domínios
Linguísticos. Mesmo quando interagimos com
elementos abióticos, projetamos tais fenômenos
no Domínio do Observador (que equivale ao
Domínio Cognitivo-Interacional) e nesse domínio
operamos no linguajear, através da coordenação
consensual de coordenações de ações, ou seja,
utilizando elementos de um Domínio Linguístico.
Os Domínios Não-Linguísticos são relevantes para
a dimensão biológica do nosso viver e para a
manutenção da nossa autopoiese, e é aqui que
ocorre o viver de todos os seres vivos não-
humanos. Para nós, seres humanos
linguajeantes, a manutenção da autopoiese
também depende dos fenômenos que ocorrem nos
Domínios Linguísticos que compartilhamos. O
estudo dos fenômenos dos Domínios Não-
Linguísticos permitem inferir diretamente
fenômenos do nosso operar no Domínio

310
Constitutivo Biológico, ou seja, nossa “dimensão
animal”. Essa é a ênfase das ciências biológicas,
mas muitos estudos incorrem em erros de
contabilidade lógica ao supor relações causais,
lógicas ou emergentes entre ambos domínios. O
estudo dos fenômenos que ocorrem nos Domínios
Linguísticos permitem refletir sobre nossa
dimensão cultural e nossas características
tipicamente humanas. As ciências humanas têm
enfatizado esta abordagem, muitas vezes sem
considerar o entrelaçamento que ocorre entre
esses domínios e nossa dimensão biológica.
Apenas através de relações gerativas que
podemos estabelecer como observadores de
ambos os domínios, mantendo uma contabilidade
lógica e através de uma epoché, podemos
compreender nosso viver biológico-cultural e
assim sim propor explicações que nos aproximam
mais daquilo que somos como seres humanos.
Vou explicar mais a respeito destas relações a
seguir.

Esta é outra forma de explicar a


indissociabilidade entre nossa dimensão biológica
(que diz respeito à fenômenos do Domínio
Constitutivo Biológico) e nossa dimensão cultural
(que diz respeito à fenômenos do Domínio
Cognitivo-Interacional). Como é no Domínio
Cognitivo-Interacional que obtemos as “condições”
para nosso operar como sistemas autopoieticos
moleculares, dado que este domínio é constituído
praticamente pelos Domínios Linguísticos através
dos quais vivemos em redes de conversações,

311
isso implica que nossa cultura passa a fazer parte
do meio necessário à nossa existência e
sobrevivência biológica como Homo sapiens.

Você não pode perder de vista que nosso


viver como unidades autopoieticas moleculares “é
cego” em relação às nossas condutas linguísticas
e outros fenômenos do Domínio Cognitivo-
Interacional, pois eles são distinções e reflexões
que realizamos neste domínio, ou seja, eles
surgem como tais apenas em nosso atuar como
observadores.

Um parêntese sobre as Sensações e


Percepções
Aqui cabe uma explicação importante.
Quando entramos em contato com uma
perturbação ocorrem dois fenômenos distintos: as
sensações e as percepções. As sensações são
fenômenos típicos em todos os seres vivos com ou
sem Sistema Nervoso, mas vou assumir que
aquilo que denominamos de percepções são
fenômenos tipicamente humanos.

Quando entramos em contato com


diferentes perturbações do meio ambiente estas
guiam um curso de mudanças no estado de
ativação do Sistema Nervoso e como consequência
disso temos um efeito sobre nossas condutas105.
Isso ocorre devido à operação de sistemas senso-

105
Para seres vivos sem Sistema Nervoso isso leva a uma série de
mudanças em sistemas de natureza metabólica.

312
motores nos quais uma superfície sensorial se
conecta a uma rede de interneurônios ou
neurônios associativos, em diferentes níveis
hierárquicos do Sistema Nervoso central, com
efeitos sobre o estado dos elementos conectados
aos componentes motores, como os músculos e
as glândulas. Em decorrência disso ocorre uma
série de condutas que denominamos de condutas
reflexas, ou reflexos, com distintos graus de
complexidade.

Os reflexos são passíveis de modificação


durante os condicionamentos clássicos ou
respondentes, nos quais estímulos
condicionados são contingenciados com
estímulos incondicionados, fazendo com que
respostas incondicionadas se tornem
condicionadas. Como aqui estou falando sobre
fenômenos que pertencem a um Domínio Não-
Linguístico é importante destacar que esta
explicação é válida para os seres vivos não-
humanos. Considerando que os seres humanos
projetam praticamente todos os fenômenos deste
domínio em Domínios Linguísticos, as conclusões
as quais chegamos através da observação de
condicionamentos clássicos em estudos com
animais não podem ser literalmente generalizadas
para os seres humanos, pois implicam fenômenos
de domínios distintos.

Como o Sistema Nervoso é um sistema


operacionalmente fechado, ou que opera em
clausura operacional, apesar de serem
desencadeadas por interações com perturbações,

313
as sensações dizem respeito à fenômenos do
Domínio Constitutivo Biológico, pois são
“assinaladas” neste domínio como um
“ajustamento” do estado de ativação do Sistema
Nervoso e de todos os sistemas à ele acoplados.
As condutas decorrentes das sensações são um
fenômeno do Domínio Cognitivo-Interacional, pois
para os seres humanos são passíveis de descrição
no linguajear, mas são um fenômeno distinto das
sensações, apesar de relacionados a elas.

Além disso, os seres humanos atuando


como auto-observadores podem ter ciência das
sensações e descrevê-las para si mesmos ou para
outros seres humanos observadores, e é neste
caso que falamos sobre percepções. Sendo assim,
as percepções são fenômenos do Domínio
Cognitivo-Interacional. Como são descrições, a
natureza das percepções é cultural, pois para
descrevê-las utilizamos elementos de um Domínio
Linguístico. Isso quer dizer que aquilo que
distinguimos como “vermelho” ao olhar para um
tomate, como “redondo” ao olhar para uma bola,
como “quente” ao nos aproximarmos do fogo, ou
como “dor” no contato com um objeto cortante,
são condutas linguísticas e, como tais, não tem
uma existência em si mesmas, mas são
culturalmente construídas, já que implicam
coordenações de ações consensuais entre aqueles
que as utilizam. Seu aprender ocorre durante a
ontogênese, não apenas considerando aspectos
maturacionais biológicos, mas a inserção cultural
que ocorre desde nosso nascimento.

314
Como comentei no início deste texto ao
explicar os estudos de Maturana no final da
década de 1950, não são os estímulos que
determinam as percepções. Agora afirmo que as
percepções são determinadas por um estado de
ativação do sistema nervoso (sensação) descrito
por um observador ou auto-observador utilizando
para isso elementos de um Domínio Linguístico,
ou seja, são um fenômeno biológico-cultural.
Sendo assim, não podemos explicar as percepções
simplesmente através do estudo do operar do
sistema nervoso.

Além disso, as percepções são um dos


aspectos do fenômeno do conhecer, ou são um
tipo de fenômeno cognitivo, mas não corresponde
a tudo aquilo que distinguimos na Biologia-
Cultural do Conhecer como sendo a cognição.

De volta ao fluxo do texto e à


Reflexão sobre o Domínio
Cognitivo-Interacional
Pode haver diferentes Domínios
Linguísticos e cada um deles corresponde a um
diferente âmbito de determinismo estrutural,
apesar de poder haver sobreposição entre eles,
caso haja intersecção estrutural. Por exemplo: há
distintos Domínios Linguístico que denominamos
Biologia Celular, Teologia, Filosofia, Fisiologia,
Anatomia, Física, Gramática e Química, sendo
que dentro deles podemos distinguir outros tantos
domínios. O que considero interessante destacar é

315
que eles não apresentam relações de continência
ou pertença, no sentido que não há subdomínios
e macrodomínios, já que cada um deles especifica
um âmbito de determinismo estrutural distinto.
As relações que há entre eles, como destaquei
anteriormente, se devem a intersecção estrutural
que pode ocorrer. Por exemplo: o conceito de
“célula” pode ser compartilhado entre vários
domínios e isso pode dar a impressão que a
Citologia, a Biologia Celular e a Histologia se
referam a mesma “célula” (ou seja, que este
conceito tem o mesmo “significado”), o que pode
não ser o caso, dado que cada um desses
Domínios Linguísticos é corresponde a um âmbito
de determinismo estrutural distinto, como
comentei anteriormente. O que podemos fazer
como observadores é ‘transitar” entre diferentes
domínios sem estabelecer entre eles relações
causais, lógicas ou emergentes, mantendo nossa
contabilidade lógica, numa constante epoché.
Isso implica que quando alguém estuda um
comportamento, enquanto outro alguém estuda
as emoções, ambos estão distinguindo fenômenos
do mesmo Domínio Cognitivo-Interacional, mas
como observadores podem estar distinguindo
estes fenômenos a partir de diferentes Domínios
Linguísticos (por exemplo, Comportamentalismo,
Psicanálise ou Fisiologia) e, nesse caso, operam a
partir de diferentes âmbitos de determinismo
estrutural que implicam diferentes Matrizes.
Como observadores podemos optar pelo Domínio
Linguístico a partir do qual queremos explicar

316
esses fenômenos, sem esquecer que todos eles
pertencem ao Domínio Cognitivo-Interacional.
Consequentemente, incorremos em um erro de
contabilidade lógica ao buscar relações causais,
lógicas ou emergentes entre a Fisiologia e a
Psicanálise, por exemplo. Não incorremos em
erros de contabilidade lógica ao explicar as
emoções e os comportamentos a partir da
Psicanálise, ou a partir da Fisiologia, ou
relacionando-os sem perder de vista que
constituem diferentes Domínios Linguísticos.

Observador, Autoconsciência e
Relações Gerativas
Um sistema capaz de interatuar com seus
próprios estados106 e de desenvolver com outros
sistemas um Domínio Linguístico comum pode
tratar seus próprios estados linguísticos como
fontes de perturbações, interatuando num
domínio linguístico fechado. Um sistema que atua
dessa forma recorrente é um Observador [15]. O
Observador opera num domínio próprio
constituído pelo conjunto de Domínios
Linguísticos (que constitui para os seres humanos
a quase totalidade do seu Domínio Cognitivo-
Interacional) dos quais ele participa e dentro dos
quais “transita” na maioria das vezes sem ter
ciência que está operando a partir de diferentes
âmbitos de determinismo estrutural. É então que,
como observadores, projetamos distintos

106
Como podem fazer aqueles seres vivos dotados de Sistema Nervoso.

317
fenômenos pertencentes à distintos domínios
fenomenológicos em um mesmo “plano” ou
domínio do observador, como você pôde
compreender na analogia com os desenhos
sobrepostos feitos em folhas transparentes que
apresentei anteriormente.

Neste domínio formado pelo conjunto de


Domínios Linguísticos do Observador (Domínio
Cognitivo-Interacional) ocorre a distinção dos
todos os entes que surgem no seu observar e
também a auto-observação e as reflexões, o que o
caracteriza como um Domínio de Condutas
Autoconscientes. Nele o Observador pode
interatuar de forma recursiva com seus próprios
estados descritivos, que são descrições
linguísticas de si mesmo, e pode ser observador
de si mesmo, de sua observação e de sua auto-
observação em intermináveis ciclos recursivos
[15], dando origem a uma série de fenômenos
meta-reflexivos. Consequentemente, buscar as
explicações destes fenômenos no Domínio
Constitutivo Biológico implica num erro de
contabilidade lógica, já que eles pertencem ao
Domínio Cognitivo-Interacional.

Como você já sabe, quando um sistema


surge no observar do observador e com ele o
meio-nicho ou entorno que o contém, ao mesmo
tempo surge um novo domínio fenomenológico no
qual o sistema passa a atuar como uma
totalidade através das suas propriedades
constitutivas. Então aparece o que Maturana
denomina de “uma assimetria no suceder da

318
experiência”, já que cada situação surge como
uma “composição espontânea” a partir da
anterior, sem designos ou propósitos, mas nun
constante vir-a-ser. Isso origina novos domínios
fenomenológicos que o observador distingue ao
falar de história e tempo, como proposições
explicativas para suas distinções. Apesar do
observador propor a noção de tempo ao distinguir
a historicidade de sua experiência, seu suceder
experiencial é irreversível e unidirecional, já que
surge em uma dinâmica epigênica, num
presente cambiante contínuo [15], dado que
está sempre em mudança devido às suas
interações e a sua plasticidade.

As propriedades constitutivas através das


quais os organismos interagem (no Domínio
Cognitivo-Interacional) decorrem da organização
do sistema autopoietico molecular que os seres
vivos são (em seu operar no Domínio Constitutivo
Biológico), ou seja, é a organização autopoietica
molecular que determina as propriedades através
das quais os organismos interagem. Como
observadores, podemos estabelecer relações
lógicas, causais ou emergentes entre uma dada
organização e as propriedades constitutivas
decorrentes dela, e fazemos isso operando a partir
de uma Matriz que é biológico-cultural, que surge
como uma matriz de coerências de nossas
experiências e que corresponde a um Domínio
Linguístico. A organização de um sistema
especifica suas propriedades constitutivas e é
através destas propriedades que o sistema atua

319
como unidade simples em seu Domínio Cognitivo-
Interacional.

Ao surgir um sistema e o meio-nicho que o


contém, o devir de ambos consiste
necessariamente em uma história de interações
recorrentes em uma coderiva estrutural, na qual
a estrutura do sistema e do meio mudam de
maneira espontânea, de modo congruente e
complementar, mantendo a organização de
ambos, ou seja, ocorre um acoplamento
estrutural e o observador distingue que ocorreu
um aprender (ou uma aprendizagem107).

É por este motivo que os seres vivos exibem


coerências operacionais entre si e em relação ao
meio que são de caráter histórico e que não
podem ser compreendidas através da busca de
conexões causais, lógicas, emergentes e locais. É
a busca por essas conexões que faz o observador
recorrer às explicações finalistas, deixando assim
de observar que os seres vivos compartilham
entre si e com o meio que os contém (incluindo aí
outros organismos) uma história de coderiva
estrutural comum. Como seres humanos vivemos
em uma contínua dinâmica de emergência
histórica na qual o resultado presente dessa
história não pode ser utilizado como argumento
causal para explicar sua origem [15].
A relação gerativa que dá origem ao
fenômeno histórico surge como uma relação

107
Lembrando que opto pelo uso de verbos ao invés de substantivos para
explicitar os fazeres que constituem aquilo que estou distinguindo.

320
explicativa que o observador propõe para
relacionar dois domínios disjuntos: o Constitutivo
Biológico e o Cognitivo-Interacional. Dois
observadores operando a partir de diferentes
Matrizes e Domínios Linguisticos (por exemplo,
dois pesquisadores de diferentes culturas, ou de
diferentes “áreas de conhecimento” – como a
Física e a Biologia) podem estabelecer relações
gerativas distintas. Lembre-se: não há uma
realidade pré-existente e compartilhada, mas um
mundo que surge no ato de observar do
observador.

Cabe destacar que raramente operamos a


partir de um único Domínio Linguístico, mas
tendemos a transitar entre os distintos Domínios
Linguísticos que compartilhamos com outros
seres humanos e nos quais distinguimos nossas
reflexões e meta-reflexões. Além disso, as “bordas”
de um dado domínio, assim como as de uma dada
cultura, são operacionais.
Quando a interação pela interposição de
propriedades ocorre entre dois seres humanos no
âmbito de um Domínio Linguístico, através do
linguajear, é aqui que surge um espaço para que
ocorra o acoplamento estrutural que caracteriza o
(aprender). Logo, o (aprender), que é um
fenômeno tipicamente humano, diz respeito ao
acoplamento estrutural que ocorre entre
indivíduos em seu linguajear entrelaçado com um
emocionar comum, ou seja, que ocorre no
conversar, implicando na “geração” e

321
“apropriação” de um Domínio Linguístico agora
efetivamente compartilhado.

É graças à capacidade que temos de


emocionear, ou seja, de mudar de emocionar
(seja de forma intencional ou não), que podemos
durante o conversar chegar a um emocionar
comum, permitindo assim o compartilhamento do
Domínio Linguístico em questão. Este emocionar
é o amar, pois só ele permite a aceitação do outro
como legítimo no conviver e só dessa forma é
possível constituir Domínios Linguísticos
compartilhados. Por isso é preciso conversar para
(aprender) e para conversar é preciso aceitar o
outro como legítimo outro no conviver.

Independentemente de termos ou não


ciência disso, o fato é que o aprender sempre
ocorre, pois se estamos vivos estamos acoplados
ao nosso meio-nicho. Nós, seres humanos, só
vivemos se estamos acoplados ao nosso entorno,
dentro de nosso Domínio Cognitivo-Interacional
de forma a manter nossa autopoiese. Como você
já sabe, para os seres humanos este Domínio
Cognitivo-Interacional é formado por um conjunto
de Domínios Linguísticos e, dado seu caráter
cultural, podemos não nos acoplar a ele num
primeiro momento e, dada nossa plasticidade,
isso não implica imediatamente na perda de
nossa autopoiese. Entretanto, se essa falta de
acoplamento persiste isso gera o mal-estar, o
sofrimento e o adoecimento que pode levar à
perda da autopoiese.

322
Os fenômenos que ocorrem no Domínio
Cognitivo-Interacional surgem na dependência
das propriedades constitutivas das unidades que
interagem e dependem da organização
autopoietica que as caracteriza em seu Domínio
Constitutivo Biológico. Ao mesmo tempo, graças
às interações que estabelecemos em nosso
Domínio Cognitivo-Interacional é que podemos
manter nossa autopoiese. Isso está por trás da
nossa natureza “biológico-cultural”: o “biológico”
faz referência ao nosso viver num Domínio
Constitutivo Biológico, como sistemas
autopoieticos moleculares, a partir do qual
“surgem” nossas propriedades constitutivas; o
“cultural” remete às redes de conversações que
geramos em nossas interações com outros seres
humanos e que dizem respeito ao nosso viver-
conviver num amplo Domínio Cognitivo-
Interacional no qual interagimos através destas
propriedades e encontramos as condições para a
manutenção da nossa autopoiese; o “hífen” que
interliga ambas palavras implica na relação
indissociável que há entre eles, pois como diria
Paulo Freire, em suas relações com seu mundo
cultural o homem é produto e produtor de sua
cultura e “se deixa marcar, enquanto marca
igualmente” [115].

Tudo que é “novo” surge no ato de


distinção do Observador (1) originando um novo
domínio fenomenológico e de detemrinismo
estrutural, como você já sabe, ou (2) como
resultado da proposição de relações generativas,

323
ou de uma dinâmica generativa, relacionando
fenômenos do Domínio Constitutito Biológico e de
um dado Domínio Fenomenológico distinguido no
Domínio Cognitivo-Interacional a partir do
observar e do reflexionar do Observador. Insisto
que apesar de podermos estabelecer relações
causais, lógicas ou emergentes entre organização
e propriedades, não podemos estabelecer
diretamente estes mesmos tipos de relações entre
os fenômenos que ocorrem no Domínio
Constitutivo e no Domínio Cognitivo-Interacional.
Isso porque são domínios distintos, que originam
fenomenologias distintas e coerências sensoriais-
operacionais-relacionais distintas, a partir das
operações distinções que o observador realiza
operando em seu Domínio do Observador.
Entretanto, ao operar como observadores
podemos inferir sobre fenômenos do Domínio
Constitutivo Biológico a partir do que observamos
no Domínio Cognitivo-Interacional da unidade em
questão, criando relações gerativas entre eles.
Estas implicam relações entre a organização do
sistema, suas propriedades e suas condutas
observadas nesse domínio, considerando que toda
conduta é uma expressão das mudanças
estruturais que ocorrem nesta unidade e que a
quase totalidade dos fenômenos do Domínio
Cognitivo-Interacional são condutas linguísticas.

Uma das etapas na elaboração de relações


gerativas é a busca por correlações entre
fenômenos. Quando identificamos correlações
estamos especificando relações de contingência

324
temporal ou espacial entre as propriedades do
organismo e suas condutas, entre condutas ou
entre propriedades entre si, ou seja, estamos
estabelecendo relações entre fenômenos e
características dentro do mesmo Domínio
Cognitivo-Interacional.

Já apresentei anteriormente alguns


exemplos de correlações, como por exemplo
quando Dumbar gerou em seu Domínio de
Observações correlações entre a razão cortical
(que corresponde a uma propriedade do
organismo observado) e o grooming (que
corresponde a uma conduta desse mesmo
organismo), quando Patricia Kuhl obteve
correlações entre padrões de ativação cerebral
(que correspondem às propriedades do organismo)
e a preferência por determinados fonemas (uma
conduta), ou quando Uri Hasson obteve
correlações entre padrões de ativação cerebral
(uma propriedade do organismo) em diferentes
indivíduos ouvindo uma mesma história (uma
conduta). Insisto: as propriedades do organismo e
as condutas são fenômenos do mesmo Domínio
Cognitivo-Interacional. A obtenção de correlações
entre ambas mostra uma coerência que permite
inferir sobre o operar específico do organismo em
seu Domínio Constitutivo-Biológico em relação a
estes fenômenos. Importante é que o Observador
propõe relações gerativas a partir de uma Matriz
que utiliza ao elaborar suas explicações e precisa
ter ciência desta Matriz ao elaborar suas
explicações, delimitando as operações que devem

325
ser realizadas para que os fenômenos que
pretende explicar “surjam” em decorrência da
repetição destas operações por outros
observadores. Além disso, não podemos esquecer
que estas explicações serão consideradas como
válidas na dependência de serem aceitas por
aquele a quem elas se destinam, sejam outros
observadores ou um auto-observador. Tudo isso
depende de um emocionar comum que permita o
compartilhamento de um Domínio Linguístico e
que todos operem dentro de uma mesma Matriz.

Ocorre que em muitas ocasiões propomos


correlações como se elas estivessem relacionando
fenômenos do Domínio Cognitivo-Interacional e do
Domínio Constitutivo-Biológico e dessa forma
estabelecemos relações causais, lógicas ou
emergentes entre fenômenos de ambos domínios,
incorrendo em erros de contabilidade lógica, como
ao afirmar que a razão cortical que determina o
grooming, a ativação cerebral leva à compreensão
dos fonemas e que o sincronismo neural é o
agente causal da comunicação. As correlações
apenas mostram que há relações entre
propriedades e condutas, entre condutas ou
propriedades entre si, e que podemos propor
relações gerativas ao propor explicações operando
como Observadores a partir de uma Matriz,
dentro da qual inferimos sobre diferentes aspectos
do nosso operar no Domínio Constitutivo
Biológico a partir de fenômenos pertencentes ao
Domínio Cognitivo-Interacional.

326
É importante destacar que quando
explicamos fenômenos do Domínio Constitutivo
Biológico o estabelecimento de correlações,
relações causais, lógicas e emergentes não implica
em erros de contabilidade lógica. Isso porque
estamos lidando com fenômenos de um mesmo
domínio, apesar de, como seres humanos,
construirmos sempre nossas explicações como
inferências que fazemos a partir de nosso
interagir e observar com as unidades que
pretendemos explicar, como faemos através da
experimentação.Além disso, não devemos
esquecer que nas explicações mecanísticas
nossas explicações implicam na proposição de
sistemas estruturalmente determinados, como
expliquei anteriormente sobre os Critérios de
Validação das Explicações Científicas.

Insisto: os erros de contabilidade lógica


surgem quando buscamos estabelecer
correlações, relações causais, lógicas e
emergentes entre fenômenos que pertencem ao
Domínio Constitutivo Biológico e ao Domínio
Cognitivo-Interacional, como ao explicar o
aprender, a comunicação, a linguagem, as
percepções, os comportamentos e outros
fenômenos cognitivos (que são fenômenos do
Domínio Cognitivo-Interacional) como funções ou
resultado direto do operar do Sistema Nervoso
(que dizem respeito a fenômenos do Domínio
Constitutivo Biológico).

A ativação cerebral, o sincronismo neural e


a razão cortical são propriedades do organismo

327
distinguidas por um Observador e para
compreender como “surgem” no seu observar
precisamos compreender a Matriz a partir da qual
ele opera ao propor suas explicações na forma de
sistemas estruturalmente determinados. Todas
estas propriedades dependem do operar do
Sistema Nervoso acoplado ao organismo enquanto
colabora na manutenção da sua autopoiese. É a
partir do estabelecimento de relações gerativas
entre estas propriedades e as condutas e demais
fenômenos cognitivos que podemos explicar as
relações entre fenômenos do Domínio Constitutivo
Biológico e do Domínio Cognitivo-Interacional.

Considerando as reflexões que apresentei


até aqui a partir da Biologia-Cultural do
Conhecer, ao observar o sincronismo neural Uri
Hasson incorre em um erro de contabilidade
lógica e propõe uma explicação reducionista ao
afirmar que aquele padrão de ativação é
responsável pela compreensão compartilhada de
uma mesma narrativa, ou que isso permite
concluir que há uma transmissão de informações,
como discuti anteriormente. Da mesma forma
Dumbar comete um erro de contabilidade lógica
ao afirmar que a linguagem surgiu da fofoca, e
esta surgiu a partir do grooming, como estratégias
para manutenção dos vínculos sociais.
O que o sincronismo neural mostra é que
está ocorrendo um acoplamento neural e é a
partir desse acoplamento que temos o
estabelecimento de condutas comunicativas.

328
Nessa perspectiva, as abordagens
cibernética, cognitivistas e dos fenômenos
emergentes, são explicações reducionistas quando
procuram explicar as condutas (que “pertencem”
ao Domínio Cognitivo-Interacional) estabelecendo
relações lógicas, causais ou mesmo emergentes
entre elas e algum aspecto do operar do
organismo em seu Domínio Constitutivo Biológico,
principalmente aquilo que distinguem como
fenômenos do operar do Sistema Nervoso.

O que podemos fazer é estabelecer relações


gerativas a partir de correlações e construir
nossas explicações “deslocando” nosso observar
entre diferentes domínios fenomenológicos,
identificando e enactuando a partir das Matrizes
às quais cada um deles se refere. Ou ainda,
podemos estabelecer relações históricas.

O que interessa agora tendo em vista meus


objetivos com este livro, é que não podemos
compreender e explicar o aprender, que é um
fenômeno do Domínio Cognitivo-Interacional,
através do estabelecimento de “relações
inadequadas” com o Domínio Constitutivo
Biológico; o que podemos é propor relações
gerativas.

Primeira Reflexão sobre o Aprender


Para a Biologia-Cultural do Conhecer,
aprender é sinônimo de acoplamento estrutural e
este é um fenômeno que pertence ao Domínio
Cognitivo-Interacional. Isso implica que devemos

329
buscar as explicações para o aprender dentro
deste domínio, sem estabelecer relações causais,
lógicas ou emergentes com o Domínio
Constitutivo Biológico. Entretanto, como
Observadores podemos estabelecer relações
gerativas entre ambos domínios, como você já
sabe.

Quando o aprender ocorre o Observador


distingue condutas denominadas aprendizagens
ou aprenderes, que implicam o acoplamento
estrutural entre o organismo e seu ambiente, ou
entre organismo. Em seu viver relacional não
podemos perder de vista que um organismo se
acopla simultaneamente à distintos aspectos ou
perturbações provenientes de seu ambiente físico
e cultural, que constituem o meio-nicho que
permite o seu viver.

O acoplamento estrutural está relacionado


à dois processos: (1) ao aprender, e (2) à formação
de unidades autopoieticas de ordem superior,
como no caso do acoplamento entre células
formando os organismos metacelulares, ou
unidades autopoieticas de segunda ordem. A
formação destas unidades implica também uma
certa modalidade de aprender, assim como o
acoplamento entre organismos que leva a
formação de sistemas sociais ou unidades
autopoieticas de terceira ordem. Logo, a
formação de sistemas sociais implica que os
organismos que os constituem apresentam
determinados aprenderes. Como você já sabe,
quando o acoplamento ocorre através de condutas

330
linguísticas dizemos que ocorreu um
acoplamento social e caso ocorra uma
coordenação consensual de ações utilizando
elementos de um Domínio Linguístico, ou seja,
através do linguajear, assinalamos que ocorreu
um (aprender) que é um fenômeno tipicamente
humano.

Como um organismo está sempre acoplado


ao seu ambiente, ou se acoplando a ele (e isso se
mantém enquanto ocorre seu viver, caso contrário
o organismo morre) todas as condutas que ele
apresenta no seu Domínio Cognitivo-Interacional
podem ser distinguidas como aprendizagens e são
inerentemente adaptativas.

Assim como a validade de uma explicação


depende dela ser ou não aceita por um
Observador ou por uma comunidade de
observadores aos quais ela se destina, da mesma
forma, quem distingue ou não um aprender como
tal é o Observador ao aceitar que tal conduta
implica que ocorreu o acoplamento do organismo
no domínio dentro do qual ele faz sua distinção.
Como eu disse anteriormente, se o organismo está
vivo é sinal que está acoplado ao ambiente, o que
implica que o acoplamento (e o aprender) está
sempre ocorrendo. O que o Observador distingue
como uma aprender específico é uma suposição
sua de que determinada conduta implica que
ocorreu um acoplamento entre o organismo e
determinada perturbação ou classe de
perturbações, segundo critérios que ele mesmo
especifica. Se o aprender sempre ocorre, a

331
questão que se coloca então é o que estamos
aprendendo especificamente numa dada
interação, ou seja, a que estamos especificamente
nos acoplando?
Como você também já sabe, no Domínio do
Observador ele pode descrever a mudança
estrutural decorrente de um acoplamento como a
representação da perturbação na estrutura do
organismo que aprende e é então dizemos que
aprendemos sobre alguma coisa. Vamos refletir
mais a este respeito, porque acredito que muito
daquilo que distinguimos como problemas de
aprendizagem dizem respeito a equívocos na
identificação daquilo que está sendo aprendido no
momento das interações, ou uma insatisfação de
expectativas em relação a isso.

O acoplamento ocorre como resultado das


modificações mútuas que as unidades
interatuantes sofrem sem perder suas identidades
no transcurso de suas interações.
Consequentemente, ele é uma “via de mão dupla”
e para que ocorra depende de uma predisposição
ou de uma plasticidade de cada unidade que
interage, que vou denominar de predisposição
para aprender. Para um ser humano sua
predisposição para aprender inclui seu estado
estrutural atual, as perturbações que ele admite
como tais, seu emocionar e a Matriz biológico-
cultural a partir da qual opera no momento da
interação.

332
Como os organismos apresentam uma
estrutura mais plástica que o ambiente, o que
implica numa maior predisposição para aprender,
atribuímos aprendizagem aos organismos e não
ao seu ambiente, mas podemos dizer que o
ambiente também aprende. O fato é que no
acoplamento estrutural entre organismos todos
aqueles que interagem sofrem modificações
estruturais recíprocas e aprendem na
dependência de sua predisposição para aprender.
Isso implica que o aprender dos organismos que
interagem não é igual e, consequentemente, eles
não exibem as mesmas condutas ou aprenderes
durante estas interações.

Em um outro extremo, com o


estabelecimento de uma cultura material,
desenhos, pinturas, esculturas, utensílios,
ferramentas, textos e outros elementos passaram
a ser formas de entrar em contato com condutas
comunicativas de outras épocas sem que haja
contato direto com os seres humanos
responsáveis por sua autoria, de forma temporal e
espacialmente assíncrona. Os elementos da
cultura material são sistemas “não-plásticos” ou
entes inertes, considerando que sua estrutura
não é passível de transformação durante as
interações, e consequentemente não têm uma
predisposição para aprender 108. Assim, em nossas

108
Com o advento das mídias digitais interativas e outras tecnologias de
informação e comunicação estes elementos da cultura material podem
sofrer diferentes graus de mudança estrutural, ou seja, tem se tornado
cada vez mais adaptáveis aos usuários, o que implica que têm

333
interações com elementos da cultura material há
uma assimetria no acoplamento estrutural,
considerando que nós somos passíveis de
mudanças estruturais na dependência da nossa
predisposição para aprender, ou seja, somos
capazes de aprender, mas esses elementos não
são. Isso porque os seres vivos são sistemas
dinâmicos, diferentemente dos entes ou unidades
inertes, que consequentemente não aprendem.

Dada esta assimetria no acoplamento


estrutural, este é outro motivo que nos leva a
dizer que aprendemos sobre algo, ou que o
aprender ocorre em relação a algo, já que este
algo (ente inerte) não aprende. Se estamos vivos e
acoplados ao nosso entorno é o Observador quem
distingue qual tipo de conduta implica que
aconteceu um aprender em relação a uma
determinada classe de perturbação, segundo
critérios que ele mesmo especifica, como afirmei
anteriormente.
Acontece que extrapolamos esta conclusão
e quando interagimos com outros seres humanos
tendemos a acreditar que quando um dos
organismos atua como “agente ativo” ele ensina
algo a outro organismo, sem necessariamente
aprender. Dito de outra forma, acreditamos que aí
também há uma assimetria no acoplamento,
como aquela observada na interação entre
organismos e entes inertes, e ao fazer isso
tratamos sistemas dinâmicos como nós, os seres

predisposição para aprender. Isso foge ao escopo desta discussão


(pretendo refletir a respeito em outros textos).

334
humanos, como se fosse tais entes. Essa forma de
reflexionar implica uma Matriz e um respectivo
emocionar no qual acreditamos que em cada uma
de nossas interações há seres humanos que só
aprendem e outros que só ensinam e esta
polarização nos leva a acreditar que há uma
transmissão de informações durante este tipo de
interação. Isso implica numa abordagem
alienante de nosso viver biológico-cultural que
fica explícita em interações nos ambientes
escolares, nas quais os professores têm algo a
ensinar para seus alunos sem nada aprender com
eles. Operar a partir desta Matriz leva os
professores a assumirem uma postura de
“detentores do saber” e agentes ativos nos
processos de aprendizagem e ensino que se
estabelecem, atuando como entes inertes que
consequentemente impõem o que deve ser sabido
aos seus alunos, que atuam de forma passiva sem
que sua predisposição para aprender seja levada
em consideração.

Nestas condições temos uma situação na


qual não há um novo acoplamento estrutural,
dado que os professores atuam como entes
inertes e os alunos também não sofrem mudanças
estruturais em relação aquilo que os professores
acreditam serem os objetivos da aprendizagem.
Em situações desta natureza algum aprender está
ocorrendo, mas não é aquele que imaginamos, ou
esperamos, por se tratar de uma situação de
interação artificial, desvinculada de nosso viver
biológico-cultural. Aí advém o mal-estar, o

335
sofrimento, a dor e o adoecimento. Que tipo de
aprender pode estar ocorrendo nestas condições e
como podemos fazer com que ocorram aqueles
que desejamos?
As condutas que um Observador distingue
como aprenderes podem indicar acoplamentos
que já ocorreram e que levam a observação de
condutas homólogas às que ororreram
anteriormente no encontro com a mesma classe
de perturbações, ou um novo acoplamento que
ocorre no momento do encontro com novas
perturbações, levando à observação de uma nova
conduta. Esta distinção é arbitrária e operacional,
pois mesmo nos acoplamentos que já ocorreram
ocorre um certo “ajustamento”, considerando que
a estrutura do organismo está em constante
mudança e que não é a mesma que interagiu com
a mesma classe de perturbações anteriormente.
Sem dúvida que tal “ajustamento” é mais
significativo em termos de mudanças estruturais
quando o acoplamento ocorre com perturbações
que são novidades para o organismo.

Nas interações entre professores e alunos


esperamos que ocorram novos aprenderes e que
as condutas decorrentes sejam indicativas de
acoplamentos em relação aquilo que nos
propomos ensinar. A partir do que expliquei
anteriormente, acredito que o que sustenta uma
abordagem alienante do viver biológico cultural
nas situações de sala de aula não é considerar
que os alunos são sujeitos passivos. Muitos
professores e projetos pedagógicos assumem que

336
isso não é adequado e que os alunos devem ser
sujeitos ativos na construção dos seus saberes.
Independentemente de procederem ou não de
forma coerente em relação aquilo que propõe, o
que ocorre é que nas situações escolares supomos
haver uma assimetria no acoplamento estrutural
e tratamos os professores como entes inertes, e aí
está a origam do mal estar e sofrimento nos
ambientes escolares. É a partir disso que se
consolidam interações nas quais o professor tem
uma baixa predisposição para aprender, pois
acredita e assume que seu papel é ensinar, e é
justamente isso que inicia um ciclo de interações
sem que ocorram os acoplamentos estruturais
esperados, ou seja, a observação de novas
condutas específicas em relação aos objetivos
escolares. Com isso as interações passam a seguir
um curso onde parece que professores e
estudantes não se entendem e não falam a
mesma língua, e é isso mesmo o que ocorre, por
que cada um deles apresenta condutas que dizem
respeito a acoplamentos que já aconteceram.
Então o professor está explicando e esperando
que os alunos aprendam um tema dentro do
Domínio Linguístico da Biologia, e um aluno está
mexendo no celular e se mostra contrariado
quando é repreendido. Fazendo um exercício de
imaginação, este comportamento do aluno pode
ser homólogo a um acoplamento que já ocorreu,
quando em outra situação desinteressante ele
optou por mexer no celular e isso mudou seu
emocionar em relação aquela situação e agora,

337
diante de uma nova situação desinteressante, ele
opera como já aprendeu e de uma forma que em
último caso implica manter sua autopoiese. Como
o aluno opera a partir de uma Matriz diferente do
professor, para ele não há mal nenhum em mexer
no celular quando se sente assim, o que para o
professor, que opera a partir de outra Matriz, é
algo inconcebível. Então o professor chama a
atenção do aluno e este se sente contrariado.
Posso imaginar que o comportamento do
professor é este por que em outra situação
quando ele agiu dessa forma conseguiu recuperar
a atenção do seu interlocutor, que era aquilo que
esperava na ocasião dado seu emocionar. Então
ele se comporta dessa forma já aprendida porque
espera que o aluno lhe dê atenção para poder
aprender aquilo que ele está ensinando e que
julga ser importante a partir da sua perspectiva,
ou seja, a partir da Matriz biológico-cultural a
partir da qual opera. Todos estão se comportando
segundo algo que aprenderam, mas o que ocorre é
que não se entendem e parece que estão em
mundos distintos no momento desta interação
atual. E realmente estão, pois operam a partir de
Matrizes distintas e em um emocionar onde não
há espaço para considerar o outro como legítimo,
já que assumem uma assimetria no acoplamento
estrutural que não condiz com nosso viver como
seres humanos biológico-culturais.

338
Considerando que um sistema autopoietico
molecular é um sistema homeostático109 cuja
variável que mantém constante é sua organização
autopoietica [15], para Maturana e Varela as
mudanças estruturais compensatórias que este
sistema experimenta no seu encontro com
perturbações durante suas interações podem ser
de dois tipos, segundo a forma como se realiza
sua autopoiese: (1) mudanças conservadoras,
que são compensações que não requerem
mudanças nas variáveis mantidas constantes
através dos processos homeostáticos que as
compõem; e (2) mudanças inovadoras, que
implicam mudanças nessas variáveis. Mudanças
conservadores implicam acoplamentos estruturais
que já ocorreram, enquanto nas mudanças
inovadoras temos novos acoplamentos.

Mudanças conservadoras implicam que


não há mudança na forma de realização da
autopoiese, enquanto nas mudanças inovadoras
as interações conduzem a uma variação no modo
de sua realização. As mudanças inovadoras
dependem da ontogenia, que é um processo de
especificação de uma autopoiese particular,
devido principalmente à história de interações do
sistema [15]. Como as mudanças estruturais
compensatórias são distinguidas por um
observador como condutas, consequentemente há

109
Um sistema Homeostático mantém um equilíbrio dinâmico através de
diferentes sistemas de regulação inter-relacionados. Isso resulta num
estado denominado homeostase, no qual certas condições ou variáveis
do meio interno orgânico são mantidas estáveis.

339
condutas conservadoras e condutas
inovadoras.

Exemplos de condutas conservadora são


observados quando:
 frente uma perturbação luminosa a
pupila se contrai (o que constitui o
reflexo pupilar),

 frente a percussão do tendão patelar o


músculo quadríceps da coxa se contrai e
a perna sofre extensão (o que constitui o
reflexo patelar),

 paramos quando vemos o sinal vermelho


em um semáforo,

 sentimos e expressamos a emoção de


medo quando vamos ao dentista ou
estamos em qualquer situação homóloga
a outra que já causou medo no passado

Os comportamentos que denominamos de


condicionamentos são exemplos de condutas
conservadoras. Eles incluem os
condicionamentos respondentes e as condutas
inatas, como os reflexos citados anteriormente e
que dependem da apresentação de estímulos
específicos que levam a respostas também
específicas, e os condicionamentos operantes,
que são aqueles nos quais a frequência de uma
conduta aumenta ou diminui devido as suas
consequências. Estímulos reforçadores são
aqueles que aumentam a frequência da resposta

340
aprendida, enquanto os estímulos punitivos
diminuem a frequência da resposta aprendida).

Aquilo que Maturana e Varela consideram


condutas inatas são exemplos de condutas
conservadoras assim como todas as condutas já
aprendidas, pois frente perturbações homólogas o
organismo exibe condutas também homólogas (da
perspectiva ontogenética) e não há mudança na
forma de realização da autopoiese. No reflexo
pupilar a presença da perturbação induz um
curso de mudanças estruturais transitórias no
estado de ativação do Sistema Nervoso e no grau
de contração da musculatura pupilar. Após o
término da interação com a perturbação o sistema
como um todo volta a um estado estrutural muito
próximo ao estado anterior ao encontro com a
perturbação, ou seja, nestes casos não há
mudança na forma de realização da autopoiese, e
isso se aplica a todos os exemplos citados. As
funções “puramente biológicas”, de forma geral,
são exemplos de condutas conservadoras, como a
digestão do alimento, o ciclo respiratório (que é
constituído por uma sequência de inspirações e
expirações), o ciclo cardíaco (constituído por uma
sequência de contrações e relaxamentos do
músculo cardíaco), o enchimento e o
esvaziamento da bexiga urinária. Os
condicionamentos operantes estão no limite entre
o que considero serem funções puramente
biológica e os fenômenos de origem cultural, pois
o que distinguimos como estímulos reforçadores
ou são culturalmente determinados para os seres

341
humanos (por exemplo: há certas culturas nas
quais a dor frente certas situações pode não atua
como estímulo punitivo).

Quanto mais a perturbação parecer uma


novidade ao organismo, quanto mais a conduta
for determinada pela participação do Sistema
Nervoso110 ou quanto mais persistente no tempo e
intensa for a atuação da perturbação, a
possibilidade de retorno da estrutura a um estado
homólogo àquele antes do início da interação
diminui e então temos uma conduta nova, ou
seja, uma conduta inovadora.

Maturana e Varela distinguem também


condutas ontogênicas ou condutas aprendidas
(as quais eu também denomino de aprendizagens
ou aprenderes) e condutas inatas. As condutas
aprendidas são aquelas que dependem de uma
história de interações durante a qual há
acoplamento estrutural do organismo com seu
entorno ou com outro organismo, guiando o curso
de mudanças estruturais. Consequentemente,
para saber se uma conduta foi ou não aprendida
devemos conhecer a ontogênese do organismo, ou
seja, sua história de alterações estruturais com
manutenção da autopoiese e da adaptação. Logo,
aprender é o processo que permite o
estabelecimento de condutas ontogênicas e nossa
ontogenia é o resultado dos aprenderes que
ocorrem durante nossa deriva natural. Quero

110
Dada a plasticidade do Sistema Nervoso, por ser um sistema dinâmico
fechado, no qual a alteração de um componente repercute no sistema
como um todo.

342
ampliar essa reflexão convidando você a refletir
comigo a respeito do início de nossa vida
intrauterina.

Com a fecundação de um “óvulo” por um


espermatozoide forma-se uma célula denominada
zigoto, que inicia uma série de clivagens (ou
mitoses111) que darão origem a um embrião. O
zigoto está operando inicialmente num domínio
fenomenológico unicelular e cada célula que se
forma a partir dele recebe a denominação de
blastômero. Até a terceira clivagem os
blastômeros diminuem de volume a cada divisão,
estão frouxamente conectados entre si e ainda
têm condutas idênticas e de certa forma
independentes em relação aos demais
blastômeros que se formam. Na terceira clivagem
os blastômeros aumentam de tamanho e
conectam-se entre si formando uma bola
compacta de células, na qual os blastômeros mais
internos estão conectados através de junções
comunicantes 112 o que permite seu acoplamento
estrutural. A partir daí estes blastômeros
começam a apresentar condutas distintas
daqueles blastômeros mais periféricos, o que
permite concluir que sofreram mudanças
estruturais graças ao seu acoplemento. Cerca de
3 dias após a fecundação a quarta clivagem dá
origem à uma estrutura denominada mórula (que

111
A mitose é um processo de divisão celular a partir do qual uma célula
dá origem a duas outras com a mesma “bagagem genética”.
112
Junções comunicantes são um tipo de especialização da membrana
plasmática que certas células apresentam, e que permite uma conexão
entre os citoplasmas de células adjacentes.

343
pode conter entre 12 a 36 blastômeros), na qual
as células mais internas constituem a massa
celular interna ou embrioblasto, que dará
origem aos tecidos do embrião, e as células mais
externas constituem a massa celular externa ou
trofoblasto, que dará origem à placenta [145]. As
células do embrioblasto, graças ao seu
acoplamento estrutural, dão origem a uma nova
unidade e a um novo domínio fenomenológico,
que é onde ocorrem os fenômenos típicos dos
metacelulares, ou unidades autopoieticas de
segunda ordem. Esse é o momento onde se
constitui nosso Domínio Constitutivo Biológico e
um Domínio Cognitivo-Interacional inicial no qual
iteragimos com perturbações provevientes do
corpo de nossa mãe, pois nossa estrutura e
condições ainda não permitem a interação com
perturbações provenientes de outros organismos.

Considero que no domínio do operar de


cada blastômero, visto como unidade simples que
compõe o embrião, há um certo tipo de aprender e
é isso que diferencia as condutas dos bastômeros
que constituem o embrioblasto daqueles que
constituem o trofoblasto. O embrião em seu
operar como unidade simples em relação ao
meio-nicho intrauterino que o contém também
aprende, mas como as condições estruturais dos
zigotos e embriões humanos são muito parecidas,
assim como as condições do meio-nicho
intrauterino, eles apresentam condutas muito
similares nessa fase da ontogênese, o que nos dá
a impressão, quando numa análise comparativa

344
entre diferentes embriões humanos se
desenvolvendo, que nesta fase da vida não há
condutas aprendidas, mas apenas condutas
inatas. Insisto: são as condições iniciais
“estereotipadas” para todos os zigotos e embriões
humanos que dão a impressão de que nessa fase
eles ainda não aprendem e que exibem apenas
condutas inatas. Na fase de mórula o embrião que
se desenvolve opera num domínio fenomenológico
e a partir de uma Matriz puramente biológica, ou
em um Domínio Não-Linguístico, e ainda não
constitui e opera em Domínios Linguísticos.

Considerando que o que caracteriza uma


espécie é um modo de vida, ou fenótipo
ontogênico, e não uma bagagem genética, um
zigoto ou embrião ainda não se “diferenciam” dos
demais seres vivos como seres humanos, no
sentido que não vivem ainda seu viver como seres
biológico-culturais, mas apenas em sua dimensão
biológica. Acretido que essa “diferenciação” não
ocorre de forma abrupta mesmo na vida
extrauterina e que temos um potencial de sermos
Seres Humanos113. As condutas dos embriões
humanos são muito similares entre si, apesar de
diferentes em relação aos embriões de outras
espécies animais, dado seu determinismo
estrutural específico. Darwin acreditava que todos
os embriões animais eram praticamente idênticos
em suas fases iniciais de desenvolvimento e suas

113
Em outro texto pretendo refletir a respeito do fato de que talvez não
tenhamos desenvolvido ainda toda nossa humanidade e aquilo que
significa em todo seu potencial sermos seres humanos.

345
conclusões provém dos estudos dos desenhos dos
“embriões de Haeckel” [146], mas hoje sabemos
que há grandes diferenças entre os embriões
humanos e dos demais animais. Apesar dessas
diferenças considero que embriões ainda não são
plenamente humanos no sentido de não serem
ainda seres biológico-culturais.

Não vou especificar a partir de qual


momento, mas assumo que é com o
desenvolvimento do Sistema Nervoso e das
superfícies motora e sensorial 114, e com o
consequentemente aumento nas possibilidades de
relações senso-motoras, acoplamentos e do
domínio de condutas que o Sistema Nervoso
possibilita, que o organismo, agora um feto,
começa a interagir não apenas com o meio-nicho
intrauterino, mas também com o ambiente
externo ou extrauterino. Estas interações ocorrem
inicialmente de forma indireta, mas são
“significativas”, como mostram alguns estudos do
grupo de Patrícia Kuhl sobre capacidade de
distinção de fonemas da língua natal por fetos
durante a vida intrauterina. Qualquer um que
tenha contato com uma mulher grávida pode
observar que o bebê (feto) se mexe dentro da
barriga da mãe (de forma que isso se torna visível
pela observação direta, ou quando colocamos a
mão sobre a barriga) e parece reagir frente
estímulos de toque, à fala daqueles que interagem
com ele, ou às variações nos estados emocionais

114
Esse processo se inicia a partir da terceira semana de vida intrauterina,
com a formação da placa neural e em seguida do tubo neural.

346
da mãe. Antes dessa fase, mesmo que a mãe fale
ou interaja com o bebê, sua voz e seu toque não
atuam como perturbações, pois a estrutura do
embrião ainda “não admite” que atuem como tais,
dado o determinismo estrutural e pressupondo é
o Sistema Nervoso que possibilita que isso ocorra.
Outra alternativa é supor que sem o
desenvolvimento do sistema motor do feto essas
condutas frente perturbações extrauterinas
também ocorrem, mas não são passíveis de
observação.

O acoplamento estrutural entre mãe e feto


é extremamente complexo e envolve o
compartilhamento de um meio interno comum
através da circulação placentária, por meio da
qual o feto sofre influência materna nutricional e
hormonal, por exemplo, e também influencia a
mãe, permitindo que eles se inter-relacionem
muito antes do desenvolvimento do Sistema
Nervoso do feto. Esse desenvolvimento amplia os
domínios de conduta e de acoplamento estrutural
entre o feto e a mãe, e passa a incluir o ambiente
extrauterino. Como já comentei, Iiso ocorre
inicialmente de forma indireta, já que é um
contato através da parede uterina e das demais
estruturas do corpo da mãe que se interpõem
entre o feto e o ambiente externo, mas considero
ser fundamental para o posterior desenvolvimento
desse bebê em sua vida extrauterina, pois cria um
novo domínio de acoplamentos estrutural e,
consequentemente, de aprenderes e de mudanças
estruturais consequentes, como sugerem, por

347
exemplo, alguns estudos sobre vida intrauterina e
o autismo ou algumas pré-disposições para
transtornos psicológicos associadas à certas
“vivências” da mãe e do feto durante a gravidez,
[147–149].

Um exemplo da importância das interações


precoces sobre o desenvolvimento é citado no livro
“A Árvore do Conhecimento” e apesar de se tratar
de um exemplo envolvendo um mamífero não-
humano e que ocorre logo após o nascimento,
posso usá-lo como comparação, já que estou
tratando organismos operando em um domínio
onde os aspectos biológicos são os mais
relevantes:

Se separarmos um carneiro recém-nascido de sua


mãe por algumas horas, devolvendo-o em
seguida, o animalzinho se desenvolverá de modo
aparentemente normal. Crescerá, caminhará,
seguirá sua mãe, sem revelar nada de diferente,
até que observemos suas interações com outros
filhotes de carneiro. A brincadeira desses animais
é correr e dar cabeçadas uns nos outros. Mas o
carneiro que separamos da mãe por poucas horas
não participa. Não sabe e não aprende a brincar,
permanecendo separado e solitário. O que lhe
aconteceu? Não podemos dar uma explicação
detalhada, mas sabemos [...] que a dinâmica dos
estados do Sistema Nervoso depende de sua
estrutura. Portanto, o fato desse animal se
comportar de maneira diferente revela que seu
Sistema Nervoso se tornou diferente do dos
outros como resultado da privação passageira da
mãe. De fato, durante as primeiras horas após o
nascimento dos carneiros, a mãe os lambe
continuamente, passando a língua por todo o seu

348
corpo. Ao separar o filhote da mãe, impedimos
essa interação e tudo o que acarreta em termos
de estímulo tátil-visual e, provavelmente, de
contatos químicos de vários tipos. O experimento
mostra como essas interações são decisivas para a
transformação estrutural do Sistema Nervoso, e
suas consequências aparentemente vão muito
além do simples ato de lamber. [12]

Proponho que os efeitos das interações são


relevantes não apenas após o nascimento, mas
desde a vida intrauterina, onde o feto interage
com seu meio-nicho intrauterino e indiretamente
com o ambiente extrauterino (e de forma mais
frequente com a mãe) e consequentemente,
assumo que não há comportamentos que não
sejam aprendidos, ou seja, que aquilo que
denominamos comportamentos inatos, ou
condutas reflexas, são comportamentos
aprendidos como decorrência de interações ainda
na vida intrauterina.

Estas condutas parecem não ser


aprendidas por que são muito similares entre os
membros de nossa espécie e são assim porque se
estruturam em condições estereotipadas, que são
aquelas do meio-nicho intrauterino, nas quais a
dimensão biológica é mais “relevante” já que o
organismo ainda não opera em domínios
fenomenológicos socioculturais.

Além disso, se assumimos que há condutas


inatas operamos em uma Matriz que nos levará a
explicar que quaisquer condutas consideradas

349
“anormais” tiveram sua origem durante a vida
extrauterina, assim como podemos assumir que
se devem a uma bagagem genética se operamos
em uma Matriz que considera que esses aspectos
são os mais relevantes na determinação das
condutas. No caso do exemplo do carneiro,
apenas a observação mais detalhada e em
condições específicas de interação permitiu
distinguir certas condutas diferenciadas em
relação àquelas observadas nos seus irmãos. No
mesmo sentido, considero que estudos baseados
na Matriz que proponho a respeito de transtornos
psicológicos, estudos sobre autismo, ou em
situações de interação diferenciadas, futuramente
demonstrarão a importância da vida intrauterina
para a ontogênese como um todo, falando a favor
de minha reflexão de que toda conduta é
ontogênica (ou aprendida) e que aprendemos
desde zigotos, embriões e fetos, imersos em um
domínio fenomenológico de coerências sensoriais-
operacionais-relacionais predominantemente
115
biológico .

Aquilo que o behaviorismo (ou


comportamentalismo) denomina de respostas
incondicionadas ou incondicionais, e que são a
base sobre as quais se estruturam as
aprendizagens denominadas condicionamentos
respondentes (clássicos ou Pavlovianos), são

115
O domínio é “predominantemente biológico”, mas não desconsidero
influências socioculturais (ainda não tão relevantes), porque os tipos de
alimentos que uma mãe ingere e os emocionares que vivencia durante a
gravidez, por exemplo, são influências provenientes do meio sociocultural
no qual ela vive.

350
condutas denominadas inatas, ou condutas
reflexas, como por exemplo: o reflexo miotático
(que engloba uma série de reflexos que podem ser
eliciados em diferentes músculos do corpo, como
o reflexo patelar, o reflexo triceptal e o reflexo
biceptal) no qual quando um músculo esquelético
é estirado ele “responde” com uma contração
automática; o reflexo pupilar, no qual frente um
estímulo luminoso a pupila se contrai; o reflexo de
retirada, no qual frente um estímulo doloroso
afastamos a porção do corpo que entrou em
contato com ele, (o que pode envolver um
segmento corporal, ou vários segmentos); reflexos
autonômicos, como a “regulação” da pressão
arterial, da frequência respiratória e dos
automatismos gastrointestinais; e uma série de
outros reflexos que são testados ao nascer (no
primeiro e no quinto minuto após o nascimento) e
que fazem parte da “Escala ou Índice de Ápgar”,
que permite avaliar se o desenvolvimento do
recém-nascido é o esperado, ou dito de outra
forma a partir da perspectiva que proponho, se o
organismo do bebê aprendeu aquilo que “era
esperado” durante o sua vida intrauterina. Como
já afirmei, considero que durante a embriogênese
ocorreram várias aprendizagens (acoplamentos
estruturais) e é por isso que a estrutura presente
ao nascer permite que certas condutas se
manifestem frente determinadas perturbações,
específicas para cada reflexo, pois são
determinadas pela estrutura biológica.

351
É a partir dessa estrutura inicial do bebê
recém-nascido, que já decorre de uma história de
aprenderes intrauterinos, que o bebê começa a
interagir com outros seres humanos,
entrelaçando suas dimensões biológica e cultural,
que o constituirão como ser humano biológico-
cultural.

Como expliquei anteriormente, os bebês


humanos, apesar de todas essas aprendizagens
intrauterinas, nascem “imaturos” quando
comparados a outros animais, “incapazes” de
falar, andar, usar ferramentas e sem uma Teoria
da Mente. Nessa fase do desenvolvimento seu
cérebro consome o equivalente cerca de 60% do
metabolismo basal116 e está em pleno
desenvolvimento, com o crescimento no número
de neurônios e da formação de conexões entre
eles. O cérebro continua a crescer durante toda a
infância e só atingirá seu tamanho máximo a
partir da puberdade. As áreas mais “primitivas”,
em termos filogenéticos, alcançam seu
desenvolvimento pleno em etapas bem precoces e
são responsáveis pela grande maioria das
condutas que denominamos inatas ou reflexas,
enquanto as áreas corticais e neocorticais,
envolvidas com o estabelecimento das funções
psicológicas superiores, cuja origem e estrutura
é biológica-cultural, continuam a se desenvolver
durante toda a vida.

116
É o metabolismo necessário para manter as funções orgânicas
necessárias a vida sem que nenhum outro tipo de atividade seja realizada.

352
Como você já sabe, parece haver fases ou
“períodos críticos de sensibilidade” nas quais
principalmente as conexões entre neurônios
corticais são mais plásticas ou influenciáveis
pelas condições ambientais. Para áreas envolvidas
no processamento sensorial primário,
fundamentais para os aprenderes puramente
biológicos, mas que dão “as bases estruturais”
para todos os demais aprenderes, esse período
crítico ocorre precocemente; para áreas envolvidas
em aprenderes biológico-culturais, como as áreas
de processamento cortical mais elevado e as áreas
corticais pré-frontais, esse período ocorre mais
tardiamente e se estende pela vida adulta e talvez
por toda a vida [150]. Toda essa estrutura e
plasticidade permite que as dimensões biológica e
cultural se entrelacem de forma gradativa e cada
vez mais indissociável, com influências recíprocas
entre ambas.

Segunda Reflexão sobre o Aprender


Todo ser vivo é o resultado de uma
dinâmica espontânea e, portanto, não propositiva,
enquanto que as noções de finalidade,
intencionalidade e propósito surgem apenas nas
reflexões do Observador. Logo, o acoplamento
estrutural e o aprender são processos que
ocorrem de forma espontânea e não direcionada a
um objetivo ou finalidade quando envolvem
predominantemente a dimensão biológica do
viver. Aí estão os tipos de aprenderes que

353
estudamos utilizando modelos experimentais com
animais, já que eles não apresentam uma
dimensão cultural e não são seres linguajeantes,
o que implica que seu Domínio Cognitivo-
Interacional é constituído por fenômenos que
pertencem à Domínios Não-Linguísticos.

Nosso (aprender) tipicamente humano


implica no compartilhamento de Domínios
Linguísticos e, como comentei anteriormente,
alguns fenômenos que a nós parecem puramente
biológicos, como as percepções, são aprenderes de
natureza biológico-cultural. Sem dúvida que os
seres humanos podem apresentar aprederes que
são passíveis de serem explicados a partir dos
paradigmas dos condicionamentos respondentes e
operantes, mas em cada caso devemos refletir que
estes aprenderes não podem ser explicados
dissociando as dimensões biológica e cultural, já
que elas se influenciam mutuamente desde antes
de nosso nascimento. Sendo assim, devemos
ponderar a respeito do quanto nossas explicações
sobre o aprender generalizam concepções a partir
das conclusões de estudos utilizando animais, o
que é típico das ciências cognitivas.

Da mesma forma, Vigotski propunha seu


método inverso e criticava a compreensão dos
comportamentos mais complexos, como aqueles
atribuídos aos seres humanos, a partir do estudo
de comportamentos “análogos” nos animais, ou
seja, criticava a formulação de uma Psicologia
Humana preocupada em explicar as funções
psicológicas superiores a partir da Psicologia

354
Animal. Nesse sentido concordo com Vigotski,
mas a partir de um argumento distinto, ao
assumir que fazer isso é incorrer em explicações
reducionistas, pois nesse caso estamos
estabelecendo relações inadequadas entre
domínios intrinsecamente distintos. Lembre-se,
como expliquei anteriormente, que considero que
não podemos comparar o pescar de um ser
humano e o pescar de um animal, por mais que
pareçam análogos ou homólogos. Entretanto
discordo de Vigostki quando justifica o uso do
método inverso para explicar fenômenos que
dizem respeito a nossa dimensão cultural, como
as funções psicológicas superiores (como a
consciência e a linguagem) pois coloca em
segundo plano ou nega a dimensão biológica117.

Durante o aprender aqueles que interagem


são fontes recíprocas de perturbações que guiam
o curso do fluir de suas interações, “gatilhando”
alterações recíprocas e complementares que são
determinadas pela estrutura presente daqueles
que interagem, segundo sua história e o
emocionar no momento da interação, ou seja,
segundo sua predisposição para aprender. O
Observador pode atribuir finalidades ao aprender
que ocorre em Domínios Linguísticos e Não-
Linguísticos, mas deve considerar que, dado o
determinismo estrutural, o que ocorre no
aprender não é determinado pelas perturbações

117
Em um trabalho futuro pretendo aprofundar as relações entre a
Biologia-Cultural do Conhecer e as explicações de Vigotski, que aqui são
apresentadas muito superficialmente.

355
que levam ao acoplamento, mas pela estrutura de
quem aprende, e tudo isso você já sabe.

Na perspectiva das abordagens


cognitivistas, epistemológicas, cibernéticas e da
complexidade, os fenômenos cognitivos envolvem
informações sendo transmitidas e aprendidas,
captadas, processadas e armazenadas pelo
Sistema Nervoso, dando origem às representações
do mundo a partir de diferentes algoritmos
matemáticos, lógicos, causais ou de padrões
emergentes que permitem condutas adaptativas,
dentre elas as aprendizagens. Se abro mão do
realismo, do representacionalismo e de
pressupostos darwinista, que implicam numa
abordagem alienante do viver biológico-
cultural, e assumo a relatividade fundamental e a
Biologia-Cultural do Conhecer, concluo que:

(1) como seres biológicos, nosso vir a ser


ocorre nos distintos domínios de acoplamento
estrutural que constituem distintos domínios de
aprenderes predominantemente biológicos,
determinados pela realização da autopoiese
molecular que nos constitui como seres vivos, e

(2) como seres biológico-culturais, só


através do conversar, na aceitação do outro como
legítimo outro no conviver, podemos co-criar,
aprender e compartilhar um mundo, ou seja, o
(aprender) tipicamente humano só é possível
através do viver e do refletir em redes de
conversações.

356
Ao nascer já nascemos em um meio-nicho
que nos acolhe e que tem uma dimensão biológica
e uma dimensão cultural entrelaçadas. O tipo de
parto, por exemplo, nos submete às condições
pós-natais distintas, assim como os primeiros
cuidados após o nascimento, o emocionear
daqueles que nos recebem, os vínculos que se
estabelecem principalmente com a mãe e as
condições ambientais em si.

Aprenderes corriqueiros, como a respeito


da distinção das cores, são fenômenos que
mostram a indissociabilidade entre nossa
dimensão biológica e nossa dimensão cultural. Se
não são as perturbações que determinam nossas
experiências cromáticas, como podemos saber se
as cores que eu vejo são as mesmas que você e as
outras pessoas veem? Dada a relatividade
fundamental, a (objetividade) e o determinismo
estrutural, não é possível fazer esta afirmação,
mas supondo que (1) nossa estrutura inicial é
muito parecida, (2) compartilhamos uma cultura,
(3) estamos dispostos a aceitar o outro como
legítimo, e (4) em nosso ser-viver-conhecer-fazer
surgem distintos mundos, como diferentes
matrizes de coerências sensoriais-operacionais-
relacionais, podemos compartilhar estes mundos
no conviver no amar, imersos em redes de
conversações, que são coordenações de
coordenações consensuais de fazeres, sentires e
emocionares entrelaçados. E é assim que
(aprendemos) coisas tão corriqueiras como a

357
identificação das cores do mundo que
compartilhamos em nosso viver.

Uri Hasson encontrou um sincronismo


neural entre pessoas que ouvem uma mesma
história, ou que assistem um determinado filme e
depois ouvem o relato desse filme, e isso não quer
dizer que vivemos as mesmas experiências, mas
que podemos nos acoplar estruturalmente e
compartilhar mundos aos quais passamos a
atribuir “significados comuns”. Só através do
conversar podemos cada vez mais nos abrir para
a construção e compreensão de um mundo
compartilhado, pois o mundo que vivemos é
justamente aquele que compartilhamos.

Durante nossa ontogênese nós aprendemos


o que é “vermelho” não como uma referência a
algo externo a nós mesmos e ao nosso ser-viver-
fazer-conviver, mas como um “produto” desse ser-
viver-fazer-conviver através das nossas interações
com pessoas com as quais convivemos no amar.
Com essas pessoas nós construímos a experiência
que distinguimos como “vermelho” e utilizamos a
palavra escrita ou falada para fazer referência
aquilo que “combinamos” distinguir como tal, e é
isso que eu quero dizer quando afirmo que as
palavras, como todas as condutas linguísticas,
coordenam ações de forma consensual. A
experiência daquilo que distinguimos como
“vermelho” é pessoal, dado que é estruturalmente
determinada, mas foi construída de forma
compartilhada, em sucessivas situações
experienciais concretas que vivemos junto com

358
outros seres humanos. É abstraindo os elementos
dessas situações experienciais concretas, como
distintas coerências-sensoriais-operacionais-
relacionais, que constituimos uma Matriz
compartilhada com aqueles com os quais
convivemos e dentro da qual começamos a operar
e aprendemos a distinguir o que conotamos como
“vermelho”. Quando aprendemos a falar nossa
língua natal, a distinguir distintos “objetos”,
“pessoas”, “ações”, “divindades”, “conceitos”,
“emoções” e elementos de nosso viver, o que
fazemos é aprender a operar a partir de Matrizes
compartilhadas a partir das quais essas
distinções “surgem”.

Insisto: a percepção das cores, assim como


todas as demais percepções, não é determinada
pela operação do Sistema Nervoso, mas é um
fenômeno do Domínio Cogntivo-Interacional que
se configura em nosso conviver e conversar
imersos numa cultura, em rede de conversações
humanas. Diferentemente, as sensações,
concebidas como processos que guiam o
estabelecimento de padrões de ativação do
Sistema Nervoso decorrentes do encontro com
perturbações, são fenômenos biológicos, ou seja,
que pertence ao Domínio Constitutivo Biológico.
Como expliquei anteriormente, assim como
Milner e Godale considero que a percepção é uma
tomada de “consciência” a respeito das sensações
[151], ou um tipo primordial de reflexão elaborada
no Domínio Cognitivo-Interacional e de caráter
cultural. Os padrões de ativação decorrentes das

359
sensações são a base a partir do qual o
Observador elabora e evoca suas percepções,
assim como o sincronismo neural observado por
Uri Hasson durante os atos comunicacionais. Eles
não remetem às representações do mundo que se
percebe, mas ao nosso acoplamento com este
mundo dentro de um Domínio Linguístico.

Lembre-se: os fenômenos do Domínio


Cognitivo-Interacional (como as percepções)
surgem como uma consequência do operar do
organismo em seu Domínio Constitutivo Biológico
(onde ocorrem as sensações), e é dentro do seu
domínio de interações, entrelaçando aspectos
biológicos e culturais, que o ser humano mantém
a sua autopoiese e realiza o viver biológico-
cultural que o caracteriza e distingue dos demais
seres vivos.

Sendo assim, a estrutura do recém-nascido


que já vivenciou o aprender na vida intra-uterina
(como expliquei anteriormente) chega ao mundo
imersa numa cultura e nas interações com outros
seres humanos compartilha Domínios
Linguísticos, ou seja, aprende condutas
comunicativas e é aí que a percepção se estrutura
como processo sociocultural. Considero que as
percepções são uma forma elaborada de distinção,
e ao mesmo tempo uma forma primordial do
aprender sobre as quais todos os demais
aprenderes se estruturam, desde aqueles
predominantemente biológicos até o (aprender)
tipicamente humano.

360
Terceira Reflexão sobre o Aprender
Se um ser vivo está vivo, é porque está
operando fora do seu domínio de interações
destrutivas, o que permite que mantenha sua
autopoiese. Neste caso, todas as suas ações são
efetivas no domínio do seu existir, o que implica
que em todas as suas interações este organismo
está acoplado ao seu entorno e é por isso que se
mantém vivo. Sendo assim, o aprender está
ocorrendo, ou já ocorreu, e o organismo em
questão está operando a partir das consequências
deste aprender, que dizem respeito às mudanças
em sua estrutura. Esta é uma explicação para o
aprender que é comum a todos os organismos,
mas me interessa explicar o (aprender) típico do
ser humano como ação que ocorre em seu viver
biológico-cultural, utilizando para isso elementos
deste viver.

O acoplamento estrutural primário de todo


organismo ocorre entre ele e o entorno imediato
que o contém, ou seja, entre ele e seu nicho
ecológico118 ou meio-nicho. Para os organismos
sociais seu meio-nicho corresponde a uma parcela
do seu mundo natural e do seu mundo
cultural119, enquanto para organismos não
sociais, corresponde apenas a uma parcela do seu
mundo natural. O meio-nicho é a porção do

118
A concepção de nicho ecológico que apresento aqui é distinta, apesar
de relacionada, daquela utilizada pela Ecologia.
119
Lembre-se que há uma concepção de cultura exclusivamente humana,
como rede de conversações, enquanto há outra que permite considerar
que os animais também têm uma cultura. É a esta concepção que me
refiro aqui.

361
entorno ou ambiente que torna possível nossa
existência, ou seja, é “a boa terra que nos acolhe”.
Ele inclui tudo aquilo que é fundamental para
nossa sobrevivência e para a manutenção do
nosso bem-estar, ou seja, para a manutenção da
nossa autopoiese.

Isso não quer dizer que a sobrevivência e o


bem-estar são objetivos a serem alcançados, pois
o organismo vive seu viver de forma espontânea e
não propositiva. É como se o organismo deslizasse
através do ambiente constituindo no encontro
com ele o seu meio-nicho, em uma deriva
natural, seguindo uma trajetória favorável ao seu
bem-estar e a manutenção da sua autopoiese.
Tudo isso a partir do seu determinismo
estrutural, segundo as condições da interação,
sua história e o emocionar presente no momento
do seu encontro com este ambiente.

Tive a oportunidade de ouvir pessoalmente


o professor Maturana explicando isso através da
analogia de um esquiador (organismo) que desliza
despreocupado (vive seu viver espontaneamente)
através de uma montanha com neve (ambiente) e
que ora desvia de uma pedra (encontro com
perturbações), ora opta por jogar o corpo para a
esquerda, ora para a direita (emocionear) e que
durante esse passeio (viver espontâneo) observa
(Domínio do Observador) as marcas que ficaram
na neve (meio-nicho), assim como a neve que
ficou no seus esquis (marcas do acoplamento
estrutural em sua estrutura). São estas marcas
que tornaram possível este passeio, além de

362
serem um registro histórico dele, pois a estrutura
atual depende de uma história de interações e
consequentes mudanças estruturais, ou seja, da
ontogênese. Observe que o professor Maturana
não optou por usar como analogia a referência a
uma competição de esqui, mas a um passeio
despreocupado, ou seja, se referiu a uma
atividade espontânea como o viver dos seres vivos
em seu Domínio Constitutivo Biológico, ou como
as atividades as quais denomina de brincar. E
optou por esta explicação porque se coloca em um
emocionar distinto daquele típico de nossa
Cultura Patriarcal competitiva. Ele aborda nossas
interações e nossa ontogênese como uma deriva
natural não propositiva, e utiliza a analogia de um
encontro entre o esquiador e a neve para explicar
como surge o meio-nicho que passam a
compartilhar e que permite o viver do esquiador
naquele momento. Ele não explicou que as pedras
no caminho foram as responsáveis por definir a
escolha do trajeto, ou que ele foi traçado tendo em
vista otimizar o tempo, melhorar a velocidade de
forma a ganhar uma corrida, o que implicaria
chegar primeiro que qualquer outro; tampouco fez
comentários sobre o físico do esquiador e as
características dos esquis que favoreceriam uma
vantagem competitiva. Se fizesse assim estaria
assumindo uma abordagem alienante do viver
biológico-cultural e sua proposta é justamente
refletir sobre esta abordagem e se queremos ou
não mantê-la em nosso viver. Este é o mesmo
convite que faço a você.

363
No Domínio Constitutivo Biológico nada
está pré-definido ou visa uma meta. O organismo
tem sua forma de operar e no encontro com o
ambiente ou com outro organismo, que também
tem sua forma de operar, ambos se acoplam “na
medida das suas possibilidades” presentes, ou
seja, segundo seus respectivos domínios de
determinismo estrutural e seus emocionares. São
estes emocionares que definem o que é bem-estar
e mal-estar para um ser humano, na dependência
da Matriz na qual ele opera e que depende de sua
cultura, ou seja, da rede de conversações na qual
está inserido. Caso ocorra um mal-estar, na
maioria das ocasiões o organismo muda sua
conduta e segue um “trajeto” distinto de
interação.

Ocorre que como seres biológico-culturais


atribuímos finalidades e propósitos ao nosso
viver, a partir de nosso operar como
Observadores, e podemos insistir em viver o mal-
estar, a dor e o sofrimento que levam ao
adoecimento. E isso ocorre na proporção direta do
quanto nos afastamos, em nosso viver cultural,
daquilo que somos em nossa origem biológica, ou
seja, seres amorosos e linguajeantes. Dito de
outra forma, o mal-estar que vivemos decorre de
um viver em rede de conversações que negam
nossa natureza biológico-cultural por negarem o
amar. Infelizmente é este tipo de viver que a
maioria das instituições sociais tem propiciado e,
dentre elas, os ambientes escolares. Minha
grande preocupação, assim como a de outros

364
educadores e de pessoas que refletem a este
respeito (e você provavelmente está incluso aqui),
é que a grande maioria de nós vivemos desde
nossa infância imersos nestes ambientes que
deveriam propiciar o pleno desenvolvimento de
nossas potencialidades humanas, mas que têm
sido pouco efetivos neste sentido, para não fazer
uma afirmação mais contundente.

Em estudos nos quais primatas recém-


nascidos foram privados do convívio com suas
mães e nos quais as mães foram privadas do
convívio com seus bebês, foi possível identificar
graves alterações comportamentais. A Teoria do
Apego de Bowlby foi estruturada a partir das
conclusões destes estudos e assim como a
concepção que apresento aqui, considera que os
vínculos entre as mães e os seus bebês são
fundamentais para a sobrevivência e a
manutenção do bem-estar dos primatas desde
sua tenra infância, assim como os vínculos com
os bebês o são para suas mães. Como o meio-
nicho inclui tudo aquilo que é necessário para
nossa sobrevivência, isso implica que as mães e
seus bebês fazem parte do meio-nicho um do
outro. O mesmo raciocínio se aplica a presença de
outros organismos da mesma espécie, ou
coespecíficos, que são fundamentais para o viver
dos organismos sociais e que também fazem parte
do seu meio-nicho.

Além da presença de um coespecífico


implicar na nossa sobrevivência, os seres
humanos só são “realmente” humanos no seu

365
conviver no linguajear e em redes de conversações
com outros seres humanos. Logo, para nós é a
presença de outros seres humanos como parte de
nosso meio-nicho desde o início de nossa
existência que permite que nos tornemos
humanos. Tanto é assim que atribuímos a estes
coespecíficos relevantes diferentes papéis sociais
significativos, aos quais nos referimos ao falar
sobre “mãe”, “pai”, “avó”, “parentes” e “amigos”, e
a cada um deles podemos especificar distintos
graus de importância.

Um organismo vivo nunca está só, mas


está sempre acoplado ao seu nicho formando com
ele uma unidade operacional-relacional
organismo-nicho. Esta unidade é “organismo-
nicho” porque ambos estão acoplados, e é
“operacional-relacional” em referência aos dois
domínios do existir nos quais os seres vivos
realizam seu viver, que são o Domínio
Constitutivo Biológico (onde operamos como
sistemas autopoieticos moleculares) e o Domínio
Cognitivo-Interacional (onde vivemos como seres
humanos nossa dimensão relacional). Isso implica
que o meio-nicho é parte da estrutura da unidade
operacional-relacional que constitui com o
organismo ao qual está acoplado.

Consequentemente, quando um organismo


interage com outro organismo, quem interage são
duas unidades operacionais-relacionais
organismo-nicho e o acoplamento e o aprender
decorrentes as modifica mutuamente.

366
Sendo assim, durante as interações é como
se houvesse duas “camadas” ou dimensões de
acoplamento estrutural: (1) do organismo
acoplado ao seu meio-nicho, formando uma
unidade operacional-relacional organismo-nicho,
e (2) da unidade operacional-relacional
organismo-nicho como um todo se acoplando a
outra unidade deste tipo ou a alguma região do
seu entorno. Esta primeira dimensão do aprender
está envolvida na constituição das mémorias.

Quando uma unidade operacional-


relacional organismo-nicho se acopla (aprende)
seu meio-nicho se amplia como parte das
mudanças estruturais decorrentes deste
acoplamento. Sendo assim, durante o aprender
cada uma dessas unidades passa a incluir em sua
estrutura elementos do ambiente físico e cultural,
e até mesmo a outra unidade com a qual se
acopla (total ou parcialmente). Como a
delimitação do nicho tem caráter operacional, isso
não quer dizer que a unidade contém elementos
do ambiente, da cultura ou de outro organismo
literalmente dentro de si, mas que isso ocorre de
alguma forma em termos estruturais.
Consequentemente toda interação fica marcada
na estrutura e consequentemente na história do
organismo em questão. Para os organismos que
possuem Sistema Nervoso é através das
propriedades deste sistema que as possibilidades
disso ocorrer se ampliam.

Um exemplo que pode favorecer a


compreensão destas marcas que as interações

367
deixam na estrutura dos organismos são os anéis
de crescimento, que são círculos concêntricos
observados em cortes transversais do tronco de
em algumas plantas. Estes anéis estão localizados
num tecido vegetal denominado xilema
secundário, que se forma a partir do câmbio
vascular. O câmbio é um tecido envolvido no
crescimento em diâmetro do tronco e cujo
funcionamento só ocorre durante a primavera e o
verão nas plantas de regiões temperadas (onde as
estações do ano são bem definidas). É por este
motivo que a contagem dos anéis de crescimento
pode ser utilizada para a estimativa da idade das
plantas que os possuem.

Outro exemplo que literalmente deixa


marcas na estrutura do organismo são as
cicatrizes, que correspondem a uma mudança
estrutural que ocorre na camada da pele
denominada de derme. Quando algum trauma
danifica esta camada há uma remodelação do
colágeno ali presente, com consequente
fechamento do ferimento formando uma cicatriz,
antes que a regeneração de células comece a
ocorrer neste local.

Mais um exemplo das marcas que as


interações deixam na estrutura do organismo é
quando nossa pele escurece durante uma
exposição prolongada ao sol. Nestas situações
ocorre um estímulo na produção de melanina,
que é um pigmento produzido pelos melanócitos
e que determina a cor da pele. Por isso, as regiões
em contato mais intenso com os raios solares se

368
tornam mais escuras graças a maior quantidade
de melanina presente nos melanócitos que estão
ali, enquanto aquelas que não tiverem este
contato permanecem na sua cor original, dando
origem às marcas de biquínis, por exemplo.

Em seu livro “Muito Além do Nosso Eu”,


Miguel Nicolelis explica um fenômeno muito
interessante, relacionado a estes exemplos.
Quando entramos em contato com algum objeto
há certas áreas do córtex somatosensorial que
se tornam ativas. Estas áreas estão envolvidas na
sensação e percepção do tato e sinalizam qual
região específica do corpo está interagindo com o
objeto em questão. Por conta disso dizemos que o
córtex somatosensorial apresenta uma
somatototpia, o que implica que é como se
contivesse um mapa táctil do corpo representado
nele (Figura 16).

Ou seja, quando diferentes regiões da


superfície sensorial entram em contato com
perturbações externas ao organismo as áreas do
córtex somatosensorial correspondentes a estas
regiões se tornam ativas e é isso que determina a
sensação e a consequente percepção táctil neste
local. De forma simplificada, um jogador de
futebol que tem destreza em controlar os
movimentos de uma bola com seus pés é capaz de
fazer isso porque aprendeu um controle fino dos
movimentos que só é possível graças às sensações
decorrentes de repetidas interações do pé com a
bola, o que implica que ele e a bola estão
estruturalmente acoplados.

369
Figura 16. Esquema mostrando a somatotopia do córtex
somatosensorial. Cada uma das áreas assinaladas no córtex
recebe afarências a partir das respectivas áreas da superfície
corporal. Fonte: adaptado a partir de https://goo.gl/L7bGLj.

Nicolelis explica que quando nos tornamos


hábeis em lidar com um objeto, como um jogador
de futebol experiente é capaz de lidar com uma
bola, certas regiões adjacentes às áreas do córtex
somatosensorial que sinalizam à região do corpo
(pés) em contato com o objeto (bola) também se
tornam ativas durante este contato, como se
“representassem” no cérebro este objeto. Dito de
outra forma, nesta situação as áreas do córtex

370
somatosensorial que sinalizam o tato nos pés
estão ativas ao mesmo tempo que certas áreas
adjacentes a elas, o que leva a conclusão que
estas últimas sinalizam no cérebro a presença da
bola em contato com os pés, como se ela fizesse
parte do corpo do jogador (!), ou seja, sinalizando
seu acoplamento ao meio-nicho e à estrutura do
jogador.

Assim como os estudos de Uri Hasson


sobre o sincronismo neural, as explicações de
Nicolelis mostram que os padrões espaço-
temporais de ativação de certas regiões cerebrais
sinalizam a ocorrência de acoplamentos
estruturais, de modo que as coisas com as quais
interagimos passam a ser representadas na
estrutura do nosso organismo, como parte do
meio-nicho e da unidade operacional-relacional
organismo-nicho que nós somos. Dado que o
Sistema Nervoso é capaz de realizar facilmente tal
mapeamento através da mudança no estado de
ativação de certos circuitos nervosos, daí a sua
importância na constituição de novos aprenderes
e na recuperação de aprenderes que já
ocorreram. Tal recuperação constitui uma das
etapas do fenômeno que os neurocientistas
distinguem como memória, que são formadas
como consequência do aprender e que remetem,
em última análise, às mudanças estruturais
decorrentes dos acoplamentos estruturais de
diferentes níveis, ou que vivemos em diferentes
domínios, como explicarei a seguir.

371
É importante destacar entretanto, que o
aprender envolve o organismo como um todo e
não apenas o seu Sistema Nervoso, como
propõem as abordagens neurocientíficas, já que o
próprio Sistema Nervoso está acoplado
estruturalmente ao organismo. O que ele
permitem é ampliar o Domínio Cognitivo-
Interacional de um organismo através do aumento
das possibilidades de estabelecimento de relações
senso-efetoras, utilizando para isso sinais
elétricos e químicos, o que otimiza este processo.

Insisto: para os seres humanos o meio-


nicho inclui além de elementos do ambiente
natural, elementos da cultura material e outros
seres humanos com os quais compartilha as
redes de conversações nas quais vive o seu viver.
Isso é outra forma de refletir sobre o fato da
cultura ser essencial para a manutenção da nossa
autopoiese, fazendo parte de nossa própria
estrutura através do acoplamento dos seus
elementos em nosso meio-nicho, e para mostrar
que somos seres biológico-culturais. Nossa
dimensão cultural é parte de nosso meio-nicho, e
influencia e é influenciada pela nossa dimensão
biológica, através da qual realizamos nosso viver
material como unidades relacionais-operacionais
organismo-nicho.
Para representar esta ideia de que somos
unidades operacionais-relacionais organismo-
nicho e que somos sistemas dinâmicos em
constante acoplamento estrutural com outros
seres vivos, com outros seres humanos, com

372
nosso ambiente natural e com nossa cultura
material, proponho a imagem de um tórus que
apresento a seguir (Figura 17A e 17B).

Como unidades dinâmicas, cada tórus,


assim como nós, está em constante processo de
mudança estrutural devido às interações que
realiza durante seu viver-conviver. Seu “centro”
ou atrator é a organização autopoietica que
constitui nosso Domínio Constitutivo Biológico,
ou nossa dimensão biológica e material,
representada pela região central e mais escura do
tórus, que é a porção “organismo” da unidade
organismo-nicho. Nossa organização dá origem às
propriedades através das quais o organismo
interage com seu entorno imediato no início de
sua ontogênese, o que coprresponde à região
concêntrica mais externa a região central,
formando a unidade operacional-relacional
organismo-nicho. Esta “nova” unidade, por sua
vez, apresenta agora outras propriedades e é
através destas que realiza novos acomplamentos,
o que está representado pela terceira região
concêntrica de dentro para fora. A região mais
externa do tórus é sua “zona de interação” onde
ocorrem novos acoplamentos. Durante a
ontogênese cada camada mais externa influencia
e se “tranforma” nas camadas mais internas, o
que tem influência sobre a forma de realização de
nossa autopoiese, e é influenciado por ela. É
dessa forma que acoplamentos que estão
ocorrendo na camada mais externa se tornam
novos acoplamentos na segunda camada mais

373
interna, e em seguida se tornam acoplamentos
conservadores na terceira camada mais externa.

Isso não ocorre de forma sequencial, mas é


importante considerar que estas distintas
dimensões dinâmicas de acoplamento estrutural,
como expliquei anteriormente. Sendo assim, meu
uso do tórus para representar unidades
operacionais-relacionais organismo-nicho tem
como pretensão ser uma representação multi-
domínio de nossa existência.

Figura 17. Proponho tórus para representar uma unidade


operacional-relacional organismo-nicho. Em A temos uma
vista lateral do tórus; em B uma vista superior. Veja a
descrição no texto para uma melhor compreensão. Fonte:
adaptado a partir de https://goo.gl/cAQTAY .

374
Após o acoplamento estrutural entre
unidades operacionais-relacionais organismo-
nicho suas estruturas se modificam e seus nichos
se ampliam, incluindo novos “elementos” que se
referem e decorrem das suas interações. É isso
que caracteriza a formação das nossas memórias
como “marcas” da nossa história de interações em
nossa estrutura, e aí reside a importância do
Sistema Nervoso, tendo em vista suas
propriedades, como expliquei anteriormente.

Da perspectiva do operar da unidade como


sistema autopoietico molecular, ou seja, em seu
Domínio Constitutivo Biológico, sua estrutura não
distingue a fonte de onde provém as
perturbações, ou seja, se a mudança estrutural
decorre do acoplamento com uma perturbação
ambiental (num Domínio Não-Linguístico) ou
provenientes de outro organismo ou de elementos
de nossa cultura material120 (num Domínio
Linguístico). Isso é assim porque somos sistemas
operacionalmente fechados em nossa dinâmica
interna ou dimensão constitutiva, mas em nosso
operar como Observadores no Domínio Cognitivo-
Interacional somos capazes de distinguir entre
mudanças estruturais e acomplamentos que
decorrem e ocorrem em Domínios Linguísticos
daquelas que decorrem e ocorrem em Domínios

120
Estou considerando que os elementos da cultura material atuam
coordenando ações como se fosse outro ser humano, ou seja, que
implicam na distinção de condutas linguísticas naqueles que interagem
com eles. Assim, quando lemos um livro é como se estivéssemos
conversando com quem o escreveu, e assim da mesma forma para a
interação com outros elementos da cultura material.

375
Não-Linguísticos121. Vou assumir que em cada um
destes casos estamos em um emocionar distinto e
é isso que permite tal diferenciação, pois isto
implica que estamos numa distinta predisposição
para a ação em cada um deles.

Vou denominar de Acoplamentos Não-


Linguísticos àqueles que dizem respeito ao
acoplamento entre o organismo e as condições
naturais do seu meio-nicho, na constituição de
uma unidade operacional-relacional organismo-
nicho ou nas interações desta. Disso decorre que
há um Aprender Não-Linguístico quando o
organismo se acopla em Domínios Não-
Linguisticos. O (aprender) tipicamente humano é
aquele que ocorre em Domínios Linguísticos, a
partir de Acoplamentos Sociais nos quais nos
acoplamos a outros seres humanos ou a
elementos de nossa cultura material durante
nosso viver em redes de conversações, no
entrelaçamento entre nosso emocionar e nosso
linguajear. Organismos sociais não-humanos
também operam em Domínios Linguísticos, mas
não são linguajeantes, pois não coordenam ações
a partir de elementos pertencentes a estes
domínios (condutas comunicativas), como você já
sabe. Logo, não (aprendem) e por isso os
aprenderes destes organismos são Aprenderes
121
Esta distinção entre acoplamentos com elementos de Domínios
Linguísticos e Não-Linguísticos é uma reflexão minha que não é realizada
em nenhum momento nas obras de Maturana e seus colaboradores.
Sendo assim, não provém da Biologia do Conhecer ou da Biologia do
Amar, mas é uma conclusão minha a partir de minhas reflexões sobre o
que estes domínios lógicos implicam e que inlcuo na Biologia-Cultural do
Conhecer que proponho.

376
Não-Linguísticos. É por este motivo que a
aprendizagem animal pode ser estudada a partir
de paradigmas de condicionamento respondente
ou operante, mas que não são passíveis de
generalização para a explicação dos (aprenderes)
tipicamente humanos, apesar de haver muitas
explicações que realizam tais generalizações.

Uma observação que fala a favor da


distinção que faço entre o (aprender) e os
Aprenderes Não-Linguísticos são vários estudos
mostrando que os seres humanos interagem
diferencial e preferencialmente com perturbações
provenientes de outros seres humanos e com
aquelas que lembram características humanas,
como expliquei em outra seção deste livro. Nosso
emocionar é distinto durante as interações que
ocorrem em Domínios Linguísticos, nos quais
interagimos direta ou indiretamente 122 com outros
seres humanos, em relação ao emocionar durante
interações em Domínios Não-Linguísticos, nos
quais interagimos com entes inertes e abióticos.
Também é por conta de distintos emocionares que
interagimos diferentemente com animais que têm
olhos grandes e expressões faciais, com adultos
em diferentes faixas etárias, com outros humanos
da mesma raça ou de raças distintas da nossa, e
com objetos e animais que têm características
similares àquelas dos seres humanos. Isso
também pode ser observado na preferência que os
bebês e crianças têm pelos desenhos japoneses,

122
Esta interação indireta com outros seres humanos ocorre através de
elementos de nossa cultura material.

377
nos quais os personagens têm olhos grandes e
arredondados, e do sucesso da série Teletubies,
na qual os personagens falam de forma
infantilizada e repetitiva, o que lembra a fala
infantil e a fala no estilo parental (a respeito da
qual comentei anteriormente). O viés que estas
preferências implicam durante as interações tem
efeito sobre o tipo de acoplamento que ocorre, ou
seja, sobre o tipo de aprender que se realiza.
Assim como expliquei anteriormente em relação
ao animismo infaltil e a nossa tendência à
atroporfização, vemos e agimos no mundo a
partir de uma Matriz biológico-cultural que nos
leva a dar preferência aquilo que tem semelhança
com nossa forma de ser, de pensar e com nosso
emocionar. Dito de outra forma, operamos como
seres biológico-culturais em distintos domínios de
determinismo estrutural que são distintas
Matrizes que especificam nosso ser, fazer e
conhecer indissociáveis.
A estrutura de um sistema diz respeito aos
seus componentes e às relações que há entre eles,
o que implica que as alterações estruturais que
constituem a ontogênese pode envolver tanto
estas relações quanto estes componentes. Vou
distinguir que há aspectos morfológicos da
estrutura, que dizem respeito a aspectos
citológicos, histológicos, embriológicos e
anatômicos e que enfatizam os componentes do
sistema em questão, e que há aspectos
funcionais da estrutura, que dizem respeito a
aspectos fisiológicos, bioquímicos, imunológicos e

378
farmacológicos e que enfatizam as relações entre
estes componentes em seu operar. Em um
acoplamento estrutural os aspectos funcionais se
modificam “antes” dos aspectos morfológicos, por
serem mais plásticos, permitirem uma respostas
mais rápida no tempo e envolverem um menor
custo energético para a manutenção da
autopoiese no Domínio Constitutivo Biológico.

Consequentemente, durante os Aprenderes


Não-Linguisticos e Linguísticos os aspectos
funcionais da estrutura se modificam
primeiramente, e é aí que identificamos uma certa
faixa ou amplitude de mudanças estruturais
possíveis que é típica dos acoplamentos
conservadores. Eles permitem ao organismo se
acoplar a certas perturbações sem que ocorra
mudanças nos aspectos morfológicos de sua
estrutura como, por exemplo, os mecanismos
fisiológicos e metabólicos que estão por trás das
faixas de normalidade123 para os diferentes
parâmetros do meio interno, os reflexos
incondicionados e condicionados, e aquilo que
Ausubel denomina de aprendizagem mecânica,
que são situações nas quais a ênfase é na
memorização e recuperação de fatos e
“informações”. Diante de perturbações intensas e
que são novidades, os aspectos funcionais “não
dão conta” do acoplamento e é então que os
aspectos morfológicos da estrutura se modificam,
123
Exemplos de faixas de normalidade são os valores de referências que
você consulta quando lê os resultados de diferentes exames laboratoriais.
A glicemia, que é a concentração de glicose no plasma sanguíneo, varia
entre 60 a 110 mg/dL em jejum.

379
possibilitando que ocorram novos acoplamentos,
ou que a estrutura entre em seu domínio de
interações destrutivas124. Os novos acoplamentos
levam às mudanças estruturais na unidade
operacional-relacional organismo-nicho que
implicam na formação de novas memórias,
ampliam o meio-nicho e permitem uma mudança
na plasticidade, favorecendo a ocorrência futura
de acoplamentos conservadores no encontro com
a mesma perturbação, ou com perturbações da
mesma classe ou do mesmo tipo.

As memórias formadas a partir dos novos


acoplamentos são aquelas que as neurociências
denominam de memórias de longo prazo e
incluem tanto as memórias declarativas (ou
explícitas) como as memórias procedurais (ou
implícitas). Os acoplamentos conservadores
também podem levar a formação de memórias,
mas nesse caso são memórias denominadas pelas
neurociências de memórias de curto prazo, ou
memórias de trabalho.

Por ser um sistema dinâmico fechado, no


Sistema Nervoso os aspectos funcionais e
morfológicos da sua estrutura não são tão
distintos. Seus aspectos funcionais apresentam a
peculiaridade de serem os fenômenos mais
dinâmicos do organismo, pois envolvem alterações
elétricas nos potenciais de membrana dos
124
Quando os parâmetros fisiológicos estão fora de sua faixa de
normalidade isso é sinal que algum processo patológico está instalado ou
se instalando, ou seja, o organismo está em um domínio de interações
destrutivas. Por exemplo: quando a glicemia se mantém acima de
110mg/dL isso é sinal de diabetes.

380
neurônios. Estas alterações ocorrem de forma
extremamente rápida, podendo chegar a cerca de
mil alterações por segundo, ou seja, 1.000 Hz,
sendo passíveis de se propagarem por longas
distâncias, sem que haja descréscimo na sua
amplitude, dando origem aos impulsos nervosos.
A passagem destes impulsos entre diferentes
neurônios ocorre através das sinapses químicas,
um processo que envolve a liberação de
substâncias denominadas neurotransmissores.
As sinapses retardam a transmissão do impulso
nervoso, mas causam um retardo sináptico que
é muito pequeno, com cerca de 0,3 a 5
milisegundos de duração (ou seja, 0,003 a 0,005
segundos). Dessa forma o tempo de resposta do
Sistema Nervoso é o que permite as condutas com
o menor tempo de latência no organismo.

Os aspectos morfológicos da estrutura do


Sistema Nervoso dizem respeito ao trajeto das vias
nervosas dentro do organismo, à localização dos
circuitos nervosos locais, e às estruturas que são
conectadas por ambos através das sinapses. O
trajeto das grandes vias nervosas e a localização
dos circuitos nervosos são especificados durante o
desenvolvimento e apresentam pouca ou
nenhuma plasticidade à mudança, mas no nível
das sinapses há grande plasticidade morfológica.
Isso permite elevado grau de reorganização
morfológica das conexões locais, ou de
plasticidade sináptica. Além disso, vários
estudos indicam que o operar Sistema Nervoso
não depende apenas de padrões espaciais de

381
ativação, o que implica que não é a ativação de
áreas especificas o que determina os fenômeno do
seu operar. Há um padrão de ativação espaço-
temporal que permite que esse sistema tenha um
operar extremamente dinâmico. Por este motivo o
Sistema Nervoso, além de ampliar as
possibilidades de relações senso-motoras, é o
mais plástico dos sistemas orgânicos, o que tem
reflexo sobre os acoplamentos que são
intermediados por ele.

Durante o (aprender) o acoplamento ocorre


em Domínios Linguísticos e envolve diretamente a
participação do Sistema Nervoso. Quando
(aprendemos) as alterações nos aspectos
funcionais também ocorrem primeiro, mas são
muito mais dinâmicas em termos espaço-
temporais, por envolverem alterações
eletroquímicas, como acabei de explicar. Na
dependência da intensidade e do grau de
novidade da perturbação com a qual o organismo
interage, as alteração nos aspectos morfológicos
do Sistema Nervoso durante o (aprender)
implicam novos acoplamentos que são processos
extremamente dinâmicos e com baixo custo
energético, quando comparado às alterações
morfológicas em outros sistemas orgânicos,
graças à plasticidade sináptica. Por conta disso, o
(aprender) é um processo muito mais versátil e
plástico, possibilitando a distinção de uma maior
variedade de condutas aprendidas em
comparação com aquelas provenientes de
Aprenderes Não-Linguísticos, o que está por trás

382
da imensa variedade de condutas linguísticas e
tecnologias, da inteligência e das capacidades
meta-reflexivas que os seres humanos são
capazes de apresentar.

Quarta Reflexão sobre o Aprender


Considero que o (aprender) é o que nos
diferencia dos demais animais e permite que nos
tornemos humanos, em um constante “vir-a-ser”
através do qual podemos alcançar estágios
inimagináveis de inteligência e consciência, em
distintos modos de vida que podemos optar por
viver. Mas considero também que isso só pode ser
alcançado se inicialmente assumirmos nossa
dimensão biológica e, através da reflexão que o
linguajear nos permite, reflexionarmos a respeito
de tudo o que ela implica: que somos sistemas
autopoieticos moleculares e, como consequência
disso, nosso ser, fazer e conhecer são
indissociáveis; que somos sistemas
estruturalmente determinados que vivemos nosso
viver biológico de forma espontânea; que nossa
ontogênese é uma deriva natural não propositiva;
e que somos seres amorosos e linguajeantes, o
que permite que sejamos seres sociais. É a partir
de todas essas implicações que surge nossa
dimensão cultural, em nosso viver no Domínio
Cognitivo-Interacional, como uma consequência
espontânea de nosso viver em um Domínio
Constitutivo Biológico. Esta dimensão cultural
surge do entrelaçamento entre o linguajear e o
emocionar em redes de conversações, que

383
correspondem às distintas culturas humanas nas
quais vivemos como seres biológico-culturais.

Nossos emocionares dizem respeito às


diferentes predisposições para a ação distinguidas
por um Observador e que em nossa experiência
como Auto-Observadores podemos distinguir
como sentires íntimos125. Diferentes culturas
valorizam diferentes emocionares e nem sempre
temos clareza de que os argumentos racionais que
propomos, seja para explicar o mundo que
vivemos ou nossas ações cotidianas, se baseiam
em premissas previamente aceitas com base em
nosso emocionar no momento da explicação
(Figura 18). Por este motivo é importante refletir
sobre quais emocionares nossas culturas
valorizam e se queremos ou não viver tudo aquilo
que eles implicam.

Figura 18. Esquema representando


as influências determinantes dos
emocionares sobre nossas condutas
e explicações racionais. Fonte:
elaborado pelo autor.

125
Em outros textos pretendo aprofundar esta diferenciação entre
emocionares e sentires íntimos. Acredito que a definição que apresento
aqui para o emocionar justifica a automaticidade e a reatividade da
maioria das nossas ações, mas creio ser possível que os sentires íntimos
não se refiram apenas a este aspecto reativo, mas que remetam a uma
experiência “mais humana” e “menos animal” do que seja o sentir.

384
Nosso linguajear diz respeito à utilização de
elementos de nossos Domínios Linguísticos, que
são condutas linguísticas, para coordenar novas
condutas de forma consensual, seja com outros
seres humanos ou com nós mesmos através das
reflexões e meta-reflexões. Como o linguajear
ocorre entrelaçado com nossos emocionares,
através do conversar, isto implica que
coordenamos ações com outros seres humanos
em redes de conversações nas quais os
emocionares direcionam o curso das ações e
possibilitam àqueles que interagem constituir
Matrizes a partir das quais operam em seu viver.
Estas Matrizes se explicitam através dos
Domínios Lógicos a partir dos quais
generalizamos ações em nossos Domínios
Linguísticos e atribuímos, como Observadores,
significados ao mundo que vivemos. Por este
motivo estes Domínio Lógicos também
correspondem à Domínios Semânticos, nos
quais relacionamos significados às coordenações
de ações que as condutas linguísticas implicam.
Estes significados constituem a dimensão
simbólica do linguajear, que é secundária às
coordenações de ações que o linguajear implica,
como expliquei em outra seção deste livro. Dito de
outra forma, as Matrizes e Domínios Lógicos
(Semânticos) são como um “conjunto de critérios”
a partir dos quais atribuímos significados aos
fenômenos do nosso viver biológico-cultural, na
maioria das ocasiões sem ter ciência disso,

385
tampouco das influências dos emocionares e da
cultura que estão em sua origem. Elas são a base
do que distinguimos como relatividade
fundamental e a partir das quais operamos na
(objetividade).

Como você já sabe, os fenômenos


cognitivos são indissociáveis do viver e de nossas
ações ou condutas. Sendo assim, toda conduta é
uma expressão do conhecimento e, como nos
comportamos na dependência dos nossos
emocionares, estes emocionares influenciam
diretamente nosso conhecer. As condutas são
fenômenos do Domínio Cognitivo-Interacional que
respresentam a visão externa das mudanças
estruturais decorrentes do encontro da unidade
operacional-relacional organismo-nicho com seu
entorno, ao qual esta unidade está sempre
acoplada. Consequentemente, o aprender está
sempre acontecendo, mas um Observador pode
optar por distinguir que apenas algumas
condutas correspondem a aprenderes (ou
aprendizagens), segundo critérios que ele mesmo
elege para justificar suas distinções e que
dependem da Matriz, dos Domínios Lógicos e do
emocionar a partir dos quais ele opera. Em nosso
conviver biológico-cultural é através dos
(aprenderes) que podemos compartilhar e co-
construir Domínios Linguísticos e Matrizes, e a
partir disso viver-conviver num mundo
compartilhado.

Em seu viver espontâneo são os


emocionares de todos os seres vivos que os

386
impulsionam à ação e ao conhecer. Entretanto,
graças ao linguajear, nós seres humanos criamos
uma nova dimensão do nosso viver na qual
podemos ter ciência disso, refletir e propor
explicações para isso, e optar por viver de forma
propositiva e direcionada à objetivos e finalidades,
supondo que nosso racionalizar está isento da
influência dos emocionares que são valorizados
pelas culturas nas quais vivemos. Sem ter ciência
desta influência, entretanto, a proposição de
objetivos e finalidades pode nos levar ao mal-
estar, ao sofrimento e ao adoecimento, por nos
afastar de nossa dimensão biológica e do amar
que favoreceu, na origem de nossa família
ancestral, o linguajear e o início de nossa deriva
como seres humanos. Acredito que é isso o que
tem ocorrido em nosso viver numa cultural
patriarcal que favorece uma abordagem alientante
do viver biológico-cultural, e por isso devemos
estar atentos ao mal-estar, à dor e ao sofrimento
que podemos sentir, pois eles podem ser um
“termômetro” do quanto estamos nos afastando e
negando o amar nas redes de conversações nas
quais vivemos nosso viver biológico-cultural.

Em sua dimensão interativa, desde o início


da sua ontogênese os seres vivos se acoplam ao
seu entorno imediato constituindo unidades
operacionais-relacionais organismo-nicho. Nestas
“interações primordiais”, que ocorrem para todos
os seres vivos, aprendemos em relação ao

387
ambiente natural126 e neste momento se
estruturam predominantemente Aprenderes Não-
Linguísticos. A partir daí as unidades relacionais-
operacionais organismo-nicho continuam a
interagir e a aprender, se acoplando a outros
elementos do seu entorno e ampliando seu meio-
nicho e sua própria estrutura, que passa a conter
elementos deste nicho. Mesmo antes de nascer os
seres humanos aprendem, ou seja, se acoplam em
suas interações com o meio-nicho intrauterino,
que é um ambiente natural não-linguístico, e com
parte do meio extrauterino com o qual interagem
indiretamente, o que representa o início de suas
interações em Domínios Linguísticos e culturais.

Nossos (aprenderes) típicos são aqueles que


ocorrem através do conversar e envolvem o
compartilhamento de Domínios Linguísticos em
nosso linguajear entrelaçado ao emocionar. Vou
denominar de seres sociais não-linguajeantes
àqueles seres vivos sociais que compartilham
condutas linguísticas, o que implica que operam
em Domínios Linguísticos, mas não utilizam
elementos deste domínio para coordenar outras
ações, ou seja, não são linguajeantes como os
seres humanos. Mesmo quando operam em
Domínios Linguísticos estes seres sociais não-
linguajeantes apresentam Aprenderes Não-

126
Vou utilizar a denominação “natural” para distinguir aquilo que “não é
cultural” ou “não é um ser vivo”. Para este último caso utilizarei a
denominação “biológico”. Apesar desta distinção assumo que o natural, o
cultural e o biológico são indissociáveis em unidades relacionais-
operacionais organismo –nicho biológico-culturais como nós, os seres
humanos.

388
Linguísticos, já que o (aprender) depende do
conversar e, portanto, do linguajear. Isso implica
que condutas comunicativas homólogas entre
outras espécies de animais sociais e os seres
humanos não implicam nos mesmos aprenderes,
pois tampouco correspondem às mesmas
condutas, como já expliquei em outra seção deste
livro.

Se as condutas dos os seres vivos são


efetivas em seu domínio do existir, isso implica
que estão acoplados a ele e, consequentemente,
que estão aprendendo em relação às perturbações
com as quais interagem e que sua estrutura
admite como tais. Como apenas os seres
humanos são seres linguajeantes, não é possível
para os demais seres vivos que eles “sinalizem”
que tem ciência e distinguem as perturbações
com as quais interagem. Entretanto, se os
organismos destes seres vivos não-linguajeantes
não distinguissem distintas perturbações suas
condutas seriam sempre as mesmas, mas como
suas condutas são distintas isso implica que de
alguma forma seus organismos realizam algum
tipo de distinção, mesmo que não possam
linguajear a respeito. Logo, todos os seres vivos
possuem a capacidade de distinção e isso se
relaciona a uma forma primordial de aprender, ou
seja, de permitir que o organismo se acople às
perturbações ambientais específicas. Entretanto,
apenas os seres humanos podem, além disso,
realizar distinções no linguajear que se referem às
condutas linguísticas.

389
O exemplo a seguir pode ajudar nesta
compreensão. Imagine que um animal é colocado
em um local no qual podemos controlar as
concentrações127 de oxigênio e gás carbônico no
ar. Se aumentamos a concentração de gás
carbônico neste ambiente é possível observar que
a frequência respiratória do animal aumenta, ou
seja, que ele respira mais rapidamente. Se
avaliarmos alguns parâmetros no sangue deste
animal será possível perceber que a acidez do
sangue aumenta e que a saturação da
hemoglobina128 diminui. As variações nestes
parâmetros são condutas deste organismo que
nós estamos distinguindo e sobre as quais
linguajeamos em nosso atuar como Observadores.
O que quero explicar é que o organismo deste
animal pode realizar distinções de outra natureza,
mesmo sem linguajear sobre elas. As condutas
deste exemplo correspondem à mudanças em
aspectos funcionais da estrutura do organismo
em questão e permitem concluir que ele está
acoplado a variação na concentração de gás
carbônico no ambiente, o que implica que
demonstra um aprender em relação a esta
perturbação. Este é um exemplo de Aprender
Não-Linguístico do tipo conservador. Da mesma
forma, se reduzimos a concentração de oxigênio
na sala também vamos observar que a frequência
127
O correto é falar sobre pressão parcial de um gás em uma mistura
gasosa (como o ar), mas optei por utilizar o termo concentração em
referência a isso para favorecer a compreensão.
128
Este parâmetro é usado para avaliar o conteúdo de oxigênio que está
no sangue ligado à hemoglobina, que é um pigmento respiratório
responsável pelo tranporte sanguíneo deste gás.

390
respiratória aumenta, que a acidez do sangue
aumenta e que a saturação da hemoglobina
diminui, mas estes parâmetros não variam
imediatamente como no caso do aumento na
concetração de gás carbônico. Apesar das
condutas apresentadas serem as mesmas em
termos qualitativos, em termos quantitativos elas
são mais pronunciadas quando aumenta a
concentração de gás carbônico no ambiente do
que quando a concentração de oxigênio diminui
na mesma proporção. Ou seja, este organismo
tem algum grau de distinção entre as
perturbações “oxigênio” e “gás carbônico”, mesmo
sem ser capaz de linguajear a este respeito. Dito
de outra forma, sua estrutura admite e distingue
de alguma forma tais perturbações entre si. Se
variarmos a concentração do gás nitrogênio na
sala não haverá variação em nenhum destes
parâmetros e é por isso que dizemos que este gás
é inerte para o organismo, pois sua estrutura não
o admite como perturbação e consequentemente o
organismo não aprende sobre ela. Se
aumentarmos a temperatura do ambiente, este
organismo vai apresentar condutas que incluirão
o aumento no fluxo sanguíneo na superfície
corporal e na frequência respiratória. Ao
contrário, se reduzirmos a temperatura,
observaremos uma redução no fluxo sanguíneo na
superfície corporal. Como este organismo
apresenta condutas mais específicas e
correlacionadas às variações na temperatura (que
dizem respeito a variação no fluxo sanguíneo na

391
superfície corporal), vou concluir a partir desta
observação que ele apresenta maior “capacidade”
para distinguir variações na temperatura do que
na concetração de gases no ambiente, pois frente
estas variações suas condutas são menos
específicas. Neste caso eu elegi certos critérios
para realizar as distinções que me permitiram
construir minha explicação e eles dizem respeito
ao fato de as condutas que observo serem mais ou
menos genéricas diante das perturbações que as
desencadeiam.

Aproveitando este exemplo é importante


destacar que algumas condutas (como o aumento
na frequência respiratória) são mais “genéricas”
que outras (como a variação no fluxo sanguíneos
na superfície corporal), pois aparecem ou são
eliciadas na presença de diferentes tipos ou
classes de perturbações. O aumento na
concetração de gás carbônico, a redução na
concentração de oxigênio, o aumento da
temperatura e a atividade física, por exemplo,
levam ao aumento da frequência respiratória. Um
organismo interage com muitas perturbações
simultaneamente e, se desejamos inferir sobre os
aprenderes que ocorrem diante de determinadas
perturbações, optar por observar estas condutas é
uma escolha pouco adequada, pois pode ocorrer
que uma outra perturbação que não estamos
distinguindo no momento da interação possa
estar causando aquela conduta genérica ao invés
daquela que supomos ser responsável por ela.
Também é importante destacar que dependendo

392
da “capacidade” e das “condições” de distinção do
próprio Observador será possível observar outras
condutas menos genéricas o que implicaria, para
o caso do exemplo que apresentei, observar
variações em outros parâmetros além da
frequência respiratória, da acidez do sangue, da
saturação da hemoglobina e da variação do fluxo
sanguíneo na superfíeie corporal. Talvez a
observação de outras condutas possa mudar
nossa conclusão de que o organismo é “mais
capaz” de discriminar entre “oxigênio” e “gás
carbônico” do que estou descrevendo aqui,
baseado nas condutas que optei observar, o que
implicaria mudar nossa avaliação a respeito do
seu aprender em relação a estas perturbações.

Também não podemos esquecer que um


meio-nicho apresenta seu próprio determinismo
estrutural e é constituído por um conjunto de
perturbações que em nossas condições cotidianas
de vida não conseguimos isolar e manipular como
somos capazes de fazer experimentalmente (como
fizemos com a temperatura e a concentração de
gases nos exemplos). Isso implica que as
observações e conclusões que elaboramos a
respeito dos aprenderes em condições
“controladas” e “experimentais” não
correspondem àquelas que ocorrem no observar
da unidade operacional-relacional organismo-
nicho vivendo seu viver cotidiano ou ad libitum
(ou ad lib)129. Um organismo não interage com

129
Essa expressão latina equivale a dizer “ao seu bel-prazer” ou “à
vontade”. Não usei o termo “espontâneo” por que ele se aplica mais ao

393
uma única perturbação de cada vez e cada
interação causa mudanças estruturais que guiam
o curso das interações consecutivas, como uma
cascata de efeitos interdependentes. No exemplo
em questão, com o aumento da concetração de
gás carbônico ocorre inicialmente um aumento da
acidez no sangue e aí sim a frequência
respiratória aumenta e a saturação da
hemoglobina diminui (por intermédio de
mecanismos que são distintos), o que mostra que
há uma cascata de efeitos indiretos e inter-
relacionados causados por uma dada
perturbação.

No mesmo sentido, você lembra do exemplo


que apresentei em outra seção deste livro, no qual
um carneirinho que foi separado da mãe ao
nascer apresentava “alterações comportamentais”
quando comparado aos seus irmãos? Estas
alterações só puderam ser distinguidas quando o
carneirinho foi observado durante o brincar dos
seus irmãos, pois até então ele parecia um
“carneirinho normal”. Isso também permite
refletir sobre a importância do Observador na
distinção dos aprenderes, o que depende dos
critérios que ele utiliza para distinguir condutas e
perturbações, e que estão subordinados ao seu
determinismo estrutural, ao seu emocionar e à
Matriz na qual opera em seu observar, na
dependência da cultura e dos Domínios

nosso viver biológico do que ao nosso viver biológico-cultural , pelos


motivos que apresentei anteriormente. Ad lib é uma abreviação.

394
Linguísticos a partir dos quais realiza suas
distinções e explicações.

Todas as reflexões que realizo a partir do


exemplo que apresentei anteriormente tratam de
Aprenderes Não-Linguísticos e não permitem
extrapolar considerações para a explicação do
(aprender) tipicamente humano, que depende do
conversar. Dito isso, deixo para você a reflexão
acerca dos processos avaliativos aos quais os
estudantes são submetidos nos ambientes
escolares e que tem a pretensão de realizar
“medidas da aprendizagem” sem levar em
consideração muitos aspectos sobre os quais
refleti com você até aqui, tratando a questão a
partir de uma abordagem alienante do viver
biológico-cultural e buscando explicar o
(aprender) como se fosse homólogo a outras
modalidades de Aprenderes Não-Linguísticos que
ocorrem conosco e com outros animais não-
linguajeantes. Levando tudo isso em consideração
podemos agora avançar um pouco mais nessa
quarta reflexão sobre o aprender.

Vou assumir que todos os seres vivos são


capazes de realizar distinções e que as elas são o
ato cognitivo básico a partir do qual todos os
demais fenômenos cognitivos se configuram, como
já afirmei anteriormente. Quando distinguimos
algo é porque “contrastamos” um ente ou
unidade que distinguimos em relação ao seu
entorno. Nosso organismo como um todo
consegue identificar certos padrões que são
passíveis de interagir com nossa superfície

395
sensorial atuando como perturbações e essa é a
base de nossa capacidade de fazer distinções.
Nossa superfície sensorial é em grande parte
constituída por elementos do Sistema Nervoso
denominados receptores nervosos, mas não
devemos esquecer que certas perturbações de
natureza física e química também podem interagir
por intermédio de vias celulares e bioquímicas,
desencadeando efeitos que não dependem da
participação deste sistema. Em outra sessão deste
livro eu disse que quando distinguimos algo o que
estamos distinguindo é uma organização, mesmo
que não tenhamos ciência dos critérios que
utilizamos para isso e qual a organização
específica que distinguimos, lembra? Logo, o que
aqui eu denomino de distinção de padrões
equivale à distinção de uma organização
específica, o que implica que estes padrões são
padrões organizacionais, ou seja, padrões que
dizem respeito à relações entre componentes em
um sistema. O oxigênio, por exemplo, é um
padrão molecular que é diferente do gás carbônico
e de alguma forma nosso organismo consegue
distinguir o padrão de relações que caracteriza e
distingue cada um deles. Uma onda sonora é uma
perturbação mecânica que corresponde a um
padrão de variação em ondas de pressão no ar,
assim como a luz é um padrão de variações nas
frequências eletromagnéticas, e em ambos os
casos nosso organismo é capaz de distingruir
estes diferentes padrões de relações. O Sistema
Nervoso possibilita que esta capacidade de

396
distinção de padrões (e organizações) seja levada a
um outro nível, ampliando e refinando as
possibilidades de distinções que somos capazes
de realizar e, no caso dos seres humanos,
possibilitando que estas distinções façam
referência à elementos dos Domínios Linguísticos,
que são entes abstratos, e que sejam
compartilhadas através do linguajear. Isso implica
que há diferentes modalidades de distinção, desde
aquelas que fazemos sem ter ciência disso (como
no exemplo sobre a capacidade de distinguir entre
“oxigênio” e “gás carbônico”) até aquelas que
utilizam o linguajear em ciclos recursivos
recorrentes, como é o caso das reflexões e meta-
reflexões (que vou explicar a seguir).

Vou utilizar o termo conhecer ou cognição


como uma referência ampla e genérica a todos os
fenômenos cognitivos. Vou denominar de saber
ou entender130 à ação de linguajear sobre o
conhecer e, como explicarei a seguir, nossos
saberes ou entenderes são um subconjunto dos
fenômenos cognitivos. Consequentemente, há
coisas que conheço (conheceres) e outras que
conheço e linguajeio sobre elas, seja para outro
ser humano ou para mim mesmo (saberes ou
entenderes). Sendo assim, considero que o
conhecer se realiza em nosso viver na forma de
diferentes ações, com diferentes graus de
complexidade e envolvimento de nossas
dimensões biológica e cultural entrelaçadas. A

130
Como explicarei a seguir entender e compreender são fenômenos
distintos.

397
partir destas considerações, o que proponho a
seguir é uma Taxonomia do Conhecer e dos
Aprenderes do Ser Humano Biológico-Cultural.

Taxonomia do Conhecer e dos


Aprenderes do Ser Humano
Biológico-Cultural
O exemplo que apresentei anteriormente
(sobre oxigênio, gás carbônico e temperatura)
mostra distinções que envolvem de forma mais
predominante nossa dimensão biológica e que
estabelecem aquilo que distinguo como
Aprenderes Não-Linguísticos do organismo em
questão, apesar das minhas explicações sobre
eles serem projeções que faço como Observador
destes fenômenos no meu Domínio de
Observações através do linguajear.

Quando o organismo possui um Sistema


Nervoso suas distinções assumem a forma de
sensações, que constituem seu sentir, cuja
peculiaridade é que estão subordinadas ao
determinismo e a clausura operacional
características deste sistema. Uma sensação é
uma distinção que é sinalizada pelo Sistema
Nervoso, na forma de padrões de ativação espaço-
temporal da rede nervosa, sem que seja
distinguida no linguajear, e que ocorre como
decorrência do encontro entre uma perturbação e
a superfície sensorial do organismo. Dito de outra
forma, sentir é distinguir uma perturbação
presente através do Sistema Nervoso. Como eu

398
expliquei anteriormente, certas perturbações de
natureza física e química, mas também biológica,
podem atuar sobre nossa superfície sensorial
“não-nervosa” por intermédio de vias celulares e
bioquímicas, desencadeando efeitos que não
dependem da estimulação direta de receptores
nervosos pela perturbação, mas que são
sinalizadas de forma indireta pelo Sistema
Nervoso. Um exemplo disso é o efeito dos raios
UV-B e UV-A sobre a pele. Nosso Sistema Nervoso
não apresenta receptores nervosos para este tipo
de radiação eletromagnética, mas seus efeitos
deletérios sobre as células da pele levam a
liberação de certas substâncias que estimulam
receptores nervosos de dor, e isso é um exemplo
da ação de uma perturbação física atuando sobre
a superfície sensorial não-nervosa e indiretamente
sobre nossas sensações, mostrando que elas são
sempre sinalizadas pelo Sistema Nervoso. Ou
ainda, uma concentração muito baixa de glicose
no sangue (hipoglicemia) tem efeito direto sobre a
bioquímica das células nervosas que não são
receptores, alterando o seu padrão de disparos e o
consequente estado de ativação da rede nervosa
que constituem. Os microorganismos são
exemplos de perturbações que atuam sobre o
Sistema Imunológico, que é um elemento
importante de nossa superfície sensorial não-
nervosa, e que libera uma série de subastâncias
que têm efeitos sobre o Sistema Nervoso. Os
emocionares também atuam como perturbações
sobre o Sistema Endócrino o qual, através da

399
liberação de hormônios, também influencia o
operar do Sistema Nervoso. Os Sistemas
Imunológico e Endócrino, por sua vez, sofrem
uma ampla influência do Sistema Nervoso, de tal
forma que todos eles podem ser tratados como um
único sistema orgânico denominado Sistema
Reativo131.

O sentir é um fenômeno a respeito do qual


não temos ciência durate o seu ocorrer, mas que
pode levar (1) ao surgimento das percepções, (2) à
alterações em nosso emocionar presente e (3) à
formação de memórias não-perceptuais na
dependência do emocionear132 que a perturbação
em questão pode desencadear. As perturbações
mais intensas e “significativas” têm maior
probabilidade de causar alterações em nosso
emocionar e o sentir decorrente delas são mais
facilmente “memorizados” do que aqueles que têm
pouco impacto sobre nossos emocionares. Apesar
de não termos ciência a respeito das memórias
não-perceptuais durante sua formação elas
podem ser eliciadas num momento posterior,
levando à formação de novos aprenderes e de
novas memórias perceptuais como explicarei mais
adiante.

Para os seres humanos é possível ter


ciência das sensações e neste caso elas são
passíveis de distinção através do linguajear,
dando origem às percepções. As percepções são

131
A este respeito pretendo aprofundar meus estudos em trabalhos
futuros.
132
Lembre-se que o emocionear diz respeito às mudanças no emocionar.

400
sinalizadas pelo Sistema Nervoso na forma de
padrões recursivos de ativação espaço-temporais
nas redes nervosas envolvidas na determinação
das sensações correspondentes mas, como
dependem do linguajear, são fenômenos de
natureza biológico-cultural que se constituem
durante o conversar e que dizem respeito à
condutas linguísticas, como explicarei a seguir.
Insisto: apesar destes padrões recursivos serem
correlatos neurais com os quais é possível que um
Observador estabeleça relações gerativas com as
percepções, como já expliquei em outra seção
deste livro não podemos compreendê-las apenas
pelo estudo da estrutura e função do Sistema
Nervoso sem incorrer em erros de contabilidade
lógica, pois são fenômenos do Domínio Cognitivo-
Interacional.

Quando a percepção ocorre no encontro


entre uma nova perturbação e a superfície
sensorial, de forma temporalmente sincronizada
com uma sensação, ela diz respeito a um
fenômeno presente que leva a um novo
acoplamento e, consequentemente, a um novo
aprender. Só que neste caso para que a nova
perturbação seja percebida por uma pessoa é
necessário que seu contato com a superfície
sensorial desta pessoa ocorra durante o
conversar, na presença outro ser humano
significativo para ela. Dito de outra forma, a
ocorrência de uma nova percepção depende de
uma tríade constituída pela pessoa que percebe, a

401
nova perturbação e outro ser humano significativo
durante o conversar (Figura 19).

Figura 19. A tríade necessária para a formação das


percepções, conforme descrito no texto. Fonte: elaborado
pelo autor.

Como expliquei anteriormente, aquilo que


distinguimos como “vermelho” ao olhar para um
tomate, como “redondo” ao olhar para uma bola,
como “quente” ao nos aproximarmos do fogo, ou
como “dor” no contato com um objeto cortante,
são exemplos de percepções (ou perceberes) e
constituem condutas linguísticas que são
culturalmente construídas e que implicam
coordenações de ações consensuais entre aqueles
que as utilizam.
Quando a percepção decorre do encontro
com uma classe de perturbação com a qual o
organismo já se acoplou anteriormente ou com

402
alguma perturbação similar, ou se é eliciada pela
ativação do circuito recorrente que sinaliza esta
percepção sem a presença da perturbação
correspondente (ou seja, de forma temporalmente
dessincronizada com uma sensação), temos a
ocorrência de um acoplamento conservador e o
fenômeno da percepção assume as características
daquilo que denomino de memórias perceptuais,
ou percepções/memórias.

Partindo da reflexão que proponho o


fenômeno da Sensação do Membro Fantasma
(sobre o qual comentei em outra sessão deste
livro) deveria ser denominado de fenômeno da
Percepção do Membro Fantasma. Ele é um
exemplo que mostra ser possível perceber algo
que não está presente (uma percepção/memória)
quando ocorre um padrão recorrente de ativação
espaço-temporal correlacionado a uma
determinada sensação. Só que fenômenos deste
tipo são mais comuns do que pode parecer num
primeiro momento, e é daí que provém nossa
dificuldade de abrir mão das nossas certezas. Vou
explicar melhor isso.

Nosso corpo é algo que aprendemos a


perceber desde as etapas mais precoces do nosso
desenvolvimento. Desde nossa mais tenra
infância, durante nossas interações com o
ambiente e com partes do nosso próprio corpo na
presença de adultos significativos, ocorrem novas
percepções que com o tempo constituem
memórias/percepções e é a partir daí que temos a
percepção de que nosso corpo sempre está lá, e

403
realmente está. O Sistema Nervoso cria um
padrão recursivo de ativação espaço-temporal de
certos circuitos nervosos que sinalizam aquilo que
compreendemos como a percepção de nosso
próprio corpo, o que em última análise se
relaciona a um aspecto da nossa consciência que
diz respeito ao fato de haver alguém sempre
presente que pensa e tem ciência de si e do
ambiente ao seu redor, segundo propõe o
neurocientista português Antonio Damasio.
Quando alguém perde uma parte do corpo, apesar
disso suas percepções/memórias referentes a ela
ainda estão lá na forma de padrões de ativação
espeço-temporais em certos circuitos nervosos, e
quando estes circuitos são ativados é daí que
provém a Percepção do Membro Fantasma, que
diz respeito a uma percepção/memória.

No início deste livro eu propus a você um


experimento no qual você e um voluntário se
alternavam auto-observando e observando o
movimento lateral dos olhos, lembra disso?
Naquele momento eu expliquei que nossos olhos
constantemente realizam movimentos
denominados sacadas, mas que durante estes
movimentos é como se o sistema visual
“desligasse” e só voltasse a “funcionar” no
momento que os olhos estão novamente parados,
está lembrado disso? Então ocorre um fenômeno
de integração transacádica que permite a
percepção de continuidade da percepção visual
que temos cotidianamente. Essa integração
corresponde a manutenção de nossas

404
percepções/memórias visuais, e assim como
“supomos” (percebemos/lembramos) que nosso
corpo está sempre lá graças a ativação espaço-
temporal recorrente de certos circuitos nervosos,
também supomos que nossa percepção visual é
sempre contínua, o que da mesma forma se deve
a um padrão recorrente de ativação de
determinados circuitos nervosos que aqui não
estou sendo específico em determinar. É por isso
que somos “capazes” de percebere algo mesmo
quando este algo não está presente, o que no
exemplo do experimento que propus diz respeito à
percepção de que os olhos estão parados mesmo
quando estão se movendo. O que eu quero dizer é
que nosso Sistema Nervoso opera de tal forma que
gera padrões recursivos que contituem nossas
percepções/memórias que são constantemente
ativados dando origem a um pano de fundo que
percebemos como uma “realidade” que está
sempre lá, ou como “nós mesmos” e nosso próprio
corpo que está sempre presente. E como eu disse
anteriormente, fenômenos deste tipo são mais
corriqueiros do que podemos imaginar, pois
quando você anda diariamente de carro por um
determinado trajeto é como se este cenário
habitual fosse gerado pelo seu Sistema Nervoso
sem a necessidade de que as perturbações que o
constituem atuem sobre a superfície sensorial,
apesar de estarem presentes, pois você só precisa
de “pistas” para perceber este cenário de forma
completa. E tanto é assim que você demora para
perceber certas variações neste cenário, a não ser

405
que elas sejam muito gritantes, e a maioria de nos
é “incapaz” de lembrar de certos detalhes, pois na
verdade essa nossa forma de operar pressupõe
que as coisas estão ali e são como sempre foram,
pois o que temos são percepções/memórias destes
locais que já são familiares. Ou ainda, se você vé
algo escrito em vermelho com um tipo de fonte
similar àquela da marca “Coca Cola”, ou um “M”
grande e amarelo similar àquele da marca
“McDonald’s”, você terá a impressão de ler Coca
Cola ou McDonald’s independentemente do que
estiver “realmente” escrito ali, pois nosso
conhecer faz surgir um mundo de regularidades a
partir da Matriz biológico-cultural na qual
operamos em nosso viver-conviver, e a grande
maioria destas regularidades são
percepções/memórias. Logo, a tentação da
certeza é algo realmente difícil de “superar”, pois
tem sua origem na forma de operar de nosso
Sistema Nervoso que gera regularidades que
denominamos de corpo, “realidade” e em nosso
viver cultural de “certezas” ou “crenças”,
constituindo uma inércia perceptual.

Por tudo que foi dito é possível concluir que


(1) as sensações, percepções e memórias são
fenômenos cognitivos que dizem respeito à
diferentes tipos de distinções, (2) as percepções
são conheceres passíveis de serem linguajeados e
por este motivo constituem saberes,
diferentemente das sensações, (3) todos os
saberes são construídos socialmente e dizem
respeito à condutas linguísticas, o que permite

406
que sejam expressos através do linguajear e, (4)
nossas percepções/memórias dão origem a uma
série de regularidades que implicam numa
tendência à inércia perceptual que está na origem
da tentação da certeza.

Como você já sabe, quando surge o


linguajear surge o Observador e com ele a
capacidade de criar novos domínios
fenomenológicos a partir de suas
distinções/observações em seu Domínio
Cognitivo-Interacional, dando origem aos seus
saberes, que são condutas linguísticas. Vamos
conversar um pouco mais a este respeito.

O observar é uma modalidade de saber


que ocorre quando um Observador focaliza a
atenção em aspectos específicos do seu perceber,
com a expectativa de compreender, explicar,
reflexionar ou apreciar aquilo que distingue. Ele é
uma modalidade de distinção mais “refinada” que
possibilita o início do processo de
distinção/criação de novos domínios
fenomenológicos.

A atenção é um “nível extra” de ciência


sobre aquilo que percebemos, pois há uma
expectativa de quem observa, coisa que não
ocorre quando há apenas o perceber.
Atencionar133 implica focalizar a distinção em
aspectos específicos do meio-nicho, fazendo com

133
Ao distinguir o atencionar estou fazendo referência a uma ação
humana que leva à atenção, como forma de explicar os fazeres que o
constituem. Isso está de acordo com minha opção por dar preferência aos
verbos em detrimento dos substantivos.

407
que todas as demais perturbações/distinções se
tornem pano de fundo em relação àquela que é
eleita para ser “atencionada”.

Em certa ocasião eu estava com um carro


alugado e fiquei por muito tempo parado em um
grande congestionamento. O carro não tinha rádio
e então eu comecei a divagar. Em determinado
momento eu comecei a lembrar da música
“Satisfaction” do Rolling Stones e como a partir
daí ela não saia mais da minha cabeça eu decidi
pensar a este respeito, e fiquei por um bom tempo
tentando entender o que estava acontecendo
comigo. Foi então que um carro que já estava ao
meu lado no trânsito fazia algum tempo me
ultrapassou e entrou na minha frente e eu vi pela
logomarca na sua traseira que era um Gol modelo
Rolling Stone (uma série especial deste carro que
foi lançada quando esta banda veio para o Brasil
no início dos anos 2000). Neste momento eu
compreendi o que estava acontecendo e vou
relacionar os diferentes fenômenos que este
exemplo permite distinguir dentro daquilo que
pretendo explicar:

 em um momento anterior da minha


vida eu já havia ouvido a música
Satisfaction e o encontro desta
perturbação com meu sistema auditivo
durante o conversar permitiu a
formação de uma nova percepção, que
posteriormente se tornou uma
percepção/memória desta música que
eu revivi em muitas ocasiões desde

408
então (A), seja por lembrança ou
ouvindo novamente esta música;

 quando eu estava no trânsito meu


sistema visual interagiu com a
perturbação “logomarca do Gol Rolling
Stones” e então eu tive uma sensação
correspondente (B), mesmo sem ter
ciência disso no momento em questão
(ou seja, sem ter uma percepção) e isso
teve efeito sobre o meu emocionar
naquele momento (C). Devido ao
emocionear causado por esta sensação,
já que eu estava numa situação
desconfortável, isso levou a formação
de uma memória não-perceptual (D) a
respeito da qual eu não tive ciência no
momento da sua ocorrência, mas que
foi significativa naquele dado contexto;

 eu estava com vontade de ouvir


música, pois não gosto de trânsito e
estava sem rádio, e então este
emocionar (E) me colocou numa
predisposição estrutural para satisfazer
essa “necessidade” presente;

 no momento que a música Satisfaction


começou a “tocar na minha cabeça”
isso ocorreu pela ativação recorrente de
circuitos correspondentes a esta
percepção/memória (A) e então, dada
minha expectativa de compreender o
que estava acontecendo comigo (F), eu

409
comecei a observar (G) com a atenção
focalizada nesta percepção/memória
(A), fazendo com que todas as demais
perturbações se tornassem “pano de
fundo”.

Não vem ao caso neste momento explicar


em detalhes todos os mecanismos neurais
subjacentes a este processo, se é que eles podem
ser totalmente compreendidos, mas o que
interessa é que o meu Sistema Nervoso (através
da ativação recorrente de sequências de padrões
espaço-temporais correlacionadas a uma série de
percepções/memórias e outros fenômenos
cognitivos) “integrou", a partir da predisposição
que o meu emocionar relacionado à vontade de
ouvir música (E): minha sensação decorrente do
encontro com a logomarca (B), o respectivo
emocionar eliciado por ela (C), minha memória
não-perceptual a este respeito (D), a
percepção/memória da música Satisfaction (A), e
no momento que eu desloquei minha atenção com
a expectativa de compreender o que estava
ocorrendo (F) eu focalizei a atenção sobre está
memória/percepção da música tocando na minha
cabeça (A) e observei este fenômeno (G), o que me
permitiu compreendê-lo e explicá-lo agora para
você. Esta compreensão foi eliciada quando
minha observação (G) fez com que a memória
não-perceptual (D) decorrente da sensação (B) se
tornasse agora uma nova percepção, objeto da
minha explicação e de um novo aprender, ou seja,
um fenômeno distinto de A, B, C, D, E, F e G.

410
O que estou fazendo aqui é utilizar
elementos do meu viver para explicar este viver,
distinguindo uma série de fenômenos que durante
este viver estão entrelaçados, mas que a partir da
Matriz biológico-cultural que a Biologia-Cultural
do Conhecer implica posso distinguir como
Observador deste viver, tendo em vista minha
intenção de compartilhar minhas reflexões com
você.

Dentre as expectativas que levam ao


observar, o compreender é a ação de um
Observador que explica algo para si mesmo, como
se fosse uma explicação auto-dirigida. Isso
implica que compreender e explicar
correspondem a uma mesma conduta, que surge
quando o Observador propõe um sistema
estruturalmente determinado, como um Domínio
Lógico, que faz surgir no seu operar aquilo que ele
observa em seu viver. Em outra sessão deste livro
expliquei mais a este respeito, quando comentei
que quem valida uma explicação é aquele a quem
ela se dirige e sobre os critérios de validação das
explicações científicas que são de caráter
mecanístico.

Quando o Observador explicita a Matriz


biológico-cultural que utiliza para estruturar os
Domínios Lógicos que propõe em suas
explicações, ele está interessado em compreender
como opera em sua relatividade fundamental e
(objetividade), e então surge o refletir ou
reflexionar. Mas só é possível refletir se abrimos
mãos de nossas certezas, pois só assim podemos

411
compreender nosso “poder criador” que depende
da Matriz biológico-cultural, do emocionear e da
cultura a partir da qual somos-fazemos-
conhecemos o mundo que fazemos surgir em
nosso viver-conviver. Se há ciclos recursivos de
reflexionar sobre o próprio reflexionar temos as
ações ou fenômenos meta-reflexivos.

Reflexionamos quando questionamos e


explicamos nosso próprio explicar, e é só através
do reflexionar que podemos compreender a
relatividade fundamental, a (objetividade) e que
operamos como seres biológico-culturais em
Matrizes biológico-culturais que especificam
nosso viver humano. Acredito que apenas através
do conversar e do (aprender) podemos favorecer
este nível de distinção.

Como são condutas linguísticas, todos os


nossos saberes são (aprendidos), mas só podemos
compartilhar o mundo que vivemos através do
conversar, no entrelaçamento entre o amar e o
linguajear.

Dentre as expectativas que levam ao


observar, o apreciar é a menos valorizada nas
culturas ocidentais e patriarcais, e a que menos
realizamos em nosso viver como seres racionais
“motivados” pelo emocionar. O apreciar diz
respeito a uma ação na qual observamos nossos
sentires íntimos sem agir a partir de nossos
emocionares, sem a preocupação de explicar ou
refletir sobre o que vivemos no momento em que
vivemos aquilo que apreciamos. Quando

412
apreciamos estamos vivendo um viver espontâneo
em nossa dimensão cultural, o que implica
experienciar um viver não-propositivo num
Domínio do Observador que é impregnado de
finalidades e propósitos, e onde ocorre o
linguajear. Apenas o apreciar permite sair de um
status no qual nossas ações são guiadas pelos
nossos emocionares, e este é um outro aspecto
que nos diferencia dos demais animais.

Em nossa dimensão biológica vivemos


espontaneamente sem termos ciência disso e é aí
que os emocionares têm força e efeito sobre
nossas ações. No apreciar vivemos de forma
espontânea cientes de nosso viver biológico-
cultural, sem nos remetermos à finalidades ou
propósitos, e é aí que podemos sentir e
experienciar sem necessariamente agir, ou seja,
os emocionares deixam de ser agentes
determinantes das nossas ações, nos levando a
um modo de vida plenamente humano. Como
explicarei a seguir, o apreciar se relaciona a um
nível de aprender que denomino de excelência ou
expertise.

Todas estas dimensões do conhecer se


estruturam a partir de nossas vivências em
relação com um meio-nicho predominantemente
natural que nos acolhe assim que nascemos.
Gradativamente os aspectos culturais deste meio
passam a preponderar, entrelaçados desde sua
origem aos aspectos naturais e biológicos, na
medida que nós mesmos nos constituímos como
seres biológico-culturais e, com isso, cada vez

413
mais os (aprenderes) vão se tornando
predominantes.

Ontogênese dos Aprenderes


Segundo as explicações da Psicologia do
Desenvolvimento, principalmente aquelas de
caráter Psicanalista, um bebê não é capaz de
distinguir a si mesmo em relação ao mundo ao
seu redor. Considero, entretanto, que ele realiza
distinções em seus Aprenderes Não-Linguísticos,
pelos motivos que apresentei anteriormente, mas
não tem ciência deles por não ser ainda um ser
linguajeante, ou seja, ele ainda não estrutura
seus saberes. Sendo assim, ele tem sensações e
condutas primordiais de caráter fisiológico, mas
ainda não percebe, observa, explica, aprecia,
compreende ou (aprende). Um bebê recém-
nascido é o extremo do viver espontâneo e ainda
não distingue entre si mesmo e o meio-nicho que
acolhe seu viver e é parte da unidade operacional-
organismo-nicho que ele é desde sua concepção.

Os primeiros Aprenderes Não-Linguísticos


de um bebê dizem respeito ao estabelecimento de
relações senso-motoras que levam gradativamente
ao controle das funções fisiológicas durante as
interações com o ambiente extra-uterino e ao
controle voluntário dos movimentos. Eu não
saberia afirmar se em uma etapa posteriormente
os (aprenderes) têm alguma participação relevante
no processo de aprendizagem do controle

414
voluntário dos movimentos, mas suponho que
isso é possível134.

Este período inicial de aprenderes


corresponde a certos aspectos do que Piaget
denomina de período sensório-motor do
desenvolvimento psicológico. Gradativamente,
em seu atuar espontâneo no mundo, os bebês
sofrem alterações estruturais e ampliam seu
meio-nicho que passa a incluir aqueles elementos
que são significativos para o seu viver, como as
chupetas, mamadeiras e mesmo os cheiros, a voz
e os peitos de suas mães, suas mães por inteiro e
outras pessoas significativas, além do seu próprio
corpo, mas neste momento eles ainda não têm
percepção disso, pois não são seres linguajeantes.

Nesta fase, por exemplo, observamos que


os bebês choram e se comportam de forma
diferente quando sentem fome, cólicas ou sono
(coisa que as mães são experts em identificar) e
com o tempo começam a apontar para os objetos
que desejam e estão fora do seu alcance, o que
são todos exemplos de condutas linguísticas. Isso
marca o início da participação destes bebês em
Domínios Linguísticos compartilhados, que
possibilitarão seu futuro linguajear.

134
Isso é um tema interessante para um projeto de pesquisa, levando em
consideração duas observações: (1) a teste de Daniel Wolpert que
apresentei em outra sessão deste livro, que propõe que os cérebros são
estruturas cuja função primordial é o controle dos movimentos e (2) a
importância do desenvolvimento motor e suas relações com o
“desenvolvimento cognitivo”, fato que é do conhecimento de todos
aqueles que trabalham com crianças e desenvolvimento infantil.

415
A seguir seus balbucios começam a se
diferenciar em sons mais específicos, que não são
ainda as palavras de sua língua natal, mas que
começam a ser utilizados de forma recorrente
para coordenar ações de forma consensual com
outros adultos. Esta fase marca o início do
linguajear, e os bebês começam a formar suas
novas percepções durante seu conversar com
adultos significativos, e as percepções/memórias
sobre as quais constroem as noções de “eu”, “os
outros” e “o mundo”, distinguindo classes de
entes que começam a classificar mesmo sem ter
ciência disso. A partir daí as crianças são capazes
de realizar abstrações, pois utilizam condutas
linguísticas para coordenar ações que começam a
se referir a entes concretos que não estão
necessariamente presentes durante suas ações,
ou seja, a respeito dos quais não tem sensações,
mas que abstraem utilizando suas
percepções/memórias socialmente construídas.
Logo, inicialmente as condutas dos bebês e
crianças se relacionam diretamente com seu
acoplamento à entidades concretas do ambiente
natural, com os elementos de sua cultura
material e com outros seres vivos, em Aprenderes
Não-Linguísticos, o que faz com que se tornem
parte do seu meio-nicho e da sua própria
estrutura. Em seguida iniciam seu viver social
através de suas condutas linguísticas, e é neste
momento que começam a se constituir seus
Domínios Linguísticos primordiais, a partir dos

416
quais iniciam seu linguajear e constituem seus
saberes através do (aprender).

Gradativamente, com a complexificação do


seu viver e com a ampliação do seu meio-nicho e
dos seus Domínios Linguísticos, as crianças
começam a distinguir entes abstratos e suas
condutas linguísticas passam a se estruturar
cada vez mais em relação a estes entes e às suas
percepções/memórias, em detrimento das
sensações que até então eram a principal
modalidade de distinção determinante de suas
condutas. Isso marca o término de um período
sensório-motor de desenvolvimento psicológico e o
início de um período simbólico, nos quais
começam a se estruturar Domínios Semânticos e
Domínios Lógicos a partir dos quais se
estruturam Matrizes biológico-culturais que
passam a guiar o viver.

Esta minha descrição sucinta e até mesmo


incompleta da ontogênese do desenvolvimento
psicológico não tem como pretensão esgotar o
assunto, mesmo por que considero que há muitas
questões que devem ser respondidas em relação a
este tema a partir da Biologia-Cultural do
Conhecer e sobre as quais pretendo refletir em
outros trabalhos. Meu objetivo até aqui foi
mostrar que inicialmente ocorrem Aprenderes
Não-Linguísticos e que só com o linguajear
entrelaçado ao amar podem ocorrer (aprenderes)
que são tipicamente humanos e dependem do
conversar.

417
A cada interação com uma nova
perturbação pode ocorrer um novo aprender que
segue um ciclo de Estágios da Aprendizagem,
levando em consideração o quanto conhecemos e
o quanto temos ciência daquilo que
conhecemos , como vou explicar a seguir. Estes
135

estágios se repetem tanto em Aprenderes Não-


Linguísticos como no (aprender) e os apresento
aqui como uma ferramenta útil para aqueles que
se interessam em compreender o aprender e o
ensinar.

O primeiro estágio é aquele no qual não


sabemos que não sabemos, ou seja, não temos
distinção a respeito de algo tampouco ciência
dessa nova “ignorância”. Este é o Estágio da
Curiosidade e desde que haja um emocionar que
favoreça nossa curiosidade e aí que os novos
aprenderes se iniciam.

Se avançamos em direção ao segundo


estágio nossas interações nos levam a ter ciência
de que não conhecemos sobre algo. Este é o
Estágio da Dúvida no qual temos ciência de que
não distinguimos algo que pretendemos
distinguir, ou que ainda não estamos aptos a
apresentar algum tipo de “conduta esperada”. As
avaliações escolares são momentos que nos levam
a perceber que estamos neste estágio, pois na
maioria das ocasiões as avaliações representam
para os alunos um momento no qual percebem o

135
Adaptei esta concepção a partir de um modelo para as Etapas da
Aprendizagem que aprendi no curso Personal & Professional Coaching da
SBCoaching.

418
quanto não sabem acerca de algo a respeito do
que gostariam (ou “deveriam”) saber, o que
também pode ocorrer em situações mais práticas
e aplicadas quando nos propomos a realizar
algum tipo de conduta ou sequência de
movimentos e percebemos que ainda não estamos
aptos a fazê-lo. Consequentemente, os processos
avaliativos e as atividades práticas não são uma
etapa final do aprender como têm sido
considerados nos currículos escolares mas, pelo
contrário, são um estágio inicial e fundamental do
aprender. É neste estágio que começamos a
perceber que as coisas não são como
imaginávamos e é quando ocorrem conflitos entre
nossos conhecimentos atuais e os novos
conhecimentos com os quais entramos em
contato. Infelizmente a maioria dos aprendizes
abandona o processo de aprender neste estágio,
seja porque percebem o trabalho que terão para
mudar sua estrutura de forma a favorecer a
ocorrência do novo aprender, ou porque não
abrem mão de suas “certezas” devido a um
emocionar que favorece isto e então optam por
manter suas percepções/memórias e
conhecimentos atuais. Lembre-se que dada a
indissociabilidade entre o ser, o fazer e o conhecer
abrir mão do que já sabemos e do que já sabemos
fazer implica abrir mão do que somos, e isso
requer certo grau de desapego e de clareza dos
emocionares que nos mantém apegados aquilo a
que desejamos nos apegar. Quando este é o caso
muitos tentam de forma consciente ou não

419
adequar o novo conhecimento a estas
percepções/memórias, mantendo seus Domínios
Lógicos e Matrizes Biológico-Culturais
inalterados, o que nem sempre é condizente com o
novo aprender possível numa dada situação. A
maioria de nós faz isso sem perceber, pois para
avançar deste estágio em direção ao próximo é
necessário sair do “piloto atuomático” que as
percepções/memórias favorecem e avançar em
direção a nossa observação, o que requer focalizar
a atenção por opção para que possamos
compreender, explicar e refletir em diferentes
níveis. Logo, ao final deste estágio a maioria de
nós mantém e reforça suas percepções/memórias
que permanecem inalteradas, principalmente
quando as distinções em questão dizem respeito à
condutas linguísticas. Apenas o emocionear pode
mudar este status e permitir o avanço em direção
ao próximo estágio do aprender.

O terceiro estágio do aprender é o Estágio


da Compreensão/Explicação, no qual temos
ciência do quanto somos capazes de distinguir
aquilo que pretendemos distinguir, ou seja,
sabemos que sabemos. Este é o momento, por
exemplo, onde a pessoa já aprendeu a dirigir, mas
precisa ainda manter sua atenção focalizada para
observar cada movimento que pretende realizar,
ou o momento no qual começamos a compreender
sobre algum tema, mas ainda precisamos
consultar alguma referência, ou pensar antes de
responder a alguma pergunta, por exemplo. Como
expliquei anteriormente, apenas focalizando a

420
atenção e através do observar estaremos aptos a
atingir este estágio do aprender, sempre tendo em
vista que tudo o que conhecemos surge em nosso
ato de distinção, a partir de uma Matriz Biológico-
Cultural. Neste estágio podemos
compreender/explicar ou avançar e refletir sobre
as Matrizes que estão por trás do deste
compreender/explicar. Independentemente das
reflexões ou metareflexões que podemos realizar
neste terceiro estágio do aprender, se dedicamos
tempo e esforço em nossas
compreensões/explicações ou práticas, podemos
avançar para o próximo estágio, ou seja, o quarto
estágio não depende necessariamente de
refletirmos sobre aquilo que aprendemos.

O próximo estágio do aprender nem sempre


é atingido pela maioria das pessoas, pois requer
tempo e dedicação, e nossa cultura ocidental cada
vez mais tem enfatizado os aprenderes rápidos e
fáceis. Este quarto e último estágio do aprender é
denominado de Estágio da Excelência ou
Expertise. Nele as perturbações que levaram ao
aprender estão integradas ao nosso meio-nicho e
passam a fazer parte de nossa estrutura de modo
que não temos ciência acerca do que
conhecemos/sabemos, mas temos alto grau de
distinção a seu respeito ou de proficiência em
realizar algum tipo específico de contuda, e é
então que atuamos de forma espontânea no
Domínio Cognitivo-Interacional. Quando
observamos pessoas que “fazem as coisas de
forma excepcional sem precisar pensar a respeito”

421
estamos observando pessoas que atingiram este
estágio do aprender. Assim como o estágio
anterior, este não depende da capacidade de
reflexão, mas requer certo grau de apreciação
para que possa ocorrer, como expliquei
anteriormente.

Conclusões
Toda dor pela qual se pede ajuda tem
origem cultural. Esta é uma fala de Humberto
Maturana e Ximena Dávila que não sai da minha
cabeça desde que a ouvi em 2009, e depois
pessoalmente da boca destes autores em 2013
durante minha visita ao Instituto Matriztico em
Santiago do Chile. Tive uma formação em
pesquisa biológica e sempre concebi que a dor era
um fenômeno de natureza neurofisiológica. Como
biólogo, o Darwinismo e suas concepções
formaram uma base as vezes invisível sobre as
quais as ciências biológicas e minhas concepções
se construíram, e esta afirmação juntamente com
outras que constituem a Biologia do Conhecer e a
Biologia-Cultural de Maturana e colaboradores
pareciam não fazer sentido ... apesar de fazerem
todo sentido. Mas sabe como é ... difícil não é
aceitar o novo, mas muitas vezes abrir mão do
velho pelo trabalhão que isso dá.

Desde então percebi o que era reflexionar e


como nosso pensar está permeado por concepções
apriorísticas, e percepções/memórias que no
fundo são a base da Matriz Biológico-Cultural a

422
partir das quais surge o mundo que vivemos e
todas as nossas concepções e explicações, nas
redes de conversações nas quais estamos
inseridos. E percebi também como isso está por
trás dos conflitos, das discussões, do mal-estar,
do sofrimento e do adoecimento que pode nos
acometer e que tem cada vez mais nos acometido.

Como já compartilhei com você, em minha


atuação como professor e pai de alunos eu
acompanhei o mal-estar e o sofrimento que os
ambientes escolares podem propiciar, e percebi
que eu mesmo colaborava com isso. Desde então,
quis pautar minha atuação docente em alguns
princípios que conciliassem minha concepção do
homem não apenas como ser biológico, mas
também como ser cultural e psicológico,
integrando os conhecimentos que as ciências
biológicas e psicológicas propõem e aos quais tive
acesso em minha formação, mas sem fazer uma
colcha de retalhos. Neste sentido, observar a
vivência escolar dos meus filhos foi fundamental,
pois comecei a perceber que meus alunos também
eram filhos amados de outros seres humanos, e
que também sofriam.

Este livro teve como pretensão apresentar a


Biologia-Cultural do Conhecer como uma Matriz
Biológico-Cultural e um amplo Domínio Lógico
que acredito favorecer uma concepção alternativa
àquelas permeadas pelo que denominei de
abordagem alienante do viver biológico-cultural, e
espero que minhas reflexões sobre o aprender
tenham sido proveitosas para você como foram

423
para mim durante o processo da escrita deste
livro.

Somos seres vivos e como tais nossa


dimensão biológica e os emocionares são parte
fundamental daquilo que somos, mas como seres
humanos podemos ser algo a mais. Acredito que o
que nos falta é acolher o animal que somos, para
que possamos colocar este animal a serviço de
tudo o que podemos ser como seres humanos
biológico-culturais. Se aquilo que caracteriza uma
espécie é o seu modo de vida, como seres
humanos podemos optar pelo viver que queremos
viver, mas sem compreender como nossa
dimensão biológica e cultural se entrelaçam de
forma indissociável acredito que não é possível
que isso ocorra. Por outro lado acredito que só
através do conversar e do (aprender) que ele
propicia é que podemos nos tornar plenamente
humanos, seja lá onde isso possa nos levar.
Dado o determinismo estrutural, aquilo
que eu digo não tem nenhum efeito em
determinar aquilo que você ouve, tampouco o que
você vai compreender e se vai ou não mudar seu
comportamento em função disso. Se não fosse
assim a simples “informação” que fumar pode
causar câncer, e que dirigir de forma imprudente
pode nos machucar e até mesmo nos matar e
matar outras pessoas seria suficiente para que
mudássemos nosso comportamento. Mas a
comunicação humana, o linguajear e o (aprender)
não implicam na transmissão de informações. Se
não compreendemos a (objetividade), a

424
relatividade fundamental e a importância do amar
e do conversar não podemos realmente assumir o
que implica sermos humanos. E não há mal
nenhum em ser assim ...
Mas quando em uma sala de aula eu
pretendo impor e condicionar, pois é assim que
temos feito desde sempre e é assim que fomos
ensinados, eu perco a chance de fazer aquele algo
a mais que foi o que me motivou e acredito que é
o que motiva todo ser humano que escolhe ser
professor, e que no fundo é o que motiva todo ser
humano em todo seu fazer sociocultural. Como
diria Marshal Rosemberg, o ser humano tem um
impulso natural de dar e receber pelo simples
prazer de fazer assim, ao que ele denomina de
compassividade. Maturana diz a mesma coisa ao
falar sobre o amar, sobre o brincar e sobre aceitar
o outro como legítimo no conviver. E esse é um
“impulso” de natureza biológica, que está na
origem daquilo que nos diferenciou dos nossos
ancestrais primatas. Eu costumo brincar com
meus filhos e dizer que se os pais não amassem
seus filhos seria fácil abandoná-los na primeira
esquina, pois eles dão um trabalhão para cuidar.
Se os seres humanos fossem primatas
competitivos nossa espécie não teria durado uma
geração, pois seria fácil abandonar à própria sorte
um bebê que dá tanto trabalho, ainda mais em
uma época e em ambiente hostil onde encontrar
alimento e a vida de forma geral não era nada
fácil quando comparada aos dias de hoje. Não
fosse o amar, ou a compassividade, não

425
estaríamos aqui, mas foi fácil se perder em
argumentos racionais para justificar a
competição, a comunicação violenta e a negação
do outro tendo em vista nossas vontades. Daí
advém todo mal-estar, sofrimento, dor e
adoecimento, na minha opinião.

Em uma sala de aula cada aluno é um ser


humano que tem um interesse, uma história,
desejos, amores e vontades, facilidades e
dificuldades. Cada ser humano é único e
realmente é muito difícil conciliar os desejos e
quereres de todos, as opiniões e aquilo que cada
um julga ser certo ou errado ... a não ser que
conciliemos o amar e o linguajear em redes de
conversações realmente sociais e humanas.

Não adianta ensinarmos ética e cidadania


nos bancos escolares se nosso comportamento
com o outro não é ético. Em última análise tudo
começa com o autoconhecimento, pois só a partir
de mim mesmo posso construir no mundo seja lá
o que for. Acreditamos que transmitimos
conhecimentos referentes às diferentes
disciplinas, mas tudo que pretendemos ensinar
nas escolas diz respeito às condutas
comunicativas que implicam coordenações de
ações, e não à entes concretos ou abstratos com
uma existência em si, mas que surgem no
momento que coordenamos ações com outros
seres humanos, cada um a partir do seu
emocionar, da sua Matriz e a partir dos Domínios
Linguísticos nos quais já opera. Sem conversar
não há uma construção e compartilhamento real

426
de Domínios Linguísticos a partir dos quais
possamos linguajear nas distintas atuações
sociais que optarmos para nosso viver.

Se você quiser conversar ou esclarecer


suas dúvidas e respeito deste livro entre em
contato comigo através do site
www.bioslogus.com.br. Ali você também terá
informações sobre cursos presenciais e online que
tem relação com a Biologia-Cultural do Conhecer,
sobre como adquirir as versões online e impressa
deste livro e outras obras de minha autoria e de
alguns colegas, além de ficar sabendo a respeito
de um projeto de pesquisa que estou
desenvolvendo sobre desenvolvimento humano,
aprendizagem e sincronismo neural.

Agradeço sua atenção e por ter


compartilhado seu tempo comigo na leitura deste
texto. Gratidão!

427
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